Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia (Facom/UFBA) Nº 22 - Novembro de 2009
SAÚDE
ENTREVISTA
MÍDIA
Quem disse que bulimia é coisa de mulher?
Samuel Vida defende expansão das cotas
Quem vigia os vigilantes?
Pág. 04 e 05
Pág. 12 e 13
Pág. 25 Victor Gazineu
Hospital de Custódia: vidas interrompidas na fronteira entre crime e loucura Pág. 16 a 19
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EXPEDIENTE/ EDITORIAL Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Crime, loucura e sentença de vida Jornal Laboratório da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia Endereços: Rua Barão de Geremoabo, s/n, Campus de Ondina CEP. 40.170-115 Salvador/Bahia jornaldafacom@yahoo.com.br Editoração eletrônica Fernando Duarte Assistente de fotografia Frederico Fagundes Secretária de Redação Camila Queiroz Subeditora Gabriela Vasconcellos Editor Responsável Malu Fontes, professora DRT-BA 1.480 Produção da disciplina Oficina de Jornalismo Impresso, semestre 2009.1: Ana Margarida Almeida, Camila Queiroz, Carol d’Avila, Frederico Fagundes, Gabriela Vasconcellos, Giacomo Degani, Guilherme Vasconcelos, Iali Moradillo, Joseane Bispo, Julien Karl, Livia Montenegro, Luis Fernando Lisboa, Maitane Roa, Mariana Almofrey, Mariana Sebastião, Nelson Oliveira, Paloma Ayres, Paula Amor, Paula Boaventura, Rafael Freire, Raiza Tourinho, Rebeca Caldas, Renato Cordeiro, Rodrigo F. Wanderley, Verena Paranhos, Victor Gazineu, Victor Soares Diretor da Facom (2005-2009) Professor Giovandro Ferreira Reitor da UFBA (2006-2010) Professor Naomar Almeida Filho Tiragem: 5.000 exemplares
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om autorização da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Estado da Bahia (SJDH), uma equipe do JF deixou o medo e o preconceito do lado de fora dos portões do Hospital de Custódia e Tratamento (HCT) e aproximou-se da rotina e da trajetória de vida das dezenas de homens e poucas mulheres que incorporam como poucos o peso dos estigmas. Se individualizados, os estigmas do crime e da loucura já são um passaporte inequívoco para a invisibilidade, sobrepostos são uma sentença de vida, ou, com muita freqüência, uma sentença, literal, de morte. Embora fora dos muros dos cerca de 30 HCTs existentes no país o universo da psiquiatria e da saúde mental tenham como discurso praticamente monocórdico as virtudes da luta antimanicomial que resultou na Reforma Psiquiátrica em vigor, cuja bandeira é a desinstitucionalização dos pacientes com transtornos mentais, a realidade dos custodiados passa ao largo de qualquer benefício da refor-
ma. Ao contrário, a reforma jamais cruzou os muros dos Hospitais de Custódia. Uma vez institucionalizados, os amarelinhos, como os pacientes do HCT da Bahia são chamados, em virtude da cor do uniforme, correm o risco de terem a vida indefinidamente inviabilizada pelo duplo estigma, independentemente do teor do crime que um dia cometeram ou do qual foram acusados, da mesma forma como ocorria no passado remoto. Ao invés de denunciar maus tratos (jamais presenciados ou ouvidos como narrativa dos internos pelos repórteres do JF durante o período em que freqüentaram o local) ou de adotar o tom ‘catacumbas do inferno’ que norteia os relatos de uma realidade tão desconhecida pela opinião pública, a narrativa acerca do HCT apresentada nesta edição segue por outro caminho: aponta os descaminhos que conduzem um indivíduo ao universo manicomial, a impossibilidade de sair dele e a vida interrompida quase literalmente. Aborda-se, assim, o descolamento, por parte de quem ingressa nesse mundo, não raro por questões subjetivas relacionadas a poder familiar, político
ou econômico, de quaisquer perspectivas concretas de recorrer aos direitos estabelecidos e legalmente assegurados a qualquer cidadão, mesmo a aqueles que cometem crimes. Não é à toa que boa parte dos internos do manicômio sonha com a cadeia enquanto sinônimo do presídio comum, por considerá-lo um lugar de homens, diferentemente do HCT, associado por eles próprios à loucura que nenhum admite e nem tampouco o sistema que oscila entre pena e tratamento consegue sanar. Para além dos muros obscuros do manicômio, esta edição do JF traz ainda temas como a bulimia em homens, entrevistas com Samuel Vida sobre as políticas públicas voltadas para os negros e com a atriz Heloísa Perissé sobre sua trajetória profissional, o destino incerto de meninos e meninas que cresceram em abrigo quando chegam à maioridade, a quase obrigatoriedade dos jovens em busca do primeiro emprego irem parar em um serviço de call center, as estratégias de integrantes do Movimento Sem Terra e a pressão sobre as mulheres de cabelos crespos pelo alisamento. Boa leitura.
ERRAMOS: A equipe do JF informa que o Professor Marco Antônio V. Rêgo, entrevistado para a matéria Câncer a longo prazo, não é Professor da Faculdade Bahiana de Medicina, como foi dito, e sim Professor da Faculdade de Medicina da Bahia da Universidade Federal da Bahia. A foto veiculada na edição anterior, na página 05, com a legenda: “Vila tem criminalidade zero e espaços de lazer” não é da autoria de Julien Karl e sim de Rodrigo F. Wanderley.
ENTREVISTA
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“Não combino com isso” Heloisa Périssé falou ao Jornal da Facom sobre vida, carreira e amigos
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m visita a Salvador quando da apresentação da peça Advocacia Segundo os irmãos Marx! Heloisa Perlingeiro Périssé participou do debate “O que é hoje, uma mulher bonita?” “Lolô”, como gosta de ser chamada, falou ao JF sobre carreira, amizade e sucesso. Com 42 anos, a atriz e humorista é natural do Rio de Janeiro, mas viveu um longo período de sua adolescência na Bahia. Embora sua carreira tenha tido início em 1989, com a peça As guerreiras do amor, para muitos isso se deu em 1990, na Escolinha do Professor Raimundo, programa exibido pela Rede Globo, com a personagem Dona Tati, uma adolescente que chamava atenção pelo uso excessivo das gírias contemporâneas. Heloisa já fez papéis na televisão, teatro, cinema e até dublagem para a versão brasileira da personagem Glória no filme norte americano de animação gráfica Madagascar. JF: Como foi o inicio da sua carreira? HP - Bom, comecei minha carreira oficialmente em 1989 com o dramaturgo Domingos de Oliveira na peça As guerreiras do amor. Essa oportunidade surgiu quando eu estava fazendo um teste para um curso do Domingos. Depois que ele me viu acabou me convidando para fazer a peça, e a partir daí fui sendo chamada para outros trabalhos. JF: Você enfrentou muita dificuldade? HP - Essa é uma carreira como todas as outras. No início é muito difícil, mas eu sempre determinei na minha vida que se eu tivesse que dar sangue por alguma coisa, daria por algo em que acreditasse, que va-
lesse a pena. Não adianta querer me impor nada, as coisas precisam acontecer de forma natural. Se dissessem: você vai ter o dinheiro do Bill Gattes se fizer cirurgia plástica, não aceitaria porque não combino com isso.
Gabriela Vasconcellos
GABRIELA VASCONCELLOS LIVIA MONTENEGRO
JF: Em algum momento você se arrependeu de fazer algum trabalho? HP - Não me arrependo de nada do que fiz. Acho que há uma colheita de frutos em algum momento da vida quando você acredita naquilo que faz. Sou muito feliz e encorajo as pessoas a correrem atrás dos seus sonhos, mas, às vezes, é preciso parar e ver que a vida te sinaliza alguma coisa, tipo “oh, não vai dar...”. Quando isso acontece, não adianta insistir. É preciso ter humildade para entender que de repente não é a sua. Não acredito que fiz minha carreira com ego, a encaro como uma chamada de Deus. JF: Qual o papel que mais te marcou em sua carreira até hoje? HP - Com certeza foi a Tati, foi o papel que eu mais gostei de fazer.
Heloisa Périssé durante o debate: “O que é hoje, uma mulher bonita?”
JF: Como surgiu a parceria com Ingrid Guimarães? HP - Somos amigas há muitos anos. Já tínhamos feito cursos juntas, tínhamos trabalhado juntas no programa do Chico Anísio. Um dia ela me ligou e falou: “Lolô, vamos fazer um trabalho?” Aí foi assim...
Uma parceria que sempre existiu. JF: Mesmo com tamanho sucesso da peça Cócegas, vocês decidiram interromper a temporada de apresentação, por quê? HP - Estamos com a peça há oito anos, não decidimos parar. A Ingrid ficou grávida, depois a gente volta. JF: E os planos para a televisão? O pro-
grama Sob Nova Direção, exibido na Rede Globo, voltar ao ar? HP - Não, porque o “Piu” não está mais entre nós. [A atriz se refere ao ator Luiz Carlos Tourinho, que faleceu em 21 de Janeiro de 2009, após sofrer um aneurisma cerebral]. Mas, eu vou estrear na nova novela das seis. Estou muito animada, nunca havia feito novela antes.
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SAÚDE Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Homens traídos pelo espelho Mesmo em menor número, os distúrbios alimentares também os atingem
“O
s feios que me desculpem, mas beleza é fundamental”, parafraseando Vinícius de Moraes. Os homens também querem ser bonitos. Dos diversos modelos de sapatos até os modernos cortes de cabelo e inovações em acessórios para tudo o que está entre os pés e a cabeça, eles têm muitas opções para cuidar do visual. Práticas antes características do universo feminino, como pintar cabelos, fazer depilação, unhas e até sobrancelhas agora fazem parte do cotidiano masculino. No entanto, as transformações estéticas refletem mudanças da sociedade. Ao mesmo tempo em que as mulheres estão conquistando espaços antes restritos a eles, os homens adquirem preocupações que eram só delas. Eles não só aprenderam a cozinhar, ajudar nas tarefas de casa, mas estão muito mais exigentes com a aparência. A grande mídia, um espelho para as pessoas em geral, exibe os referenciais de homem que devem ser perseguidos. Assim, nossos rapazes reúnem esforços para se enquadrarem no que é legitimado, a fim de terem boa autoestima e se sentirem aceitos onde frequentam. Mas as turbulências do mundo masculino não param por aí. Acompanhando as preocupações com a aparência, surgem entre eles as chamadas “doenças de mulher”, como a anorexia e a bulimia, ou a eminentemente masculina, vigorexia. São transtornos alimentares, através dos quais, motivados pela busca do corpo perfeito, os indivíduos mudam a forma de se alimentar, colocando a sua saúde em risco. Hábitos como parar de comer,
forçar vômitos, praticar exercícios físicos compulsivos e até tomar doses cavalares de laxantes e anabolizantes já são uma realidade para adolescentes e adultos, como André Malhado, cuja história será contada mais adiante. Segundo especialistas, as vítimas apresentam transtornos de imagens, o que significa que elas se enxergam diferente de como realmente são. O maior problema está na mente. Podem se ver mais magras ou mais gordas de acordo com cada doença. Insatisfeitas com o corpo, elas se condicionam a alterar seus hábitos alimentares, com o objetivo de eliminar os tão indesejáveis quilinhos a mais. É por isso que essas doenças são também chamadas de distúrbios de comportamento. Conhecendo “Ana” e “Mia” A anorexia nervosa (ou manorexia, para os homens) é um transtorno alimentar que se caracteriza por um grande medo de engordar, embora o paciente esteja muito abaixo do peso ideal. Para Nilze Villela, nutricionista do Ambulatório de Obesidade Grave do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES/UFBA), o anoréxico possui uma grande distorção do eu físico. “Ele se olha no espelho e se enxerga gordo, o que o leva a práticas inadequadas para emagrecer”, aponta. Dentre elas, a mais comum é a diminuição progressiva na ingestão de alimentos. Segundo Nilze, um paciente com anorexia apresenta alguns sinais físicos: apatia, fica esquelético, os braços aparentam ser mais longos e o abdômen achatado. Outros sintomas são característicos, como queda de cabelo e da temperatura do corpo, ressecamento das unhas, perda de tecidos ósseos e irregularidades cardíacas, em que se faz necessária a urgente internação, como parte do tratamento. “O paciente será medicado, para sair do estado de tor-
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PALOMA AYRES REBECA CALDAS
O modelo americano Jeremy Gillitzer: antes e depois da anorexia
por, caso contrário ele não aceitará ser tratado. Depois a alimentação será (re)introduzida aos poucos, pois ele está desnutrido e, paralelo a isso, vem o suporte psicológico, para que o paciente se mantenha firme em busca da cura”, explica a nutricionista. Assim como a anorexia, a bulimia nervosa também é causada pelo medo de ganhar peso. Entretanto, o bulímico consome uma grande quantidade de comida compulsivamente, a fim de satisfazer alguma carência ou rebater uma angústia para, em seguida, culpar-se pela ingestão exagerada e fazer o procedimento expurgatório, como o vômito forçado ou o uso de laxantes. Além da carência de nutrientes, sentem-se dores abdominais, inflamações no ânus e na garganta e descontrole intestinal. Ao contrário da anorexia, o paciente com bulimia nem sempre perde peso, apresentando uma aparência “normal”. Ainda de acordo com Nilze, a vítima costuma escolher a noite, depois que todos dormem, para comer exageradamente e eliminar tudo. “Em geral, o paciente esconde o problema
da família, chegando a encobri-lo ou mesmo não o notando”, adverte a nutricionista, Para ela, essas práticas dificultam o diagnóstico e agravam a situação do portador do transtorno. Não existem dados precisos sobre a incidência dessas doenças na população baiana, ou mesmo no número de casos atendidos no Hospital das Clínicas, entretanto, sabe-se apenas que raros são os homens que procuram o HUPES para tratamento. Em 1985, Nilze Villela foi a pioneira, segundo ela, a pesquisar sobre o assunto na UFBA e o Hospital chegou a dispor de um Ambulatório de Nutrição para o tratamento dos transtornos alimentares, mas, devido a pouca procura, o ambulatório fechou e Nilze passou a trabalhar no setor dedicado à Obesidade Grave. No entanto, o Ambulatório de Psiquiatria do HUPES atende pacientes com distúrbios alimentares, predominantemente do sexo feminino, como constatou a equipe de reportagem, que presenciou apenas garotas aguardando atendimento, sendo que uma delas, ao sair do con-
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Acervo pessoal
sultório, precisou ser amparada pela mãe e atendida por médicos, devido a uma queda na pressão arterial. “Não me recordo de ter atendido homens aqui, mesmo assim, acredito que a incidência entre eles é baixíssima. Os transtornos são mais comuns em mulheres jovens ou maduras que tiveram a doença na adolescência e perdura até hoje”, observa Mateus Freire, médico residente do HUPES. Atendendo há seis meses no ambulatório, Freire diz que não existe medicamento que combata diretamente as doenças, entretanto, como elas vem acompanhadas de depressão, pode-se recorrer aos antidepressivos. “O que ajuda é a psicoterapia e o ganho de peso, o qual é a base do tratamento. A família precisa vigiar e o plano dietético tem de ser vigoroso, pois quanto menos peso a pessoa ganhar, a chance de ter uma recaída é maior”. O médico ainda explica rapidamente sobre a Terapia Cognitiva Comportamental, que é a mais estudada para tratar a anorexia e a bulimia que estão, na opinião dele, dentre as mais difíceis de combater. “A terapia foca no pensamento do paciente em relação à doença, na imagem corporal, na alimentação, além de sugerir medidas para que o indivíduo modifique seu comportamento, para não perpetuar o problema”, finaliza. Ambas as doenças, tratadas pelos pacientes como “Ana” e “Mia”, como se elas fossem “melhores amigas”, já atingiram famosos, como Daniel Johns (líder da banda australiana Silverchair), o ator inglês Matt Damon e o cantor e compositor Elton John. Para externar sua angústia, Johns compôs a música “Ana’s Song”, que mostra a maneira ilusória como não só ele, mas muitos que convivem com “Ana”, enxergam a doença: alguém que ele “ama até os ossos”. De tão dependentes dessas “amigas”, as vítimas negam que elas sejam doenças e sim “estilos de vida”, mas que acabam levando à morte pela desnutrição e desidratação, perdendo nutrientes responsáveis pelo funcionamento dos músculos e do coração.
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Professora Nilze Villela (entre suas alunas) é pioneira nos estudos sobre transtornos na UFBA
Enquanto uns querem perder... No sentido contrário dos distúrbios anteriores, a vigorexia é a fixação pelo ganho de músculos através de musculação e do uso de anabolizantes. Mesmo com o corpo cada vez mais forte e dividido, o homem se acha cada vez mais magro, por isso ela é conhecida como anorexia reversa. Mais comum entre modelos e praticantes de esportes, a vigorexia é menos midiática do que a anorexia e a bulimia, mas é mais comum do que se imagina e pode ter como causas problemas familiares, rejeição na escola, dentre outras. Segundo Renata Guimarães, nutricionista e especialista em terapia nutricional, o vigoréxico não apresenta, de início, nenhum problema no aparelho digestório. “A pessoa está com uma doença mental, um distúrbio de comportamento”, afirma. Por ingerir muitos anabolizantes e proteínas, o indivíduo pode sofrer desnutrição, pois deixa de absorver importantes nutrientes, além de ter reduzida a produção de sêmen, apresentar impotência sexual, dificuldade para uri-
nar, tumores no fígado e crescimento das mamas. O tratamento é feito em conjunto entre um nutricionista, que cuida da alimentação, e um psicólogo ou psiquiatra (mais indicado), que cuida da mente, no entanto, é preciso ficar alerta para o risco de recaída. Entre os especialistas há uma discordância se a vigorexia é ou não uma doença. Nesta discussão Renata fica com a primeira opção. “Não quero ficar como meus tios” Esse é o medo do supervisor de vendas André Malhado, 25 anos, que sofre de bulimia há oito. Com atuais 72 Kg distribuídos em 1,84m, Malhado garante que sente bastante fome e gosta de comer de tudo, mas quando come muito, em casa ou na rua, sempre se arrepende e não hesita em colocar para fora tudo o que acabara de ingerir. “Meus tios eram magros quando eram jovens e com o passar dos anos engordaram muito. Tenho medo de ficar como eles”, teme o jovem de físico esguio, que “tem facilidade de ganhar peso”, porém não
tenta ingerir menos calorias. Assumidamente bulímico e, possivelmente, anoréxico, ele admite que está em tratamento psicológico, mas que não surte muito efeito, na sua opinião. “Já pensei em procurar também um nutricionista, mas não sei seguir uma dieta que não tenha as coisas que eu gosto de comer”. Malhado atribui como causas da sua doença a vaidade e a não aceitação de sua homossexualidade pela família, que desconhece seu transtorno alimentar. Somente alguns amigos sabem deste problema. “Sinto um desespero grande, então a comida me preenche de alguma forma”, desabafa. Ele garante que quer se livrar da doença, mas não consegue, pois é muito difícil. Dor na garganta e desmaios já são seus companheiros freqüentes, prejudicando-o no trabalho. Mas quando perguntado sobre o momento que ele considera ideal para buscar um tratamento efetivo, sua resposta vem atropelada por lágrimas. “Quando eu não me aguentar em pé...”. Tomara que ele mude de ideia a tempo.
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EDUCAÇÃO
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Enem de cara nova. Agora vai? Com o adiamento provocado pelo vazamento das provas, estudantes têm mais tempo para se adequarem às mudanças CAMILA QUEIROZ PAULA AMOR
À
s vésperas da data prevista para a realização do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2009, um escândalo deixou milhões de estudantes de todo o Brasil ainda mais apreensivos: o vazamento das provas e o consequente adiamento da aplicação do exame. Prejuízos e expectativas à parte, os estudantes ganharam mais tempo para se acostumarem às mudanças que farão do Enem o maior processo seletivo do ensino superior brasileiro. No dia 31 de março deste ano, o Ministério da Educação anunciou uma nova proposta para o Enem – o chamado novo Enem, que este ano levará em conta conteúdos mais específicos lecionados durante o ensino médio. “O Enem apenas desenvolvia competências e habilidades, não tinha a questão
do conteúdo. Surpreendentemente, hoje o conteúdo do Enem está bem mais próximo do conteúdo dos vestibulares da UFBA”, diz Luís Carlos Barros, diretor do Colégio e Cursinho Módulo. O conteúdo do novo Enem será baseado nos existentes Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que são referências de qualidade para o ensino fundamental e médio do país, elaboradas pelo Governo Federal. “Se analisarmos os PCNs, vamos perceber que eles são voltados para uma interdisciplinaridade, uma cultura mais geral, um conhecimento mais amplo e menos específico para cada disciplina”, explica Ronaldo Lopes, coordenador-geral do Colégio e Cursinho Sartre COC, mais conhecido como Professor GG. O governo criou condições para que os vestibulares mudem, e dessa forma, se adequem à Lei de Diretrizes e Bases, aos PCNs. Democratizar as oportunidades de acesso às vagas de ensino
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Nos dias 5 e 6 de dezembro 1619 municípios aplicarão o Novo Enem
superior, possibilitar a mobilidade acadêmica e melhorar a qualidade do ensino médio são os principais objetivos desta mudança. Além disso, o novo Enem poderá ser utilizado para certificação de conclusão do ensino médio, substituindo o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja). As mudanças Até 2008, o Enem era uma prova com 63 questões interdisciplinares, sem articulação direta com os conteúdos ministrados no ensino médio e sem a possibilidade de comparação das notas de um ano para outro. Uma mudança significativa é a possibilidade de utilizar o novo Enem para se candidatar a uma vaga em diferentes universidades do país. Entretanto, as instituições de ensino superior adotarão a prova de formas distintas e em tempos diferentes. As universidades poderão adotar o novo exame de quatro modos: como fase única, como primeira fase, combinado com o processo seletivo (compondo um percentual da nota final) ou como fase única para as vagas remanescentes do vestibular. A Universidade Federal da Bahia (UFBA) anunciou que, neste ano, o novo Enem já será utilizado como fase única para ingresso nos bacharelados interdisciplinares (BIs)e nos cursos superiores de tecnologia. A partir
do ano que vem, a UFBA pretende adotar como primeira fase do vestibular para os cursos tradicionais. A Universidade Federal de Feira de Santana (UEFS) ainda não se posicionou a respeito. Com a fraude na realização do exame em outubro passado, muitas universidades voltaram atrás quanto a usar o Enem em seus processos seletivos. A Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade de Campinas (Unicamp), que têm os maiores vestibulares do país, desistiram de utilizar o resultado do Enem como 20% da nota final da primeira fase. As novas provas serão aplicada nos dias 5 e 6 de dezembro. Dividido em quatro áreas do conhecimento - ciências naturais, ciências humanas, linguagens e matemática -, o novo Enem conterá 180 questões de múltipla escolha e uma redação. Neste ano, haverá apenas uma edição da prova. Em 2010, a intenção é aplicar pelo menos dois exames. A meta é alcançar sete edições por ano. Professor GG acredita que isso seria uma forma de diminuir a pressão psicológica nos pré-vestibulandos: “O aluno pode ter seus conhecimentos testados mais de uma vez e depois você optar pelo melhor resultado”. O resultado da prova poderá ser utilizado em até cinco universidades diferentes, colocadas em ordem de preferência pelo aluno. A preferência no preenchimento das vagas de uma universidade será daqueles que a tenham como primeira opção. Uma das principais mudanças propostas pelo Ministério da Educação é a possibilidade de o aluno receber sua nota antes de se inscrever nos processos seletivos das universidades, além de poder consultar as médias
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para atender as demandas do novo Enem. Segundo Professor GG, “agora nós temos uma carga horária maior direcionada para o vestibular da UFBA. A tendência é que ano que vem façamos uma inversão. Ou seja, caminharemos para uma carga horária maior direcionada a este novo modelo, e aulas extras para quem ainda vai fazer vestibular em alguma universidade que por ventura não tenha mudado”. Já para Márcia Cristina, “será necessário trabalhar um programa coerente, moderno, atual em todas as áreas, trabalhar muito mais o raciocínio do que a memorização”. As notícias sobre o novo Enem despertaram uma ansiedade muito grande nos alunos que irão fazer vestibular neste ano. “É novo para todos, o que coloca todos os alunos no mesmo patamar. Além disso, ninguém é formado em um ano, é uma preparação da vida inteira”, acredita Telma Barreto, diretora pedagógica do Colégio São Paulo. Márcia concorda e acrescenta: “as escolas têm um compromisso maior do que o vestibular, que é a educação e a preparação do aluno. Quando se faz uma boa preparação, a avaliação no final não importa. Se o aluno foi preparado criticamente, se ele está preparado a raciocinar, a ter uma visão contemporânea do mundo, da sociedade, o tipo de questão que surgir ele vai conseguir fazer”. Em enquete realizada pelo jornal A Tarde na seção on line Vestibular sobre o que os internautas pensam a respeito do novo Enem,
Nova prova gera expectativas de melhora
dos demais candidatos à vaga que ele pleiteia, proporcionando ao candidato uma noção mais clara das suas chances. E agora, José? A mudança é vista com bons olhos pelos colégios e cursinhos particulares de Salvador. “As mudanças são excelentes. Já havia uma necessidade dessas mudanças há muito tempo. Quem trabalha com pré-vestibulando já sentia uma necessidade de mudança nesse modelo há muito tempo”, acredita Professor GG. Para Márcia Kalid, diretora do Colégio e Cursinho Oficina, “toda mudança faz com que no mínimo se discuta o assunto. Isso veio para a gente discutir o vestibular e por isso eu acho interessante”. João Batista, diretor do Colégio Anchieta, concorda com a necessidade de mudança: “Uma instituição contemporânea de educação não pode ficar presa no tempo e no espaço”. Como o vestibular direciona significativamente o trabalho feito no ensino médio, as modificações no Enem implicam adequações que devem ser feitas pelos colégios e cursinhos no preparo dos
pré-vestibulandos. À exceção das provas que vazaram, não há questões-modelo que sirvam suficientemente de base para a elaboração de material didático e simulados. “Antes temos que perceber como será essa prova. Enquanto não tivermos nada mais definido é uma precipitação mudarmos qualquer sistema”, afirma Barros. Há um consenso entre os profissionais entrevistados de que o novo Enem segue uma tendência de interdisciplinaridade verificada nas universidades e no mercado de trabalho. “Acho que a proposta da educação nova não é abrir mão do conteúdo, é ter o conteúdo, porém contextualizado”, assegura Barros. Professor GG garante que “o profissional que o mercado quer hoje é um profissional de visão mais integrada”. Os próprios colégios procurados afirmaram que já seguem esta linha desde o ensino fundamental. Trabalho coletivo, aulas multidisciplinares, provas e módulos elaborados com uma equipe de professores, tendo em vista uma perspectiva mais interdisciplinar dos conteúdos, são algumas das ações dos colégios e cursinhos
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as opiniões se dividem: 33% creem que a mudança é ruim e continuará sendo injusta com quem não teve acesso a um bom ensino; aproximadamente 24% acham péssima, apressada e pouco discutida com a comunidade e quase 16% acreditam que foi ótima e ajudará a reformular o currículo do ensino médio. Preocupações à vista Ao mesmo tempo em que são bem vindas, as mudanças também provocam preocupações. Uma delas é a perda da regionalização nas questões da prova, que será aplicada em nível nacional. “Perde um pouco o conhecimento de sua própria terra e sua história”, lamenta Márcia. Outra questão levantada por Barros diz respeito ao nivelamento dos conteúdos: “será que o nível do conteúdo que é dado no Norte, Nordeste e Sudeste é igual? Conseguiremos ter um programa único, já que os conteúdos programáticos do Sul e Sudeste, por exemplo, são diferentes do nosso?”. Professor GG ainda alerta sobre a possibilidade de uma intensa migração, devido à possibilidade de concorrer com uma única prova para universidades de todo o país: “Manter a segunda fase é uma forma de a universidade limitar essa possível migração em massa”, diz o professor. Preocupações e críticas à parte, o novo Enem também suscita boas expectativas. “A prova do Enem, até então, tinha um nível muito fraco. A gente espera que com essa modificação e introdução de novos conteúdos, a prova venha de uma forma diferente”, espera Barros. Já Márcia aposta que “o grande lance das provas daqui para frente será a redação, porque ela entra com um peso muito grande, será um diferencial”. Essa visão é compartilhada por diversos professores e diretores, e a esperança é de que o novo Enem represente um passo importante na educação brasileira.
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SOCIEDADE Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Para onde ir agora? A falta de opções de moradia para jovens saídos de abrigos é motivo de preocupação constante Paula Boaventura
muito aquém da demanda existente. Adoção O perfil destes jovens, adolescentes do sexo masculino, não condiz com o das crianças desejadas pelas pessoas habilitadas à adoção em Salvador. A preferência é sempre por crianças do sexo feminino, com menos de 8 anos, segundo dados da 1ª Vara da Infância e Juventude da Comarca de Salvador. Hoje existem na capital 653 crianças e adolescentes vivendo em abrigos. Destes, 234 são adolescentes, ou seja, com idades entre 12 e 17 anos. É preciso ressaltar que nem toda criança e adolescente que reside nessas instituições é considerada apta para adoção. “Antes de qualquer criança que está em um abrigo ser disponibilizada para adoção, é preciso esgotar todas as possibilidades dessa criança permanecer com sua família natural. Faz-se uma investigação na família para verificar se não há nenhum parente que possa se responsabilizar pela guarda da criança”, explica Manoela Carneiro, responsável pelos processos de adoção da 1ª Vara da Infância e Juventude.
Welington, 25, morou em abrigos e hoje vive do trabalho informal
IALI MORADILLO PAULA BOAVENTURA
A
agenda do desejo de muitos adolescentes ao completarem 18 anos é extensa. Tirar carteira de habilitação, ingressar na faculdade, arranjar o primeiro emprego. Estes são apenas algumas das aspirações de milhões de jovens brasileiros. Para um grupo especial de jovens, no entanto, estes sonhos praticamente dão lugar a um pesadelo, já que completar 18 anos representa literalmente perder o direito de continuar tendo o direito de morar onde moram. Essa é a realidade dos
jovens cujo lar, desde a infância, é um abrigo. Em 2008, de apenas um dos 23 abrigos cadastrados no Conselho Municipal da Criança e do Adolescente de Salvador três jovens vivenciaram essa angústia e pelo menos outros 17 adolescentes inscritos no Cadastro Nacional de Adoção vivem hoje o mesmo drama da preocupação com o destino que terão após atingir a maioridade. Salvador dispõe de dois albergues noturnos para os desabrigados adultos, ou seja, os jovens oriundos dos abrigos já com mais de 18 anos: o Albergue de Roma e o da Baixa dos Sapateiros, com capacidade para 200 pessoas cada, número
Pobreza e maus tratos Ainda que o número de crianças e adolescentes disponíveis para adoção seja considerado reduzido, os abrigos de Salvador mantêm suas capacidades preenchidas, sobretudo em decorrência da situação de risco sob a qual muitos jovens se encontravam, como abusos e maus tratos praticados pela própria família. Colocar a criança ou adolescente em um abrigo a é penúltima opção entre as oito medidas específicas de proteção estabelecidas para crianças e adolescentes em situação de risco, conforme rege o artigo 101 do Estatuto da Criança e do Adolescente, antecedendo apenas a inserção em família substituta. O fator que mais
contribui para esse cenário é a falta de recursos financeiros de muitas famílias. Bárbara Janaína, 49 anos, desempregada, ex-moradora de rua e mãe de cinco filhos, conta que um deles está morando em um abrigo localizado no bairro de Ondina. Os demais filhos vivem com ela em um único cômodo alugado na Baixa dos Sapateiros, pago com o auxílio-moradia, no valor de R$100. Reinserção familiar O Levantamento Nacional de Abrigos para Crianças e Adolescentes realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2003 incentivou o Ministério Público do Estado da Bahia a criar, no ano seguinte, o Programa Retorno ao Lar (PRL), cujo objetivo é, segundo a psicóloga Carla França, uma das coordenadoras do programa, diminuir ao máximo o número de crianças nos abrigos e reinseri-las em suas famílias originais. “A diretriz pública hoje indica o retorno mais breve à família de origem”, explica Carla. Dados apresentados no V Seminário do PRL, realizado em 2008, revelam que até junho de 2007 180 crianças que viviam em abrigos retornaram às famílias de origem e 278 apresentaram condições de reinserção, graças ao trabalho realizado pela equipe do programa. Parcerias Visando a reinserção às famílias naturais, o Ministério Público trabalha em parceria com os abrigos que, segundo Carla, além de receberem recursos públicos para a manutenção também recebem recursos destinados a atividades específicas voltadas para o retorno à família. “Com estes recursos pode-se manter uma equipe profissional de psicólogos e assistentes sociais e obter pequenos itens que colaboram para o retorno
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das crianças ao lar, como um beliche ou a construção de um cômodo”. O Lar da Criança, localizado na Vila Laura, em Brotas, é uma das instituições que tentam reinserir as crianças em suas famílias de origem. Para a pedagoga do abrigo, Noélia Santana, a idade é um dos principais fatores que dificultam o processo de retorno. “O tempo é inimigo delas”, afirma a pedagoga. No caso do Lar Luz da Manhã, em Pituaçu, as crianças, em sua maioria, são encaminhadas para que o abrigo cuidem delas, até poderem ser reinseridas. São poucos os casos de crianças que serão colocadas na condução de adoção na instituição. “No caso dos maus tratos, é o Juizado que entra em contato com os pais. O abrigo não tem essa função. É também o Juizado que autoriza o internamento da criança. O nosso papel é dar suporte à criança até o seu destino ser definido”, esclarece a psicóloga Ana Rita. O tempo médio de internamento é de três anos, embora haja casos simples, nos quais o abrigamento não ultrapassa uma semana. A psicóloga informa ainda que quando o retorno à família é autorizado, o abrigo procura ajudá-la de alguma forma. “Às vezes a gente sofre muito ao devolver uma criança para uma casa em determinadas condições, mas o lar dela é aquele, o pai e a mãe estão lá”, lamenta. Nestes casos, a instituição procura ajudar a família, seja contribuindo para que esta tenha uma renda através da doação de um carrinho de pipoca, de cachorro quente ou até mesmo de uma cesta básica durante um período, para que a criança não passe fome. Exceções Nem todos os adolescentes que atingem a maioridade nos abrigos, no entanto, são obrigados a deixar as instituições onde viveram até então. Algumas instituições, como o próprio Lar da Criança e o Lar Luz do Amanhã, continuam a apoiá-los mesmo após os 18 anos. O Lar Luz do Amanhã recebe crianças de um
a seis anos de idade e quando estas atingem a maioridade podem permanecer até conseguir condições econômicas para se manter. “Aqueles que ultrapassam essa idade continuam até enquanto tiverem necessidade, até ter maturidade para sair. Temos um caso de um rapaz de 22 anos que está em vias de ser desligado, mas somente após a regularização no trabalho dele”, explica Ana Rita. Os poucos jovens que ainda moram no Lar recebem orientação profissional a partir dos 14 anos e quando começam a trabalhar é aberta uma poupança, para, no futuro, viabilizar a casa própria ou o ingresso em uma comunidade de ex-abrigados, de modo que a emancipação seja feita da melhor forma possível. Já o Lar da Criança, há dois anos vem prestando auxílio aos jovens desligados. No ano passado, os três jovens que completaram 18 anos passaram a residir em uma casa alugada pelo abrigo. Atualmente, dois deles já estão empregados e tornaram-se responsáveis pelo aluguel, mas o abrigo continua ajudando-os com uma cesta básica e a refeição do jovem que ainda está desempregado. Estigma social A falta de recursos, no entanto, é apenas um dos obstáculos enfrentados pelos jovens que chegaram aos 18 anos vivendo em abrigos. Eles sofrem também com o preconceito. “Muitos pensam que eles são pivetes de rua, viciados, marginais. Já estão rotulados pela sociedade, como as pessoas que saem das penitenciárias. Conseqüentemente eles já são eliminados de qualquer coisa, antes mesmo de competir, só pelo percurso que tiveram”, explica Noélia. Para Carla França, a imagem construída pelo preconceito não encontra equivalência no padrão de comportamento das crianças e adolescentes que vivem em abrigos. Segundo a psicóloga, a liberdade limitada de ir e vir e a falta de contato com o dinheiro influenciam de tal forma a vida desses jovens que muitos não
O que diz a lei sobre jovens e crianças em situação de risco
conseguem ter nem a vivência nem a malícia de um jovem criado pela própria família. Entrevistado pelo JF, Alex, um jovem de 18 anos criado desde os 3 meses de vida em um abrigo em Salvador, confessa que não saber locomover-se na cidade, exceto para ir ao médico ou à escola. Ele conta ainda que nunca consumiu álcool. Wellington, 25 anos, conta que enfrentou muita dificuldade ao sair do abrigo em que morava. Ele chegou a passar pelo Albergue da Baixa dos Sapateiros, mas, através do trabalho como vendedor ambulante, há dois anos reside em uma casa na Barroquinha. No casos das meninas, muitas buscam o casamento como solução para o desligamento dos abrigos. Segundo Carla, a maioria é bem aceita pela família dos maridos, sobretudo pelo fato de terem tido uma educação rígida. Famílias acolhedoras O levantamento feito pelo Ipea em 2003, a pedido da Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH) da Presidência da República, foi um divisor de águas para as políticas públicas voltadas para a Criança e o Adolescente, sobretudo para aquelas que vivem em abrigos. A pesquisa identificou que 58,2% delas estavam nas instituições em conseqüência da
pobreza da família. Um exemplo das mudanças proporcionadas a partir a pesquisa é a iniciativa da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte que, através do programa Família Acolhedora, realiza acompanhamento sócio-familiar de famílias com crianças de 0 a 12 anos que apresentam vínculos familiares fragilizados. O objetivo é intermediar o restabelecimento dos laços e garantir o retorno da criança ao lar. As crianças podem ser atendidas já vivendo com a família de origem, nos casos em que há menor risco à sua integridade, ou com uma família substituta acolhedora, nos casos de alto risco. O programa beneficia estas famílias com um salário mínimo mensal. A iniciativa da capital mineira está sendo analisada pelo Ministério Público da Bahia com o propósito de verificar sua adequação e aplicação em Salvador. Carla França, no entanto, pondera que quaisquer medidas adotadas são apenas paliativas e que bons resultados permanentes só podem ser atingidos através da implementação de políticas públicas de geração de emprego e renda. “A gente precisa de medidas de geração de renda e economia solidária para que os adultos possam sustentar seus filhos, mantê-los na escola, sem trabalhar para ajudar na manutenção da família”, argumenta.
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Organizar, ocupar e resistir Disso é feita a rotina dos movimentos sem-teto em Salvador Arquivo Agência Experimental
A escola para as crianças é mantida pelos integrantes do movimento
RAÍZA TOURINHO
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ebaixo da bandeira vermelha com a imagem de Che Guevara, aguardavam centenas de pessoas, algumas desde a noite anterior. É a inscrição do MSTS (Movimento Sem teto de Salvador). Os dizeres da própria bandeira já explicam a imensa fila, no bairro de Mussurunga, em plena quinta-feira, “Igualdade Social, Moradia para Todos já!”. Frase que resume a esperança de milhões de brasileiros negligenciados por um Estado ineficaz, que nega direitos básicos como o de habitar. Do outro lado da cidade, no subúrbio ferroviário, crianças brincavam na beira de um esgoto improvisado enquanto seus pais tentavam o pão de cada dia. Espremidas em um pequeno terreno, convivem cerca de 400 famílias. As casas, geralmente de madeirite, têm caráter estratégico: são facilmente desmontadas caso haja necessidade. É uma das 20 ocupações do MSTB (Movimento Sem
Teto da Bahia), que juntas abrigam mais de 10 mil pessoas. O Movimento Sem teto da Bahia foi criado em 2003, em uma ocupação “espontânea”, na Estrada Velha do Aeroporto. Surgido juntamente com ascensão de Lula e o aprofundamento da crise mundial, o movimento foi contemporâneo de levantes como a Revolta do Buzu. Segundo o coordenador do MSTB, Pedro Cardoso, foi “a própria realidade que construiu o movimento”. De lá para cá, o movimento cresceu vertiginosamente e, por conflitos políticos/ ideológicos, transformou-se em dois: O MSTS e o MSTB. Apesar de ainda hoje estar sob a mesma bandeira com o slogan organizar, ocupar e resistir. São consideradas sem-teto pessoas que morem em casas cedidas; tenham mais de 30% da renda destinada a despesa com o aluguel; vivam em moradias em situações de risco e que morem nas ruas. O direito a moradia está previsto na Constituição como função social da cidade e dever nacional. De
modo que as ocupações realizadas pelos sem-teto são amparadas neste preceito constitucional, sendo legítimas. Em Salvador, onde se assiste a um boom imobiliário, o déficit habitacional chega a 380 mil unidades. Para Pedro, “as moradias são um problema estrutural do capitalismo enquanto sistema”. Organizar Uma senhora grita para que todos respeitem a fila. Alguns aproveitam descuidos e se “acomodam” na fila. Um senhor percebe e avisa aos outros, logo começa mais uma confusão, acalmada em seguida. Apesar de ser apenas 5h da manhã, há cerca de 300 pessoas no local, formando uma fila quilométrica. É a inscrição para novos membros do movimento. Mais do que isso: as pessoas ali presentes estão interessadas não na luta social pela moradia, bandeira-mor dos sem-teto, mas por uma casa própria a preço baixo, como promete o movimento. Com parcelas a menos de R$50 por 10 anos, o projeto faz parte de um convênio com a Caixa Econômica Federal. Ter nome limpo e não possuir nenhum outro imóvel são pré-requisitos. Apesar da distribuição das senhas ter começado cedo, antes das 6h da manhã, a inscrição só começou por volta das 9h, quando os voluntários conseguiram repor o cartucho da impressora e seu coordenador, Jhones Bastos, chegou. Antes dele, vieram as tias do lanche, o atendimento prioritário dos idosos e gestantes e a denúncia da circulação de xerox do formulário de inscrição. E as fraudes não pararam por aí. Em um episódio típico do “jeitinho brasileiro”, uma sobrinha de uma das voluntárias levava conhecidos para preencher
a ficha. A centésima pessoa só foi atendida às 11h da manhã. Apesar de ter tido mais de uma semana para inscrição, foi somente no último dia que a maioria dos interessados compareceu ao local, e ao final da manhã a lista já passava das 900 pessoas. A grande procura, segundo Jhones, se deu devido ao anúncio do lançamento do programa ha-bitacional do governo federal, o “Minha Casa, Minha Vida”, feito dias antes. Com a previsão da construção de 180 milhões de habitações, dentre as quais 32 mil na Bahia, o programa inscreveu nos meses seguintes mais de 389 mil baianos. Pessoas que só querem a garantia de um direito básico previsto na Constituição: o da moradia. É o caso de Siomara Lane, 23 anos e grávida do primeiro filho. Ela está desempregada e mora na casa dos pais. A jovem viu no projeto a oportunidade de fugir do aluguel que começará a pagar em breve, após o casamento. “É uma chance para quem não tem condições” afirma. Do outro lado, está Rosana Andrade, 63, aposentada e que mora com o filho. O projeto possibilita um sonho antigo para ela e o marido: “ter a nossa casinha” Pagar O primeiro da fila, Márcio, que chegou às 22h da noite anterior, guarda recordações desagradáveis, como ter passado humilhação ao ser revistado por policiais. Deitado sob um papelão com uma expressão abatida, declarou que estava sem condições de ser entrevistado: “Tô um bagaço, moça”. E acrescenta: “Se soubesse que seria assim, não tinha vindo. A gente sofre de noite e ainda sofre de dia”, declarou debaixo do sol das 8h. Cedo também
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Ocupar Dona Terezinha chegou em Escada juntamente com 50 pessoas, há cerca de três anos. Com o objetivo principal de construir uma casa para seu filho morar com a família, ela varou noites colhendo pedaços de madeira, construiu sozinha o barraco e, só dois meses depois, conseguiu trazer o filho. O mesmo tempo que completa o assassinato dele em um bar em frente à ocupação. Deixou órfãos dois filhos. Histórias como essa, de mulheres guerreiras que, muitas vezes, perdem seus filhos assassinados ou para o tráfico, são comuns no
Quilombo de Escada. A negligência do Estado é perceptível pelo próprio existir da ocupação que convive com a violência e o tráfico, além da precariedade de infra-estrutura, onde os próprios semteto foram obrigados a construir canais improvisados de esgoto e escolas e a fazer “gato” de luz e água. A ausência do Estado chega Além de moradia, os sem teto reinvidicam a dignidade de cidadãos ao ponto de ser negado atendimento no posto de no movimento, o coletivo é hoje horizontalizado e a construção de saúde próximo, por eles não pos- o mais importante do MSTB, acu- uma sólida coletividade. “A gente suírem residência fixa. mulando diversas conquistas. Exis- tem uma utopia que nos move e No estatuto do Movimento, tem outras formas de ativismo que esperamos tornar realidade”, há leis que proíbem espancamen- político no movimento, como o conclui. tos, venda dos barracos e o tráfico curso de formação política, além A grande prova da tentativa e uso de drogas nas ocupações. das diversas parcerias com univer- de construção da comunidade é a Porém, o cumprimento destas sidades, como as aulas do teatro própria estrutura do movimento. leis ainda é uma utopia para os do oprimido e diversos trabalhos Administrado por coordenadores, sem-teto. Para Ana Vaneska, co- acadêmicos, que até deram origem o MSTB conta hoje com 21 coorordenadora do MSTB, a situação ao Seminário Movimento dos Sem denadores em âmbito estadual e só pode ser controlada se houver Teto da Bahia. incontáveis em nível municipal e consciência e um combate intenEssas formas de ativismo local. Em cada ocupação do movisivo por parte dos moradores, mas demonstram que os sem-teto es- mento tem que haver o mínimo de é difícil lidar com esta situação, “a tão longe de ser uma agregação três coordenadores, acrescentando gente não anda armado, como vai de pessoas que querem uma casa. mais um a cada 50 famílias vivendo enfrentar um traficante com uma Os quilombos, como são denomi- no local. Geralmente os coordenaarma na mão?” nadas as ocupações por conta da dores são “revelados” nas brigadas, sua resistência, são comunidades instâncias com uma determinada Resistir que funcionam com uma lógica quantidade de famílias, responMulheres de várias idades con- própria. O objetivo final, segundo sáveis na semana pela limpeza, versavam enquanto faziam fuxicos. Pedro, vai muito além da casa, “a portaria, seguranças etc. Como Constroem uma toalha para a mesa gente utiliza a moradia para galgar cada brigada tem representantes, da escola, junto com uma nova transformações sociais”, revela. muitas vezes são descobertas lideforma de afirmação social. Elas fa- Foi desta forma que o movimento ranças em potencial. “A gente quer zem parte do Coletivo Guerreiras construiu o conceito de comuni- construir um movimento onde Sem Teto, e fuxicam após uma aula dade bem-viver. “É o espaço onde todos se sintam sujeitos”, explica de teatro do oprimido promovido a gente constrói outras perspecti- Ana, dizendo que “todo mundo pelo Lemarx (Laboratório de Es- vas de relação”, define Ana. Segun- sendo coordenador ninguém tem tudos e Pesquisa Marxista). Com do ela, a construção dessa comu- o poder pra si”. E é assim que os o objetivo principal de questionar nidade perpassa os princípios do sem-teto superam as dificuldades o lugar e importância da mulher movimento, que prioriza o poder em busca do seu mundo ideal. Arquivo Agência Experimental
chegou o aposentado Jayme Sousa, 62, às 3h da manhã. Ele diz que quer conseguir uma casa própria, já que mora com o filho. Uma conhecida dele confessa, porém, que ele possui mais de oito casas, conseguidas através de projetos semelhantes, “ele diz que tem mais de 14 netos só de um filho, então precisa ter bastante casa, né?” afirma a moça, que não quis se identificar. Ao seu lado, a auxiliar administrativa Georgete Alves, 36, não disfarçava a agonia às 10h30 da manhã. Morando de aluguel com a família há 10 anos, estava atrasada para o trabalho que inicia às 9h. “Falei com minha chefa que me atrasaria, mas não imaginei que seria tanto”, confessa aflita com a ficha nº162, quando o atendimento ainda não havia chegado ao n° 100. Entretanto a agonia dos cadastrados estaria longe de terminar. Os agora integrantes do MSTS teriam que freqüentar reuniões quinzenais e pagar uma taxa de R$3 para a manutenção dos núcleos. O movimento iria então verificar os dados dos cadastrados e enviar o projeto para o governo federal, que aprovaria ou não a construção das casas. Todo o processo não levaria menos de dois anos até que o sonho dessas pessoas pudesse se concretizar. Para os casos urgentes, o movimento disponibilizou vagas em um dos 33 acampamentos pela cidade.
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100% das vagas reservadas Samuel Vida fala ao JF sobre políticas contra o racismo e ações afirmativas raciais na universidade pública Zé Marques
“Os brancos acabam se apropriando dos privilégios que tem”
FREDERICO FAGUNDES LUÍS FERNANDO LISBOA MARIANA ALMOFREY
A
dvogado e docente dos dois primeiros cursos de Direito de Salvador criados na Bahia (UFBA e UCSAL), Samuel Vida é um dos nomes mais representativos na história das lutas do Movimento Negro em Salvador. Fundador do Afro-Gabinete de Articulação Institucional e Jurídica (Aganju), onde exerceu por duas vezes a função de coordenador, e militante do Movimento Negro há mais de 20 anos, Vida foi um dos sete especialistas escolhidos para participar da elaboração da proposta do Estatuto da Igualdade Racial, em Brasília. Falando vagarosamente, como se estivesse escolhendo as melhores palavras para traduzir seu pensamento, Samuel Vida defendeu em entrevista ao JF a implantação de políticas públicas contra o racismo. Sem meias palavras, pontuou o que considera certo e errado na evolução destas medidas.
Jornal da Facom: Costuma-se dizer que as políticas de ações afirmativas brasileiras são inspiradas no modelo estadunidense. Uma vez que Estados Unidos e Brasil são países com realidades distintas, de que modo as ações implantadas aqui levam em conta as nossas particularidades? Samuel Vida: O conceito “ações afirmativas”, de fato, é parte da experiência norte-americana, mas é um engano supor que as ações afirmativas tenham surgido nos Estados Unidos e que há inspiração ou cópia do modelo desse país. A ideia de compensar setores discriminados, oferecendo oportunidades diferenciadas e com natureza inclusiva, encontra suas primeiras manifestações explícitas na Inglaterra e na Índia. As políticas de ações afirmativas adotadas no Brasil até o momento diferem muito daquelas adotadas nos Estados Unidos. Lá, o que ocorreu foi um sistema de bonificação que permitia ao candidato de alguma minoria discriminada incorporar no processo seletivo alguns pontos extras. A nossa concepção de ações afirmativas é vinculada à especificidade local. As cotas da UFBA, por exemplo, incluem brancos oriundos de escolas públicas. Nos Estados Unidos, os governos são obrigados a gastar parte do seu investimento em o- bras e serviços com empresas negras, aqui isso não existe. Falam que a gente copia, mas o que há de melhor na experiência norteamericana não chegou aqui. JF: Como o senhor avalia as ações afirmativas nas instituições de ensino brasileiras? SM: Como fundamentais. Sou egresso da universidade pública e, quando entrei, numa turma de duzentos, só havia dois estudantes
negros. A política de cotas tem permitido uma democratização da universidade pública. Claro que ela não é a única via para enfrentar o racismo, mas é uma estratégia importante, porque pôs em debate as relações raciais para a elite e a classe média brasileiras. Ainda é preciso discutir o Estatuto da Igualdade Racial, projeto de lei que pretende regular numa escala mais ampla as ações afirmativas e as políticas de promoção da igualdade racial. Eu não posso pensar uma política pública sem partir do pressuposto de que a sociedade a que ela se destina não é igual; tem culturas, organizações e visões de mundo diferentes. Isso tem que ser incorporado na ação do Estado de forma permanente. Então isso não é ação afirmativa, é política permanente de promoção da igualdade racial. Ação afirmativa é transitória, deve durar só o tempo de corrigir as desigualdades. O racismo institucional deve ser enfrentado de maneira mais efetiva. JF: O que falta para o Estatuto da Igualdade Racial ser implantado? SM: Vontade política dos setores dizem ser democráticos. A sociedade brasileira finge que há uma democracia racial ou que o problema racial é menor, quando, na verdade, a própria ideia de democracia fica comprometida quando se observa as relações sócio-raciais. A proposta do Estatuto é obrigar o Estado brasileiro a reconhecer a centralidade do desafio de combater e superar o racismo. Nenhum partido tem posição uniforme a respeito disso, o que mostra que a questão racial no Brasil é suprapartidária e transideológica. O racismo contaminou todas as estruturas, da extrema esquerda à extrema direita. Os bran-
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cos acabam se apropriando dos privilégios que têm, bloqueando o debate e, consequentemente, a possibilidade de superação do racismo no Brasil. É muito extravagante, por exemplo, que Salvador tenha, segundo o IBGE, 83% de negros e não tenha um candidato negro a prefeito. JF: Em sua opinião, o povo brasileiro é miscigenado? SM: É, mas há uma miscigenação recalcada, reconhecida apenas como vetor de embranquecimento. Ninguém fala da miscigenação como um processo de enegrecimento, e sim para negar a própria ascendência negra. No Brasil, nós chegamos a ter, até mesmo na Constituição, a previsão da eugenia como política de Estado. A eugenia, no Brasil, significava embranquecimento: trazer imigrantes para montar um estoque racial branco e estimular a miscigenação para embranquecer. Chegou-se a calcular que no ano 2000 não haveria mais nenhum negro no Brasil. Essa miscigenação é parte do processo de discriminação racial do país. JF: A sociedade e o Estado parecem não considerar as instituições de ensino como espaços que possibilitam mudanças nos valores culturais. Não deveria haver uma reavaliação no modo como a universidade é vista antes de políticas de ações afirmativas serem adotadas? SM: Não, porque, na verdade, a escola não é um espaço de transformação social, ela sempre foi o lugar de reprodução de valores hegemônicos. O que muda a universidade é o desmonte da função de reprodução dos interesses da elite. Quando entram membros pobres no espaço em que sempre entraram membros da elite, ele se altera. Então, não vejo porque imaginar que haveria alguma medida de democratização anterior à entrada dos negros. JF: Quais são os principais avanços e
entraves, em Salvador, à implantação da lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história da África e Cultura Afrobrasileira nas escolas de educação básica? SM: Não há implantação. A prefeitura de Salvador tem sido criminosa, porque ignora a obrigação decorrente da LDB [Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional] e não cria condições para sua efetivação. No primeiro ano de governo João Henrique, houve
da real história de seu povo e das contribuições que os negros legaram à sociedade brasileira, mas podemos imaginar que será algo bom. Eu creio que, se essa lei passar a ser efetivada em 10 ou 20 anos, teremos gerações de jovens negros com um nível de consciência crítica para intervir na realidade brasileira. Essa é uma aposta no futuro. JF: O Movimento Negro vem conquistan-
Muitas vezes, na luta política, o caminho mais curto para algo não ser feito é a aprovação de uma lei porque cria a falsa sensação de vitória. uma movimentação nesse sentido, impulsionada pela então Secretária Municipal Olívia Santana, mas, assim que ela saiu, o processo foi paralisado e não há qualquer atitude séria de efetivação. Hoje, o Ministério Público Estadual está promovendo um Inquérito Civil Público apurando e avançando para responsabilizar a Prefeitura e a rede particular pela não efetivação. O debate sobre relações raciais no município precisa ser feito para que políticas permanentes de enfrentamento de superação do racismo sejam estruturadas. JF: Que impactos essa lei trará na formação dos alunos? SM: Ela tem uma importância crucial, porque vai possibilitar às crianças, em especial, o contato com a história do negro e da África. Isso pode ter um impacto na auto-estima e na subjetividade que não se pode mencionar. Faz uma grande falta não ter esses conhecimentos. Não dá pra dimensionar como será a subjetividade de crianças que cresçam sabendo
do vantagens nos âmbitos educacional e legislativo do Brasil, principalmente se comparado aos outros movimentos sociais. Quais são as próximas metas? SM: O Movimento Negro tem conseguido furar o bloqueio do racismo brasileiro e pautar, mesmo que de forma reduzida, o debate das relações raciais. Mas vantagens ainda não foram conquistadas. O desafio é incluir a maioria da sociedade, e ela não se limita à universidade. Os avanços são paradoxais. Às vezes, você avança simbolicamente e perde substancialmente. A lei 10.639 completa cinco anos, e praticamente não foi aplicada. Então parece uma conquista, mas cadê a efetivação? Muitas vezes, na luta política, o caminho mais curto para algo não ser feito é a aprovação de uma lei, porque isso cria a falsa sensação de vitória, o que não garante a aplicação da mesma. O racismo é crime há vinte anos no Brasil, e os que deveriam ser ajudados ainda estão sendo discriminados. Muitas resistências ainda serão enfrentadas.
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JF: Quais são essas resistências? SM: Existe um pacto intra-racial estabelecido tacitamente entre todos os brancos do Brasil. Há um acordo implícito para que debates sobre relações raciais não sejam promovidos. No Brasil, esquerda, centro e direita são racistas. É isso que permite que um presidente como Fernando Henrique diga que é “mula-tinho” e tem um pé na cozinha. Isso permite que Lula, uma pessoa visivelmente afro-descendente, não se assuma como negro e não desenvolva políticas de combate ao racismo. Tanto que, durante todo o tempo de governo, Lula ainda não aprovou o Estatuto da Igualdade Racial, apesar de ter maioria na Câmara e no Senado. Entretanto, há projetos benéficos aos interesses do movimento que contaram com empenho do governo para que a Constituição fosse alterada. JF: Quais alterações poderiam ser feitas no sistema de cotas da UFBA? SM: Cogitaria a hipótese de que 100% das vagas fossem reservadas à estudantes de escolas públicas. A atitude mais coerente, do ponto de vista democrático, é que a universidade pública seja o escoadouro natural de quem vem da escola pública. No Brasil, há um movimento inverso ao chegar ao Ensino Superior: você vem da escola pública e passa para a universidade particular; você vem da caríssima escola particular e entra na universidade pública exigindo isso como um direito. Por que não se reivindica educação de qualidade na esfera pública de base? Por que os pais dos filhos da classe média não preferem economizar mil reais em mensalidade e brigar com o governo e deputados para que a escola pública seja de qualidade? A minha alteração seria radicalizar a política de cotas. Quem sabe isso não seria uma estratégia para recuperar a escola pública?
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Natural ou alisado? Insegurança quanto a textura dos cabelos ultrapassa as questões de gosto CAROL D’AVILA MARIANA SEBASTIÃO
O
s cabelos crespos e encaracolados sempre predominaram na população brasileira, pelo menos em cerca de 66% dela, segundo dados da ABIHPEC (Associação Brasileira de Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos), em pesquisa divulgada em 2007. Por outro lado, quase a totalidade dos salões de beleza tem grande rentabilidade
oferecendo serviços de alisamento. A escova tradicional feita nos cabelos, que antigamente era preferencialmente usada em ocasiões especiais, hoje virou mania e diversificou-se: escova definitiva, progressiva, de chocolate, gradativa e até inteligente. O que muita gente não percebe é que a vontade de abaixar o volume dos cabelos envolve muito mais do que gosto pessoal. Usar o cabelo liso, natural, com dread, black power ou trançado envolve, sim, uma questão de gosto pessoal, mas é visto Carol d’Avila
Renato, um exemplo raro de padrão invertido
principalmente como uma maneira de as pessoas se posicionarem na sociedade, seja valorizando suas próprias raízes, seja experimentando novos estilos. Não é raro ler sobre cachos nas revistas femininas. Quando tratam do assunto, a maioria delas vem repleta de verbos como “assumir” e “libertar”, dialogando com as leitoras que acham que cabelo cacheado é um problema. Há quem alise para mudar o visual, ou para conseguir emprego mais fácil, ou apenas para ceder às pressões dos familiares e amigos. O difícil é encontrar alguém que cultive seus crespos, encaracolados, dreads ou trançados, e não admita a dificuldade de mantê-los longe dos comentários, olhares e opiniões alheias, na maioria das vezes, preconceituosos. Débora Oliveira, 20 anos, estudante de Direito da Universidade Federal da Bahia, alisa o cabelo desde os 12 anos e acredita que há uma valorização maior das pessoas quando o faz: “É quase unânime, as pessoas ficam repetindo o comentário ‘você está linda’ ou ‘você está bem melhor assim’”. Débora é um exemplo da maioria das mulheres brasileiras que começam a alisar seus cabelos na adolescência por uma questão de estética, para se sentirem mais bonitas e mais aceitas pela sociedade. “Eu estava no meio da minha adolescência e isso pesava bastante na minha autoestima, as pessoas faziam perguntas como ‘não penteou o cabelo?’, e foi aí que eu comecei a mudar”, relata Débora. Tão grande é a importância que a pessoa dá à sua cabeleira que a autoestima de muita gente depende dos seus fios. No Orkut existem centenas
de comunidades a favor da chapinha, desde simples usuárias, até as que se consideram dependentes dela. Em uma delas, a comunidade “Eu não vivo sem chapinha!”, uma integrante comentou no fórum: “Você só descobre que a chapinha é totalmente indispensável depois que passa a ter uma. Muita gente pode achar bobeira, mas esse equipamento torna muitas mulheres bem mais felizes e faz aumentar a sua autoestima em 300%, pelo menos”. Mexer com a cabeleira pode levar a frustrações e até à depressão, e isso não é exclusivamente do universo feminino, como muitos pensam. Léo Ornelas, 43 anos, coordenador da União dos Negros pela Igualdade (UNEGRO), manteve o seu rastafári há 15 anos, que chegou a 1m10cm. “Afirmar o cabelo é um sinal de protesto nos dias de hoje. Quando os policiais enfrentavam os militantes do movimento negro, ameaçavam cortar o meu rastafári e os dos outros militantes, porque sabiam que isso tocava na nossa autoestima, era uma espécie de ponto fraco”, explica. Léo afirma que quem usa rastafári ainda tem que lidar com outro tipo de preconceito: a maioria das pessoas relacionam esse tipo de cabelo à sujeira. Segundo ele, quando se encontra uma pessoa de cabelo liso e comprido na rua, não se pergunta se ela o lava, por isso, até mesmo inconscientemente, as pessoas acabam por alimentar esse estereótipo. Renato Almeida, 25 anos, estudante de Produção Cultural e adepto dos dreads, ao ser perguntando sobre esse estereótipo, garante: “Isso
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Reprodução
Publicidade aposta no apelo ao natural
não rola, ando sempre cheiroso, qualquer senhorita pode comprovar isso me cheirando, tanto o cabelo como o cangote”. Cabelo versus Emprego Para quem tem cabelos crespos, volumosos ou com dreads é comum a dificuldade para arranjar determinados empregos, como os de escritório ou nas lojas de shopping. Em certos ambientes, muitas dessas pessoas acabam por ceder às pressões dos padrões exigidos pela empresa e mudam mesmo sem ter certeza de que conseguirão passar pelo processo seletivo. Contando uma experiência, Léo Ornelas lembra que certa vez um amigo participou da seleção para trabalhar numa empresa de ônibus e foi avisado de que, para ter chance de conseguir a vaga, precisaria cortar o rastafári, que mantinha há oito anos. No fim das contas, não conseguiu o emprego e ficou um bom tempo com depressão por ter perdido o cabelo. As lojas de shopping são sempre as mais comentadas quando se trata do preconceito existente na seleção de funcionários. Valter Neto, 23 anos, trabalha em uma loja de grife num dos shop-
pings de Salvador há cinco anos e diz que existe um preconceito enrustido, mas que no resultado das seleções os empregadores tratam as pessoas com um “jeitinho doce”, dizendo apenas que elas não fazem o perfil da loja. “As lojas de classe A, quando contratam mulheres de cabelo crespo, geralmente as direcionam para a área do estoque, porque assim elas ficam escondidas. Mas com o tempo elas acabam se sentindo constrangidas e cedem às pressões do ‘padrão’ da loja”, explica. Mas de onde vem o “padrão”? As pessoas culpam as empresas e as empresas culpam as pessoas. Questionado sobre o assunto, S.B.D, 58 anos, ex-gerente de uma empresa multinacional do ramo de copiadoras, afirma que não existia preconceito em relação ao cabelo dos candidatos: “O padrão era cabelo cortado, terno, gravata, e não necessariamente uma boa aparência, e por seguir esse padrão não eram aceitas pessoas com dreads, black power, ou homens de cabelo longo e liso”. Para o exgerente, a padronização dos funcionários é adequada para passar um tom de seriedade para o cliente: “Permitir que as pes-
soas trabalhem de bermuda ou aceitar todos os tipos de cabelo, passaria uma ideia de desleixo da empresa. Quebrar o padrão chocaria os clientes”. Léo discorda: “Há sim um preconceito por trás desse discurso”. Por outro lado, assumir o cabelo ao natural ou adaptá-lo ao dreads pode ser bem visto em alguns lugares, como diz João Paulo, 23 anos, que trabalha como estagiário no Teatro Sesi: “Meus dreads abriram novos caminhos, de alguma forma minha opção estética acaba por transmitir a ideia de que eu sou uma pessoa transparente”. Outro exemplo é Rafael Rosa, 23 anos, que diz ter ganhado admiradores quando usava o penteado black power na época que trabalhava como modelo em Salvador: “Tudo depende do ramo que você busca contratação”. Institutos de cabelo Em Salvador, a quantidade de pessoas que alisam o cabelo ainda é maior. Por ser uma cidade negra, a maioria dos cabelos são crespos ou recebem influência forte da cultura afrobrasileira. Nos salões o que se pede sempre é para alisar, e as clientes enfatizam que querem lisinho sem nenhuma onda. Luciene, dona de um salão na Pituba, diz que no salão dela não chega ninguém que queira enrolar o cabelo, são sempre pedidos de alisamento. Questionada sobre o motivo de tamanha procura, ela responde: “A moda influencia bastante. Hoje a moda é ter cabelo liso, mas nos anos 80 a moda era enrolar os cabelos. Não tenho nem mais no estoque produtos para enrolar, porque raramente aparece uma que queira”. Por falta de procura, as cabeleireiras não sabem o que fazer com cabelos crespos, nem que produtos usar para mantêlos dessa forma natural. Acabam sugerindo às suas clientes o cor-
te ou o alisamento. Por conta da dificuldade de encontrar profissionais que mandem bem nesse tipo de cabelo, muitas mulheres aprendem a cuidar deles sozinhas. Diante desse problema, Zica criou um salão especializado em cabelos crespos, o Beleza Natural. Fundado em 1993, o salão não realiza nenhum tipo de alisamento, num verdadeiro boicote à chapinha. Zica diz ter criado o salão porque também sofria muito com o preconceito em relação ao seu cabelo crespo, e resolveu fazer cursos de cabeleireira na esperança de encontrar algum jeito de fazer os cachos terem uma aparência mais aceitável. Tudo só mudou quando Zica, através de matérias-primas de amostras de produto para cabelos crespos, conseguiu criar uma fórmula única que tratava e definia os cachos. Através da nova fórmula de sucesso, o Beleza Natural hoje recebe uma demanda de 60 mil clientes por mês, nas suas oito unidades existentes no Rio de Janeiro. Zica garante que até o final de 2009 o Beleza Natural chegará a Salvador para atender a clientela dos cabelos crespos. O Beleza Natural pretende atender mulheres que fazem questão de serem belas ao natural, assumindo as suas raízes, e que cansaram de viver de chapinha e alisamento, como é o exemplo de Simára, 20 anos, operadora de telemarketing, que admite ter usado alisamentos em seu cabelo por muito tempo, até perceber que isso não era condição para se tornar bonita: “Percebi que não sou o meu cabelo e que belo mesmo é ser natural”. Para ela o que vale mesmo é se assumir e ter orgulho de ser como é: “Eu podia estar careca, mas iria continuar a ser a Simára lutadora que sou, uma mulher negra que conquista seu espaço a cada dia”.
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HCT: o lugar ond
Durante duas semanas equipe do JF freqüentou o Hospital de Custódia e Tratamento, v Victor Gazineu
que leva os internos a serem chamados de “amarelinhos”, e por um conjunto de homens e mulheres de olhares perdidos e expressão de abandono e desolação. A. S. é um dos internos para quem o tempo parou. Pensa e diz ter 23 anos, mas o rosto de adolescente que tinha ao entrar no Hospital, aos 20 anos, deu lugar a feições carregadas de rugas, uma boca sem dentes e um corpo muito magro, resultado de medicações durante as oito internações ao longo de 23 anos. Se não tivesse nenhum transtorno mental, sua pena teria sido entre três meses a um ano, já que o crime cometido por ele, lesões corporais, tem pena de um a seis meses de detenção ou multa por dano. No sistema manicomial, no entanto, o duplo estigma de louco e criminoso, cria ciclos viciosos de reinternações, emissões sucessivas de laudos médicos e um interminável jogo de responsabilidades entre Segurança Pública, Medicina e Justiça.
Oficinas estão entre as poucas atividades dos pacientes
GIÁCOMO DEGANI VERENA PARANHOS VICTOR GAZINEU
N
ão são apenas os relógios das paredes do Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia (HCT) que estão parados no tempo. A vida de muitos dos seus internos parou no momento em que cruzaram o portão de acesso à instituição, localizada em Salvador, no bairro da Baixa do Fiscal, praticamente numa espécie de fronteira que separa a Cidade Alta, a Cidade Baixa e o Subúrbio Ferroviário. Apesar de exibirem no rostos as rugas e marcas do tempo que, em muitos casos, ultrapassa duas décadas de internação, muitos dos internos continuam afirmando ter 20 anos de idade quando lhes é perguntado. Tanto a insanidade não lhes permite ter consciência do tempo de reclusão como a ausência absoluta de espelhos não lhes permite ver as marcas do tempo em seus corpos.
O HCT, mais popularmente conhecido como Manicômio Judiciário do Estado da Bahia, é vinculado oficialmente à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e para lá são enviados os suspeitos ou portadores confirmados de transtornos mentais ou drogaditos (usuários de drogas que desenvolvem transtornos mentais) que cometeram delitos. No Brasil, existem 23 Hospitais de Custódia e Tratamento, com um total de 4.500 internos, com predominância absoluta do sexo masculino. Os caminhos do sistema que levam portadores de transtornos mentais ao HCT são tortuosos e para eles convergem uma decisão jurídica e uma avaliação da medicina psiquiátrica. Duplo estigma De modo geral, uma vez cruzando-se a fronteira manicomial, a trajetória do indivíduo passa a ser marcada por uma internação de anos a fio ou por sucessivas idas e voltas. O cenário do local é marcado pelo amarelo dos uniformes, o
Passos para entrar nesse mundo O primeiro passo em direção aos hospitais de custódia é dado quando uma pessoa suspeita de portar transtorno mental comete um crime e é levada à delegacia, de onde o juiz da cidade o encaminha ao HCT para submeter-se a uma avaliação de sanidade mental ou tratamento psiquiátrico. No caso da jovem S. R. S., esse passo inicial foi dado aos 27 anos, quando matou sua filha, no ano de 1990. Seu exame de sanidade mental constatou o diagnóstico de transtorno psíquico e o juiz aplicou-lhe uma medida de segurança de três anos, ao invés de uma pena, pois portadores de transtornos mentais são
considerados inimputáveis, pessoas que no momento do ato criminoso eram inteiramente incapazes de entender o caráter ilícito do fato. As medidas de segurança (de internação ou de tratamento ambulatorial) são de no máximo três anos, mas podem ser renovadas infinitamente, enquanto se considere persistente o quadro de periculosidade do indivíduo, transformando-se, para muitos deles, numa espécie de prisão perpétua não dita. Após o cumprimento da medida de segurança inicialmente prevista, médicos peritos do Hospital de Custódia elaboram um laudo de cessação de periculosidade determinando se o o indivíduo ainda é ou não perigoso para a sociedade e encaminham o parecer ao juiz. Esse é um dos pontos polêmicos entre juristas e militantes do movimento anti-manicomial, pois é difícil determinar a periculosidade de uma pessoa, sendo ela portadora de transtorno mental ou não. Por exemplo, a maioria dos internos do HCT tem esquizofrenia, transtorno do qual não se pode prever os surtos e cujos portadores devem ter eterno acompanhamento psiquiátrico, da mesma maneira que doenças como hipertensão, lupus e diabetes, conforme explica José Alberto Neri, psiquiatra do HCT há 26 anos. Infanticídio Dependendo do laudo emitido pelo psiquiatra após o exame de cessação de periculosidade, o juiz pode dar o salvo conduto através de uma carta de desinternação (equivalente à liberdade condicional, em que o portador de transtornos mentais fica sujeito, por um tempo, a um série de regras, como não frequentar locais públicos, não beber, não discutir com amigos, etc.) ou é mantido em um um novo período
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de o tempo parou
vendo de perto rotinas de homens e mulheres marcados por longas e sucessivas internações de internação. S. R. S. recebeu uma carta de desinternação em 1993 e passou a viver com a família. Três anos depois, deu o segundo passo em direção ao Hospital de Custódia: cometeu outro infanticídio, desta vez jogando a sobrinha do alto de um edifício. Depois de 13 anos de sua segunda internação, acredita ter ainda 19 anos. Apesar da aparência entorpecida, ainda é uma mulher forte, cuja vaidade se revela nas unhas pintadas em tons intensos, no cabelo colorido ora de loiro,
ora de castanho e nas sobrancelhas arqueadas. Uma nova carta de desinternação, expedida em 2009, aumenta sua vontade de deixar o HCT e morar em um abrigo. Desta vez, assegura: “Claro que vou tomar os remédios direitinho”. No sistema manicomial é o juiz quem manda prender e dá alta hospitalar, fato que indigna Wilton Ribeiro, auxiliar de enfermagem do HCT há 27 anos. “O juiz atrapalha o tratamento. Muitas vezes o paciente tem alta sem estar ainda compensa-
Victor Gazineu
Na maior parte do tempo, pacientes permanecem nas alas
do”, diz. Paulo Barreto, psiquiatra e diretor do HCT, entretanto, explica que, tanto na decretação da medida de segurança quanto no momento da soltura, o juiz se baseia em subsídios médicos e técnicos. “O que cabe a uma equipe de saúde é estar adequada em termos numéricos, para que, com agilidade, possa fornecer à justiça os subsídios que podem definir os casos”. No entanto, nem sempre as condições da equipe de saúde do HCT são ideais. Já houve períodos em que a superlotação, 450 pacientes, fazia com que a espera por um laudo de sanidade mental durasse anos e as condições de higiene fossem críticas. Outro extremo de arbitrariedade comum nos HCTs são internações sucessivas resultantes de pactos firmados entre juizes, famílias e prefeituras do interior, que se baseiam em pequenos delitos para evitar trabalho e problemas. Nesses casos, a primeira internação de um custodiado funciona como um passaporte carimbado para ininterruptos retornos para o manicômio. “Uma vez um homem foi reinternado aqui porque chamou a filha de um juiz de gostosa”, conta a Terapeuta Ocupacional Diva Dantas.
com regimes ambulatorial, de internação diária ou de curto período, foram no contexto da Reforma psiquiátrica, através da Lei Federal 10.216, sancionada em 2001 após 12 anos tramitando no Congresso e resultante de pressões do movimento Antimanicomial. A Reforma visa o redirecionamento da assistência em saúde mental, privilegiando o tratamento em serviços de base comunitária, com equipes multidisciplinares, e prega a desinstitucionalização, com a redução de leitos psiquiátricos e adoção de medidas como as Residências Terapêuticas (alternativas de moradia, localizadas no espaço urbano, destinadas a pessoas que estão internadas há anos em hospitais psiquiátricos e já não contam com redes de apoio familiar). Entretanto, a Reforma ainda não conseguiu sair completamente do papel. Os CAPS e as Residências são insuficientes e estão presentes em poucas cidades, ou seja, ainda não funcionam como deveriam. Em Salvador, por exemplo, ainda não há CAPS III, que funciona 24h por dia e permite internamentos de curtíssima duração.
Esquecidos Para Neri, o termo Reforma Psiquiátrica é equivocado e o correto seria reforma da assistência psiquiátrica, pois não está se faA Reforma Psiquiátrica zendo uma mudança na psiquiatria Os internos que recebem o e sim nas formas de assistência. Ele salvo conduto são encaminha- diz ver como ponto positivo da redos para suas famílias e devem forma o simples fato de se chamar fazer tratamento nos Cen- atenção da sociedade para esses estros de Atenção Psicossocial quecidos que povoam os manicô(CAPS) de suas cidade ou na mios. Pedro Gabriel Delgado, cocidade mais próxima onde ordenador da área técnica de Saúde houver uma unidade, onde de- Mental do Ministério da Saúde, veriam continuar o tratamento afirma, na seção extra do docue o processo de ressocializa- mentário “A Casa dos Mortos”, da ção. Os CAPS, que funcionam antropóloga Debora Diniz, que,
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Custódia e tratamento ao mesmo tempo é possível? Além do estigma de loucos e criminosos, os internos do HCT vivem a contradição de estar em um lugar que se propõe a oferecer custódia e tratamento ao mesmo tempo. Para Paulo Barreto, as grades da instituição asseguram o caráter de prisão, mas não o de tratamento, aspecto que fica comprometido pela condição de preso do indivíduo. José Alberto Neri
denuncia a quantidade insuficiente de profissionais nos hospitais psiquiátricos e afirma que isso acarreta um tratamento basicamente medicamentoso, cujo efeito mais comum é deixar os pacientes com andar robotizado, ou seja, com os braços colados ao corpo, provocar diminuição da expressão facial e estimular a produção de grande quantidade de saliva espessa. No HCT, tenta-se desenvolver um trabalho terapêutico com oficinas de comunicação, horta, música, teatro, pintura, autoajuda, arte, salão de beleza e barbearia. Na oficina de comunicação, os pacientes produzem o “Jornal Realidade”, trimestral, voltado para relatos da rotina do local sob o ponto de vista dos internos, além da “Rádio HCT - Louquinha por você”. Contudo, os recursos e o número de profissionais envolvidos nessas atividades são escassos: três terapeutas e quatro psicólogos para cerca de 150 pacientes. Apesar da existência das oficinas terapêuticas, poucos pacientes as frequentam. A maioria passa boa parte do tempo no pátio, com as mochilas que guardam seus parcos pertences nas costas. Alguns conversam, jogam cartas. Muitos ficam estendidos no chão, esperando o tempo passar. Quando um novo interno chega, é ostensivamente assediado com pedidos que denotam não loucura, mas pobreza. Alguns pedem dinheiro, outros pacaia (fumo usado pelos internos), cartão telefônico e até tênis. O eletricista Miguel dos Santos, que trabalha há 25 anos no HCT, é atualmente o encarregado de fazer compras para os internos e lida de perto com essa situação. Ele chega a sair 5 a 6 vezes por dia para comprar o que os internos pedem. “Às vezes alguns não tem dinheiro, eu completo com o troco dos outros e compro.” Casa branca e senzala A estrutura do pavilhão dos internos dificulta o tratamento psiquiátrico, pois as paredes laterais
de 60 cm de espessura e os corredores escuros são inadequados para um hospital. “Este prédio é extremamente difícil de ser mantido. O procedimento mais correto seria demolir tudo e fazer uma praça de lazer para a população”, defende o diretor. O HCT está instalado desde 1975 na Baixa do Fiscal, no prédio onde funcionou um dos primeiros presídios da Ba- No pátio do HCT, pacientes esperam o tempo passar hia. Antes disso, o Manicômio Judiciário, como era suntuoso não fosse a pintura deschamado oficialmente, funcionava gastada e o abandono que esconde. anexo ao Hospital Juliano Moreira, A “Casa Branca” foi construída em antigo João de Deus, no Engenho 1996, para separar as funções adVelho de Brotas. ministrativas (Diretoria, Farmácia, O prédio onde os internos vi- Serviço Social, Terapia, Segurança vem é dividido em cinco alas, sen- e Setor Pessoal) do pavilhão dos do uma feminina. Cada dormitório internos. Para a terapeuta Diva esse tem entre 10 e 20 camas, velhas e foi o maior erro cometido na instienferrujadas, com colchões finos e tuição, pois afastou a maioria dos gastos, onde se amontoam roupas funcionários do contato direto com sujas. Outro ponto crítico é a água, os internos e, consequentemente, conservada em garrafas pet, uti- de seus problemas. lizada para beber e tomar banho, À procura de um destino pois a falta de água é frequente no O HCT tem cerca de 150 interlocal. Como visitas íntimas não são nos, dos quais 90% são homens. permitidas, os únicos visitantes que Aproximadamente 75% vem do os pacientes recebem nas alas in- interior, devido à falta de assistênternas são pombos, que transitam cia psiquiátrica que possibilita o entre as camas à procura de restos agravamento dos quadros de transde comida. torno mental. A maioria cometeu Alguns internos dizem que a crimes como homicídio ou tenárea do Hospital de Custódia en- tativa de homicídio, muitas vezes contra-se dividida pelo “Muro de dentro da própria família. Alguns Berlim”, uma faixa amarela no pátio funcionários questionam o fato que indica até onde podem chegar. de, atualmente, 7 entre 10 interA faixa separa a “Casa Branca” nos estarem associados ao uso de (área separada onde está o poder, álcool e drogas. Argumentam que a direção da unidade) do pavilhão o HCT não é o lugar apropriado dos internos, um prédio antigo, para drogaditos e acrescentam que também de cor branca, que seria preferiam os “maluquinhos” de anVictor Gazineu
apesar da Reforma, a tendência internacional não é a que os manicômios judiciários deixem de existir, mas sim os hospitais manicomiais. Neste contexto, Paulo Barreto diz que o HCT não sente os efeitos da Reforma Psiquiátrica, pois tem uma estrutura fechada: “nossa parte assistencial acontece aqui dentro”. Segundo o diretor, a mudança está no fato de hoje o Hospital de Custódia receber pacientes que são “clientes de CAPS”, aqueles que cometeram delitos leves e poderiam ser acompanhados por esses centros, em regime de tratamento ambulatorial. “Não adianta dizer que houve reforma psiquiátrica se o juiz cumpre tudo o que está na lei penal e a lei não mudou”. Já Rogério Anselmo, coordenador de registro e controle do HCT, acredita que a reforma é positiva porque melhorou a qualidade do atendimento ao diminuir a quantidade de internos, que antes chegava a 450 e hoje é de aproximadamente 150. Já a terapeuta Diva Dantas questiona os benefícios da reforma: “A reforma teve seus pontos positivos, como CAPS e Residências Terapêuticas, mas não são suficientes”. Até hoje, somente duas pacientes do HCT foram encaminhadas às Residências Terapêuticas. Uma delas, V. A., após mais de três décadas de internação, conseguiu, em maio deste ano, vaga em uma residência. Antes disso, passava os dias sentada na porta da sua ala, sem dar uma palavra, esperando que viessesm buscá-la.
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tigamente. De acordo com Barreto, o uso de drogas geralmente não é a questão principal da maioria dos internos. Ele reitera que apesar de o HCT não ser o melhor lugar para acompanhamento de dependentes de drogas, a dependência é catalogada como um transtorno mental. “Esse é um dos caminhos que a justiça usa para mandar pessoas ao HCT”, lamenta. Paulo Barreto divide os internos do HCT em quatro grupos. O primeiro, com aproximadamente 20 pessoas, representa aqueles que tem instrumentos judiciais para estarem do lado de fora, mas não estão porque, devido ao longo internamento, perderam todos os vínculos familiares e não tem para onde ir. “O Estado está enrolando, prometendo a criação de duas residências terapêuticas que deveriam ter sido feitas desde 2003, época em que foi firmado o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) entre o Ministério Público e as secretarias Estaduais de Saúde e de Justiça”, denuncia. Maria Auxiliadora Teixeira, defensora pública que acompanha os casos do Hospital, acompanha essas dificuldades de perto, pressionando o poder público, através de habeas corpus e interdições. Segundo ela, mais de 90% dos pacientes não tem advogado e dependem da defensoria. A. C. S. faz parte deste grupo, acumula mais de 30 anos de internações no HCT, sendo que desde 1987 tem carta de desinternação. Quando perguntado se quer ir embora, responde que não, pelo fato de não saber fazer nada e não ter como se sustentar. “Aqui é bom demais”, complementa, com um sorriso tímido. E acrescenta: “Graças a Deus que ninguém vem me visitar”. Seu caso ilustra a elevada estatística de abandono familiar: raros são aqueles que recebem visitas. O outro grupo apontado por Barreto é formado por aqueles que estão à espera do laudo de sanidade mental, cujo prazo para ser feito é de 45 dias, podendo ser renovado
por mais 45. Segundo a direção, com portadores de transtornos A ressocialização atualmente este prazo é cumprido, mentais. Apesar disso, não exO processo de ressocializadiferentemente de outros tempos istem indícios de maus tratos. “Es- ção pressupõe transformações em que se chegava a esperar du- sas instituições estão longe de ser culturais e subjetivas em toda a rante anos. de tratamento, pois consistem em sociedade e nas esferas públicas Existem ainda, o grupo for- uma mistura de prisão com hos- municipais, estaduais e federais. mado por quem está cumprindo pital psiquiátrico, onde predomina Para Paulo Barreto, deve-se busmedida de segurança e deveria ser fortemente o componente peni- car a autonomia dos portadores submetido a exames de sanidade tenciário”, afirma Pedro Gabriel de transtornos mentais em almental constantemente. Entretan- Delgado. guma área e inseri-los. “Temos to, Maria Auxiliadora Teixeira revela O documentário “A Casa dos que ensinar às pessoas que esses que a situação destes ainda não está Mortos”, produção baseada em indivíduos são como quaisquer cinormalizada, pois os exames de um texto poético de um paciente dadãos. Eles tem direitos”, acrescessação de periculosidade solicita- do HCT, Bubu, tem como uma centa. Neste sentido, Diva Dantas dos por habeas corpus estão sendo de suas propostas a retomada da aponta que a falta de profissionalinegligenciados. “Eles ficam inter- discussão sobre os direitos dos zação do portador de transtorno nados por muito tempo e nenhum internos dos HCTs no Brasil. No mental faz com que ele se torne laudo é feito”, afirma. O quarto lançamento do filme em Salvador, um peso morto para a família. “Só grupo é aquele que cometeu delito, em maio deste ano, em uma mesa se preocupam em ensinar artesamas não tem medida de segurança redonda com a participação de nato. Já fizemos vários cursos ainda: “O juiz manda para o HCT, Nelson Pellegrino, Secretário da profissionalizantes, inclusive com mas não diz para que”, revela Paulo Justiça, Cidadania e Direitos Hu- o SENAI, mas quando eles saem, Barreto. manos da Bahia, Debora Diniz, di- as pessoas dizem que aquilo não Em geral, existem dois grandes retora do filme, e dois promotores vale de nada”. grupos: os que querem sair e os que públicos abordaram a ineficiência De acordo com a terapeuta, não manifestam mais este desejo. do tratamento, a omissão política, não adianta colocar em prática um Os primeiros repetem incessante- a dificuldade de reinserção social processo de desinternação, dar alta mente que já estão compensados e possíveis iniciativas para tornar médica, sem levar em considerae tem cadeia vencida. Pedem para mais humano o tratamento dos in- ção as condições que os acolherão falar com Paulo Barreto e Victor Gazineu após saírem do HCT, com a defensora, para que somente para produzir providenciem o laudo de números, estatísticas. cessação de periculosidade. “É necessária a desinsMuitos destes preferem ir titucionalização, que para a penitenciária, onde, prevê um acompaalém de terem visita íntima, nhamento terapêutico são menos estigmatizapara que os pacientes dos. W. M. S, após alguns e suas famílias possam meses de internação, diz: lidar com a situação. “prefiro a penitenciária ou Caso contrário, não a detenção. Lá todo munhaverá melhoras e do dá valor à gente”. Os esse processo não irá outros nem tocam no asacontecer”. Mesmo sunto. Preferem ficar, pois após 31 anos na Secrejá se acostumaram com o Prédio na Baixa do Fiscal abriga manicômio desde 1975 taria de Justiça, Diva tempo que parou. ainda considera difícil ternos dos HCTs. No evento, Pel- falar de HCT e ressocialização: O descaso governamental legrino reforçou veementemente o “é complicado ressocializar uma As condições físicas do pré- discurso de mudança: “Precisamos pessoa que nunca foi socializada”. dio e a quantidade insuficiente de dar o primeiro passo e integrar as Nesse cenário, para profissionais psiquiatras, 18, atestam o descaso esferas públicas. Nossa obrigação como ela sempre há a esperança do governo com o tratamento dos é lutar”. De lá para cá, tudo per- de que o o governo e a sociedade loucos infratores. Já o caráter pri- manece igual, com as promessas se ajustem de forma que os ponsional é assegurado por 88 agentes intactas e a manutenção do debate teiros do relógio possam voltar a penitenciários que não recebem que não rompe o engessamento funcionar na vida de quem passa nenhum treinamento para lidar da burocracia estatal. pelos HCTs.
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Álcool, cigarro e gasolina Jovens que lotam postos de combustível nas madrugadas correm riscos e não sabem
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ense em um lugar sem portas nem burocracia alguma para ser adentrado. Não é um espaço público, mas é democratizado e qualquer um acessa: não se cobra ingresso, nem couvert. Além disso, é refúgio contra a violência urbana e opção de lazer, quase sempre às 24 horas por dia. Bem iluminados, vigiados e amplos, os postos de gasolina se espalham pela cidade e são um dos protagonistas da noite baiana. Até aqui um ótimo cenário, não fosse por um detalhe: lado a lado com a cerveja, a caipirinha e o espetinho de frango, eles vendem gasolina, líquido volátil e altamente inflamável. Jovens conversam, bebem e fumam despreocupadamente. Mesas se espalham por lugares que normalmente servem de passagem e parada para carros e motos. Garçons circulam com bandejas repletas de chopp e gentilmente emprestam seus isqueiros para que os clientes acendam seus cigarros. Ao lado de uma bomba de gasolina, dois rapazes fumam e jogam as cinzas no chão, a menos de um metro de distância do equipamento. Do lado oposto, muitos carros continuam passando e efetuando normalmente o abastecimento. Enquanto a festa e as conversas acontecem, a bebida é servida e o cigarro queima. A essa altura, nas mentes mais imaginativas já deve provavelmente ter despertado um burburinho, um tema de fundo que é um mix de arrocha, pagode e forró – fruto das costumeiras disputas de equipamentos de som. O posto-bar-boteco-ponto-
de-encontro está incorporado à vida de um crescente número de jovens soteropolitanos. Apesar da vigência da Lei Seca, as pessoas os frequentam no caminho das baladas ou na volta para casa. Dos 13 frequentadores entrevistados, quase todos beberam e oito deles admitiram ter dirigido. Grande parte dos frequentadores sabe da existência de procedimentos de segurança para prevenir os incêndios em postos Proibição negligenciada fumar em posto de combustível é ato corriqueiro de gasolina. Somente três dos entrevistados desconheciam as regras de bares se estabeleçam nas áreas sinalização de segurança, cor não fumar, desligar o motor do de abastecimentos dos postos: da placa, cor da tinta, tamanho carro e não atender ao celular “É uma irresponsabilidade de e até a localização dos procedienquanto se estiver abastecendo. quem fuma, do dono do bar e do mentos de segurança nos postos Juliana, 26 anos, consultora de dono do posto”, completa. Ro- de gasolina. O problema é que o viagens, assustou-se ao perceber gério, 30 anos, frentista de um principal órgão responsável pela o risco de fumar bem ao lado badalado posto da orla do Costa fiscalização, a ANP (Agência da bomba de gasolina, imediata- Azul, alega que a fiscalização não Nacional de Petróleo) não tem mente afastou-se do local e con- vem muitas vezes ao local e que, pessoal suficiente e não atua dutinuou a ser entrevistada em pé, quando acontece, é sempre com rante o período noturno, horário longe das ilhas de combustível. relação ao som alto e à disputa de maior movimento nos bares Várias outras pessoas foram ob- entre os poderosos decibéis de de postos. Além disso, segundo servadas sentadas a menos de diferentes carros. O frentista tra- Luis Teixeira, especialista em um metro das bombas, onde é balha na área há oito anos e disse regulação de petróleo da ANP, comum o acúmulo de pequenas que, mesmo não havendo mesas a presença de mesas ao lado das poças de gasolina ou álcool. Vic- próximas às bombas de gasolina, bombas seria de responsabilidade tor, 25 anos, analista de sistemas, é comum que os frequentadores da SUCOM (Superintendência conhece os procedimentos de da madrugada fumem bem per- de Controle e Ordenamento do segurança, mas, apesar de não to delas. Incidentes provocados Uso do Solo no Município), e fumar próximo às bombas, não pelo cigarro ou outras circuns- não da ANP. É a SUCOM que se incomoda que outros fumem: tâncias relacionadas com a festa avalia e permite o funcionamen“Existem riscos maiores do não são de conhecimento dele. to de um estabelecimento como que esse. Prefiro não me preoExistem NBRs (Normas um bar, por exemplo. cupar com o que tem poucas Brasileiras de Regulamentação) O problema não se limita a chances de acontecer”. Igon, 24 de responsabilidade da ABNT nenhuma das duas instâncias. anos, apesar de frequentar o lo- (Associação Brasileira de Nor- A ANP deve cuidar da segucal, considera inapropriado que mas Técnicas) que definem a rança, mas não pode interferir Julien Karl
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em questões de funcionamento dos bares, já a SUCOM tem como obrigação regular a área de funcionamento, mas não se preocupa diretamente com questão ligadas aos procedimentos de segurança. O chefe do setor de segurança da superintendência, Luis Alberto, reconhece o funcionamento irregular de bares nas pistas de abastecimento, mas alega que o pessoal que faz a fiscalização noturna só pode ocupar-se de problemas de poluição sonora. Apesar de afirmar que até hoje não houve nenhum acidente grave do gênero em um posto de combustíveis, o Coronel Nelson Barreto Vasconcelos, diretor do Centro de Atividades Técnicas do Corpo de Bombeiros, descreve o cenário mínimo para acontecer um acidente: “pode ser que se jogue um cigarro aceso diretamente em uma poça de gasolina ocasionada pelo vazamento de um tanque de combustível ou da
própria bomba, mas uma simples centelha de um equipamento elétrico com defeito já é o suficiente para ocasionar uma combustão se houver muito vapor de gasolina”. O Coronel afirma que são mais comuns acidentes com manuseio de gasolina em uso doméstico indevido do que em postos. No entanto, a chance de um incêndio existe e as consequências poderiam ser graves. Postos de serviços Nas últimas décadas, os postos de combustível evoluíram para postos de serviços. Bombas de gasolina e latas de óleo convivem com caixas eletrônicos, lojas de conveniência, padarias, lanchonetes, restaurantes, loja de souvenires e bares. Tanto Walter Tannus Freitas, diretor executivo do Sindicato dos Donos de Postos de Combustível (Sindicombustíveis), quanto Plínio Azevedo, proprietário de um posto em
Julien Karl
Freqüentadores ignoram proximidade das bombas
Arembepe, consideram natural essa transformação e defendem que os postos ofereçam serviços diversificados. Para Carla Eluan, assessora de comunicação do Sindicombustíveis, o posto é um lugar seguro e as pessoas procuram seus bares porque neles sentem-se menos expostas à violência urbana. Freitas defende a tese de que, nos postos de combustível, a bebida alcoólica não é vendida para o motorista e sim para o usuário ou para ser levada e consumida em casa. No entanto, ele se contradiz ao afirmar que o movimento comercial nas conveniências dos postos caiu bastante após a Lei Seca. O fato é que grande parte dos consumidores que procuravam as conveniências em busca de álcool estavam motorizados e, por isso, as lojas foram tão afetadas pela lei vigente a partir do ano de 2008. Azevedo, que é proprietário de
um posto de combustível há 23 anos, garante que a receita de sua conveniência caiu de 26 mil reais para apenas 15 mil após a vigência da Lei Seca e que só agora está voltando a crescer (provavelmente as fiscalizações estão menos intensas e as blitzes já não fazem parte da agenda midiática como antes). Ele discorda de postos que permitem bares nas pistas de abastecimento, mas defende a liberdade de comercialização em seu estabelecimento: “Hoje a gente tem que partir pra outros negócios pra ter um retorno porque o posto de gasolina tem um custo muito alto”. Se é ético ou não um posto vender a mistura de gasolina e de bebidas alcoólicas, Plínio assume uma postura cautelosa e atenta para o fato de que a fiscalização não pode somente recair sobre os estabelecimentos comerciais proibindo a venda, mas deve ser feita nas estradas penalizando quem bebe e dirige. Sua opinião, no entanto, revela uma fragilidade: a exemplo da venda de armas de fogo, que matam tanto quanto o trânsito, é imprescindível controlar a comercialização de bebidas alcoólicas. Se a fiscalização das armas de fogo recaísse exclusivamente sobre o usuário, ao invés de regulamentar a venda, a sociedade se tornaria mais armada e violenta. É preciso haver normas rígidas que controlem as atividades nos postos e que permitam o consumo de bebidas em suas dependências físicas somente quando houver um bar com estrutura apropriada. Para garantir efetivamente a segurança do consumidor e do cidadão, seria necessário que o problema fosse de fato reconhecido pelo poder público e houvesse diálogo entre os órgãos competentes. Somente quando “o circo pegar fogo” a sociedade dará a devida atenção ao risco de se misturar álcool, cigarro e gasolina.
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ECONOMIA Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Quanto vale um carro? Impactos do crescimento da frota em Salvador não se limitam aos bolsos dos consumidores RENATO CORDEIRO
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em todos os fatores que levam aos transtornos de trânsito na capital baiana são de ordem urbanística. Por mais que se ampliem as ruas e avenidas de maior movimento, que se construam viadutos, ou que se distribuam áreas de serviços pelos bairros, não há garantias de que a quantidade de automóveis circulando vá parar de crescer. Em boa medida, o fenômeno é sustentado por um raciocínio segundo o qual a utilização do automóvel seria mais vantajosa, em relação às despesas e contratempos, que o transporte público. Entretanto, para o professor de economia do trânsito da Universidade Federal da Bahia, Ihering Guedes, é possível dispensar o carro e viver bem com essa escolha. “Eu sou um exemplo disso. Cerca de 90% dos meus deslocamentos são previsíveis: de casa para o trabalho ou para o lazer. Trabalhando na Piedade e morando na Barra, eu posso usar um sistema de transporte público razoável, ao menos neste ‘miolo’, ou o táxi, que corresponde mais ou menos ao preço de um estacionamento”, de-
fende. Na bandeira dois, uma viagem de táxi do Porto da Barra ao Centro Histórico, por exemplo, custa até 15 reais. O valor de um estacionamento nas proximidades do Mosteiro de São Bento, ao longo de 8 horas de uma jornada de trabalho administrativa, chega a 17 reais. Isso se o motorista não quiser estacionar em via pública, fazendo valer o seguro que paga e arcando apenas, e opcionalmente, com o custo do flanelinha. O “fator residência” é um elemento importante a ser considerado quando a ideia é dispensar o automóvel, mas não apenas pela distância do local de trabalho, da escola dos filhos ou das áreas de interesse: moradias com garagem são mais caras e hoje esse recurso tem impacto ainda maior. Segundo a administradora e corretora da Lando Imóveis, Larissa Ramos, a tendência de lançamento imobiliário é a de que cada venda já contemple duas garagens conjugadas. “No Imbuí, por exemplo, vendemos um imóvel em que foi preciso pagar quase 5 mil reais a mais para se obter uma vaga de garagem extra. As pessoas preferem as conjugadas, quando marido e mulher, ou filho, têm tamReprodução
Manhã de terça-feira pelas câmeras da Transalvador: colapso a vista
bém um carro. Do contrário, eles ficam com insegurança, temem que terceiros ocupem seus lugares”, conta a corretora. Ter um veículo próprio envolve ainda custos períodicos como manutenção, seguro e IPVA. Isso sem contar a aquisição do veículo: um financiamento pode ser pago em mais de 70 meses. “Isso é um absurdo e um péssimo negócio”, afirma o economista Roberto Conceição. “Por mais que a montadora não deixe explícita a taxa de juros que se vai pagar por isso, se for colocar no papel, o consumidor vai pagar, pelo menos, entre dois carros a dois carros e meio, e, ao final do pagamento, ele terá uma depreciação gigantesca”, explica. Para ele, uma opção de compra mais interessante seria um semi-novo via consórcio ou, em alguns casos, via poupança. E apesar de todo o ônus envolvido na propriedade de um carro em Salvador, Conceição acredita que se trata de um mal necessário, frente às condições do transporte público da capital baiana. Horizonte depressivo Para o arquiteto Carl Von Hauenschild, o metrô reflete o maior problema do sistema de transporte coletivo: a falta de planejamento. “O sistema metrô foi criado na perspectiva de substituir os ônibus, levando a população para o centro da cidade. Na verdade, precisamos é tirar os carros de circulação. É preciso criar alternativas para o carro, um processo de longo prazo. O PDDU (Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano) não fez nada para resolver isso”. E as perspectivas para a redução da frota não são das melhores. A redução do IPI aumentou significativamente a compra de carros, a ponto de criar filas de espera de três meses. Mas antes mesmo da medida tomada pelo Governo Federal, como lembra Von Hauenschild, a frota de veículos de Salvador,
em 2008, teve crescimento acima de 7% para veículos de passeio, e mais de 16% no caso das motocicletas. O professor de economia de trânsito Ihering Guedes acredita que a cidade já apresenta os primeiros sinais de um colapso no tráfego. “O quadro, em médio prazo, é dantesco. Está havendo, sistematicamente, uma queda do número absoluto de usuários do sistema de transporte público, basicamente de ônibus. Isso se deve a duas coisas: a fuga para o transporte privado e a impossibilidade de se pagar o transporte de ônibus – as pessoas fazem o deslocamento a pé, ou, simplesmente, não o fazem”, alerta Guedes. À frente de um grupo de pesquisa sobre o assunto, o professor procura quantificar o custo dos engarrafamentos para a vida econômica da capital baiana: “Não se trata de um problema de engenharia de tráfego, é um problema econômico: cada vez mais, se gasta mais tempo para o deslocamento, tempo que é tirado de outras atividades”. Pensar em uma Salvador com um melhor sistema de transporte esbarra em uma barreira erguida pelo desejo pessoal da propriedade do veículo. Para o professor de filosofia da UFBA, José Antônio Saja, o problema exige uma valorização do senso de coletividade. “Atrás disso tudo, está a necessidade de aprendermos a compartilhar. O aprofundamento da consciência é que nos levará a uma felicidade pública”. Para Saja, o problema já começa pela formação dos filhos, que leva a aquisição do automóvel a ser encarada como um rito de passagem. “É uma opção extravagante de uma sociedade que optou mesmo pelo dispensável, até porque não conseguiu abrir mão do seu sofrimento”, pondera Saja, que cita o sambista baiano Batatinha: “Se eu deixar de sofrer, como é que vai ser pra eu me acostumar?”.
ECONOMIA
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Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
O boom dos call centers O que há por trás do grande número de vagas oferecidos aos operadores de telemarketing governo federal, através de programas de geração de emprego e renda.
uem é bom observador, e mesmo quem não é tão bom assim, já percebeu que a todo instante são anunciadas, nos telejornais e na seção de empregos dos impressos, vagas para operadores de Call Centers em Salvador. As exigências para o cargo não são muitas: ensino médio completo, conhecimento em informática, boa dicção e fluência verbal sem vícios de linguagem. Ao contrário do que aparenta, este nicho profissional não é tão novo na capital baiana. A sua visibilidade é que não era tão grande, já que quem a exercia eram servidores públicos concursados, ligados às antigas estatais, como Coelba e Telebahia. Com a privatização das empresas públicas, o setor de call center foi desativado e as empresas começaram a terceirizaram o serviço.
Benefícios Os operadores de telemarketing reconhecem vantagens na profissão em comparação às demais atividades laborais realizada na cidade. Um dos motivos está na operação “tempo” versus “dinheiro”, já que operador de call center recebe praticamente o mesmo salário que um recepcionista, por exemplo, mas trabalha duas horas a menos. A carga horária de seis horas diárias, aliás, é a primeira vantagem comentada pelos operadores. “É um tipo de trabalho que nos permite também estudar em outro turno, coisa que eu não podia fazer quando trabalhava no comércio, pois o meu expediente era de nove horas”, conclui Paula, funcionária de uma empresa de telefonia. Plano de saúde e auxílio alimentação também são outros benefícios adquiridos pela categoria.
Contratações em Salvador No Brasil, essas empresas começaram a atuar a partir do ano de 1999/2000. Em Salvador, esse setor, atualmente, é o que mais emprega na cidade, onde estão instaladas as duas maiores empresas do país neste segmento: a Contax e a Atento. “As vagas para call center ainda são o carro-chefe no quadro geral de vagas captadas pelo Serviço Municipal de Intermediação de Mão-de-obra (SIMM)”, diz Hildenízia Chagas, gerente do órgão. “Desde a inauguração do SIMM, em 2005, até hoje, foram captadas 17.854 vagas somente para a função de operador de telemarketing, para 113 empresas diferentes”, informa Hildenízia. Em todo o país, o número de funcionários de empresas dessa área já ultrapassa os 300 mil profissionais. Estas empresas são atraídas com incentivos fiscais oferecidos pela Prefeitura, além dos benefícios do
Primeiro emprego e desemprego Como nem tudo são flores, para quem pensa em fazer carreira longa numa empresa, a atividade de operador de telemarketing é uma das menos indicadas. Há muitas contratações, entretanto, há uma grande quantidade de demissões também. A própria gerente do SIMM confirma: “O emprego de operador de telemarketing é muito rotativo, por isso sempre há solicitações de vagas”. Ainda que beneficie boa parte da população com a experiência profissional, a oferta não foi capaz de diminuir a taxa de desemprego registrada na cidade. Em maio de 2009, por exemplo, Salvador apresentou a maior taxa de desemprego entre seis grandes metrópoles brasileiras, de acordo com a Pesquisa de Emprego e Desemprego do DIEESE. Os operadores que conseguem permanecer por mais de um ano,
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geralmente sofrem estresse devido à situações de pressão a que são submetidos, especialmente os que trabalham com venda. “Há metas diárias e mensais que precisam ser batidas, quando não cumprem essas metas, os trabalhadores são submetidos a constrangimentos”, relata Tiago Mendes, diretor de imprensa da Sinttel, sindicato que representa a categoria. Uma funcionária da Contax, que prefere não ser identificada, aponta como um dos principais motivos de insatisfação profissional o esforço em lidar diariamente com Call centers tornaram-se filão do primeiro queixas dos clientes que ligam emprego para o serviço de atendimento onde atua. “Há clientes que ligam dorso e membros superiores”. Além para registrar alguma reclamação e do Anexo 17, atualmente tramitam sentem-se no direito de descontar em dois projetos de lei que visam ampliar nós todos os problemas”. Além do os direitos da categoria profissional, assedio moral, os funcionários mais como a garantia de folgas aos dominantigos correm o risco de sofrer pro- gos e feriados. blemas de saúde, como LER (Lesões por Esforços Repetitivos), problemas Movimento Sindical O Sinttel-BA, Sindicato dos Traauditivos e dores na coluna, causados principalmente por falta de equipa- balhadores em Telecomunicações da Bahia, foi criado em 1974, pelos mento adequado. servidores públicos que trabalhavam nas empresas estatais de telecomuniLegislação Ainda não há uma lei que regu- cações. Políticos, como o deputado lamente a profissão de operador de federal Walter Pinheiro, hoje secretelemarketing, porém a atuação dos tário de Estado, já estiveram à frente sindicatos fez com que, em março da organização sindical, que, devido de 2007, o Ministério do Trabalho ao processo de privatizações, perdeu publicasse o Anexo II da Norma muitos dos seus filiados. O sindicato, Regulamentadora 17, conhecido que antes era formado por profiscomo Anexo 17, onde está previsto, sionais com emprego estável, hoje por exemplo, carga horária máxima atua na fiscalização do cumprimento de 6 horas diárias, direito a uma folga das normas regulamentadoras da semanal, pausa de 20 minutos para atividade da categoria e na ampliadescanso, além de duas pausas de 10 ção dos direitos trabalhistas de uma minutos após a primeira e antes da classe formada predominantemente última hora de expediente, a fim de por jovens, muitos dos quais nunca “prevenir sobrecarga psíquica, mus- tiveram experiência profissional nem cular estática de pescoço, ombros, tampouco em militância política. Paula Boaventura
IALI MORADILLO PAULA BOAVENTURA
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BAHIA
Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Um olhar sobre o 2 de Julho Festa da Independência da Bahia vai além dos desfiles cívicos Victor Soares
GIÁCOMO DEGANI VICTOR SOARES
“C
om tiranos não combinam brasileiros corações”. Foi essa frase, parte do Hino do 2 de Julho, que o Governo do Estado escolheu para divulgar os festejos da data. O espírito de revolta parece ter tomado conta das comemorações, resgatando fielmente o sentimento que moveu os heróis da independência baiana. O feriado de 2 de Julho na Bahia é uma data cívica importante, pois relembra o dia em que aconteceu a expulsão definitiva das tropas portuguesas, em 1823, que ainda resistiam no Brasil, mesmo após D. Pedro I ter proclamado a independência, no dia 7 de Setembro de 1822. O que era para ser uma cerimônia cívica, acabou se tornando um “campo de batalha”, no qual diversos setores da sociedade buscavam respostas dos poderes públicos, tanto municipal, quanto estadual.O que se ouvia na cidade, horas antes do desfile, era que o prefeito de Salvador, João Henrique Carneiro (PMDB), não iria participar dos festejos, pois temia a reação de manifestantes, principalmente dos servidores municipais, que estavam em greve. Gritos de guerra Cedendo às pressões populares e visando manter a imagem para as eleições de 2010, João Henrique apareceu de surpresa, o que não foi suficiente para evitar a fúria dos protestos. Faixas, cartazes, xingamentos, tudo isso é facilmente ignorado. Difícil mesmo é conseguir fugir de ovadas, como a que aconteceu no início do desfile, quando um manifestante arremessou um ovo contra o prefeito de Salvador. Sorte dele que o ovo não caiu em sua cabeça, pois iria deixar sua “meia-careca” com um tremendo
Imagem do caboclo da independência, símbolo da festa
mau cheiro. Foi necessário que os seguranças tivessem mais atenção com João Henrique, utilizando-se, inclusive, de guarda-chuvas para proteger a comitiva “Joanina”. Os servidores municipais reclamavam da proposta de aumento feita pela prefeitura municipal, de apenas 2%, enquanto que, há meses atrás, os funcionários de primeiro escalão tiveram um aumento salarial superior aos 20%.O governador da Bahia, Jaques Wagner (PT), também não foi poupado da ira dos manifestantes. Enquanto a comitiva de Wagner, formada por políticos e partidários petistas, desfilava toda de branco, alguns homens de preto os seguiam com apitos e gritos de guerra. Tratavam-se de escrivães e investigadores da Polícia Civil, que foram aprovados em concurso público e formados em curso preparatório, mas ainda não foram nomeados para ocupar os 1.054 cargos que os pertencem. Um dos líderes do movimento que reivindica a nomeação imediata dos policiais, Marco Deiró ressaltou o motivo da manifestação. “Mais do que o nosso emprego, queremos uma
melhoria na segurança pública do estado”, destacou. Ele ainda afirmou que conversou com um deputado da base governista, que prometeu começar as nomeações a partir do mês de setembro. “O problema é que nada ainda foi formalizado, queremos um cronograma oficial de nomeações”, reclamou Deiró. Festa cívica e popular Apesar dos tumultos de manifestações que marcaram as festividades do 2 de Julho em 2009 na Bahia, não se pode deixar de lado todo o caráter cívico e popular que a festa carrega consigo. Encontrada pela reportagem do JF, em plena multidão no Centro Histórico, a prefeita de Lauro de Freitas, Moema Gramacho (PT), falou sobre a importância da data para a população baiana: “É a data mais simbólica da Bahia, pois representa a consolidação da independência do Brasil e a libertação do nosso povo”. Gramacho ainda destacou que a política do governo Wagner torna a data ainda mais democrática, pois, segundo ela, “o povo pode transitar livremente, sem a truculência da
polícia”. Em meio a todas as pessoas famosas, o povo de Salvador saldava o Caboclo com alegria e sentimento de patriotismo. Grupos de vaqueiros, idosos e filarmônicas de todo o estado compunham o cortejo, que passou pelas ruas do Pelourinho e do Campo Grande. O Grupo Terceira Idade Eterna Juventude celebrava a passagem do Caboclo em frente a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Mesmo participando todo ano dos festejos, ainda há muita insatisfação com o governo. Joaquim Assis, presidente do grupo, declarou que falta interesse do governador em apoiar questões relacionadas ao meio ambiente e à terceira idade. “É preciso que a população e o governo se preocupem com os mais velhos. Um idoso morto é uma enciclopédia incendiada”, esbravejou Assis. A religiosidade também faz parte das comemorações da Independência da Bahia. O pai-de-santo Roberto de Ogum, que montou uma barraca em frente a Praça Thomé de Souza, era um dos representantes do candomblé na festa. O religioso rezava ao pé do Caboclo e pedia paz, saúde e misericórdia para o povo de Salvador e para o próprio Caboclo. Roberto de Ogum misturava charutos com grãos de arroz especiais, além de desfrutar de um picolé autêntico capelinha. Enquanto isso, as pessoas passavam em busca do banho de cheiro. Infelizmente, a trupe política baiana, que desfilava de olho nas eleições de 2010, não passou pela banca de Roberto. Só assim os governantes poderiam descarregar suas energias negativas e os maus espíritos que os impedem de agir em prol do povo baiano. Povo que vive em condições indignas e precisa, cotidianamente, apelar para o Caboclo em busca de uma vida melhor.
FACONISTAS
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Quem vigia os vigilantes? Porque a fiscalização da mídia pela própria mídia é tão importante
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ma das funções já consagradas da mídia é, ou deveria ser, a fiscalização do poder onde quer que ele se manifeste. Denunciar abusos de poder político e econômico, desrespeito às leis, nepotismo e a utilização da máquina pública com fins privados (patrimonialismo) são algumas das suas principais obrigações. Entretanto, quando se trata de monitorar a si mesma, a mídia brasileira, diferentemente do que ocorre na França ou nos Estados Unidos, por exemplo, quase nunca oferece aos cidadãos a mesma qualidade, variedade e esforço que dedica à cobertura de outros temas. O media criticism (termo inglês que se refere à crítica da mídia pela própria mídia) é fundamental, porque o aperfeiçoamento da cidadania e da democracia não se limita apenas à veiculação e contextualização de informações de cunho político, social ou cultural, mas abrange também uma contínua reflexão sobre os meios que as transmitem. Política internacional Tal prática seria positiva para atenuar a mesmice e a homogeneização que predomina, por exemplo, nas coberturas políticas internacionais. No caso da América Latina, particularmente quando se trata dos países governados por digirentes antineoliberais, há uma espécie de consenso condenatório no que se chama de grande mídia. Prevalece, por assim dizer, o apoio a um imperialismo tupiniquim manifestado na crítica a uma suposta inércia do governo brasileiro frente a questões políticas internacionais. Não agir contra os países vizinhos, isto é, invadí-los, quando interesses
nacionais estão em jogo, é, para uma parcela considerável dos meios de comunicação nativos, sinônimo de fraqueza, de falta de liderança e de comando. O protagonismo brasileiro na América do Sul, para essa parte do jornalismo, deve ultrapassar os âmbitos políticos, econômicos e diplomáticos para se fazer valer também na dimensão militar. Esse posicionamento ficou claro em episódios como a nacionalização dos recursos naturais da Bolívia – quando os interesses da Petrobras foram ameaçados – e no contexto das reformas constitucionais propostas pelo presidente boliviano no ano passado, cujos desdobramentos provocaram manifestações populares que danificaram as instalações do gasoduto Brasil-Bolívia e comprometeram o fornecimento de gás natural para o consumo brasileiro. Dessa maneira, ao se apoiar somente ou majoritariamente em fontes que reforçam uma única corrente de pensamento como forma de tornar excêntricas as posições contrárias, a mídia nativa, além de ferir um dos princípios básicos que norteam a atividade jornalística – a abertura de espaço para opiniões divergentes como forma de se aproximar ao máximo da verdade –, ignora também o direito dos povos à autodeterminação e à soberania. A cultura ocidental e os modelos ocidentais de democracia e de administração pública são elevados à categoria de exemplos a serem seguidos, como se constituíssem a panacéia para as mazelas de povos “atrasados”. Com essa pretensão, os veículos nacionais, de maneira recorrente, desconsideram as peculiaridades da formação étnica e os anseios das camadas populares, Rodrigo F. Wanderley
GUILHERME VASCONCELOS RAFAEL FREIRE
aspectos complexos o suficiente para tornar no mínimo inadequadas quaisquer tentativas de importação de fórmulas supostamente bem sucedidas em outros países. Eleições Outro comportamento comum e bastante questionável do jornalismo brasileiro – e que poderia ser problematizado e debatido com a devida profundidade e até corrigido, caso a prática do media criticism fosse mais disseminada no país, – é o não-posicionamento políticoideológico explícito em época de eleições, sob a justificativa de uma imparcialidade que não resiste a uma leitura mais cuidadosa das reportagens. Essa tentativa de disfarçar as preferências políticas, em um esforço de expô-las de maneira velada, se transforma, na verdade, em pura desonestidade intelectual, uma vez que se tenta enganar os leitores mais inocentes ao induzilos a acreditar numa utópica objetividade jornalística. Por que não revelar, de maneira clara e honesta, por meio de editoriais, como fez
o jornal The New York Times nas eleições presidenciais do ano passado, em relação à Barack Obama, o apoio a determinado candidato? A discussão, ampla e profunda, dessas e de outras questões delicadas e de extrema importância, só será possível quando a grande mídia abandonar a arrogância que lhe é característica e passar a olhar também para o próprio umbigo. A autocrítica e a autoavaliação ganharam ainda mais relevância com as decisões do STF (Supremo Tribunal Federal) de revogar a Lei de Imprensa – herança da ditadura militarar que, apesar de predominantemente coercitiva, tinha artigos saudáveis como os que versavam sobre o direito de resposta – e de determinar o fim da obrigatoriedade do diploma para o exercício da atividade jornalística. Enquanto não se preenche esse vazio jurídico – se é que ele voltará a ser preenchido -, quem fiscalizará a mídia e de que forma esse monitoramento será feito? Parafraseando Watchmen, a mais célebre revista em quadrinhos, quem vigia os vigilantes?
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PERFIL Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Narrativas passageiras Impressões sobre a cidade e seus moradores NELSON OLIVEIRA RAÍZA TOURINHO
O
início da manhã é o período do dia em que as pequenas crianças invadem os ônibus de toda a cidade de Salvador para irem às suas aulas. Sempre gentis com os motoristas, “bom dia, ‘motô’” é o lema destas crianças, que entram pela porta da frente, com suas mochilas enormes, sobre ombros e costas tão diminutos. O sol, que já as 7h da manhã queima como se fosse de meio-dia, faz suar a fronte das pessoas recémsaídas de casa, que se amontoam a espera do ônibus. É segundafeira, início da rotina cotidiana das grandes metrópoles. Ônibus lotados, com destinos diversos se sucedem. As pessoas também. O constante vai-e-vem dá o ritmo do frenesi da grande cidade. Gente que queria estar dormindo tem de ir à aula ou ao trabalho é obrigada a se juntar a desconhecidos em espaços quentes e reduzidos demais para o número de pessoas que precisam dele para se locomover na cidade. Este pedaço da manhã, o início do dia para muitos moradores de Salvador, apesar das crianças gentis, não é o melhor momento pelo qual as pessoas esperam passar. Certamente não é a melhor ocasião para se relacionar com outras pessoas. Minutos antes de subir no “buzu”, no entanto, muitas pessoas têm a primeira conversa do dia esperando por eles: os vendedores de café da manhã são a primeira companhia de boa parte do povo soteropolitano. Praça da Sé Para alguns, o caminho percorrido no ônibus é demasiado longo, quase uma viagem. Muita gente
gaste, talvez, tempo até maior do modo mais fácil: ouvindo música. passageiro pedindo informações ou que pode dedicar diariamente a Mariza, que trabalha longe de casa e por encontros de conhecidos. Ainprópria família. É o caso de muitos não possui carro, elabora estratégias da que sentem juntas, quando em dos passageiros do Vilas do Atlân- para aproveitar a viagem: algo entre bancos duplos, as pessoas mal se tico x Praça da Sé, que sai de Lauro ler, ouvir música, dormir. Já Marília olham. A estudante de direito, Aline de Freitas, na região metropolitana, Ferreira, 37, aproveita as quase três da Rocha, 26, esclarece que esta imcom pouco mais de uma dúzia de horas diárias no ônibus para refletir. pessoalidade se dá muitas vezes por pessoas. É tanto espaço, tanto fres- É o tempo que “sobra” na correria falta de identificação e conhecimento entre os passageiros, “são sempre cor, quase um dia de domingo. Até cotidiana. O cobrador da linha, Lucas San- pessoas diferentes”, conclui. É uma mesmo o cobrador, se dá o luxo de sentar ao lado do motorista, para tos, 37, também afirma que não realidade diferente da que vive o cosó cobrar os passageiros posterior- pegaria ônibus se tivesse outra op- brador, na qual, segundo ele, fazer mente, quando chega a Salvador: é ção. Depois de ser assaltado quatro amigos é a melhor parte do trasó atravessar os limites soteropolita- vezes, nos quatro anos que trabalha balho. “É o que mais gosto de fazer nos para que suba gente aos mon- como cobrador, ele se sente tenso aqui”, enfatiza. E é assim, que milhares sotedurante todo o percurso e, diz que tes. Rapidamente o ônibus tem sua não sabe como as pessoas conse- ropolitanos convivem diariamente, lotação esgotada, rememorando aos guem dormir durante o caminho. num microcosmo particular que seus usuários que o dia só se apa- “Não consigo relaxar no ônibus”, transpassa sua função principal de rentava com o agradável domingo, confessa ao dizer que se sente as- meio de transporte para parte inteno sol que agora incomoda. A sen- sustado com a falta de segurança no grante do cotidiano de seus passageiros. Algum dia se espera, o ônisação é desagradável, como define a transporte público. Apesar da lotação do ônibus, bus parecerá todos os dias com o de senhora Mariza Andrade, “a gente parece sardinha enlatada”, lamenta, este segue em absoluto silêncio, in- Domingo, e seus usuários poderão afirmando que, quando vai em pé, já terrompido vez ou outra por algum sem susto, conversar entre si e rechega nervosa ao Nelson Oliveira trabalho. Os ônibus são mais que um meio de locomoção, são os locais em que os passageiros podem tentar se desligar do cotidiano frenético. Só dá pra escapar do desconforto geral dentro do ônibus quem realmente concentra-se em si mesmo. Alguns, em pé, até tentam, lendo um livro com uma mão e se segurando com outra, ou de A paisagem no Rio Vermelho atenua via crucis do engarrafamento
PERFIL
Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
laxar enquanto aguardam seu ponto de destino. Campo Grande R1 A noite nos ônibus é diferente. Depois dos engarrafamentos da hora do rush, que deixam os interiores dos ônibus parecidos com o que há de manhã, a noite se transforma. Mesmo sem as crianças gentis, é possível encontrar muito mais gentileza, companheirismo e amizade neste horário. A noite é feita de nuances de sono e de amizade. Enquanto muita gente segue viagem cochilando até seu ponto, cobradores e motoristas – mesmo cansados pela desgastante rotina de idas e vindas pelo mesmo caminho – costumam conversar muito na noite. Ao menos na linha Rio das Pedras-Campo Grande R1, é comum ver os cobradores se dirigirem aos primeiros assentos do veículo, para bater um papo animado com seu companheiro de linha. Também acontece de a conversa acontecer sem que o cobrador deixe seu posto. E quando amigos deles estão dentro do ônibus? A noite é uma facilitadora para os amigos: quando vai ficando tarde e não há movimento nas ruas, não é raro ver motoristas pararem fora dos pontos, para apanhar e deixar os mais chegados. Se, como afirma Michel De Certeau, caminhar pela cidade é uma forma de produzir enunciados e novas (ou repetidas) formas de ver o mundo, o que fazem os motoristas é produzir novos enunciados, ao subverter, de alguma forma, o fluxo de que faz parte de seu trabalho, é a forma de esquecer-se da rotina, que significa passar, diariamente pelos mesmos lugares, no mesmo fluxo. Dentro e fora do ônibus: passageiros Passageiro, segundo o dicionário Michaelis, pode significar: “o que passa depressa, que dura pouco; transitório, efêmero”, “de pouca importância” ou ainda “o que vai de passagem em qualquer veículo de transporte terrestre, marítimo ou
aéreo; viajante. algo que passa, que é transitório.” Afinal, falamos do passageiro que está passando, ativamente, ou do que está sendo deixado para trás? De dentro do ônibus, as pessoas não conseguem formar uma imagem detalhada dos lugares pelos quais passam. São borrões, leves pinceladas do que cada lugar é, em sua totalidade transitória: nossas idéias sobre a cidade são muitas vezes formadas por impressões
quem anda de carro. Muros altos, prédios altos, sem muitos detalhes, nada feito para observar, mas para separar o que está dentro ou fora”, lamenta. Albano também identifica alguns problemas para quem gosta de andar a pé e deleitar-se com as paisagens urbanas em Salvador: a falta de praças e a insegurança das ruas. “Infelizmente muitos lugares da cidade são perigosos para andar, sobretudo no Centro, onde eu gosto
Reprodução
Fotografar o QR code com celular compatível indica blog do perfil
cons-tituídas a partir de borrões seqüenciados. Os elementos vão ficando para trás, como se uma nave fosse cruzando o espaço e deixando os corpos celestes para trás. Andar de carro ou de ônibus amplia a sensação de hic et nunc das situações cotidianas: se algo acaba por chamar a atenção, logo é passado. Qual o tipo de relação que se desenvolve com a cidade, desta maneira? É por essas e por outras que Albano Moura, estudante de jornalismo, prefere andar a pé. Para ele, as nuances das cidades, suas pessoas e sua arquitetura, só podem ser conferidas de verdade por quem anda em seu próprio ritmo, bem pertinho das coisas. “Cara, hoje em dia a arquitetura das cidades é feita para
mais de passear. Por sorte, moro em um lugar onde ainda tem um pouco disso”. Fabíola Queiroz, estudante de administração, conta que, embora goste de andar em lugares próximos de sua casa, não costuma andar em outros lugares e se movimenta de ônibus. Para ela, pegar ônibus é muito bom, porque diminui as chances de se perder. “Basta olhar no Google Maps onde fica o lugar que você quer ir e ver se o ônibus passa perto de lá e pronto!” comemora, com um sorriso largo e expressão sagaz. Descobrindo a cidade: meios e fins Apesar de a cidade vista através do ônibus parecer um grande bor-
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rão, este veículo também é lugar para descobertas. Até mesmo para gente que era acostumada a andar a pé em tempos menos atribulados da cidade, que já morou no Subúrbio Ferroviário e pegava duas conduções para trabalhar – um trem e um ônibus – e que já teve um carro próprio, como é o caso do vendedor Manoel Santana. Seu Manoel comprou uma nova casa, mas nem tudo foi só felicidade: ele passou por uns “perrengues” e teve de vender seu carro. Com isso, voltou a pegar ônibus, coisa que não fazia há algum tempo, e, segundo ele, pôde observar algumas nuances da cidade, que lhes passavam despercebidas. “Como tinha me mudado, comecei a pegar outra linha, por um lugar que eu só conhecia de carro. No ônibus, eu vi alguns detalhes da cidade que eu nem prestava atenção quando passava com o carro”. Porém, seu Manoel não faz questão de saber o que tem nas ruas próximas das que o ônibus passa. “Ah, meu filho... mas pra que eu vou lá [para esses lugares desconhecidos]? Não tenho nada pra fazer lá. E, sem conhecer nada, é capaz até de ser assaltado, do jeito que esse mundo anda”. Salvador, como toda metrópole, tem habitantes que só conhecem a cidade a partir dos meios de transporte e que nem mesmo colocaram os pés por onde seus ônibus passam. Jurandir Lopes, que veio de Ipiaú para Salvador, para estudar História, sente muita falta de sua cidade, justamente por ter contato com o chão de sua terra. “Aqui em Salvador é muito ruim pra mim, já que eu moro muito longe de onde eu estudo. Assim, eu quase nunca ando por onde eu passo de ônibus. Não me sinto em casa. Como se sentir em casa sem pisar no chão?”. *Perfis produzidos para projeto com mídias locativas, em coordenação com a disciplina Comunicação Multimídia. Para ver mais fotos e um mapeamento feito por nós, acesse: http://narrativaspassageiras.wordpress.com
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OUTROS OLHARES
Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Salvador: vícios e virtudes ANA MARGARIDA MAITANE ANITUA ROA*
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capital baiana, famosa pela sua história e pela sua alegria, atrai gente de todo o tipo e origem. A única coisa que há a fazer é acercar-se a uma pessoa com falta de melanina na pele e perguntar: “de onde é você?” . Se na resposta não constar nenhum erro gramatical ou semântico e a voz se soltar em bom “bainês”, você poderá comprovar a grande variedade de origens da capital da alegria. O mesmo sucede quando se tem sorte de não te terem dito “amigo, vai ver se estou lá na esquina” e a conversa continua. Aí, chega a vez de perguntar: “o que é que você está fazendo na Bahia?” Aqui, também as respostas são múltiplas e diferenciadas. Uns vêm estudar, outros aprender música, capoeira, uns tomar sol, outros tomar chuva... Quando chega a Salvador, o turista é entendido como se fosse uma
“É um luxo sair da aula e baixar para praia”
entidade única, um grupo sem cabeça de cartaz, cuja única variação consiste na cor do cabelo e na pronúncia que distingue as nacionalidades e que as pessoas que vivem do turismo já conhecem bem. “A pronúncia julga e não perdoa”, afirma, sorrindo, Mário, 29, vendedor de cocos na praia do Porto da Barra. Não adianta querer passar despercebido. A Salvador vêm parar muitos turistas. Do mochileiro que vem aprender música ao turista de lazer que se hospeda nos hóteis junto à praia, os vendedores de “tudo” que encontram facilmente compradores para as suas peças, os estudantes. Favel, turismo e mocotó Deste último grupo, é possível distinguir dois: o primeiro é, na maioria, composto por estudantes oriundos dos Estados Unidos, que vêm fazer cursos nas muitas escolas de línguas que existem Salvador. Além do ensino da língua, estas escolas oferecem cursos de culinária, forró, capoeira, samba, cultura baiana. Em menor núme-
ro, os estudantes de universidade de vários países, que vêm por um período entre seis meses e um ano, para os que têm mais sorte. As diferenças são muitas e baseiam-se sobretudo numa questão de tempo. O turista que vem 15 dias de férias pensa em euros ou dólares, compra artesanato na praia e no Mercado Modelo, pede ao senhor que aluga cadeiras na praia para ir buscar um acarajé, dá dinheiro ao menino dos amendoins porque pensa que ele tem fome e visita uma favela porque, hoje em dia, essa é também é uma forma de turismo. Quem tem mais tempo, como o estudante ou o mochileiro, pensa em reais porque tem pouco dinheiro, compra colares naquela loja atrás da Avenida Sete, dá dinheiro ao menino do amendoin porque sabe que ele quer comprar um presente para a namorada e come na favela porque um amigo lhe contou que é ali que se come o melhor mócótó do mundo. No entanto, é importante salientar que, ao escrever deste modo, também corremos o risco Rodrigo F. Wanderley de colocar “ toda a farinha no mesmo saco”. Mas não é intencional. Cada pessoa tem o seu ritmo, as suas histórias e uma forma de vida que deve ser respeitada. O que pretendemos é mostrar como é possível uma mistura e o modo como o tempo, condicionado por todas as questões que envolvem uma cidade que, entre outras coisas, vive de turismo, é determinante. Porque é o turista que passa 15 dias de férias
num hotel de luxo que deixa dinheiro numa lanchonete para que o menino de rua se alimente durante um ano, como conta Pedro [nome fictício], 15 anos, aspirante a melhor capoeirista do Porto da Barra: “agora eu não passo mais fome, porque quando não tenho o que comer passo lá na lanchonete pra buscar um hambúrguer, porque tem uma conta aberta para mim”. Estudar em Salvador Mónica, 28, biologia; Ion, 28, música; Mariana, 22, biologia; Sara, 23, história de arte e Léa, 24, geografia. Todos fazem parte do grupo de cerca de 60 estudantes estrangeiros que veio este ano estudar na Universidade Federal da Bahia. Quem pensa que a escolha pela cidade foi muito pensada, desengane-se. Mónica conta, com os olhos a brilhar, que veio porque “tinha amigos que vieram estudar aqui, biologia também, e eles falaram bem de Salvador, da faculdade, das noites e da praia”. Léa quer “aprender a fazer a melhor caipirinha do mundo” e Mariana veio em busca “de praia e garotos gatos”. Vindos de países tão distantes como Alemanha (Léa), Espanha (Mónica e Sara), País Basco (Ion) ou México (Mariana), a adaptação nem sempre é fácil. Têm de acostumar-se a novas formas de estar, a ideias que nem sempre entendem e têm de construir outra vida, sem saberem muito bem por onde devem começar e até ondem devem chegar, para não se esquecerem da que tinham antes. Intercâmbio só faz sentido se, no coração, a pessoa souber levar consigo o melhor do que aprendeu pela vida inteira. Quando perguntamos sobre o que mais os faz sorrir e o que mais os encanta, as respostas variam, mas não surpreendem tanto, se fecharmos os olhos para pensar nas coisas simples. Para Mónica, “é um luxo poder sair da aula e baixar para a praia, ver o entardecer”. Ion elogia “as terças-feiras de
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batucada no Pelourinho”. Mariana gostou da praia do Forte mas “tinha bebido um pouco demais para conhecer” e Léa gosta de dançar pagode e forró e está “encantada com as ilhas de Boipeba e Moreré”. No entanto, nenhuma vida é tão simples para se resumir ao pôr do sol na praia com sabor a cerveja e amendoins.
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Rodrigo F. Wanderley
Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Medo Quando chegaram, tinham medo. Antes de chegarem, são avisados de uma série de perigos, tantos que, quando entram no avião, já não se lembram que vêm para a terra de todos os sonhos e confundem-se, pensam que vão aterrar em Bagdad. Esse medo rapidamente se dissipa e o único medo que fica é, segundo a Sara, “o de que o tempo passe rápido demais”. Como em qualquer lugar, há cuidados que devem ser tomados em conta. E, como afirma Mónica, “passar com uns brincos de 500 reais num lugar onde as pessoas passam fome é falta de senso comum e pedir para ser assaltado”. Sara tampouco passa despercebida entre nós. Ela é uma menina galega de pequena estatura, corpo e cara delicados e um sorriso tão pessoal que parece nunca ter quebrado um prato. Sarita Manzanita e suas anedotas. Para não dormir. Aí vai uma delas: Ela, seu namorado e a mãe dele (que veio de visita), iam caminhando tranquilamente pelo calçadão de Ondina, à noite. Tudo estava certo, quando, de repente um homem que caminhava pegado às costas da Sara teve a ideia de roubar-lhe sua bolsa. Começaram os dois a puxar, enquanto o namorado, Iago, diz Sara, “como sempre, quando preciso dele, ficou paralisado”. O panorama começava a parecer-se a uma espécie de luta livre quando se ouviu o barulho de algo a romper, que foi determinante para o que se seguiu. A bolsa de Sara quebrou-se em duas partes perfeitas e o seu velho celular e os seus 1,75 reais saltaram pelo ar. Sara pensou que. com o estrondo
A faixa de areia do Porto da Barra é a mais democrática de Salvador
e, ao ver que não havia nada de valor, o homem já tinha fugido. Mas, de repente, um grito desde a praia fez com que olhasse para baixo. Com o impulso, o homem caiu pela orla e encontrava-se deitado sobre uns matinhos dizendo palavrões. Sara, então, respondeu-lhe: “Ganhei! Não levastes nada!”. Assim, às vezes as aparências enganam. Pequena, mas “matona”. Enquanto para Mónica tudo é tranqüilo e sem sobressaltos, Ion não pensa do meso modo. Tudo porque o coitado teve um âmago de assalto na terça-feira, no Pelô. Mas, por que Ion? Porque se sentia tão como em casa que, como costuma fazer no País Basco aos fins de semana, “se le fue la mano con la bebida.” “Eu estava lá no Quilombo com uma amiga basca dançando quando começou uma briga. Nós nos encontrávamos numa parede e falei para irmos embora quando quatro caras vieram exigindo que desse tudo o que tinha comigo. Eu não fiz caso, mas de repente começaram a meter as mãos em meus bolsos. Sacaram o tabaco e atiraram-no ao chão. Depois pegaram os únicos dois reais que tinha e começaram a zangar-se, já que não encontravam o meu bolso secreto,
onde guardo o meu dinheiro. Depois queriam meu celular e comecei a gritar, mais pelo efeito da bebida: Não, não! Meu celular não! Por favor, meu celular não! Com o barulho, os assaltantes começaram a correr e foram apanhados pelos seguranças. Assim, recuperei o celular. Portanto, a única coisa que há a fazer é ter precaução. Não só aqui, senão sempre e em todos os lugares. E outra coisa, Ion: para você se sentir em casa não tem de beber dessa maneira, mesmo que em sua casa só faça isso. De todos os modos, que seja tudo como isto. Ó pai ó “É claro que a vida é boa/ E a alegria, a única indizível emoção/ É claro que te acho linda (...)/ É claro que te amo/ E tenho tudo para ser feliz (...)” (Dialética, Vinicius de Moraes). Quando um turista chega à praia é abordado por 50 pessoas ao mesmo tempo para comer um acarajé, alugar uma cadeira ou comprar uma fitinha do Nosso Senhor do Bonfim, ele fica sempre se achando um pouquinho. E não podia ser de outro jeito. Mas tem o outro lado. Outras vidas, um mundo com outras cores, do preto às mais coloridas, onde nem sempre nos
dão a chave, pelo menos a verdadeira, para entrar. O senhor da barraca, o guia turístico e o vendedor de queijo estão só a trabalhar, de uma forma que deve estar de acordo com o acolhimento brasileiro que faz o turista chegar a Salvador e querer voltar. Mas é trabalho. E, se pararmos para observar como eles caminham pela praia, como cumprimentam os amigos e conhecem toda a gente, como se juntam no final do dia para tomar umas cervejas e comer uma buchada no boteco da esquina enquanto vão zoando, mas sem malícia nenhuma, daquele “gringo metido” que parecia uma lagosta e ficava criticando “as coisas de baiano”, então vemos de que lado gostaríamos de estar. É foto de gente bonita. Beleza com certeza. “Podemos sorrir, nada mais nos impede/não dá pra fugir, dessa coisa de pele/Sentida por nós, desatando os nós/ Sabemos agora, nem tudo o que é bom vem de fora/É a nossa canção, pelas ruas e bares/Nos traz a razão, relembrando Palmares” (Jorge Aragão, Coisa de Pele). *Maitane Ania é basca e Ana Margarida é portuguesa. Ambas foram alunas intercambistas da Facom em 2009.
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FACONISTAS Jornal Laboratório - FACOM/UFBA - Novembro de 2009
Sucata tecnológica Lixo tecnológico acentua degradação ambiental e representa desafio constante JOSEANE BISPO
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aptop, MP5, Smartphone. As inovações tecnológicas são superadas a cada dia e é impossível resistir à tentação de trocar um celular por um outro de diferentes funções que acabou de ser lançado, sem falar nos mais eficazes e diferentes computadores. Ceder aos encantos de ter um mais novo artefato tecnológico não é pecado, o problema maior é desfazer-se do antigo. Sucatas tecnológicas escondem vilões silenciosos que atingem o meio ambiente e põem em risco a saúde. Segundo a Anatel (Agencia Nacional de Telecomunicações), o mundo produz cerca de 40 a 50 milhões de toneladas de lixo eletrônico diariamente. Só em março de 2008, foram registradas no Brasil quase 1,7 milhão de novas habilitações na telefonia celular e, anualmente, cerca de 11 milhões de novos computadores chegam às lojas. Assim, 1 milhão de novos computadores são destinados aos lixões do país nesse mesmo espaço de tempo. Por não se tratar de um consumo sustentável, a troca acelerada desses aparelhos pode ser um agravante futuro, já que é um problema mo-
derno que conta com poucos projetos para a sua resolução. Para cada quilo de computador fabricado, cerca de três quilos de lixo eletrônico são produzidos. Levando em consideração que milhões de computadores e outros aparelhos eletrônicos, como celulares, MP3 e videogames, são fabricados todos os anos e outros milhões descartados, todos os dias uma imensa quantidade de lixo eletrônico é despejada no planeta. Segundo o Greenpeace, uma organização ambientalista não governamental, mais de 50 milhões de toneladas de entulho tecnológico é gerada anualmente, o que corresponde a 5% da produção mundial de lixo, e a estimativa é que essa quantidade triplique nos próximos anos. No Brasil, em alguns estados, o assunto já é tratado por lei e por algumas resoluções do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama). A proposta é fazer com que a população desenvolva uma consciência tecnológica e entenda que o “desperdício” tanto pode afetar o meio ambiente quanto a qualidade de vida. Segundo a coordenadora do Grupo de Resíduos Sólidos da UFBA, Viviane Zanta, os impactos pós-consumo decorrem, em grande parte,
Reprodução
Sucata de equipamentos eletrônicos, o que fazer?
da liberação de substâncias químicas geradas pela queima de materiais que são jogados em lixões comuns, aumentando os riscos ambientais. Para Zanta, é necessários desenvolver sistemas de gerenciamento de resíduos com um envolvimento coletivo, desde os fabricantes aos consumidores, na tentativa de diminuir a degradação decorrente do descarte incorreto desses materiais. Além dos problemas ambientais ocasionados pelo descarte desapropriado desses aparelhos, o lixo eletrônico também apresenta substâncias perigosas para a saúde. Alguns elementos, como chumbo, mercúrio, cádmio, belírio e arsênico, são encontrados em computadores, celulares e TVs de plasma, componentes tóxicos responsáveis, a depender do manuseio, por danos aos sistemas nervoso, sanguíneo, respiratório e cerebral em seres humanos, podendo ocasionar doenças como câncer. O Brasil produz, segundo a Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), 170 mil toneladas de resíduos sólidos urbanos por dia, sem nenhum descarte responsável. A Bahia, responsável por cerca de 2,5 toneladas de resíduos sólidos, não muito diferente de vários estados do país, não tem um controle sobre o manuseio e descarte desse tipo de lixo, como afirma o coordenador do Comitê para a Demo-cratização da Informática (CDI), que também lamenta a falta de iniciativas voltadas para o reaproveitamento desse lixo. Para o diretor do CDI, Rodrigo Baggio, “a sociedade ainda não acordou para a gravidade do assunto”. A criação de uma política nacional sobre o tema tramita no Congresso Nacional há mais de 15 anos, porém os estados e
municípios têm autonomia para criar as suas próprias leis. Estados como Paraná e São Paulo já apresentam legislações voltadas para a questão. Há também a resolução 257 do Conama, que determina que fabricantes e importadores sejam responsáveis pela coleta, classificação, transporte e destino final de pilhas e baterias de celulares. O usuário deve entregá-las no estabelecimento onde comprou ou na assistência técnica que, por sua vez, repassa aos fabricantes. Também todas as operadoras móveis têm políticas de recolhimento desses materiais, mas a proposta, além de não ser muito obedecida, não é suficiente. Em Salvador, todo o material eletrônico recolhido nas ruas vai direto para o Aterro Metropolitano. De lá, é destinado aos irmãos Joseval e Joandro Araújo, voluntários que trabalham com o reaproveitamento da sucata eletrônica. Os irmãos têm uma parceria com a Empresa de Limpeza Urbana de Salvador (Limpurb), que, apesar de ter programas de coleta e reciclagem de resíduos sólidos, ainda não dispõe de projetos específicos para o lixo eletrônico, como declara a assessora do órgão, Ana Vieira. Além da parceria com a Limpurb, os irmãos Araújo, que possuem um depósito em Nazaré, também fazem gratuitamente a coleta em residências. Basta ligar e agendar o dia da coleta (veja box). O lixo recolhido é encaminhado para São Paulo, de onde vai para China e Rússia. Um trabalho pioneiro, como lembra Joseval Araújo, que acredita contribuir principalmente no processo de conscientização ambiental da região. Para doar computadores em desuso: CDI Bahia (71) 3473 3333 cdiba@cdi.org.br. Irmãos Joseval & Joandro Araújo (71) 3241 1463 www.mma.gov.br/conama
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Charles Spencer Chaplin ANDRÉ SETARO
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enhum outro realizador cinematográfico, em toda a história do cinema, possui a dimensão de Charles Spencer Chaplin, o popular Carlitos. Adorado por qualquer classe social, desde operários até graves intelectuais, a sua criação do personagem do Vagabundo constitui-se numa imagem universal, um inocente diante das adversidades de uma sociedade hipócrita e competitiva, um inadequado que se esforça, sem êxito, para ser igual aos outros. Mestre da pantomima, seus filmes, construídos com raro preciosismo, são, porém, simples e despojados de “floreios” estilísticos. Mas nenhum outro artista penetra tão a fundo nos corações dos cinéfilos do mundo inteiro. Nasce na periferia de Londres em 1889 (morre no Natal de 1977
aos 88 anos), de uma família de artistas, e, desde cedo, conhece a fome e a miséria. Seu pai, alcoólatra, abandona o lar e sua mãe, que fica louca, passa o resto de seus dias internada num hospício. Mas Chaplin e seu irmão Sidney logo entram para um grupo de “music hall” e conseguem, com trabalho duro, através da companhia inglesa de Fred Karno, excursionar pelos Estados Unidos, quando é notado pelo maior comediante da época: Mack Sennett. É o início de uma carreira plena de sucesso e, em poucos anos, é o homem mais célebre e mais famoso do planeta Terra. Chaplin se forma na estética da arte muda e, em 1927, quando
do advento do cinema sonoro, o artista se recusa a aderir ao som e realiza, três anos depois, a sua obra-prima definitiva: “Luzes da cidade” (“City lights”), com uma estrutura narrativa completamente identificada com a estética do cinema mudo. Desde “Em busca do ouro” (“The gold rush”, 1925) se cumpre totalmente a vocação chapliniana para a tragédia. E em “City lights”, Chaplin transcende o melodrama para atingir a tragédia. O Trágico e o Cômico se confundem na obra do artista. Mas, em 1941, quando resolve “falar”, faz um discurso em “O grande ditador” (“The great dictador”), um discurso humanista em favor da paz, quando a Europa dá início à Segunda Guerra Mundial. O espaço não consente que se continue a falar de Charles Chaplin. O “móvel” deste arti-
go é dizer que, a minha disciplina optativa do segundo semestre de 2009, toda ela é dedicada ao maior artista do século passado. Com a exibição de todos os seus filmes, desde os curtas dos anos 10, até o seu canto de cisne que é o malfadado “A condessa de Hong Kong” (1966). Segundo Jean-Luc Godard, “Charles Spencer Chaplin, permanecendo inteiramente à margem de todo o cinema, preencheu finalmente essa margem com mais coisas (que outras palavras empregar: idéias, gags, inteligência, honra, beleza, gestos?) do que todos os outros cineastas juntos. Diz-se hoje, Chaplin, como se diz Da Vinci, ou, antes, Carlitos, como Leonardo.” André Setaro é Mestre em Belas Artes e professor da Facom/UFBA
Morder e assoprar MAURÍCIO TAVARES
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doro a forma como os paulistas usam o verbo assoprar. A expressão do título fica mais charmosa pronunciada à paulista. Eu estou sempre mordendo e assoprando e também assoprando e mordendo. Não é assim com todo mundo? Penso que sim. Na minha relação com os alunos tenho vivido essa bipolaridade com uma certa constância (“onde queres Leblon sou Pernambuco, onde queres eunuco, garanhão). Os alunos são suscetíveis demais a uma tirada humorística . Eles levam tudo a sério. Que pena! Perdi meu trauma com esse negócio de morder
desde criancinha. Meus irmãos, sacanas, me pediram pra falar pra um professora severa, amiga de minha mãe, chamada Maria dos Remédios (que nome mais purgante!) a célebre falsa questão: “Maria dos Remédios, não confio mais em você!” A séria professora me pergunta com a vozinha com que se fala com crianças “Por que, Mauricinho?” e eu, treinado, respondo “Porque dei meu ... pra você chupar e você fez foi morder!” Pelo rubor da professora e pelos risos escondidos dos meus irmãos percebi que tinha dito besteira. Desde esse tempo, então, aprendi que é dando que se é mordido. Por isso vou logo mordendo antes de dar e assoprar. Na sala de aula pergunto a um
aluno, que eu presumia ser gay, se ele conhece uma música, trilha sonora de um documentário, que fala de uma certa situação muito conhecida no mundo gay. Ele me olha como se eu tivesse feito a pergunta mais ofensiva da vida dele e responde “Professor (nessas horas é importante estabelecer o distanciamento e o pretenso respeito), eu não tenho conhecimento desse mundo!” Acho engraçado. Porque mesmo sendo gay eu sei quem é a Mulher Melancia e a professora com a calcinha toda enfiada, que provavelmente fazem parte do mundo hetero. Depois dessa “mordida”, involuntária, no aluno vou ter que assoprar muito. Alguns alunos me decepcionam, mas outros
tem atitudes que eu acho corajosas e indicadoras de uma boa auto-estima. Falando sobre moda na sala, fiz referência a um mocassim cafona usado por uma aluno, ainda por cima com meia branca, e pra minha alegria vejo que ele continua usando o tal problemático calçado. Os bravos são forjados na adversidade Quanto aos outros, ainda vão existir muitos armários por aí para eles se esconderem com seus medos e fobias. Maurício Tavares é Doutor em Comunicação e professor da Facom/UFBA
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Eta pau, e agora? RODRIGO F. WANDERLEY
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estibular. Período em que nos deparamos com a primeira grande decisão de nossas vidas. Nesta hora, aptidão, gosto, talentos, mercado de trabalho e a remuneração são colocados na balança. Sem contar com os milhões de “perus”, de fora e de dentro, que não perdem a oportunidade de meter o bedelho: “Vai fazer o quê?”, “Vai seguir os caminhos dos pais?”, “Vixe, vai morrer de fome”, “Isso não tem nada a ver com você”. A ação dos perus começa desde cedo; se o menino leva um vira-lata pra casa e dá banho no pulguento já é o bastante: “Vai ser veterinário!”. Defende-se o irmão que acaba de aprontar: advogado. Quando socorre o amigo que corta o pé, não tem erro: vai ser doutor! Se constrói um castelo de areia bonito na
praia, não precisa nem falar... Por outro lado, se o menino gosta de dançar, por que ninguém diz que vai ser bailarino ou gogoboy? Na década de 70, os cursinhos de Salvador andavam lotados de estudantes doidos para entrar no curso de engenharia. Coincidência ou não, neste mesmo período o Pólo Petroquímico estava sendo instalado em Camaçari, ou seja, emprego e ótimos salários garantidos. Mas claro que não era por isso que as pessoas se acotovelavam nas salas de cursinho, né?! Hoje em dia, numa sala de prévestibular, dos duzentos presentes, pelo menos cem estão se preparando para prestar vestibular pra medicina, cinquenta querem fazer direito e, dos cinquenta restantes, pelo menos um (antes da desobrigação do diploma pra atuar na área) queria seguir a profissão de jornalismo. Será que, em cerca de
30 anos, a cabeça dos estudantes baianos mudou tão bruscamente de uma mente objetiva e prática, comum aos estudantes das ciências exatas, para uma vocação humanista com um apurado senso de justiça, que deveria ser característica dos que trabalham salvando vidas ou defendendo e julgando os outros? Infelizmente, acredito que não é bem essa a questão. Medicina e direito são as profissões que prometem os melhores salários iniciais. Sem falar nos PSFs (Programa Saúde da Família), que prometem até 10 mil reais mensais... Numa sociedade em que a estabilidade financeira e os desejos materiais pintam sempre como prioridade, fazer o que gosta ficou relegado aos finais de semana; cada
vez mais ansiosamente esperados por quem não gosta do que faz. Antes de qualquer interpretação precipitada, nada contra medicina ou direito; tudo a favor da coragem de viver fazendo o que gosta e o que se faz de melhor. Acredite, no final das contas você ainda pode ganhar muito dinheiro com isso.
Mais um Rio coberto em Salvador Cascão, como também é conhecido, localizado no bairro do Imbuí. O fato epois da obra de cunho é que, segundo especialistas, esse não político e eleitoreiro rea- é o melhor tipo de projeto para solizada na Av. Centenário, lucionar o problema da poluição dos para cobrir o rio dos Seixos (o rio rios, pois quando a cobertura é feita mais limpo de Salvador), a Prefeitura nenhum processo de revitalização Municipal da cidade está investindo poderá ser implantado, condenando na cobertura do rio das Pedras ou rio o rio a ser jogado irreversivelmente para ‘debaixo do tapete’. Renato Almeida Na região do rio das Pedras vivem, aproximadamente, 70 mil pessoas. Os moradores mais antigos afirmam que, antigamente, propostas de revitalização e não de cobertura foram encaminhadas à Prefeitura, inclusive com a perspectiva de construção de uma orla às margens do leito. Entretanto, depois que a obra Rio das Pedras, enterrado pelo poder publico feita na Av. Centenário fez
GABRIELA VASCONCELLOS
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tanto sucesso e aparentemente resolveu os principais problemas do local as propostas de revitalização dos demais rios da cidade parecem ter sido engavetadas e esquecidas. No rio dos Seixos, por exemplo, em vários trechos era possível encontrar peixes e vegetação, embora poucos soubessem disso, para não dizer ninguém. O rio das Pedras está degradado, sim, mas mesmo que demorasse 50 ou 100 anos poderia voltar a ser um rio. Embora o processo de revitalização seja mais caro e demorado, é o preço necessário a se pagar por todo um passado de desorganização e de falta de planejamento em que se desenvolveu a cidade de Salvador, com o mínimo de saneamento básico. Antes de simplesmente cobrir um rio, os representantes dos poderes públicos deveriam buscar alternati-
vas, discutir propostas apresentadas por especialistas e ambientalista e não esconder o problema de forma irreversível. A população, aquela que mais sofre com os efeitos provocados pela poluição, como o mau cheiro, os alagamentos recorrentes em época de chuva e com os mosquitos, acaba concordando com soluções drásticas e aparentemente eficazes porque não é estimulada a pensar em formas de devolver ao ambiente urbano aspectos naturais. Com isso a cidade acaba caminhando a passos largos para a artificialização extrema, permeada por inúmeras quadras poliesportivas, pistas de cooper, equipamentos de ginástica, áreas de lazer, entre outros. E, meio a isso tudo, onde fica a natureza? Embaixo do concreto. Enquanto isso, ninguém se importa se em troca ganha uma linda pracinha?