Memória do Rio Tua págs 24 e 25 . Sobre Vieira da Silva e Arpad Szenes págs 40 a 42 . António Santos, a estátua que resiste pág 46
Assina o Jornal Mapa escobre como d na pág. 4
NÚMERO 28 AGOSTO-OUTUBRO 2020 TRIMESTRAL / ANO VIII 3000 EXEMPLARES PVP: 1.5€ WWW.JORNALMAPA.PT DIRECTOR: GUILHERME LUZ
A nossa luta é universal porque a nossa dor é universal O racismo mata. Nos últimos meses assistimos a graves episódios de discriminação racial e violência policial em Portugal e no mundo, mas também vimos poderosas demonstrações de força e solidariedade, seja em manifestações, nos bairros ou nas redes. Apresentamos um conjunto de reflexões em torno de questões como a negritude, o privilégio branco, o Black Lives Matter, o abolicionismo e o racismo em Portugal, na voz de pessoas que lutam quotidianamente contra o preconceito. págs. 11 a 18
Falsidades Célticas págs. 19-23
A história Celta e de Viriato ao serviço dos nacionalismos cada vez mais extremados
Sem-Abrigo
Mineração
Em Junho passado teve lugar a primeira concentração organizada por pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal
As populações acusam o governo de legislar «um fato à medida das empresas mineiras» e não desistem da sua luta contra as minas
págs.9 e 10
págs. 5 a 8
MAPA / JORNAL DE INFORMAÇÃO CRÍTICA / AGOSTO-OUTUBRO 2020
2 CURTAS
Ocupação em tempos de pandemia
A
ANDRÉ SILVESTRE
pandemia de Covid-19 tem, por um lado, aprofundado desigualdades sociais e situações de exploração económica, mas, por outro, servido de alavanca para uma série de experiências e práticas de liberdade e autonomia. Um destes casos é a ocupação de casas, que ressurgiu na decorrência do súbito corte nos salários, da burocratização e demora dos apoios institucionais, bem como da inexistência de estruturas habitacionais facilmente disponíveis para quem delas carece. No entanto, alguns destes projetos de ocupação em Lisboa, Setúbal e Algés têm sido objeto de tentativas de despejo, e algumas logradas. O caso com maior repercussão pública foi o da Seara - Centro de Apoio Mútuo de Santa Bárbara, prédio ocupado em Lisboa que servia de acolhimento a pessoas em situação de sem-abrigo ou precariedade, onde podiam satisfazer necessidades do dia-a-dia dificultadas pela pandemia como tomar banho, lavar a roupa, ter acesso a pontos de eletricidade ou simplesmente sentir calor humano face ao isolamento estatuído ou usufruir conforto. Um fundo imobiliário internacional, detentor do prédio, contratou uma empresa de segurança privada para expulsar os habitantes. No dia 8 de Junho milhares de pessoas manifestaram-se contra o recurso à justiça privada com a conivência institucional, assim como contra a repressão policial, que marcaram o desterrar desta semente que germinara no coração da cidade.
A Alternadora é uma ocupação em Setúbal, que se define como um «espaço gerido por um coletivo de amigxs que por vezes organizam atividades abertas ao mundo exterior». Nos últimos tempos tem sido alvo de pressões por parte de um indivíduo que se intitula como o novo arrendatário do espaço e que tem sido apoiado por um grupo de homens. A polícia presenciou algumas das situações, sufragando por vezes os agressores que, na última vez, arrombaram o portão com uma carrinha e depois levaram-no com eles. No lado oposto da cidade sadina, na subida para a Baixa de Palmela, uma casa inserida numa propriedade com armazéns e terreno foi ocupada no início do confinamento. Após uma contestação inicial dos proprietários, em que a polícia ficou sensível aos motivos alegados pelo pequeno grupo de novos habitantes, a estratégia passou a ser de intimidação, incluindo armas
Em comum, estes casos têm o facto do despejo não ter sido determinado judicialmente e executado pelas forças de autoridade, sendo levado a cabo por empresas de segurança privada ou outros trabalhadores
de fogo e aposição de cadeado. O fim do confinamento e a pressão e ameaças crescentes determinaram o abandono da casa. Voltando à capital, durante o confinamento obrigatório, um prédio chegou a albergar trinta pessoas, maioritariamente artistas de rua. Em Junho o proprietário deu um prazo para saírem, prorrogando-o pois muitas pessoas não conseguiam encontrar teto. No fim, a entrada do edifício foi barrada com uma porta em ferro. Noutra colina de Lisboa um hostel que tinha deixado de ser explorado foi ocupado. Durante o mês de Julho, uma funcionária da proprietária convenceu a polícia a deslocar-se ao local alegando que ali estaria a ser cometido um crime grave. Seis patrulhas procederam à detenção e encaminhamento para a esquadra dos sete ocupantes que acabaram por ser libertados com a obrigação de se apresentarem no tribunal no dia seguinte. Ali, o ministério público suspendeu provisoriamente o processo mediante o pagamento de uma multa de 300€ a cada um dos expulsos. Finalmente, em Algés a quinta de S. José, onde se insere um convento que remonta à época medieval reconhecido como património cultural cujo acesso esteve aberto à população no passado. Também detido por um fundo imobiliário internacional, que conseguiu uma polémica aprovação pelo município de um projeto de condomínio privado, a pressão para a saída do espaço rapidamente se manifestou assim que tomaram conhecimento da ocupação por um grupo maioritariamente constituído por mulheres. Apesar destas terem
salvaguardado a degradação do edifício em que residiam, obtido o reconhecimento dos vizinhos e construído um forno de cerâmica, em início de Julho sob forte pressão do fundo foram impelidas a sair da quinta. Em comum, estes casos têm o facto do despejo não ter sido determinado judicialmente e executado pelas forças de autoridade, sendo levado a cabo por empresas de segurança privada ou outros trabalhadores, assumindo funções para as quais não estão habilitados e que carecem de cobertura legal. De notar que é frequente a presença de pessoas sem a situação administrativa regularizada e que, perante o risco de serem identificadas pelas autoridades e o receio de verem a sua situação documental prejudicada, preferem sair da casa. Estes episódios são exemplificativos de uma realidade muito mais extensa e profunda no âmbito dos quais se atenta contra os mais elementares valores éticos, humanos e de solidariedade, sendo por isso objecto de regulação desde o nível internacional ao local. Neste particular, atente-se à recente Lei de Bases da Habitação, nomeadamente ao disposto no seu artigo 13º, com a epígrafe “Protecção e Acompanhamento no Despejo”. A gravidade destes atropelos, designadamente ao serem perpetrados em circunstâncias de especial e pública vulnerabilidade, merecem uma reflexão alargada com vista à identificação de medidas e ao delineamento de estratégias que salvaguardem e garantam uma ocupação segura e estável.
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CURTAS 3
Queremos Respirar FILIPE NUNES F ILIPENUNES@JORNALMAPA.PT FOTOS ANDRÉ PAXIUTA1
M
áscaras. Há muito tempo, demasiado tempo. Não foi preciso nenhum coronavírus para as usar, pois há 12 anos que os cerca de 80 habitantes das Fortes em Ferreira do Alentejo vivem dias repetidamente descritos como insuportáveis. «Maus cheiros e fumos impregnados de substâncias gordurosas e partículas» provenientes das chaminés da fábrica, a menos de 100 metros das casas da aldeia, e que se colam à roupa, às paredes e aos pulmões. Trata-se da fábrica AZPO – Azeites de Portugal, do grupo espanhol Migasa, uma das três unidades de secagem de bagaço de azeitona no Baixo Alentejo que, junto com as fábricas da Casa Alta, perto
da aldeia de Odivelas, também em Ferreira do Alentejo, e a UCASUL, ao lado de Alvito, formam um triângulo de mal-estar, poluição e danos à saúde pública. Em Fortes a Agência Portuguesa do Ambiente, em junho de 2018, revelara uma concentração anómala (35 vezes o limite legal) de partículas finas responsáveis por doenças respiratórias e cardíacas. Com esse anúncio é suspensa a fábrica da AZPO, para logo retomar em outubro desse ano com expetativas criadas face a um investimento anunciado em melhorias técnicas de 1,2 milhões de euros. Expetativas que rapidamente se esfumaram. Mas o fumo, esse, continuou a deixar a sua fuligem na terra, na água e nas pessoas. Em maio de 2018, dezenas de queixas foram apresentadas junto do Ministério Público, considerando os indícios da prática do crime de poluição. Dois anos depois, no início de junho passado, os habitantes e a Associação Ambiental Amigos das Fortes
(AAAF) viram o Tribunal de Beja encerrar o assunto ao não dar provimento à ação cível interposta pelo Ministério Publico. Dias antes, a visita com marcação prévia da juíza à fábrica – nessa hora a funcionar perfeitamente –, sem parar para falar com os moradores, apenas terá acentuado o já crescente descrédito popular com as autoridades e o poder político. O problema das emissões poluentes da transformação do bagaço de azeitona (vendido como combustível e biomassa) aumenta, ano após ano, com a transformação sem controlo da paisagem alentejana pelo regadio do Alqueva, num imenso mar industrial de olivais intensivos e superintensivos. Em janeiro de 2020, o anúncio de um «colapso no sector» do azeite por não haver já espaço para colocar bagaço de azeitona produzido pelos lagares, apenas veio evidenciar, segundo uma reação à notícia da AAAF, «as fragilidades de desenvolvimento e exploração do Empreendimento
de Fins Múltiplos de Alqueva». Essas preocupações foram reiteradas em 16 de julho pela AAAF na Comissão de Agricultura e Mar, junto com o Movimento Alentejo Vivo e a Associação ZERO. Para a AAAF a aposta deve ser antes um «sector agrícola virado para os desafios do século xxi, modernizado e inovador, em que possa haver espaço para cadeias de produção ecológicas, multifuncionais e de proximidade». Para setembro aguarda-se um novo anúncio de «medidas» referentes à emissão de fumos das fábricas de bagaço, conforme comunicou o presidente da autarquia de Ferreira do Alentejo, depois de se ter reunido em 1 de agosto com a Ministra da Agricultura. No dia a dia da aldeia das Fortes, os relatos postados nas redes sociais dos moradores são os mesmos de há uma década. Em 17 de julho, Maria Joaquina Camacho narra-nos a sua manhã: «estava péssimo... Uma parte da aldeia e por cima estava intragável...
empesta tudo, em redor... Era uma neblina, com cheiro nauseabundo... De facto, o fumo é mais transparente... Eu não percebo... Mas também não é para perceber... Parece leve, mas não é... continua a passar baixo e a cair, mesmo em cima... Não sou técnica... mas todos nós sentimos... O efeito dos grandes lucros... O lixo... O lado negro, da economia... que ninguém está interessado em resolver...». Quando as cortinas de fumo se erguem, dizem mesmo: «Até nos tiram o sol... Tiram-nos o Sol, a Lua, as estrelas, a saúde, o ar respirável, tirando tudo [de] bem que um ser humano pode ter. Para nos colocar em cima toda a porcaria do mundo... entre o lixo, também a ganância [e] a mentira, outro lixo que consegue aliar-se aos outros para tornar o fedor maior.» 1 Fotografias do projecto documental Oil Dorado focado nas transformações da paisagem e nas problemáticas sociais e ambientais ligadas à expansão da olivicultura intensiva e super intensiva na região do Alentejo. facebook.com/apaxiuta | apaxiuta@gmail.com
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4 CURTAS
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ATENÇÃO
à DIREITA VLADIMIR
E
PORTUGAL NÃO É UM PAÍS
nquanto desconfinávamos (e se percebia que afinal pouco importa a biopolítica, que os canais de Veneza nunca tiveram golfinhos ou que os níveis de poluição voltaram rapidamente ao velho normal), o mundo continuou a girar e não se deu redenção pós-pandémica. Na brava terra lusitana, que há um ano ainda era estudada por ser terreno onde a extrema-direita e os populismos reacionários não singravam, as coisas também giraram. Um senhor deputado da República que já tinha mandado uma opositora que lhe fazia frente para «a terra dela», veio apresentar na primeira semana de maio uma proposta no parlamento de «abordagem e confinamento» especificamente dirigido às comunidades ciganas, o seu papão pessoal. No entanto, coisas bem mais graves se passavam do outro lado do Atlântico. Um polícia de apelido Chauvin, e de passado sombrio, foi filmado a asfixiar com toda a calma um cidadão negro. O pedido de George Floyd, «I can’t breathe», tornou-se bandeira e não poderá ser esquecido por quem acha que as «forças de segurança» têm sempre razão – e não deverá ser esquecido por quem coloca em dúvida essa asserção imperiosa. O assassinato de Floyd, a 25 de maio, em Mineápolis (EUA) deu a volta ao mundo e gerou um protesto de massas global de caráter antirracista como nunca se tinha visto. Numa semana, toda a opinião pública e a publicada é antirracista. Quando, logo a seguir, os mesmos protestos se viram contra símbolos (estátuas, toponímia) que pintalgam os Estados Unidos da América com as sombras da escravatura e do racismo institucional, algumas vozes começam a titubear. A 6 de junho, organizam-se sob o lema Black Lives Matter manifestações em cinco cidades portuguesas. A adesão surpreende e já não são os ativistas brancos e bem-intencionados do antirracismo a ocupar a linha da frente, é uma geração negra e portuguesa que toma a palavra e ocupa a rua, como já tinha acontecido após o assassinato, em Bragança, de Giovani Rodrigues, no final do ano de 2019. Lá no seu canto, André Claro Ventura revolve-se. Ele já tinha prometido que «sempre que a esquerda sair à rua para dizer que Portugal é um país racista, nós sairemos à rua com o dobro da força para mostrar que Portugal não é racista». E eis que a 27 de junho se dá, pela primeira vez (tirando as ações do PNR e da NOS contra isto e contra aquilo mais as mesquitas), uma saída orgulhosa e de cabeça levantada da gente que acha, que sabe, que sente que «Portugal não é racista». Foram mil pelo Terreiro do Paço e a dona Maria Vieira subiu ao palanque. Nesse mesmo dia, à noite, a RTP 2 entrevista no seu telejornal um académico que, num brilhante golpe de marketing livreiro, escreveu em três meses um pequeno livro que conta a história do Chega e do seu mentor (tem o lado positivo de lembrar com pormenores de onde vem e com quem andou na área social-democrata e na Distrital de Lisboa de um certo partido). Logo a seguir, sete dezenas de académicos lamentam numa carta aberta o espaço dado ao livro de Riccardo Marchi, o cientista político que se esquece de colocar aspas para melhor mergulhar o leitor na toada Chegófila. Estávamos assim quando, provavelmente entusiasmado com a ideia de que Portugal não é racista, um kota de Moscavide se desentende com um nigga. Nada corresponde às imagens mentais que possam surgir: o velhinho é atlético, anda de boné com pala, pergunta durante três dias pelo vizinho com quem se desentendeu por causa de um canídeo; o moço não é jovem das ganzas mas antes um ator de 39 anos, três filhos, que recuperou de um atropelamento quase mortal. Bruno Candé foi morto a 25 de julho, à hora de almoço, numa rua de Moscavide, com quatro tiros à queima-roupa, por um miserável que lhe gritou «volta para a senzala». André, Claro, Ventura teve o topete de no dia seguinte ir choramingar para o esgoto: «Acabem lá com essa ladainha habitual do racismo», voltando a garantir que Portugal não sei o quê, até porque a PSP também disse que não houve racismo. Fontes bem informadas garantem que foi a primeira vez que o Correio da Manhã titulou na primeira página a expressão «crime de ódio». Sucederam-se manifestações pela memória de Candé e outra pela memória do assassino, que à chegada à prisão se gabou assim: «No ultramar, matei muitos como ele.» A segunda manifestação do Chega já só tem trezentas pessoas. À parte isto, o eurodeputado e dois deputados do Pessoas-Animais-Natureza – conotados com a linha animalofascista do IRA – abandonam o partido, sem gerar um centésimo da atenção de uma outra deserção parlamentar nesta sessão legislativa. É neste contexto todo que emergem os verdadeiros, os únicos, os da Bayer, nazis cá do burgo: um grupúsculo denominado Nova Ordem de Avis (gente sabedora de história templária, esta) barra Resistência Nacional organiza a 8 de agosto uma parada mascarada à la KKK frente à sede do SOS Racismo e envia um ultimato a dez ativistas antirracistas (com três deputadas, incluindo Joacine Katar Moreira, que é desta terra e aqui ficará). Assim estamos, já não imunes coisa nenhuma. A continuar assim, vamos precisar de alargar esta coluna.
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CONFLITOS DA MINERAÇÃO 5
Minas: Endurecer a luta No que diz respeito à mineração, o «regresso à normalidade» confirmou os cenários mais negros acerca do que isso, no final de contas, significa. Uma normalidade que, na verdade, nunca foi interrompida. O avanço do processo de exploração mineira não parou sequer durante o estado de emergência e o desconfinamento serviu para desvendar uma realidade em que esse processo está já num patamar superior, principalmente no que diz respeito à Argemela, ainda que também em relação a Boticas e Montalegre. lítio». Uma verdade, no mínimo, falaciosa, uma vez que, depois de garantida a concessão de prospecção e com base nos resultados obtidos, as empresas podem requerer o aumento da área de concessão e acrescentar minerais que não estavam incluídos no contrato inicial. De qualquer forma, seja porque a pressão aumentou, seja por um surto repentino de eficiência, a verdade é que, logo no início de Junho, os contratos já apreciam no site da DGEG. «Não estamos a brincar» Sobre o sentido de oportunidade de se assinarem 16 contratos antes de se aprovar uma lei cujos critérios ambientais se consideravam obsoletos, a resposta é que «antes da publicação da nova legislação não existe vazio legal». Ou seja, é com base na lei em vigor – a mesma que supostamente é necessário alterar por ainda permitir demasiados impactos indesejáveis – que se assinam contratos em áreas onde se tem levantado uma enorme contestação relacionada exactamente com preocupações ecológicas. Soa, no mínimo, estranho. E justifica muitas interrogações. E o comportamento governamental não tem sido o mais tranquilizador para as populações.
«Os movimentos são constituídos por elementos da população, são a população, representam a população». JORNAL MAPA
C
TEÓFILO FAGUNDES TEOFILOFAGUNDES@JORNALMAPA.PT
om essa realidade, veio também uma atitude guerreira da parte do governo. Desde o início da pandemia que o governo tem utilizado a questão do lítio – principalmente do lítio, mas também de toda a mineração em geral – como uma «alavanca fundamental» para a recuperação da crise económica e social, que já cá anda, mas que se irá aprofundar bastante nos próximos tempos. Os movimentos de defesa dos vários territórios ameaçados pelas minas sabem, desde Março, que ao argumento económico se iria juntar em força o da transição energética e da descarbonização. Mais tarde, perceberam também que o Covid-19 serviria também para acrescentar o da «digitalização». O que talvez não estivessem à espera – ou talvez sim – era da rentrée de João Galamba, em Junho passado. Em entrevista, e apesar de admitir que a contestação não tem sido «agradável», acabou por considerar que não foi politicamente prejudicado e que «quando se tem confiança no trabalho que se está a fazer não nos podemos
deixar abalar por minudências». Os movimentos envolvidos na luta contra a mineração viram nisto uma provocação. Carlos Seixas, porta-voz do Movimento SOS Serra d’Arga mostra a indignação, que parece geral: «Toma-nos como se fôssemos apenas uns grupos que estão no Facebook, que não existem no terreno. Isso não é verdade. Os movimentos são constituídos por elementos da população, são a população, representam a população, tal como as câmaras municipais e as juntas de freguesia, e têm de ser ouvidos de uma vez por todas». Gato escondido com a cauda de fora Em 23 de Junho houve uma outra surpresa com um potencial ainda mais explosivo. Nesse dia, o jornal Público noticiava que «em vésperas de aprovar a anunciada regulamentação que vai apertar as condicionantes ambientais e dar mais poder aos municípios, a Direcção-Geral de Energia e Geologia [DGEG] assinou nove contratos de prospecção e sete de exploração a dar direitos aos promotores». E, de facto, logo no dia seguinte, as associações Montalegre Com Vida, Guardiões da Serra da Estrela e os movimentos SOS Serra d’Arga, Em Defesa da Serra da Peneda e do Soajo, Não às Minas – Montalegre,
ContraMineração Beira Serra, Defesa do Ambiente e Património do Alto Minho, Unidos em Defesa de Covas do Barroso, SOS Terras do Cávado e PNB – Povo e Natureza do Barroso enviaram um comunicado de imprensa onde exigiam a divulgação imediata dos contratos assinados e acusavam «o ministro do Ambiente, o secretário de Estado da Energia e a DGEG de não respeitarem as regras democráticas e actuarem à margem da lei». Os contratos – que, por lei, têm de ser publicados – não estavam consultáveis, porque o site da DGS estava a ser «actualizado» e os seus pormenores, nomeadamente quem eram as empresas envolvidas e a que minerais se referiam, só seriam disponibilizados «em meados de Julho ou Agosto». O porta-voz do Movimento SOS Serra d’Arga afirmou: «A lei não está a ser cumprida. Usar como argumento que o sítio na internet da DGEG está ser reestruturado, enfim, dá muito jeito, mas não pode servir de desculpa para não tornar públicos esses contratos». Se sobre os promotores nada se ficou a saber, sobre os minerais o gabinete de João Galamba achou por bem sublinhar que «nenhum destes 16 contratos, relativos a 2020, têm como substância o mineral
Levanta questões não apenas quanto aos critérios de protecção do ambiente, mas também quanto aos cenários políticos que evita. Uma das partes mais importantes da notícia do Público é exactamente a que refere que que a nova lei irá dar mais relevância aos municípios e aos movimentos cívicos, dando-lhes poder de veto e assento em comissões de acompanhamento. Assinar os contratos antes disso é um sinal inequívoco de que se pretende que a decisão seja o mais centralizada e não democrática possível. Um mero sinal, de facto, uma vez que esta nova legislação não inclui uma posição vinculativa das autarquias no caso dos concursos públicos, como o do lítio. A esse respeito, Carlos Seixas acrescentou que «o governo, o ministério do ambiente e a DGEG estão a comportar-se como desde o início deste processo. Estão a comportar-se de uma forma obscura, relegando as populações afetadas para segundo ou terceiro plano, ou seja, não tendo em conta o que a população deseja e as suas angústias em relação à mineração.» Talvez numa tentativa de emendar a mão, João Galamba aproveitou a presença de jornalistas no debate «O papel dos municípios na descarbonização», em que participou no dia 25 de Junho, no âmbito da 15.ª Semana Europeia da Energia Sustentável, para afirmar que «a lei está em aprovação, deve ser aprovada em Conselho de
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6 CONFLITOS DA MINERAÇÃO JORNAL MAPA
Ministros brevemente. Ela já está pronta e, como sempre dissemos, e como o senhor ministro tem dito, o concurso será lançado após a aprovação da lei». Com uma lei assim tão «pronta», como se justifica que apenas o «concurso público» para a exploração de lítio tenha de esperar por ela para ser lançado? Se, como diz o governo num «esclarecimento sobre contratos de atribuição de direitos de revelação e aproveitamento de depósitos minerais nos anos de 2019 e 2020» que lançou no mesmo dia, os contratos assinados vão ser submetidos a uma lei que ainda não existe, para quê, então, aprovar essa lei? Porquê assinar contratos relacionados com outros minerais (que, como vimos, se podem vir a expandir também para o lítio) mesmo antes dessa lei sair? O mesmo Carlos Seixas, falando sempre apenas em nome do movimento a que pertence, adiantou o caminho que se espera de quem, depois dum estado de emergência em que a febre mineira alastrou, se viu, neste «regresso à normalidade», tratado como «minudência» e apunhalado com 16 novos contratos assinados em regime de secretismo: «Já tínhamos percebido que ia ser um Verão quente. Agora, assinar contratos nas costas das populações e não os tornar públicos é o fim da picada. É inadmissível», acrescentando que «o governo tem de perceber que não estamos a brincar. Nós não estamos a brincar e, portanto, a partir de agora, estes movimentos vão endurecer a luta».
A lei em vigor – a mesma que se acha que é necessário alterar porque ainda permite demasiados impactos indesejáveis – é a lei com base na qual se assinam contratos em áreas onde se tem levantado uma enorme contestação relacionada exactamente com preocupações ecológicas. De volta à rua Perante o desaparecimento da contestação à mineração da agenda mediática e o escalar do discurso legitimador por parte do governo e da indústria, um grupo de pessoas, a título autónomo, considerou que os tempos estavam demasiado perigosos, que era urgente marcar uma posição pública, e decidiram organizar uma manifestação no Porto, para o dia 18 de Julho. A reacção dos vários movimentos foi tudo menos consensual: alguns sentiram-se postos de parte no processo, outros consideraram que o momento e/ou o local não eram os mais aconselháveis. Este ruído acabou por condicionar o número de pessoas presentes, tanto por falta de comparência concreta quanto de divulgação. Ainda assim, mais de cinquenta pessoas ousaram expor-se ao calor tórrido e à má disposição da polícia e percorreram ruidosamente – em parte graças aos Ritmos de Resistência, em parte graças a um dos elementos da manifestação que não se cansou de gritar palavras de ordem pelo megafone – o percurso entre os Clérigos e a Estação da Trindade, via Avenida dos Aliados. Para depois do final ficou marcada, no espaço Maldatesta, uma espécie de continuação da manifestação, com um convívio com pessoas das zonas potencialmente afectadas,
Manifestação contra as minas, dia 18 de Julho, no Porto
ASSOCIAÇÃO MONTALEGRE COM VIDA
conversa e projecção dum documentário sobre a luta anti-mineração na fronteira entre o Peru e o Equador. No dia 29 de Julho, várias pessoas esperaram a secretária de Estado da Valorização do Interior, Isabel Ferreira, na zona do antigo centro de formação do Barroso, onde se pretende construir um espaço de dinamização do Património Agrícola Mundial. A mina a céu aberto prevista para a área, situa-se a poucos quilómetros deste local. Num edifício ruínas foi colocada uma faixa com a mensagem «Não à mina, sim à vida», a mesma frase que se podia ver inscrita em outras tarjas e cartazes que os manifestantes seguravam na mão. Para além das faixas, os manifestantes ofereceram também um cabaz a Isabel Ferreira com os produtos que existem no território e que consideram ser a «sua verdadeira riqueza», como a água de Carvalhelhos, o pão de centeio, mel, milho, batata e fumeiro. «Representam a nossa verdadeira identidade. Somos Património Agrícola Mundial e queremos continuar a ser», salientou Armando Pinto, da Associação Montalegre com Vida, que frisou ainda que a distinção de Património Agrícola Mundial, atribuída a Montalegre e Boticas em 2018 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), «não é compatível» com a mina do Romano (Sepeda), que a empresa Lusorecursos tem prevista para a freguesia que agrega as aldeias de Morgade, Carvalhais e Rebordelo. Pelo discurso da governante, quase se poderia dizer que estava do lado dos manifestantes, quando insistiu na mensagem «de valorização do território com base em recursos endógenos que possam ser explorados de forma sustentável e em parceria com os actores relevantes do território. É preciso pensar a longo prazo o caminho
que queremos seguir». Uma aparente incoerência ou apenas a habitual capacidade dos políticos profissionais dizerem tudo e nada sem se comprometerem. Uma técnica que se pode ver também na Serra d’Arga: a 7 de Agosto, o Turismo de Portugal assinou um contrato com as Câmaras de Viana do Castelo, Caminha e Ponte de Lima para comparticipar o projetco «Vilas e Aldeias Equestres entre Arga e Lima», que prevê a valorização turística, cultural e patrimonial da Serra d’Arga, com a criação de percursos para passeios equestres e que parece incompatível com a exploração de lítio naquela zona. Não foi só a nível de mobilização de rua que o «desconfinamento» se fez notar. As sessões de sensibilização e de informação voltaram a ser pensadas como possíveis e organizadas em conformidade. O mesmo Movimento SOS Serra d’Arga participou, no dia 13 de Agosto, na Galiza, numa conversa para apresentação do problema e da luta que levam a cabo, numa tentativa de não limitar o combate às fronteiras políticas que separam pessoas mas que a natureza não conhece. A 15 de Agosto, em Morgade, a Associação Montalegre Com Vida organizou uma vigília «Não às Minas, Sim à Vida», com oferta de caldo verde e pão, para que se passeasse pelas zonas ameaçadas, se plantassem árvores, se merendasse em conjunto e se conversasse. Mas ainda pelos gabinetes Mais ou menos às escondidas e com um prazo para discussão pública ridiculamente pequeno, foi lançado em meados de Julho o Projecto de Decreto-Lei nº 341/ XII/2020 que procede à regulamentação da Lei de bases do regime jurídico da revelação e do aproveitamento dos recursos
geológicos para os depósitos minerais. Ou seja, a concretização das generalidades da chamada Lei das minas (Lei 54/2015, de 22 de junho). O Movimento SOS Serra d’Arga fez uma análise aprofundada ao documento e rebateu-o quase artigo a artigo. Carlos Seixas, porta-voz do movimento informa-nos que apresentaram uma pronúncia formal de 32 páginas, onde se «rebate, ponto por ponto, uma série de aspectos que são absolutamente inqualificáveis». «Nem consigo adjetivar como deve ser. O legislador esqueceu-se de legislar, aparentemente, para fazer um fato à medida das empresas mineiras. Parece que o legislador quis pôr toda a carne no assador, para ver se passa alguma coisa. Nós respondemos ponto por ponto, para não deixar passar coisa nenhuma».
«Já tínhamos percebido que ia ser um Verão quente. Agora, assinar contratos nas costas das populações e não os tornar públicos é o fim da picada. É inadmissível». A grande questão levantada por várias outras entidades (nomeadamente as autarquias afectadas e a Associação ambientalista Zero) é a de que este decreto-lei abre a porta até à utilização de solos que estejam dentro de áreas protegidas e que, acima de tudo, retira qualquer esperança de participação das populações nas decisões sobre os seus futuros, mesmo a nível das autarquias, as quais, no caso do lítio, ficam completamente desprovidas de poder sobre a decisão de minerar ou não. O Movimento SOS Serra d’Arga acrescenta a estas críticas o facto de os direitos para as empresas mineiras estarem perfeitamente definidos, ao passo que as suas obrigações ficam pelo campo das possibilidades. «Ao longo de todo o projecto de diploma a Avaliação de Impacto Ambiental constitui apenas uma possibilidade e não uma obrigatoriedade», ou é «ostensivamente utilizado o verbo poder em vez do verbo dever, o que nos leva a concluir que a presente regulamentação não mais representa do que uma máscara legal que permite de forma ostensiva a violação de todos os normativos em matéria ambiental», são coisas que se podem ler na contestação que o movimento enviou no âmbito da consulta pública do decreto-lei.
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RADIAÇÕES 7
«Somos como os lagartos» Comunidade, luta e mineração do urânio na Urgeiriça Como um vírus, a radioatividade espalhou-se por todo o mundo do início do século XX. Um dos primeiros focos globais da pandemia nuclear foi o norte de Portugal e os seus jazigos de urânio. Esta é uma das muitas histórias por trás da invisibilidade das radiações e das suas consequências para a saúde.
JAUME VALENTINES-ÁLVAREZ, JAUME SASTRE-JUAN, CELIA MIRALLES, FREDERICO LOBO ILUSTRAÇÃO LAURA MARQUES
É
um dos últimos dias cinzentos de Inverno no interior centro de Portugal e, por detrás das amendoeiras em flor nos pátios dos arredores da vila, vê-se uma suave colina a ponto de voltar a pintar-se de verde. «Não é uma colina», diz-nos Fernando, «é a escombreira de resíduos radioativos da antiga mina de urânio da Urgeiriça». A escombreira da Barragem Velha tem um volume equivalente a quatrocentas Torres de Belém radioativas, com materiais provenientes dos poços da mina e da fábrica de tratamento químico, cobertos por argila, pedras, areia, geotêxtil e terra vegetal. Nenhuma árvore cresce ali, nenhuma ovelha se alimenta do seu pasto. Apenas se avistam erguidos os instrumentos de monitorização química e radiológica. As obras de «remediação ambiental» começaram em 2006, e a extração dos
materiais radioactivos que a com- extracção intensiva de urânio na põem, há um século atrás, muitos Urgeiriça, numa altura em que os governos inglês e norte-ameanos antes que se soubesse como ricano cobiçavam o monopólio produzir energia nuclear ou uma detonação atómica. internacional deste mineral, tanto De facto, as entranhas da para fins bélicos como civis, sem Urgeiriça começaram a ser qualquer reparo em travar acorexploradas em 1913, através da dos comerciais com ditaduras de empresa Société Urane-Radium. orientação fascista que tinham colaborado com as Potências Concentrados dos minérios do do Eixo. No final da década de interior português acabaram nos flamantes laboratórios parisien- 1960, a ditadura tomou as rédeas ses de Marie Skłodowska Curie. da CPR através da sua Junta de A famosa física cultivou uma Energia Nuclear. Um dos objecestreita relação com a indústria tivos centrais era utilizar o «urâflorescente do rádio e morreu às nio nacional» como fonte do seu programa nuclear, que não tinha mãos da radioatividade, numa altura em que ainda não se conhe- ainda arrancado, ao contrário do ciam bem os efeitos das radiações que acontecia na ditadura vizinha ionizantes e do gás rádon. e na maioria dos países europeus. No alto de um depósito de A Revolução de Abril de 1974 água no meio da vila ainda se não veio alterar substancialmente este programa nuclear. podem ler as letras CPR, a sigla da Rapidamente recomeçaram os Companhia Portuguesa do Rádio trabalhos para construir a pri(de capital inglês), que comprou a concessão mineira nos iní- meira central nuclear em Ferrel, cios da década de 1930. Após a II e as minas da Urgeiriça contiGuerra Mundial, Portugal ganhou nuaram a espalhar essa nascente um lugar na geopolítica da Guerra tóxica na bacia do Rio Mondego Fria pelas suas jazidas em terri- (os sistemas de extracção por lixiviação com águas ácidas tiveram tório ibérico e nas suas colónias (especialmente em Moçambique). início nessa década). A unidade Integrou-se rapidamente na NATO industrial de tratamento quíe na Agência Internacional de mico não parou de emitir um pó Energia Atómica como mem- radioativo que cobria os fatosbro fundador. Foram tempos de -macaco, as roupas, as casas, as
O nuclear tem outros riscos banais, quotidianos, lentos e invisíveis, associados à extracção de minérios radioativos, em espaços geopolíticos centrais mas fora do nosso campo de atenção. «A radiação não se vê, não se cheira, não se ouve»
hortas, os ventos. Os testemunhos das mulheres e homens que ainda se podem ouvir na vila são assustadores: «Nós na Urgeiriça tínhamos tudo: não sabíamos o mal que esse “tudo” nos trazia», «[Os trabalhadores] vinham para casa com a roupa cheia de pó», «Quando arrancaram a banheira estavam lá à vista dois pedregulhos de urânio», «Ó tia, tu não me arranjas uma pedra de urânio?», «Os materiais para as fundações dos edifícios foram trazidos das escombreira», «Não se falava dos perigos da radioatividade», «Éramos mesmo muito ignorantes»... É comum ouvir-se de quem trabalhou nas minas a afirmação de que nunca ninguém se preocupou em esclarecer se o urânio era ou não prejudicial à saúde, e que nem as direções das minas alguma vez levaram a cabo qualquer acção informativa ou pedagógica sobre os perigos da radioatividade. Daí não ser surpreendente que em muitas casas existia uma pedrinha do minério, «coisa bonita a servir de pisa-papéis»1. A vila dorme sobre seis poços e 19 andares com meio quilómetro de profundidade. Quando pensamos nos riscos nucleares, pensamos em gigantes detonações atómicas no Pacífico
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8 RADIAÇÕES
Dinossáuros em frente da escombreira radioactiva da Urgeiriça
O povo da Urgeiriça permanece em luta não só pela sua saúde, pelas suas habitações e pelo seu ambiente (...) Nos últimos anos foi possível vê-lo em diferentes lutas e eventos por um mundo sem nucleares e na apocalíptica zona 0 de Chernóbyl. No entanto, o nuclear tem outros riscos banais, quotidianos, lentos e invisíveis, associados à extracção de minérios radioativos, em espaços geopolíticos centrais mas fora do nosso campo de atenção. «A radiação
A
não se vê, não se cheira, não se ouve»: estas palavras de António Minhoto, presidente da Associação dos ex-Trabalhadores das Minas de Urânio (ATMU), reverberam na nossa cabeça quando passeamos pelas ruas da Urgeiriça, por entre as casas desabitadas dos ex-trabalhadores, pela solidão do novo parque infantil em redor do gigante cavalete do poço de Santa Bárbara, pelo jardim-escola onde se encontraram pequenas pedras de urânio, pelo caminho de lama que nos leva às barragens de águas poluídas. Cai-me o isqueiro na lama. Apanho-o? Deixo-o. Não há gel desinfetante nem máscaras que nos protejam deste desassossego, desta incerteza, desta radiação. Fernando Paulo é membro da ATMU e mostra-nos a sua casa, onde não pode morar: os índices de contaminação são demasiado altos para dormir sob o seu tecto. Muitas das habitações foram construídas com pedras da mina e sobre escombros onde se podia entrever o amarelo característico do mineral nuclear. Muitas mulheres que trabalhavam em
luta dos ex-trabalhadores das minas teve um papel fundamental na visibilização dos riscos da radioatividade em Portugal. Esta questão foi debatida numa mesa redonda celebrada em Junho de 2019 na Universidade de Lisboa, que juntou membros da ATMU com historiadores ambientais, historiadoras da ciência e cientistas. O debate integrou o ciclo «Ciência, Tecnologia e Medicina nas praças», que tem como objectivo reflectir sobre os modos como os movimentos sociais, em diálogo e confrontação com a academia, produzem
Silenciamos o passado, enterramos o futuro
«Nós na Urgeiriça tínhamos tudo: não sabíamos o mal que esse “tudo” nos trazia»
chegou até aos parlamentos por- Não! e à Plataforma Stop Urânio, tuguês e europeu. Em 2016, con- contra a exploração a céu aberto seguiram finalmente que uma de algumas das maiores jazidas de Europa; em Madrid lei estabelecesse o direito a uma compensação por morte emer- e Lisboa, assistindo às reuniões do Movimento Ibérico Antigente de doença profissional dos Nuclear; e, claro, na Urgeiriça, trabalhadores. Uma vitória que não está isenta de uma dor irre- organizando convívios, apresenmediável e de uma herança tóxica tações de livros, o International de milhares de anos: «30 000 Uranium Film Festival, um museu euros pelo meu pai? E somos seis e outras actividades autogeriirmãos: por 5 000 euros mais me casa também padeceram das das para que a memória mineira suas consequências e morreram valeria ter o meu pai vivo», diz- sobreviva mesmo à contaminade cancro. Há apenas algumas -nos com raiva um dos membros ção milenária das paisagens... Tal semanas atrás, e cumprindo as mais jovens da ATMU. como alguns dos sobreviventes medidas de segurança sanitária O povo da Urgeiriça perma- que retratou Svetlana Alexievich nece em luta não só pela sua pela COVID-19 estabelecidas pela em Vozes de Chernóbil, não quesaúde, pelas suas habitações Direção Geral da Saúde, a ATMU rem deixar de habitar estas paiorganizou uma vigília de protesto e pelo seu ambiente (apesar dos sagens, por serem o berço da sua contra o adiamento da recupera- 50 milhões de euros gastos em vida, amor, comunidade e luta. ção ambiental das habitações. «reparação ambiental» em deze- «Somos como os lagartos», ouveDurante décadas e décadas, nas de minas, ainda permane- -se na Urgeiriça, «cortam-lhes à questão da invisibilidade tóxica cem 20 minas com elevado risco o rabo e este volta a nascer». de toxicidade). Nos últimos anos uniu-se o silêncio mediático e político. Mas no início de século foi possível vê-lo em diferentes Uma versão deste artigo foi publicada na lutas e eventos por um mundo XXI este silêncio quebrou-se, e os revista Silence, 489 (2020): revuesilence.net. trabalhadores, ex-trabalhadores sem nucleares: em Cáceres, sob e as famílias da Urgeiriça come- faixas pretas reclamando o encer- NOTAS 1 Veiga, Carlos Jorge Mota. A vida dos trabalhaçaram a reclamar a responsabili- ramento da central nuclear de dores do Urânio ‘Trabalho Ruim’. Urgeiriça, ATMU, Almaraz; em Nisa e Salamanca, Garcia, Liliana. Para além do fim das minas de dade estatal das consequências urânio em Portugal, Urgeiriça, ATMU, 2019 mostrando a sua solidariedade da radioatividade para a saúde ao Movimento Urânio, em Nisa e para o ambiente, uma luta que
e questionam conhecimentos científicos de temas como a transexualidade, os organismos geneticamente modificados ou as tecnologias de controlo do movimento animal e humano. Ao longo da discussão tornou-se manifesto o papel que tiveram os membros da ATMU (muitos deles apenas com o ensino básico) na construcção do saber científico. Em primeiro lugar, explicou António Minhoto, porque o interesse de algumas instituições científicas em estudar os efeitos patológicos da radioatividade na Urgeiriça foi, em boa medida, resultado das mobilizações da comunidade mineira. E, em segundo lugar, porque
sem o conhecimento vivencial das condições de trabalho e de habitação das pessoas afectadas teria sido muito mais difícil demonstrar as relações entre as doenças e a radioatividade. No entanto, a colaboração entre mineiros e peritos não esteve isenta de tensões. Orciano Pereira explicou como, num primeiro momento, os trabalhadores não foram informados dos riscos da radioatividade por parte de cientistas, médicos e engenheiros com quem interactuavam (alguns deles também vítimas mortais da extracção de urânio) e que a sua consciencialização dos riscos que corriam foi através de leituras, debates e da reflexão sobre
as suas próprias experiências. Orciano relatou ainda como se distribuíram dosímetros sem a informação necessária para entender o significado das suas medidas, e como alguns médicos e técnicos se escudaram na falta de estudos científicos para negar as relações de causalidade entre o trabalho mineiro e lesões, como uma dor na sua mão esquerda, advinda da repetida manipulação de bidões de urânio. As comunidades mineiras procuraram (e após anos de luta acabaram por encontrar) uma verdade científica que não escondesse a verdade que levavam gravada na própria pele, assim como na sua memória comunitária.
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SEM-ABRIGO 9
A revolução que vai haver não é de cravos nem de rosas, é de sem-abrigo O 15 de Junho de 2020 ficou marcado pela primeira concentração organizada por pessoas em situação de sem-abrigo em Portugal. Nesse dia, entre as 10h da manhã e as 15h da tarde, cerca de 50 pessoas manifestaram-se em frente à Assembleia da República, pela sua dignidade. CATARINA LEAL CATARINALEAL@JORNALMAPA.PT GUILHERME LUZ GUILUZ@JORNALMAPA.PT FOTOS CATARINA LEAL E NUNO RODRIGUES
A
ideia da concentração partiu de António, que vivia, até há bem pouco tempo, numa rua da freguesia de Arroios: «A ideia de organizar a manifestação saiu daqui, da rua. Estava a dormir na rua e, numa madrugada, andei a pensar, a pensar, que alguma coisa devia ser feita, que, até hoje em dia, nada foi feito pelos sem-abrigo. » O manifesto que acompanhou o apelo à participação na concentração, intitulado «Somos todos invisíveis», fazia também referência ao despejo do projecto da Seara, um espaço ocupado onde funcionou, durante cerca de um mês, um centro de apoio mútuo diurno, criado para apoiar pessoas em situação de pobreza ou precariedade. «Senti-me revoltado com o facto de ter perdido o local onde podia sentar-me para comer, tomar banho, lavar e secar a roupa e conviver. Fiz um apelo a todos os sem abrigo que estavam em frente à cantina [da associação Recreativa dos Anjos]. Todos mostraram apoio. » Foi assim que começou a iniciativa. Nos dias que antecederam a manifestação, António e outras pessoas que se juntaram à organização da iniciativa estiveram a distribuir panfletos por várias zonas da cidade de Lisboa – do Intendente a Santa Apolónia – para apelar à participação de mais pessoas na concentração. No panfleto, podia ler-se que a manifestação foi organizada sem sindicatos, partidos ou associações: «manifestamo-nos pela primeira vez e sem ninguém a falar por nós». E, mais à frente, apelam à presença de pessoas desempregadas e em dificuldades, para que «venham apoiar os sem-abrigo». No próprio dia da concentração, a partir das 10h, juntou-se meia centena de pessoas em São Bento. «Queremos soluções, não promessas», «Queremos casa e saúde», «Abram as casas para os sem-abrigo» foram algumas das frases dos cartazes que António e outros seus conhecidos afixaram nessa manhã nas grades que se encontram em frente à escadaria da Assembleia da República. Durante o dia, foi organizado um palco improvisado, com um microfone que foi rodando por diferentes pessoas que iam dando conta da sua condição e da sua luta. Entre os discursos proferidos, a questão da «dignidade» e do «acesso a habitação» pareceram ser as mais evocadas. Muitos das pessoas tiveram necessidade de lembrar que não são números. «Nós só somos pessoas quando há eleições e quando é natal», diz Sara, uma das manifestantes. «Precisamos de um teto. Todos os meses as mulheres têm a menstruação e não há apoio para nada, nem sequer para médicos. As pessoas passam por nós e nós somos invisíveis». Para além de sentirem um certo desprezo quotidiano, apontam ainda que persiste
passar a perna a ninguém, a gente está simuma grande falta de apoios por parte de instituições públicas e uma incompreen- plesmente a passar uma fase séria de gransão por parte de alguns profissionais. des dificuldades. » As soluções de habitação provisória ofeMiguel, um dos manifestantes, dirige-se aos assistentes sociais: «Pessoas que tra- recidas pela Câmara Municipal de Lisboa balham neste ramo – assistentes sociais – (CML) ou pela Santa Casa da Misericóré muito importante saberem ouvir as pes- dia revelam-se insuficientes. No manifesto é possível ler: «Querem mandarsoas. É muito importante tentarem saber de tudo o que a pessoa enfrentou na vida. -nos para albergues e não queremos. Não Não é pensar que a gente quer tentar passar têm condições (têm percevejos, porcaa perna a alguém. A gente não está a tentar ria, quartos pequenos com 18 pessoas), as
pessoas roubam-se umas às outras. Cada pessoa tem um número, ali o nome não existe. Quando se entra para ali, é como uma prisão: não és mais que um número. É proibido tirar fotografias lá dentro. Se tirarmos, vamos para a rua. Se nos queixarmos, vamos 3 dias para a rua. (…) Nestes albergues as pessoas vivem em quartos 3x4 metros com várias pessoas. » Carlos, estudante de enfermagem no Brasil, chegou a Portugal há poucos meses
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10 SEM-ABRIGO
Cantina da Recreativa dos Anjos
«Queremos soluções, não promessas», «Queremos casa e saúde», «Abram as casas para os sem-abrigo» foram algumas das frases dos cartazes que António e outros seus conhecidos afixaram nessa manhã nas grades que se encontram em frente à escadaria da Assembleia da República. e perdeu o trabalho por conta da pandemia covid-19. Sem dinheiro para alugar um espaço, esteve a ocupar temporariamente o edifício ao lado do projecto diurno da Seara e, actualmente, tem estado alojado em albergues temporários, mas considera este tipo de soluções insuficientes: «Existem inúmeras casas da Santa Casa e da CML onde as pessoas poderiam ser alojadas e ter a sua dignidade devolvida. Sabemos também que Portugal recebe milhões da Comunidade Europeia, que vão para a Santa Casa. Esse valor, vamos dizer, está sendo mal administrado. As pessoas precisam de moradias com qualidade. As pessoas precisam de ter uma noite de sono de qualidade. Não é um espaço como uma pousada da juventude que vai devolver para as pessoas o que elas precisam. Elas precisam de ter a casa delas, o direito de elas entrarem e saírem à hora que elas quiserem, o direito de elas tomarem um banho, de elas se vestirem da forma que querem, o direito à sua privacidade. » De acordo com Carlos, as soluções de albergues acabam por ser «cadeias em regime
aberto. Você está preso em regime aberto. Se você tem liberdade para sair de tal hora a tal hora, então é uma cadeia. » Poucos dias depois da concentração pela dignidade dos sem-abrigo, António foi igualmente alojado num albergue temporário, mas continua solidário com todas as pessoas que ainda moram na rua. Em entrevista ao jornal MAPA, afirmou: «Deveríamos tirar estas pessoas da rua, não haver estas misérias. Cada vez se vê mais gente na rua e mais gente sem nada. Casais e casais… se estiveres acordado de madrugada na rua vês pessoas a irem buscar cartões para fazer a sua cama. Chega a polícia municipal de Lisboa, a mando do presidente da Câmara de Lisboa, levam as coisas todas, mesmos das pessoas sem-abrigo. Depois as pessoas, para dormir, têm de andar todos os dias a arranjar uma cama. Ou têm de andar a mudar de sítio, de noite para noite, ou têm de dormir em várias partes do país. Não pode ser isto. A gente precisa, todos nós, de ter uma casa, um quarto, uma vida, para a gente sentir-se bem também». No Plano Municipal para a pessoa em situação de sem abrigo de 2019-2023, estão orçamentados cerca de 14 milhões para o cumprimento dos objectivos previstos. António pergunta-se sobre o destino destas verbas: «Quando eu fui para fazer a manifestação, eu fui para lá, mas não fui só por mim. Eu pergunto, onde é que está o apoio da União Europeia ou dos nossos presidentes, das nossas políticas, para apoiar os sem-abrigo? Não há apoio nenhum. Não há. Todos os dias eu vejo mais gente vir aqui [à cantina solidária da Recreativa dos Anjos]. Todos os dias, gente diferente. Chega a esta hora já nem há comer. As pessoas estão a fazer contas para 200 pessoas e aparecem 300. Já não dá para dar para todos». A cantina a que António se refere tem funcionado desde finais de Março, no Regueirão dos Anjos, em Lisboa. Tem estado aberta diariamente a partir das 13h e distribui cerca de 200 refeições gratuitas. Do grupo
«Todos os dias eu vejo mais gente vir aqui [à cantina solidária da Recreativa dos Anjos]. Todos os dias, gente diferente. Chega a esta hora já nem há comer. As pessoas estão a fazer contas para 200 pessoas e aparecem 300. Já não dá para dar para todos.» de pessoas que se organiza para, voluntariamente, cozinhar estes almoços, fazem parte José (nome fictício) e Maria. José chega todos os dias pontualmente pelas 9h30 à associação Recreativa dos Anjos. Percorre cerca de 3 Kms a pé para ir do albergue onde mora para a cantina, para participar no processo de confecção e distribuição da comida. Começou por ir buscar refeições, mas rapidamente passou a fazer parte dos turnos e da organização da cantina. Foi também à concentração, sobre a qual discorre: «Todas as pessoas deviam ter direito a casa. Foi a primeira vez que fui a uma manifestação assim. Não sei se fez ou não pressão política, mas acho que não foi em vão. Gostava de ir a uma próxima [manifestação]. No futuro gostava que todas as pessoas tivessem as mesmas oportunidades». Maria viveu largos anos no Alentejo e no Algarve, até chegar à capital. Tal como Carlos, ocupou com o seu companheiro uma das casas devolutas do quarteirão onde se encontrava o centro Seara. Depois do despejo do edifício, o casal foi, primeiramente, realojado pela CML num pavilhão desportivo e, neste momento, encontra-se numa pousada de juventude. Sobre a manifestação, Maria conclui: «Eu acho que
a manifestação correu bem, porque foi uma mais-valia para a gente, para a habitação e o bem-estar das pessoas, dos sem-abrigos, para a gente ter uma casa, um quarto. Os direitos que acho que estão em falta são: trabalho, habitação e dinheiro. » E conclui: «Como é que eu gostava que fosse o futuro? Muita paz, nada de vírus, habitação para todas as pessoas, para todo o mundo, trabalho para todo o mundo e dinheiro também para todo o mundo. Acho que vai haver outra manifestação». No rescaldo da concentração de dia 15 de Junho, Carlos defende a importância de organizar este tipo de acções: «É super necessário a gente fazer esse tipo de movimento para lembrar a sociedade que todos os sistemas que nós implantámos nesse mundo e na sociedade sempre excluem algumas pessoas. E é sempre necessário esse grito, o grito de essas pessoas dizerem que esse sistema é nojento, é sem escrúpulos, é um sistema que não é igualitário para todo o mundo, é igualitário só para quem mais tem, e aqueles que não têm tanto sofrem com essa desigualdade social. » Carlos enfatiza ainda: «Convém lembrar que foi a primeira, a primeira manifestação dos sem-abrigo aqui em Portugal. Foi um grito enorme. Para mim foi de uma enorme emoção estar ali e estar junto, gritar junto de que a gente precisa sim de moradia, de lugar digno»! Perante a pergunta «Como gostarias que fosse o futuro?», Carlos contrapôs a questão e diz: «Acho que a expressão seria essa: Como é que seria para a gente foder com esse sistema? Para esse sistema abrir os ouvidos e ouvir o grito que essa minoria tem para falar? É uma batalha de anos dessas pessoas»! António, morando já num albergue temporário, continua a deslocar-se todos dias para a frente da Recreativa dos Anjos e não baixa os braços: «Agora brevemente queremos organizar outra manifestação, talvez no final de Agosto, princípio de Setembro, mas já não vai ser na Assembleia da República: vai ser na presidência da Câmara, ou em Belém».
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TESTEMUNHOS 11
“A nossa luta é universal, porque a nossa dor é universal” Um conjunto de entrevistas a quem resiste ao racismo no dia a dia
FRANCISCO COLAÇO PEDRO FRANCISCOCOLACOPEDRO@GMAIL.COM MARGARIDA LIMA M.LIMA@JORNALMAPA.PT GARRAS GARRAS@JORNALMAPA.PT
A
25 de maio, vimos George Floyd ser sufocado até à morte pela polícia nos EUA. Vimos a revolta tomar as ruas e escutámos o grito «Black Lives Matter» ressoar mundo fora. Dois meses depois, a um oceano de distância, a mesma mágoa, a mesma raiva por um racismo que mata: um homem dispara balas e insultos racistas, e Bruno Candé é assassinado em plena Avenida de Moscavide. Entre as duas mortes, o jornal MAPA pediu a várias companheiras para partilharem as suas visões e emoções sobre as recentes marés de revolta, a atenção crescente dada à extrema-direita populista, e o racismo estrutural que vivem no quotidiano. Pessoas que, no ano em que se completam 25 anos do assassinato de Alcindo Monteiro no centro de Lisboa, já clamaram justiça pelo espancamento de Cláudia
Simões na Amadora e o assassinato de Luís Giovani em Bragança. Que não podiam adivinhar – ou pareciam adivinhar – como, dias após partilharem estas palavras, sairiam à rua por mais um ser humano assassinado por ser negro. Pessoas que, pela arte, pelo associativismo, pela investigação académica – e pela luta do dia-a-dia – dão vida ao movimento antirracista em Portugal e constroem um futuro de justiça e paz. Como viveste o assassinato de George Floyd? Ulício Fortes Cardoso: Para mim foi um choque. Assistir àquilo é como um recuo no tempo, uma espécie de vislumbre de um linchamento. Vimos uma força a exercer pressão, asfixiando um ser humano sem ceder mesmo perante visível angústia e seu desfalecimento progressivo. Podia ser evitado mas foi levado até ao limite e é exatamente isso que nos revolta. Quando conversei sobre ele pela primeira vez, chorei compulsivamente e vi-me mergulhado num sentimento de revolta. Big Papo Reto: Vivi cada momento como se fosse eu... Pois não está longe de nossa realidade. Já fui humilhado por polícias.
Lolo Arziki: Foi um golpe. Foi como se tivesse dois pés no meu pescoço e eu a pedir para respirar. Nem sei o que é isso, mas o nosso corpo sente. Nós que fazemos esse trabalho coletivo antirracista, por mais que saibamos que temos a nossa individualidade, sentimos o nosso corpo como coletivo. E o que dói no George, o que dói na família dele, dói em nós. É uma perda para nós. É um sentimento de impotência. Em fevereiro estávamos em Portugal a gritar «Giovani presente!», estamos meses depois a pedir justiça por George Floyd. A nossa luta é universal e a nossa dor também. A nossa luta só é universal porque a nossa dor é universal. Marcos Varela: Vi a morte deste irmão como algo repugnante. Nenhum ser humano devia ser tratado desta forma. Vimos as notícias todos os dias, vemos como os polícias tratam as pessoas. Os polícias deveriam ter um perfil adequado ao serviço que prestam à comunidade. Ulício: Para a família do Floyd creio que pode ter sido um trauma imensurável, principalmente para as crianças. E são elas, as crianças, que farão a pergunta mais básica: «Porquê?» Não havendo resposta a esta pergunta, torna-se evidente que é na
base onde reside o problema, e se trata de segurança. Isso revela os pilares da nossa relação com o Estado, a instituição que detém o direito do uso da violência. Lolo: Infelizmente não foi nada que me surpreendesse, tendo conhecimento desse sistema racista e da forte presença policial a favor da opressão da comunidade negra nos EUA, Brasil e pela Europa. Espero que chegue o dia em que me comece a surpreender – ou melhor, o dia em que essas coisas não aconteçam mais. Maria Fernandes: Tal como muitas outras pessoas negras, africanas e afrodescendentes em Portugal, senti a necessidade de sair à rua manifestar contra o racismo. O George Floyd foi a última vítima, mas nos EUA existem assassinatos constantes de afro-americanos pela polícia. É importante perceber que essa violência é histórica, estrutural e cíclica, de um sistema que se adapta mas nunca muda. Com o fim da escravatura surge outra forma de supressão, como as leis de Jim Crow, o encarceramento em massa, e por aí adiante, com o objetivo principal de classificar a comunidade afro como inferior. Marcus Veiga: À semelhança da grande maioria que sente no osso este flagelo, vivi esta situação com grande angústia e revolta.
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12 TESTEMUNHOS
Maria Fernandes, da FEMAFRO - Associação de Mulheres Negras, Africanas e Afrodescendentes em Portugal.
Entretanto surgem todos os dias espancamentos e abusos pela autoridade, assim como o avanço de ideias racistas e extremistas. É preocupante. O que antes era uma opinião reservada aos convictos racistas, este veneno está agora cada vez mais disseminado, no zé povinho, no vizinho, no amigo que conhecias desde pequeno, no teu patrão e até nos teus familiares. São sinais dos novos tempos, com cada vez mais campanhas políticas e populistas disfarçadas de boas intenções em prol da «ordem social», mais espaço para estas ideias tóxicas andarem à baila camufladas de justiça social. E não são sinais dos novos tempos, porque estas ações sempre estiverem presentes em todo o lado, mas à margem do conhecimento público. O cadastro de mortes pela polícia e extrema-direita em Portugal está bastante encardido há largos anos! Execuções de vítimas como o Alcindo, Angoi, Corvo, Kuku, Snake, entre outros tantos, ocorreram sendo a maioria arquivada. O movimento antirracista continuará ativo a apontar estas situações. O que mudou? Uma morte em direto vale sempre mais que mil relatos, por isso a opinião pública poderá desempenhar o seu papel. E como vês todo esse movimento coletivo que se gerou depois? Marcos: Foi um grito de revolta pelo mundo todo. Pois é algo muito comum, a violência que os polícias exercem sobre a sua comunidade. Este era o momento para combater essas injustiças que vemos diariamente. E as redes sociais têm tido um papel fundamental. Aqueles que não têm voz tiveram a oportunidade de falar sobre o assunto, levando o tema para dentro das suas casas. Muitos descobrimos amigos e familiares preconceituosos, e abre-se uma janela para se falar sobre o assunto que é tabu. Maria: Ouviu-se de várias partes a palavra «esperar», «ainda não», «existe uma pandemia». Mas a espera é na maioria das vezes sinónimo de nunca. Demasiadas vezes, o que deixou de aparecer nas notícias deixou de merecer justiça. A pressão pública acaba por ser a única arma em casos de racismo, porque o sistema policial não transmite nem segurança nem confiança.
«Assumir-se enquanto negro é identificar-se com um grupo cuja experiência comum também se baseia num trauma, e isso requer mexer numa ferida para que juntos a possamos curar. A branquitude, recusando abrir mão do privilégio, relega a tarefa de acabar com um problema que é da humanidade a uma parte dela.» Em Portugal tem-se verificado cada vez mais casos de racismo e injustiças alarmantes. E, no entanto, não se tem verificado justiça para essas vítimas. Para muitos portugueses essa foi uma das primeiras grandes manifestações contra o racismo em Portugal, o que mostra o quão afastado estão da realidade dos negros em Portugal. Marcus: Torço um pouco o nariz… As manifestações, vigílias, debates, são as novas plataformas de auto-promoção, ostentação, tornando-se uma passerelle de vaidades. Essas manifestações públicas sempre aconteceram fora desse circo de vaidade, fora do espectro das selfies e da cena da moda. Infelizmente vi muito disso na manifestação Black Lives Matter do Rossio. Senti uma angústia de ver a luta pelos direitos dos negros a ser banalizada e usada como a nova bandeira da classe hipster, de uma forma paternalista e egoísta. Pessoalmente prefiro caminhar ao lado de cinco leões do que de mil carneirinhos. Lolo: É o movimento que se gera sempre depois da morte de cada um de nós. Não é como dantes que se matavam mil George Floyds e ninguém sabia, a não ser
Vicente, antropólogo, atuou na Frente Quilombola do Rio Grande do S dos territórios indígenas e quilombolas do sul do Brasil. Em Portugal, Ação Imigrante e Periférica e atualmente constrói a Rede de Apoio Mú
os familiares. Hoje em dia todos temos conhecimento porque as redes sociais no-lo permitem. E logo a manifestação ser mais global. Esse movimento é importante e necessário, cada vez mais. Para quem está do lado de fora da luta, quem nunca teve a necessidade de sair à rua e gritar por alguém que foi morto pela polícia ou por esse sistema racista e homofóbico, parece mais um show de carnaval. Como se as pessoas fossem a uma parada e depois voltam a casa e as suas vidas continuam. Mas para quem está dentro da luta, levamos para casa a insegurança, o medo e o pesadelo de que amanhã podemos ser nós, podem ser os nossos irmãos, pode ser outra pessoa que a gente conhece, ou não – mas vai ser mais uma pessoa negra. Essas manifestações são espaços de pôr a nossa dor em exposição, pôr a nossa dor pública, pedir empatia. Eu não acredito que essa justiça capitalista, a justiça na Terra, neste estado físico em que a gente vive, vá acontecer muito cedo. Mas estamos a pedir empatia. É algo muito difícil que essas pessoas detentoras do poder possam vir a ter para connosco, porque tão pouco nos vêem como humanos. Não passamos de vítimas, de animais, de povo não civilizado. Isso é o que esse sistema alimenta sobre nós. Por isso é importante que a gente comece a pensar a justiça pelas nossas próprias mãos. Ulício: Acredito que a forma como pudemos reagir emocionalmente, colocando para fora toda a nossa revolta, serviu apenas para evitar uma espécie de implosão. Ficamos realmente tristes por termos a consciência de que ainda estamos na fase de ir à rua dizer para pararem de nos matar. Não queremos mais ser vítimas do racismo e já reduzimos isso a uma frase só, «a nossa vida importa». Pelo menos para nós ela importa. Parece pouco, certo? E é de facto ainda muito pouco, mas é tão real também porque estamos a falar da base, do princípio de tudo, do direito de viver. Usar a voz é fazer uso de uma conquista e não deixar cair por terra o testemunho de todo um caminho percorrido. É honrar o compromisso de continuar lutar por justiça e paz.
Marcos Varela, mestre de jiu jitsu e dinamizador da associação MirAtiva, no Casal da Mira, Amadora.
De que forma sentes racismo na tua vida? No dia a dia, em que estruturas? Lolo: Desde que cheguei a Portugal, com 13 anos, pré-adolescente, vivo o racismo quotidianamente. Desde as estruturas de trabalho da minha mãe, às de ensino que eu frequentava. O preconceito racial estrutura tudo! Universidades, escolas primárias e secundárias, hospitais, escusado dizer polícia, instituições do estado... tudo! Quando não podemos andar em paz num supermercado, sob a vigia de um segurança,
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TESTEMUNHOS 13 vidas importa salvar. A eugenia continua viva e a provocar os seus estragos. O opressor continua a viver com base no medo. Que razões de fundo consideras que estarão por trás do racismo na sociedade portuguesa? Lolo: O complexo de superioridade. Não há outra razão por trás do racismo na sociedade portuguesa: é a história portuguesa, de colonização, de escravatura. Aquilo que está a acontecer hoje é apenas a continuidade do que aconteceu há 500 anos. Cada um vive a sua ancestralidade. Qual é a ancestralidade desses polícias que estão a matar pessoas negras? É a de matar em massa mesmo, de homicídio, de colonização, de escravatura. Os seus ancestrais são senhores dos escravos. Marcus: O racismo está na essência portuguesa desde a sua génese e todo o romance da construção imperialista foi assente neste facto. O posicionamento em relação a África está enraizado como uma posição de «descobridores», de levar «civilização», de «domesticar». Essa relação de superior/inferior, dono/escravo, é uma corrente mental que passou de geração em geração, gerando costumes, tradições, folclores…
Sul, articulação de defesa , atuou no Coletivo de útuo de Lisboa.
Lolo Arziki, cineasta não binária e ativista antirracista e LGBTQI.
«A resistência começa em casa. Amar, cuidar, unir e partilhar com os outros também é um ato político.»
que é ensinado que a nossa cor é um perigo. A minha experiência é como de qualquer pessoa negra que chega a Portugal de uma classe social baixa, a viver na periferia de Lisboa, de língua dominante não português. Em Cabo Verde o português continua a ser língua oficial por interesses económicos, mas a gente sabe que não é a primeira língua. O preconceito vai desde a língua ao cabelo, ao comportamento cultural, a tudo. Há um racismo contra a nossa própria produção de conhecimento, que é ancestral,
que serve e serviu o resto da humanidade – e continua a ser tratado como primitivo, como algo sem fundamento científico, etc. Marcus: Sendo filho de uma geração que veio de África na década de 70, mas nascido em Portugal, vivi na primeira pessoa situações de racismo, verbalmente como fisicamente. Nesta altura, e trabalhando na cultura, vejo racismo todos os dias, que parte de um racismo estrutural. A cultura parece ser um bem comum a todos e que une comunidades. Mas o que vemos é uma capinagem e apropriação cultural para o sumo económico, tudo embrulhado num papel paternalista. O racismo vem camuflado. Por exemplo, ter dificuldades em arrendar uma casa, mesmo com todos os critérios em ordem. É tudo bonito ao telefone, até à hora da visita do imóvel a conversa mudar logo… Como negro, aqui e em todo o lado, temos de correr o dobro. É um facto! Maria: Nestes tempos de pandemia, quais os grupos que mais têm sofrido? Quando todas as fragilidades são expostas é que verificamos verdadeiramente as nossas desigualdades. Verifiquei muito essa ideia romantizada da quarentena, de ser tempo de crescer em casa, com a família, enquanto que outros grupos ficaram completamente desamparados. Grupos que têm trabalhos precários, sem segurança contratual, e não têm o luxo de parar de trabalhar nem com pandemia. Big Papo Reto: Sinto o racismo na minha vida de muitas formas camufladas... Porém já tive pessoas que se declararam racistas para mim e episódios mais pesados. Cada vez que sou parado para averiguação de documentos já conheço bem o motivo. Do tipo, ser parado quatro ou cinco vezes por
semana em Lisboa de moto... Ou 45 vezes em 30 dias no Rio de Janeiro, na primeira vez que comprei o meu carro, quando tinha 22 anos. Logo a seguir vem a pergunta se tenho alguma coisa comigo. Sou parado sem ter infringido a lei, para averiguação de documentos, e passado a pente fino para ver se tenho algo ilícito em meu porte. Marcos: Sou um negro português e tento nunca ver o preconceito nas atitudes das pessoas. Não sou racista, e então não ando com o mecanismo de defesa constantemente ativo. Lido diariamente com pessoas preconceituosas no trabalho, nas atividades em que me envolvo, sinto a discriminação no meu dia-a-dia. Mas sempre lutei de uma forma que acho a mais correta: melhorar o relacionamento de proximidade, com o objetivo de criar mudança nas pessoas. Porque nós não nascemos racistas. Muitas vezes dizem que sou um preto diferente, que é um dos indicadores do seu preconceito. Ulício: O racismo está no núcleo de todas as instituições que regulam a vida das pessoas nas sociedades capitalistas. É difícil de ignorar os seus efeitos. Por ser negro, vivo o corpo primeiramente na sua dimensão política. Não dá para falar de mim. Somos nós e seremos também nós a acabar com isso. Inclusive contamos com a colaboração de quem não sofre o mesmo que nós. Como poderão as mulheres desmantelar as raízes do patriarcado se os homens se mantiverem no gozo irresponsável do seu lugar de privilégio por terem nascido homens? Nós não devemos sentir culpa, mas também não devemos sentir honra ao herdar um lugar de opressão e muito menos vangloriá-lo. Largar o privilégio implica lutar em conjunto. É desejar transformar as relações de poder e dar passos nesse sentido. Devemos questionar a razão pela qual se celebra a queda do muro de Berlim ao mesmo tempo que erguemos muros no Mediterrâneo deixando famílias e crianças que procuram refúgio afundarem à porta daquilo que seria a fuga da própria morte. A resposta é simples, é a guerra da qual fogem que os persegue. São os interesses capitalistas e racistas que continuam a definir que
«São anos de traumas no nosso corpo, e a gente ainda continua aqui em pé a lutar.» Ulício: O racismo é pedra angular de uma sociedade que se quer capitalista. Não dá para manter um nível tão desigual de acesso a uma vida saudável sem erguer e defender com isso uma estrutura vertical. Racismo nasceu para aliviar a consciência e justificar todo o crime cometido pelos europeus durante a escravatura e ainda escancarar as portas para a entrada do colonialismo. A acumulação de capital, a apropriação da nossa herança cultural e científica, a dominação no campo espiritual, a classificação e hierarquização das artes, a construção da masculinidade hegemónica à custa da infantilização dos povos oprimidos, no continente africano e não só, trouxe-nos até aqui. Devemos questionar o que se seguiu após o período colonial, em que fase da história da luta antirracista nos encontramos. Nesse aspeto, o diagnóstico do racismo continua a ser muito alarmante. O genocídio continua vivo, a dominação económica é uma realidade, a NATO é usada para levar democracias ao mundo «opressor» com a força da bala, o Brasil assassina uma pessoa a cada 23 minutos no ano 2017, e cerca de 7 em cada 10 é negro e jovem. Toda essa realidade é sustentada por aquela subjetividade que coloca o branco numa posição de superioridade e que deve determinar o curso que a história do mundo deve seguir. Vicente: Estou em Portugal há quatro anos, vindo do Brasil, onde a questão racial foi intensamente debatida ao longo do século XX. E fiquei em choque ao chegar e ver como essa discussão ainda não estava posta na mesa. Tinha muito aquela questão do «não vemos racismo», «as raças não existem». Pelo Salazarismo e toda a sua reconstrução histórica, a construção do mito do português enquanto o bom colonizador, a colonização branda, esta foi uma questão muito negada. As discussões recentes em torno da estátua do padre e de um museu dos descobrimentos são sintomáticas. Quando se tem essa negação em relação ao próprio processo colonial, aos danos causados aos outros povos, e aos benefícios que as terras portuguesas e o povo português colheram
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14 TESTEMUNHOS Marcus Veiga, músico por trás do projeto Scúru Fitchádu
disso, enquanto o seu povo nem reconhece esse processo colonial como um processo exploratório, injusto, como é que ele vai reconhecer as outras desigualdades sociais existentes dentro da sociedade portuguesa? O racismo é uma coisa estrutural: ele regulamenta e define as posições sociais que as pessoas têm na sociedade, em base de características fenotípicas mais ou menos arbitrárias. Certas características racializadas, como o tom da pele, a lisura do cabelo ou o formato do nariz, acabam operando como sistemas de status sociais, de diferenciação ou de estigmatização. Isso acaba por delimitar os lugares que uma pessoa pode ou não acessar. Dentro das próprias instituições, uma série de mecanismos internos acabam servindo para que tudo fique como está, reforçando certas posições sociais herdadas desde o tempo da escravatura. É importante dizê-lo: o racismo não é fruto da natureza. As raças, como são concebidas, o «negro» e o «branco», não existem na natureza. É fruto de um processo histórico, engendrado pelas elites, que chegaram e dividiram a humanidade em raças. Esse processo classifica a população da Terra numa escala entre o homem branco europeu, que seria o modelo máximo da humanidade, e o macaco. Então todos os povos não brancos têm de ficar nessa luta constante para provar a sua humanidade. Devia ser claro para todo o mundo que o estado português e o seu povo, como herdeiros de um dos primeiros impérios trans-oceânicos, têm responsabilidade direta nesse processo histórico que classifica a humanidade em raças. Foi com o tráfico transatlântico de escravos, essa escravização em
escala industrial, e as fabricações intelectuais posteriores que justificavam esse atos, que temos a pedra fundamental do racismo moderno. Num modelo político-económico capitalista, onde um dos princípios é a questão da herança, a gente pode começar por imaginar que tipo de coisa herda uma pessoa que é herdeira direta de um ser humano escravizado. Assim como o que herda aquela que é fruto das elites escravizadoras. Essa é uma das pedras essenciais da composição social que a gente vive, e vai ter de ser enfrentada mais cedo ou mais tarde: a questão das reparações históricas. No caso brasileiro, quando tem o fim da escravidão, não foram os escravos que foram reparados: foram os senhores de servos que receberam indemnização por terem perdido a sua propriedade. Até no seu processo de liberação o negro é libertado enquanto coisa. É uma herança macabra que carregamos até hoje. E o racismo, em particular, na polícia? Marcus: As forças militares e de segurança, pelo seu aspeto conservador, autoritário, institucional, sempre foram apetecíveis para a direita e extrema direita, com o chamariz belicista, da autoridade e do nacionalismo. As forças de segurança são terreno fértil para se instalarem correntes de preconceito. Vicente: É uma das expressões mais cruas desse racismo institucional, são aqueles que acabam por definir quem é o inimigo interno, o sujeito perigoso, e não por acaso ele é sempre o negro, o não branco, o imigrante, sempre esses corpos outros. Acaba sendo um mecanismo principal de
«Para quem nunca teve a necessidade de sair à rua e gritar por alguém que foi morto por esse sistema racista, parece mais um show de carnaval. Mas para quem está dentro da luta, levamos para casa o pesadelo de que amanhã podemos ser nós.» exclusão, estigmatização e violência contra os povos não brancos, em praticamente todo o mundo. Hoje em dia não existe nenhum lugar do mundo em que a integridade física do corpo negro não esteja ameaçada. Que tu enquanto negro podes andar tranquilamente na rua sabendo que não vais levar um tiro, ser espancado ou ter a tua liberdade subtraída por alguma aleatoriedade do estado. A gente sabe que a polícia é por si um órgão político, não é um órgão neutro, no sentido em que serve para propósitos bem definidos de estado. Porém, movimentos ideológicos recentes organizados no seio da polícia, que tomam forma aqui como Movimento Zero, no Brasil como o movimento que elegeu o Bolsonaro, vêm reforçar essa politização das polícias, explicitando toda a face ideológica do que é a polícia portuguesa.
Maria: Nesta era das redes sociais os grupos extremistas têm plataformas onde espalham o ódio, sem controlo da parte da polícia, e os próprios agentes expressam opiniões claramente racistas nas plataformas sociais sem controlo, sem punição. Associações, ativistas, União Europeia já alertaram para o perigo da integração de grupos extremistas racistas nas forças policiais, mas nada tem sido feito. Vicente: Ao mesmo tempo, temos um dos países que tem proporcionalmente uma das maiores taxas de encarceramento da população negra do mundo! Portugal recusa-se mesmo fazer o seu censo étnico-racial, então a gente nem sabe qual é a proporção de pessoas negras e brancas presas nas cadeias portuguesas. Mas se colocarmos as pessoas oriundas dos PALOP numa categoria negros, 1 em cada 73 negros estão presos aqui em Portugal. É um dos países com maior taxa de encarceramento de pessoas negras, maior que o Brasil ou os EUA! É uma questão muito séria que tem de ser encarada e debatida. Ulício: O racismo estrutural desempenha a mesma função em todas as sociedades capitalistas: aumentar, justificar e defender a propriedade privada. A polícia nasce como instituição que serve para manter essa realidade através da força. A maioria da população encarcerada cometeu crime contra a propriedade privada exatamente porque foi privada desse acesso. Quando pretendem nos retirar abrigo mandam a polícia. Historicamente falando, o nosso corpo continua em fuga, e atrás de nós está essa figura de capataz, que, ao invés de chicote, agora segura um bastão.
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TESTEMUNHOS 15 e relega a tarefa de acabar com um problema que é da humanidade a uma parte dela. É preciso libertar a pele. É esse o devir da consciência racial. A união através de uma atitude comunitária é a verdadeira missão civilizadora. Que trabalho coletivo pode ser feito para o superarmos? Que exemplos concretos podíamos pôr em prática? Marcos: Resistir é o que temos feito! Podiam criar-se atividades de sensibilização junto dos mais novos, nas escolas, desmistificando o preconceito em todas as áreas, racial, religiosa, social. Big: Se informar cada vez mais, pois a informação é um colete para a sua mente. Maria: A educação deve ser um dos pontos a ser revisados. Continua a ser ensinada nas escolas a noção do colonialismo como algo benéfico. Outro será a recolha dos dados étnico-raciais em Portugal.
Ulício Fortes Cardoso (aka Olokun), formado em Animação Sociocultural, trabalha com população infanto-juvenil proveniente de contextos de exclusão social, política e económica. Nasceu na ilha de Santiago e vive há 16 anos em Portugal.
Big Papo Reto, poeta, músico e MC criado no Rio de Janeiro
Que formas encontram as comunidades nosso corpo, e a gente ainda continua aqui racializadas para resistir e ser solidárias em pé a lutar. Estamos todos bastante agreperante a discriminação? didos, então a gente acaba por se agredir Lolo: A nossa comunidade afrodescendente entre nós também. O que esperar de pesnegra percebeu que o opressor separa para soas que sofreram violência a vida toda? Mas no meio do caos a gente tenta criar vencer. E que a gente precisava unir. Então algum sentimento de fraternidade e solié através da união, da criação de estruturas coletivas e comunitárias, para ações ime- dariedade. A gente encontra a paz entre nós. diatas e concretas, no efeito de descolonizar Diante desta pandemia, a gente tem falado a mente da nossa população. É um trabalho muito de como nos tem ajudado recupede sensibilização, de fortalecimento, de pôr rar as práticas ancestrais de espiritualidade, o nosso corpo à disposição para a luta cole- inclusive de pedir e praticar justiça. Uma tiva. Nem toda a gente vai ter essa disponi- das formas que a gente aprende a resistir bilidade, porque a maioria são vítimas de é recuperar essas práticas ancestrais. São um sistema laboral opressor e extenuante. há muito tempo alvo de preconceito, inclusive na sociedade portuguesa, que sempre Então é preciso que haja alguém que os represente na luta. Os coletivos e movimen- lidou como «macumba», mas elas mantêmtos antirracistas, contra a agressão a pes- -nos em pé. soas LGBT negras, esses movimentos dão Marcos: Penso que todos lidamos de forvoz às comunidades. Essa disposição nem mas diferentes. Mas podíamos estar mais sempre pode ser quotidiana, porque as pes- organizados para lidar com estas injustiças sociais. E nem sempre temos as soas estão exaustas. São anos de traumas no
ferramentas para as combater. Muitos jovens reagem com agressividade, tendo em conta o seu histórico, pois muitos de nós já sofremos diretamente essa violência policial. Ulício: Caminhar conscientemente continua a ser a nossa única esperança. A resistência começa em casa. Amar, cuidar, unir e partilhar com os outros também é um ato político. Cada ser humano deve tomar para si uma fatia do problema do mundo para juntar ao seu próprio problema. A ideia do «eu» é insuficiente porque não existe algo como ser um negro e ser livre hoje. Assumir-se enquanto negro é identificar-se com um grupo cuja experiência comum também se baseia num trauma, e isso requer mexer numa ferida para que juntos a possamos curar. A branquitude, por sua vez, depende dessa ferida aberta para continuar a manter o seu hedonismo vivo, recusando abrir mão do privilégio,
O estado português e o seu povo têm responsabilidade direta no processo histórico que classifica a humanidade em raças. Com o tráfico transatlântico de escravos temos a pedra fundamental do racismo moderno Ulício: Não terem permitido que avançássemos com a recolha de dados étnicos-raciais no próximo censo geral da população de 2021 constitui um desastre. Atrasaram por mais uma década a possibilidade de estudarmos a real situação do ponto de vista estrutural, contribuindo com dados científicos para a sua compreensão e resolução. Sabemos que um debate nesse nível revelará a face do racismo que querem manter escondido. Mas é preciso debater o racismo fora das grades da negação. Este entrave à investigação é consciente, porque impossibilita o combate do racismo com as mesmas ferramentas com que ele foi criado. Isto é, cientificamente. Continuamos a lutar para que o Estado desempenhe a sua função, ao passo que essa instituição tem provado ciclicamente que opta por desempenhar um papel de entrave ao nosso desenvolvimento. Em comunidade conseguimos construir e criar poder, já provámos isso a nós mesmos. A experiência dos Panteras Negras e tudo o que ela representa deve nos servir de exemplo mais uma vez. Lolo: Acho que os portugueses brancos devem repensar a sociedade que estão a construir, porque esse trabalho não é da responsabilidade apenas da comunidade negra – e a gente está a cumpri-la todos os dias. Repensar a sua comunidade, repensar se é esse país racista que querem alimentar, se as pessoas que querem ver no poder amanhã são pessoas que vão acabar com o racismo estrutural. E se não é essa sociedade que querem, se não é replicar esse comportamento colonial, têm de trabalhar junto com a sua comunidade mesmo. Desconstruir o racismo tem de ser uma luta de pessoas brancas também. É uma responsabilidade que elas precisam assumir, porque da nossa parte a gente já faz, e já está muito cansada. É preciso que se consciencializem do seu lugar e comecem a trabalhar entre si para desconstruir, se queremos que a luta seja contínua, e ter um Portugal menos racista.
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16 ABOLIÇÃO
2020 também é ver o abolicionismo a ganhar forma Uma reflexão sobre a radicalidade da luta contra a violência policial nos EUA: «Sim, queremos literalmente abolir a polícia. Andamos a implementar reformas há 50 anos e não funcionou». MARGARIDA LIMA . LIMA@JORNALMAPA. PT M
What the world will become already exists in fragments and pieces, experiments and possibilities.
«A
Ruth Wilson Gilmore
gora que a abolição da polícia se tornou uma possibilidade para o consciente coletivo, estas campanhas como o 8 can’t wait estão apenas a prestar um mau serviço», tweetava a rapper negra norte-americana Noname, referindo-se a uma mudança nas reivindicações que acompanharam os levantamentos nos Estados Unidos em plena época de protestos Black Lives Matter. Ela expressou aquilo que muitas de nós estávamos a observar: de modo massivo e generalizado, multidões nas ruas e nas redes exigiam o fim da polícia, obrigando a opinião pública a pensar
sobre essa possibilidade. O tweet da cantora refere uma campanha para a implementação de reformas urgentes na polícia, chamada 8 can’t wait, que pretende acabar com práticas comuns dentro das forças de segurança, como imobilizações pelo pescoço e estrangulamentos, disparos sem aviso prévio ou relatórios pouco completos. Surgida no rescaldo da morte de George Floyd, a página desta campanha introduz-nos primeiro a uma crítica lúcida e profunda à polícia enquanto instituição, mas propõe depois 8 medidas de regulação no uso da força como resposta a uma violência estatal que está enraizada nesse modelo institucional que permanecerá injusto, mesmo que se acabem com os estrangulamentos. É neste contexto que surge a campanha 8 to abolition (ver poster na página seguinte), um exemplo da mudança nos discursos reivindicativos que, para quem acompanhou as notícias a partir de junho deste ano ou para quem faça agora uma pesquisa, é apenas uma das muitas
iniciativas que evoca a abolição, desmantelamento ou desfinanciamento da polícia. Nitidamente, o tema tornou-se numa discussão pública, transversal a meios de comunicação de vários tipos - e isso é já em si uma vitória. Mais do que contrastar com campanhas reformistas, este artigo pretende sim contribuir para a expansão nos nossos imaginários da possibilidade de um mundo sem polícias, mencionando alguns dos melhores conteúdos que se encontram a circular, fruto da junção de ideias antigas aplicadas a contextos modernos. É o que acontece quando deixam de ser apenas os Black Panthers e os anarquistas a reclamarem a abolição da polícia. Esta gente anda há anos a tentar reformar a polícia Cinco membros do Conselho Municipal de Minneapolis apresentaram, com base em vários relatórios, petições e reivindicações de populações locais, uma proposta para desmantelar totalmente
o departamento da polícia da cidade e para a criação de um «departamento de segurança comunitária e prevenção da violência». Uma dessas dirigentes autárquicas de Minneapolis, Lisa Bender, declarou em conferência de imprensa que os esforços feitos de modo progressivo, ao longo de anos, para reformar a polícia, falharam. «Há que desmantelar a organização por continuamente pôr a comunidade em risco», declarou aquela dirigente e muitas outras figuras mais ou menos proeminentes. Um pouco por todo o país ecoaram pedidos de cortes de fundos e desmantelamento de esquadras, escolas e universidades anunciaram a cessação dos contratos que mantinham com a polícia e talk shows deram voz a pessoas que antes eram consideradas extremistas. Sabemos que algo muito diferente e surpreendente está a acontecer quando a revista TeenVogue (!) publica um artigo em que destaca as palavras de Bender e explica ao leitor a campanha 8 for abolition. Ainda mais surpreendente é constatar que esse é um entre muitos outros artigos que a revista publicou sobre a abolição da polícia, a abolição das prisões, a supremacia branca sistémica, a celebração do gay pride enquanto riot contra a violência policial e até, a 15 de julho de 2020, um artigo sobre a abolição das rendas que questiona a propriedade privada. Aquilo que os manifestantes têm vindo a dizer, e que os media agora destacam, é que não é suficiente pedir uma atuação policial mais regrada, porque isso gera uma sensação angustiante de que algo
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ABOLIÇÃO 17
16 de junho, Florida Vigília em homenagem a OLUWATOYIN “TOYIN” SALAU, ativista de 19 anos encontrada morta após desaparecida durante uma semana. Foto Eva Marie Uzcategui
8 passos para a Abolição (poster da Campanha que surgiu após a morte de George Floyd): "Por um mundo sem prisões ou polícia onde todos possamos estar seguros. Desfinanciar a polícia, Desmilitarizar as comunidades, Tirar a polícia das escolas, Libertar as pessoas das prisões e cadeias, Revogar leis que criminalizam a sobrevivência, Investir na auto-gestão das comunidades, Proporcionar habitação segura para todos, Investir em cuidado, não em polícias. Acreditamos num mundo com zero assassinatos policiais porque existem zero polícias. A Abolição não pode esperar. Fonte: www.8toabolition.com
errado fica por resolver. Não basta não matar. Imaginemos que o agente Derek Chauvin se tinha ajoelhado no pescoço de George Floyd «apenas» durante 7 minutos, em vez de 8 minutos e 46 segundos. Talvez Floyd tivesse sobrevivido para então ser detido, julgado e encarcerado por alegadamente ter tentado usar uma nota de 20$? Que justiça é essa que permite que a polícia faça a gestão da desigualdade social? Vindas do lado da falta de privilégios, surgem várias iniciativas e reflexões políticas que já operam no sentido de uma prática
autónoma de resistência e vivência comunitária. Como explica a ativista e advogada Derecka Purnell ao jornal The Atlantic, desde a morte de Michael Brown em Ferguson, em 2014, que existem grupos de alunos, professores, ativistas e advogados que se dedicam a explicar os propósitos do sistema de poder e o funcionamento do Complexo Prisional-Industrial. Os abolicionistas negros têm condenado o papel das prisões e da polícia durante séculos, mesmo antes de W. E. B. Du Bois ter escrito o Black Reconstruction. Eles imaginaram e construíram respostas aos danos sofridos
baseando-se na comunidade e no compromisso. Nas últimas décadas, os abolicionistas desenvolveram alternativas ao 911 (linha de emergência), criaram sistemas de apoio para vítimas de violência doméstica, impediram a construção de novas prisões, reduziram orçamentos das forças de segurança e protegeram imigrantes sem-papéis de serem deportados. O abolicionismo é muito mais que despedir polícias e fechar prisões. É também eliminar as razões pelas quais as pessoas acham que precisam de polícias e prisões. Este é o debate que está finalmente a ter voz nos media e que força as pessoas a reconhecerem a existência e o valor destas ideias e práticas. «Nós somos aqueles que zelamos pela nossa própria segurança», «proteger mulheres e raparigas negras é uma responsabilidade sagrada» ou «quando as pessoas desconsideram os abolicionistas por não se importarem com a segurança ou com as vítimas, tendem a esquecer-se que nós somos muitas vezes essas vítimas, os sobreviventes dessa violência», são alguns títulos de notícias publicadas em revistas de moda ou jornais de generalidade, do New York Times à revista Rolling Stone. Naturalmente, existe uma correlação direta entre o dar voz a pessoas de cor e o aparecimento destes conteúdos - durante séculos, as próprias pessoas das comunidades não eram chamadas ao debate público e não tinham representatividade nos meios de comunicação social. Se me permito algum idealismo, quero pensar que agora lideram o caminho, não só denunciando as faltas de privilégio, como dando o exemplo através de modelos de resistência comunitária contra a pobreza e a violência. Nada disto é muito novo, o que surpreende é a expansão destas ideias e autores Não se pretende aqui transmitir a noção que estas lutas ou ideias são inovadoras e inéditas. A análise da sociedade nestes moldes é algo que vem a acontecer há séculos, mas finalmente parece ter sido conquistado o espaço necessário para que se possa falar da abolição de instituições repressivas. É das redes sociais, de académic@s radicais e das ruas que parte a criação desse conteúdo, que posteriormente os media amplificam, finalmente visibilizando-se assim a violência sistémica de que as pessoas mais vulneráveis são vítimas. Durante toda esta época de protestos, têm sido frequentes os ataques a pessoas de cor, com uma incidência assustadora em crimes contra mulheres, pessoas queer e/ou transsexuais. Mas também tem sido inspirador ver os vários atos de solidariedade e homenagem às vítimas de ataques, e ouvir discursos de denúncia e reflexão sobre essas condições de dupla ou tripla subalternidade que as pessoas mais vulneráveis experienciam. A consciência de que certas pessoas são sistematicamente vítimas de um sistema social assimétrico e punitivo é amplificada perante o impacto desproporcional em pessoas negras do Covid-19, da recessão económica, assédios ou assassinatos policiais e encarceramento. Um modelo assim assente na desigualdade, que a polícia é paga para manter. Para resistir a tal modelo social, bem como para expandir a capacidade de imaginação e implementação de um mundo mais justo, vale a pena ler as obras ou investigar as vidas de Audre Lorde (sempre!), Zoe Samudsi e outras feministas negras, Martin Sostre (um símbolo do ativismo anarquista negro feito desde a prisão), Ruth Wilson Gilmore, ativistas negras LGBTQ como Martha P. Johnson ou Lady O, e Frantz Fanon (cujo livro Peles negras, máscaras brancas dispensa introduções). Vale a pena também mencionar o conceito de «school to prison pipeline», sobre o uso de
penalizações graves já em contexto escolar que abrem precedentes de criminalização juvenil; deixar uma breve referência às obras que investigam as origens da polícia enquanto instituição, e referir que a corrente afro-futurista anda a construir imaginários alternativos capazes de nos redimir, de Aimé Cesaire ao novo livro Black Imagination: black voices on black futures, editado por Natasha Marin. Pegando no caso da autora Ruth Wilson Gilmore, o seu nome tem sido apontado como uma das vozes mais proeminentes para o desmantelamento do Complexo Industrial-Prisional e o seu livro Golden Gulag registou uma grande subida na procura e nas citações, bem como o livro de Angela Davis, Are prisons obsolete. Tivemos a sorte de ter a Ruth Gilmore a viver em Portugal durante um tempo e, há já alguns anos, o Jornal Mapa esteve presente num evento na Cova da Moura, a Universidade Popular Kwame Touré, onde quem participou teve o privilégio de ouvir a Ruthie e um outro professor a falar, entre outras coisas, sobre a Harriet Tubman, sobre a revolução Haitiana ou sobre a invisibilidade propositada da relação entre escravatura e capitalismo na altura, ninguém parecia ter presente que o sistema financeiro e político atual não existiria sem séculos de trabalho forçado e gratuito, a escravatura. Essa noção parece estar hoje mais presente nas mentes críticas e o derrube de estátuas de esclavagistas em todo o mundo veio aprofundar esse debate.
«Quando as pessoas desconsideram os abolicionistas por não se importarem com a segurança ou com as vítimas, tendem a esquecer-se que nós somos muitas vezes essas vítimas, os sobreviventes dessa violência». Derecka Purnell Muito material crítico a ser produzido hoje em dia nos EUA merece ser traduzido e por isso se deixa aqui uma breve lista de boas fontes e exemplos. Vários artistas ou figuras públicas mostraram o seu engajamento político, pagando fianças ou participando em clubes de leitura que disponibilizam pastas cheias de literatura sobre estes temas. E por falar em figuras públicas, não nos esqueçamos de mostrar solidariedade com aqueles que recebem mensagens de ódio diárias precisamente por difundirem ideias antiracistas, sejam el@s o Mamadou Ba, a Noname ou aquel@ amig@ que se assume como abolicionista nas redes sociais. Para terminar, importa referir que o contexto europeu conta com uma tradição política diferente, constituída por inúmeros movimentos e momentos de oposição ao Estado Policial que não devemos deixar cair no esquecimento. As próprias características populacionais, o colonialismo e as vozes de oposição que sempre existiram oferecem um legado a explorar, com particularidades diferentes da realidade aqui apresentada. O que aqui se propõe é lançar um olhar atento ao contexto estado-unidense, reparando em semelhanças, contrastes e importações entre a resistência lá e cá, sabendo que o que acontece na barriga da besta imperial afeta as suas periferias. E então, o que é tens feito ultimamente para imaginar um mundo sem polícia?
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18 CRÓNICA
Do Racismo à Portuguesa
GABRIEL BIECO GARCIA
M. RICARDO DE SOUSA
«Serão desalienados os pretos e os brancos que se tiverem recusado a deixar-se encerrar na torre substancializada do Passado. Para muitos outros pretos a desalienação nascerá, por outro lado, da recusa de considerar a actualidade como definitiva.»
M Frantz Fanon
ais uma vez, a polémica sobre o racismo em Portugal tornou-se escaldante e transbordou para as ruas. O assassinato em Moscavide de Bruno Candé, com claros contornos racistas, foi o detonador. Novamente veio ao cimo a polémica sobre a presença do racismo na sociedade portuguesa. Uma certa esquerda anti-racista afirma apaixonadamente que Portugal é racista, a extrema-direita responde furiosamente que não é. Entre estes dois pólos fica a maioria dos portugueses, que acham que não são racistas ou que vivem as suas vidas indiferentes a este tipo de polémicas, deixando escapar, uma vez ou outra, um comentário menos adequado, ou mais «politicamente incorrecto», como agora se diz. No entanto, o problema sempre me pareceu mal colocado. Só por figura retórica se pode dizer que Portugal é, ou não é, racista. Portugal não é racista, nem anti-racista. Quem pode ser racista, ou anti-racista, são os portugueses e as portuguesas. Obviamente, também o Estado português pode ter políticas racistas, e teve-as no seu passado colonialista. Hoje, mesmo aos olhos de um libertário, não parece que o Estado português tenha
políticas racistas, embora se mostre incapaz de resolver o problema de alguns quistos racistas nas suas forças policiais e nos serviços prisionais, ou de desenvolver políticas sociais que contribuam para uma vida digna das populações pobres, em particular dos imigrantes provenientes das antigas colónias e seus descendentes, mas também dos diferentes segmentos excluídos da nossa sociedade, na sua maioria, plebeus brancos. Quanto aos portugueses, e portuguesas, haverá um número significativo que são racistas, desde logo, muitos dos ex-combatentes da Guerra Colonial que nunca ultrapassaram a sua doutrinação militar e os traumas de uma guerra de guerrilha em terra estranha, ou muitas das pessoas que vieram das colónias, numa fuga difícil, em resultado da independência destas. Mas, mesmo entre esses, todos sabemos que há muitos que nada têm que ver com o racismo, bem pelo contrário, serão até africanos saudosos. No entanto, não me parece que em Portugal a maioria das pessoas seja racista, mas esta opinião é tão subjectiva como a que afirme o contrário. Só um estudo sério e exaustivo o poderia determinar, e não é a partir de uma pesquisa, como a que andou pelos jornais nos últimos meses, do European Social Survey (ESS), assente numas poucas perguntas discutíveis, que se pode tirar uma conclusão. Até porque mesmo nesse inquérito há substanciais diferenças entre várias faixas etárias. Seja, ou não, maioritário o racismo da população portuguesa, nunca poderíamos afirmar que os portugueses são racistas. Uma generalização insultuosa que coloca todos no mesmo saco com o argumento de um «racismo estrutural» que não sabemos como se articula com a culpa individual de cada um. Para muitos anti-racistas todos somos culpados
ou cúmplices, no mínimo por omissão, havendo até uma pessoa bem-intencionada que escreveu na Internet que todos pusemos o dedo no gatilho da arma que matou Candé. Esta visão aplicada à realidade, ou à história, teria consequências desastrosas: todos seríamos responsáveis pela escravatura, pelos genocídios dos povos indígenas, pelo Holocausto, pelo Estalinismo, pelo Salazarismo e até por um violento agressor que vive incógnito no outro extremo do país. O resultado é claro: sendo todos responsáveis, não há ninguém, em particular, que o seja pessoalmente… Esta retórica, se fosse só literária, não teria maiores consequências, mas ao que parece representa o pensamento efectivo de uma boa parte dessas pessoas. Sendo assim, é um erro de análise grave. Há muito que o próprio direito penal dos
Portugal não é racista, nem anti-racista. Quem pode ser racista, ou anti-racista, são os portugueses e as portuguesas. estados ultrapassou a ideia arcaica de uma culpa colectiva, de um grupo ou de uma comunidade, que permitia punir todo um grupo (família, tribo, aldeia, comunidade) pelos actos de um seu membro. Hoje a responsabilidade é individual, podendo ser criminalizados terceiros por cumplicidade com um delito, se ficar demonstrado que nele tiveram uma participação ou colaboração directa. Uma consequência desta visão da culpa colectiva é que empurra o cidadão comum para os braços da extrema-direita, ao sentir-se insultado por algo
que pensa não corresponder à realidade. Essa é uma das explicações para o crescimento do Chega. A ideia reaccionária da culpa colectiva resulta de uma visão judaico-cristã, ainda muito presente na sociedade portuguesa, que nos considera a todos portadores de um pecado original, mesmo que nunca tivéssemos partilhado do Paraíso com Adão e Eva. A retórica de diversos movimentos identitários, ou mais precisamente de alguns dos seus participantes, por trás de uma aparente radicalidade, esconde a busca sectária do conflito permanente com todos os que são vistos como estranhos às suas causas, para não dizer exageradamente, com toda a sociedade vista como inimiga. O resultado é a incapacidade de propor plataformas comuns agregadoras para os diferentes grupos e classes sociais, na sua diversidade de género, de cultura e de cor, que partilham uma condição social de serem subalternos e sujeitos a injustiças, discriminações e processos de exploração e de dominação. Como escreveu João Bernardo, um crítico feroz do identitarismo, «Assim como o nacionalismo assumiu as formas mais extremas — e também mais delirantes — no racismo, em que numa dança de roda se passava dos aspectos culturais para os biológicos e dos biológicos para os culturais, também os identitarismos fazem o mesmo, tanto os de género como os de cor de pele ou de sexo ou de qualquer outra coisa.» Essa é uma das explicações para a incapacidade nas últimas décadas de se reconstruir uma cultura de resistência dos «de baixo» retomando a tradição de solidariedade e internacionalismo das classes e grupos subalternos, reformulando um projecto comum para a mudança social cada vez mais imperiosa. Por isso estamos como estamos.
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MEMÓRIA 19
Celtas, mentiras e Viriato
Castro de Lesanho, Botica
T
FILIPE NUNES FILIPENUNES@JORNALMAPA.PT
odo o passado tem o seu modo de usar. A história não é um campo isento e à sua interpretação podem ser aplicadas as mais diversas fórmulas, consoante o modo como queremos ver o nosso passado, para sustentar as escolhas ideológicas do nosso presente. Nessa medida, o chamado Celtismo é para o ocidente europeu a matriz fundacional a partir da qual se ergueu, desde a Antiguidade grega e romana, o olhar diferenciador entre o civilizado, superior, e esse «Outro» céltico, inferior e bárbaro. Mais tarde, variações diversas a esta dicotomia implicariam uma visão oposta, uma noção romântica de «celta» que viria a estar na base da construção dos nacionalismos: a alteridade da resistência rude, primitiva, evocando imortais tempos de povos e heróis patriotas contra as hegemonias de Roma, do inimigo externo. O eterno pano de fundo das afirmações nacionalistas, sejam elas extremadas à direita ou à esquerda, tecido num fio narrativo anti-sistémico e de forte atractivo «espiritual», veio igualmente a albergar as propostas alternativas à modernidade capitalista, da new age de ficção naturista do «bom selvagem» ao regresso à rudeza pagã da vida entre os montes. Por fim, o Celtismo encenou a marca identitária de uma primordial construção supra-nacional europeia: resgatada ora pela União Europeia, ora pela emergente corrente da extrema-direita identitária de uma Europa branca e não-miscigenada. Por tudo isto, os Celtas
são um nada inocente e sólido edifício da nossa memória colectiva. Tudo isto nos foi ensinado na escola, através da figura de Viriato, pai fundador da epopeia nacionalista lusa. Tudo isto nos foi apresentado como entretenimento, no cinema, na literatura, nos festivais celtas, em espectáculos musicais e nas feiras históricas descartáveis; inscrito em tatuagens nos nossos corpos; imerso nas nossas memórias; mercantilizado até à exaustão. Um atractivo e eficaz chamamento que se resume a uma impostura, uma sucessão de mentiras. A acumulação de «modos de ver» a história segundo uma narrativa fabricada por quem dita, pode e manda; ou recuperada no discurso de quem se opõe e resiste sem prescindir da essência do celtismo: a narrativa do passado legitimador do Poder; ou, ainda, uma justificação ancestral de um passado que nos guie num sentimento de pertença e de identidade colectiva. Para questionar a narrativa celta, não basta denegrir o celtismo popular, uma vez que o direito à construção das memórias não pode, nem será nunca, apanágio das academias. Tão pouco podemos considerar o celtismo como «mentira» sem
O ponto-chave da questão do Celtismo é que este emerge de um discurso identitário que vinca a valoração e sobreposição ao «Outro».
explicar o que daí advém. A única certeza é que toda a análise histórica, conscientemente ou não, cria, desmonta ou reestrutura as imagens do passado, servindo, como dizia o historiador Eric Hobsbawm, não o fim da investigação especializada, mas a esfera pública do homem como ser político. Como refere Gonzalo Ruiz Zapatero, da Universidade Complutense de Madrid, um dos arqueólogos que mais tem reflectido sobre a historiografia dos celtas e sobre o «uso público» do passado nas sociedades contemporâneas, a academia, de tom aborrecido, nada pode perante as «esferas de informação popular da história. E, em quase todas elas, as imagens, as representações icónicas são fundamentais» e «nunca chegam a desaparecer de todo». Constatação que não deverá desarmar uma historiografia crítica que, pensando o passado, ajude a compreender melhor o presente para que nele se possa actuar. Clarificando «que não há uma resposta única e verdadeira», com a consciência «de que a história contribuiu – e deve fazê-lo – para o desenvolvimento das identidades relacionais dos indivíduos». O olhar crítico deste artigo segue a preocupação acima exposta, aflorando quem foram os celtas, ou Viriato e os lusitanos, para nos centrarmos na «sociologia céltica» e nas raízes do celtismo como alicerce de nacionalismos, regionalismos e independentismos. Este é, assim, um olhar sobre o «modo de usar» o conceito de «celta», cuja fórmula simples e popular, segundo Silvia Alfayé, da Universidade de Zaragoza, alberga a ideia «de uma Europa céltica que encobre e alimenta uma ideologia xenófoba e fascista que encontrou no celta o herói das suas essências pátrias,
implacável na luta contra o multiculturalismo, a mistura racial e o judaico-cristanismo». Esta ideologia corre assim a par, e tira proveito, de outros mais irrefutáveis e legítimos anseios da nossa modernidade que também recorrem ao celtismo moderno «para reconectar com dimensões espirituais perdidas de cada um, para articular modos-de-estar-no-mundo alternativos, para expressar identidades e sentimentos de pertença, construir utopias, legitimar reivindicações políticas, reactivar uma natureza mágica, desfrutar do ócio, vender produtos e atrair o turismo». Celtas: quem foram afinal? O nome keltoi foi dado pelos gregos da Antiguidade ao conjunto de povos da Europa Central e Ocidental a eles opostos: o seu «Outro», a que os romanos fizeram corresponder ainda o termo Galli (Gauleses). A formulação da «identidade celta» depende, portanto, do olhar greco-romano sobre os povos da Idade do Ferro que habitavam regiões que viriam a ser ocupadas pelo império romano e que eram genericamente entendidas como «célticas». «Celta» é assim uma generalização de um vasto conjunto de povos de contornos indefinidos e que, organizados de forma tribal, se diferenciavam e concorriam entre si. Não é possível falar de uma qualquer unidade política, nem de uma organização comum, que nunca existiu para lá de pactos e de alianças de guerra pontuais. Implícita está a ideia de movimentações de populações cujo elo ancestral indo-europeu se multiplicou em vários povos de línguas célticas, elemento chave tomado até aos nossos dias para transmitir a ideia agregadora de uma cultura comum, de uma
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20 MEMÓRIA «civilização celta». Resultado dos estudos linguísticos dos séculos XVI a finais de XIX, a noção de povos falantes de línguas célticas não implica, por si só, uma identidade étnica ou cultural. Mas a abordagem linguística, então associada à emergência do estado moderno, e a redefinição das identidades de grupo em termos étnicos, e mais tarde em nações, constitui-se como o principal argumento de um pretenso nexo de continuidade e relação entre os celtas da Antiguidade e os «celtas» de épocas mais tardias, medievais e modernas. Ao ramo linguístico, concorre adicionalmente o ar de família e filiação comum demonstrado pela partilha de rituais e de materiais variados que a arqueologia tipificou numa corrente de estilos artísticos. Uma vez mais, a partilha de expressões materiais comuns não é garantia da unicidade de um «povo celta». Não há um povo celta, mas muitos celtas. Cada um com a sua personalidade própria e com maior ou menor autonomia, consoante o jogo de forças. A sua movimentação deu-se com maior enfoque a partir do séc. VIII antes da nossa era, da Europa Central à Turquia e a Portugal ou às Ilhas Britânicas, e partiu de circunstâncias várias, acossados por guerras, episódios climáticos ou pressões demográficas. O que importa não esquecer é que a sua instalação nos territórios que as fontes clássicas associam aos celtici – como seja o sudoeste da península ibéria, actual Alentejo e Extremadura Espanhola – é feita em miscigenação com as populações pré-existentes, da mesma forma como posteriormente ocorrerá com os romanos. A ideia de «pureza racial», preservando os
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iriato é o primeiro herói nacional. Chefe dos Lusitanos, com berço na Serra da Estrela, o proclamado povo pré-romano dos Portugueses. Viriato foi um chefe guerreiro, ilustrado por autores greco-latinos e contemporâneos como modelo estóico de virtudes: o homem natural, das montanhas, sóbrio e frugal, resistente às agruras do tempo e indomável guerreiro. Os arqueólogos Carlos Fabião e Amílcar Guerra, da Universidade de Lisboa, têm vindo a desmontar a elaboração mítica de Viriato. Se a figura mítica corresponde efectivamente ao «representante de uma sociedade cujos princípios e valores se diferenciavam substancialmente dos romanos e que lutou até ao fim contra uma submissão inevitável», já «não se pode, no entanto, transformar a questão viriatiana num problema de contornos nacionalistas. Definitivamente, Viriato não foi nem Português nem Espanhol. Foi e será sempre e apenas um Lusitano». Em termos geográficos o território chamado Lusitânia nunca chegou a consolidar-se antes da criação tardia da província romana com esse nome. Até aí «é pacificamente admitido que uma organização social complexa, uma concepção de Estado com implicação a nível da definição de limites estáveis e bem
traços arianos centro-europeus, é totalmente descabida. Já para não perguntar: o que garante, afinal, o título de «indígena»? A partir de quantos anos é que alguém é «indígena» num determinado lugar? Mas, na arqueologia proto-histórica, a identidade celta e continental assumiu uma primazia na senda do «paradigma racial» das bases étnicas dos Estados-Nacões. Tal busca de uma ancestralidade celta leva simultaneamente à redução da Europa a uma Europa céltica, quando os supostos territórios célticos ocupam apenas 30% do continente, deixando de fora os outros grupos pré-romanos. O certo é que esse paradigma valorou, na narrativa histórica, o discurso eminentemente difusionista das vagas populacionais celtas. No decorrer do primeiro milénio antes da nossa era, essa componente continental resultava na diferenciação, em torno do séc. V, de uma segunda Idade do Ferro, que na Península Ibérica contrastaria com uma anterior primeira Idade do Ferro orientalizante, sob a influência do mundo fenício e de reinos míticos como Tartessos, no sul peninsular. Um modelo que destacará a influência continental no interior da Península como o substrato étnico de castros governados por chefes guerreiros. Esta explicação tradicional da Idade do Ferro tem sido rebatida a favor do reconhecimento das especificidades e continuidades das realidades regionais peninsulares e de novos quadros conceptuais que não simplesmente o «céltico», que se segue ao «orientalizante», assim invertendo para segundo plano as visões de conjunto de escala europeia ou mediterrânica.
Viriato: a fabricação de um mito definidos são realidades absolutamente impensáveis no mundo lusitano». Disputar Viriato entre Portugal e Espanha (onde a resistência de Numancia ganhou maior peso como ícone nacionalista) é uma falsa questão, quando falamos num período em que as nacionalidades não tinham sentido. As referências aos Lusitanos, que as fontes clássicas relatam com a discrepância de dois séculos, são sempre uma criação romana designando uma entidade étnica de âmbito abrangente. O que conhecemos do seu território é, por um lado, a «cartografia» das movimentações militares das chamadas Guerras Lusitanas, na qual morre Viriato em 139 antes da nossa era, e que tem lugar não nas Beiras, mas nas paragens meridionais do sul peninsular português e espanhol. Por outro lado, e com contornos menos nítidos, a geografia de Ptolomeu situa os Lusitanos em contraponto com os Célticos a sul, os Turdetanos, no extremo sul da Península e os Vetões na área mesetenha, situando as tribos de Viriato entre o Douro e o Tejo, mas igualmente abarcando um amplo sector a Sul deste rio, que abarcava cidades como Évora,
Cáceres ou Mérida (esta futura capital da distinta província romana da Lusitânia). A norte, Estrabão assinalará por sua vez a dificuldade da distinção, nas duas margens do Douro, entre Lusitanos e os Galaicos. Não tem pois qualquer sustentação continuar a querer fazer corresponder geograficamente o actual território português às duas antigas Lusitânias, antes e depois dos romanos. Essa identificação deveu-se primeiramente a André de Resende, no século XVI, tomando como referência a província romana. A ele se deveu ainda a criação do neologismo «lusíadas», que nesse século dará nome ao poema épico nacional de Camões. Mas o enaltecimento da Lusitânia pré-romana e a heroificação de Viriato devem-se ao poema épico de Brás Garcia de Mascarenhas, publicado em finais do século XVII, e escrito no contexto da Restauração, no âmbito da qual o autor combateu as tropas filipinas na zona da Guarda, emulando a figura de Viriato. Com as versões populares desse poema, a lenda de Viriato nasceu para ficar. A sua biografia do início do século XX pelo alemão Adolf Schulten, estudioso de Numancia, consolidará Viriato
Viriato «mais do que um homem, de carne e osso, é um conjunto de “clichés”, chamemos-lhes assim, passíveis de serem colocados ao serviço dos mais diferentes interesses, ideologias ou regimes políticos».
como herói nacional para Portugal como para Espanha. Viriatos seriam também os voluntários fascistas portugueses que combatem ao lado de Franco na Guerra Civil de Espanha. Como escreviam Carlos Fabião e Amílcar Guerra, na década de 1990, Viriato «mais do que um homem, de carne e osso, é um conjunto de “clichés”, chamemos-lhes assim, passíveis de serem colocados ao serviço dos mais diferentes interesses, ideologias ou regimes políticos; e, acima de tudo, de gerarem processos de identificação (ou mimetismo) com chefes políticos ocasionais. Um “produto” com estas características, não poderia deixar de ser usado (e abusado) ao longo dos tempos». Um uso que não se ficou pelo Estado Novo, mas que prossegue nos nossos dias, como é exemplo o recente filme português Viriato (2019). «A imagem de Viriato, tal qual foi construída, no passado, com outros intuitos e finalidades, é transponível para outros contextos sociais, políticos e culturais, praticamente sem grandes “retoques”. É a mesma imagem, produzida, difundida e consumida, passem as expressões, em contextos diversos e com propósitos distintos. É isso aliás que sublinha o seu carácter de “modelo ideal”, e lhe retira a dimensão humana. O herói é uma construção artificial, bem sucedida e popular, porque responde aos anseios de públicos diversificados, é bem a imagem da “virtude”».
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MEMÓRIA 21 Na actualidade, mesmo que uma parte da arqueologia mantenha a posição clássica do conceito étnico celta em relação a uma segunda Idade do Ferro (de raiz na cultura europeia de La Téne), impôs-se nas últimas décadas a necessidade de desconstruir e desfazer a categoria confusa e errónea criada em torno do céltico. Ponto de partida: o Outro O ponto-chave da questão do Celtismo é que este emerge de um discurso identitário que vinca a valoração e sobreposição ao «Outro». Essa formulação teve dois momentos principais, ao mesmo tempo contraditórios e complementares. Na acepção original de «celta», expressa por gregos e pelo domínio romano, essas populações são apresentadas em contraponto ao «civilizador» greco-romano, como o protótipo da «barbárie». Ao celta correspondia um tipo físico e psicológico com a ferocidade e o ardor guerreiros, de infindável desejo de liberdade e de práticas selvagens, embriagadas e extravagantes. Não esqueçamos: esse estereótipo não mais desaparecerá do discurso colonial, arauto da expressão civilizadora superior. Coube ainda aos autores greco-latinos, num segundo momento, a formulação do arquétipo celta do «bom selvagem» e «patriota», já nos finais do império romano, através de autores como Tácito, que reagia à avareza e amoralidade da Roma. Como refere Silvia Alfayé, consolida-se o modelo da simplicidade rústica, contemplando a «nobreza inocente do selvagem não corrompido pelos vícios sofisticados da civilização» e em que «a temeridade do combate se converte assim em heróica defesa da pátria, dos antepassados e da libertas». A figuração céltica servia então de cenário para acentuar os valores tradicionalistas a que a velha Roma degenerada deveria regressar.
A «Epopeia dos Castros» de Viriato e dos lusitanos permanece congelada no passado. No passado saudosista do Estado Novo, entenda-se. A dimensão política No seu «uso público» o celtismo está longe de poder ser encerrado como um problema histórico. É essencialmente uma questão sociológica, e do presente, em que a figura celta é projectada como um modelo utópico. Lidamos, diz-nos Silvia Alfayé, com «estereótipos, comunidades imaginárias e tradições, identidades e etnicidades célticas inventadas, que desempenharam um papel, esse sim histórico, inegável: a construção de entidades étnicas colectivas, projectos políticos e ideológicos, sejam nacionalismos, regionalismos ou discursos pan-europeistas». Nas sociedades contemporâneas esse uso político constitui-se como precedente da identidade e unidade política da União Europeia, ao mesmo tempo que é a inspiração por excelência das narrativas nacionalistas, onde o passado de confrontação guerreira com Roma é hoje parte do capital simbólico da identidade étnica construída intemporalmente contra o «inimigo exterior». Esta é a narrativa dos heróis fundadores, capazes de defender com a vida a pátria e a sua liberdade. E na síntese das opções centrípetas (europeístas) e separatistas, emerge a linha de pensamento identitário da extrema-direita, na qual a nostalgia do passado comum céltico e caucasiano guia o seu mito pan-europeista, pelo qual há que expulsar de todo o elemento externo
que não se adeqúe na Europa (e no oci- antepassados na afirmação dos nacionadente) a essa visão de celticidade. lismos europeus. Partilhando esses arquétipos, os arqueóRapidamente podemos adivinhar que, passados dois milénios, no discurso logos portugueses de finais do século XIX, populista contra o «degenerado» ocidente como Martins Sarmento, ou dos inícios do século seguinte, como Leite de Vasecoem os clamores tradicionalistas de Tácito sobre Roma. E no discurso autori- concellos, assumiram, porém, os Lusitanos e a Lusitânia pré-romana como um tário que reclama a mão férrea dos velhos tempos e no reavivar dos fascismos reve- povo de origem indo-europeia, mas prélam-se as figuras arquetípicas dos passa- -célticos arianos. Quanto maior a antidos nacionais celtas. guidade, maior a legitimação étnica, pelo que Martins Sarmento remonta os casA invenção de uma Nação tros aos tempos neolíticos e ao megaliEm Portugal, a extrema-direita, por entre tismo. E neste mundo castrejo ganhavam outros esqueletos no armário tradiciona- relevo as estátuas de guerreiros, identidade lista, racista e xenófobo português, parece e símbolos da heroicidade lusa frente ao não encontrar motivos de preocupação, inimigo exterior. dado que, da esquerda à direita, a cartilha Mas a tal posição opunha-se um distinto memorial nacionalista pré-histórica em modelo de etnogénese defendido por Alenada divergiu. Recuemos pois ao «nasci- xandre Herculano, que colocava o nascimento da nação» portuguesa, não ao seu mento de Portugal «da revolução (de um factual referente dinástico, mas ao passado punhado de nobres do condado portuétnico imaginado na construção do «por- calense) e da conquista (sobre o sul islâtuguês primordial». mico)», o que, como refere Carlos Fabião, A figura mais presente como antepas- «servem bem distintos discursos filosósado «luso» é o habitante dos castros. Os ficos e políticos». Oliveira Martins, outro povos castrejos e lusitanos, possuidores historiador de finais do século XIX, subsde «uma nobreza de carácter e firmeza da creveria Herculano: nada no passado prédefesa do território, tudo isto num quadro -romano apontaria a qualquer individualide rudeza bárbara», como resumiu Carlos dade étnica no espaço português. Os feitos Fabião, arqueólogo da Universidade de militares contra os «mouros» (estes baniLisboa, num dos vários artigos que ende- dos da herança nacional) ou contra Casreçou ao tema. Um sentimento colectivo tela e a Época dos Descobrimentos assumique expressa os arquétipos celtas forjados rão efectivamente a primazia no discurso desde o século XIX na busca das raízes das nacionalista português. Já no século XX, será com o Estado Novo nações europeias, «um dos grandes proque a valoração étnica assumirá uma exalgramas político-culturais dos românticos para a definição das “almas nacionais”». Ao tação épica, pronta a corrigir o que era contrário, porém, de outros espaços euro- designado como «o erro de Herculano» peus, as fronteiras relativamente estáveis e a favor dos «nossos antepassados lusitadesde a Idade Média não obrigavam Por- nos». Tal se deve essencialmente ao arqueótugal à resolução de um «problema nacio- logo Mendes Corrêa, cuja obra a editora nal». Menos ainda regionalista e separa- portuguesa Contra Corrente, veículo da extrema-direita identitária em Portugal, tista. O que não escusou o ensejo erudito e político português do forjar mítico dos anuncia reeditar. No seu primeiro volume
imagem de marca do tabaco "Celtas", Espanha
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A errada concepção de um povo celta único baseia-se numa religião celta acriticamente tomada num todo europeu «onde pontuam druidas, rituais sacrificiais e megalítos – círculos de pedras, pedras de sacrifício, altares e santuários rupestres – que não são mais do que fruto do imaginário do sacerdócio druídico construído durante o romantismo» do século XIX.
da História de Portugal, que intitula de “Lusitânia Pré-romana” (1928) é reforçado o argumento da longevidade, evocando um «império megalítico atlântico» e destaca-se «a Epopeia dos Castros». Aí se afirma como Viriato e «os lusitanos marcam o seu papel histórico sobretudo como guerreiros ciosos da independência pátria, insubmissos perante o poder e a cultura dos invasores. Ao contrário dos tartéssios e turdetanos [povos do sul peninsular], pacíficos e facilmente influenciáveis por estranhos, eles mantêm tenazmente durante séculos a sua rebeldia indomável». Por isso, Mendes Corrêa não desarma: «com a morte de Viriato não findara entretanto a epopeia dos castros», entendidos como as «nossas remotas glórias, o lar puríssimo da grei, a longínqua e primordial explicação da nossa independência e do nosso papel no mundo». E como os tempos eram de vento em popa aos ares germanófilos arianos, os lusitanos seriam certamente «Pré-Celtas, que receberam a influência cultural e talvez antropológica dos Celtas». Como refere Carlos Fabião, acrescentaria ainda Mendes Corrêa o argumento etnográfico do mundo rural português. Este «era o que era, por
constituir uma permanência arcaizante de hábitos e tradições milenares». Miseráveis, mas lusos. A ironia dos dignos representantes da simplicidade rústica que os gregos haviam evocado dois mil e quinhentos anos antes. A verdade é que a narrativa de Mendes Corrêa permanecerá como o discurso oficial do «nascimento da nação» no seu passado pré-romano. Impresso ao longo dos anos de ditadura de Salazar e inculcado pelas suas, hoje musealizadas, escolas primárias. E se Viriato surge notoriamente nos manuais escolares até à década de 1960, apenas vem a desvanecer o seu peso com a circunstância da entrada em cena das «guerrilhas» dos movimentos de libertação das colónias portuguesas. O certo é que a formulação heroificada da pátria em Viriato não mais descolou dos programas de ensino oficial antes e depois de 1974. Se o questionamento das epopeias pátrias portuguesas seguintes, como a dos Descobrimentos, tem vindo a suscitar justificadas discussões, já a «Epopeia dos Castros» de Viriato e dos lusitanos permanece congelada no passado. No passado saudosista do Estado Novo, entenda-se.
Druídas e pagãos
valor ideológico do celta como «Bom Selvagem» e a ideia de um modo de vida rude e simples apela a «uma balsâmica e atractiva utopia, na qual o indivíduo poderia recuperar a harmonia com a natureza, o sentido de pertença a uma comunidade orgânica, a comunicação com o mundo espiritual, a expressão livre e não normalizada das suas emoções e da sua criatividade e o desfrutar da vida». Assim ilustra a arqueóloga Silvia Alfayé o apelo celta a um modo de vida alternativo à modernidade e à sociedade tecno-industrial. Um modelo imaginado de rusticidade contendo «elementos de cultura local, uma etnicidade mística, uma associação com o rural que satisfaz as nostalgias ecológicas de culturas que sabiam “escutar a terra” e umas práticas religiosas distanciadas das ortodoxias estabelecidas». Nesse apelo dificilmente se poderá contrapor as falsidades das narrativas pseudo-históricas. A verificação científica é rejeitada em prol da «intuição» e da «visão interior». Nessa esfera, a errada concepção de um povo celta único baseia-se numa religião celta acriticamente tomada num todo europeu «onde pontuam druidas, rituais sacrificiais e megalítos – círculos de pedras, pedras de sacrifício, altares e santuários rupestres – que não são mais do que fruto do imaginário do sacerdócio druídico construído durante o romantismo» do século XIX. Este «modo de ver celta» encerra ainda o potencial de uma narrativa política pela qual a «celticidade pós-moderna se constrói em contraste permanente com os valores ideológicos do capitalismo, como uma reacção mas também como uma solução anti-sistema, gerando assim diversas, e ocasionalmente incluindo, identidades neocélticas contraditórias». Mas este campo alternativo é essencialmente uma narrativa espiritual, onde distintos e contraditórios sujeitos neo-celtas aludem a um neo-paganismo que faz uso de imagens, ritos e símbolos comuns associados à natureza. Estes, e os seus objectivos políticos e espirituais, revelam-se nos mais opostos possíveis: de neonazis a anarquistas, caricaturando. Também espiritualmente não há qualquer inocência nos modos de ver o passado céltico. A ética social subjacente às referidas contradições requer, por isso mesmo, não uma negação da espiritualidade, mas um acutilante olhar crítico e uma clarificação do seu uso. Importa resgatar as palavras de Júlio do Carmo Gomes à volta do paganismo e da espiritualidade no ocidente (Parte III da série Candomblé na edição 25 do Jornal MAPA): «a espiritualidade enquanto devir para a liberdade
é uma coisa; a espiritualidade cooptada pelas instituições políticas da sociedade é coisa bem diversa». O celtismo que surge na reacção do romantismo à modernidade não poderia deixar de eleger o paganismo como um dos seus eixos centrais. Equiparou Júlio Gomes, paganismo e «homem selvagem» ao «antimodelo do homem civilizado». E esse é também o Outro da cultura greco-romana e judaico-cristã, personificado no celta. Por «paganismo» referimo-nos à generalidade das tradições religiosas politeístas, a cultos e a divindades veneradas em práticas profanas relacionadas com os elementos da natureza. Por «neo-paganismo» referimo-nos ao reviver dessas religiões europeias já extintas, e à recuperação da espiritualidade profana, popular, do mundo rural e natural. A equivalência possível com o neo-celtismo resulta das práticas espirituais de inspiração céltica, como neo-druidismos, a wicca, entre outras. É nessas distintas práticas, e não a espiritualidade que comparte a «nostalgia por um “cosmos encantado” pré-industrial», que os opostos se revelam. Como recorda Silvia Alfayé, por um lado, o nacional-socialismo nazi de Hitler contrapunha uma «alternativa religiosa e ética ao judaico-cristianismo», adequando o passado celta à popularização de uma «nova religião etno-pagã que misturava cultos solares, assembleias militares e elementos mitológicos germanos e escandinavos». Um etno-paganismo de extrema-direita ainda hoje bem presente em correntes musicais «nórdicas» do black metal à folk contemplativa, mas que remonta aos inícios do séc. XX, na edificação de uma «cultura alemã» higienista e eugenista (da qual resultará a colagem céltica aos corpos atléticos que ainda hoje perdura). Pelo lado oposto, sobretudo a partir dos anos 1960, desenvolvem-se nos movimentos ecologistas, de contestação da esquerda e anarquistas, um neo-paganismo como uma «religão verde», no qual o papel «druídico» feminino toma lugar no empoderamento das mulheres e dando lugar a comunidades e vivências alternativas. Elementos que hoje possibilitaram parte da emergência do eco-feminismo e de uma visão espiritual dos movimentos ambientalistas que reactivam «topografias sagradas atávicas mediante o ritual, contribuindo proactivamente à re-sacralização e re-mitificação do mundo». O neo-paganismo celta resulta assim, conforme exposto, num conceito de múltiplos usos, espelhando a diversidade dos caminhos do celtismo, a partir de uma mensagem tão simples como eficaz, de retorno à natureza ou a um passado impoluto.
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MEMÓRIA 23
Celta pronto-a-vestir Por toda a Europa, os nacionalismos recorreram ao passado céltico como construção dos referenciais étnicos primordiais. Em França, a identidade gaulesa surge com a fundação por Napoleão, em 1805, da Academia Céltica, enaltecendo o mito do herói nacional Vercingetorix, chefe gaulês da batalha de Alésia. Já o nacional-socialismo nazi será porventura o exemplo extremo e mais conhecido da ideologia nacionalista xenófoba e totalitária construída sobre o paradigma celta e pelo qual Hitler ascendeu, popularizando a «superioridade natural» alemã. Em Espanha, que igualmente reclama o «seu» Viriato, o mosaico do pronto-a-vestir de celtismos varia entre o nacionalismo espanhol da ditadura de Franco e, após a transição democrática, as roupagens célticas mais ou menos independentistas das regiões autónomas a norte. A base racial «primordial» reconhecida popularmente em Espanha é a dos celtiberos, tanto de celtas como de iberos, apesar de o regime franquista ter ensaiado inicialmente um pan-celtismo. O lado fascista promovia, já em plena Guerra Civil de 1936-39, como nos fala Ruiz Zapatero, o espaço geográfico espanhol como uma realidade natural unitária, a unidade política e a unidade religiosa católica. Nessa exaltação nacional, como nos episódios de resistência ao invasor romano de Sagunto ou Numancia, defendia-se, em afinidade com a Alemanha nazi e a Itália fascista, uma sobrevalorização dos celtas e menos dos iberos. No fim de contas, os investigadores madrilenos mais influentes, como Martínez Santa-Olalla e Almagro Basch, haviam estudado na Alemanha a supremacia ariana. Mas, no pós-Segunda Guerra Mundial, depois dos processos de «eliminação» assiste-se À semelhança da vizinha região portuguesa, à «recuperação» dos iberos, formulando os que as fontes clássicas custavam já a difeceltiberos como os «primeiros verdadeiros renciar dos Galaicos, os castros são tradicioespanhóis», como nos finais do século XIX havia sido proposto. Hoje o celtibero per- nalmente lugares celtas, e também a Galiza manece um emblema da extrema-direita tem os seus defensores de uma origem contra os independentismos, seja procla- indígena (pré-histórica), e não celta, das mado pela estética nacional-católica, seja suas tribos. Mas, como em Portugal, o celnas fileiras nazis, chamando a si a estética tismo é devedor não de qualquer debate pagã pré-romana, ambos em oposição arqueológico, mas de manifestações socioa qualquer mestiçagem cultural e étnica. -ideológicas nascidas de um romantismo Mas o celta, na sua luta frente ao opres- nacionalista, apoiado na mitologia e folsor externo, é também atractivo junto das clore galegos, na música popular tornada exaltações regionais ou independentismos «celta», na imaginação popular ou mesmo nacionalistas das esquerdas comunistas. no exoterismo contemporâneo neo-pagão. Como estatuto das comunidades autónomas, em 1978, o discurso nacional dos cel- Crer, obedecer e consumir tas deu lugar a uma explosão de «histórias Todos estes celticismos nacionalistas de «alta intensidade» não poderiam perdurar nacionais», sobretudo na Galiza, Astúrias sem os celticismos de «baixa intensidade». e Cantábria, tornadas regiões-marca de um celtismo popular em crescendo. Um pro- Há sempre um momento em que apelacesso em contra-ciclo com a região céltica mos ao nosso lado neocelta num festival mesetenha, ainda que sítios arqueológicos global de música celta ou na enésima feira como Numancia tenham conseguido pro- de recriação histórica. Mais ainda quando mover-se com sucesso enquanto «produto» somos próximos às ruínas de que os nossos turístico local e regional. avós falavam e que os arqueólogos vieram Na Galiza, a reconstrução histórica dos escavar. Nesse momento, todas as estratéceltas recuará mesmo à acção política do gias mercantilizadas e turísticas parecem séc. XIX, explicando a grande importân- não só fazer todo o sentido, para que o «cascia do celtismo na região, como exem- tro» dos nossos avós não caia no esqueciplifica o clube de futebol Celta de Vigo. mento, como também se assemelham
em imagens e fabricando poderosas representações icónicas em torno de três eixos: a raça, a pátria e o herói. Consciente ou inconscientemente alimentados até à exaustão nos manuais escolares, em bandas-desenhadas, filmes, na imprensa, literatura, nos cancioneiros e poesias populares, nas práticas religiosas, nos produtos locais; ou até onde os mercados, a publicidade e a política nos podem levar. O importante é crer, não entender.
A actual extrema-direita identitária e populista deste século cuidaram de não descurar as esferas de informação popular da história, alicerçando-as em imagens e fabricando poderosas representações icónicas em torno de três eixos: a raça, a pátria e o herói. a uma justa recuperação dos nossos sentidos de pertença individual e local. Da nossa região, hoje periférica em tempos de globalização, mas que cremos central nesse passado remoto. Como enuncia Gonzalo Ruiz Zapatero, o poder que o passado exerce resulta da natureza destes ícones enquanto senhas de identidade e referentes de prestígio: «apresentam-se aos olhos do espectador completamente descontextualizados, mas rodeados de uma áurea de respeitabilidade pela sua antiguidade e pelas suas implicações históricas, independentemente de estas serem conhecidas ou não pelo observador.» Invocam três aspectos: a Origem; a Antiguidade – a raiz e nobreza de um antepassado comum – e o Progresso: a possibilidade de uma evolução dentro da identidade. Mas, mais que invocados, são-nos impostos. A cultura, enquanto instrumento de controlo social, dita-nos nas palavras de Rafael Sánchez Ferlosio: «esta é a tua herança histórica, este é o teu ADN cultural, esta é a tua inealável identidade». Por isso, os fascismos europeus do século passado e a actual extrema-direita identitária e populista deste século cuidaram de não descurar as esferas de informação popular da história, alicerçando-as
Ponto de chegada: o Outro Assumindo a história como contributo ao desenvolvimento das identidades nas relações entre povos e indivíduos, importa desmontar mistificações em nada inocentes, como o celtismo. Apenas esse compromisso permite apelar à busca de novas referências colectivas e funções sociais, que não o quadro de referência celta e a intolerância étnica sobre a qual ele foi edificado.Com efeito, os estereótipos célticos, da valorização do local, da rusticidade e da relação com a natureza e da resistência pela liberdade, abrem outras possibilidades ao modo de ver o passado e um outro presente. Como conclui Ruiz Zapatero: «negar a existência dos celtas pré-históricos porque outros manipularam a sua origem é negar um passado possível». Não se trata assim de deixar de «demonstrar a nossa herança comum europeia e as nossas identidades regionais e de grupo», mas sim «e sobretudo empregar a história para demonstrar o disparate do conflito étnico, tanto no seu uso ilógico de símbolos e da história, como pelo dano que causa a quem se deixa levar por ele. Por isso, o caminho está na desconstrução da categoria celta impressa na história europeia desde há mais de 300 anos. Só a partir da crítica construtiva do conceito poderemos descobrir a realidade oculta por detrás dos clichés convencionais, clichés que nós fomos construindo e que estamos moralmente obrigados a desconstruir». O grande desafio coloca-se à formulação das identidades colectivas. E o celtismo é um exemplo do espelho de visões distorcidas reflectidas por essas identidades imaginadas. O celtismo pretende simplificar e encerrá-las num corpo único e rígido, social e étnico, negando a dinâmica e riqueza natural das variabilidades inscritas em qualquer identidade histórica socialmente construída. À semelhança dos nacionalismos – sejam eles quais forem – as ideologias identitárias, nas palavras de Júlio do Carmo Gomes «predispõem-se ao cerrar de fronteiras em vez de se abrirem ao nexo relacional com o outro». Não se expandem, antes contraem-se. Neste caso, o celtismo impõe, nos seus códigos, a moralidade eugenista e xenófoba dos «verdadeiros» e «primordiais», e adopta a rigidez normativa de relações humanas feitas de exclusão e de punição. Esse olhar distorcido ao espelho recusa a relação perspectiva e evolutiva com o Outro. E esse é um passado que não deverá tornar-se presente, nem nos abrirá as portas ao futuro.
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Memória de um Rio
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TEXTO E FOTOS RICARDO INVERNO
ra um vale imponente. Era um rio ímpar. Eram margens carregadas de história e de muitas estórias. Eram ravinas grandiosas e assustadoras. Era um percurso especial de águas bravas. Sim, era. Ou eram. Deixaram de ser e, provavelmente, nunca será igual. Tudo em nome do progresso que, na realidade, não chegou. Ou então o progresso é o nome que dão ao uso e abuso de cimento e alcatrão, mesmo que isso aniquile a potencialidade de uma região. As idas ao Tua (gíria de águas bravas) eram clássicas para a comunidade canoísta. Íamos pelos fabulosos rápidos, um volume de água fora do comum em terras lusas, pela envolvência, pelo convívio com as gentes locais e pelas termas naturais de
água quente que tantas noites inesquecíveis nos proporcionaram. A nós e a quem nos visitava. É isso mesmo, o rio Tua era um dos must go and paddle para todos os kayakers estrangeiros que colocavam Portugal no seu cardápio de águas bravas. Eram 18 kms de muito divertimento que se traduziam em aproximadamente cinco horas de navegação. A entrada oficial era na Praia Fluvial da Brunheda, muitas vezes substituída pelo lugar de São Lourenço, onde pernoitávamos num misto de acampamento com tendas e falsas autocaravanas – leia-se qualquer viatura com quatro rodas transformada artesanalmente para responder às necessidades do nosso desporto. São Lourenço, para uma geração de canoístas, será sempre sinónimo de termas de água quente de utilização gratuita, nas quais nos deliciávamos noite dentro depois de uma longa jornada no rio Tua. Era um local mágico, um aglomerado de casas
Dificilmente me irei esquecer das lágrimas de alguém que percebeu que o alcatrão e o cimento não iam trazer o “ElDorado” prometido. O que creio me marcou mais do que aquela grotesca parede de cimento que matou a nossa garganta do Tua.
numa das encostas da margem esquerda do rio. Acordar, descer até à linha de comboio e contemplar aquela secção engargantada do Tua, com a aldeia do Amieiro em pano de fundo, era um momento marcante para qualquer ser humano que simpatize minimamente com a Natureza. As correntes do Tua levavam-nos pela sua garganta até as suas águas perderem importância e mudarem de identidade, passando então a pertencer ao grandioso rio Douro. Até atingirmos esse ponto na foz, a sua pendente proporcionava-nos rápidos para todos os gostos, intercalados por pequenas «piscinas» de águas lisas. E grande parte destas passagens mais turbulentas eram caracterizadas por muita massa de água a movimentar-se por entre blocos de granito das mais diversas dimensões e formas. A diversidade dos rápidos era uma das características daquele grande percurso de puro divertimento. Existiam
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rápidos que exigiam maior atenção devido à perigosidade que ofereciam, outros, mais limpos de obstáculos, criavam grandes ondas estáticas que nos permitiam sessões de surf sem sair do mesmo local, e outros ainda, a grande maioria, desafiavam-nos a navegar bem atentos, de modo a evitar situações desagradáveis. À medida que nos íamos aproximando da junção dos rios, a intervenção humana brindava-nos com construções indescritíveis. Sim, obviamente, a linha de comboio era o ex-libris deste vale, e essa acompanhava-nos pela descida na íntegra. Mas existiam outras obras, executadas pelas gentes que povoaram este vale, que nos marcaram de tal forma, que ainda hoje são tema de muitas tertúlias. Refiro-me, principalmente, às inúmeras varandas de terra, limitadas por pequenos muros de paralelepípedos de granito, que albergavam oliveiras e amendoeiras desde o topo do vale até praticamente à linha de água. Inimaginável, alguém descer aqueles socalcos, colher a azeitona e a amêndoa e subir aquele desnível tão abrupto. Algo que na nossa sociedade actual seria considerado «Obra Sem Interesse Económico». É indiscritível o que
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Inimaginável alguém descer aqueles socalcos, colher a azeitona e a amêndoa e subir aquele desnível tão abrupto. Algo que na nossa sociedade actual seria considerado «Obra Sem Interesse Económico».
sentíamos ao olhar para essas encostas a partir do lugar mais fundo do vale. Grande parte dos nossos compinchas estrangeiros não acreditava no que via e o desejo de adquirir azeite local era imediato. Ir ao Tua, noventa e nove por cento das vezes, significava despender o fim-de-semana todo para essa missão. Muitas delas iniciavam-se à sexta-feira logo após a saída do trabalho e estendiam-se até ao fim de tarde de domingo. É verdade que remar aquela majestosa garganta era o principal objectivo. Porém, na maior parte das deslocações, o programa não fazia sentido se não envolvesse o contacto com as populações locais. A dada altura, com alguns amigos de convívios esporádicos. Éramos bem recebidos por grande parte das gentes que habitavam nas terras em redor do Tua. Tenho a certeza que ainda o seremos, e para sempre. Em Pombal, na Primavera, as noites já eram quentes e de minis na mão trocávamos vivências com os populares. Em Carlão, o azeite caseiro, o pão local, o queijo arranjado à última da hora, os velhos copos com tinto, combinavam com as longas conversas que acabávamos sempre por ter com o casal dono da «tasca» mais simples que
me ocupa a memória. Confesso que tenho saudades deles e curiosidade em saber se continuam a soprar as suas inúmeras velas juntos. Há que voltar, mesmo sem caiaque. Podia fazê-lo nas águas lisas criadas pela barragem? Não. Seria trair o longo vale submerso e os momentos que ele nos proporcionou. Do Pinhal Norte, mais propriamente do Café Pôr-do-Sol, ficam os memoráveis pequenos-almoços com as suas tostas deliciosas, servidas com bastante simpatia pela família proprietária do pequeno negócio. E das noites bem passadas a contarmos as nossas aventuras em troca das deles. Nas noites de mau tempo, muitas foram as vezes que o convite para pernoitar na sala de snooker foi negado, em prol dos banhos quentes das Termas de São Lourenço. Memórias felizes, muito felizes e deveras marcantes. Memórias infelizes? Sim, algumas. Infelizmente, as finais. Dificilmente me irei esquecer das lágrimas de alguém que percebeu que o alcatrão e o cimento não iam trazer o El-Dorado prometido. O que, creio, me marcou mais do que aquela grotesca parede de cimento que matou a nossa garganta do Tua.
Barragem do Tua foi a morte de um rio. Inundados 420 hectares de consórcio francês por 2,21 mil milhões de euros. Só neste pacote, o plano nacional de um vale imemorável. Milhares de árvores abatidas, a qualidade da barragens implicara um investimento conjunto de 1,4 mil milhões de euros. água comprometida, solos agrícolas, habitats raros de vida animal Esta é uma das faces do «progresso» prometido pela Barragem do Tua. Mas a vere humana extintos. A destruição de um território de gentes e gera- dadeira face do crime desapareceu sob a acalmia das águas do prometido progresso. Restam as memórias de um rio, aqui partilhadas no Jornal MAPA por Ricardo Inverno, ções moldadas nos íngremes socalcos do rio Tua. Desde a junção que em caiaque desceu vezes sem conta as tumultuosas águas selvagens do rio. dos rios Tuela e Rabaçal, a montante de Mirandela, o Tua sulcava as Em julho, a Rede Douro Vivo, com ambientalistas e investigadores de várias univermontanhas ao longo de 40 kms até ao Douro, correndo ao lado da inesquecível e censidades, concluía, de acordo com o jornal Público, uma mensagem válida para barratenária linha do Tua, via férrea amputada em 1992 por Cavaco Silva, e encerrada em 2008, com o objetivo do Aproveitamento Hidroelétrico de Foz Tua. Apesar de viva- gens de outros rios: «custos severos naquilo que é a função de um rio» e «um impacto grave na biodiversidade», pelo qual «as actividades económicas de populações locais mente contestado, o crime foi consumado. Um crime de estado, pelo qual o Estado português sentenciou a morte de um rio. ficam também em risco». Só no Douro existem 57 grandes barragens e um total de A Barragem do Tua fora concessionada à EDP, no âmbito do Programa Nacional de 1200 barreiras que fragmentam o rio, das quais 25% estão abandonadas ou obsoletas. Barragens lançado em 2007, pelo governo de José Sócrates, e do qual veio a resultar Em maio de 2021, apaixonados por rios, ativistas, ONG’s e especialistas juntar-seo caso EDP. Neste são arguidos desde 2017 – o ano em que a barragem foi inaugurada – -ão na European Rivers Summit (ERS), em Lisboa, com vista a prosseguir a sua luta António Mexia, presidente da EDP, e João Manso Neto, presidente da EDP Renováveis, pelos Rios Livres. Como refere o projeto “Rios Livres” do GEOTA – Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente, há uma urgência na preservação dos rios por suspeitas de corrupção ativa e participação económica em negócio. Nesse mesmo processo foram suspensos da administração da EDP em julho passado, já depois de, selvagens em Portugal e no mundo e em alertar para a importância social, ambienem finais de 2019, terem anunciado a venda do Tua e de outras cinco barragens ao tal e económica dos ecossistemas ribeirinhos. F.N.
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26 UTOPIAS CONCRETAS
«Devemos avançar com a organização de circuitos económicos solidários» Entrevista com Euclides Mance «Explorar as fendas do capitalismo» através da criação de «circuitos económicos solidários» que interfiram nos fluxos económicos, políticos e culturais dominantes, promovendo assim «a libertação das forças de produção, intercâmbio e crédito» rumo ao bem-viver das pessoas e das comunidades. É esta a proposta de um dos principais teóricos da Economia Solidária e da Economia da Libertação na América Latina, Euclides André Mance, entrevistado por La Marea nas vésperas do Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras.
BLANCA CRESPO TRADUÇÃO, ENQUADRAMENTO E RESUMO SARA MOREIRA ARTIGO PUBLICADO ORIGINALMENTE EM CASTELHANO NA REVISTA MENSAL LA MAREA EM JUNHO DE 2020 E DISPONÍVEL EM LAMAREA.COM ILUSTRAÇÃO ANDY LAMB (CC BY)
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xplorar as fendas do capitalismo» através da criação de «circuitos económicos solidários» que interfiram nos fluxos económicos, políticos e culturais dominantes, promovendo assim «a libertação das forças de produção, intercâmbio e crédito», rumo ao bem-viver das pessoas e das comunidades. É esta a proposta de um dos principais teóricos da Economia Solidária e da Economia da Libertação na América Latina, Euclides André Mance, co-fundador do Instituto de Filosofia da Libertação e da rede Solidarius, e autor de obras como Constelação Solidarius (2008), onde analisa o sistema capitalista e as suas falhas, e propõe caminhos para superá-lo. Em entrevista nas vésperas do arranque do Fórum Social Mundial de Economias Transformadoras (cuja primeira parte teve lugar de 25 de Junho a 1 de Julho online, e continuará em Outubro em Barcelona), o filósofo brasileiro fala sobre auto-gestão das comunidades a partir dos territórios locais e apela à formação de redes e circuitos de cooperação a diferentes escalas, de forma a «expandir e consolidar a libertação das comunidades humanas, organizando novas formas sociais e de convivência dos seres humanos entre si e com os ecossistemas».
Partindo de um diagnóstico sobre as principais carências do capitalismo, Euclides Mance disseca as várias fendas sistémicas, que vão desde o plano do crédito que leva ao endividamento e concentração do capital, às trocas e desigualdades sócio-económicas, à produção e distribuição de valores, passando também pelas falhas da «democracia», com a «subordinação do Estado aos interesses do capital internacional, resultando na negação de direitos sociais, políticos e económicos das populações». Para Mance, a crise da COVID-19 tem vindo a aprofundar estas fendas, com o agravamento do endividamento das pessoas, empresas e países, a exclusão de trabalhadores e trabalhadoras, a oscilação da moeda e outros signos de valor, o aumento da concentração de riqueza, o crescimento do «capitalismo de plataforma», e as próprias medidas adoptadas pelos governos para enfrentar a crise, que só vêm reforçar os «fluxos materiais e de valores» das cadeias capitalistas de produção, circulação e consumo, bem longe de
uma perspectiva de superação sistémica. Perante este cenário, quais as alternativas possíveis? Como vê as propostas da economia solidária e de outras redes colaborativas de apoio mútuo e solidariedade que também tem estudado ao longo dos anos? A principal questão é como é que estas iniciativas e redes irão avançar na organização de «circuitos económicos solidários para construir alternativas ecológicas e solidárias face aos circuitos económicos do capital». Actualmente, grande parte do valor económico produzido nas economias solidárias e alternativas, em todo o mundo, acaba por fluir para os circuitos económicos do capital, desaguando na acumulação capitalista de valores. Por exemplo, quando produtos gerados nos circuitos solidários são comercializados nos circuitos do capital com a obtenção de lucros pelo capital mercantil (comercial e financeiro); em operações de financiamento de produção e comercialização solidários, com o pagamento de juros aos bancos privados que fornecem crédito; com a aquisição de
produtos finais ou de meios produtivos por actores da economia solidária a fornecedores capitalistas (...); quando empresas solidárias são subcontratadas por empresas capitalistas, entre outras formas. Deste modo, estes actores solidários e alternativos cumprem um papel importante na reprodução do capitalismo, completando os valores necessários para assegurar a engrenagem capitalista da produção e circulação com valores que não foram distribuídos pelo capital, mas sim por estas economias sociais e solidárias. Por outro lado, quando estas iniciativas se integram em circuitos económicos solidários, a situação pode ser muito diversa. Pois, neste caso, utilizando ou não plataformas virtuais, o consumo final das pessoas e dos agregados, as suas aquisições de bens e serviços, bem como o consumo produtivo das próprias iniciativas, é agrupado e atendido nestes circuitos, fortalecendo as cadeias de produção, circulação e consumo solidárias. Ao conectar estes fluxos económicos, constroem-se estratégias que permitem criar fundos para a libertação das forças de produção, circulação e crédito, com valores que anteriormente eram obtidos como lucros por actores capitalistas nos circuitos económicos do capital, mas que agora são realizados como excedentes de valor nas iniciativas, físicas ou virtuais, dos circuitos económicos solidários, uma vez que através deles se pode adquirir aquilo que se necessita. Estes circuitos podem ser formalmente registados como cooperativas para a autogestão comunitária ou formalizados de outras formas. O fundamental é que estejam integrados em redes colaborativas e solidárias, para que possam
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UTOPIAS CONCRETAS 27 retroalimentar-se nos seus fluxos de libertação económica. O conceito das «economias transformadoras» tem vindo a ganhar importância nos últimos anos. Qual é o potencial deste conceito e como podem as diferentes economias alternativas retroalimentar-se a partir desta ideia comum? A transformação de algo significa a passagem (trans-) de uma forma a outra forma. O «valor económico», por exemplo, sofre muitas transformações na sua metamorfose ao longo dos processos de produção e circulação. No sistema capitalista, o valor-capital, sob a forma de dinheiro, é investido em meios produtivos e trabalho. Estes são transformados em produtos. Estes passam por outra metamorfose ao converter-se em mercadorias quando são levados ao mercado. E depois são trocados por dinheiro, de tal modo que se recupera o valor investido e se realiza como lucro o valor novo que foi criado pelo trabalho que produziu as mercadorias. Assim, a transformação do valor no processo de produção, circulação e crédito é condição necessária para a reprodução ampliada do capital. Nas acções desta metamorfose ou transformação do valor, ocorrem processos de exploração no trabalho, expropriação no intercâmbio e espoliação no crédito que fazem do capitalismo um sistema intrinsecamente injusto. Se por «economia transformadora» se entende uma economia que nega a forma capitalista de produção, circulação e crédito para criar outros modos de produção e outros sistemas de intercâmbio e crédito que sejam ecológicos, solidários e autogestionados pelos trabalhadores e suas comunidades, então, de facto, pode tratar-se de uma «transformação libertadora». Mas se somente se introduz novas formas de organizar a economia sem suprimir estas estruturas de exploração, expropriação e espoliação, então ela contribui para aperfeiçoar o capitalismo ou para criar algum outro sistema económico que não supre os mecanismos estruturais de dominação económica. Não basta somente libertar o valor e o trabalho de um sistema económico, se estes elementos são postos em contradição entre si no novo sistema que se organiza com a superação do anterior. «O valor económico e o trabalho, ambos libertos» do sistema feudal, foram condição necessária ao surgimento do sistema capitalista. Vemos hoje que o desenvolvimento das forças produtivas está a impactar fortemente as relações sociais de produção, circulação e crédito. (…) Com tais valores e trabalho assim libertados, o objectivo é avançar na construção de um sistema económico pós-capitalista, multiplicando e integrando «circuitos económicos solidários» em redes colaborativas, com o sentido histórico de realizar o bem-viver das pessoas e comunidades, conectando as capacidades e necessidades humanas para expandir as liberdades de todos e não o enriquecimento de alguns. Portanto, a questão é onde se quer chegar com a transformação que se procura fazer e como se fará tal transformação. É aí que se decide, na minha opinião, o potencial deste conceito. Que papel joga neste cenário a realização de um Fórum Social Mundial de Economias Transformadoras como o que tem lugar agora? O Fórum Social Mundial das Economias Transformadoras tem um papel muito importante. Há muitas e diversas práticas de economias sociais, solidárias e alternativas. E o conceito de economia transformadora tenta abrigar, na minha visão, a diversidade de possibilidades de realização económica de carácter libertador. O fórum é um espaço muito importante de fluxos de informação, comunicação
«o objectivo é avançar na construção de um sistema económico pós-capitalista, multiplicando e integrando circuitos económicos solidários em redes colaborativas, com o sentido histórico de realizar o bem-viver das pessoas e comunidades, conectando as capacidades e necessidades humanas para expandir as liberdades de todos e não o enriquecimento de alguns». e educação em processos dialógicos partilhados que brindam todos/as com uma compreensão mais ampla da mesma realidade dos actores e suas propostas para a transformação da economia e pode, também, ser um espaço muito importante de fluxos de poder, com o estabelecimento de acordos entre actores para acções conjuntas. Mas se o fórum não avança decididamente para promover a integração local e global dos fluxos económicos próprios das economias transformadoras, não haverá transformação económica alguma que seja geradora de outros modos de produção e apropriação, outros sistemas de troca e crédito e outras formações sociais efectivamente libertadoras. Não basta dialogar sobre o mundo ou partilhar visões sobre ele, há que transformá-lo. Que linhas estratégicas crê que deveriam ser incorporadas na agenda deste movimento nos próximos meses? Uma estratégia integra diferentes acções entre si para o alcance de objectivos colectivamente definidos. Se o objectivo é realmente a transformação da economia mundial com bases ecológicas e solidárias, a estratégia deve ser desenhada para o longo prazo, para que se defina com razão as acções mais imediatas, para que elas contribuam para a consecução de tais objectivos. Com esta perspectiva, o mais necessário, na minha opinião, é a organização de circuitos económicos solidários , através da criação e desenvolvimento de plataformas virtuais que facilitem a organização de comunidades económicas e a integração local e global dos fluxos económicos dos territórios, organização de emporios físicos ou virtuais para mediar as aquisições dos consumidores solidários com margens de excedentes destinados a fundos de libertação económica para investimentos colectivos que possam dar origem a iniciativas económicas autogestionadas nos territórios. O processo de mapeamento de necessidades e ofertas, organização de catálogos de compras, trocas e doações, activação de contas electrónicas para transações nestes catálogos (com moedas, pontos e agradecimentos registados em blockchains) e deliberações democráticas sobre o circuito, possibilitam consolidar as comunidades económicas, que podem integrar-se em rede com outros circuitos, através da mesma
plataforma, em fluxos económicos regionais, nacionais e internacionais. Outro ponto é que muitas pequenas empresas capitalistas estão a fechar actividade neste momento de crise. Face a isto, se as plataformas de economia solidária fossem capazes de agrupar volumes de consumo significativo, seria possível usar os recursos dos fundos de libertação económica para que os/as trabalhadores/as de algumas destas empresas pudessem comprá-las e pô-las de novo em funcionamento, mas agora em autogestão, oferecer os seus produtos através de plataformas para a rede de circuitos e restituir progressivamente os valores disponibilizados pelo fundo. (...) Importantes sectores da população e dos movimentos sociais e correntes alternativas estão a fazer uma leitura do momento de crise actual como uma oportunidade de mudança para uma transição eco-social. Vê isto como possível? Como seria um mundo guiado pelas lógicas e valores da economia social e solidária? Sem uma vacina ou medicamento eficaz nos próximos meses para enfrentar o novo coronavírus ou a COVID-19, esta pandemia poderá levar à morte milhões de pessoas em todo o mundo, que na sua maioria não têm condições materiais para proteger-se a si mesmas e às suas famílias do contágio do vírus. Neste momento, em muitos lugares, empresas capitalistas avançam na conversão de processos laborais que lhes permitem operar de outros modos, reduzindo custos. E também, para consolidar as suas marcas, fazem doações para fins sociais de valores que antes estavam destinados à publicidade nos seus orçamentos. Com a quebra de empresas mais pequenas ou mais débeis,
as maiores ou mais fortes açambarcarão mercados e concentração do capital prosseguirá. E todos os ajustes que se façam, agora, de forma provisória, poderão ou não ficar como definitivos mais tarde. Mas, como a classe trabalhadora está muito debilitada, o cenário pode ser de muitas perdas para os mais pobres e para as classes médias. No que diz respeito aos governos, em linhas gerais, vê-se que as políticas neoliberais estão a dar espaço a acções de intervenção económica que, contudo, não procuram mudar as bases da exploração do trabalho, expropriação na troca, e espoliação no crédito, fundamentais no capitalismo. Os governos necessitam de reactivar a economia para captar impostos para manter os próprios serviços públicos. Até onde estarão dispostos a ampliar as dívidas públicas para não cortar políticas públicas não se sabe. Mas para os mais pobres o cenário também é muito desfavorável. E, por outro lado, como não há uma solução capitalista para integrar os excluídos nos processos de produção e consumo sem endividá-los, e também não haverá solução para os Estados manterem economicamente milhões de excluídos e pessoas com sequelas da COVID-19 sem colectar impostos sobre a actividade económica, grande parte da sociedade que ficará desempregada e, sem cobertura de políticas públicas, procurará soluções para a sua sobrevivência, podendo encontrar resposta tanto nas economias solidárias como na criminalidade. Se na pandemia muitos estão a redescobrir a importância da solidariedade, o futuro pós-pandemia seguirá pleno de contradições. O capitalismo não se dissolverá por si mesmo. Se as suas fendas sistémicas estão cada vez mais alargadas, por outro lado, as forças do capital estão cada vez mais fortes. E isso exigirá das forças económicas solidárias muita capacidade de mobilização, organização e educação para construir as bases dos novos modos de produção e apropriação, dos novos sistemas de intercâmbio e crédito e das novas formações sociais, todos eles ecológicos e solidários, que há que construir.
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Grandes projectos turístico-imobiliários ameaçam a orla costeira entre Tróia e Melides
Num cenário actual que nos leva a questionar e desconstruir a monocultura do turismo, os grandes promotores imobiliários e o governo apostam no regresso em força dos resorts. Em 2010, o Plano Regional de Ordenamento do Território do Alentejo prometera que o litoral alentejano seria a nova meca do investimento turístico e imobiliário em Portugal. A crise financeira global travou esse ímpeto, mas uma década depois a sentença está a ser cumprida. Oito enormes projectos turísticos, a piscar o olho às elites estrangeiras, ameaçam um dos últimos redutos do litoral ibérico selvagem. O movimento Dunas Livres conta-nos esta triste história à beira-mar – e apela a que actuemos por um final mais feliz.
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MOVIMENTO PELAS DUNAS LIVRES OVDUNASLIVRES@GMAIL. COM M
odos conhecemos a histó- turístico de sempre» do país. Uma ambição ria: de Norte a Sul, a costa que acabou por se desmoronar com o 25 portuguesa vive acome- de Abril. Mas a ideia seria resgatada pela tida pela pressão da arti- SONAE em 1997, e hoje reside encarnada ficialização por parte da no Troia Resort: hotéis, marina, campo de indústria turístico-imobi- golfe, casino, centro de conferências, aparliária. Actualmente existem instrumentos tamentos e aldeamentos. de ordenamento do território, como os Oito quilómetros a sul localiza-se, desde Planos de Ordenamento da Orla Costeira o início dos anos 90, a Soltróia, um con(POOC), a Reserva Ecológica Nacional (REN) junto de condomínios e moradias de veraou a delimitação de Áreas Protegidas, exac- neio, munidos de piscinas e relvados, em tamente por se reconhecer que a constru- forte contraste com o ambiente natural da ção desregrada alterou de forma irreversí- península arenosa, cujo estreito corredor vel e indesejada a nossa preciosa «janela ecológico foi interrompido por esse tampara o mar». O caos urbano em cima das pão, literalmente «do lado do mar ao lado praias do Algarve, Figueira da Foz ou Póvoa do rio». Em 2012, colada à Soltróia, surgiu mais uma unidade turístico-residendo Varzim são disso exemplo. A orla costeira entre Tróia e Sines perma- cial: o Pestana Troia Eco-Resort. Assim se neceu surpreendentemente bem preser- encontra hoje ocupada a península. Na sua base está situada a localidade da vada. Constitui hoje um dos últimos reduComporta e começa a maior propriedade tos do litoral ibérico selvagem – algo que só continuará a aumentar o seu valor para privada dos tempos modernos em Portuas gerações futuras. São cerca de 65 km de gal: a Herdade da Comporta, ex-pertença do Grupo Espírito Santo (GES), com 12 km praia praticamente virgem, seguida de um cordão dunar muito bem conservado, de areal, 12500 hectares de pinhal, camcomo poucos na Europa, que abriga uma pos de arroz e outras produções agro-silvoextensa faixa de florestas Pinus de protec- -pastoris (ver a reportagem do Jornal MAPA ção e produção. As dunas que se estendem «Comporta: Entre os Espíritos da terra e do da península de Tróia até Melides albergam turismo»). Por via das amizades da família uma biodiversidade rara, incluindo espé- de banqueiros, chamou a atenção de uma cies de flora endémicas e ameaçadas – mui- elite estrangeira como um retiro eco-chitas delas protegidas pela Rede Natura 2000. que. A atracção da realeza espanhola, do Obviamente que tamanha região de Mónaco, da Jordânia, de Sarkozy e Carla natureza intacta junto ao Oceano Atlân- Bruni, do designer Christian Louboutin tico não passa despercebida, sobretudo ou, mais recentemente, de Madonna, no aos investidores ávidos de turismo de luxo. seu mediático passeio a cavalo pela praia, Nos anos 70, a Torralta, na ponta da penín- tem ajudado a vender a imagem da Comsula troiana, era anunciada pelo regime da porta como «a nova Ibiza ou Hamptons ditadura como «o maior empreendimento da Europa».
A instabilidade do emprego, a gentrificação que se pode esperar e o consequente aumento das rendas nas localidades levanta dúvidas quanto a uma efectiva fixação de jovens nesta região. A Herdade da Comporta tinha já planeada, dentro do seu Fundo de Investimento Imobiliário Fechado, duas grandes Áreas de Desenvolvimento Turístico – as ADT 2 e 3, entre outros loteamentos, que obtiveram aprovações em 2011 e 2010 pelas respectivas Câmaras Municipais de Alcácer do Sal e Grândola. A recente queda de Ricardo Salgado, julgado por crimes de corrupção financeira, ditou a expropriação dos bens do GES pelo Estado Português, que infelizmente se decidiu logo – debaixo de oposição de várias ONGA nacionais – pelo retalho da propriedade e venda a promotores imobiliários, nomeadamente o consórcio entre o Vanguard Properties (promotor imobiliário francês) e o Grupo Amorim Luxury. Esta rápida alienação da Herdade da Comporta por empresas privadas, o Plano de Urbanização da península de Tróia, a retirada pela Comissão de Coordenação
e Desenvolvimento do Alentejo de outros terrenos da REN na Comporta para se tornarem lotes de construção, a par das recentes aquisições de duas grandes herdades em Melides por multinacionais estrangeiras (para empreendimentos turísticos já aprovados) devem, pois, ser escrutinados, averiguando se atendem a uma visão de desenvolvimento sustentável ou defesa do interesse público. A mudança que aí vem A paisagem entre Tróia e Melides está prestes a ser alterada, de forma radical, em termos geográficos, económicos, sociais e ambientais. Há um total de oito grandes novos projectos turísticos: quatro deles sobre dunas, quatro com campos de golfe, seis com dimensões superiores às localidades da Comporta, Carvalhal e Melides. Em 2020, a despeito de acordos e compromissos como a Agenda 2030, o Acordo de Paris, a Convenção sobre a Diversidade Biológica e a nova Década das Nações Unidas para a Restauração de Ecossistemas (2021-2030), há avanços que apontam para uma grande alteração do carácter de uma região sem a consulta e informação devida das comunidades locais e do povo português. A informação relativa a estes projectos tem-se mostrado impenetrável no que respeita a documentos de disponibilidade obrigatória para os cidadãos, como as Avaliações e Declarações de Impacte Ambiental, ou as notícias de transacções imobiliárias desta importância, sub-representadas na imprensa nacional. Segundo a nova disposição, o noroeste de Tróia ficará para sempre urbanizado.
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O espaço natural que sobrava entre o Tróia Resort e o Soltróia será aglutinado por um resort Club Med, um investimento superior a 20 milhões de euros da sociedade francesa Lagune Tróia para construir cinco edifícios hoteleiros circulares, mais dois corpos rectangulares destinados a alojamento de funcionários e outras infraestruturas. O Tróia Resort alongar-se-á para a margem estuarina, num dito «Eco-Resort», que pretende estabelecer um novo hotel junto às ruínas romanas assim como um aldeamento turístico, com capacidade para 700 camas. Aí se localiza a laguna conhecida como Caldeira de Tróia, uma zona húmida particularmente relevante para espécies ao abrigo da Directiva Aves da Rede Natura 2000. O Conjunto Turístico «Na praia», do grupo Ferrado Nacomporta I, detido pela multimilionária Sandra Ortega (herdeira do império da Zara), será o derradeiro vizinho sul do Soltróia. Estão projectados um hotel e três aldeamentos turísticos de cinco estrelas, perfazendo 123 unidades de alojamento e 506 camas, mais equipamentos de desporto e lazer (SPA, campo de ténis, ginásio e piscina, restaurante e loja). Por sua vez, o terreno vizinho a sul é a Reserva Botânica das Dunas de Tróia (pertencente à Reserva Natural do Estuário do Sado). Dado que com estas são partilhadas na íntegra as características ecológicas e o excelente estado de conservação da comunidade florística e formação geológica, que levaram à classificação de Reserva Botânica, parece uma ironia política a atribuição do mais alto nível de protecção a um dos lotes e a autorização de construção noutro igualmente significante. Objectivamente, a ausência destas parcelas do traçado original da Reserva Natural carece de lógica científica e tem motivado surpresa junto de quem descobre este facto legal. As ADT 2 e 3, ex-propriedades da Herdade da Comporta capitalizadas pelo consórcio Vanguard Properties-Amorim Luxury, tornar-se-ão os megalómanos complexos Comporta Links e Comporta Dunes. O investimento previsto será de 1500 milhões de euros, num prazo estimado entre 8 e 15 anos, aplicados em 1380 hectares, onde serão criados seis hóteis, três hóteis-apartamento, dois campos de golfe e 11 aldeamentos turísticos e loteamentos residenciais para até mil casas. O início das obras está apontado para Setembro deste ano, sendo prevista a construção de duas «minicidades» para albergar a grande quantidade de trabalhadores temporários e precários, necessários no pico do empreendimento. Uma vez terminadas as obras, o futuro dessas «minicidades» e dos seus «habitantes temporários» revela-se muito incerto. A Vanguard Properties detém ainda a Muda Reserve, cuja fase de construção da infraestrutura da zona urbana já começou. A conclusão destas 50 Quintas, 50 Casas
durante todo o ano para apenas alguns meses de uso. A sazonalidade típica destas actividades (veja-se o actual desempenho do Soltróia) é outro ponto notável e débil do alegado desenvolvimento que será provido às comunidades locais. A instabilidade do emprego, a gentrificação que se pode esperar e o consequente aumento das rendas nas localidades levanta dúvidas quanto a uma efectiva fixação de jovens nesta região. Um afluxo repentino de trabalhadores migrantes para a construção de empreendimentos com esta súbita escala sugere problemas de coesão social no futuro local – tudo isto em simultâneo com a entrega a investidores particulares, maioritariamente estrangeiros, de poderes decisivos para o futuro ambiental e social do território.
Projectos Turísticos, já construídos ou planeados, entre Tróia e Melides. Fonte: Movimento Dunas Livres
A salvaguarda de recursos hídricos saudáveis vê-se posta em causa com o advento de quatro campos de golfe a uma região árida de substrato arenoso. e 50 Vilas está calendarizada para Março solo, é o de a península de Tróia inteira ser, de 2021. na verdade, uma enorme duna geomorficaContinuando para sul, e dentro da faixa mente dinâmica. É inadmissível a falha em costeira de 5 km regulada por lei nos POOC, reconhecer os serviços do ecossistema prodeparamos com dois projectos em Melides. videnciados por este notável tesouro geoVêm completar o que parece ser a estraté- gráfico. Ao mediar o encontro do Sado com gia de fazer desta região um destino turís- o Atlântico, cria e abriga a baía do Estuático de golfe, apenas acessível a uma elite rio do Sado, morada de uma flora e fauna estrangeira. Na Herdade do Pinheirinho, emblemáticas, que inclui os golfinhos-roaa 750 m da água, já se entrevê um campo zes ou as pradarias marinhas, cujo reconhede golfe desbravado no pinhal. Esta her- cimento está a crescer globalmente e cuja dade foi este ano adquirida pela Vic Pro- integridade terá sido afectada pelas dragagens no porto de Setúbal. Os sistemas perties, que anunciou a construção ainda de hotéis, moradias e espaços de comér- dunares bem desenvolvidos, que se procio. A Costa Terra planeia construir mais um longam para lá da linha do mar, desempecampo de golfe, três hotéis, quatro aldea- nham um papel fundamental na protecmentos turísticos e 204 moradias. Ema 2019, ção contra a erosão costeira, assumindo esta propriedade também mudou de mãos, especial importância devido à ameaça da passando para as da norte-americana Dis- subida do nível do mar e da intrusão da covery Land Company, uma criadora de cunha salina na bacia do Estuário do Sado. resorts de luxo, com portefólio nos EUA, A manutenção da sua vegetação é fundaMéxico, República Dominicana e Bahamas. mental para a recarga do aquífero do TejoEste modelo de desenvolvimento eco- -Sado, essencial às populações e economias nómico não extinguirá apenas a continui- locais e regionais. dade ecológica da região, provavelmente A salvaguarda de recursos hídricos saua característica mais apreciada pela socie- dáveis é posta em causa com o advento de quatro campos de golfe numa região árida dade actual e futura. Transformará também a demografia e economia locais através da de substrato arenoso – algo particularconversão de um vasto habitat natural, ou mente escandaloso, desnecessário e caro com cariz agroflorestal, num complexo para o povo português. O aumento do residencial e turístico. número de urbanizações põe obviamente pressão sobre o aquífero do Sado, além de Outro factor importante, sobretudo quando se fala de impermeabilização do representar um dispêndio de electricidade
O Movimento Dunas Livres Dunas Livres é um colectivo informal que nasce da necessidade de dar voz a estas motivações no debate público e mobilizar a população. Defendemos a protecção integral das dunas tendo em conta o conhecimento científico actual, a revisão oficial dos planos que regulamentam o ordenamento do território local, bem como a reavaliação do impacte ambiental dos projectos em causa, e um levantamento científico da biodiversidade, qualidade dos habitats e do estado de conservação. Propomos uma suspensão imediata da construção de mais empreendimentos turísticos, pois consideramos que os existentes são mais do que suficientes. A fruição das praias e da natureza envolvente deve ser sustentável e acessível a todos. O «tecido turístico de luxo» em que se tem vindo a basear o ordenamento territorial da orla costeira Sado-Sines é apresentado como a única alternativa ao turismo de massas. Propomos outros modelos de desenvolvimento, que contemplem uma rede de transportes públicos a preços acessíveis à população em geral e a sensibilização para comportamentos que respeitem os ecossistemas. Em 3 de Julho, mobilizámos 600 pessoas para que participassen na consulta pública do Plano de Gestão da Zona Especial de Conservação (ZEC) Comporta/Galé. Apelámos ao seu melhoramento e à extensão da área protegida à Península de Tróia, com características ecológicas muito semelhantes. Enviaremos uma carta aberta aos decisores políticos que tenham algum poder para travar este desastre ambiental, e toda a gente poderá subscrevê-la. Pelas Dunas Livres da construção insustentável e pelo investimento num futuro valioso para as populações locais e vindouras – porque a natureza preservada é o verdadeiro luxo! facebook. com/dunaslivres/ | instagram. com/dunaslivres/
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O hidrogénio «verde» e a sobrevivência das petrolíferas
O
LUÍS FAZENDEIRO1
hidrogénio (H2) trata-se do elemento mais leve e abundante no Universo, o primeiro da Tabela Periódica, estando presente num sem número de moléculas, desde a água (H2O), até vários hidrocarbonetos, constituídos por átomos de carbono e de hidrogénio, como o metano (CH4). O H2 pode ser facilmente produzido através da electrólise da água, num processo que consome energia, sendo reunido mais tarde com moléculas de oxigénio (O2), num processo que liberta energia (embora menos do que a que foi gasta inicialmente). Como tal, o H2 não é uma fonte de energia, mas sim uma mera forma de armazenar energia temporariamente, sem muitos dos problemas ambientais que as baterias à base de lítio e outros materiais apresentam. Se a energia utilizada para produzir H2 for de origem renovável, este é apelidado de «verde». Depois, esta energia pode ser utilizada em transportes, sobretudo comboios, autocarros, camiões, como já acontece na Alemanha e no Japão, oferecendo uma possível alternativa às baterias de lítio. Já existe inclusive uma empresa portuguesa, a CaetanoBus, que fabrica autocarros movidos a H2, com uma larga carteira de encomendas internacionais. Além disso, o H2 pode ainda ser utilizado em alguma indústria pesada, incluindo a metalurgia, vidro e cerâmica, contribuindo para reduzir as suas emissões de carbono. Ao longo dos anos, o H2 tem vindo a ser referido como passível de acelerar a transição para uma economia mais sustentável. Mas só recentemente as tecnologias associadas começaram a atingir um ponto de maturidade e baixo custo em que a sua implementação em larga escala é já uma possibilidade muito real. É neste contexto que o Ministério do Ambiente e Ação Climática (MAAC) lançou recentemente a sua «Estratégia Nacional para o Hidrogénio» (EN-H2)2. Também a Comissão Europeia apresentou em julho uma «estratégia de hidrogénio para uma Europa climaticamente neutra»3, promovendo o investimento de dezenas de milhares de milhões de euros nesta área. Mas, apesar de tudo o que foi dito atrás, existem muitas razões para desconfiar destas estratégias. Assim, logo no sumário executivo da EN-H2 pode ler-se que «Na Europa e em Portugal, o ano de 2019 foi de intensificação do compromisso [de] descarbonização, mas foi também o ano de discussão pública das propostas iniciais dos PNECs4,
A electricidade que antes era gerada via carvão vai ser em boa parte substituída pela maior importação de gás fóssil (...) gás extraído via fraturação hidráulica (ou fracking) da América do Norte, Austrália, etc., com uma pegada de carbono ainda maior que a do carvão. que estavam muito assentes na Seria interessante saber o que lá eletrificação pura, o que mere- foi discutido… ceu algumas bolsas de resistênDo rol de medidas anunciadas até 2030 nesta EN-H2 encontracia no sector do gás e em alguma indústria. O mercado assinalou -se a possível injeção de até 15% de H2 na rede existente de gás a existência de uma falha que pode ser eficientemente suprida fóssil, dito «natural» (constituído pela produção de hidrogénio.» por cerca de 90% metano, um dos Qual será então a natureza des- mais perigosos gases com efeito tas «bolsas de resistência»? Serão de estufa, e o que maior volume elas de natureza tecnológica, de emissões tem, a seguir ao dióideológica, económica, ambien- xido de carbono). Ao substituir algum deste gás por H2, é possítal? E será que existem atas das reuniões que o MAAC teve com vel que as emissões nacionais de estas empresas do sector do gás? CO2 sejam ligeiramente reduzidas,
mas muito maior redução viria de substituir a curto e médio prazo a maior parte destes equipamentos por alternativas eléctricas e de zero emissões, além de procurar racionalizar e reduzir os consumos. Tudo indica, pois, que o H2 poderá estar a ser utilizado como desculpa para manter, senão mesmo prolongar, a duração de uma série de infraestruturas fósseis altamente poluidoras. Sendo que a maior parte do consumo de gás em Portugal se encontra na indústria e nas centrais termoeléctrias, a EN-H2 vem também «recordar-nos» que as centrais de gás fóssil estão previstas funcionar até pelo menos 2040 (pág. 19). Outra das medidas anunciadas é um megaprojeto industrial de produção de H2 em Sines, onde se encontra já a maior concentração de indústrias poluidoras em território nacional. Com o encerramento iminente da central termoeléctrica a carvão, o MAAC volta-se agora para a produção de H2, com vista à sua exportação (com
a Holanda a mostrar muito interesse), anunciando a instalação de cerca de 1GW de solar fotovoltaico e eólica, para alimentar exclusivamente uma central de produção de H2 «verde». O problema é que isto vai contra tudo o que seria uma utilização racional e sustentável do H2. O que faria sentido seria ter uma geração de electricidade renovável em Portugal muito próxima dos 100% o mais cedo possível (e há boas condições para isso), sendo depois o excesso de electricidade renovável (nas alturas em que a rede está a gerar mais do que é consumido) utilizado para produzir H2. De modo a substituir a electricidade proveniente das 2 centrais a carvão, no Pêgo e em Sines, precisaríamos de cerca de 8 GW de solar fotovoltaico5, o que, de acordo com o actual PNEC, só é previsto acontecer no final desta década. Entretanto, a electricidade que antes era gerada via carvão vai ser em boa parte substituída pela maior importação de gás fóssil, havendo planos para em breve se duplicar a capacidade do terminal de GNL (Gás «natural» liquefeito) em Sines. O mesmo terminal que está a receber gás extraído via fraturação hidráulica (ou fracking) da América do Norte, Austrália, etc., com uma pegada de carbono ainda maior que a do carvão. Desta forma é até possível baixar as emissões domésticas nacionais (mas devagarinho, para não assustar «O Mercado»), exportando grande parte delas para outras zonas do globo – e ao mesmo tempo vender H2 «verde» para o Norte da Europa. Mas nada disto faz parte da solução de que necessitamos urgentemente! À medida que a emergência climática se agrava, agrava-se também a pressão para que as empresas de gás e petróleo mostrem estar a «tentar reduzir as suas emissões». Mas o seu impulso natural é o de salvaguardar os seus investimentos e modelo de negócios, que assenta todo ele na extração, processamento e queima de combustíveis fósseis. Para já, tudo indica que esta EN-H2 (e outras que tais) poderá ser em grande parte uma forma de as empresas de gás fóssil subtilmente manobrarem as políticas públicas, continuando a prolongar a sua atividade poluidora sob o pretexto de serem parte da solução6. Quando são elas que constituem a maior parte do problema - e tudo têm feito para nos aproximar do caos climático! NOTAS
1 Investigador em Alterações Climáticas 2 https://bit.ly/2XLm6ea 3 https://bit.ly/3acCMAl 4 Planos Nacionais de Energia e Clima, ver: L. Fazendeiro, Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Agosto de 2019. 5 Figueiredo, Nunes et al., Journal of Cleaner Production, 129-142, 222, 2019, https://bit. ly/2DTdgUB. 6 https://bit.ly/3gKHdVH
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TRANSUMANISMO MON AMOUR 31
1985. Prolegómenos à Era do Tribunal da Inquisição Digital Mais vale ir à praia do que ao parlamento
Partido Nacional Bolchevique: uma bandeira nazi com uma foice e um martelo, em vez de uma suástica.
κοινωνία «No próximo Maio haverá as eleições europeias. Queremos mudar a Europa. Uma nova Europa tem de estar perto da Rússia como antes. Salvini é o primeiro homem que quer mudar toda a Europa.» Gianluca Savoini, Hotel Metropol, Moscovo, 18 de Outubro de 2018, escuta ambiental
A
Magistratura Italiana abriu uma investigação por corrupção internacional a partir dos registos de uma escuta ambiental, referente a uma negociação manhosa ocorrida na noite de 18 de Outubro de 2018 (gravação publicada pelo site americano Buzzfeed): uma compra/venda de petróleo, pelo valor de um bilião e meio de euros, dos quais 75 milhões foram desviados para os cofres da Lega – implicada poucas semanas antes num escândalo referente a 49 milhões de euros de fraude, no âmbito dos reembolsos eleitorais. Os mediadores ocultos, russos e italianos, reteriam 4% de uma transacção que se refere à sociedade estatal Rosneft ou Gazprom, e a uma sociedade que, indiretamente, está relacionada com a Eni (Entidade Nacional dos Hidrocarbonetos). Mas a negociação não foi manhosa apenas pelos seus aspectos fiscais: de acordo com a magistratura, o dinheiro servia para «financiar a campanha eleitoral da Lega nas (eleições) europeias». Neste sentido, como foi documentado pelos jornalistas do programa Report1, o business as usual faz parte de uma aliança secreta entre os neofascistas italianos e a Rússia.
Gianluca Savoini, ex-porta-voz de Salvini, sentado à mesa de um Hotel de Moscovo, é apanhado a explicar que Salvini quer mudar toda a Europa e que, com este objectivo em vista, quer estar perto da Rússia. Entre os presentes à volta da mesa em Moscovo, foram identificados Gianluca Miranda, um advogado com negócios em Malta e funcionário do banco inglês Euro-Ib; e o seu colaborador Francesco Vannucci, também funcionário do Banco Monte dei Paschi di Siena. Com eles, Andrey Kharchenko, um funcionário da embaixada russa, mas sobretudo um dirigente do movimento político inspirado pelo soberanista, amigo de Putin, o filósofo Aleksandr Dugin; e Yakunin, ligado a um político, também advogado, e também amigo de Putin. Deverá mencionar-se que Salvini, no dia anterior à duvidosa negociação, tinha participado, enquanto Ministro do Interior, num encontro oficial da Confederação Geral das Indústrias Italianas (Confindustria) na Rússia, encontro que foi, inclusivamente, transmitido, em direto, na sua página de Facebook, a sua «igreja» digital, e a «mesquita» da qual flui constantemente o fluxo da propaganda terrorista e do incitamento à cruzada identitária. Contra os jornais que o acusam de ir à Rússia porque é pago, ele responde que vai de graça, «porque estou convicto de que as sanções sejam uma
loucura económica, social e cultural». E na noite que se seguiu à conferência, à qual assistiu, também, Savoini, os dois jantaram juntos no restaurante Rusky, um dos mais caros de Moscovo, 85 pisos acima do solo. No dia seguinte ao escândalo, Conte convoca Salvini, para que dê esclarecimentos perante a Assembleia da República. Porém, ao invés de ir ao Parlamento, o «Capitão» prefere beber um mojito no «Papeete» , na praia de Milão Marítima. E na conferência de imprensa de 12 de Julho de 2019, como de costume, faz piadas sobre o caso, justificando o seu atraso na conferência, dizendo que tinha que «esconder os últimos rublos debaixo da almofada»; e acrescenta que tem, também, «assinado um acordo com as discotecas italianas, para que se possa pagar em rublos e que, recebe um desconto quem pagar em cash, com dinheiro reciclado, de duvidosa origem». A investigação de Giorgio Mottola tem revelado que a manhosa negociação ocorrida em Moscovo é uma peça que se insere numa maquinação propagandística de proporções planetárias, que já reverteu, pelo menos, um bilião de euros (documentados por Mottola), com o intuito de alimentar a fábrica do medo que, por um lado, visa fazer implodir a Europa e colocar em crise o papado de Francisco (Bergoglio); e que, por outro lado, como temos documentado
Pois foi este trabalho ideológico que explica a transformação da Lega, de movimento separatista e anti-sul, em partido ultra-nacionalista e soberanista, com posições sempre, cada vez mais, extremas, capazes de fascinar os neofascistas italianos.
nesta rúbrica, nos três números anteriores do Jornal Mapa, representa, do nosso ponto de vista, apenas a ponta do icebergue da «revolução anti-liberal» que está a espalhar uma corrente misantrópica e xenófoba por todo o lado. A ideologia misantrópica que temos identificado como H+ tem, como seu dark-side, a trama de relações mafiosas que subsistem entre política institucional, indústria e fé monoteísta, nas suas variadas igrejas – católica, evangélica, ortodoxa e islâmica –, finalmente unidas numa cruzada comum contra o «multiculturalismo», o «lóbi LGBT», a «invasão de imigrantes», que veio provocar uma «substituição étnica», contra a sociedade civil assim como nós a conhecemos, com o seu (mínimo de) pluralismo de opiniões e expressões. A propaganda do terror e de misantropia ganhou pujança com esta pandemia, mas disso não falaremos na presente ocasião. De momento, iremos fazer uma viagem por um curto período do nosso passado, um intervalo de tempo que, na verdade, corresponde à vida inteira de quem escreve este texto, um passado, portanto, que foi e que corresponde ao meu, e ao nosso, mundo. Continuidade na disrupção ou do século da eversão Há mais de vinte anos, Salvini e Savoini trabalharam no jornal La Padania, cujo director, na altura, era Gigi Moncalvo, que afirma «nunca ter visto (Savoini) tirar o casaco, nem sequer num dia de calor. Então, nunca o vi em camisa, mas sempre com esta farda de funcionário brezneviano, andropoviano.» E resume: «Savoini tem gerado Salvini, (este) é uma criatura sua. Tem-no moldado, como se fosse argila.» E, de Savoini, sabe-se que foi implicado num escândalo por
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32 TRANSUMANISMO MON AMOUR
Dugin, homenageado com uma lâmpada de Yule, um artefacto de simbologia Celta, que o chefe das SS, Himmler, introduziu nas cerimónias nazis
Salvini em Moscovo, 2015.
terem sido encontradas suásticas e fotografias nazi-fascistas na redação de La Padania, inclusive uma na qual o símbolo da Gestapo era reinterpretado como símbolo da Lega. Como nos explica o jornalista Giorgio Mottola: «Na formação política de Gianluca Savoini e na sua estrita relação com a Rússia, encontra-se uma figura chave dos anos de chumbo, Maurizio Murelli, desde os anos 80 referência do neofascismo milanês. Murelli foi sentenciado a 11 anos de prisão por ter participado no assassinato do agente da polícia Antonio Marino, morto por uma bomba de mão, numa manifestação de rua em 73. Depois de ter saído da prisão (em 1985), Murelli fundou Orion, um centro cultural, que mistura ideias neonazis e a filo-soviética, e que trabalha para o nascimento de um continente euro-asiático, sob a hegemonia da Rússia. Entre os adeptos de Orion, encontra-se também Gianluca Savoini.» A nossa história, entre as histórias que se entrelaçam na «História», começa há trinta e cinco anos atrás, em 1985. Foi, pois, Murelli quem colocou em contacto Savoini, Dugin e o «oligarca de Deus», Konstantin Maloffiev, o proprietário da Marshall Capital, um fundo de investimentos com um bilião de dólares de capital; o proprietário da televisão Tsargrad tv, dirigida por Dugin, como canal militante de propaganda nacionalista e tradicionalista; um dos financiadores dos movimentos nacionalistas europeus e da guerra na Crimeia
Uma vez obtida a transparência radical da vida (nua) da sociedade civil, cabe aos detentores dos meios tecnológicos de controle e dominação o progressivo doutrinamento e conformação dos indivíduos aos imperativos extemporâneos da propaganda do sistema. e que, entrevistado por Mottola, nega poder ser chamado de oligarca, porque, como nos é dito, com Putin já não há oligarcas, e é por isso que prefere chamar-se a si próprio um «filantropo». E a presença de Alexey Komov, enquanto convidado, no congresso da Lega de 2013, deve-se ao facto de este ser o porta-voz de Maloffiev em Itália. Poucos meses depois, este cargo ser-lhe-á atribuído «oficialmente», tornando-se presidente da Associação Cultural Lombardia Rússia, fundada, na altura, por Gianluca Savoini. Murelli, a partir dos anos 90, decide fazer inscrever os melhores do grupo Orion na Lega, para perseguir uma estratégia política muito precisa, que nos é descrita com as seguintes palavras de Claudio Gatti, autor de I demoni di Salvini: «O objectivo (de Murelli), como me foi contado por uma pessoa que participou naquelas reuniões, era extrapolar a essência do fascismo, e sobretudo do nazismo, para conseguir revitalizá-la.» Quando surgiram as primeiras sedes da Lega, diz Murelli, ele
intuiu que «Aquele ambiente era culturalmente mais fraco, mas com diversas e notáveis potencialidades de desenvolvimento». O nosso adito entrevistador, Mottola, então pergunta-lhe: «Têm feito hegemonia cultural?» Pois foi este trabalho ideológico que explica a transformação da Lega, de movimento separatista e anti-sul, em partido ultra-nacionalista e soberanista, com posições sempre, cada vez mais, extremas, capazes de fascinar os neofascistas italianos – ver, por exemplo, a Casapound, a organização neofascista que Murelli tem, publicamente, apelidado de «os seus filhos». E se, por um lado, Savoini tem forjado Salvini, por outro, Savoini e Dugin se conhecem, através de Murelli, desde 1992, como revela o ideólogo de Putin entrevistado por Mottola, e que nos apresenta a personagem com as seguintes palavras: “Considerado, durante anos, um dos principais ideólogos do putinismo, Dugin é o fundador do partido nacional bolchevique, cujo símbolo é uma bandeira nazi com uma foice e um martelo,
em vez de uma suástica. Com a chegada de Salvini ao governo, a relação entre Dugin, Savoini e Murelli voltou a ser particularmente intensa. Nos últimos anos, Dugin tornou-se um dos principais ideólogos do soberanismo europeu. O filósofo russo auspicia o fim da democracia liberal e, usando as suas palavras, o advento dum populismo integral e duma revolução antiliberal. Se na Rússia a referência política de Dugin é Putin, na Europa é Salvini”. E como prova das promiscuidades mafiosas que subsistem entre estas personagens, existe uma fotografia de 2018, tirada na casa de Rainaldo Graziani, filho de Clemente, fundador do movimento neofascista Ordine Nuovo, em que se encontram Murelli e Savoini sentados à mesma mesa, pouco distantes de Dugin, que naquela noite foi homenageado com uma lâmpada de Yule, um artefacto de simbologia Celta, que o chefe das SS, Himmler, introduziu nas cerimónias nazis. Ou uma outra fotografia, em que Dugin e Savoini estão juntos fora do hotel Metropol em Moscovo, na manhã do mesmo dia em que ocorreu a manhosa negociação e a escuta dos habilidosos jornalistas, e que foi o gatilho para a explosão de mais um escândalo mediático e para o presente texto, cujo intuito é conseguir, embora muito parcialmente, continuar a esclarecer os acontecimentos que marcaram o devir H+ do nosso mundo. Mas o Report tem, também, descoberto uma série de viagens que Maloffiev tem feito para se encontrar com a direita republicana dos Estados Unidos da América e os exponentes das fundações ultra-cristãs, forjando uma espécie de Santa Aliança, que tem vindo a financiar, com cerca de um bilião de dólares (comprovados e, neste sentido, apenas a ponta do icebergue), os movimentos religiosos contra o aborto, contra os direitos dos casais e das pessoas não-heteronormativas e contra a imigração; e ambicionando, em definitivo, fazer desmoronar a Europa e o papado, considerados como os bastiões «esquerdistas» no mundo e como uma ameaça à «identidade cultural» e «aos valores da tradição». E, diga-se de passagem, foi Maloffiev a confirmar, com uma indiscrição obtida por Mottola, que Savoini estava, de facto, em Moscovo em 18 de Outubro de 2018, para agilizar uma transacção entre a Eni e as empresas russas do petróleo, e que esta «agilização» tem como motivo, não apenas meras corrupções fiscais e a cínica voluptas de lucro, mas também a necessidade de financiar, pela porta do cavalo, um plano político que visa fazer retornar, no futuro próximo, um passado, não muito remoto, de violência, intolerâncias, superstições e obscurantismo. Sendo um dos seus corolários, os linchamentos de homossexuais – como no caso da Rússia, onde antes e após a aprovação, por unanimidade, da lei que proíbe a exibição de qualquer desvio do modelo de família e de género tradicional; ou como em certos países de África, onde foram aprovadas leis que punem a homossexualidade com a pena de morte, geralmente propiciada à paulada e à pedrada: caça mediática às bruxas de todo o tipo e, mais em geral, a Era do Tribunal da Inquisição Digital em que, uma vez obtida a transparência radical da vida (nua) da sociedade civil, cabe, aos detentores dos meios tecnológicos de controle e dominação, o progressivo doutrinamento e conformação dos indivíduos aos imperativos extemporâneos da propaganda do sistema, que irá dar-se na eficácia máxima, ameaçando ser o derradeiro golpe à liberdade de expressão, de associação, e ao ser, ainda, minimamente, livre entre iguais. NOTAS
1 https://bit.ly/3ka8ToP
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LATITUDES 33
Internacionalismo em Rojava Relatos do Nordeste da Síria, na voz de uma voluntária na Comuna Internacionalista de Rojava.
RÁDIO JIYAN1 PORTUGAL4ROJAVA@GMAIL.COM
H
á quase uma década que no Curdistão Sírio, no contexto da guerra civil síria, o mundo tem vindo a testemunhar uma história próxima dos contornos bíblicos da região. É exemplo disso, a histórica resistência dos curdos em 2014/2015 contra as atrocidades do Estado Islâmico, na cidade de Kobane. Contudo, em 2019, teve lugar uma reviravolta no tabuleiro geopolítico da região, quando as tropas americanas estabelecidas na região receberam a ordem de retirada, deixando desta forma o caminho livre para a ofensiva militar turca, apoiada pelos seus aliados jihadistas. Além disso, as políticas do presidente Erdoğan continuam centradas na anulação da pretensão curda a um território, sobretudo quando as aspirações deste grupo de habitantes das terras baixas da Mesopotâmia evoluíram da ideia clássica de estado-nação do século XX, para um projeto confederalista democrático, que começou a ganhar terreno nas zonas autónomas de Kobane, Jazira e Afrin (Rojava) e nos demais territórios da Administração Autónoma do Norte e Este da Síria (AANES). Os povos desta região lutam pelo seu projeto de autonomia, agora com a batalha recentrada na ofensiva turca. A reformulação da «revolução curda» assenta no Confederalismo Democrático idealizado por Abdullah Öcalan, um dos fundadores e histórico líder do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK), encarcerado desde 1999 na ilha-prisão de İmralı, na Turquia. Esta ideia propõe uma sociedade federalista e comunalista, fora das estruturas estatais, onde a democracia direta, a ecologia, e a igualdade de género estão interligados.
Esta política tem resultado num forte apelo a jovens de vários pontos do mundo, que se tem juntado aos combatentes curdos em Rojava. É atualmente em Derik, na fronteira de Rojava no Rio Tigre com a Turquia e o Iraque, que se encontra a Comuna Internacionalista de Rojava. No início de agosto, a Rádio Jiyan, criada pela Plataforma de Solidariedade com os Povos do Curdistão, conversou com uma voluntária internacionalista que vive na Comuna. Nas suas palavras: «após a batalha de Kobane, companheiros de todo o mundo vieram para cá, para fazer parte da revolução em Rojava, no início talvez mais no sentido militar, mas depois também tinham interesse em conhecer a revolução do lado civil, entenderem como a sociedade funciona, que trabalhos foram feitos». É dessa procura que veio a nascer a Comuna Internacionalista de Rojava, que em 2017 começou a construir uma academia onde pudessem participar «como forma de desenvolver o internacionalismo no século XXI». Impunha-se de forma militante a necessidade de construir a Comuna enquanto estrutura, para «educar revolucionários de todo o mundo, dar-lhes a possibilidade de vir a Rojava, participar na revolução, desenvolver esta revolução». Embora a ideia de internacionalismo nos movimentos curdos já existisse antes da revolução, ela é hoje um dos seus objetivos principais. Mais ainda quando o «nordeste da Síria em geral, não apenas Rojava, tem uma sociedade que tem caminhos muito diferentes. Muitas populações vivem aqui juntas duma forma muito diversificada, cristãos, árabes, curdos, também diferentes tribos». Daí a necessidade de desenvolver uma ideia de Confederalismo Democrático que tornasse possível viver e lutar coletivamente, nesta sociedade, contra o sistema
«a ideia que a Comuna transmitiu para o mundo inteiro, as ideias que deram educação, tudo o que desenvolvemos juntos, a camaradagem, a amizade, é algo que não se vai perder». estatal. Ao mesmo tempo reconhecia-se que «para a revolução em Rojava sobreviver, é também necessário que a longo prazo comece uma revolução geral no Médio Oriente», que seria uma revolução internacionalista. «Se apenas um local do mundo tem uma revolução, então essa revolução não vai sobreviver. A revolução em Rojava precisa de se espalhar aos poucos por todo o Médio Oriente para sobreviver, caso contrário será sufocada. Ao mesmo tempo é também necessário que a ideia de revolução, de Confederalismo Democrático, a ideia de que ainda há esperança no mundo e que esta pode também ser transmitida a pessoas que não vivem no Médio Oriente. Por todo o mundo precisamos de novo desta abordagem e também da visão da revolução das mulheres que aqui está a acontecer». O internacionalismo está pois presente em cada passo da revolução. Nas palavras da voluntária: «o movimento de libertação curdo, e especialmente a revolução em Rojava, está numa posição em que é necessário tomar um papel chave na história do internacionalismo, para este continuar». Acrescenta ainda que «estamos a chegar a um nível em
que estamos cada vez mais próximos da raiz dos problemas, da opressão de estado e do mundo em geral». É esse questionamento que explica a chegada dos internacionalistas. «Os companheiros que vêm até aqui têm interesse nestas ideias e na sua prática dentro de Rojava, por isso, seja qual for a perspetiva pela qual as vêem, querem pelo menos compreender este sistema de auto-admnistração». O mesmo no que toca ao apelo «em espalhar a revolução das mulheres pelo mundo, em dar às mulheres, mas também aos homens, uma perspetiva para mudar». Simultaneamente «nos últimos anos, muitos amigos interessaram-se pelo projeto da Comuna, ou em vir para Rojava pelo tema da ecologia». Projetos ecológicos, como o Make Rojava Green Again (campanha que visa a implementação de vários projetos ecologistas na região, como por exemplo a plantação de árvores) são assumidos como centrais para a Comuna. De acordo com a voluntária, tudo aqui é organizado tendo em conta a guerra: «qualquer recurso, qualquer possibilidade que tenhamos deve ser organizada de acordo com a guerra, mesmo antes dos ataques turcos de 2019. Isto não significa que a única coisa a fazer seja ir para a guerra e usar armas. O que queremos dizer é que tudo o que fazemos, toda a organização, toda a educação, tudo é organizado tendo em conta a situação de guerra, e as nossas atividades também estão a mudar de acordo com isso». Acrescenta ainda que apesar das ofensivas, apesar da guerra que parece agora chegar a Bashur (Curdistão Iraquiano), assim como à cidade de Derik, onde se encontram, o trabalho desenvolvido na Comuna Internacionalista continua. «Porque há que compreender que o nosso trabalho tem um significado ideológico e histórico. Podemos encarar o futuro com muito otimismo, apesar de todas as desvantagens materiais, apesar de todos os erros e fraquezas que a revolução tem tido. Pela determinação dos revolucionários, pela nossa determinação, podemos olhar com otimismo o futuro. Para nós é algo que projeta a nossa Comuna, que irá ser desenvolvido e talvez algo não será o mesmo todos os anos, talvez não fique tudo exatamente na mesma, e talvez um dia a situação possa ser diferente, perante uma guerra aberta ou algo do género.» Conclui afirmando: «a ideia que a Comuna transmitiu para o mundo inteiro, as ideias que deram educação, tudo o que desenvolvemos juntos, a camaradagem, a amizade, é algo que não se vai perder». 1 A Rádio Jiyan é um projeto da Plataforma de Solidariedade com os Povos do Curdistão em Portugal.
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34 MIGRAÇÕES
Frontex: polícia fora da lei A Frontex freta aeronaves privadas para monitorizar as fronteiras externas da União Europeia (UE). Inicialmente, estes voos foram encomendados pela Itália (2017) e pela Croácia (2018), mas hoje a Frontex também já voa pelo mar Egeu e pelo Mediterrâneo. O serviço vai ser, em breve, completado com grandes drones e tem servido para violar a lei internacional.
U
TEÓFILO FAGUNDES TEOFILOFAGUNDES@JORNALMAPA.PT
ma nova regulamentação sobre a Frontex entrou em vigor no início de Dezembro do ano passado. Desde então, a agência transformou-se numa polícia fronteiriça europeia de corpo inteiro, que pretende ter 10 mil efectivos em 2027 e à qual são dados poderes que, antes, estavam reservados a Estados. A Frontex pode, de facto, conduzir as suas operações próprias e utilizar medidas coercivas de âmbito policial. Há já algum tempo, implantou um novo serviço de vigilância aérea para as fronteiras externas do espaço europeu. Para voos desse tipo, a agência, através do «Serviço de Vigilância Aérea da Frontex» (Frontex Aerial Surveillance Service – FASS), freta, há três anos, aeronaves a empresas privadas. Em 2018, o FASS levou a cabo pelo menos 18 mil horas de voo. Ainda não há números para 2019. Mais recentemente, a Frontex abriu um concurso público a nível
europeu no sentido de obter aparelhos de voo que pudessem partir de Malta, Itália ou Grécia. O vencedor deveria ainda fornecer bases terrestres para a recepção de dados. O material de vigilância a bordo dos voos incluirá câmaras electro-ópticas e de imagem térmica, software de reconhecimento para alvos em
movimento ou sistemas de localização de telemóveis. A Comissão Europeia, por sua vez, recusa-se a tornar público quais as aeronaves que a Frontex utiliza no Mediterrâneo. Em resposta a uma carta pessoal – e, como tal, privada – a uma questão levantada – publicamente – no Parlamento Europeu, a agência fronteiriça escreveu que
a informação sobre as aeronaves era «comercialmente confidencial», uma vez que continha «dados pessoais e informações operacionais sensíveis». De qualquer forma, sabe-se que há contratos com a Indra (Espanha), a CAE Aviation (Canadá), a Diamond-Executive Aviation (Grã-Bretanha) e a EASP Air (Holanda).
De acordo com a lei internacional, não se pode forçar ninguém a regressar a Estados onde enfrentem risco de tortura ou de outras violações graves dos direitos humanos. A Líbia, por exemplo, não é considerada um porto seguro. Uma vez que esses «empurrões» a pessoas são ilegais, a Frontex tem, desde 2017, promovido «puxões», fazendo com que seja a guarda costeira líbia – e não unidades marítimas europeias – a buscar migrantes no mar. Nesse sentido, a vigilância aérea apresenta-se como uma ajuda fundamental para o controlo do fluxo migratório e, em troca, a UE faz o reconhecimento aéreo... da Líbia. Em Janeiro de 2019, soube-se que tinha notificado as autoridades desse país sobre barcos de refugiados em alto mar pelo menos 42 vezes. Há vários especialistas que consideram que esta prática é realmente ilegal. Uma vez que, sem a ajuda da Frontex, a Líbia não conseguiria detectar os migrantes, deveria ser a agência fronteiriça europeia a encarregar-se disso. Ao não fazê-lo, a UE está de facto a expulsar pessoas para locais não seguros e, nesse sentido, a desrespeitar a lei internacional.
Migrações: Externalização de burocracias Quem não for expulso na sequência dum pedido de asilo não atendido, ou quem não for relocalizado no seguimento dum que o tenha sido, pode «acabar num qualquer tipo de instalação» fora do território da UE, informa o site Euobserver.com a 10 de Julho.
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TEÓFILO FAGUNDES
sta ideia de criação de gabinetes europeus em solo extra-europeu fazia já parte duma proposta que a Alemanha apresentou no ano passado e que pretendia fazer uma espécie de triagem de migrantes ainda antes de entrarem em território da UE, de forma a impedir que os migrantes económicos, por exemplo, acrescentassem burocracia aos processos dos «autênticos» requerentes de asilo. Uma ideia que, agora, deverá entrar no novo pacto da Comissão Europeia
sobre migrações, abrindo definitivamente a porta para que existam oficialmente centros de detenção e processamento de migrantes fora da UE. Os «pedidos abusivos» serão, logo ali, nesses gabinetes, imediatamente descartados e as respectivas pessoas reenviadas para o seu local de origem; quem «precisar claramente de protecção» será relocalizado num Estado da UE; e toda a gente que restar acabará «num qualquer tipo de instalação». Os hotspots gregos e italianos são o que de mais semelhante existe dentro de território europeu e oferecem uma visão suave do que espera os migrantes do
futuro próximo ainda em território não europeu. Este novo pacto será a pedra angular da Comissão de Von der Leyen e surge no seguimento de vários anos de quezílias entre Estados, que não conseguiram concordar numa reforma das leis de asilo existentes. É mais um passo na já longa caminhada da UE no seu percurso de tratamento de migrantes como indesejáveis que se querem longe do território, da vista e do conhecimento dos seus cidadãos. Em Setembro, deverá haver novidades definitivas sobre o conteúdo concreto deste novo pacto da Comissão Europeia sobre migrações.
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CANDOMBLÉ 35
O animismo fetichista do Candomblé afro-brasileiro e a espiritualidade no Ocidente (Parte VI*)
JÚLIO DO CARMO GOMES NOS.EDITORA@GMAIL.COM ILUSTRAÇÃO ANA FARIAS
*Versão abreviada da VI e última parte da série de artigos, cujo texto integral com as respectivas fontes pode ser lido no site do Jornal Mapa.
O
grande feito do candomblé não foi necessariamente manifestar a consciência de um povo – projecção antropológica de uma interpretação anarco-humanista –, mas declarar que a sábia convivência de uma sociedade metamórfica e humana com todas as criaturas vivas que a rodeiam constitui uma verdade mais perene. Essa “vivência selvagem” e histórica é uma conjura que questiona o que é que torna impensável, na constituição da subjectividade moderna e ocidental, o laço entre política e espiritualidade. “O bárbaro é antes de mais nada o homem que crê na existência da barbárie”, Lévi-Strauss. “… e o resto da merda toda/ a fermentar no contentor da História/aonde os “vagabundos da verdade”/vêm sondar/ os detritos do sonho”, Ruy Duarte Carvalho. “Quando o sujeito da história não é mais o ocidental, mas o animista «é a troca, não a identidade, o valor fundamental a ser afirmado”, James Clifford.
Em 1789 aparece um insólito caderno de reivindicações por ocasião da revolta de escravos do Engenho de Santana em Ilhéus, sul da Bahía, levantamento que paralisou a produção do engenho por dois anos. Escrito num português vernacular e sem mácula, a declaração, quase literária, depois de elencar inúmeras condicionalidades da vida dos escravos nas senzalas, reclamando aos senhores condições materiais de vida mas também de autonomia económica e acesso a terra cultivável com um detalhe desconcertante – e que antecipa em um século a doutrina do sindicalismo revolucionário –, termina com a sublime exigência: “Havemos de poder brincar, folgar, e cantar todos os tempos que quisermos sem que nos impeça e nem seja preciso licença”. Ao reivindicarem o direito inegociável de “brincar, folgar e cantar”, na sequência da rebelião no Engenho de Santana em 1789 – a História das revoluções brinda-nos com ironias numerológicas improváveis... –, os escravos demonstravam que nenhuma frente contestatária de
conflito com a classe regente se separava da luta por uma vida espiritual autónoma. Ao longo deste debate sobre os cultos animistas afro-brasileiros, observámos que a convocação do axé nos terreiros de candomblé se efectiva através do canto e da dança, no ritual de comunalizar a bebida e a comida, ou seja, no momento de erotizar a existência, ritualizando a energia vital anímica que se consuma no transe, incarnando e transmudando papéis, constituindo uma politização fora da hierarquia dos poderes domesticadores e recriando identidades outras que fazem a vida acontecer. Em muitos sentidos podíamos evocar a análise do filósofo Mikhail Bakhtin, referente à cultura popular europeia na Idade Média e no Renascimento, para descrever o funcionamento do sistema erótico, centrado na libertação dos desejos e nas libações aos ancestrais e orixás, dramatizado nos terreiros. E é no ayé – mundo físico – que acontece a vida e a potência da sua alteridade, a sua realidade e o seu devir, caminhos abertos que são um destinar-se. A um destino diferente levou a maladie moderna. Herança da cultura ocidental, a modernidade foi o empreendimento acelerado de dominação do mundo. Submetido a um processo de racionalização e de tecnificação, tudo foi reduzido ao cálculo, ao discurso, à espectacularização. Não existe nenhum ponto da terra e do mar que não tenha sido assimilado à geopolítica humana do modernismo. Os impactos antropogénicos nos sistemas de vida, ar, água e terra, são visíveis e mensuráveis. À contracorrente dessa terra profanada e desse mar desconsagrado, forçados a sobreviver à mais brutal sequela do contexto histórico gerado pela modernidade – a escravidão transatlântica – não deixa de ser espantoso que o culto candomblecista prefira virar costas “ao joio e ao palhiço meramente simbólicos para se concentrar no pão dos factos genuínos e substanciais”, como diria Aldous Huxley. A mais arriscada e herege pretensão deste fragmento de estilhaços contra o palhiço é a possibilidade de aprofundar a crítica à soberania ontológica e estética da civilização humanista. Um regime
de agenciamento cultural e de estratificação dos poderes que estabeleceu as referências, matizadas na era das Luzes, com as quais interpretamos ainda hoje o outro e os fenómenos históricos. A escuta das vozes do mundo nos seus diversos enunciados, em particular neste estudo a problemática das tradições afro-brasileiras dos candomblés e a herança pagã das culturas europeias, aponta caminhos para uma superação da redução eurocêntrica das espiritualidades. Mais do que espatifar a loja de antiguidades do Humanismo, será nossa pretensão deixar a nu a montra desse antiquário. Morrer no Antropoceno No âmbito da cronologia da História, depois da abolição oficial da escravatura no Brasil, implanta-se a República e perduram os exemplos da estreita relação entre os candomblés e a revolta política, exemplos de como os terreiros foram a assembleia de questionamento da conflitualidade política e de inspiração da “negritude” brasileira. Zonas autónomas e plurais para dissolver o poder da “branquitude”, espaços de indeterminação das identidades e de deslegitimação do mundo absoluto do Senhor e do Deus único. Fórum tanto de transição como de enraizamento. Terreno fértil para recriar a emancipação social e cultural, mas também para redimensionar a esfera da individualidade e a cosmovisão animista africanizada. Zumbi e Dandara dos Palmares; João Batista ou Malunguinho: Tia Simoa ou Preta Velha; Chico da Matilde ou Dragão do Mar; Mãe Bonifácia, guardiã das matas, incorporando Oxóssi e Otim para sulcar as matas e abrir clareiras para os escravos foragidos; os ferroviários anarco-sindicalistas da associação mutualista “Liga Humanitária dos Homens de Cor” que abriam a gira no terreiro onde cultuavam às sextas à noite os orixás e pai Oxalá, faziam a roda de capoeira ao sábado e tocavam e dançavam jongo (ou caxambu) aos domingos; os estivadores de Santos na década de 1930 que se refugiavam nos esconsos do terreiro entre fetiches e evocando Exu para abrir o caminho das greves selvagens. Todo esse povo insubmisso e crente, revoltado e alacre, anárquico e epicúreo, tremendamente vivo. Povos historicamente subjugados seja
pelos reinos plenipotenciários em África, seja pela colonização e escravização do Império português. Não são personagens de Dostèivski que mesmo numa qualquer repartição de finanças aproveitam o mais banal e corriqueiro instante para mergulharem na sua busca trágica da metafísica! “Da lama aos caos”, da extracção forçada da mais-valia dos canaviais de açúcar aos estaleiros de Santos, “o homem colectivo sente a necessidade de lutar”, como cantava Chico Science, visionário e precursor do manguebeat, movimento contra-cultural que resgatou o maracatu, género musical saído dos terreiros afro-brasileiros. Mas que construção foi essa do “negro” e do “branco”? Afinal, onde está o cerne da problemática “branca” e da civilização humanista, que impôs ao mundo uma temporalidade uniformizadora, com toda a sua pulsão de morte e a orquestração de um inenarrável luto físico e cósmico-espiritual? O universalismo reivindicado pela modernidade ocidental tem sido desmascarado como uma história particular construída por uma elite, como reivindicam autores como Shalini Randeria e Nederveen Pieterse. A representação do outro é tão antiga como a história cultural da humanidade e a imagem que desse outro se veicula depende integralmente do eu que a descreve e constrói. Do desalmado ao bom selvagem, do grotesco ao belo, do incréu ao feiticista, as descrições do outro ao longo da história da humanidade inscrevem-se da antiguidade até ao presente em diversos campos desde o âmbito teológico ao filosófico, da medicina à antropologia, da literatura à estética. Contudo, do ponto de vista cultural, esta noção do outro tem sido quase sempre construída a partir da perspectiva do ocidental, ou melhor dito, a partir dos poderes dominantes do Ocidente – o poder sacerdotal da Igreja católica, o poder político dos Impérios, desde a Roma Imperial aos Impérios Modernos pós-quinhentistas, até à ciência e à filosofia dominantes da Idade Moderna à contemporaneidade… para chegarmos à complexa mega-máquina actual de corporações transnacionais e instituições culturais (ministérios, a media e a indústria cultural) que modelam a reconstrução de um nós e de um outro. Ao contrário do que supõe a cosmologia modernista antropocêntrica, a civilização europeia jamais foi moderna. Excepto na imaginação e na produção do discurso. Pura ideologia, a auto-descrição de uma civilização humanista e universal cai por terra na evidência histórica da invasão e do saque, do expansionismo e da endoutrinação, da tortura e da matança. Da conquista de Ceuta em 1415 à actual vala de Ceuta, são seiscentos anos de sangue derramado. A cruzadas e a cruz de Cristo, herdeira da Ordem dos Templários, transmuda-se hoje na Frontex, a externalização securitária de fronteiras da UE para militarizar o neo-Mare Nostrum. É que sempre se matou para controlar o comércio e aumentar a acumulação material. Conquanto, no passado, os Impérios torturavam e matavam com a crença da animalidade da vítima; no presente, a UE mata por outsourcing com filiais do seu franchising de controlo alfandegário e polícia mapa-múndi em estados como a Turquia, a Líbia, o Níger, para acertar contas e ajustar balancetes de quem serve como mercadoria ou deve ser afogado no Mediterrâneo, ou enterrado nas tempestades de areia do Saara, por não estar em condições de ser monetarizado. Ontem como hoje, a classe regente fez do Mediterrâneo das praças, lugar de encontro da vida simples e do dom da troca, que remonta à Jericó da Idade da Pedra, um mar pútrido. Em nome do humanismo universalista, a matança não pára.
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36 CANDOMBLÉ Fanon, 1961: “Abandonemos essa Europa que não pára de falar do homem massacrando-o por todo o lado onde com ele se encontra, em todos os cantos das suas próprias ruas, em todos os cantos do mundo (…) em nome de uma pretensa “aventura espiritual” estrafega a quase totalidade da humanidade”. Um “mérito” que já ninguém lhe pode tirar. Ó mar ensanguentado, quanto do teu sangue são veias abertas por Portugal? Esta glosa não pode ser da autoria da minha pessoa, mas uma mensagem dos heterónimos que nos fustigam pelo coração adentro. Uma mensagem que só pode ter sido graffitada no panteão nacional... Nietzsche. Em 1895, com toda a sua doçura e amor, proclamou que Deus estava morto e que nós seríamos os seus assassinos. Nós nunca matámos Deus. Precisámos dessa crença para nós próprios nos fazemos passar por deuses para desse modo matarmos não Deus mas a Natureza, e tudo o que em nós é visto-sentido e pensado como natural. O pedestal, o omnipotente olho do Absoluto, ficou lá, no mesmo sítio. separou-nos da Farol da civilização que varre os mares nossa animalidade e oceanos, navegados pelos cargueiros da razão instrumental e da tecno-ciência, intrínseca, da nossa próesses petroquímicos encontrados nas par- pria natureza. Sublinhe-se que o desejo – tal tes mais profundas dos oceanos, enquanto como aquilo que entendemos pela nossa os seus detritos, as suas hiper-mercadorias, natureza – é uma construção social; façaformam ilhas flutuantes à superfície da rua -se notar que em sentido figurado o desejo de nos humanizarmos é um desejo especíonde todos estamos atolados. Aos nossos ouvidos chega o burburinho da nova vaga, fico historicizado nos últimos 5 minutos da o canto de sereia das políticas ecológicas história cronológica da espécie humana, se e da transição energética, os novos vocá- considerarmos simbolicamente os seus 200 bulos-hóstia do sistema. minutos (ou terão sido 300…?) de existênO clima começa a aquecer. Com o degelo, cia. Este processo de “humanização” inicia não sobe apenas o nível do mar, sobem os seus contornos simbólico-morais com os níveis de concentração de sangue o aparecimento da agricultura e a domesporque o lucro, o filho mais pródigo do ticação animal, historico-lendariamente Antropoceno, tem de continuar a desa- situado no Crescente Fértil, há cerca de 10 guar por algum lado. Imortal. Acidificação, mil anos. A partir deste marco as sociedapoluição, perda da biodiversidade, gémeos des passam a definir-se cada vez mais por malignos do aquecimento global. Um mar caracteres normativos e regulações histodigerido pela civilização humana, um mar ricamente sedimentadas, por contraponto abusado pela dominação industrial. à relação instintual e paganista das socie“Como fomos capazes de beber o mar?”, dades pré-agrícolas. Os conteúdos normaperguntava-se em pranto Nietzsche. Um tivos – divisão do trabalho, propriedade sobre o território e o desenvolvimento mar devastado pelo consumo humano é um mar que se bebeu. Por todos. Embora técnico – conduziram ao correlativo parapor uns mais do que por outros. De um lado, digma de governar a natureza. É a noção a classe do capital e o aparelho estado-me- de seres “Pegadores”, cara a Daniel Quinn, diático; do outro, os que ficaram órfãos de quando o mundo passa a “um sistema de apoio à vida humana, uma máquina para deus e recusaram o pedestal. À falta de produzir e sustentar a vida humana”. outro vinho missal, encharcaram-se de A evolução deste novo corpus social preniilismo, transbeberam o Anticristo, porparou o terreno para a ascensão do pensaque quando este falava em transmutação de todos valores engoliram o antidepres- mento monoteísta e o nascimento das inssivo da desvalorização de todos os valo- tituições. Por um lado, a criação do mito res. O cinismo confessa mal a sua frustra- de um Deus único, superior e absoluto. ção com a sua extrema (contra) idealização Por outro, a consubstanciação da estratihumana. O cínico moderno e pós-moderno ficação social no aparecimento de estrué um ultraromântico mal resolvido. O nii- turas políticas e “militares” hierarquizadas: nasciam as civilizações. Instância lismo e a Imprensa têm algo em comum: a crença na sua objectividade e neutrali- profunda na história de contar (e formadade. A crença na sua descrença. “A ausên- tar) a evolução humana, as realidades inscia de mito é também um mito”, avisa titucionais são uma característica distintiva Bataille aos que à deriva se navegam com da condição social como lembra Viveiros a … deriva. de Castro, “condição que deixa aqui de ser Temos de aprender a morrer no um atributo do Homo Sapiens para defiAntropoceno, urge a voz catártica do escri- nir a Humanidade como entidade singular”. tor Roy Scranton. Lemos esta frase e desce- Singular e para-histórica, acrescentaria em mos à terra, qual balão de criança a esva- jeito provocatório. Porque axiologicamente ziar-se no ar. A chiar como um ratinho. funda-se a Humanidade como mito, como Que murcho se estatela no chão. Regresso entidade teleológica. ao fundo humano e à carcaça animal. Na cosmologia animista “se há uma Impermanência, transitoriedade, pereci- noção virtualmente universal (...) é aquela mento. O neo-animismo tem um caminho de um estado originário de indiferenciaque mal se consegue lobrigar para desa- ção entre os humanos e os animais”, acresprendermos a insídia da História Universal centa ainda o autor de A Inconstância da da Infâmia... Alma Selvagem. Sem resvalarmos no disA mitologia evolucionista ocidental sus- curso dicotómico, antes convocando Lévitenta que nos fomos diferenciando do Strauss, mas também Robert Brightman, nosso fundo animal para buscar a nossa no animismo a condição original comum humanização. A concepção existencial aos humanos e animais não é a animalidade, mas a humanidade. Se os humade animais racionais calca e decalca uma linha de raciocínio que me parece ines- nos – isto é, os grupos indígenas – concapável: o desejo de nos humanizarmos tinuam iguais a si mesmos, para sempre
humanos, radicaria aqui a propensão das sociedades indígenas para a auto-limitação da sua ecologia material? Tal como analogamente Clastres pensou a organicidade política dos grupos nativos como insusceptíveis de acumular o poder político e a formação de proto-estados? Conta-se a lenda de que um antropólogo em estudo de campo na Amazónia pedia sucessivamente aos indígenas que desenhassem a sua aldeia ideal – se quisermos, a representação simbólica de um mundo imaginário. Sem excepção, desenhavam-na tal como ela era na realidade… O animismo é “avaro na extensão do conceito de humanidade, são modelos de tolerância relativista ao admitir a multiplicidade de pontos de vista sobre o mundo”, Viveiros de Castro. Por tudo isto se infere por hipótese que na ontologia animista o humano não está em falta, nem embebido na angústia da imperfeição e da incompletude. Talvez para o animista, humano não seja um vocábulo espectral. A cosmogonia animista não acrescenta caos primordial ao conceito “humano”, nem uma infinitude de angústias. O “remorso que precede o mal”, diria Cioran. O sujeito da mitologia ocidental para escapar do niilismo ou adubar a sua deceptividade por sentir-pensar a sua humanidade como incompleta – já que no fundo permanecemos animais, condição ocultada por camadas de cultura – cai no fado labiríntico de construir um estranho outro. Os labirintos são terreno fértil para o nascimento dos fantasmas. “O bárbaro é antes de mais nada o homem que crê na existência da barbárie”, Lévi-Strauss. Na alegoria da nossa caverna, ao repudiarmos o nosso fundo animal e a nossa “inacabitude” humana, é afinal o bárbaro, esse imperfeito humano, que cremos que habita em nós. A fuga ao nosso bárbaro, à nossa angústia entranhada, convoca a representação e a multiplicação de bárbaros que projectamos no outro como forma de reconhecer (ou invalidar) o bárbaro que em nós habita. Greta é a reencarnação do padre António Vieira Não, ainda não vamos querer morrer no antropoceno. Totais e imortais, eternamente separados e acima da natureza. Sobretudo da nossa própria. É que o une Elon Musk e Greta Thunberg. Une-os a matriz do antropoceno. Musk, o Silicon Valley, os transhumanistas, através da racionalidade técnica e da distopia messiânica, desejam a imortalidade como uma prótese, não no cimo do pedestal, mas um bioma totalmente artificial em Marte. É o homem pós-histórico de Lewis
Munford, que se dispõe a dar existência artificial e maquinal à vida (ex-)humana. O transhumanismo propõe o fim do corpo, da animalidade. Fim do corpo enquanto unidade única e irrepetível. Programa-se não a sua singularidade como vaticina Ray Kurzweil, mas a impossibilidade da sua singularização, da sua liberdade incontida e incontrolável para ir sendo. O projecto SpaceX de Musk só é inovador na aparência, na espectacularidade técnica, no artifício – em rigor, replica o caso Stanford Torus, uma iniciativa da NASA nos anos 70 – mas sem quebrar as convenções autoritárias, sem rejeitar as estruturas dominantes, reflexo dos princípios de expansão e dominação ligados à era do antropoceno e alavancada pelo imperialismo económico do capital. Um novo mecanismo de controlo social mundial através de uma forma exuberante e sedutora, os meios mitológicos da tecnologia, que hiperboliza o capitalismo terminal. Depois de serializados e estandardizados por um modo de vida homogéneo onde vivemos sob as mesmas bases e valores, num nível de similitude, dessacralizados da nossa singularidade por uma mega-máquina, crentes do igualitarismo da nossa unidimensionalidade, estamos prontos para ser teleportados. “O principal problema com os ciborgues é que eles são os filhos ilegítimos do militarismo” (Donna Haraway). Menos mal que o cyborguismo não tenha hoje nenhum Álvaro de Campos como cantor do pós-modernismo. Greta com a técnica do racionalismo – passe a metonímia com filiação a Gabriel Alves… – continua encavalitada em cima do pedestal, esforçando-se por esconder na sua criança a voz de um Deus que nos coage: nós, reparem bem, temos de salvar a Natureza…! Neo-colonização… A noção de salvação estava no âmago e na engrenagem do movimento de colonização. Ao menos antes, os padres cordiais, queriam salvar grupos de homens e mulheres indefesos e mortais, perdidos no meio dos matagais… Olhem agora para o tamanho da nossa neo-humanidade, em bicos de pés, agora agorinha é para salvar o Planeta Terra todo por inteiro…!?! O problema de Greta – bem entendido, tomo como análise a representação da persona política Greta, não a criança excepcional que revela ser e a quem devemos carinho – não é ser uma profeta, mas parecer sê-lo. É que as profecias vêem o que se não viu antes no horizonte. Pelo contrário, o discurso Greta retoma o arcaísmo do projecto humanista e universalista. Greta é a reencarnação do padre António Vieira. Neste clima, o pior não é o balãozinho a esvaziar-se pelos ares. O pior é quando ficarmos entre a espada e a parede. E tivermos de escolher entre o tecno-fascismo dos transhumanistas e a gestão cordial do humanismo salvífico, a social-democracia aplicada à bioesfera, à litosfera e à hidroesfera, com o paternal sistema de cotas, subsídios, reservas, um parque zoológico globalista à escala planetária para todos nos sentirmos cristãos e salvadores. O trágico é que sabemos que vamos ter de escolher a Greta. No fundo, quer fazer-nos crer que essa humanidade, que espezinhou a Natureza e devia ser enterrada no Antropoceno, deve ser preservada num museu global a céu aberto para sub-vivermos servos do humanismo mínimo comum. Para o Ocidente é uma forma de manter o seu prestígio. Mas o drama que nos pertence é outro: enquanto acreditarmos na Greta mais se vai estreitando o caminho que nos esborracha contra a parede do neo-tecnofascismo. É nesta imensa bacia de ácido e sangue que descobrimos vozes do espectro intelectual em Portugal a encherem-se de brio ao planearem Museus dos Descobrimentos...
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CANDOMBLÉ 37 Voltemos a entrar no terreiro. A perspec- pertinente, de que modo neo-correntes tiva holística do animismo impede qual- de reconhecido pendor espiritual que se quer dualismo nas tradições sagradas afro- instalam em territórios não-urbanos se -brasileiras. Nos candomblés, tal como não separam da política, enquanto acção no/ há uma dualidade entre céu e terra, nem com o todo social, ao também elas reproentre o bem e o mal, também não há duas duziram essa separação? Porque se sepasubstâncias estanques no ser humano: ram elas da própria memória cultural do mukutu (corpo) e muenho (“espírito” ou lugar que re-ocupam ao mesmo tempo que sopro vital, axé) – assim como ara (corpo) valorizam práticas espirituais e ambientale èmí (“espírito” ou sopro vital) – são tam- mente sustentáveis? Que preço pagamos bém partes do ntu (ou eni), isto é, do ser por ainda mantermos uma fronteira entre o que pensamos e aquilo que tratamos de humano, da pessoa. O próprio mukutu (ara) é composto de diversos elementos que transformar? Porque nos mantemos de fora encontramos na restante natureza. Dito de da nossa própria experiência integral? outro modo, com Barros e Teixeira, nas traContinuamos a pensar que o que perdições anímicas africanas “não encontra- mite aceder ao conhecimento, à verdade mos o dualismo corpo e alma”. válida, é o conhecimento em si mesmo, não Por contraposição à idealização do a experiência humana, não a nossa transhumano total e perfeito, essa máquina formação. Foucault chamava a esse corte performática inspirada na tradição das “o momento cartesiano”. Esse corte, que Luzes e levada ao cúmulo pelo discurso produziu um novo regime de verdade em tecno-liberalista, irrompe no imaginá- torno de um modelo da ciência, consubsrio sincrético brasileiro a figura do cabo- tanciada numa racionalidade instrumental clo. O caboclo escapa à unidade por zom- e numa apostasia chamada objectividade, bar como Macunaíma de qualquer estado que afectou sobremaneira as formas quode meta-perfeição. Ri como Diógenes ou, tidianas que regulam a nossa percepção do mais ainda, como Luciano de Samósata. outro e do mundo, foi gradualmente limiFigurativamente, é muitas vezes consi- tando, cobrindo e, finalmente, desqualifiderado uma fronteira – “o entre-lugares” – cando, sob o rótulo de “crença”, esse outro que separa o culto aos inquices da adora- tipo de relação com o conhecimento que ção aos orixás, a vida da morte, o Angola na cultura ocidental havia sido construído do Ketu, a Umbanda do Candomblé, a na cultura greco-romana (consultar III África do Brasil e, por fim, os troncos e raí- parte, Mapa 25). Um conhecimento zes do mundo indígena da herança afro-a- que Foucault chama de “espirituanimista do Angola. Convoca a narrativa de lidade”, ao postular que o conheum Brasil mestiço e assimilado. A sua mar- cimento nunca é dado ao sujeito ginalidade na história traduz a condição como tal, mas que o sujeito itinerante do caboclo. Ao lado do inquice deve ser modificado, transforKitembo, o caboclo representa a memória mado, tornado até certo ponto ancestral, a condição de finitude animal diferente dele próprio, para e o estado de transição, e, no limite, a pró- atingir a aprendizagem. pria morte com a sua alteridade, a potênEm Dreaming the dark cia da regeneração. (1982), a escritora Starhawk A carnavalização do mundo nos candom- esticou a corda do debate: blés, na conversão do sagrado em ritualiza- “Desenvolvemos os nossos próprios rituais para ções que enfatizam a vida terrena e a vida corporal, individual e comunal (imagens a nossa cura pessoal, para do corpo, da bebida, da comida, da satis- desenvolver o nosso poder fação de necessidades naturais e, princi- político, para construir os palmente, da vida sexual, e a reverência laços comunitários de que às forças anímicas e à própria natureza) a cultura de hoje carece (…) configuram a consciência da alegre rela- continuar a lutar contra tividade das verdades e autoridades no um oponente tão violento poder e a abundância dos vínculos espi- exige uma esperança prorituais... que mais não são do que expres- fundamente enraizada. sões vivas de renovação da potência e devir Para mim, essa é a razão da comunidade. Na concepção animista, mais importante para vincular uma prática “natureza e cultura são parte de um mesmo campo sociocósmico”, explica Viveiros de espiritual à minha actiCastro. “Em lugar de precisarmos de pro- vidade militante”. A teóvar que eles são humanos porque se dis- rica do ecofeminismo tinguem dos animais, trata-se agora de considera que contimostrar quão pouco humanos somos nós, nuamos a pagar o preço que opomos humanos e não-humanos de do distanciamento um modo que eles nunca fizeram”, pros- moderno, isto é, a objesegue o teórico do perspectivismo ame- tivação de um sujeito ríndio. O que revela que o grande feito do certamente autónomo, candomblé não foi necessariamente mani- seguro da sua razão festar a consciência de um povo – projecção e da sua verdade, e que antropológica de uma interpretação anar- a traços largos convoca co-humanista –, mas declarar que a sábia a figura de quem não se convivência de uma sociedade metamór- compromete, do desafica e humana com todas as criaturas vivas pegado, do a-histórico, que a rodeiam constitui uma verdade numa palavra, o “cidadão”. “Desenvolver e promais perene. Certamente, essa “vivência teger as nossas comunidaselvagem” é uma intersecção nascida no confronto com o problema branco, com des é tornar as nossas forças a Civilização que forçava à transição mer- capazes de, entre outras coisas, resistir às mudanças no cantil e crescimentista, imperialista e de matriz patriarcal. ambiente de uma época, os anos de Inverno”. Cavadelas no paradigma humanista Expressão de uma sensiQue interpelação nos faz o tal “animal bilidade poética e de um fantástico, hierático e metamórfico”? O que pensamento singulaé que na constituição da subjectividade ríssimo na cultura de moderna e ocidental, torna impensável ou língua portuguesa, mesmo uma profanação o laço entre polí- o poeta e antropótica e espiritualidade? Entre política e cui- logo Ruy Duarte de dado de si? De que modo essa separação Carvalho, formula a problemática nos torna mais vulneráveis? E, não menos
do seguinte modo: “Toda a contestação, mesmo revolucionária, ao curso da história sob o figurino humanista se tem empenhado na proposta, na adopção ou na imposição de remedeios dentro do próprio paradigma humanista. Os neoanimistas entendem que o que importa é colocar o próprio paradigma humanista em questão”. Sem dúvida, podemos, claro, continuar a mofar da espiritualidade. E pretender que as nossas concepções estiveram e estão imunes à colonização histórica do pensamento. Ficaremos é obrigados a perguntar à razão o que nos leva a esse gozo... Permite-nos o gozo, sair do lodaçal em que caem as nossas comunidades e na descrença generalizada? E porque se cai na estetização do niilismo? Não é o niilista aquele que, fascinado pelo colapso, manifesta um zelo místico em romantizar a todo o custo um mundo despojado de sentido? São as nossas verdades tão implacáveis e, sobretudo, tão assim transgressivas e transformadoras? Caso para perguntar, estaremos nós acima de todas estas questões? O medo abstracto à espiritualidade continua “a comer a alma” da militância política e da crítica social mesmo quando podemos testemunhar na prática que comunidades plurais, como o povo-de-santo afro-brasileiro, avançaram e avançam na realidade da emancipação social, política e individual. Que elo nos ficou em falta? Paradoxo que deve dar que pensar: aqueles emanciparam-se precisamente por terem resistido ao mais bem-amado tropo-logro-armadilha da filosofia colonial: o controlo do pensamento livre. Acontece que somos heterogéneos, estamos predestinados ao status sagrado de uma experiência única e irrepetível no tempo. “Assim, por uma mudança inevitável, a categoria do sagrado se estende ao domínio da nossa experiência”. A heterologia de Bataille não quer mais que minar um dos pilares centrais da ontologia secular: o sujeito autosuficiente e auto-omnisciente. Huxley achega-lhe uma cavadela: “Somos nós, os brancos ricos e cheios de requinte, que ficámos de rabo à mostra. Cobrimos a nossa nudez frontal com alguma filosofia – cristã, marxista, freudo-fisista, mas à popa continuamos desnudados, à mercê de todos os ventos da circunstância”. Podemos continuar a ignorar esta temática ou mesmo zombar daqueles “a quem os fariseus ou a ortodoxia verbal chamam excêntricos, impostores, charlatães e amadores sem qualificações”, outra cavadela do autor de Admirável Mundo Novo. Quando há mais de um ano atrás atirei a primeira pedra (ver Mapa 23) jurei por-me do lado dos amadores sem qualificações porque sabia que não era possível sair desta inesgotável fantasmagoria. Ao longo destas páginas, demonstrou-se que o universo plural da polimórfica cultura dos candomblés foi historicamente transformando um sentido metafísico e simbólico – o axé, o princípio vital de tudo – no desejo vivido
de realizar na existência terrena e sensiente a potência do ser em comunidade. Entre outras questões levantadas por esta estranha convocação de espectros, é questão de saber se a memória histórica e a arkhé viva dos candomblecistas afro-brasileiros são caminhos de possível aprendizagem que ensinem aos demais uma existência espiritual mais plena, justa, comunal e solidária... Atento a este processo de dissidência, o sociólogo Muniz Sodré traduziu em linguagem política o seu testemunho: “A política pode ser parceira nesse jogo. Não certamente a política que se define como fenómeno de Estado (política partidária, política social, etc), mas antes a prática da organização da reciprocidade dos seres diferentes em comunidade, ou seja, a política como prática de estar junto, ao lado da luta pela inclusão, no mundo comum, de excluídos históricos. Um agir político grupal implícito dos descendentes africanos”. Não há resposta para a última pergunta. Talvez porque não saibamos parar de interrogar. Talvez a questão seja, porque queremos uma resposta última e derradeira? Que condição de insatisfação tem o vivente para desejar uma última resposta para tudo e para nada, como se fosse uma questão de vida ou de morte? E todavia fazer da existência uma questão de tudo ou nada, de vida ou morte, é em si uma expressão bem potente de espiritualidade. É conviver com a transcendência. Condição tangente e limítrofe que o antropólogo Silas Fiorotti, fantasmático Sodré-Bataille, procura traduzir nestas palavras: “Para mim, ser candomblecista é ter a consciência de que o ser humano realmente é um ser para a transcendência. É saber que a pessoa não está sozinha no mundo e que cada partícula da natureza, desde as folhas de uma planta até a poeira cósmica, compõem uma mesma realidade sagrada e sacralizante. Ser candomblecista é saber que o ser humano é imortal através da memória do seu povo e do seu grupo. Ser de candomblé é perceber-se como parte da divindade que dá vida e que mantém a vida de tudo que é animado e inanimado. Mas ser candomblecista também é ter consciência de que será vítima do racismo, da discriminação e da rejeição por parte da sociedade na qual vivemos. Ser de candomblé é perceber-se como parte de um povo mal compreendido que luta todo dia para provar ao mundo que não cultua o demônio e não faz mal às pessoas. Então, ser candomblecista é mais do que ser um religioso ou seguidor de uma religião: é assumir uma postura política diante do mundo. Para cultuar seu orixá, nkisi, vodum, etc., é preciso assumir uma posição política no sentido de defender aquilo que há de mais precioso para qualquer pessoa: a sua consciência do sagrado”. Algo que só acontece com o acto mais gratuito e irreprimível de que o humano faz prova: ser sem palhiço, ser livremente. Esse mundo não tem dono E quem me ensinou sabia Se tivesse dono o mundo Nele o dono moraria Como é mundo sem dono Não aceito hierarquia Eu não mando nesse mundo Nem no meu vai ter chefia (Toque de São Bento Grande de Angola, letra de Paulo César Pinheiro) i Mito ou realidade, entre 2004/05 na Amazónia brasileira, nas comunidades caboclas do Amazonas, Tapajós e Arapiuns, pude fazer eu próprio essa experiência e constatar, invariavelmente, que a aldeia ideal esboçada pelos jovens e adultos coincidia com a sua própria aldeia... ii Recomenda-se vivamente a consulta de vários artigos do autor sobre temáticas afins à sua obra e a este artigo no portal do Buala (www.buala.org).
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38 CRÓNICA
Ervas vagabundas JOÃO GOMES J PENGOMES@GMAIL.COM ILUSTRAÇÃO FAIA
Durante os meses de confinamento, e com a redução das manutenções dos espaços exteriores (passeios, caldeiras de árvores e relvados de rotundas), as «ervas-daninhas» reocuparam um território há muito perdido e proporcionaram uma explosão de cor nas ruas das cidades. A maioria são espécies da flora local, irrefletidamente diabolizadas no gesto domesticador do homem que, numa redoma, tudo higieniza à sua volta. Mas o que são as ervas-daninhas? Esta expressão é usada geralmente para referir as plantas que nascem de forma espontânea nos passeios, nos muros e telhados, assim como no meio de culturas agrícolas e jardins. Ou seja, são plantas que surgem em lugares indesejados e baralham os nossos planos de controlar e ordenar o mundo. Este é um conceito totalmente antropocêntrico. Um preconceito que, como tantos outros, tardamos em questionar, como o lobo-mau eternizado em histórias infantis, onde o mau surge desde logo como cognome do lobo, ou a diabolização das plantas carnívoras em filmes de terror e ficção cientifica, como paralelismo de monstros que nos vão destruir. A consciencialização da sua existência e o consequente respeito por essas plantas silvestres, nas calçadas, nas bermas das estradas ou nos parques de estacionamento, é um passo fundamental para as pessoas mudarem a sua atitude perante o território que habitam. E, por outro lado, uma oportunidade para as observar, conhecer e desfrutar do seu encanto no dia-a-dia de cada um. Quando um prado é eliminado para dar lugar a um parque de estacionamento de serventia a uma superfície comercial, a vegetação vai tentar recuperar a sua perda e as espécies mais resilientes aproveitam as oportunidades que lhes restam para viver. São plantas com algumas características comuns, embora não formem um grupo específico, botanicamente falando. Uma planta pode num local ser vista como «ornamental» e noutro como uma «daninha»: é tudo uma questão de contexto. Algumas dessas características são a sua grande adaptabilidade, o crescimento rápido e um eficiente modo de dispersão. Pertencem a variadíssimas famílias botânicas e podem ir de pequenas herbáceas a grandes árvores (apesar de não serem verdadeiras ervas). De um modo geral são plantas pioneiras, de crescimento rápido e pouco exigentes no que toca ao solo e,
como tal, com grande capacidade de colonizar uma variedade grande de habitats. Na verdade, esta categorização artificial apenas surgiu quando começámos a tentar domesticar o território. Estas ervas terão começado a ser notadas nos primórdios da agricultura, quando os humanos começaram a alterar o meio onde habitavam para seu benefício directo. Algumas plantas começaram a ser consideradas indesejadas por atrapalharem o crescimento e a recolha de outras que privilegiávamos para a alimentação ou outros usos. Com o aumento da mobilidade das populações humanas, as plantas espalharam-se e procuraram adaptar-se ao mundo artificializado, que não tem parado de crescer. Com o desenvolvimento da agricultura em larga escala, no nosso território desde o tempo dos romanos até aos de hoje, foram desenvolvidas várias técnicas para reduzir o número das ervas indesejadas. Diga-se, nem sempre com grande sucesso, pois algumas têm-nos perseguido desde tempos imemoriais e assombrado as nossas estimadas culturas.
plantas que surgem em lugares indesejados e baralham os nossos planos de controlar e ordenar o mundo Mas foi sobretudo nas cidades, das ruas em terra batida e mais tarde pavimentadas, que estas ervas rapidamente começaram a ser vistas como plantas rebeldes que tinham de ser combatidas. E, tomadas como rebeldes, em igual medida ainda hoje são vistas como sinal de desmazelo, de falta de manutenção, de sujidade. As metáforas que invocam reflectem um conceito proveniente de uma estrita visão utilitária e meramente produtivista que, não trazendo os benefícios imediatos, as rejeita e persegue com o intuito da sua eliminação. Uma perspetiva que se alarga e que vemos empregue em diferentes contextos, como quando se fala da limpeza das florestas, numa tentativa de controlar a natureza, como se dela não fizéssemos parte e dela não dependêssemos. Como em todo e qualquer ecossistema, a interdependência entre espécies é fundamental, mesmo que tal não nos pareça obvio na observação menos atenta ao que nos rodeia. Uma árvore tombada no solo de uma floresta, ou no descampado de uma cidade, é um mundo dentro do seu mundo, onde proliferam seres de compositores que enriquecem o solo e dinamizam toda uma comunidade de seres vivos que dependem uns dos outros. Nesse processo contranatura, continuamos a separar-nos da natureza desde que deixámos a vida de recolectores, e assim continuamos a fomentar a criação de ilhas de natureza para compensar as nossas ilhas artificiais. Temos de reaprender a fazer parte da natureza e a integrar-nos no ecossistema partilhado com todos os seres vivos, e não continuar a persistir em criar um «nosso», isolado e esterilizado.
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Entre as ervas No entanto, estas plantas têm conseguido resistir e têm nos acompanhado ao longo dos tempos. Nós somos na verdade os seus parceiros ecológicos, mesmo que de forma inconsciente. Elas adoram o que nós fazemos aos solos (desflorestações, escavações, agricultura, eutrofização de solos), elas exploram os nossos campos agrícolas, ruas, parques e jardins, redes de transportes… Podemos afirmar que formamos uma relação simbiótica com muitas delas. E que já usufruímos da sua proximidade como recurso de alimentos, medicamentos, matérias-primas variadas. Algumas das plantas que podemos observar nos pavimentos das nossas cidades são comestíveis, como a beldroega (Portulaca oleracea), a chicória (Cichoriumintybus) e a tanchagem (Plantago major); outras, medicinais, tais como a erva-de-São-Roberto (Geraniumrobertianum) ou o umbigo-de-vénus (Umbilicus rupestres); e muitas outras, imprescindíveis para um ecossistema mais saudável. Destacamos a sua importância para a sobrevivência de abelhas, abelhões e borboletas, que são fundamentais à nossa sobrevivência: transportam o pólen entre flores, possibilitando a reprodução de plantas e a formação de frutos e sementes (cerca de 80% das plantas cultivadas dependem destes agentes polinizadores). Para não cair no erro utilitarista de que acima falava, ressalvo o perigo de agrupar as plantas por temas – ervas-medicinais, ervas-aromáticas, etc. – pois todas valem por si, contribuem umas para as outras e dependem umas das outras.
recursos para salvar a «orquídea selvagem» sem nunca pretender travar a destruição dos habitats naturais frente à eterna expansão da actividade humana. Esta escala está por isso, não menorizada, mas inscrita na nossa relação com as ervas... Ervas e outros preconceitos Ervas há muitas e, ideias feitas, muitas mais. Quando não vamos à raiz dos problemas e nos ficamos à flor da sua pele, criamos mais problemas do que os que pretendemos resolver. Vejamos as ervas-biológicas a invadir os nossos supermercados: um sinal de que a indústria já está a cuidar de preencher este nicho económico. A bandeira do verde, eco, bio está a ocupar o lugar da reflexão e da troca de experiências para podermos verdadeiramente conviver da melhor forma. Por vezes, não precisamos de investimentos para ajudar, mas sim de abrandarmos as nossas pretensões de produzir em maior quantidade e mais rápido. Mas, sim, de aprender a conviver com os outros, incluindo os outros animais e plantas. Neste período pandémico «parámos para
Há um milhão de espécies ameaçadas de extinção
Temos de reaprender a fazer parte da natureza Felizmente as plantas são resilientes e nem toda a gente as tem como pragas. Alguns registos apontam para alguns dos usos que se davam, e ainda dão, a algumas destas rebeldes. Exemplo da erva-das-verrugas (Chelidonium majus), a quem também chamam «erva-betadine» pela coloração alaranjada da sua seiva, que queima as verrugas. Outros estudiosos retrataram-nas como curiosidades botânicas, como o botânico Joseph Vallot, que em 1884 elaborou um inventário das espécies espontâneas nos pavimentos de Paris (Catalogue Des Plantes Qui Croissent Spontanément Dans Les Rues Et Sur Les Quais, reed. 2016, Hachette Bnf ) ou, mais recente, o escritor de natureza Richard Mabey, que em 2010 editou um livro dedicado em exclusivo a estas plantas(Weeds: How Vagabond Plants Gatecrashed Civilisation and Changed the Way We Think About Nature, Profile Books). Muito se tem investido no combate às ervas-vagabundas (e vagabundas de outras espécies), usando estigmas perpetuados de geração em geração. Os métodos de combate, que começaram por mondas manuais, passaram a recorrer à indústria química, como o infelizmente famoso «agente laranja», usado na guerra do Vietname, com resultados catastróficos na vegetação local e nas pessoas. Caminho aberto para mais tarde surgir o não menos famoso glifosato, pesticida carcinogénico que, combinado com outras invenções da Monsanto, como as culturas geneticamente modificadas a ele resistentes, com vista a obterem-se áreas cada vez maiores de monoculturas, onde os insectos e as
«daninhas» não têm lugar, tal qual nas frenéticas limpezas das nossas ruas. Sem surpresa, a primatóloga Jane Goodall veio recentemente, no jornal The Guardian, acusar a sobre-exploração do mundo natural e seus recursos, reflectida nas florestas dizimadas, na extinção de espécies e destruição de habitats naturais, como causas da situação da pandemia actual. Alerta por todos sobejamente conhecido, mas sem que nos tenha inibido de eliminar tudo o que de natural vai surgindo nas nossas cidades, jardins ou hortas. Nos passeios junto à nossa porta. A nova estratégia para a biodiversidade da União Europeia 2030, publicada por ocasião do Dia Internacional da Biodiversidade, conforme referia o site Wilder. pt, elegeu o lema «Trazer a natureza de volta às nossas vidas», em conjunto com um novo plano para a agricultura baptizado «Do Prado ao Prato».Mais um rol de
boas intenções. A presidente da Comissão Europeia Ursula von der Leyen surge a afirmar que «tornar a natureza novamente saudável é a chave para o nosso bem-estar físico e mental e um aliado na luta contra as alterações climáticas e surtos de doenças», pretendendo que se apliquem 20.000 milhões de euros por ano, até 2030, nesta área. Acrescentando que «estamos a perder natureza como nunca, devido a actividades humanas insustentáveis». Das palavras aos factos: por um lado, a população mundial de espécies selvagens caiu cerca de 60% nos últimos 40 anos; por outro, hoje há um milhão de espécies ameaçadas de extinção. E, assim, parecendo que se está a investir na melhoria da natureza, apenas se está a dinamizar outro tipo de negócios dos quais, mais uma vez, quem sai a ganhar, pelo menos a curto prazo, são as grandes corporações da alimentação, da química, das energias. Em boa medida, investem-se
observar» os pequenos detalhes da natureza envolvente, assim como inúmeros exemplos desta revitalização de plantas e animais a aproveitarem a pausa das actividades humanas: os andorinhões a regressarem da sua migração e a depararem-se com o ar mais limpo e maior quantidade de insectos, como resultado da maior disponibilidade de flores; a proliferação de ninhos de aves em arbustos e sebes dos jardins, em resultado deste abrandamento humano. Uma pequena história real contada por um amigo exemplifica bem o que nos move: -«“Terra onde não cresce erva não é terra!”, diz-me um vizinho ao olhar para a sua horta, mas para logo constatar que era apenas uma desculpa para aliviar a culpa que sentia pelo seu desleixo. No outro dia passo por ele, que nem me vê de tão atento que estava a pulverizar a terra com a sua bendita cura. Passado outro dia, todo orgulhoso diz-me: “agora é uma horta”». O que nos move, enfim é legítimo: uma horta é alimento. Mas uma horta, uma rua, um terreno e um mundo não são um mero exclusivo do homem, mas sim Terra onde cresce a erva. Neste mundo e nesta terra, plantas vagabundas são plantas nómadas, que vagueiam por diferentes mundos, sem planos de dominar nenhum deles. Surgem em zonas abandonadas ou alteradas, aproveitando as ausências humanas para viverem e deixarem viver, contribuindo para o enriquecimento de um ecossistema degradado pela artificialização do habitat humano. Devíamos agradecer a estas e outras vagabundas como verdadeiras fontes de conhecimento e sabedoria, e com elas tornarmo-nos mais saudáveis (e não à natureza, que não precisa da nossa ajuda para isso). Elas fazem parte do sistema imunitário da natureza, são a base para recuperar o equilíbrio dos ecossistemas. É, por isso, extraordinário este triunfo luxuriante, a capacidade regenerativa destas plantas, guerrilheiras vegetais que se apoderam do fracasso da era industrial, que tem promovido um mundo menos diversificado e mais previsível, e por isso menos resiliente.
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Sobre Vieira da Silva e Arpad Szenes, conversa com Ursula Zangger JORGE VALADAS FOTOS URZULA ZANGGER
A
Ursula Zangger nasceu em Zurique já há uns bons anos, mas parece que foi ontem. Com ela, o complot do tempo não vinga! Cruzámo-nos com a Ursula em tempos idos, no meio libertário portuense. Primeiro nas tertúlias da revista Inquietação, depois nas actividades da Associação Musas, nos encontros do Gato Vadio. E foi-se criando uma amizade, assente numa mesma sensibilidade solidária de revolta contra o mundo, contra o insuportável, também numa cumplicidade na rejeição de uma certa «instalação» no conforto da sociedade. Cedo descobrimos a sua paixão pela fotografia, as suas fotografias e, através das fotografias, a sua amizade e relacionamento com os pintores Vieira da Silva (VS) e Arpad Szenes (AS), de quem foi próxima e amiga. Quando falo da Ursula, penso sempre na foto extraordinária do diálogo da Vieira da Silva com o seu gato que ela nos ofereceu um dia. Um delicioso instante que foi capaz de fixar para sempre e que diz mais sobre a pintora que todos os livros. A Ursula é estranha a egocentrismos, não é muito faladora, mas é uma pessoa presente no mundo em geral, no nosso mundo. E assim, um dia, acabou por aceitar que trocássemos umas palavras sobre os seus amigos hoje desaparecidos, que ela faz reviver com a sua empatia humana. Nada a ver com as palestras de especialistas que cortam a arte, a vida e o mundo em fatias. E é assim que ela conta… Ursula Zangger: Fui a Paris, em 1962, e comecei a procurar emprego. Aceitei tomar conta de um rapazinho. O pai da criança era o Guy Weelen, secretário de Vieira da Silva. Naquela altura, eu não sabia quem era Vieira nem Arpad Szenes. Comecei a morar em casa do Guy e da Geula (mulher dele). Um dia, o Guy organizou um jantar em casa dele e os convidados eram a Vieira, o Arpad e o Henrique Silva, um jovem artista português que era protegido deles. O Henrique e eu apaixonámo-nos e começámos a viver juntos. Naquela altura comecei a ter contacto com Vieira e Arpad, sobretudo a partir do ano em que eles instalaram os primeiros ateliers em Yévre-le-Châtel, no Loiret, uma região situada a sul de Paris, com a ajuda do Henrique. Mais tarde construiriam de raiz ateliers maiores. Em 1963 fiquei grávida e Vieira convidou-nos a viver lá com eles, provisoriamente, até a criança nascer. Foi nessa época que comecei a fazer as primeiras fotos deles. Vieira gostava da minha presença enquanto ela trabalhava e também gostava das minhas fotos. Acabou por ser madrinha da minha filha. Mais tarde, com ajuda da minha mãe, o Henrique e eu comprámos uma pequena casa em Yèvre-le-Châtel. O facto
de vivermos próximos fortaleceu ainda mais a nossa convivência. Jorge Valadas: A VS e o AS tinham uma relação de solidariedade para com muitos jovens artistas portugueses exilados. Que tipo de apoio lhes davam? Visitavam muitas vezes os ateliers dos artistas, olhavam para os trabalhos mais recentes e davam conselhos. Também ajudavam os artistas a obter bolsas da Gulbenkian e convidavam-nos frequentemente para almoçar em casa, tanto em Paris como em Yèvre, onde passavam sempre os meses de Verão. Entre estes artistas estavam, por exemplo, o Manuel Cargaleiro, o Eduardo Luís, o Jorge Martins, o René Bertholo, a Lourdes de Castro, o Carlos Cobra, o António Barros e, às vezes, o Costa Pinheiro, que vivia na Alemanha, mas vinha de vez em quando a Paris. Os artistas trabalhavam de forma isolada, mas também se encontravam em tertúlias em casa uns dos outros, ou no café. O mais frequentado era o «Old Navy», no Boulevard Saint Germain, o qual, naturalmente, também era muito frequentado pela PIDE!
Vieira da Silva às vezes falava sobre a inércia e a aceitação do fascismo pelos portugueses. Era um assunto que a preocupava profundamente e que tocava em algumas feridas Podes falar mais particularmente do grupo KWY e da revista (nota: O nome KWY foi escolhido por René Bertholo e Lourdes Castro com uso às letras na altura excluídas do alfabeto português e assumidas como um irónico “ká wamos yndo”)? Do Grupo KWY, eu conhecia a Lourdes Castro, o René Bertholo, o Costa Pinheiro, o José Escada e o Gonçalo Duarte. A revista, naquela altura, não conhecia. Apesar de o Henrique não fazer parte do grupo, conheci quase todos. Pelo que percebi, a Vieira da Silva gostava da revista. Nas suas relações, VS e AS exprimiram sempre uma posição política explícita contra o regime salazarista? Ela e o Arpad eram cem por cento contra o regime salazarista, mas só falavam de política entre amigos. A VS recusou ir à exposição retrospectiva que a Gulbenkian organizou em 1970, «por razões políticas». Para eles, a política fazia parte da arte e vice-versa ou eram actividades vividas como dois territórios separados? Vieira e Arpad nunca poderiam vir a um Portugal sob o salazarismo que, como se
sabe, recusou a Arpad, de origem judia, a nacionalidade portuguesa, aquando da dominação nazi. A arte e a política não estavam assim tão separadas para eles. Se de Arpad não conheci nenhuma obra mais explícita, Vieira pintou a guerra. Aí tens a resposta. Estavam profundamente preocupados com o que se passava no mundo. Acompanhavam as notícias e discutiam-nas, muitas vezes com as pessoas presentes. O mundo exterior fazia parte do mundo deles. Da tua vivência com eles, como os posicionas politicamente? Nunca foram próximos de organizações partidárias e mantiveram sempre uma distância para com as ideologias rígidas e autoritárias, designadamente com o comunismo de partido; opuseram-se sempre aos poderes do mundo. Mas não sei se poderia afirmar que tinham um espírito libertário... Talvez pelo olhar poético que tinham sobre o mundo e a vida? Sendo muito abertos, nunca fizeram parte de nenhuma organização política, mas pode dizer-se que, a meu ver, tinham um posicionamento vagamente libertário, decididamente independente. Alguém disse, a propósito da relação que tinham VS e AS desde que se conheceram, em 1928, em Paris: «Pareciam sempre um casal de namorados». A relação amorosa era nitidamente fundamental para eles, e o amor um elemento central na vida dos seres. Da tua vivência com eles, dirias que, no trabalho de pintura, havia uma personalidade dominante ou que procuravam manter uma emulação recíproca? Arpad e Vieira, além da profunda relação amorosa, sempre muito terna, tinham uma grande admiração um pelo outro, quer a nível humano, quer a nível artístico. E Arpad, durante muitos anos, pôs-se mesmo voluntariamente na sombra para destacar o trabalho de Vieira, que considerava mais importante que o trabalho dele próprio, apesar de, quando se conheceram, Arpad já ser um pintor reconhecido e Vieira ainda não. Mesmo não havendo um único dia em que Arpad não trabalhasse na sua própria obra. Ele vigiava o trabalho de Vieira, e como esta adorava as plantas do seu jardim e muitas vezes saía do atelier para as cuidar, Arpad frequentemente insistia com ela para que voltasse ao trabalho. O AS considerava-se apátrida. Estiveram sempre rodeados de artistas exilados, emigrados, perseguidos. Havia nesta atitude um espírito antinacionalista forte que partilhavam os dois e o meio que os rodeava? Eles eram tão abertos que acolhiam ou apoiavam todas as pessoas que precisavam de ajuda, fossem eles de onde fossem. Não faziam qualquer diferença na origem das pessoas. Era um posicionamento assumido. A VS e o AS tiveram ligações aos meios surrealistas. Depois da segunda guerra, colaboraram mesmo, momentaneamente, com André Breton, Benjamin
Péret e outros surrealistas franceses. Partilharam uma mesma atitude na sociedade, um olhar crítico e poético sobre o mundo. Mas guardaram sempre uma distância e nunca integraram esta corrente. Em Portugal, tiveram laços fortes com o Mário Cesariny, a quem seduzia a intensidade da relação amorosa entre os dois. O que te ocorre dizer sobre isto? Na verdade, não posso testemunhar mais acerca disso. Mas sei que Cesariny, cuja escrita Vieira apreciava, era um dos seus favoritos. VS e AS até o apoiaram, muitas vezes, sempre que ele precisava. Em 1950, de passagem por Lisboa, VS escreve numa carta a AS: «Todos são tão gentis comigo, sobretudo porque sou uma pessoa gentil, mas não há nestas pessoas a mínima curiosidade, nem sequer psicológica.» E mais adiante, «Às vezes pergunto-me por que diabo fui nascer neste lugar do mundo e, ao olhar para estes rostos tão pouco inspirados, duvido de mim mesma. Sou como eles? Não sou como eles?». O olhar da VS sobre a sociedade portuguesa revela a natureza opressiva, triste e alienada da cultura lusitana, reforçada pelo regime salazarista, o lado apagado e sem vida da sociedade. Aspectos que muitos de nós sentiram antes do exílio e mesmo depois do fim do antigo regime, e que continuam presentes hoje. Ela falava destas questões? Vieira da Silva às vezes falava sobre a inércia e a aceitação do fascismo pelos portugueses. Era um assunto que a preocupava profundamente e que tocava em algumas feridas.
Arpad e Vieira, além da profunda relação amorosa, sempre muito terna, tinham uma grande admiração um pelo outro, quer a nível humano, quer a nível artístico Sabes se a VS e o AS conheciam a obra da Paula Rego? Não eram da mesma geração, a VS era de 1908 e a Paula Rego tinha nascido em 1935. Tanto a VS como a Paula Rego eram fortemente críticas dos valores autoritários da sociedade portuguesa da época e da violência feita às mulheres. Mas, ao contrário da Paula Rego, a VS nunca abordou essa questão na sua pintura. O que achas? Não me recordo de ver nenhuma pintura de Paula Rego em casa deles. A condição da mulher, que tanto motivou Paula Rego, não seria alheia a Vieira, embora esta se tivesse sempre mostrado mais sensível às questões da guerra e da condição humana em geral.
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Depois do 25 de Abril, os políticos e o Estado tudo fizeram para recuperar figuras como a VS. Nisso teve um papel primordial o Mário Soares, que já a conhecia de França e que fez com ela um jogo de sedução. A VS acabou, como é inevitável nestes processos, com uma condecoração! Tens lembrança de como ela reagiu? Vieira nunca quis nenhuma condecoração, era profundamente contra. Mas Arpad insistiu tanto que eu penso que ela acabou por aceitar mais por causa dele. VS foi sensível à energia da revolução portuguesa, a essa «poesia na rua» que pintou a pedido da poetisa Sophia Mello Breyner. Abandonou, para a ocasião, a paisagem abstracta numa tela, «A poesia está na Rua» (1975), onde se exprimia a presença do colectivo. Mas um colectivo emancipador, não o colectivo de uma massa submetida ou vítima, que encontramos em telas como «Le désastre de la guerre» (1942) ou «L’incendie» (1944), ou ainda «Histoire trágico-maritime» (1944). A VS foi sensível à energia colectiva da revolução de 1974. O cartaz mostra bem o sentimento dela, feliz. Mas, creio eu, ao mesmo tempo, receosa e incerta. Ela não tinha muito interesse pela política institucional. Foi sobretudo sensível ao movimento organizado dos intelectuais, mas também às lutas populares. Foi sensível às mudanças nas atitudes e nas mentalidades, nos anos após a revolução, nos novos valores de emancipação e liberdade que então se manifestaram e que iam de encontro à tal ausência de curiosidade e de inspiração que tanto a preocupava? Ela fez várias tentativas para perceber o que era a transformação de Portugal
Vieira marcou-me para toda a vida, ela era uma pessoa terna, generosa, mas não aceitava a falta de vontade em aprender, a estupidez ou a presunção então, esperando que a ausência de curiosidade mudasse, mas após várias visitas, concluiu que, para isso se verificar, seriam ainda necessárias várias gerações. Pensas que este período lhe permitiu uma reconciliação com a sociedade portuguesa? Reconciliação profunda acho que não. Ela vinha a Portugal, mas nunca com o sentimento de voltar para a terra dela. A VS tinha dito, referindo-se à sociedade portuguesa, que em Portugal só se podia viver de costas para terra e virado para o mar. Pensas que depois de 1974 ela mudou de opinião? Mudar o foco do olhar do mar para terra seria um processo muito lento, isso era o que ela intimamente pensava. A relação entre a criação artística e a questão social, a política, nem sempre é clara e transparente. Mais precisamente, entre as obras de arte e o poder do dinheiro. O caso português não foge à regra. No fim do salazarismo, os grandes capitalistas afectos ao regime começaram a constituir colecções de arte moderna comprando muitos quadros a artistas opostos ao regime, como
a Vieira da Silva, o Skapinakis, o Seixas, o Júlio Pomar, a Paula Rego e outros. Como se quisessem assim atribuir-se (através dos seus enormes meios financeiros) um certificado de moralidade ou um «suplemento de alma», eles que estavam totalmente comprometidos com a exploração violenta e a repressão do regime fascista, com o colonialismo e os seus horrores, com a guerra colonial obviamente. Foi o caso de António Champalimaud, Jorge de Brito, Manuel Vinhas (mais tarde, depois do 25 de Abril, ligado ao clã Spínola), industriais e banqueiros, senhores de grande poder, donos do país., Tem sido feito recentemente algum trabalho de investigação sobre isto, em particular pela Vanessa Rato, que publicou recentemente no jornal Público um longo artigo sobre a questão («O caso da Colecção Vinhas», 1 de Março 2020). O Manuel Vinhas, já no exílio dourado em Paris depois do 25 de Abril, frequentava mesmo o Júlio Pomar, a quem comprou vários quadros. Por seu lado, o industrial Jorge de Brito teria comprado uns 25 quadros da Vieira da Silva, que estão na sua colecção… Claro que, através das galerias, o quadro escapa ao pintor e transforma-se em mercadoria, e a Vieira da Silva não teria meio de seleccionar quem os queria comprar. Mas não deixa de ser desconcertante, esta contradição entre as ideias e posições da pintora e os «clientes admiradores» da sua obra. Tens ideia se ela se questionava sobre isso? Era algo que a preocupava? Vieira tinha um contrato com a Galeria Jeanne Bucher, em Paris, que vendia os seus quadros. Tinha um grande relacionamento com os quadros enquanto
trabalhava sobre eles, mas quando decidia que o quadro estava terminado, desligava-se dele. Dizia que «um quadro que sai de casa é como um filho que vai viver a vida dele. Os pais têm de respeitar». O AS morreu em 1985 e a VS em 1992. O Henrique e eu voltámos definitivamente a Portugal em 79, mas a minha relação com Vieira da Silva e Arpad Szenes durou até à morte deles. Depois passei um tempo muito difícil economicamente, com os meus dois filhos. Vieira ofereceu-me dois quadros dela para eu vender e, quando ela vinha a Portugal, encontrávamo-nos sempre. As minhas fotos de Vieira e Arpad foram expostas em conjunto com quadros dela e de Arpad na Galeria Nasoni, no Porto, e numa retrospectiva deles no Museu Calouste Gulbenkian, em Lisboa. Se quisesses descrever um momento, uma situação, uma imagem que resumisse a relação que tiveste com a VS e com o AS, o que dirias? O que mais profundamente te marcou na relação com eles? Vieira marcou-me para toda a vida, ela era uma pessoa terna, generosa, mas não aceitava a falta de vontade em aprender, a estupidez ou a presunção. De Arpad guardo a memória de uma grande solicitude. E da sua relação com Vieira, como contei atrás. Foste a única pessoa que eles autorizaram a fotografar o atelier quando pintavam. O que pensavam eles da tua fotografia? Gostavam muito das minhas fotos; sempre que se fazia um catálogo de uma exposição dela e de Arpad, exigiam que fosse acompanhada de um retrato deles da minha autoria.
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Angústia em tempos de Covid. Um diálogo com Kierkegaard sobre a crise pandémica
A
TIAGO SOUSA ILUSTRAÇÃO INÊS XAVIER
presente pandemia traduz um aspecto da condição humana que nem sempre estamos dispostos a encarar. A edificação das instituições que fundam a ideia civilizacional vigente pretende proteger-nos enquanto espécie do caos e da imprevisibilidade que os fenómenos naturais emanam. Uma certa dificuldade em lidar com a transmutação e fluidez da vida que tornam a vida humana permeável a forças que não são possíveis de controlar. Esta ideia de que a invenção do Homem tem como finalidade última a criação de um mundo humano diferente do mundo natural está tão enraizada em nós que sempre que uma catástrofe destas ocorre e impõe a sua lógica ficamos desorientados,
incapazes de lidar com a vida no que ela tem de mais essencial. Um evento deste tipo provoca, não só à escala de evento global, de grandeza abstracta, a contagem de milhares de pessoas que padecem de forma perfeitamente arbitrária, uma reverberação muito tangível nas narrativas pessoais de cada um a súbita percepção de que podemos sofrer da doença ou da cura, tamanho o impacto sobre a economia e a sociedade que esta situação despoletou, lança-nos num estado de espírito que pode variar entre o pânico, a ansiedade ou a depressão, por muito que nos tenhamos habituado a evitar o confronto com estas emoções através de verdades apaziguadoras ou do entretenimento e do consumo. Naturalmente, este problema não é novo e tem sido tópico de muitas discussões em torno da presença ou ausência do sentido da vida. Este confronto cru e nu
com a realidade da vida é um dos tópicos centrais de uma corrente filosófica que a amiúde se chama de Existencialismo. Grosso modo, este termo designa uma atitude diferente daquela que procura a Essência como forma de resolver o problema do sentido - seríamos humanos porque somos seres racionais, ou seríamos humanos porque somos uma invenção divina, ou toda uma panóplia de
soluções para a grande questão. Para os Existencialistas, somos os seres que se preocupam com este tipo de problemas existenciais, que se colocam a questão do para quê e do porquê da vida. Somos seres que se edificam a partir das narrativas que surgem a partir deste problema. Uma pedra não tem forma de articular essa questão, um animal também dificilmente terá, ou pelo menos
Se o resultado fosse óbvio, não existiria escolha possível. O facto de ser incerto apela a que tenhamos a ousadia da escolha, independentemente de parecer a escolha vencedora ou perdedora. Se Kierkegaard estiver certo, o sentido da existência é o instante que sucede à reflexão.
não encontramos manifestações muito claras disso. A forma como a vida se apresenta enquanto temporal e finita parece ser um traço exclusivo humano. Historicamente, considera-se que nos transformámos na espécie que sabe que sabe (homo sapien sapiens) quando se encontram os primeiros vestígios de ritos que envolvem a morte e a perseveração da memória dos mortos. Uma tentativa de enraizar a vida na permanência e longevidade que dá a origem à civilização e à cultura. Essa consciência lança todo aquele que se debruça sobre o problema numa enorme angústia. Na sua obra, o filósofo existencialista Soren Kierkegaard remete muitas vezes para o problema da angústia, suas origens e as formas de lidar com ela. Julgo que em momentos de desorientação gritante como aquele que atravessamos poderá ser útil fazer eco
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dalgumas dessas ideias, a partir, claro está, da minha leitura pessoal, que estou longe de ser um especialista no assunto. Serei antes alguém que se interessa pelo assunto na óptica do utilizador. Desde já faço outra adenda: a linguagem que Kierkegaard utiliza é sobretudo teológica, mas julgo que esta linguagem serve o propósito de tentar levar estas questões às pessoas que constituíam as elites literatas da sociedade dinamarquesa e europeia do século XIX que o rodeavam. Neste texto, tentarei fazer uma leitura mais secular do tema, apesar de ser algo difícil abandonar totalmente a terminologia. Para o filósofo dinamarquês, a angústia começa com a tomada de um tipo muito particular de consciência a que chama o modo de ser Religioso. Religioso aqui não é utilizado no sentido estrito relativo às instituições religiosas, das quais Kierkegaard era até bastante crítico, mas como referência a um certo estado de interioridade e de abertura à vida que permite expressar o divino. O divino seria uma relação muito próxima com o Ser autêntico, o Ser que se manifesta antes e depois de toda a conceptualização
Existem 3 modos de ser desesperado: o desesperado inconsciente de ser um indivíduo; o desesperado que não quer ser indivíduo; e o desesperado que tenta desesperadamente ser um indivíduo. racional ou ética sobre o certo e o errado e que estaria em íntimo acordo com a existência, os seus paradoxos, as suas angústias e dificuldades. Primeiro, o indivíduo entra enquanto indivíduo no mundo e desespera. Tem noção da alteridade porque sente a angústia que essa lhe provoca. Existem 3 modos de ser desesperado: o desesperado inconsciente de ser um indivíduo; o desesperado que não quer ser indivíduo; e o desesperado que tenta desesperadamente ser
um indivíduo. Em qualquer um destes casos, o indivíduo no estado de desespero, parece-me, é aquele que pretende iludir a angústia e não se encontra disponível para colocar as questões essenciais que precisa de integrar ou resolver. Colocar essas questões significa dar-se conta da dependência do conjunto; da relação que o eu estabelece com qualquer coisa alheia a si mesmo. O que desde logo tem no centro a pergunta sobre se somos animados pelo livre arbítrio ou se as leis da
natureza já estabelecem todas as possibilidades. Ao longo das páginas em que podemos ler sobre este tema, não é apresentada uma resposta fácil para esta questão. Apenas se expõe a relação do indivíduo com essa qualquer coisa alheia como uma tensão entre o infinito e o finito, o temporal e o eterno, a liberdade e a necessidade, colocando a ênfase, parece-me, na própria relação. Nesta forma de se fazer relacionando-se com o que pôs o conjunto da relação, Kierkegaad parece apontar-nos na direcção do caminho que nos leva a que nos realizemos nessa relação - não só enquanto indivíduo, subjectivo e destacado do mundo, mas ao mesmo tempo enquanto estando dentro desse mundo, diluído, participante desse jogo de forças orgânicas cuja natureza dificilmente podemos circunscrever.
Neste processo, a angústia é o elemento impulsionador, pois é apresentada como a vertigem da liberdade. O indivíduo conhece esta vertigem no momento em que a possibilidade se apresenta, e o ser-existencial é este ser-se orientado para a possibilidade. A possibilidade de construir e vir a ser uma série de outras coisas além daquelas que parecem ser possíveis ou razoáveis. O momento que vivemos é cheio de angústia porque, por se apresentar como uma encruzilhada, é um desses momentos cheios de possibilidades. Possibilidade de encontrar novos modos de vida ou de retrocedermos a velhas formas de despotismo e violência competitiva, possibilidade de superar o capitalismo ou do capitalismo se reforçar, possibilidade de reforçar o individualismo e o antropocentrismo, ou possibilidade de reconciliação com a natureza. Se o resultado fosse óbvio, não existiria escolha possível. O facto de ser incerto apela a que tenhamos a ousadia da escolha, independentemente de ser uma escolha clara, articulada e intelectualmente mediada pela razão. Se Kierkegaard estiver certo, o sentido da existência conhece-se no instante que sucede à reflexão.
Lenine perante os Camponeses
E
JOSÉ TAVARES
Lenine face aux moujiks Chantal de Crisenoy La Lenteur, 2017
m 2017, por ocasião dos cem anos da Revolução Russa, a editora francesa La Lenteur teve a excelente ideia de reeditar o livro “Lénine face aux moujiks”, nada de semelhante ocorreu neste jardim à beira-mar plantado. O livro de Chantal de Crisenoy foi editado pela primeira vez em 1978 na Seuil. No momento em que os recuperadores do costume acreditam poder misturar o vermelho do interior da melancia com o verde do seu exterior e, como quem não quer a coisa, impingem o bio-bolchevismo, esta obra debruça-se sobre o essencial. Explica muito claramente o quanto os soldados de Lenine foram fanáticos da modernização e liquidadores de camponeses. «O camponês é um obstáculo real ao seu sonho de industrialização com os olhos postos no modelo europeu», analisa Chantal de Crisenoy. Lenine estava fascinado pelo desenvolvimento do capitalismo, que ele queria acelerar. De resto, todos
os aceleracionistas se reivindicam de Marx e Engels, para quem a ditadura do proletariado deve permitir «aumentar mais rapidamente a quantidade das forças produtivas» (“Manifesto do Partido Comunista”). Lenine defendia «a necessidade urgente e imperiosa de aniquilar todas as instituições caducas que entravam o desenvolvimento do capitalismo»1. Inteiramente devotado ao desenvolvimento das forças produtivas, o ditador jacobino quer urbanizar o país, electrificar, instaurar a organização científica de Taylor, alastrar as fábricas e os caminhos-de-ferro, aumentar a divisão do trabalho, a mobilidade e a troca de mercadorias, concentrar o poder e reprimir os opositores. Na via do Progresso, o «proletariado» deve assegurar uma hegemonia sobre esses saloios, os camponeses, acusados de serem pequeno-burgueses arcaicos, incultos e contra-revolucionários. São estas as referências dos universitários que querem carregar no pedal do acelerador. «O processo de libertação só pode acontecer acelerando o desenvolvimento capitalista», martela o com marrada Antonio Negri no seu livro “Accélération!” (PUF, 2016).
“Lénine face aux moujiks” desmonta de modo magistral essa vulgata marxista. Os camponeses contra-revolucionários? Eles que durante séculos se sublevaram contra os poderes, contra a apropriação das terras e pela autonomia aldeã? Eles que produziam para responder às suas necessidades, no quadro de uma economia doméstica que não se submete ao mercado, ao salariato, ao dinheiro? Eles, esses autênticos anticapitalistas? «Assim, há um século atrás, em nome da eficácia, da racionalidade, da economia ou do necessário desenvolvimento das forças produtivas, em resumo, em nome do progresso, os ideólogos da burguesia, mas também a maioria dos marxistas, vaticinam um ‘mundo sem camponeses’. Um mesmo ponto de vista guia estes dois discursos: o da acumulação de capital. Um mesmo fim: a grande indústria!» Eis aqui um grande livro para desmistificar a nostalgia do bolchevismo. NOTAS
1 “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia. Processo de formação do mercado interior pela grande indústria”, in Obras Completas Vol.V.
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POESIA 45
Se o sol e as flores ao sabor do vento perduram
Escrevi um poema
é porque ainda há vida.
para que possas imaginar
O canto dos passáros ecoa livre e sonante
O teu corpo na areia quente,
os cães brincam e correm nas estradas
o teu olhar perdido no azul
os javalis vão à baixa
e os sons e silêncios do mar
os peixes já não têm medo de dar piruetas na água.
a refrescar-te.
O mar revolve e cospe a maledicência da humanidade
Ser um girassol
os ursos polares viajam para prados floridos
estonteado pelo sol.
os elefantes bebem vinho e dormem deleitados nos campos de arroz
A tua pele são pétalas e caule e
e os macacos riem-se de nós,
as abelhas beijam os teus lábios de pólen .
até as pulgas se admiram com a auto-desinfestação humana
A lesma tranquila e rastejante,
e os ratinhos e ratões enchem a barriga aos milhões.
húmida e quente,
Ontem saí à rua e não vi ninguém
aconchegada ao mundo
Ontem saí à rua e estavam as casas a abarrotar de gente
sem pretensões de domínio.
mas este deserto enclausurado é medonho.
Um pássaro livre.
Estou enjoada com a vertigem porque
As tuas cores no ar voam a dança
afinal não era uma miragem
do amor dxs prisioneirxs
mas agora a avestruz tirou a cabeça da areia
à liberdade.
moveu os pés e pôs-se a milhas
O ser rio
o mal não é o corona o mal somos nós…
que navega a esperança e na deriva da água recicla a vida.
Vera Inês Costa da Silva, mulher pirata sem rumo neste mundo decrépito e fantástico. Antropóloga engajada no desmantelamento da Prisão. No baile da vida, alimenta o corpo de esperança através do Butoh e da paixão criativa pela iluminação para as artes performativas. Com 19 anos atracou no porto da República das Marias do Loureiro, em Coimbra. Aí cresceu politicamente desde um feminismo comunitário, navegando por outros coletivos e espaços de encontro, como a Marcha Mundial das Mulheres, que a embarcou, entre outras viagens e partilhas, até à luta das mulheres no Curdistão. Na horta respira, observa e pratica o desejo de aprender as ferramentas para a (im)possível recuperação da terra.
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46 BALDIOS
A arte de saber estar quieto
E
CLÁUDIO DUQUE
sta é uma história que começa em Pataias, concelho de Alcobaça. António Santos, filho de camponeses pobres, aluno brilhante, em 1980, abandona aquele pequeno lugar em direcção a Coimbra, para estudar. Depois de passar por um quarto na rua Sá da Bandeira que mal podia pagar, acaba a viver na república dos Cágados. Sentindo-se cada vez mais marginal naquele universo de futuros doutores e cada dia menos convencido da possibilidade de voltar a Pataias com o canudo na mão, vai-se aproximando à boémia da cidade, onde pululavam estudantes profissionais, artistas, músicos, e todo o tipo de militantes de organizações de esquerda. Vindo de um meio socio-económico bastante remediado, ao chegar a Coimbra, António depara-se com uma evidente injustiça nos apoios sociais dados aos estudantes. Tendo direito a apenas 1500 escudos, via como outros alunos de boas famílias, «betinhos», tinham acesso a residência universitária, subsídio máximo, etc. Apesar do denominador comum centrar-se na esquerda autoritária, também vagueavam pela cidade alguns anarquistas, entre eles José Tavares, em quem António encontra um bom amigo e companheiro de «aventura». Após algum tempo a trabalhar no Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, e com uma depressão a aprofundar-se, decide partir de viagem. Sempre à boleia ou a andar, vai até Valência onde pela primeira vez, vê um artista de rua, cuja performance consistia em simular os movimentos de um robot, com o bolero de Ravel sempre em loop, um espectáculo que deixa António entusiasmado. Continuando a viagem, em Barcelona, assiste a outra performance que ainda o inspira mais: numa praça, um homem bem vestido chegava com uma mesa, subia para cima da mesma e ali permanecia parado, movendo-se somente
para cruzar o olhar com os transeuntes que lhe deixavam alguma esmola. Aqueles personagens, e algum contacto com o ioga e o Zazen (base da prática Zen Budista), começam a inspirar António para o que mais tarde se viria a tornar em carreira. De Barcelona, sobe até Perpignan onde volta a reencontrar o amigo José Tavares, que naquele momento já se dedicava a ganhar uns trocos com performances de rua, sentado numa sanita declamando poesia. E é neste momento, junto ao seu amigo de Coimbra, que António entra no mundo das artes performativas de rua,
abandonando um biscate na construção para começar a dedicar-se completamente à arte da quietude. Foi também da boca de José Tavares que pela primeira vez ouviu falar da etimologia da palavra «trabalho», que deriva de tripalium, um instrumento de tortura romano, usado para sacrificar escravos. Mais tarde é Agostinho da Silva que que lhe conta a mesma história. É nesta recusa ao tripalium, a uma vida amargada de trabalhador assalariado, à qual António se agarra para se dedicar completamente a uma vida sem pressas, a uma vida de estátua. De Perpignan, desce a Barcelona, cujas Ramblas sempre foram um dos palcos mais importantes da arte de rua, onde finalmente começa a sua carreira a solo como Homem Estátua. Naqueles anos já se encontravam muitos artistas que faziam o número do robot, mas António afirma que ele foi o primeiro a colocar a quietude no centro daquela prática artistíca, ou seja, o primeiro Homem Estátua. Desde Barcelona nunca mais parou, País Basco, França, Inglaterra, o Homem Estátua foi deixando olhares estupefactos por todo o lado até ao record Guiness de 5 horas sem mover uma pestana, em 2012, no festival de estátuas vivas em Tomar. António sempre aproveitou para usar as suas performances mais além da mera demonstração de virtuosismo na capacidade de não mover nenhuma parte do corpo, e com algumas frases que o acompanhavam enquanto actuava: «Eu meto em questão o valor de tudo»; «O que é mais importante? Marcar um penálti ou estar
quieto»; «Relax in, Stress out»; etc. Tentou sempre, como um bom cínico, criticar uma vida social cada vez mais dependente da aceleração, sapiens corrompidos pelo corropio permanente. Depois a história já é conhecida a partir de dezenas de entrevistas, António torna-se profissionalmente Homem-Estátua, movendo a sua quietude pelo mundo inteiro.
É nesta recusa ao «tripalium», a uma vida amargada de trabalhador assalariado, à qual António se agarra para se dedicar completamente a uma vida sem pressas, a uma vida de estátua. A «quietude» de António insere-se numa tradição que remonta ao Teatro Grego; às estátuas vivas da idade média, pessoas que representavam a estátua de um santo em povoações que as não podiam pagar; os estilitas, ascetas cristãos que pregavam desde um pilar; a comedia dell'arte italiana; a dança contemporânea; etc. Em mais de 30 anos, o Homem-Estátua nunca abandonou a rua, considerando-a a «plenitude do espectáculo», mas a chegada da pandemia e o confinamento generalizado, colocaram António, e todos os artistas de rua, numa situação limite. Desvalorizados pela elite cultural só há pouco tempo conseguiram que o Estado autorizasse a reabertura do espaço público à sua arte, tendo recentemente participado no festival de estátuas vivas de Mortágua. www.facebook.com/staticman
Correio do Leitor CARLOS ALBERTO DE MIRANDA CARDOSO ESTABELECIMENTO PRISIONAL DA POLÍCIA JUDICIÁRIA DO PORTO
E
sta carta tem como pr incipal razão informar em causa própria que eu, e muitos numa situação idêntica à minha, têm vindo a ser explorados por multinacionais e pelos seus comparsas dentro do sistema prisional. Feliz ou infelizmente, tenho acompanhado esta situação desde dentro, pois sou recluso, mas mais do que recluso também sou um ser humano que pretende ter um salário em troca de trabalho. Em 2011, trabalhei no Estabelecimento Prisional de Braga a coser roupa para a Zara e a Bershka. Sim, essas multinacionais,
que são bem pagas por cada artigo que vendem, utilizam mão-de-obra barata, mão-de-obra de reclusos com fracos rendimentos usada para coser roupa, desde camisolas a calças, e para nessa roupa realizar todo o tipo de estampagens ou costurar à mão pequenas pedras. Para quem pensa que pagam mais ou menos em condições, pois bem, tenho de vos dizer que estais muito enganados, pois por cada peça de roupa, seja qual for o trabalho realizado, só pagam 50 cêntimos. Mas não é tudo. Em 2012, fui transferido para o Estabelecimento Prisional de Paços de Ferreira e aí fiquei mesmo indignado, pois imaginem os clientes: Lacoste, Zara, isto em serviços de calçado. Sim, muitos dos vossos sapatos são fabricados e cosidos à mão por reclusos em troca de uns míseros 63 cêntimos. Só para
dar um exemplo, certa vez tinha comigo um telemóvel, fui ver o preço da colecção de sapatos da Lacoste e dei por mim a ver sapatos que me tinham passado pelas mãos, e pelos quais recebi 63 cêntimos, à venda por 369 euros. Também cosíamos o mesmo tipo de roupa que em Braga, para as mesmas empresas. Acham justo que quase toda a gente esteja contra os presos e eles acabem por receber por 12 horas de trabalho diários apenas 50 euros por
mês? Para não falar nos produtos alimentares vendidos nos bares e cantinas, que são duas a três vezes superiores aos preços praticados fora das prisões. Por isso digo que precisamos de fazer com que vivamos num mundo onde quem trabalha, quem se encontra doente ou mesmo quem não consiga trabalho tenham os mesmos direitos e não o mínimo indispensável para comer. Temos de obter o que é nosso por direito, não podemos andar a encher o cu
[...] certa vez tinha comigo um telemóvel, fui ver o preço da colecção de sapatos da Lacoste e dei por mim a ver sapatos que me tinham passado pelas mãos, e pelos quais recebi 63 cêntimos, à venda por 369 euros.
a governantes, bancos, multinacionais e empresas que escravizam as pessoas. As pessoas são muito susceptíveis, ainda que pensem o contrário. As pessoas são instintivamente submissas, embora sob certos aspectos se mostrem insubmissas. Nós sabemos que, por vezes, certas pessoas não manifestam a sua opinião com receio de serem únicas, com receio de serem desmacha-prazeres. Porém, quando um indivíduo mais ousado quebra o silêncio do comodismo, da hesitação ou do medo, imediatamente outros indivíduos secundam a voz que se ergueu. Por isso peço que se ergam em luta não só contra a escravidão nas cadeias, mas também contra a escravidão de muita gente que trabalha para empresas multinacionais, como, por exemplo, estas que referi.
Jornal de Informação Crítica
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Flauta de Luz
Mapa borrado
A Flauta de Luz nasceu em 2013 pela mão de Júlio Henriques, escritor, tradutor e editor. Com sete números publicados, e a distribuição assegurada pela editora Antígona, a revista é hoje em Portugal uma peça fundamental para um diálogo subversor com o mundo que nos rodeia.
F
ilipe Nunes: A Flauta de Luz é um espaço de crítica civilizacional que parte da crítica da tecnologia industrial. Essa é uma análise com décadas, ou mais de um século, mas que permanece descredibilizada e mesmo ridiculizada nas esferas da ecologia e da política, e que encontra relutância no campo da ecologia política, perspectiva que, como dizes, levou décadas para ser escutada. Porém, no presente, os danos da sociedade tecno-industrial são por de mais evidentes. Que está por trás da relutância generalizada dessa crítica? Júlio Henriques: Uma tal relutância tem com certeza várias origens, mas julgo que decorre em grande medida de uma fortíssima catequese política. Todos fomos e continuamos a ser ensinados, desde a escola primária, a ver na sociedade industrial o paradigma do progresso, o seu suprassumo. E, concomitantemente, a encarar como atrasadas ou obsoletas as sociedades que não são assim, cujo único rumo teria obrigatoriamente de consistir em recuperarem desse dito atraso. Convém notar que esta catequese é praticada pelas convencionais correntes de direita e de esquerda, sempre concordantes nesta questão central. É claro que nem todos os aspectos da sociedade industrial são negativos, mas, sobretudo a partir do momento em que ela se tornou uma megamáquina totalitária mundializada (ou seja, que interdita quaisquer alternativas reais susceptíveis de pôr em causa o seu modo de produção predador), os impactos da sua negatividade não podem senão avolumar-se, visíveis nas catástrofes incessantes que passaram a fazer parte do mundo corrente, a mais recente das quais é a pandemia de Covid-19, e também no programa político, já em curso no chamado transumanismo, de uma fundamental alteração dos seres humanos, instigados a tornarem-se apêndices maquínicos. Tudo isto ao mesmo tempo que, por força do aparente consenso doutrinário alcançado pela civilização do capitalismo, a crítica civilizacional ainda não deixou de ser encarada com estranheza pelas maiorias consentidoras, domesticadas ou silenciosas. As culturas ameríndias são outro ponto-chave na revista, seja na apurada compilação da sua poesia contemporânea, seja enquanto espelho alternativo que narra esse outro mundo e ecoa as vozes resistentes à destruição do planeta. Qual consideras ser o principal ensinamento (apelo) que as vozes índias podem transmitir? Temos dado um enfoque maior às culturas ameríndias, mas não se trata apenas destas. Além das Américas, também noutras zonas do mundo não puderam ser inteiramente destruídas, graças às suas longas e obstinadas lutas de resistência, culturas ancestrais oriundas de sociedades sem Estado, que hoje constituem para nós, habitantes de um mundo profundamente doente e num imparável processo de devastação, âncoras político-filosóficas e apoios espirituais.
Trata-se da mais importante minoria mundial, correspondente a cerca de 370 milhões de pessoas que vivem nos cinco continentes, incluindo a Europa. Todas estas comunidades lutam em defesa do seu próprio ser (que é evolutivo, obviamente) e dos territórios em que esse ser se inscreve, os quais continuam a estar ameaçados pelo expansionismo, já não apenas europeu, mas agora de todo o capitalismo mundializado. A meu ver, o ensinamento destas culturas reside, antes de mais, na sua capacidade de resistência (passando pelos piores martírios) aos poderes estatais e empresariais que continuam a pretender eliminar os seus membros fisicamente ou reduzi-los a servos e pobres modernizados. A par desta alteridade indígena invocada na topografia da Flauta de Luz, que lugar ocupa nela a invocação da antiga ruralidade ocidental para expressar as relações do homem com o seu entorno e as resistências à «máquina»? E como explicar a ruralidade enquanto expressão de autonomia e harmonia e distingui-la dessa outra naturalmente ainda presente na sociedade portuguesa de escassez? Quando procuramos compreender o indigenismo que resiste e subsiste no mundo, integrando-o num pensamento crítico radical (que vá às raízes), não podemos pôr de lado aquilo que nós próprios temos de indígena. Penso que o nosso indigenismo, aqui na Europa, entronca nas milenares culturas camponesas, elas próprias desmanteladas pela expansão das relações sociais capitalistas, designadamente no período da Primeira Guerra Mundial, durante a qual foram dizimados muitos milhares de camponeses, no seu papel de soldados carne para canhão dos imperialismos rivais. Pelo seu próprio modo produtivo, as culturas camponesas entram em contradição com o processo de integração capitalista, porque só parcialmente se incorporam nele, furtando-se-lhe. A história sociopolítica da eliminação antropológica do campesinato, que entre nós passou para uma espécie de desmemória, está aliás a precisar de uma grande revisita. O que em Portugal caracterizou a miséria, que automaticamente é costume associar à agricultura, foram as relações de propriedade, impostas legalmente pelo Estado, levando o camponês a deixar de poder ser dono de si mesmo. A imperiosa expansão do capital nas relações sociais gerais levou a que as peculiares relações sociais camponesas se desfizessem, sendo os lavradores transformados em agricultores sem terra, em assalariados rurais ou urbanos, ou a depender drasticamente do sistema bancário e a trabalhar «para o mercado». Não se trata de idealizar este particular indigenismo, e muito menos de desejar transplantá-lo para o nosso tempo, mas a memória que hoje temos destas coisas parece-me ter-se tornado demasiado turva e enviesada. Como escreveu John Berger, não se pode descartar uma cultura milenar como quem apaga uma conta num rol...
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NÚMERO 28 AGOSTO-OUTUBRO 2020 3000 EXEMPLARES
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