ESPECIAL TRÁFICO HUMANO | Edição 2990| 18 a 24 de fevereiro de 2014 Reportagens: Daniel Gomes, Edcarlos Bispo de Santana e Nayá Fernandes
Jovem de El Salvador foi enganada e, por quase um ano, se escondeu em São Paulo
‘Ele me explorou, me usou e não sei se vou conseguir superar’
A história de Camila Sousa* foi contada com exclusividade à reportagem do O SÃO PAULO nas escadarias da igreja Nossa Senhora da Paz, em São Paulo, um dia antes que ela viajasse de volta para El Salvador, seu país de origem. O drama vivido pela jovem de 26 anos foi relatado com emoção e voz baixa, porque, quando se vive uma situação como a dela, qualquer lugar ou pessoa passam a ser temidos. Camila conheceu Carlos José*, boliviano, pela internet. Eles começaram um relacionamento online, e, depois de mais de um ano, ele a convidou para um encontro em São Paulo. “Ele pagou tudo, as passagens, gastos da viagem. Disse-me que eu não precisava me preocupar com hospedagem e alimentação, porque ele estava bem estabelecido em São Paulo.” A jovem, que tem uma filhinha de 3 anos, tirou o passa-
porte e teve autorização para ficar um mês no Brasil. “No início foi tudo muito bom! A gente passeava, ele era muito gentil comigo. Depois, foi ficando cada vez mais difícil, ele não queria que eu levantasse a cabeça quando saíamos juntos, pois tinha ciúmes e dizia que eu estava olhando para outros homens, por isso, precisava andar de cabeça baixa ao seu lado.” Com a passagem já comprada, Camila queria voltar logo para casa, mas tinha que esperar. Quando faltavam poucos dias para a viagem, Carlos tomou das mãos dela os documentos e os rasgou em pedacinhos. Emocionada, a jovem mostrava o passaporte que
ela colou com fita adesiva. Então, o homem começou a tê-la como prisioneira na oficina de costura que tinha e a fazer ameaças. “Ele dizia que, se eu fugisse, ia me dar mal, porque não conhecia nada da cidade e não sabia falar bem o português. Um dia, chegou a me agredir e dizer que, se eu fugisse, ele iria atrás de mim, pois já tinha acabado com a vida de uma mulher.” “Depois daquele dia, eu fiquei com muito medo, e não
conseguia falar com ninguém, nem com os funcionários da oficina de costura. Cheguei a tomar um monte de remédios, porque estava desesperada e queria tirar minha vida, mas o máximo que eles me fizeram foi ter muito sono e uma diarreia forte.” Um dia, porém, Camila decidiu fugir. Sem saber onde estava, saiu à rua procurando pelo bairro do Brás, pois era a único lugar que tinha ouvido falar. “Não levei nada, só meus documentos. Edições CNBB Peguei a chave escondida e saí correndo.” De ônibus, ela foi para o Brás e, chegando lá, disse que era estrangeira e precisava de ajuda. “Indicaram a Casa do Mi-
grante”, disse. A Casa fica na rua do Glicério e hospeda migrantes do Brasil e do exterior, além de auxiliá-los com documentação e busca de trabalho. “Isso aconteceu em janeiro [de 2013]. Desde então, nunca mais tive coragem de sair da casa. Tinha medo de que ele me encontrasse na rua.” Camila entrou em contato com a família e soube que Carlos tinha feito a mesma coisa. No dia 7 de setembro de 2013, quando conversou com a reportagem, já estava de passagem marcada e muito ansiosa para voltar. “Ele me explorou, me usou e não sei se vou conseguir superar isso.” Ao ser perguntada se denunciaria Carlos, Camila disse que não. “Não quero mais pronunciar o nome dele. Quero apenas que este pesadelo acabe. Quero ver minha filha, cuidar dela e viver em paz.” *Nomes fictícios
CF-2014 ressalta problemática do tráfico humano Identificar as práticas de tráfico humano e denunciá-las como violação da dignidade e da liberdade, mobilizando os cristãos e a sociedade para erradicá-las, são os objetivos da Campanha da Fraternidade 2014, que começa em 5 de março, com o tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). O Texto-base da Campanha, em seu parágrafo 261, sintetiza que “o tráfico humano, que estende seus tentáculos por todas as partes do mundo, se desenvolve num ambiente de exploração de pessoas para o lucro... A exploração ocorre por meio da venda de pessoas, de partes do corpo humano, da exploração do corpo em atividades sexuais, de trabalhos forçados, sem as mínimas condições. Violam-se a dignidade e a intimidade da pessoa; elas são tratadas com extrema violência e, por vezes, mortas”.
A CF-2014 propõe ações dos cristãos individualmente (dimensão pessoal), em comunidade (dimensão eclesial/comunitária) e no âmbito sociopolítico. A Igreja no Brasil, conforme o parágrafo 238 do Texto-base, utilizará “sua imensa rede de fiéis e sua presença em todo o território brasileiro, para divulgar e conscientizar os filhos e filhas de Deus sobre a questão do tráfico humano”, também com vistas à prevenção, cuidado pastoral das vítimas e sua reintegração à sociedade. “Nos, como católicos, cris-
tãos, temos que ser pessoas extremamente vigilantes. Muitas vezes, estamos sabendo do que acontece longe, de casos no Pará, no Maranhão, no Piauí, mas a escravização de pessoas pode estar acontecendo no edifício onde moro, na cidade
em que vivo, naquele estrangeiro que está no comércio ou na produção de algum produto. Nós, por um dever cristão e de cidadania, devemos estar atentos e denunciar”, comentou o padre Ricardo Rezende Figueira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que por décadas esteve em contato com pessoas traficadas. Ainda segundo o Textobase, a CF-2014 visa conscientizar para as situações de tráfico humano e suas origens na vulnerabilidade social, impulsionar as ações de grupos e pastorais que lidam com pro-
blema e formar agentes multiplicadores sobre a temática. Outros propósitos são estimular que os governos estaduais criem comissões e comitês de enfrentamento ao tráfico humano, que haja aprimoramento do sistema de coleta de dados sobre tal prática e que o Congresso Nacional debata e aprove uma nova lei de migrações. “Essa temática é bastante desafiadora para a Igreja, profética. O tráfico de pessoas está na invisibilidade, é um tema que vem criando uma série de violências e exclusões, que a Igreja já acompanha há muito tempo com várias organizações, e que hoje ganha uma dimensão maior, principalmente neste momento em que o Brasil deixa de ser um país de rota e passa a ser país-destino do tráfico de pessoas”, opinou, ao O SÃO PAULO, Edson Silva, coordenador da equipe arquidiocesana da CF. (colaborou padre Cilto José Rosembach)