O SÃO PAULO - Especial 2990

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ESPECIAL TRÁFICO HUMANO | Edição 2990| 18 a 24 de fevereiro de 2014 Reportagens: Daniel Gomes, Edcarlos Bispo de Santana e Nayá Fernandes

Jovem de El Salvador foi enganada e, por quase um ano, se escondeu em São Paulo

‘Ele me explorou, me usou e não sei se vou conseguir superar’

A história de Camila Sousa* foi contada com exclusividade à reportagem do O SÃO PAULO nas escadarias da igreja Nossa Senhora da Paz, em São Paulo, um dia antes que ela viajasse de volta para El Salvador, seu país de origem. O drama vivido pela jovem de 26 anos foi relatado com emoção e voz baixa, porque, quando se vive uma situação como a dela, qualquer lugar ou pessoa passam a ser temidos. Camila conheceu Carlos José*, boliviano, pela internet. Eles começaram um relacionamento online, e, depois de mais de um ano, ele a convidou para um encontro em São Paulo. “Ele pagou tudo, as passagens, gastos da viagem. Disse-me que eu não precisava me preocupar com hospedagem e alimentação, porque ele estava bem estabelecido em São Paulo.” A jovem, que tem uma filhinha de 3 anos, tirou o passa-

porte e teve autorização para ficar um mês no Brasil. “No início foi tudo muito bom! A gente passeava, ele era muito gentil comigo. Depois, foi ficando cada vez mais difícil, ele não queria que eu levantasse a cabeça quando saíamos juntos, pois tinha ciúmes e dizia que eu estava olhando para outros homens, por isso, precisava andar de cabeça baixa ao seu lado.” Com a passagem já comprada, Camila queria voltar logo para casa, mas tinha que esperar. Quando faltavam poucos dias para a viagem, Carlos tomou das mãos dela os documentos e os rasgou em pedacinhos. Emocionada, a jovem mostrava o passaporte que

ela colou com fita adesiva. Então, o homem começou a tê-la como prisioneira na oficina de costura que tinha e a fazer ameaças. “Ele dizia que, se eu fugisse, ia me dar mal, porque não conhecia nada da cidade e não sabia falar bem o português. Um dia, chegou a me agredir e dizer que, se eu fugisse, ele iria atrás de mim, pois já tinha acabado com a vida de uma mulher.” “Depois daquele dia, eu fiquei com muito medo, e não

conseguia falar com ninguém, nem com os funcionários da oficina de costura. Cheguei a tomar um monte de remédios, porque estava desesperada e queria tirar minha vida, mas o máximo que eles me fizeram foi ter muito sono e uma diarreia forte.” Um dia, porém, Camila decidiu fugir. Sem saber onde estava, saiu à rua procurando pelo bairro do Brás, pois era a único lugar que tinha ouvido falar. “Não levei nada, só meus documentos. Edições CNBB Peguei a chave escondida e saí correndo.” De ônibus, ela foi para o Brás e, chegando lá, disse que era estrangeira e precisava de ajuda. “Indicaram a Casa do Mi-

grante”, disse. A Casa fica na rua do Glicério e hospeda migrantes do Brasil e do exterior, além de auxiliá-los com documentação e busca de trabalho. “Isso aconteceu em janeiro [de 2013]. Desde então, nunca mais tive coragem de sair da casa. Tinha medo de que ele me encontrasse na rua.” Camila entrou em contato com a família e soube que Carlos tinha feito a mesma coisa. No dia 7 de setembro de 2013, quando conversou com a reportagem, já estava de passagem marcada e muito ansiosa para voltar. “Ele me explorou, me usou e não sei se vou conseguir superar isso.” Ao ser perguntada se denunciaria Carlos, Camila disse que não. “Não quero mais pronunciar o nome dele. Quero apenas que este pesadelo acabe. Quero ver minha filha, cuidar dela e viver em paz.” *Nomes fictícios

CF-2014 ressalta problemática do tráfico humano Identificar as práticas de tráfico humano e denunciá-las como violação da dignidade e da liberdade, mobilizando os cristãos e a sociedade para erradicá-las, são os objetivos da Campanha da Fraternidade 2014, que começa em 5 de março, com o tema “Fraternidade e Tráfico Humano” e lema “É para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). O Texto-base da Campanha, em seu parágrafo 261, sintetiza que “o tráfico humano, que estende seus tentáculos por todas as partes do mundo, se desenvolve num ambiente de exploração de pessoas para o lucro... A exploração ocorre por meio da venda de pessoas, de partes do corpo humano, da exploração do corpo em atividades sexuais, de trabalhos forçados, sem as mínimas condições. Violam-se a dignidade e a intimidade da pessoa; elas são tratadas com extrema violência e, por vezes, mortas”.

A CF-2014 propõe ações dos cristãos individualmente (dimensão pessoal), em comunidade (dimensão eclesial/comunitária) e no âmbito sociopolítico. A Igreja no Brasil, conforme o parágrafo 238 do Texto-base, utilizará “sua imensa rede de fiéis e sua presença em todo o território brasileiro, para divulgar e conscientizar os filhos e filhas de Deus sobre a questão do tráfico humano”, também com vistas à prevenção, cuidado pastoral das vítimas e sua reintegração à sociedade. “Nos, como católicos, cris-

tãos, temos que ser pessoas extremamente vigilantes. Muitas vezes, estamos sabendo do que acontece longe, de casos no Pará, no Maranhão, no Piauí, mas a escravização de pessoas pode estar acontecendo no edifício onde moro, na cidade

em que vivo, naquele estrangeiro que está no comércio ou na produção de algum produto. Nós, por um dever cristão e de cidadania, devemos estar atentos e denunciar”, comentou o padre Ricardo Rezende Figueira, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que por décadas esteve em contato com pessoas traficadas. Ainda segundo o Textobase, a CF-2014 visa conscientizar para as situações de tráfico humano e suas origens na vulnerabilidade social, impulsionar as ações de grupos e pastorais que lidam com pro-

blema e formar agentes multiplicadores sobre a temática. Outros propósitos são estimular que os governos estaduais criem comissões e comitês de enfrentamento ao tráfico humano, que haja aprimoramento do sistema de coleta de dados sobre tal prática e que o Congresso Nacional debata e aprove uma nova lei de migrações. “Essa temática é bastante desafiadora para a Igreja, profética. O tráfico de pessoas está na invisibilidade, é um tema que vem criando uma série de violências e exclusões, que a Igreja já acompanha há muito tempo com várias organizações, e que hoje ganha uma dimensão maior, principalmente neste momento em que o Brasil deixa de ser um país de rota e passa a ser país-destino do tráfico de pessoas”, opinou, ao O SÃO PAULO, Edson Silva, coordenador da equipe arquidiocesana da CF. (colaborou padre Cilto José Rosembach)


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Legislações e políticas públicas em construção no país Anualmente, 800 mil pessoas são vítimas diretas do tráfico humano no mundo, conforme relatório da ONU, divulgado em outubro de 2013. Desde o ano 2000, a problemática tem recebido maior atenção internacional, após a Convenção de Palermo, na Itália, que estabeleceu um protocolo para prevenir, reprimir e punir o tráfico de pessoas. Signatário do Protocolo, o Brasil lançou em 2006 a Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, para a prevenção e repressão de tais situações e o atendimento às vítimas, uma legislação mais abrangente ao que consta no Código Penal brasileiro, que tipifica como crime de tráfico humano apenas aquele praticado para fins de exploração sexual e também pune o crime de escravidão. A partir da Política, surgiu em 2008, o 1º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (I PNETP), que, entre outras medidas, estimulou a criação de núcleos estaduais de enfrentamento. Desde 2013, está em vigor o II PNETP, que visa aperfeiçoar o marco regulatório de enfrentamento ao tráfico, fortalecer as políticas públicas e redes de atendimento já existentes, ampliar a capacitação e disseminar informações sobre a temática e desenvolver campanhas de mobilização. Para Ricardo Felix, advogado da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo, é preciso haver uma lei sobre o tráfico de pessoas no Brasil, além de aprimoramentos de legislações. “Devemos não só criar uma norma específica ao tráfico de pessoas, tipificar esta conduta, mas também aprimorar o Estatuto do Estrangeiro, que é de 1980, muito restritivo, um campo fértil para que aqueles que queiram imigrar sejam cooptados pelas redes de tráfico humano”, opina ao O SÃO PAULO. No Estado de São Paulo, desde a década passada, existe

o Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, e, desde 2011, a Comissão Estadual para a Erradicação do Trabalho Escravo, com 15 comitês regionais. Na capital, onde o Ministério do Trabalho e Emprego estima que existam cerca de 10 mil oficinas de costura clandestinas, somente em 2013 foi instituída a Comissão Municipal de Erradicação do Trabalho Escravo, que iniciou atividades em fevereiro deste ano. “Não fazemos o atendimento direto da vítima de tráfico, mas pensamos em ações do município para enfrentar o trabalho escravo, e articulações com outras secretarias e a sociedade civil”, explica Marina Novaes, assessora especial de Promoção de Trabalho Decente, que articula a Comissão. Ela comentou que não há quantificação de vítimas em São Paulo e lembrou que o tráfico humano está relacionado ao trabalho escravo, com significativa quantidade de imigrantes. Para Edson Silva, coordenador arquidiocesano da Campanha da Fraternidade, faltam estruturas para atender as vítimas. “Nem no município, nem no estado, nem na União, temos serviços especializados que possam orientar e encaminhar essas pessoas para, por exemplo, tirar documentos e legalizar a situação junto à Polícia Federal. A maioria dos serviços é feita pelas organizações não governamentais.”

Inspirados pela Campanha da Fraternidade de 2014, um grupo de universitários do Curso de Rádio e TV da Universidade Anhembi Morumbi, em São Paulo, elaborou um vídeo documentário sobre a questão do tráfico de pessoas. O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) tem a duração de pouco mais de 30 minutos e apresenta o depoimento de pessoas que trabalham diretamente no combate dessa prática, tendo por objetivo “informar e conscientizar sobre a gravidade do problema, mostrando como a escravização e exploração de seres humanos ainda é um fato comum na atualidade, embora haja muito pouca discussão sobre o tema”, destaca a sinopse do trabalho. O título do documentário, “Tráfico de Pessoas – uma lenda urbana real”, surgiu após as entrevistas realizadas pelo grupo, como conta Rafael Augusto Thomaz de Moraes, 23, um dos integrantes do grupo, e a repetição do termo “lenda urbana” nas falas dos especialistas. “O tráfico de pessoas tem tanta força,

pois ninguém acredita que ele existe, quase não há denúncias e os aliciadores e traficantes conseguem explorar as pessoas por isso. Afinal, o tráfico de pessoas é uma lenda urbana. Então, pensei em colocar exatamente dessa forma: uma lenda urbana real, para mostrar antes mesmo de assistir ao documentário: ‘Cuidado’! O tráfico de pessoas existe”, afirma Rafael. “O que? Quem? Como? Por quê? O que é o tráfico. Quem são as vítimas? Quem são os aliciadores? Como é realizado o tráfico? Estatisticamente qual o volume desse tráfico, ou seja, quanto milhões ele movimenta por ano? Qual o papel da justiça? Como agir? Como combater? Como reincluir a vítima na sociedade?”, são algumas perguntas apresentadas e respondidas durante o documentário. Para assistir ao documentário, acesse: http:// www.youtube.com, e coloque na busca o título do documentário: “Tráfico de Pessoas – uma lenda urbana real”.

PRINCIPAIS MODALIDADES Luciney Martins/O SÃO PAULO

O C I F Á TR MANO HU

Tráfico para exploração no trabalho: os traficados são submetidos a trabalhos sem as mínimas garantias de direitos trabalhistas, têm a liberdade cerceada, a dignidade aviltada, e estão sujeitos a condições degradantes, incluindo longas jornadas. A maioria dos traficados são homens. Tráfico para exploração sexual: exploração da prostituição ou de outras formas de exploração sexual. A exploração utilizase da pornografia, do turismo, da indústria do entretenimento e da internet. 80% dos traficados são mulheres. Tráfico para a extração de órgãos: envolve a coleta e venda de órgãos de doadores involuntários ou doadores que são explorados ao venderem seus órgãos. Geralmente há médicos especializados envolvidos e o receptor do órgão está próximo. Tráfico de crianças e de adolescentes: situação em que crianças e adolescentes são traficados para adoção ilegal e exploração sexual. Fonte: Texto-base da Campanha da Fraternidade 2014.

Gabirante

‘Tráfico de Pessoas - uma lenda urbana real’

‘O gato foi um pai para eles Em uma fazenda no Pará, o fazendeiro percebeu que os trabalhadores estavam desestimulados pelo excesso de trabalho e aumento das dívidas, e teve uma ideia: “Todos receberam dinheiro e foram para o cabaré [de avião para uma cidade vizinha], mas o gato [que alicia as pessoas ao trabalho escravo] avisou o delegado: ‘estamos levando esses homens, demos a eles uma quantia de dinheiro, você tem de pegá-los e dar um susto neles’. Então, quando os trabalhadores estavam lá bebendo as suas primeiras cervejas, a

polícia entrou e para a delegac alguns, e aí vei gato. E aí os tra negociação do ‘Mas, senhor d do doutor fula trabalhadores, não são bagun ‘não, são bagu problema na c doutor, não é v todos trabalh chegaram a um


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Gente que denuncia, enfrenta, acolhe quem sofre Na cidade de Cachoeiro do Itapemirim (ES), uma grande gaiola foi colocada na praça e, dentro dela, duas crianças de olhos vendados. Essa foi a forma que a Rede Um Grito pela Vida encontrou para chamar a atenção dos que passavam por ali para um tema um tanto quanto desconhecido pela população em geral: o tráfico de pessoas. “Ainda hoje, em pleno século 21, há pessoas em situação de tráfico. Nunca tivemos tantos escravos! Segundo a Organização Internacional do Trabalho, no mundo há 20,9 milhões de pessoas exploradas, consideradas mercadorias slucrativas. O que movimenta tudo isso é o dinheiro: o tráfico de pessoas é uma

entre as três fontes ilícitas mais lucrativas e movimenta no mundo 32 bilhões de dólares”, explicou irmã Gabriella Bottani, missionária comboniana, da coordenação Nacional da Rede Um Grito pela Vida e membro do I Comitê diretivo de Talitha Kum (Rede internacional da Vida Consagrada comprometida no enfrentamento ao tráfico de pessoas). O objetivo da Rede é contribuir para romper o silêncio, e para que o clamor das pessoas em situação de tráfico seja ouvido. “Para enfrentar essa grave violação dos direitos humanos, é necessário superar uma visão exclusivamente fundamentada em ações repressivas”, disse a Religiosa. Nos últimos anos, os grupos da Rede, presentes em 20 Estados brasileiros, realizaram atividades e ações de prevenção ao tráfico humano, como a sensibilização em datas comemorati-

história, respeitando a identidade, visando a integração e o protagonismo de cada um deles no novo contexto social, fortalecidos pela riqueza do encontro intercultural e unidos em torno da construção da cidadania universal”, diz o texto no site da instituição www. missaonspaz.org. “A grande força desta Campanha da Fraternidade é sua divulgação capilar. Em todas as comunidades católicas no Brasil se falará de Tráfico Humano. A CF é um instrumento muito importante para sensibilizar e alertar a população. Mas, para que possa contribuir na solução de casos de tráfico, precisa de uma articulação maior e não pode ser simplesmente celebrada no tempo de Quaresma”, afirmou irmã Gabriel, diante do questionamento sobre a contribuição efetiva da CF em relação à problemática.

Campanha quer combater o tráfico humano nos grandes eventos “Com base nas Copas anteriores e em outros megaeventos que ocorreram mundialmente e também no Brasil, em que os relatos das ONGs revelam um significativo crescimento de violações de direitos, em particular de exploração sexual de crianças e mulheres, com incidência no tráfico de pessoas, consideramos importante estar em estado de alerta, pois, no clima de euforia, grande mobilidade humana e grandes interesses econômicos, o turismo sexual, o trabalho infantil, o alcoolismo, a drogadição, a violência e imagem estereotipada das mulheres brasileiras internacionalmente, as práticas de aliciamento para o tráfico de pessoas, seja para exploração, seja para o trabalho degradante ou para a indústria sexual, tendem a se intensificar”, afirma irmã Eurides Alves de Oliveira, coordenadora da Rede Um Grito pela Vida. A religiosa é uma das articuladoras da campanha “Jogue a favor da vida, denuncie o tráfico de pessoas”, da Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), através da Rede um Grito pela Vida. De acordo com irmã Eurides, a campanha pretende, portanto, desenvolver atividades de prevenção através da sensibilização, informação e formação divulgando notícias

s’

e prendeu todos. Levou cia, andou batendo em io o salvador: chegou o abalhadores assistem a gato com o delegado. delegado, são homens ano de tal, são homens olha a mão deles, nceiros.’ E o delegado, unceiros, estão criando cidade’. E o gato, ‘não, verdade, são gente boa, hadores’. Finalmente, m acordo. ‘A gente paga

vas; formação nas escolas; cursos para lideranças; participação em fóruns de direitos e comitês e campanhas específicas. A Rede tem núcleos ativos nos estados do Amazonas, Pará, Rondônia, Piauí, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Bahia, Espírito Santo, São Paulo, Paraná, Minas Gerais e Goiás e em outros seis Estados e no Distrito Federal em fase de articulação: Acre, Roraima, Mato Grosso, Maranhão, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Outra instituição, dessa vez no centro da cidade de São Paulo, na rua do Glicério, é a Missão Paz. Lá funciona a Casa do Migrante, dos padres scalabrinianos, que recebe hóspedes de diferentes lugares do mundo. “Nossa missão é acolher os migrantes, os imigrantes e os refugiados, entendendo a

sobre como acontece o tráfico de pessoas, dados sobre essa realidade, “alertando para os riscos, divulgando os disques denúncias e criando um estado de alerta e compromisso da população frente a esta realidade, que constitui um atentado à vida e à dignidade humana, em especial das populações mais vulneráveis”. A coordenadora da campanha afirma que a mesma terá uma abrangência internacional, pois contará com a adesão de redes latino-americanas e, também, da Rede Internacional Talitha Kum, que abrange mais de 30 países. Esses países já estão traduzindo, para o inglês e espanhol, e divulgando os materiais da campanha.

As atividades formativas e informativas de prevenção acontecerão em especial nas cidades sedes da Copa do Mundo, mas também nas cidades próximas onde existem os núcleos organizados da rede. “Nestas localidades [cidades-cede], os núcleos da rede, em parceria com as pastorais, organizações e ONGs que aderirem à campanha, estão realizando oficinas, debates, cines-fóruns, atividades de formação nas escolas, comunidades e grupos sobre o tema, os riscos e as probabilidade de seu crescimento durante a Copa do Mundo, bem como formando equipes para, durante a Copa, atuarem no corpo a corpo através de plantões para distribuição de panfletos e informações nos aeroportos, rodoviárias, praças, ruas e proximidades dos estádios.” As denúncias poderão ser feitas através dos números 100 e 180. Para a Religiosa, é preciso tirar a questão do tráfico humano da “invisibilidade, divulgar informações e desvelar as causas geradoras do tráfico de pessoas”. De acordo com ela, é preciso que haja um “insistente trabalho de informação e formação, pautando o tema em todos os espaços possíveis, igrejas, escolas, meios de comunicação social, redes sociais, usando a arte, cultura, promovendo estudos e fóruns de debates”.

‘O que eu faço? Estou nu’ uma fiança e leva eles para a fazenda, eles têm que trabalhar, doutor.’ Então, os trabalhadores assistem à cena: o gato tira a carteira do bolso e dá um dinheiro para o delegado, a fiança, e leva os trabalhadores de novo para a fazenda. Os trabalhadores foram agradecidos pela coragem do gato. O gato foi um pai para eles. Os trabalhadores saíram agradecidos e foram trabalhar com mais entusiasmo, e mais endividados”. (Relato contado pelo padre Ricardo Rezende Figueira, durante o Curso Verão 2014, na PUC-SP).

Um jovem, de 18 anos, com família residente no Rio de Janeiro, tinha sido libertado de uma fazenda no Pará em condição de trabalho escravo e se preparava para voltar. “Eu disse a ele, ‘Mas como? Você acabou de ser libertado e está pensando em retornar ao Pará?’ Então, ele falou, ‘mas eu não vou com o mesmo gato’. E eu falei, “mas você sabe que esse novo gato pode fazer o que o gato anterior fez’. Dai, ele me

fez a seguinte pergunta: ‘O que que eu faço? Eu estou nu’. ‘E o que é estar nu?’, perguntei. ‘Não tenho trabalho, não tenho dinheiro, não posso comprar uma camisa nova, não posso beber uma cerveja, não posso pagar uma cerveja na festa da padroeira para o meu amigo...’ Aí eu falei com ele. ‘Escuta, se você ganhasse um salário mínimo, você sairia daqui?’ Então, ele me perguntou: ‘Mas quanto é o salário mínimo?’. Daí eu

falei, na época, R$ 160, e ele ‘quanto?’. Eu repeti, e ele disse: “Por R$ 50, eu não saio daqui’. Quer dizer, ele não estava indo porque gostava de sofrer, ele não estava indo porque era masoquista, não estava indo porque faltava informação, ele estava indo porque era obrigado a ir, era levado ao deslocamento humano, geográfico, por necessidade”. (Relato contado pelo padre Ricardo Rezende Figueira, durante o Curso Verão 2014, na PUC-SP).


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‘Chegamos ao ponto de coisificar as pessoas para ganhar dinheiro’ Uma notícia, no mínimo curiosa, chamou a atenção dos brasileiros na semana passada. Em uma feira, no centro da capital paulista, um homem vendia dois bolivianos. Não eram bonecos, peças de roupa ou artesanato, mas dois seres humanos. “Aí vai o trabalho mais vil do homem. Chegamos ao ponto de coisificar as pessoas para ganhar dinheiro. É isso, o dinheiro é senhor de nossas causas hoje”, afirma a promotora de justiça Eliana Vendramini. Responsável pelo Programa de Identificação e Localização de Desaparecidos, a promotora afirma que, no centro de São Paulo “vivemos um problema terrível”. “Não está longe de nós, o centro da cidade é um dos principais lugares para falsificação de RG, obtenção de silicone industrial para colocar em travestis que ‘quer se fazer’ em São Paulo. Não quero polemizar a adoção brasileira que muitas delas são feitas por amor, mas existe muito tráfico de bebês, o que é batizado de ‘adoção à brasileira’. Por exemplo, encontrei a criança a mãe me deu, gosta muito de mim e peço a guarda e depois a adoção, mas na verdade a mãe nunca me viu. Eu posso ser a mãe boa, mas posso ser uma traficante, conseguir a guarda e depois vender”, comenta. Talvez, ao falar em tráfico humano, as pessoas se remetam a algo distante de suas vidas, ao interior, às fazendas, ou, até mesmo, àquele cenário de novela, mas a realidade é diferente e está muito mais próxima das

pessoas do que elas pensam. “O maior número de caso [em São Paulo] de trabalho escravo é ligado às confecções, à indústria têxtil com a exploração de bolivianos de maneira geral, mas no ano passado houve um aumento muito grande na construção civil, como tem grandes obras, grandes empreendimentos, em vista da Copa do Mundo e das Olimpíadas. Essa mão de obra é aliciada de alguns estados do Nordeste, principalmente”, conta a doutora Christiane Vieira Nogueira, procuradora do Ministério Público do Trabalho. As modalidades de tráfico humano, quatro ao total, atingem as pessoas em situação de vulnerabilidade. E essa “vulnerabilidade”, ressalta a doutora Eliana, “se apresenta das diversas maneiras possíveis. Uma vítima traficada é vulnerável, ‘vulnerável economicamente’, alguém pode dizer. Não! Ela é vulnerável em qualquer ponto. O travesti sai de lá só porque era pobre? Não. É porque não era aceito socialmente. Vai aí outra questão de fraternidade”, comenta a promotora fazendo menção à CF-2014. Trabalho escravo ou situações análogas à escravidão Paulo Rodrigo dos Santos, um lavrador de 40 anos, nunca estudou. Sabe ler e escrever, pois, como ele mesmo diz, “se virou na vida”. Em conversa com a pesquisadora Claudilene da Costa Ramalho, mestra em Ciências Políticas pela Universidade Federal do Espírito Santo, conta ele como um “gato” o “aliciou” para

o trabalho do corte de cana em uma usina de Mato Grosso. A promessa era receber R$ 100 por dia, mas o máximo que ele conseguiu receber foi aproximadamente R$ 60, “no melhor dia”, acrescenta, pois no pior dia o valor não passou de R$ 18. Fora os gastos com alimentação e moradia, a promessa de um salário justo, como forma de pagamento dos trabalhos prestados, ficou apenas na promessa. Em casos assim, destaca a promotora Eliana, “a maioria das vítimas de tráfico sabe o que elas vão fazer, o problema são as condições que são descobertas mais tarde”. Ao passo que há um silêncio por parte das vítimas, “essas vítimas, não querem falar em juízo. Elas não são a prova oral do crime. Se falar, vitimiza, se falar, pode morrer, se falar, pode perder oportunidade, é indigna a situação dela, mas é melhor do que de onde ela saiu.” A doutora Christiane acrescenta: “Há muito silêncio. Nem temos ideia do percentual real do trabalho escravo que tem por aí a fora. A Comissão Pastoral da Terra (CPT) tem alguns estudos que é um percentual relativamente pequeno dessas denúncias”. A procuradora do Ministério Público do Trabalho ressalta que, atualmente, os casos do trabalho escravo vêm aumentando e tudo isso como reflexo dos grandes eventos que acontecerão no Brasil inteiro, “estádios, aeroportos, hidrelétricas, obras do PAC, Minha Casa, Minha Vida...”, enumera.

Fotos: Luciney Martins/O SÃO PAULO

Jovens refletem sobre o tráfico humano, suas causas e consequências Hildete Emanuele Souza, 33, nasceu na periferia de Salvador (BA), numa comunidade chamada Pedreiras. Lá cresceu e conheceu a Pastoral da Juventude. O nome, ela herdou da vó. “Minha avó lutou por coisas que ainda hoje não conquistamos”, disse Hildete, durante uma assessoria que fez para um grupo de jovens da Pastoral da Juventude da Arquidiocese de São Paulo, no sábado, 15, na Cúria da Região Episcopal Santana sobre o tema da Campanha da Fraternidade 2014. “Minha comunidade é uma ocupação e, por isso, os serviços da prefeitura não chegam lá.” Com todas as dificuldades de uma jovem negra da periferia, Hildete conseguiu ingressar na faculdade e terminou o curso de letras. “Quando disse que ia fazer faculdade, ninguém sabia direito o que era, pois oportunidade, numa comunidade como a minha, é ganhar na loteria.” Atualmente, ela mora em Brasília

(DF) e trabalha com os irmãos maristas na Pastoral da Juventude. Os jovens, reunidos para refletir sobre o tráfico humano, discutiram não só as modalidades de tráfico que existem, mas, sobretudo, as suas causas e consequências.

“A violência tem várias garras e uma delas é o tráfico humano. São questões que têm raízes na escravidão, quando as pessoas eram encaixotas e trazidas como mercadorias. Assim, é na miséria humana, nos lugares mais pobres, onde Luciney Martins/O SÃO PAULO

faltam sonhos e perspectivas, que o tráfico vai buscar gente. Lá onde a dignidade humana é ferida, onde não tem emprego, nem oportunidade, mas prevalece as relações injustas”, comentou Hildete. Para Elaine Lima, educadora e membro da Pastoral, as vítimas da violência na cidade de São Paulo têm rosto, nome, sexo e idade. “A violência tem nome; tem idade, de 18 a 29 anos; tem cor, é negro; tem sexo, é homem; e tem lugar, é da periferia”. Os jovens lembraram o compromisso de ser uma Igreja em saída, como tem insistido o papa Francisco. “A gente precisa saber o nome, conhecer as pessoas às quais somos enviados. Na minha comunidade, em Salvador, o último jovem que morreu foi assassinado porque estava roubando cabelo para dar de presente à mãe, no dia do aniversário dela. O sonho dela era ter cabelo grande, mas recebeu, no dia do aniversário, o filho no caixão”, contou Hildete.


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