ESPECIAL 1º ano de pontificado do papa francisco | Edição 2992| 6 a 10 de março de 2014 Reportagens: Padre Michelino Roberto, Rafael Alberto, Fernando Geronazzo e padre João Bechara Ventura L’Osservatore Romano
O papa Francisco concedeu uma entrevista ao jornal italiano “Corrierre della Sera”, tratando de assuntos relevantes do seu primeiro ano de pontificado. Desde a apresentação no balcão da Basílica de São Pedro, na noite de 13 de março de 2013, o Bispo de Roma lidou com diversos assuntos, tais como a Nova Evangelização, a reforma da Cúria Romana, a família, os escândalos de pedofilia e a pobreza na Igreja. Com perspicácia e bom humor, o Santo Padre falou desses temas, comentando ainda sobre certa “mitologia” criada em torno de sua imagem, e sobre suas relações com Bento 16. A seguir trechos da entrevista,
Balanço do pontificado
“[“Balanços”] Eu os faço apenas a cada 15 dias, com o meu confessor.”
Relações com Bento 16
“O papa Emérito não é uma estátua em um museu. É uma instituição. Não estávamos acostumados. Sessenta ou setenta anos, o bispo emérito não existia. Veio depois do Concílio. Hoje, é uma instituição. A
O Papa não é um ‘super-homem’ mesma coisa deve acontecer com o papa Emérito. Bento 16 é o primeiro, e talvez haverá outros. Não sabemos. Ele é discreto, humilde, não quer perturbar. Falamos a respeito e decidimos juntos que seria melhor que ele visse pessoas, saísse e participasse da vida da Igreja. Uma vez, ele veio aqui para a bênção da estátua de São Miguel Arcanjo, depois ao almoço em Santa Marta, e, depois do Natal, eu lhe dirigi o convite de participar do Consistório, e ele aceitou. A sua sabedoria é um dom de Deus. Alguns gostariam que ele se retirasse para uma abadia beneditina longe do Vaticano. Eu pensei nos avós que, com a sua sabedoria, os seus conselhos, dão força à família e não merecem acabar em uma casa de repouso.”
Modo de governo
“O Papa não está sozinho no seu trabalho, porque está acompanhado e é aconselhado por muitos. E seria um ho-
mem sozinho se decidisse sem ouvir ou fingindo ouvir. Mas há um momento, quando se trata de decidir, de colocar uma assinatura, em que ele está sozinho apenas com o seu senso de responsabilidade.”
Projetos de mudança
“Em março passado, eu não tinha nenhum projeto de mudança da Igreja. Eu não esperava essa transferência de diocese, digamos assim. Comecei a governar tentando colocar em prática o que havia surgido no debate entre cardeais nas várias Congregações. No meu modo de agir, espero que o Senhor me dê a inspiração. Dou-lhe um exemplo. Falou-se do cuidado espiritual das pessoas que trabalham na Cúria, e começaram a fazer retiros espirituais. Devia-se dar mais importância aos Exercícios Espirituais anuais: todos têm o direito de passar cinco dias em silêncio e meditação, enquanto antes, na Cúria, ouviam-se três pregações por
dia, e depois alguns continuavam trabalhando.”
Imagem pública
“Eu gosto de estar entre as pessoas, junto com quem sofre, ir às paróquias. Não me agradam as interpretações ideológicas, uma certa mitologia do papa Francisco. Quando se diz, por exemplo, que ele sai de noite do Vaticano para ir dar de comer aos sem-teto na Via Ottaviano. Isso nunca me veio à mente. Sigmund Freud dizia, se não me engano, que em toda idealização há uma agressão. Pintar o Papa como uma espécie de super-homem, uma espécie de estrela, parece-me ofensivo. O Papa é um homem que ri, chora, dorme tranquilo e tem amigos, como todos. Uma pessoa normal.”
O Papa e o marxismo
“Nunca compartilhei a ideologia marxista, porque não é verdadeira, mas conheci muitas pessoas boas que professavam o marxismo.”
Escândalos e abusos
“Os casos de abuso são terríveis, porque deixam feridas muito profundas. Bento 16 foi muito corajoso e abriu um caminho. A Igreja, nesse caminho, fez muito. Talvez mais do que todos. As estatísticas sobre o fenômeno da violência contra as crianças são impressionantes, mas também mostram com clareza que a grande maioria dos abusos ocorre no ambiente familiar e na vizinhança. A Igreja Católica talvez seja a única instituição pública que se moveu com transparência e responsabilidade. Ninguém fez mais. No entanto, a Igreja é a única a ser atacada.”
Uniões civis homoafetivas
“O matrimônio é entre um homem e uma mulher. Os Estados laicos querem justificar as uniões civis para regular diversas situações de convivência, impulsionados pela exigência de regular aspectos econômicos entre as pessoas, como por exemplo assegurar a assistência de saúde. Trata-se de pactos de convivência de várias naturezas, dos quais eu não saberia elencar as diversas formas. É preciso ver os diversos casos e avaliá-los na sua variedade.”
14 Especial
www.arquidiocesedesaopaulo.org.br 6 a 10 de março de 2014
Papa demonstra incrível confiança nos leigos ‘Ele nos atribui enorme autonomia e responsabilidade’, diz autora italiana FILIPE DOMINGUES
Especial para O SÃO PAULO em Roma
Tomar iniciativa e não esperar pelos outros para evangelizar. Segundo a professora Emilia Palladino, especialista em Doutrina Social da Igreja e autora do livro “Leigos e Sociedade Contemporânea”, foi essa a mensagem do papa Francisco para os fiéis leigos no seu primeiro ano de pontificado. Em entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO, ela afirmou que
Francisco tem uma “incrível confiança” nos leigos e lhes dá uma “responsabilidade tão grande que até nos confunde”, avalia a italiana, que ensina na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma. “O problema do laicato é importantíssimo, sobretudo na Itália. Temos uma tradição cultural clerical. Não somos habituados, como leigos, a tanta liberdade”, explica Palladino, que é casada e tem uma filha. “Mas Francisco nos pede que não deixemos para os outros o peso e a vocação à missão.” Segundo ela, o Papa sinaliza que os leigos não têm um papel marginal na Igreja. “Para Francisco, a minha autonomia pastoral está no fato de que sou uma pessoa que crê. Eu ca-
minho na fé e por isso estou em missão. E devo acompanhar o processo de crescimento de outras pessoas na fé. Não é pouca coisa”, brinca. De acordo com a professora, a mensagem deste Papa para os leigos é semelhante à de João Paulo II para a juventude, quando dizia que o jovem é o evangelizador do jovem. Mulheres – Muito se questiona sobre o que o papa Francisco quis dizer quando, na viagem de volta à Itália, após visitar o Brasil, afirmou que a Igreja precisa de uma Teologia da Mulher. “Ele não foi preciso e ainda não houve orientações”, reconhece a autora. “Mas, como mulher, tendo a pensar que Francisco é mais próximo de mim do
que outros papas do passado. Isso não quer dizer que eu tenha resistências a Bento 16 ou a João Paulo 2º. É uma questão de sensibilidade. Por outro lado, Francisco disse em diversas ocasiões que o papel da mulher na Igreja deve estar diretamente ligado à figura de Maria. “Uma Igreja sem as mulheres é como o colégio apostólico sem Maria”, declarou o Papa, após a visita ao Rio de Janeiro. “O papel da mulher na Igreja não é somente a maternidade, é mais forte. É exatamente o ícone da Virgem, aquela que ajuda a Igreja a crescer. Nossa Senhora é mais importante que os apóstolos! A Igreja é feminina: é Igreja, é esposa, é mãe”, completou. Em outras ocasiões, ele reafir-
mou que o sacerdócio feminino está fora de cogitação, como já haviam definido seus antecessores. “As mulheres na Igreja precisam ser valorizadas, e não clericalizadas”, resumiu Francisco certa vez, em entrevista ao jornal italiano “La Stampa”. De qualquer forma, para Palladino ainda é cedo para cobrar mudanças deste pontificado no tema das mulheres. “Não creio que seja o tempo, após apenas um ano. Mas espero que ele nos escute. Espero que coloque ações concretas em campo para escutar as mulheres”, diz, ponderando que o “mundo feminino” é muito diversificado, de modo que seria necessário ouvir várias vozes para se refletir bem sobre o papel da mulher na Igreja. L’Osservatore Romano
Francisco é um ‘grande homem de governo’ FILIPE DOMINGUES
Especial para O SÃO PAULO em Roma
“O Papa é um grande homem de governo”, avalia o padre Rocco D’Ambrosio, professor de Filosofia e Ética Política da Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma, autor do livro “Como pensam e agem as instituições”. Ele faz parte de uma iniciativa de 15 professores que se uniram para publicar comentários sobre a exortação apostólica do papa Francisco, Evangelii Gaudium (“A Alegria do Evangelho”). A coletânea está prevista para maio, mas, em entrevista exclusiva ao O SÃO PAULO, padre D’Ambrosio adiantou suas impressões sobre o primeiro ano do pontificado. Para o professor,
italiano de Bari, as experiências de Jorge Mario Bergoglio como superior provincial dos Jesuítas na época de ditadura argentina e como arcebispo de Buenos Aires por 15 anos foram grandes escolas para que aprendesse a conduzir a Igreja. “É um homem que estuda as situações, aprende a conhecer as pessoas e toma decisões. Às vezes, decisões sofridas”, diz. “Não podemos esconder que a fraqueza física do papa Bento 16, que o levou à renúncia, havia criado certos problemas. Mas Francisco está buscando governá-los, e talvez isso seja uma coisa que não aparece muito.” Entretanto, D’Ambrosio recomenda cautela quando se fazem comparações entre os pon-
tificados. “Para mim, tudo deve ser lido na linha da continuidade e da descontinuidade. Existem coisas que estão em continuidade e existem coisas que são descontínuas. Mas isso não é um juízo de mérito, de dizer que um é melhor que o outro”, explica. Ele cita, por exemplo, os casos dos papas Pio 12 e João 23, ou Paulo 6º e João Paulo 2º, que tinham personalidades e estilos de governo completamente diferentes. “Podemos até falar das diferenças entre Bento 16 e Francisco, mas temos que observar elementos incompletos, porque a fase histórica não está fechada.” Além disso, acrescenta, “cada um traz à vida da Igreja a contribuição que considera útil”. Mesmo que haja desconti-
nuidade de estilo, “a fé é sempre a mesma”. Por sinal, o professor da Gregoriana avalia que o aspecto mais marcante deste primeiro ano de Francisco é justamente o seu estilo pessoal. “Pelo que pude entender, ele não mudou quando foi eleito. Tem sensibilidade na abordagem, na aproximação com as pessoas, e um perfil comunicativo”, resume. D’Ambrosio acredita que Francisco seja um grande comunicador, mesmo sem querer. Isso ficou claro na entrevista que deu ao padre jesuíta Antonio Spadaro, em setembro de 2012: “Eu consigo olhar as pessoas individualmente, uma de cada vez, e entrar em contato de maneira pessoal com quem
está à minha frente. Não estou acostumado com as massas”, revelou o Papa. Quanto ao conteúdo das mensagens do papa Francisco, D’Ambrosio entende que os valores transmitidos estão todos no Evangelho e vêm sendo interpretados pela Igreja ao longo da história. “Ele tem a capacidade de voltar ao núcleo do Concílio Vaticano 2º”, avalia, referindo-se à grande reforma realizada entre 1962 e 1965, iniciada sob João 23 e concluída no papado de Paulo 6º. “A renovação eclesial, um novo impulso missionário, a atenção aos problemas sociais... Quem aceita o Concílio, não rejeita Francisco. Do ponto de vista doutrinal, este Papa é o Vaticano 2º.”