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‘Dai-lhes vós mesmos de comer’
Para esta Quaresma de 2023, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) nos propõe uma Campanha da Fraternidade sobre a questão da fome, relembrando aquele “Dai-lhes vós mesmos de comer” que Cristo dirigiu aos seus discípulos (cf. Mt 14,16). O tema da fome corporal poderia, à primeira vista, aparentar ser demasiado terreno e material: afinal de contas, não é certo que a missão própria e primária da Igreja é a salus animarum, a salvação das almas?
Ora, é verdade que a matéria econômica e social não é o núcleo duro da missão da Igreja – mas isso não quer dizer que esses assuntos lhe sejam de pouca importância. Nessa arena, a Igreja “exerce uma missão diferente da que concerne às autoridades políticas: (...) preocupa-se com os aspectos temporais do bem comum em razão da sua ordenação ao Bem soberano, nosso fim último” (Catecismo da Igreja Católica, nº 2420). Em outras palavras, a missão da Igreja é, sim, levar as almas para o
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Céu – e exatamente por isso ela precisa que haja, aqui na terra, certas condições materiais mínimas para a difusão do Evangelho, a conversão dos pecadores e seu progresso na vida de amor a Deus. Não é possível ensinar Catecismo ou administrar os sacramentos a multidões que morrem de inanição – e, nesse sentido, é missão da Igreja colaborar para acabar com a fome.
No fundo, para entendermos essa dimensão social da doutrina cristã, basta enxergar que a ordenação pacífica de qualquer sociedade humana supõe certas condições e leis naturais – condições e leis estas que a Igreja, tendo recebido de Deus a “revelação plena da verdade acerca do homem”, está em posição privilegiada para compreender e transmitir à humanidade (Idem, nº 2419).
Nesse sentido, uma das verdades sociais que a Igreja nos ensina é que “a vida econômica não visa somente a multiplicar os bens produzidos e aumentar o lucro ou o poder”. É dizer: embora cada indivíduo tenha sim o “direito de iniciativa econômica” que lhe permite utilizar seus talentos e “recolher os justos frutos dos seus esforços”, a sociedade não pode ser construída num modelo de capitalismo selvagem, em que a atividade econômica não respeite os “limites da ordem moral e as normas da justiça social” (Idem, nºs. 2426, 2429).
Que haja pessoas sofrendo o flagelo da fome é, portanto, uma realidade contrária ao “desígnio de Deus sobre o homem” (Idem, nº 2426) – mas qual responsabilidade tem cada um dos agentes sociais perante este problema? Num primeiro momento, poderíamos ficar tentados a relegar a questão ao Estado: já que ele é quem faz as leis e coleta os impostos, que entregue também o pão na mesa dos cidadãos desvalidos. Mas aqui novamente a Igreja, escutando a lição do Evangelho, nos lembra a nós todos de que o “dever essencial do Estado” é assegurar “as garantias das liberdades individuais e da propriedade, sem falar de uma moeda estável e de serviços públicos eficientes”, “de modo que, quem trabalha, possa usufruir do fruto do seu trabalho e, portanto, se sinta estimulado a realizá-lo com eficiência e honestidade” (Idem, nº 2431). Como bem lembra o tema da Campanha da Fraternidade, Cristo não disse aos seus discípulos que fossem pedir pão no pretório de Pilatos – antes, Ele lhes mandou, “Dai-lhes vós mesmos de comer” (Mt 14,16). É claro que, em situações pontuais, o Estado pode, sim, desempenhar um relevante papel de remédio às carências mais urgentes dos desvalidos – mas esse tipo de socorro emergencial não pode nos eximir de nossa responsabilidade, como cidadãos e cristãos: “Neste domínio, a primeira responsabilidade não cabe ao Estado, mas, sim, às instituições e diferentes grupos e associações que compõem a sociedade” (Idem, nº 2431). Aproveitemos, portanto, desta Quaresma que se inicia para reforçar o nosso senso de responsabilidade para com todos os nossos irmãos, filhos de Deus, de modo a lhes darmos, nós mesmos, de comer.
CARDEAL ODILO PEDRO SCHERER Arcebispo metropolitano de São Paulo
Estudos sobre a segurança alimentar no Brasil dão conta de que, em 2022, cerca de 58% dos brasileiros enfrentavam alguma situação de insegurança alimentar e nutricional, o que significa alimento insuficiente e de baixa qualidade. Destes, 15,5% conviviam com a fome, o que corresponde a cerca de 33 milhões de pessoas. O problema é mais acentuado em 18,6% de domicílios rurais, que convivem diariamente com a fome. Quase a metade dessa população com fome vive nas Regiões Norte e Nordeste do Brasil.
A fome está diretamente relacionada com a questão do trabalho e do nível da renda. Como pode assegurar uma alimentação minimamente adequada a família ou o domicílio com renda inferior a um quarto de salário mínimo por pessoa? Os diversos benefícios sociais apenas conseguem mitigar essa situação, sem, contudo, resolvê-la. A pandemia de COVID-19 agravou ainda mais este quadro preocupante. Mas, depois dela, a fome persiste e até se agravou. Mesmo se a fome não consta oficialmente como causa mortis de tantas pessoas, aquelas que dela padecem