Estelita: as faces do Cais

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estelita as faces do cais


Estelita: as faces do Cais UFPE, 2014 62 p. 1. Jornalismo 2. Comunicação de massa - Aspectos políticos 3. Urbanismo 4. Cidade. I. Andrade, Selassié. Carvalho, Marcos. Pedon, Sarah (Org.). II. UFPE. Departamento de Jornalismo.


estelita as faces do cais


Orientação Edição

Thiago Soares Sarah Pedon Selassié Andrade Marcos Carvalho

Equipe de produção jornalistica

Yasmim Freitas Paula Passos Vinícius de Brito Leonardo Persivo Marcos Carvalho Selassié de Andrade Suenia Azevedo Caique de Paula Júlio Cirne

Foto da Capa Realização Chefe do DCOM Coodenador de Jornalismo Projeto Gráfico

Marcela Cintra DCOM - Departamento de Comunicação Social/Jornalismo Paula Reis Thiago Soares Marcos Carvalho Selassié Andrade

Ano de publicação

2014


APRESENTAÇÃO Sarah Pedon

Cais José Estelita, bairro de São José no Recife. O terreno com cerca de 100.000 m2 abriga antigos armazéns de açúcar e uma linha férrea desativada. Abandonado pelo poder público, o local foi vendido a um grupo de empresas em um leilão. O projeto proposto para a área previa a construção de 12 arranha-céus, transformando o lugar anteriormente público, em um privilégio dos mais abastados. No dia 21 de maio de 2014, a demolição dos antigos armazéns do Cais José Estelita foi iniciada. O objetivo era por abaixo as construções durante a noite e evitar qualquer enfrentamento com aqueles que não concordam com o destino dado à área. Entretanto, algumas pessoas perceberam a movimentação das máquinas e divulgaram na internet. Rapidamente se iniciou uma mobilização nas redes sociais, que utilizou as hashtags #ocupeestelita e #resisteestelita para informar tudo o que estava acontecendo no local. Entretanto, a agitação não foi passiva. Cerca de 30 pessoas foram ao local para impedir a demolição dos armazéns e acamparam no terreno. Em poucos dias, o número de acampantes chegou a cem. Assim, uma espécie de comunidade surgiu entre os ocupantes, que organizavam atividades culturais como palestras, oficinas e exibição de filmes. Além


disso, eles ajudavam os moradores de rua que tem o Estelita como casa. Nasceu assim, o Ocupe Estelita. O Ocupe Estelita tomou conta da cidade e surpreendeu a muitos que não acreditavam em uma sociedade recifense engajada. Nos 28 dias de ocupação, o Cais José Estelita recebeu visitas de pessoas que passavam o dia ajudando, conversando, participando das atividades e depois voltavam para suas casas. Nos terrenos do Cais, misturaram-se moradores novos e antigos, ocupantes/acampantes e visitantes muito curiosos por saber o que acontecia de tão diferente naquele lugar. A primeira vitória do movimento foi a suspensão do alvará que autorizava a demolição dos armazéns. No entanto, a Justiça ordenou o cumprimento de um mandado de reintegração de posse do terreno. Depois da desocupação do terreno, a prefeitura passou a promover reuniões entre os manifestantes e o Consórcio para discutir o projeto. A ocupação acabou, mas as histórias ficaram. Você deve estar pensando: “Afinal, do que trata este livro?” Ele não é sobre o Cais José Estelita, ele não é sobre o impasse entre o Consórcio Novo Recife e os manifestantes. Este livro é sobre aqueles que fizeram existir a discussão em torno do Cais. Este livro é sobre pessoas. Sobre jovens, crianças e adultos. Estudantes, trabalhadores e desempregados. Ocupantes, moradores e visitantes. Este livro é sobre o Ocupe Estelita. É sobre as faces do Cais.


índice

capítulo 1

capítulo 2

capítulo 3

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na margem nos trilhos na vila

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8 Foto: Marcela Cintra


na margem

O homem, porque vive, choca com o que vive. Viver é ir entre o que vive. Cão sem plumas, João Cabral de Melo Neto

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Menino pobre, xará de escritor, super-herói, João Yasmin Freitas

João tem seis anos e uma pele queimada de sol que não nega suas origens recifenses. É morador do coque, bairro da cidade com um dos mais baixos Índice de Desenvolvimento Humano (IDH). Tem um semblante um pouco abatido e um corpo magro. Seu cabelo crespo, quase raspado, é muito preto, e empresta a coloração às sobrancelhas grossas e aos olhos miúdos rodeados de olheiras. Os pés de João estão descalços e são maltratados. Dialogam com o chão a todo instante. Estão o tempo todo em contato com areia, pedaços de vidro, vegetais e pedras. Suas unhas são sujas e compridas. 10


João não enxerga o mundo ao sorrir. Quando a alegria o preenche, seus dentes brancos, apesar de muito pequeninos, formam um sorriso largo que toma conta de seu rosto e lhe aperta os olhos, impedindo o menino de ver de forma apropriada. É por isso que, enquanto corre às gargalhadas pela imensidão do Cais José Estelita, João parece uma vítima das políticas do pão e circo, aplicadas pelos governantes desde a Roma da antiguidade para distrair a população de questões sociais ao oferecer-lhes entretenimento de massa e o mínimo para a sobrevivência. Sorri e não vê o mundo. E se vê o mundo, não consegue sorri. João mora em uma casa com condições difíceis. A mãe, costureira, a avó, aposentada, e mais três irmãos estudantes dividem com ele o espaço de pouco mais de 40 m². Na sala, há um sofá acinzentado de dois lugares que afunda quando alguém senta e uma televisão de poucas polegadas, a única da casa. Emoldurada, Maria, a mãe de Jesus Cristo, observa maternalmente os moradores do lugar. Dentro do quarto que João divide com os irmãos, quase não há mobília. As crianças colocam as roupas e pertences dentro de uma cômoda de madeira e dormem em colchões. O de João é o mais fino e desconfortável de todos. Por ser o irmão menor, quando veio ao mundo, já não havia mais espaço para ele no quarto, na casa. Faz três dias que o lar do menino está sem eletricidade. Não havia dinheiro para pagar a conta de luz e a comida na geladeira só não se perdeu porque encontrou morada no congelador de um vizinho prestativo. Xará de João João é xará de gente simples como ele. De tantos Joãos que levantam cedo, enfrentam condições

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precárias de transporte, de sistema de saúde e educação. São comerciantes, pescadores, estudantes de escolas públicas, artesãos, motoristas e catadores de lixo. Gente que vive com dinheiro contado e, muitas vezes, precisa escolher qual conta pagar no início de cada mês. De Joãos que moram em casas pequenas e desestruturadas. Falta alimento, saneamento, água potável e energia elétrica. Falta quem olhe para os Joãos. João também é xará de um dos maiores escritores da literatura Pernambucana que, no ano de 1950, ao escrever o poema Cães sem plumas, falou do presente de abandono sofrido por uma parcela economicamente desfavorecida da população e previu o futuro do menino e de tantos outros joãos ao evocar o sentimento angustiante de se sentir destituído de algo que nunca se teve. João nunca teve uma casa digna. Tampouco um lugar em que pudesse brincar com segurança. Ele sente falta de tudo isso. E é por esse motivo que corre – sempre sorrindo – por toda a extensão do Cais José Estelita e segue um filhote de gato de pelo dourado e comprido enquanto imagina como seria se apenas uma parte miúda daquele terreno vasto pudesse ser uma morada. Pudesse ser seu espaço de brincar. Super-herói João não tem muitos sapatos e recentemente perdeu seu único par de chinelos, mas carrega orgulhosamente no pulso um relógio do homemaranha seu super-herói preferido. É de se imaginar que ele se pergunte se pode salvar o Cais da ação das construtoras que integram o Projeto Novo Recife. João tem uma imaginação fértil de criança e quer saber se construtora tem medo de super-herói. Aposta que tem, sim. Principalmente 12


do homem-aranha e de sua teia mortal. Ele deve estar correto. Quem destrói a memória de um povo enquanto ele dorme, jamais teria coragem de enfrentar heróis como o homem-aranha. Ou como João, que diariamente sai da escola para percorrer, a passos largos ou de corrida, o espaço inteiro do José Estelita. E se admirar ao ver os trens passarem. E observar os velhos trilhos. Os galpões que pedem carinho e cuidado. Os toldos de melaço enferrujados. As barracas ficandas no solo. O desejo de uma cidade melhor em vez de sequestrada pelo capital. Uma cidade com espaços públicos e de convivência de qualidade. Simplesmente João João ensaia suas primeiras brincadeiras com malabares no Cais José Estelita. Aprende a pintar. Confecciona cartazes. Almoça uma comida vegetariana que acha deliciosa. Monta barracas de acampamento. Brinca com os animais do espaço. Conversa com as pessoas. Ele está ansioso para que a escolinha de Estelita seja inaugurada, porque apesar de ter seis anos de idade, ainda não aprendeu a ler. Não sabe sequer o alfabeto ou as vogais, contato primeiro no processo de aprendizagem da leitura. João está fadado aos limites de seu lugar de nascimento. É o que dizem muitos intelectuais. Nasceu no Coque, morrerá estigmatizado pelas marcas de sua origem. De menino pobre, de pele escura e poucas oportunidades. Mas João é o homem-aranha. É xará de João Cabral de Melo Neto. É um menino que aprende. Que sonha. Que busca. João quer uma cidade melhor. Uma cidade para gente que não é Dubeaux. João quer ser enxergado. João não quer ser mais um entre tantos. João não quer ser um João-ninguém.

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A chançe que o “Papa Figo” levou Paula Passos

Luiz Carlos Alves da Silva, 7 anos, jogador do time de base do Santa Cruz. Chegou até o Santinha através do olheiro Luiz Neto, ex-goleiro do time. Na época, Luiz Carlos jogava no campo do Barro, em Joana Bezerra, onde, inclusive, Valter do Fluminense também foi descoberto. Passou um tempo fora dos campos, mas aos 13 voltou e permaneceu lá até os 17. Treinava no campo, em Dois Unidos, e ganhava uma cesta básica e R$ 200 por mês, além da mensalidade no colégio de freiras Virgem Poderosa. 14


Aos 17, ocupando a posição de meia, desistiu da carreira. Recebeu propostas de clubes cariocas como: Flamengo, Fluminense e Vasco. Até o time do Porto, de Portugal, ofereceu uma proposta, mas a mãe, com medo do “Papa figo” não permitiu que o filho alçasse voos mais altos. Até, hoje, ela se arrepende da escolha que fez. Nascido em Nazaré da Mata em junho de 1993, Luiz Carlos mora atualmente embaixo do viaduto Capitão André Temudo, no bairro do Cabanga. Era uma tarde de terça-feira quando cheguei ao movimento #OcupeEstelita e, após visitar o acampamento, numa volta pela área, encontrei Luiz lavando sua bicicleta com uma calma que impressionava. Perguntei se podia conversar para saber um pouco sobre quem ele era. Ele afirmou positivamente e me ofereceu uma cadeira branca de madeira, que coloquei ao seu lado, e começamos a conversar. Entre uma pausa para a conversa e uma ensaboada na bike, Luiz me contava detalhes de sua vida e como chegou até o lugar. Luiz morou até os quatro anos de idade em Nazaré da Mata, na Fazenda São Pedro, com os avós maternos, enquanto a mãe morava no Recife e trabalhava como doméstica. Foi abandonado pelo pai, porque quando Luiz nasceu, não tinha seis dedos como o genitor, o que fez com ele pensasse que o filho tinha sido fruto de uma traição. Só reencontrou o pai, por intermédio da tia Irene, há 4 anos, mas não mantiveram a relação e perderam o contato. Quando chegou ao Recife, morou na Ilha das Cobras, em Casa Forte. Dos 10 aos 15, trabalhou num espetinho para ganhar carne e R$ 10 por noite. Ainda com 15, começou a participar do

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projeto Jovem Aprendiz, do Senac durante o dia e continuava no espetinho à noite. Quando algum funcionário do Extra e do Bompreço faltava, ele substitua na arrumação das prateleiras. Fez ainda um curso de Informática Básica oferecido pela Prefeitura e um de Manutenção de Programas e Montagem de Micro. Sob o viaduto Após morar na Ilha das Cobras, Luiz mudou-se com a mãe e os avós maternos para Joana Bezerra. Uma discussão com o avô desencadeou na saída dele para debaixo do viaduto, para a casa da sogra Vera, que reside no local há 21 anos. No cubículo, moram cinco pessoas: ele, a esposa, a sogra, um cunhado, uma cunhada. Luiz conheceu Cláudia, sua esposa, na Igreja Pentecostal Paz no Vale com 18 anos. Ele fazia parte da Mocidade, o coral da Igreja, e trocavam olhares durante os cultos. Através da irmã de Cláudia, começaram a se aproximar, namoraram e estão juntos até então. Cláudia tem 18 anos e está grávida de sete meses. Cláudia é deficiente auditiva e aposentada. Luiz está desempregado recebendo o primeiro mês do seguro, mas nem sempre teve sorte com a parte burocrática de onde trabalhava. No tempo em que foi montador de móveis de uma loja, ele sofreu um acidente de trabalho, quebrou o braço e foi demitido. Não recebeu o que era seu por direito nem dinheiro para o tratamento. Colocou na Justiça, mas ainda espera que algo se resolva. No dia do acidente, passou três horas na UPA da Imbiribeira esperando atendimento.

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Foto: ValĂŠria Oliveira


Consciência Luiz aproveitou a deixa para reclamar do sistema público de saúde brasileiro e para falar do dinheiro mal investido na Copa do Mundo. Adorava futebol e tinha até várias apostas para os quatro primeiros colocados, porém, não via necessidade do evento ser sediado no Brasil. Contou que as UPAs não tinham feito grande diferença na vida dele, pois o atendimento demorava e precisa em muito ser melhorado. Nesse momento, perguntei sobre como era a relação dele com as pessoas do #OcupeEstelita e o que ele achava do projeto que desapropriaria a família e ele do viaduto. Luiz, tão próximo do foco de tudo, aparentava estar meio desligado do que se passava se não fosse pelo que assistia na televisão. Sabia que o projeto não seria executado por enquanto, mas só isso. Voltando à relação com os ocupantes, ele disse que não existia uma aproximação entre o acampamento e os moradores da área. Eles, às vezes, pediam para tomar banho e Vera cedia água, mas a relação se tornava mais próxima quando tinha algum show e Luiz virava manobrista para quem ia estacionar o carro na região. Isso foi uma forma de ganhar um dinheirinho extra e de ouvir o que os manifestantes diziam na reunião do domingo (8), quando Otto se apresentou. A vida continua

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Hoje, Luiz faz “bicos” para sobreviver, enquanto não encontra um emprego. Pinta, faz textura em paredes, conserta computadores... Adora acessar a Internet, ficar informado, embora não tenha conseguido que a Velox instalasse um modem em sua casa, porque demandaria muita fiação exposta pela rua. Quando precisa da rede, coloca crédito no chip da TIM e usa o modem móvel.


Ele contou que a região é perigosa e tem muito assalto, mas para os moradores é mais tranquilo. Quem senta lá para conversar, percebe que aquele lugar meio escondido da correria do Recife traz certa calma, principalmente, pelo forte vento que vem do mar, dando leveza ao ambiente. E nota ainda que o barulho dos carros é apenas som ambiente para as vidas que se encontram ali. Na volta, perguntei se Luiz poderia me levar à parada, já que por ser uma área de muito assalto, não seria bom arriscar. Ele disse que levaria e assim foi fazendo, até que... “Vai pra onde?”, disse Cláudia num tom alto e com o semblante meio bravo. Ela apareceu repentinamente na porta da casinha laranja embaixo do viaduto e frisou implicitamente que Luiz era dela e ninguém tascava. Na ida até a parada, ele disse que sempre trabalhou e nunca quis pegar nada dos outros. Revelou também, num apelo, seu sonho escondido: se conhecesse alguém na Universidade que pudesse colocar o futebol de volta em sua vida, que o indicasse. Porque desta vez não haveria mais outro “Papa figo”.

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DEUS, O DIABO E A MATRIARCA NA TERRA ESTELITA Vinícius de Brito

Um feudo na Avenida Engenheiro José Estelita. A oeste, encurralado pelas torres gêmeas do Bairro de Santa Rita e a leste pelo godzilla imobiliário da Bacia do Pina. Ali, enferrujado, está o entulho do que no Recife foi a Rede Ferroviária Federal (RFFSA), leiloada por R$ 55 milhões a um consórcio em 2008. E, como é praxe aos territórios medievais, três casas dão forma à aldeia de vassalos (ferroviários). Que o diga a família de Luciene Maria de Assis, 42, que há 18 anos “ocupa” um teto simples de murada baixa naquela terra batida. 20


– Eu vim com meu esposo por transferência do trabalho dele. Ele trabalhava na estação em Pesqueira [sertão de Pernambuco]. E lá ele teve essa transferência para Recife. Na época, tinha essa condição de ele transferir-se pelo cargo que exercia, ele era chefe de estação – a mudança que diz Luciane incluía um lar para chamar de seu. Mas, no meio do caminho, enquanto o deslocamento não se profetizava, o casal teve duas filhas, Lydia e Lylian Assis de Menezes. Agora, com uma “menina” casada e outra noiva, a casa dos Assis de Menezes passa por um imbróglio: foi atropelada pela casta de empresários do Novo Recife. Por arte do destino, o impasse das moradias da antiga estação ferroviária RecifeSão Francisco está, precisamente, na perda do suserano mor, porque o que era de posse da União passou a ser de um grupo poderoso da construção civil recifense. Despejados A decisão arbitrária, entretanto, demorou a chegar aos ouvidos de Luciene. Ela própria esmiuçou os capítulos da história por meio de redes sociais e da imprensa. – A expectativa era assim, de cinco anos para cá: “poxa, a gente vai sair, para o mês a gente vai ser chamado”. E foi passando um, dois, cinco anos. Ninguém deu um parecer de nada. Nem a antiga empresa [RFFSA], que agora é privada, nem o pessoal que comprou deu satisfação se precisava ter que sair mesmo ou se não tinha – suspira. O fato é que só neste ano de 2014 os suseranos da vez deixaram os esboços das plantas arquitetônicas para intervir na região. Antes disso, porém, um informante do consórcio teve o primeiro diálogo com a família de Luciene: – Uma semana antes do

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Carnaval, um deles, sei que é do consórcio esse rapaz, disse: “Vanderli [marido], a gente precisa da documentação”. Depois de dias chegou um comunicado, um telefone e um endereço para a gente comparecer a um escritório de advocacia. Um grupo de advogados do consórcio – completa. Na reunião, R$ 25.000 foi o preço oferecido pela desapropriação da casa. Valor dez vezes menor do que a dinheirama que se desembolsa por um apartamento de 30 metros quadrados em tempos de inchação imobiliária no Recife. Depois, a “bolada” só dobrou: – mas mesmo assim é inviável. Impossível comprar algo. Estamos aguardando um novo encontro, uma nova proposta – espera Luciene, visivelmente sem fé. Continua ela: – Eu acho que agora, por causa desse movimento todo, eles estão mais preocupados com isso aí. Se passaram mais dois meses e a gente está só aguardando. Primeiros ocupantes Embrionado no Facebook pelo grupo Direitos Urbanos, desde 2012 o movimento #OcupeEstelita vinha conseguindo agendar intervenções artísticas e urbanísticas para a área do cais. – Eu, no começo, não entendia o movimento, o porquê. Foi pelas redes sociais. O que eles postam é bonito. Porque realmente aqui é abandonado, feio. Às vezes eu brinco com algumas pessoas que passam aí. Ocupe Estelita [é o nome do movimento], né? Mas nós, os moradores, já ocupamos há mais de 20 anos aqui – sorri timidamente Luciene, cuja família vai ser a última inquilina da história dos ferroviários naquele aconchego.

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Luciene diz que conheceu o OcupeEstelita a conta-gotas, mas no discurso dela são notadas algumas divergências e lacunas em relação ao


movimento: – Agora realmente eu entendo a parte deles. Também entendo os empresários que querem fazer isso [o Novo Recife] aqui. Eu entendo que o pessoal daqui [do movimento] quer fazer uma coisa pra cidade, e não só pra um, que no caso, são os empresários ricos – o senso de ir contra a privatização de espaços públicos, princípio base do “Ocupe”. – O nosso fator é mais individualizado. Eu acho que eles [os ativistas] estão preocupados com um causa maior. Esse embargo da obra... – compara. De fato, o OcupeEstelita conseguiu visibilidade para o espaço do cais. Melhor, conseguiu torná-lo praça pública, no melhor soneto democrático. Longe da papelada burocrática, o clã Assis de Menezes toca a vida e faz a feira do mês. Como nos idos de 1990, eles precisam ir até uma espécie de burgo, que pode ser no Centro ou na Zona Sul. Estão repostos assim os mantimentos de sobrevivência àquele deserto. E entre Deus e o diabo na Terra do Sol, o barulho das pálidas ondas do Pina é o único som que afaga as incertezas da família da casa amarelinha. – Só a gente que mora aqui porque, apesar de tudo. Nós gostamos. É muito tranquilo. E já ocupamos esse tempo todinho...

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24 Foto: Marcela Cintra


nos trilhos

Eu prefiro ser Essa metamorfose ambulante Do que ter aquela velha opini達o formada sobre tudo Metamorfose Ambulante, Raul Seixas

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PROFISSÃO: VIAGEIRA Leonardo Persivo

“Eu posso falar contigo, espera só um pouquinho, porque eu acabei de acordar”. Foi o que me respondeu uma moça descabelada, simpática e com uma cara de ressaca, assim que cheguei ao Cais José Estelita à procura de alguém para conversar. Para muitos, a noite é mais árdua que o dia, e me pareceu que a noite daquela menina não tinha sido das mais agradáveis. Mais tarde, não tive coragem de perguntá-la como fora a madrugada, mas levando em conta o cenário que estava diante dos meus olhos, não era difícil de imaginar. 26


Barracas montadas a céu aberto, mato crescendo por todos os lados, “camas” feitas de toalhas e lençóis, além de uma iluminação improvisada, compunham uma paisagem visivelmente desconfortável e talvez insalubre. Era assim que Luane Muliterno (posteriormente descobri que ela gosta de ser chamada de Lua) vivia há quase cinco dias. Ela me pediu pra esperar, e eu, obviamente, atendi. Enquanto ela perambulava entre seus companheiros de acampamento, conversando baixinho, naquele tom de quem daria tudo para dormir um pouco mais, eu a observava. Lavou o rosto, bebeu água e me pediu uma caneta para assinar algo que me pareceu uma ata de presença. Provavelmente não era, mas também não perguntei sobre isso, devido ao fato de ainda estar tomado por aquele acanhamento que nos aborda quando somos intrusos em algum lugar. Vinte minutos depois, ela veio em minha direção, andando descalça no meio das pedras, com uma caneca na mão e um sorriso no rosto: “Tô pronta pra falar agora”. Procuramos um lugar mais afastado, onde o animado falatório dos outros integrantes do acampamento não nos atrapalhasse. Luane escolheu uma clareira perto dos trilhos antigos que cortam o terreno e arranjou duas cadeiras velhas. Talvez ela tenha notado minha timidez e tentou me deixar mais à vontade: “Você quer essa cadeira de madeira ou a outra?” – e sem esperar minha resposta, decidiu – “Você é visita, fica com essa aqui que é acolchoada”. Antes de conhecê-la melhor, eu já a considerava uma pessoa um tanto quanto corajosa. Afinal, abdicar do conforto de casa e do comodismo cotidiano, para lutar contra um projeto imobiliário

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de grande porte, no meio de um terreno há muito abandonado, não é tarefa simples. Após cinco minutos de conversa, notei claramente que Luane era mais do que corajosa. Alguns chamariam de diferente, outros de louca, mas eu prefiro defini-la como uma pessoa intensa. Intensa, ao passo que vive aparentemente sem medo, sem raízes e sem tradicionalismos. Uma vida diferente da rotina de outros jovens de 21 anos, como ela. Enquanto a maioria se engalfinha por uma vaga em uma faculdade, um emprego ou um carro, Luane leva um estilo de vida quase que aventureiro. Questionamentos Pergunto, meio sem jeito, o que ela faz da vida. Rindo, ela responde sem hesitar: “Minha ocupação principal é ser viageira”. Em seguida, me conta que passou o ano de 2013 inteiro viajando e que pretende pegar a estrada novamente dali a uma semana, para vagar pelo Brasil durante oito meses. Fiel às suas convicções, ela se interessa por problemas sociais e enxerga a cidade de outra maneira. Empolgada com o movimento Ocupe Estelita na cidade do Recife, ela confessou que não sentiu isso no começo. Após ter viajado por muitas cidades brasileiras e participado de outros movimentos em Brasília e Porto Alegre, ela admitiu que não levou fé nas primeiras edições do Ocupe Estelita, pois, para ela, não possuíam a seriedade necessária. Perceptivelmente articulada e por dentro dos problemas da cidade, Luane demonstrava certo orgulho diante do tamanho que o movimento tomou. Apesar de que, para ela, o Ocupe Estelita seja um pequeno “Davi” resistindo à vontade dos 28


“Golias” da cidade, a suspensão do alvará de demolição pela prefeitura foi uma grande vitória. Luane participa ativamente do movimento por amar Recife, principalmente. Ela assume que tem uma relação diferente com a cidade, não apenas morando, e sim vivendo-a. Com sua bicicleta inseparável, pedala por toda ponte, rua, mercado e viaduto, quase nunca andando de ônibus ou de carro. E nessas andanças, adora conversar com as pessoas. Luane é intensa por sua simplicidade e simpatia, que destoam em meio ao caos, à competição e à correria da metrópole. Curioso, pergunto como é passar os dias naquele acampamento e o que a família pensa sobre isso. Mantendo uma expressão pensativa por alguns segundos, cruzou as pernas em cima da cadeira e respondeu que: “A pior parte é a convivência com pessoas de lugares, tipos e ideias diferentes”. Essa resposta me surpreendeu, pois, a julgar pela junção de trapos que ela utilizava como cama, achei que esta seria a pior parte. Em seguida, ficou em silêncio por um tempo, o que me fez ponderar se eu havia ultrapassado os limites ao perguntar sobre sua família. No entanto, pelo pouco que eu a conhecia, já sabia que ela não era o tipo de pessoa que fugia de uma pergunta. E assim foi. Olhando para o chão, rápida e secamente, respondeu: “Meu pai não me apoia não. Ele tem a cabeça completamente diferente da minha. Mas minha mãe sim. Inclusive essa cadeira que você tá sentado foi ela que trouxe ontem”. Relembrar esse pequeno ato da mãe fez seus olhos enxerem de lágrimas. Tentei, ridiculamente, consolá-la com alguma frase do tipo “mãe é tudo igual, sempre pensa no bem estar do filho”. Lua sorriu, e como quem quer mudar de

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assunto rapidamente, me contou seus planos para o futuro. Certezas Depois da viagem, ela pretende morar em Campina Grande, onde tentará entrar no curso de agroecologia. “Sempre me preocupei com a questão do meio ambiente, principalmente na área rural. Quero me especializar nessa área. A concorrência é baixa, eu acho que passo”, completou, rindo. Foi ficando tarde, a lua no céu começou a aparecer e eu tive que me despedir da Lua na terra. Devolvi a cadeira da mãe dela, e fui me distanciando dos trilhos e pedras característicos do Estelita. Quando estava quase perto do buraco no muro pelo qual entrei, ela me alcançou, perguntou se eu fumava e me ofereceu um cigarro. Eu disse que não era fumante, ao passo que ela pediu: “Então me adiciona no Facebook. É Lua Muliterno”. Fui embora me perguntando se ela pediria para eu adicioná-la no Facebook se eu tivesse aceitado o cigarro, e cheguei à conclusão que quem acha Luane louca, talvez esteja certo. Mas há loucuras que são bem vindas, e a de Luane é uma delas.

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Foto: Marcela Cintra


Ativista de uma causa só Marcos Carvalho

Nas paredes dos antigos armazéns de açúcar do Cais José Estelita, no Recife, setas grafitadas indicavam a direção do OcupeEstelita. Elas conduziam à Vila Estelita, que surgia através de uma enorme cratera feita no muro. Nas barracas do acampamento, jovens despertavam para as atividades daquele sábado, que amanhecia com uma leve garoa. Entre os que já estavam de pé, encontramos Igor Souto Maior, jornalista recém-formado que aderiu à causa do movimento e dormia no local nos finais de semana. 32


Apresentações Igor corria contra o tempo para copiar em uma grande cartolina a programação do dia seguinte, que estava em um computador. A bateria do notebook, posto sobre caixas de madeira utilizadas para transportar frutas, estava prestes a descarregar. Restavam apenas 20 minutos e o acampamento estava sem energia. De pés descalços, bermuda de corrida e camisa regata branca, o jovem de 23 anos e sorriso largo, mostrava-se integrado aos companheiros, ao ambiente improvisado e às carências próprias do acampamento. Não se via em seu semblante saudades da casa em Aldeia, onde mora com a família. Como Igor, muitos outros jovens de classe média assumiram a causa do Ocupe Estelita. Soube do processo de demolição dos armazéns através do grupo “Direitos Urbanos” pelo Facebook e resolveu participar fazendo doações de calçados e alimentos. Confessa que não tinha interesse em engajar-se como vinha fazendo, pois não tem um histórico de ativista. Aos poucos, no entanto, Igor foi criando uma relação afetiva com o lugar, sobretudo ao ver práticas coletivas de solidariedade. O trabalho de Igor naquela manhã era simples: colocar no papel a programação do dia seguinte para afixar no painel que se encontrava em um espaço coberto onde costumavam acontecer as reuniões. No cartaz já posto sob a cabana, a programação do sábado começava com uma “Formação de jovens feministas” com o grupo SOS Corpo. E era isso que estava acontecendo naquele exato momento: sob a lona de plástico preta se reuniam 17 jovens, homens e mulheres, divididos

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segundo o sexo pela facilitadora, propondo uma discussão sobre moradia, mobilidade urbana, e segurança. Ocupações Enquanto Igor escrevia a programação do domingo, outro membro da Vila chega perguntando onde pode encontrar uma pá de madeira. Igor prontamente indica o local. Depois volta ao seu trabalho mais apressado do que antes ao perceber que seu notebook dispõe de apenas dez minutos até que a bateria descarregue. Quem está na Vila Estelita é assim, ajuda em tudo o que for preciso. Igor ajuda na horta construída em forma de “S” bem ao lado dos armazéns, cultivando manjericão, cebola, maxixe, abacaxi e capim santo. O lixo orgânico se transforma em composto para adubar a pequena horta. Igor termina o cartaz com a programação e pede licença por um instante. Vai até sua barraca, uma dentre as mais de 18 armadas no local (e que provavelmente cresceria em número naquele final de semana), e pouco tempo depois volta com uma calça jeans pendurada no ombro. A fila do banheiro coletivo, construído à entrada do acampamento, parecia estar longe de acabar. Dois jovens aguardam conversando, sem qualquer preocupação com o tempo. Igor resolve dirigir-se ao barracão onde são distribuídas as refeições. Estavam chegando as primeiras doações do dia.

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O mais recente morador da Vila Estelita não se considera militante do movimento, mas abraçou a causa e se envolveu afetivamente com ela. “Eu não tenho um histórico de ativista, mas ser contra a ideia de 12 torres que são parte de um modelo excludente, elitista e segregacionista é uma luta que interessa a todo cidadão


recifense”, relata enfaticamente. Sobre suas opções políticas, não se define como anarquista, porque detesta rótulos, mas afirma beber de um anarquismo autogestionado, sem hierarquias nem centralidades. Ao longo da conversa, o jovem jornalista insiste em reforçar que não é militante e se diz muito criterioso para participar de protestos. Explica que no caso do Ocupe Estelita, houve um chamado. “Qualquer pessoa que tem o mínimo de consciência política tem que vir aqui!” E essa falta de consciência por parte dos grandes veículos de comunicação do Recife tem deixado ele indignado. Como jornalista que já foi estagiário em um dos maiores jornais em circulação na cidade, acredita que havia uma ordem direta para não dar notícias sobre a ocupação. Ainda com a calça jeans do ombro, Guito, como é chamado carinhosamente pela irmã Isabela, revela seus sonhos: “Quero escrever livros e defender os oprimidos. Sou freiriano, a favor dos marginalizados.” Enquanto não publica um livro, planeja construir seu próprio blog. E vai ensaiando seu talento como escritor através das crônicas que posta no Facebook. O jornalista recifense, que foi jornaleiro na Irlanda enquanto fazia intercâmbio, segue sua vida experimentando...fazendo pósgraduação em estudos cinematográficos, bebendo das religiões orientais e ocupando o Estelita.

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36 Foto: Marcela Cintra


memórias de uma ocupação Selassié Andrade

Repercussão nas redes sociais e omissão nos grandes veículos, foi assim que o movimento de ocupação do terreno do Cais José Estelita se apresentou. Começando com um pequeno grupo, o movimento cresceu e as tags ocupe estelita e resiste estelita, nas redes sociais, ganharam voz e serviram de apoio àqueles que estavam fisicamente no local. Mais tarde, o grupo foi retirado do local, mas as histórias ficaram.

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5 de junho de 2014 O acampamento dos manifestantes se encontra ao lado dos grandes galpões do antigo cais, que estavam prestes a serem derrubados para em pouco tempo darem lugar a grandes empresariais do Consórcio Novo Recife. O acesso é livre e é feito através de um buraco no muro que cerca toda a área. Já ao atravessar, podemos observar, além de trilhos, cerca de cinquenta barracas e algumas outras estruturas. Pelo horário, nos encontrávamos por volta das 8h30 e muitos ocupantes ainda dormiam. Entre os poucos que estavam de pé, nos deparamos com um homem, branco, de olhos azuis, com cerca de 1,70 de altura, sem camisa, e com um copo nas mãos. Provavelmente realizava seu café da manhã. Seu nome é Luís Felipe Sabino, 29 anos, e até pouco tempo, estudante de gestão de políticas públicas. Luís estava no Estelita desde o primeiro dia de ocupação. No momento, ele já estava há 14 dias no acampamento, mas os ideais que motivaram a ocupação se encontravam intactos. Luís exalta a importância da ocupação e nos conta que o movimento começou com o sentido de impedir que o terreno do antigo cais, que é público, fosse utilizado para fins privados e que “a construção do empreendimento, como estava previsto pelo consórcio, irá ter um impacto visual, um impacto na mobilidade e um impacto na vida de todas as pessoas que moram no entorno do terreno que estamos ocupando”, destaca.

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Convivência “Muito plural, muito heterogêneo”, é assim que Luís Felipe define o grupo do Ocupe Estelita. Marcados por diferentes ideologias e representações de diferentes classes, mas com ideais em comum. A pluralidade acaba tornando a convivência difícil “mas as pessoas tem sido muito respeitosas e tem sido um espaço de aprendizado ímpar”, complementa. A convivência não se fecha apenas entre os ocupantes, mas também pela interação com moradores de regiões próximas. Como é o caso da Vila Sul, acampamento próximo composto por moradores que foram retirados do Coque. “Está rolando uma interação muito massa com esse pessoal. As crianças vem aqui, tem aulas, aprendem coisas como reciclagem. Temos brincadeiras com elas. Aqui podem desenhar, fazer arte”, cita o ocupante. Além disso, também existe o apoio da população mais distante daquela realidade, mas que também vem interagindo na medida do possível. Artistas fizeram shows no local como forma de apoio, e mais de 10 mil pessoas passaram pelo acampamento no último fim de semana. “Pelas pessoas que tive contato, elas gostaram muito de ver a nossa organização aqui, esse acampamento está muito lindo”, avalia Luís. Luís vê o movimento com grande aceitação junto ao público: “Quando eu entrego panfletos nos ônibus, sempre vem pessoas conversar comigo, me perguntar como é que podem ajudar”. O movimento não possui uma liderança fixa é “totalmente horizontal”. Líderes são escolhidos sempre que necessário, como para falar com a imprensa ou nas negociações junto à prefeitura.

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Mídia A comunicação foi uma das preocupações do movimento, que buscava passar o que acontecia da forma mais transparente possível. “A gente não tem o que esconder aqui, isso aqui está lindo, nossa causa é justa”, afirmou o ocupante. Para isso, o grupo contou com suas próprias divulgações e com organizações de mídia independente, como a Mídia Ninja de São Paulo. “Para evitar, que a grande mídia viesse aqui e fizesse publicações deturpadas, decidimos que nós mesmos iriamos gravar, tirar fotos e liberar toda a informação para a população”, afirma. Luís Felipe coloca que é “difícil generalizar” o papel dos grandes veículos, pois, enquanto alguns “chegaram escondidos, filmando sem nos informar”, outros “foram bastante éticos”. Assim, a produção de conteúdo independente serve para que “seja mostrada a verdade e não só as edições deturpadas da grande mídia”, conclui. Poder público Existia por parte do Consórcio Novo Recife receio de que a ocupação fosse realizada de forma violenta, mas desde o início tudo foi tranquilamente negociado. “Nós permitimos que a polícia nos revistasse para mostrar que nós estávamos sem armas e que essa era uma ocupação pacífica”, lembra o ocupante. O papel da polícia foi justamente de apaziguador, para garantir que o movimento e o Consórcio não entrassem em confronto. Para isso, os advogados do próprio movimento entraram em acordo com a Polícia Militar. “Aconteceu uma ronda da polícia que ficava por aqui, mas isso foi a pedido dos próprios advogados do movimento, porque existia 40


o risco de que o Consórcio do Novo Recife de alguma forma tentasse nos tirar daqui à força sem a ordem judicial”, enfatiza. A família e a satisfação Toda a família do Luís Felipe é residente em São Paulo. Com nenhum parente próximo, a comunicação ficou mais difícil depois do acampamento. Embora à distância, os os pais apoiam a causa e sua participação no movimento, mas se preocupam com o que pode vir a acontecer. “Eles ficam muito preocupados com as consequências, tanto imediatas, no caso de haver uma desocupação forçada de repente, tanto a longo prazo, pois algumas pessoas que estão aqui, podem ser processadas futuramente pelo Consórcio Novo Recife”, explica. Mesmo com o distanciamento da família e as dificuldades encontradas Luís Felipe demonstra muita satisfação por participar do Ocupe Estelita. “Tem sido um espaço de aprendizado ímpar, que eu nunca pensei achar na minha vida, tem sido realmente muito bom estar aqui e aprender com todas as diferenças que existem nesse acampamento”, finaliza.

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42 Foto: ValĂŠria Oliveira


na vila

A praça! A praça é do povo Como o céu é do condor É o antro onde a liberdade Cria águias em seu calor. O povo ao poder, Castro Alves

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DO CAIS, O SEU LUAR Suenia Aline de Azevedo

3 de Junho. Terça- feira. Ao chegar no Estelita, primeiro quis sentir o lugar. Assim que entrei, me deparei com a Vila Estelita e fiquei impressionada com a organização dali. O que era um local esquecido há tempos atrás, estava colorido. A decoração com placas e faixas. As músicas e palestras – tanto para crianças como para adultos – tomaram conta do espaço. Não fazia ideia do tamanho do lugar. Era muito maior do que eu poderia imaginar. Conheci e conversei com ativistas e pude sentir a paz que o Estelita emana. 44


Eu e uma amiga, depois de uma hora fotografando, fomos acompanhadas pelo nosso amigo Igor, participante do movimento, em busca do personagem para a matéria. Mais adiante, ao andar pelos trilhos e suas adjacências, vi de longe dois homens trabalhando na construção do que até então realmente não fazia ideia, mas eram suas casas. Acredito que devido à precariedade e ao tamanho do local, chega a ser impossível, para mim, que alguém possa morar em um lugar sob condições tão desumanas. Conheci, então, Thiago Marinho da Silva, de 26 anos, e seu amigo Elenilton Lima da Silva, de 28. Me apresentei e perguntei se poderia conversar um pouco. Elenilton, muito calado, continuava capinando seu pedaço de terra que seria o chão de sua nova casa. Thiago, o oposto do amigo, sempre sorridente, limpava o chão do que viria a ser seu banheiro. Ele se apresentou e, de imediato, já revelou que não queria sua identidade revelada na matéria. “Sabe como é, né? Sou Thiago Marinho, o cabeleireiro famoso. Trabalhei em muitos lugares bons e tenho uma grande clientela. Tenho um nome a zelar. Por favor, não revele minha identidade”, pediu o rapaz. A Conversa Thiago teve uma infância difícil. Sempre sofrendo agressões do padrasto, o menino do bairro de Dois Unidos decidiu assumir sua homossexualidade aos 16 anos e a convivência com a família, que já era complicada, ficou pior. O cabeleireiro contou que, ao saber de sua orientação sexual, o padrasto o colocou para fora de casa. “Sempre quis minha liberdade. Tinha muita vontade de levar meus namorados para casa e meu padrasto não deixava. Ele me espancou e me agrediu

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verbalmente também. Me tratou como se eu fosse um lixo”, disse. “Ele me deixava jogado na casa de um e de outro. Minha mãe não podia fazer muita coisa porque era dominada por ele. Ele não estava nem aí pra mim. Eu não aguentava mais essa vida”, complementou. Com um pouco de receio para contar o que veio a ser o momento mais vergonhoso da sua vida, Thiago revelou que se prostituía para conseguir comprar itens para sua necessidade básica. Como não suportava mais as condições em que vivia, o menino decidiu sair de casa e morar debaixo da ponte. Quando soube, através do seu vizinho e amigo, Elenilton, que havia uma área pronta para ser invadida, ele pegou parte de suas economias, algo em torno de 300 reais, e comprou madeirite para construir sua casa – que representava, para ele, muito mais que isso – era o começo de sua liberdade. “Apesar de pobre, senhora, a casa é minha. Aqui eu trago quem eu quero e faço o que eu quero sem ter alguém para me julgar”, contou Thiago. Orgulhoso do seu barraco, ele me convidou a entrar e conhecer a sua casa. Observei que Thiago, mesmo sob aquelas condições, ainda mantinha sua vaidade. Perguntei como fazia. “Ainda tenho meu secador e minha chapinha e ali tem meu balde com condicionador, shampoo, creme hidratante e meus esmaltes. Tem que estar lindo porque à noite tem festa, né?”, falou ele sorrindo. Sobre como sobrevive, ele explicou que o dinheiro dos programas vão, agora, para a construção do seu barraco e come o que os ocupantes do movimento dão para os moradores.

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A respeito do futuro, o morador contou que quando o Ocupe Estelita acabar, vai procurar


um trabalho e refazer sua vida. “É o tempo de eu construir meu barraco, que é meu objetivo principal agora, e procurar um emprego para refazer minha vida. Por enquanto, minha casa é aqui. Mas quero sair depois quando as condições melhorarem”, disse o cabeleireiro. Perguntado acerca do projeto Novo Recife e o que seria daquela área, Thiago, cheio de esperança, revelou acreditar que o projeto não irá vingar e que ali será uma área de usufruto da população. A Despedida Demorei mais que o esperado. O tempo voou e a conversa foi fluida, me deixando à vontade. O diálogo com Thiago me ensinou e me fez refletir sobre a vida. Mesmo com todo o sofrimento pelo qual passava, o cabeleireiro não perdeu a alegria e, principalmente, a esperança de voltar a ser Thiago Marinho. Segundo ele, um nome a zelar. Ao me despedir, ele reitera que não quer aparecer no “jornal” porque não quer que sua clientela saiba sob quais condições ele vive atualmente. Thiago também reforça que os moradores daquela área precisam muito de ajuda e me dá seu telefone. Pede várias vezes que eu mobilize meus amigos para ajudá-los. “A gente mais do que ninguém precisa de tudo. Contamos com vocês para nos ajudar e expor essa situação, já que os jornais daqui não estão fazendo”, concluiu. Saí dali levando comigo a responsabilidade de ajudá-los.

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entre duas paredes Júlio Cirne

“É depois daquele viaduto! Você desce e já está lá”. Esta foi a instrução que recebi de um vendedor ambulante quando perguntado sobre como chegar ao terreno do Cais José Estelita. “Aquele viaduto” na verdade é uma alça do Viaduto Capitão Temudo. Em um fim de tarde ensolarado e muito quente, somado à umidade de Recife, cruzei a pés o caminho indicado. Mal imaginava que andava sobre o teto de várias famílias.

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Gildete José da Conceição é uma dessas pessoas que têm o local como teto de suas casas. Morena, não mais que 1,70m, cabelos desgrenhados (e muito sujos), umbigo saliente, pernas castigadas por incontáveis cicatrizes, olhos fundos que aparentam uma atenção inquietante aliada a uma constante sensação de medo, susto; como se sempre desconfiasse que alguém a persegue. Enquanto eu conversava com um senhor, também morador da região, sobre as pessoas que já moravam no local antes do movimento Ocupe Estelita, Gildete chegou se apresentando sem cerimônias. Disse que já morava no local há 12 anos, que, quando saiu de casa aos 10, foi para o viaduto e lá mesmo ficou. Com cálculos imediatamente feitos, não deixou de espantar o fato de que ela tinha apenas 22 anos; quem a vê não dá menos que 38. Gildete tem o clássico aspecto de usuários de drogas: os emblemáticos olhos já mencionados e a pele do rosto repleta de fissuras. A linha do tempo Antes de residir onde está atualmente, Gildete afirmou com uma certa ponta de orgulho que ainda criança saiu da casa da mãe, localizada na favela da Joana Bezerra, “porque quis sair”. Ela mostrou uma preocupação com suas noções de tempo, pois está sempre somando anos e chegando à conclusões baseadas em períodos de antes e depois de ter saído de casa. A sua idade parece ser questão primordial, algo que não pode jamais ser esquecido porque, subtraídos os dez anos que tinha quando foi morar na rua, tudo o que lhe sucedeu forma uma linha do tempo que parece unificar e por ordem em sua mente: “Eu saí de casa eu tinha dez anos... Eu tenho vinte

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e dois então faz doze anos que eu moro aqui”, raciocinou. Gildete iniciou a conversa pedindo um cigarro que, mesmo me pedindo a caixa de fósforos, só acendeu ao fim de nossa conversa. Segurou os dois objetos durante todo o período em que estivemos juntos. De vez em quando ensaiava acender o cigarro, mas sempre se virava para sua residência, onde estava seu companheiro, para perguntar onde estava o isqueiro que lhe pertencia. Grávida de três meses, ela não escondia a felicidade por viver com o pai da criança, seu terceiro filho biológico. Perguntada sobre os outros dois filhos, ela não soube responder quantos anos eles tinham e teve de recorrer à sua linha do tempo para lembrar a idade das crianças: “Eu engravidei eu tinha 17 anos, eu tô com 22...”, passei-lhe à frente e disse que seus filhos tinham por volta de cinco anos de idade. Gildete titubeou, mas, depois de alguns segundos somando mentalmente, concordou comigo sobre a idade do seu casal de gêmeos. Em seu braço esquerdo havia uma tatuagem feia, visivelmente amadora, com pouca simetria e no clássico tom de verde que caracteriza tatuagens feitas por quem não é especialista. “Gisely”, entre quatro pares de aspas, dois superiores e dois inferiores, cercando o nome feminino. Perguntei se era o nome de sua filha e ela disse que não, que seus filhos se chamavam Jonathan e Joyce.

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“Gisely” era o nome de uma sobrinha, filha de uma de suas irmãs que morreu e que a chama de mãe. Ao explicar a homenagem no corpo, Gildete ficou com os olhos marejados e um tremular de choro na fala. Percebendo que ia chorar, mudou logo de assunto e voltou a falar dos filhos biológicos.


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Foto: Marcela Cintra


“Eu saí de casa porque briguei com meu padrasto. Ele foi dar no meu menino, aí eu furei ele com a faca”, relembrou. Usando novamente a linha do tempo de Gildete, conclui-se que ela voltou para o viaduto há mais ou menos dois anos, pois a briga com o padrasto aconteceu quando o menino tinha por volta dos três anos de idade. O Ocupe De volta ao terreno próximo ao Estelita, Gildete afirmou não ter medo de nada porque já é vivida na rua. Entretanto, por mais de uma vez ela mencionou um incidente ocorrido no dia anterior, quando uma equipe da Secretaria Executiva de Controle Urbano (Secon) foi ao local remover os moradores de rua dos arredores do viaduto. A ação acabou sendo desastrosa, pois, ao presenciar a cena, jovens que integram o movimento Ocupe Estelita tentaram defender os moradores. O resultado foi um confronto entre os funcionários do órgão e o grupo de jovens de classe média. No fim do dia, o saldo foi de um jovem com um ferimento grave na cabeça, segundo ele mesmo, fruto de um golpe de foice desferido por um agente da Secon. Mesmo sendo “vivida na rua”, foi impossível não perceber o medo que ela possui dos órgãos responsáveis por uma possível remoção do local.

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Gildete está parcialmente a par do que ocorre no local onde mora há mais de uma década e é terminantemente contra a execução das obras do Novo Recife. A moradora disse que o projeto só veio tirar o sossego dos pobres que lá estão e que é melhor deixar a área do Cais como está. Falei para ela que os responsáveis pelo projeto afirmavam que o Novo Recife seria bom para ela, já que as obras gerariam empregos para as pessoas de lá.


Inflexível, ela afirmou que não, pois já trabalha. Guardar e vigiar carros nas noites em que há festas no Cabanga Hiate Clube: este foi o trabalho ao qual Gildete se referiu. Segundo ela, é possível conseguir uma renda de, no máximo, R$ 20,00 por noite: “tem gente que me dá R$ 0,50, tem gente que dá R$ 1,00, tem gente que não dá é nada”. Antes desse trabalho, ela vivia da venda de materiais recicláveis que catava pelas ruas. Disse para Gildete que o dinheiro que ela ganhava era muito pouco e ainda por cima era algo que ela conseguia esporadicamente, já que só trabalha quando há festas no Cabanga. Sem mostrar preocupação com o futuro, ela responde que agora está tudo melhor porque “os meninos” do acampamento a ajudam com a fome. “Começou assim: eu tava na minha cama dormindo aí eles perguntaram se eu tava com fome e disse para eu chamar a galera. Eu disse: “Que galera, se só tem eu?”. Aí eles disse bora e eu fui”, explicou Gildete sorrindo. Concluiu dizendo que, antes de os jovens chegarem para ocupar o Cais, passou muita fome, “Tinha dia em que eu acordava e não tinha nada. Aí eu saía por aí e catava manga verde para comer com sal”. Desde o dia da tentativa de demolição dos armazéns que Gildete passou a fazer todas as refeições com o pessoal do Ocupe. Demonstrando muita simpatia por eles, evidentemente ela não entendia o motivo, mas falava muito animada que “os meninos” pintavam o seu rosto com “umas artes”, cantavam músicas e ensinavam a “plantar umas plantinhas”. Ela também falou do show de uma mulher que foi lá no domingo, referindose ao show da cantora Karina Buhr, ocorrido no terreno do Cais no dia 1° de junho e que, segundo

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estimativas, reuniu mais de 7.000 pessoas. “Eu só vi tanta gente assim junta no dia do Galo [da madrugada]”, falou sorridente. Gildete também confessou que foi no acampamento a primeira vez que viu um “filme de cinema”. Perguntei-lhe qual foi o filme e ela não soube responder, disse também que não entendeu, mas que achou bonito. O viaduto É perceptível que a convivência de Gildete com os jovens do movimento já influenciou bastante seu discurso. Ela disse, num tom impressionantemente engajado, parecido com o do ex-presidente Lula na época do movimento sindical, que o terreno do Cais José Estelita deveria ser usado para a construção de moradias sociais, “para colocar os pobres”. Gildete não recebe dinheiro dos programas de assistencialismo do governo federal, mas demonstra desejo em receber uma casa do programa “Minha Casa Minha Vida”, porém não possui nenhum dos documentos necessários para que faça o cadastramento. Analfabeta e sem ter quem a oriente, continua sem poder retirá-los; desta forma, ela é obrigada a permanecer em sua casa improvisada debaixo do viaduto, dormindo durante a noite e vagando pelo enorme espaço do Estelita durante o dia.

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“Casa” é um termo usado por convenção para definir o lugar onde Gildete mora. Na verdade, a casa dela era uma construção quase artística (sob os parâmetros do movimento modernista): duas paredes e um teto. A primeira parede era formada por um lençol vermelho, outro lençol que um dia já foi branco e que agora estava marrom, junto a um pedaço de papelão no mesmo tom do lençol e dependurados em um barbante que os sustentava verticalmente; a outra parede era a


base do viaduto; o teto era a pista do viaduto. No interior, apenas um colchão velho e uma cama de ferro, no modelo hospitalar, certamente recolhida do lixo de um dos hospitais próximos. Gildete não reclamava de quase nada em sua casa, apenas que fazia frio quando chovia. As casas de seus vizinhos eram mais bem acabadas que a sua – feitas com pedaços de papelão e lona preta, sustentados por uma base de colunas de madeira cravadas no chão –, toda a vizinhança no entorno do terreno do Cais segue o mesmo padrão de moradias inusitadas, abrigando várias pessoas em um espaço inferior a 2x2m , rodeadas por lixo e pessoas usando drogas. Depois de mostrar a sua casa e a vizinhança, Gildete disse que precisava ir embora porque ia buscar umas roupas que “os meninos” do acampamento arrumaram para ela e para o enxoval do bebê. Só então percebi que ela estava precisando mesmo de roupas; usava apenas uma minissaia e uma blusinha com tamanho indicado para crianças de oito anos, Minie Mouse e uma girafa estampavam o conjuntinho cor-de-rosa, os pés estavam descalços. Ela permitiu que sua casa fosse fotografada e foi embora. Já estava saindo do Estelita quando escutei a voz de Gildete gritando “Moço! A sua caixa de fósforos”.

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um novo recife para um velho morador Caíque Luiz

Desde a noite do dia 21 de maio, o terreno do Cais José Estelita tornou-se “badalado”. Grupos de jovens ocupam o lugar em um ato de protesto contra a construção do projeto “Novo Recife”, que prevê a revitalização da área com construções faraônicas num empreendimento comercial baseado no mercado imobiliário de luxo. Este “Novo Recife”, definitivamente, não comporta a presença dos “velhos” moradores que lá estão, mesmo antes de os jovens de classe média ocuparem o terreno. Um desses velhos moradores é o Sr. Alexandre, ocupante do Estelita há mais de uma década. 56


Negro, altura mediana, de cabelos grisalhos, bem vestido (tênis limpo e roupa lavada), Alexandre Araújo da Silva, 44 anos, me cumprimentou e me recebeu muito bem. Pensou logo que era mais um ocupante do movimento e mostrou entusiasmo em revelar onde os outros protestantes estavam. Quando expliquei para o que realmente eu fui fazer ali, Alexandre ficou ainda mais interessado em me falar da sua vida. Chamou-me para a sombra e perguntou se poderíamos conversar ali na entrada do cais, explicou que tinha que ficar lá, pois tinha que mostrar às pessoas que chegavam, para ajudar ou se integrar ao protesto, onde os ocupantes estavam. O morador está tão envolvido na luta pela causa do Cais quanto as pessoas do Ocupe Estelita “oficial”. Mostrando um pouco de conhecimento sobre a situação que está instalada no local e sobre as polêmicas envolvendo o projeto. Início no Cais A tarde do dia 06 de junho estava com sol escaldante, o que levou a maioria dos jovens que acampavam no terreno a se abrigarem em suas barracas armadas desde o dia seguinte à tentativa de demolição dos armazéns históricos. Alexandre andava por entre estas barracas quando nos encontramos e iniciamos a nossa conversa; e sua história como ocupante ativo do Estelita difere bastante do perfil dos recém alojados no local. Alexandre foi parar no Estelita mais por necessidade que por protesto político. Antes de chegar ao terreno, morava na casa de sua mãe com a mulher e os filhos na comunidade de Brasília Teimosa, localizada no bairro do Pina – não tão distante de seu endereço atual – e que

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saiu de lá porque a casa ficou pequena demais para muita gente. “A família na Brasília ficou muito grande”, afirmou o morador, explicando que eram 23 pessoas para ocupar um pequeno espaço que consistia em uma sala e um quarto apenas: “Ficou impossível morar lá. Aí fui procurando um espaço enquanto catava lixo na rua, para morar com minha mulher e as crianças”. Passando todos os dias em frente ao terreno do Cais (mais precisamente pelo muro dos galpões), Alexandre percebeu que dava para construir um “barraquinho” no terreno que se encontrava desocupado. No entanto, quando decidiu sair do Pina, sua mulher não quis vir junto. Todas as vezes em que era questionado sobre a relação com a esposa e os filhos atualmente, Alexandre respondia apenas que eles continuavam no Pina e mudava de assunto logo em seguida: “Ela não quis vir não, sabe? Eu não entendo bem porque, mas penso que ela não quer viver assim como eu vivo”. Sobre o seu trabalho e profissão, Alexandre afirmava ser profissional autônomo. Quando Alexandre dizia ser autônomo, é porque ele não queria se referenciar como um catador. Autônomo, porque não sobrevive somente do lixo, mas do que der para lucrar algum dinheiro. “Eu sobrevivo do que eu conseguir algum trocado para comer durante o dia. Se das latinhas que eu catar sobrar algum trocadinho, eu vou e compro peixe lá no Cais de Santa Rita e vendo para as pessoas nas ruas. Se o dinheiro acabar, volto para o lixo”, esclareceu. A moradia

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De tanto perguntar onde exatamente ele morava, ele decidiu me mostrar. Alexandre vive com mais 100 famílias, cerca de 250 pessoas, que moram às


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Foto: Marcela Cintra


margens dos trilhos da antiga linha férrea. Sua casa, assim como a dos seus vizinhos, consiste na seguinte construção: pedaços de madeira bruta fincados no chão e cobertos com plásticos de lona – aqueles mesmos usados para a contenção de barreiras em períodos de chuva: esta era a “casa” que Alexandre apontou como sendo a sua. Para quem não está habituado, acreditar que ele e tantas outras pessoas vivem residindo daquela forma é quase impossível. Alexandre explica, sem vergonha alguma, que, por causa das últimas chuvas, no momento não está morando no barraco, devido ao local ficar alagado em período chuvoso, e esclarece que está dormindo com os ocupantes do movimento, que lhe ofereceram total apoio desde que chegaram no cais. “Isso aqui estava abandonado há mais de vinte anos, não tinha nada, só escuridão pobreza e abandono. Aí, por volta de umas duas semanas, esses meninos chegaram para nos ajudar e lutar pelo que é nosso. É por causa deles que estamos tendo uma chance de mudar de vida”. Os ocupantes, desde que chegaram ao local, ajudam os moradores com comida, água, cobertores, madeira para os barracos e outras doações para amparar essas pessoas que são invisíveis aos olhos da maioria da população recifense, assim como o José Estelita há tão pouco tempo também o era. O morador atuante

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Sobre o Projeto Novo Recife, Alexandre afirmou que não quer ver o Cais José Estelita se tornar um local fechado somente para os “granfinos”, como ele mesmo qualifica os poderosos que querem tomar o local, mas, sim, que o espaço seja um lugar de utilidade pública e que ofereça condições de vida para as pessoas que já estavam ali antes do


Consórcio chegar, como é o seu caso. “Estamos batalhando para tornar o Estelita um bem público, com moradias populares, espaço para o lazer das famílias mais pobres, um lugar para o povo”. Durante toda a tarde em que estivemos juntos, percebi que ele estava muito engajado no Ocupe Estelita. Muitas pessoas que chegavam para deixar doações ou visitar o local já o conheciam e o cumprimentavam. Quando nos apresentou para sua vizinhança, procurou explicar, para os moradores que não conheciam direito o movimento, pelo que os ocupantes estão reivindicando e pedia para que eles também entrassem na luta. Ele fazia questão de afirmar a todo instante que estava junto com os ocupantes na luta pela preservação do cais e que representava todos os moradores que serão diretamente afetados pelo Projeto Novo Recife. “Estamos participando constantemente de assembleias junto à prefeitura e os meninos do ‘ocupe’ me escolheram como representante dos moradores do Cais José Estelita, porque eles sabem que eu vou lutar pelo direito de um lugar para os mais pobres”. Além disso, Alexandre mostrava conhecimento em relação à luta dos direitos urbanos no país. Relatou casos na Bahia e em São Paulo, onde, segundo ele, diz haver um movimento na defesa de galpões abandonados assim como acontece no Recife atualmente. “Hoje, nós moradores, estamos muito mais abraçados na causa para defender o que conquistamos. Não somos homens das cavernas para vivermos alienados de tudo, temos que ficar por dentro daquilo que nos afeta diretamente. O ‘Ocupe Estelita’ trouxe isso para a gente”, afirmou. 61


Quanto ao fato de morar num lugar sem saneamento, iluminação e segurança, Alexandre confessa as dificuldades que passa todos os dias. Contudo, morar em um lugar com vista e localização privilegiadas é algo que o deixa satisfeito apesar da situação em que se encontra. Afirmando que nunca perdeu as esperanças em um futuro melhor, o ocupante falou sobre um exvizinho não tão otimista quanto ele: “Eu sempre dizia a um vizinho meu que, às vezes, a gente pensa que nunca vai sair dessa situação, mas dizia também que uma hora as coisas iriam melhorar; ele me respondia que todos os dias eu falava isso, mas nada acontecia... E está aí: a hora chegou”. Alexandre se despediu dizendo que precisava ajudar os ocupantes do movimento no mutirão do jantar que eles servem para os moradores todos os dias. Disse que voltava, mas até o momento em que fiquei lá, conversando com outros moradores do local, ele não retornou. Mas a conversa de uma tarde que tivemos foi suficiente para saber que não foi o ocupe que colocou aquelas famílias ali, debaixo da ponte, e sim toda uma história de luta diária por sobrevivência em uma cidade que cresce a cada dia. Foi suficiente também para conhecer os receios e anseios dessas pessoas que só querem ter um lugar de direito neste “Novo Recife”. Alexandre, como ele mesmo faz questão de frisar, as representa.

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