Jornal Vaia edição 11

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Entrevistas com Dona Ivone Lara e Johnny Alf Cr么nica de Clarice Muller A poesia de Laurene Veras e Magali Domingues A cidade proibida


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Europeu também pode T

Geof Darrow

inha passado dois dias em Florianópolis, e vim pelo caminho imaginando como iria contar para vocês, desta vez, sobre uma goiabeira que foi muito importante na minha infância.Então chego, ligo para minha mãe para dizer que cheguei bem - as mães sempre querem saber tal coisa - e do alto dos seus 82 anos, ela me diz: - Tu já viste o que aconteceu na Espanha? Peguei a notícia no meio, não sei muito bem, mas foi terrível! Deve sair tudo de novo agora nos noticiários da noite. É claro que me aboletei no sofá para ver todos os noticiários. E como ando sentindo muita dor, porque quebrei um braço faz 40 dias, mas só há 4 que um médico descobriu que o braço estava quebrado(tem muito pano pra manga nesta história do meu braço e da falta de humanidade e responsabilidade de certo médico), de imediato senti muita pena daquelas pessoas mortas, feridas, estraçalhadas, cheias de dor que resultaram do tríplice atentado madrilenho de hoje. A primeira informação que cada canal de televisão disse foi: “Atentado atribuído ao E.T.A.”, que é uma organização de uma região separatista ao norte da Espanha, o País Basco. Só que tem uma coisa: o E.T.A. até faz uns atentadozinhos, mas sempre coisa pouca, nada a ver com o massacre das estações de trem ocorridos hoje. Ficava bem ao Primeiro Ministro espanhol, no entanto, jogar a culpa no E.T.A. - se é um atentado caseiro, não tem nada a ver com a irresponsabilidade dele, juntandose a um louco como Bush II para invadir outros países e massacrar muitas centenas de milhares de pessoas, que acho que é o que já foi massacrado recentemente na soma das mortes feitas pelos invasores só no Afeganistão e no Iraque. Rabo entre as pernas, o Ministro Aznar procurava ficar escondido atrás do E.T.A. - mas antes que a noite se adiantasse já havia uma associação ligada à Al-Qaeda assumindo a responsabilidade, e dizendo que não tinha nenhuma pena de ver civis europeus tão bem estraçalhados quanto civis asiáticos. AlQaeda, vocês se lembram, é a organização do Osama Bin Laden, a que derrubou as torres gêmeas nos Estados Unidos.

Daí imagino que metade de vocês está querendo comer Osama Bin Laden e a Al-Qaeda por uma perna, porque gente legitimamente branca, ancorada na velha e boa Europa, aquela que gerou a maioria de nós, sofreu na pele um ATENTADO - meu braço aqui está doendo o suficiente para eu saber que braços e outras coisas quebradas doem muito - imaginem gente estraçalhada como explosivos estraçalham, gente que fica sem uma perna e meia barriga, ou gente que perde meio rosto ou meia cabeça, como vi muito bem como ficam pessoas explodidas numas fotos realistas que estavam expostas em Porto Alegre, lá no Terceiro Fórum Social Mundial. Isto sem contar as crianças, pequenas vítimas inocentes da loucura de adultos loucos, com as barrigas abertas como couve-flores vermelhas e outras coisas horripilantes. E daí uma coisa assim acontece na velha e boa Europa que nos “descobriu” (A América já estava “descoberta” há pelo menos 12.000 anos!), e a maior parte de nosso público se horroriza: como? Na Europa? Lá não pode! Lá é o berço da civilização! - e por aí vai. Esquecem-se, claro, que há diversas civilizações, e que a da Europa é apenas uma delas. Mas os europeus podem sair por aí na cola do Louco Bush, invadindo países que têm petróleo e explodindo gente a granel, sem que a gente ache que está errado. Não está errado uma ova! Gente explodida na Europa é a mesmíssima coisa. E veja bem quantos países europeus estão ajudando a explodir gente na Ásia: Inglaterra, Itália, Estônia, Polônia, Dinamarca, Hungria, uma Espanha com um louco Aznar que decerto agora não sabe onde enfiar a cara, e até o nosso antepassado Portugal, coisa que nunca nem quis acreditar direito! Pois é, estão lá os europeus a fazer as barbaridades sem pensar que elas acabarão vindo parar dentro de casa. Já começou. E decerto ainda vai piorar. Europeu também pode explodir. Exatamente como asiático explode. É a mesma coisa. E o mundo ocidental se horroriza com o que aconteceu na Europa. Mas por que não se horroriza quando acontece nos outros continentes?

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az muito tempo que não vejo um cântaro e sequer sei exatamente para o que serve, mas é assim que chove hoje, a cântaros, muito embora também não saiba de onde surgiu essa expressão uma vez que os tais parecem não comportar muito líquido, porém para os residentes do deserto, que devem ter criado a frase, devia ser um bocado. O hoje a que me refiro é domingo, dia por si só malfadado por seu notório tédio, aplacado apenas pela quantidade nada desprezível de guloseimas e galetos, eis que também é dia sabidamente galináceo , o que o torna mórbido para as cocorocas em geral e para quem, como eu, resolve juntar a família em torno da mesa para o congraçamento de praxe e, quinze minutos depois da chegada dos convivas, já se amaldiçoa pela idéia porque dez à mesa implicam em panelas e mais panelas fumegantes, no mínimo quatro mulheres na cozinha dando palpite sobre como preparar isso e aquilo, três crianças pelo quarto brigando pelo uso do computador, do vídeo-game ou do que quer que lhes dê na veneta e três homens famintos na sala discutindo sobre os assuntos da semana, nada pacíficos, como sabeis. O berreiro é geral numa família que tanto desconhece o que é falar baixo que acha normal que o edifício inteiro escute a conversa, ininterrupta, por sinal. Nesse contexto, o almoço em si é uma delícia dos deuses, não pela qualidade dos quitutes, mas porque é o único período em que os ouvidos descansam para que as bocas, finalmente, encontrem algo melhor para fazer. A briga pelo repeteco da sobremesa reinicia a gritaria, que nessa altura faz coro ao som e à TV ligados ao volume máximo, claro. Servido o café, passa-se a tratar dos temas comuns a todos, ou seja, doenças, dinheiro e problemas de todo tipo. Considerando que a dez cabeças corresponde número igual de sentenças, o fuzuê está armado e, depois de muita discussão, que se notabiliza por ser exatamente igual à dos domingos dos meses e décadas anteriores, o estoque de mágoas e desacertos está consideravelmente aumentado e os dentes passam a ranger por outro motivo que nada tem a ver com o filé servido.

Urda Alice Klueger - urda@flynet.com.br

família Clarice Müller

veroverbo@ibest.com.br REST 1925

É nessa hora que me dá uma baita saudade do passado, aquele bem remoto, que aprendi nos livros de história, dando conta dos povos que iam aos mercados não só para negociar alimentos como também gente. Claro que naqueles tempos o principal produto eram mulheres e escravos, mas com uma pequenina alteração acho que poderíamos chegar a um bom termo: por que não vender famílias inteiras? A minha, por exemplo, poderia ser negociada a ótimo preço e com pagamento facilitado, inclusive com cheque pré-datado, desde que não sujeito à devolução da mercadoria. Dependendo do comprador eu poderia até dar um bônus, como o estoque de um mês de remédios acompanhando o kit-família, pro cara não gastar demais de saída e se arrepender no meio do caminho. Mais: se não quiser levar o grupo todo, entrego de graça um cunhado e abato duas crianças da conta, que ficariam aos meus cuidados a fim de demonstrar minha tese de que longe dos pais alguma recuperação é possível. Eventualmente, se o interessado se mostrar pessoa de posses e intenções irretocáveis, talvez até aceitasse uma permuta, tipo uma irmã minha por um irmão dele, desde que atingidos os requisitos mínimos de admissibilidade: gostoso e inteligente, o que serviria para comprovar outra tese que defendo, a que nem todo incesto é bola fora, antes pelo contrário.

Para eventuais críticos do sistema, que poderiam ver nessa venda o fim de um dos pilares da sociedade, lembro que a retomada deste velho hábito mercantil implicaria na consagração da globalização, tão cara ao capitalismo, pois o intercâmbio de neuroses, traumas, desajustes e disputas familiares resultaria em diminuição sensível da criminalidade, uma vez que não seria mais necessário matar a família e ir ao cinema, bem como na redução drástica dos distúrbios psíquicos porque todo mundo poderia dormir com a mãe sem ficar com complexo de Édipo ou de castração, causas mais freqüentes do empobrecimento da classe média e enriquecimento da psicanalítica. Ademais, como pretender que sejamos uma aldeia global se ficamos atrelados àqueles que não saem do nosso pé? Assim, sem mais delongas, proponho uma reforma constitucional para que seja incluído na nossa lei magna um direito fundamental do homem: o de enviar, para o outro canto do globo, pai, mãe, irmãos, cunhados, sogra, filhos, sobrinhos, netos, tias, padrinhos e congêneres, mediante venda, aluguel, leasing ou escambo, para que finalmente seja cumprido o preceito bíblico e o domingo volte a ser, verdadeiramente, um dia de descanso! Globalize-se já!


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03 Do derradeiro pântano emerge a cidade Luiz Ruffato

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E a cidade? a cidade? a cidade? Confusa geografia a me cuspir... Whisner Fraga

homem em estranho ritual invade o breve espaço de minha visão como um bólido. E eu não sei se ele conhece Mozart ou leu Machado de Assis. Mas noto que há uma sombra que o acompanha. Há em seus passos um grande mistério, semelhante à tristeza que percebi na vida daquela menina de Ituiutaba que eu conheci numa madrugada no Beirute. Brasília chegou cedo em sua vida. Eu soube. Disse-me um sujeito que bebia ao meu lado. Ainda em tenra idade, veio da Paraíba com os pais que chegaram ao Planalto Central naquela tarde seca de um setembro distante. A cidade ainda buscava-se em meio aos redemoinhos de poeira que dominavam o horizonte da Capital em obras. Aquele homem está ali, em-si-mesmo, nem tão superior nem humilhado, mas entregue às suas licenciosas indagações. Parece homiziado, atravessando a cidade de uma asa à outra, a cidade que se abre de Norte a Sul (como um pássaro em solene e interminável vôo) e que os seus ajudaram a construir. E sob a luz do sol que lança afoita e livre sobre os edifícios monótonos da Esplanada dos Ministérios seu indisfarçável lençol de claridade que quase cega, eu o vejo mergulhando, pressuroso, a sua enorme e desengonçada ossatura sobre o desnudo canteiro central, como quem carrega um crocodilo nas costas. Izolino respira com dificuldade o ar seco dessa época do ano e vai regurgitando sua fugidia esperança. Atravessa as superquadras do Plano Piloto num balé desconcertante, em muda órbita, qual Aracne em impulsos projetados na solidão de sua teia. Quando sentiu o tédio pela primeira vez no meio da cidade que o viu (de)crescer? Na escuridão dos primeiros tempos – sem parentes, sem vizinhos, sem esquinas e sem lazer – ninguém o notara e agora petrificado em sua monolítica condição, risca uma diagonal pelo gramado em frente ao Congresso Nacional e torna remota e improvável sua estada no mundo.

Está desesperado? Perdeu a bolsa e os sonhos? Veio ver o pôr-do-sol atrás do Lago Sul? Sem demora, o homem viaja sem rumo, cortando a cidade que ele viu emergir tímida e expandir-se desordenada em meio aos redemoinhos de poeira vermelha. Diante do espelho d’água das torres gêmeas da Câmara e do Senado, uma parada, qual narciso às avessas, para dialogar com a água malcheirosa, sobre as quais circula o que sobrou da enésima geração de gansos presenteados na inauguração pela rainha da Inglaterra. Até os monumentos da Praça dos Três Poderes pesavam-lhe como um túmulo em que guardava seus dias, cidade abissal, depositandolhe cansaços, instigando-lhe padrões que repetiu aleatório e sorumbático nesses anos todos. Continuou a caminhar e era imprescindível essa corrida. Contra quem? Contra o quê? A que (des)lugares desejava chegar, se pensava em alguma coisa a não ser em sua inconclusa situação de habitante de lugar algum? Do outro lado, o mundo: os motoristas de táxi enrolando conversas, as pombas cagando sobre a estátua da Justiça (antológico e inerte bloco esculpido, com seus olhos vendados para não enxergar o óbvio), um jardim de pedras e ausências compondo o quadrilátero em que o Legislativo, o Judiciário e o Executivo delineiam seus círculos de vício e ócio.

PROIBIDA A CIDADE Ronaldo Cagiano autor de “Canção Dentro da Noite” Editora Thesaurus O sonho tinha suas fronteiras e ele não ousou transpô-las. A cidade o agredia e de suas vísceras psicopáticas de medo e lendas, ele via o passado, o presente e o futuro sendo engolidos pela noite interior, liquefeitos pela bile irresistível. Longe está o tempo em que a desconfiança dos meganhas o importunava, obrigando-o a esconder as leituras de Marx e Gramsci . Foi o velho padre Mamede que deu a idéia da passagem secreta que dava acesso a um cubículo no fundo da oficina de automóveis na Cidade Livre, onde albergava sua literatura e seus sobressaltos. Hoje a luta era outra, contra inimigos invisíveis carunchando sua alma. A corrupção, a solidão do poder, a transitoriedade das pessoas, a empáfia da classe média, o verniz dos poderosos, a indigência dos puxa-sacos, a miséria da periferia, as invasões, a grilagem em terras públicas: síndrome da cidade adulterada, que expulsou os que a levantaram, estupro aos sonhos dos criadores – tudo isso o comovia e inquietava: Brasília aos quarenta anos, de rugas já feita, cuspiu os homens, babélica realidade, sodomizada pelas cópulas de suas cúpulas num tempo estranho em que tentava fugir de seus miasmas, de suas CPIs arquivadas, de seus propinodutos por onde sumiam a verba e a esperança.

Passou as mãos nos cabelos cor de prata, desceu-as pelas duas faces travestidas de dor – ó, como a (c)idade cravou-lhe estranhas esculturas em seu rosto –, roçou ainda os pêlos encanecidos do peito, expandiu os pulmões, e como se quisesse absorver o impossível, foi se repetindo em gestos desalinhados, em expressões compulsivas, como quem foge de algo muito grave, num ritual de desespero e desatino, estrupícios se cumprindo em sua vida. Em casa teria deixado a família (que família? – a velha Sinhana colecionando folhinhas do Sagrado Coração de Jesus e esperando a sorte grande que não vem? o Jairinho roendo as unhas? o cunhado chegando sábado para dormir o fim de semana e comer às suas custas? o vizinho crente impingindo-lhe as pechas de ímpio?) antes de anunciar seu desespero em praça pública, o tédio do emprego, um chega-pralá em tudo, um chute no azar. Vomitava a sensaboria burocrática das ações repetitivas, dos despachos sempre-os-mesmos, da burrice de alguns colegas satisfeitos com sua função gratificada, sem perceber a inutilidade social que nasce da subserviência. Não! O ricohete de um rotundo não! ressonava dentro dele, prestes a estourar, erupção vulcânica de anos de imposto comedimento, agora transformados em vindima alucinatória. Estava cansado da rotina, de ser reprodutor mal-remunerado de pareceres e expedientes redundantes na bovina e sem perspectiva ambiência funcional. A cidade administrativa: Washington desdentada; Londres na terceira idade. Tudo era uma prisão, um desencanto, uma escolha do destino, que lhe impunham amargo ritual ao longo dos anos, agora transferido para o território do desgosto íntimo, lá onde se concentram todas os recalques, cismas, frustrações, vinganças e autoflagelo espiritual.

A cidade não (o) tolerava mais. Um mútuo ressentimento parecia construir um muro de retórica antipatia, como uma força centrífuga dilatando o sofrimento e era preciso correr, gritar, mas tudo parecia com uma serpente a morder o próprio rabo. Bebeu ainda um pouco mais do ar quase rarefeito daquela hora, vizinha da noite, em que a decisão amadurecida só precisava encontrar a praça em que o golpe de misericórdia fosse a exortação mais consciente do acerto de contas. No horizonte, circundado por uma névoa seca (nessa época de baixa umidade do ar em Brasília, as partículas de poeira precipitam-se, formando um cinturão róseo-pardacento a envolver a cidade) ele infiltrava seus olhos, com a vontade de perder-se para nunca mais no infinito penumbroso. Feria-se com o mundo à sua volta, com a realidade pungente e tudo o mais em derredor não lhe apetecia. Os carros oficiais circulam imune ao seu tormento ambulante, cadáver antecipado. Já não dava conta de si, perdendo-se no emaranhado de outros automóveis que circulavam já, à farta, por aquelas bandas, confuso, dilacerado, ziguezagueando sem rumo, acompanhado de sua solidão hereditária. De um veículo chapa branca que passava, ele percebeu a vinheta de O Guarani, de Carlos Gomes abrindo a chatíssima Voz do Brasil. Dividia com o tempo presente, com os homens presentes, com a vida presente a sua pressa: horário em que nas repartições públicas, nos ministérios, nas autarquias e outros órgãos o funcionalismo voltava de mais um dia de serviço (quem sabe, a maioria não se sentia como ele: sem-lugar, assalariado, desidioso, apequenado pelas circunstâncias, habitante de um dos mil pombais iluminados que são os blocos residenciais iguaiszinhos espalhados pelas superquadras) e ele nem se dava conta de que na noite que acabava de chegar, o fluxo vertiginoso de faróis a empalidecer o asfalto refletia menos que sua dor íntima. A noite havia se inaugurado nele há mais de três décadas e só agora se deu conta do black-out. O homem que fugia. A terra dos cansaços. Do canibalismo funcional. Terreno movediço aquele, onde a satisfação durava menos que o desejo e o que lhe movia era o incompreensível, vindo do escuro e fundo universo de suas dúvidas. Teseu e Minotauro redivivos se digladiando. Sísifo se repetindo. O fígado comido pelo abutre renovando a sua dura e prometeica lida. A permanente contingência de labirinto e fossa. Condenação kafkiana em tribunal interior. Despenhadeiro psicológico tornando forte a frágil relação com o mundo. No fundo, a sepultura dos sonhos. Contemplar lá atrás o mundo latejando e ele convulso sobre campos desidratados, o feudo da solidão. Estava farto do homem politicamente encubado em si. Esses anos todos, teria pensado e não coube em si de tanta insatisfação nesse acordar (tardio?). Uma leitoa solta em plena cidade proibida. Idéias madurando na sua cabeça. A vida com algemas não tinha sentido. O tédio dos domingos chuvosos. Da macarronada e do frango assado comprado na padaria da 103 Sul. Do holerite magro todo dia cinco: odisséia financeira para suportar o mês. Do câncer que não veio. Da vida carimbada pelo diabo. Da extorsiva mediocridade. Da cooptante alienação. Só tive tempo de ouvir o grito surdo de um estopim metálico depois que Izolino embrenhouse derradeiro pelo cerrado em frente ao Palácio do Jaburu, já engolido pelo breu da noite sem testemunhas. Meu copo já estava vazio pela quarta vez e o sujeito que bebia ao meu lado desapareceu. Durante vários dias vasculhei os jornais e nada encontrei.


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PÁTRIA para Juliana Wosgraus “A ação do poeta só pode ser exercida sobre indivíduos e grupos. Talvez residam nessa imitação sua eficácia presente e sua futura fecundidade.” (Octávio Paz)

O cd CAMINHO DOS ENGENHOS traz a público o trabalho do compositor e intérprete Alexandre Florez. Com 10 músicas inéditas, apresenta um repertório fundamentado nas raízes da MPB, mas especificamente nos ritmos afro-brasileiros. Grande parte do conteúdo musical é fruto de pesquisa que toma por referência materiais recolhidos em áudio e imagem sobre as manifestações folclóricas das comunidades populares, além da convivência do compositor com poetas populares, payadores e repentistas. O título CAMINHO DOS ENGENHOS inclusive remete à peculiaridade visual de uma paisagem de uma realidade do interior do RS - Cachoeira do Sul - observada pelo compositor em sua infância.

Exílio: soberana pátria do poema, exílio, aspiramos precária paz neste país imaginário, exílio somos transeuntes de todas as pátrias, mas a poesia rega esta manhã, e restaura o menino camuflado no coração. (Nada somos sem memória: o esquecimento é sempre arbitrário). O mundo contemporâneo perdeu o encantamento com si mesmo: internalizamos nossos lutos, mas celebramos a vida - para refundar a utopia, e seremos trágicos, no sentido que atribuíam à palavra os antigos gregos, e escrevemos, assim amamos, o desvairado consumismo não é a nossa pátria, o Espírito é (também) nosso Reino: resistimos à diluição dos valores, e uma pátria amada - nova - aparece nesta estrada de pó e sonho.

Em 15 anos de carreira, Alexandre Florez construiu uma obra que resgata ritmos genuinamente brasileiros como batuque, coco, toada, samba-canção, numa conciliação entre o mote rítmico e literário nacional, uma maneira brasileira de contar histórias (prosa-poética) com leve influência da cultura portuguesa. A influência européia acrescentou lirismo às suas letras e melodias. Entre suas principais referências estão Bedeu, Rubens Santos, Paulo César Pinheiro, Clara Nunes, Chico Buarque, Lupicínio Rodrigues, Dorival Caymmi, Noel Rosa, Cartola, Adoniran Barbosa e Amália Rodrigues. No show de lançamento do seu primeiro CD, Alexandre Florez estará acompanhado de Mimo Ayres(bateria e percussão), Paulo Bracht(piano e teclados) e João Vicente Macedo(violão de 6 e 7 cordas), com iluminação de Maurício Moura e sonorização de Luciano Gallo, da Abrigo do Som. CAMINHO DOS ENGENHOS foi financiado pelo FUMPROARTE da Secretaria Municipal da Cultura e tem direção de produção de Inês Hübner e produção musical de Otávio Segala. Contatos: Sandra Alencar - (51) 9206 1342(Assessoria de Imprensa) Inês Hübner - (51) 30619053/ 98281949(Direção de Produção)

Emanuel Medeiros Vieira (Brasília, dezembro de 2002)

Leque da Alma Ninguém é de ninguém! Ninguém é igual a ninguém! Pois as contradições E a complexidade das relações humanas Estraçalham-se Na mediocridade da rotina cotidiana. Viver em rotina É desobedecer a rotina Porque rotina É o dilúvio dos modernos A ocupação original do horror da vida.

Isso é metafísica? Sei lá o que é metafísica! Será que é finda e vil como as tormentas? Poética e meiga como Gioconda? Estúpida e brusca como os deuses? Metafísica, velha estúpida e doente Inimiga da ciência cênica de belo traje.

Ita Arnold músico

Origens do Samba O samba é um sotaque brasileiro que se africanizou ou é um sotaque africano que se abrasileirou? A origem do samba é mesmo africana ou este é apenas um purismo de pesquisadores e folcloristas? A célula do samba é uma célula africana ajustada à forma musical do samba que se cristalizou naquilo que conhecemos hoje, ou isto é pura divagação? Partindo de textos escritos por diversos autores como Nei Lopes, Carlos Sandroni, Tinhorão, Camara Cascudo, Reginaldo Gil, Kazadi Wa Mucuna, Nketia, Tárik de Souza, Mário de Andrade e outros, o compositor e violonista Felipe Azevedo faz um breve intercurso reflexivo e questionador sobre estas perguntas na próxima edição do VAIA.

Estante A editora Scortecci comemorou 20 anos de trabalho dedicados a publicar autores inéditos ou não lançando a antologia de poesias, contos e crônicas - Tempo Definido. O livro reúne mais de 70 escritores de várias regiões do país e foi elaborado por João Scortecci, idealizador e fundador da editora. editora@scortecci.com.br

Show de Lançamento do CD de ALEXANDRE FLOREZ Data: 07 de abril de 2004 (4a. Feira) às 20h30min. Local: Teatro de Câmara(Rua da República 575) Ingresso: R$ 5,00 (Pacote : Ingresso + CD: R$ 15,00)

Escrita no século XIX por Anton Tchekhov, O Urso é uma comédia de costumes que fala de amor, competição, desejo e traição, abordando com humor e singeleza os traços da alma humana que permeiam as relações através dos tempos. Reclusa por devoção ao esposo, jovem viúva é surpreendida pela chegada de estranho disposto a cobrar dívida do falecido. A impossibilidade de um acerto de contas imediato desencadeia um fervoroso embate, despertando em ambos fulminante paixão. A encenação do Grupo dos Cinco, com Elison Couto, Elaine Regina, Patrícia Soso, Sandra Alencar e Simone Telecchi e direção de Deborah Finocchiaro explora recursos de diferentes linguagens, combinando imagens realistas com momentos de farsa, melodrama e desenho animado. Reforçando o caráter atemporal da trama, a trilha sonora montada por Edinho Espíndola e Marcelo Figueiredo é composta de clássicos de Bethoven e Vivaldi, arranjados com percussão/samplers.

Foto: Sandro Bustamante

O tempo passa A vida canta O riso chora A noite branda. Clara calma... Natural como a alma Estás a ouvir as vozes do além Que a janela do tempo É pintar o destino dos poetas É erguer o sentido das canções É fazer dos filósofos O riso dos contentes. É rir como os doidos Que tem chorado muito. Pois quem chora Sente o sentido do choro Por isso não me importo pelos que choram Não me importo Se os loucos choram pela felicidade Não me importo Se a divina natureza chora Não me importo Se a mentira és tu. O que sinto É o contrário da mentira E quando se sente, se chora Como o rio que desce o cimo dos montes. E nesse horizonte de sentir e mentir A mentira traiu o contrário da verdade E o leque da alma Comove-se: Como a natureza no limar dos dentes.

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O Urso está indicado ao Prêmio Açorianos da SMC nas categorias de Melhor Espetáculo,Melhor Direção, Melhor Ator (Elison Couto) e Melhor Atriz(Simone Telecchi). De 16 de abril a 16 de maio - Sextas e Sábados - 21 horas / Domingos - 20h - Sala Álvaro Moreyra - Centro Municipal de Cultura (Av. Érico Veríssimo, 307)

Vôo Independente Poemas e Prosas é a segunda coletânea publicada pela Associação Gaúcha dos Escritores Independentes. São 47 poetas e prosadores do RS ou radicados no estado que, nesta antologia, lançam seus trabalhos pela AGEI (051-3023. 3027). O livro é de 2003.

Há 4 anos, um grupo de poetas cariocas encontrouse para um sarau literário na livraria Ponte de Tábuas. O evento virou tradição e já produziu duas antologias. A segunda, publicada em 2004 pela editora Ibis Libris, Ponte de Versos - uma antologia carioca, organizada por Ricardo Muniz de Ruiz e Thereza Christina Rocque da Motta, tem participação, entre outros, dos poetas Astrid Cabral, Geraldo Carneiro, Mano Melo, Marina Colasanti, Renata Pallotini e Rosália Milsztajn.


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Meu canto, o trabalho. Sei do que posso colher ao talho. Por que o poço se falho? Sei da importância da seiva na folha. E sei de minha faina ainda que falhe. Poema e braço (de)pendem da mesma razão. Artemio Zanon “Tempo de Execução” ed. Garapuvu/SC

Caso de amor

surtos

POÉTICOS

Vaso e flor parecemos tu e eu. Levas com amor teu giniceu pelo odor. Devolvo feliz meu androceu pela raiz.

quanta nudez desconhecida mas aquele que abraça também trabalha que imprima o prefácio dessa história e exponha um método de cores alguns obstáculos da própria paixão a mulher de maior eficácia passa a verdade para muitas coisas radicais Vênus opulenta contrária à diferenciação ela singulariza o irracional por isso deves a promessa de não voar (cair do alto não quer dizer voar) é pouca a vida contente e o que temos de ver basta inventar.

Sinto tocar na cavidade teu desabrochar. Provoca secura e umidade na minha fundura.

C. RONALD “Os sempre” - Bernúcia Editora, 2003

Matas a sede colando o floema na minha parede. Suado eu cedo ao teu xilema todo segredo.

Da Insignificância Ontológica

Não tenho licença poética para criar verbos. Tenho autorização dos anjos e ordens dos céus. Deve ser por isto que desenho utopias como descachorrar as casas que cercam feras com fortes muralhas para proteger o patrimônio. Rejeito o argumento cínico da burguesia bem falante, que subiu com sacrifício. Abomino as armas vestidas com a capa suave dos que “precisam se defender”. Meu repúdio aos armados que vomitam a arrogância da proteção hipócrita dos bens adquiridos. Meu desprezo à violência passiva que guarda a maldade embrulhada em lenços cor-de-rosa. Meu louvor aos desarmados, que inventam expressões como enternurar o mundo e desfrutam da simplicidade dos puros de coração.

Magali Vidal Domingues Cachoeira do Sul-RS

indigência e riqueza o real (julgaram) é só o que vem ter à palavra há muito mais silêncio e muito mais silêncio há muito mais real e muito mais real o verso existe para impedir o poeta de falar

Aricy Curvello curvello.vix@terra.com.br

Acordo e a lucidez é quase tangível. Lá fora o sol milagroso. Cá dentro a bruma arde nos olhos, nos poros. Me canso e me esqueço de todos os planos os risos os desejos os sonhos tudo coberto de poeira nalgum subsolo sem alçapão. Os gestos e prazeres profanos alçados a esfera do sagrado, restos de alguma felicidade anônima e passageira. Ínfima. Estou falando de nada, ninguém. O ruído de um vidro quebrado. Nem os cacos. Finita, curta, aguda. A história como a personagem, pela metade. De mim não se pode dizer. Não deixo rastro em nenhuma realidade. Um vazio. A marca de um quadro retirado da parede coberta pela folhagem. Termino, desapareço. Sem horizonte. Sem recomeço.

Às vezes botamos água no meio quando choramos. São momentos de dor ter o vaso cheio afogando sua flor. Temos um caso jamais revelado no fundo do vaso. Em silêncio fizemos todo pecado e nada sabemos.

Vilmar Daufenbach vend1715@cedro.ind.br

Luxúria Dissolvo-me em ti instantâneo relâmpago em busca de estrelas e orifícios onde posso refletir teu sexo em chamas

Laurene Veras

Haroldo Ferreira

Do infinito ciclo Os versos vêm ao mundo Nos ensinam E até mesmo os ocultos Que correm nas veias Do poeta alternativo Acelera o processo inconsciente Da humanidade Mas eles aos poucos Vão se terminando em nós Lançados ao vendaval Fica o silêncio Que transmite a paz E mesmo neste instante Quando percebo ser imortal Abre-se a brecha Para no outro lado do mundo Alguém dizer amor Com a certeza de recriar Algo novo para nós

Serginho Vianna serginhovianna@yahoo.com.br

genesedofim a lucidez métrica que apalpa o vazio constrói essa teia de emaranhados sutis: arte Daniela Payeras

VIOLÊNCIA CAMUFLADA

justifico tantos esforços - se são tantos, se são esforços tolos; na verdade não os sei na contemplação de um horizonte só enegrecido por minhas têmporas, tão barroca e moderna (essa contemplação terrorista), a rusticidade da ruga embebida de suores, um som alto no amplificador, a pirotecnia febril do assombro, coca-cola e riso calculado na dialética do “low fi”.

Escobar Franelas “hardrockcoreNroll”, Scortecci, 1998


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“AH! SE A JUVENTUDE QUE ESSA BRISA

CANTA/ FICASSE AQUI COMIGO MAIS UM POUCO / EU PODERIA ESQUECER A DOR/ DE SER TÃO SÓ/ PRA SER UM SONHO”. Suavemente, JOHNNY ALF, na virtuosidade da experiência que possibilita o domínio total do som que produz, entoou “Eu e a brisa”. Do alto dos seus bem vividos 74 anos, o mestre da música brasileira, um dos pais da Bossa Nova, encantou-nos. Era uma tarde morruda como tantas por aqui, em qualquer estação, quando ele magistralmente nos fascinou. A mágica de Johnny brotava dos acordes ritmados num piano que se descobria cheio de balanço, swing e sutilezas... Nuanças às vezes diáfanas duma nota a outra. Pausas e dissonâncias perfeitamente encaixadas. Melodias leves e aptas ao exercício do improviso à maneira deliciosa dos melhores músicos do jazz. O jazzband batuca, diria o inesquecível Manuel Bandeira. E nas mãos de Johnny o jazz band misturado com o samba vira bossa. Nova, antiga. Que importa? Apenas a divina música. Divina por sua beleza. Sua delicadeza e força substancial. E lá estávamos nós, assistindo ao memorável show apresentado no Santander Cultural. Ao final, emocionados, nos aproximamos do mestre Johnny Alf, receosos de que aos 74 anos ele não pudesse, por motivos físicos, nos conceder uma breve entrevista. Que não se revelou tão breve assim. Disposto e bem-humorado, o gentil mestre nos concedeu a honra de falar-lhe e ouvílo. Simpático e paciente, respondeu a todas as perguntas propostas por Fernando Ramos, enquanto eu fotografava. Falando pausadamente, Johnny não abusou das palavras. Na verdade, foi até econômico. E mesmo sucinto, foi preciso no que quis dizer. Fãs confessos do seu gênio, só temos a lhe agradecer a honra da entrevista. Alexandre Florez

O sr. lembra como foi que compôs algumas músicas, “Rapaz de bem”, “Olhos negros”... Não lembro. É muita música. E faz muito tempo também. “Eu e a brisa” foi composta para um casal de amigos meus, eles eram noivos, iam se casar. E ainda têm muitas composições inéditas? Têm sim. Muita coisa não gravada ainda. E agora pra gravar está muito difícil. O esquema das gravadoras mudou, eles querem outro tipo de música. E a nossa música, hoje, é muito difícil de gravar. Então nosso trabalho inédito vai ser muito difícil de gravar. E o sr. considera essencial registrar em disco essas músicas inéditas? Um artista como o sr. , que já tem uma carreira consagrada e um trabalho reconhecido e respeitado precisa necessariamente gravar em disco suas composições? Ou sua música está além disso? Eu pensar em disco agora... Pra mim é difícil, porque depois de certo tempo as gravadoras dão preferência a outros trabalhos. Mas o que salva a gente são esses trabalhos assim com platéia, como esta de hoje aqui. É o que realmente “contorna” o nosso sucesso. Um trabalho com uma platéia que se entrose com a gente é muito bom. Isso aconteceu hoje.

JOHNNY ALF fotos SETE PELES

ENTREVISTA

O sr. fez uma participação num show da Joyce lá no Japão há pouco tempo. Como é que foi?

O sr. fechou o show de hoje, empolgado e emocionado, tocando duas músicas do Tom,“Desafinado” e “Corcovado”. O sr. tem o desejo de gravar um disco só com músicas do Tom, assim como fez com a obra do Noel Rosa, em disco produzido pelo Almir Chediak e com arranjos do Leandro Braga? É, exato. O Tom tem muita coisa bonita e se tiver uma chance eu vou gravar sim. Quem gravou há pouco um disco só com músicas dele foi o Zé Renato. Tom é um grande compositor. Eu convivi com ele, o conheci pessoalmente, fui amigo dele. Naquela época do show de Bossa Nova, em Nova York, em 1962, no Carnegie Hall, o sr. já era amigo dele, né? Eu já estava lá em São Paulo, estava perdido lá. Aí eu não fui. Aconteceu que não deu tempo... Quando eu falei antes no Custódio Mesquita, o sr. se empolgou. Ele foi uma referência ou uma influência para a sua música? O sr. gostava e curtia muito as músicas dele, né?

Fiz, sim. A Joyce já tem uma carreira lá no Japão há mais de dez anos. E todo ano ela leva um convidado, o mais recente fui eu. Antes, foram Dori Caymmi, João Donato... O Donato fez show aqui mesmo no Santander Cultural ano passado, uma bonita apresentação. Ele que também não vem muito pra cá... É, a gente não tem muita chance de vir pra cá, mas a gente se interessa, porque, afinal de contas, sabe que vocês gostam do nosso trabalho. O sr. também fez show com a Elis Regina... Fiz. Isso foi num programa de televisão da TV Record. No CD que mostra a gravação do programa da TV Cultura produzido pelo Fernando Faro, o “Ensaio”, o sr. fala de como foi o primeiro contato com o piano. Foi um presente que a sua madrinha lhe deu, né? Se o sr. passasse na prova da escola ganhava o piano, foi isso mesmo? É, foi mais ou menos isso. A minha madrinha me deu um piano. Eu então estudei clássico.

Eu tocava quando estudava piano, comprava partituras de música popular, e tocava todas as músicas dele. A gente também gosta de Custódio Mesquita. Com quarteto a gente fazia as músicas dele. No meu primeiro disco, gravei “Feitiçaria”, que é dele.

E era bom de tocar naquela época?

O sr. gravou Alcyr Pires Vermelho, gravou Benedito Lacerda...

Ah, era maravilhoso! Era mais tranqüilo fazer música, era mais tranqüilo o ambiente...

Sim, exato. Gravei “Despedida de Mangueira”, do Benedito.

Por essa época que o sr. trabalhou no Beco das Garrafas?

Que ficou muito bonita...

Sim, lá eu conheci muita gente. Conheci Jorge Ben, Elis, Maysa...Todo mundo ia lá.

Eu estive agora na Europa e dois músicos da Alemanha se interessaram em levar a mim e a Alaíde Costa, com o trabalho deles, para promover. Então puseram a gente para alçar a turnê do show. E aí, eu cantava “Despedida de Mangueira”, e eles gostavam. Eu cantava também “Voz do Morro”, a Alaíde cantava “Alvorada”, do Cartola. Eles faziam a parte instrumental, com músicas deles, e. a gente cobria com esse repertório.

E o sr. começou a trabalhar profissionalmente com música em que circunstância? Entrei na música por vontade de tocar mesmo.

O João Donato era seu amigo de lá? Era sim. O próprio João Gilberto aparecia lá. E o sr. lembra de alguma história interessante dessa época, alguma coisa do João Gilberto?

O senhor gostou do público daqui de Porto Alegre?

Ah, não me lembro... Em 50, isso. Não lembro agora...É muito tempo...

Gostei. Muito, muito. Gostei muito.

Mas o sr. chegou a tocar junto com o João ?

Certo momento do show lembrava muito - pela literatura sobre música que a gente acompanha - o clima dos anos 40/50, da atmosfera das boates... Os“cubos de trevas”, como dizia o Tom Jobim.

A gente acabava fazendo coisas juntos, porque todo mundo tocava lá. Saía um, entrava outro, . então a gente se cruzava.

Porque naturalmente todo mundo é daquele tempo, né? (Risos) Se bem que lá no Rio e em São Paulo tem uma garotada que gosta. Uma garotada que está estudando violão, piano e se interessa pelo nosso trabalho.

A Mallandro Record’s “malandreou”? Não saiu o CD que o sr. gravou em Nova York? Não chegou a sair. Foi gravado lá e era para o mercado de Nova York.

E a Bossa Nova surgiu nesse clima, naquela época? É, num grupo de jovens, em boates e apartamentos.

O nome da gravadora não ajudava muito.(Risos) É verdade.


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“Vive o teu soluço de amor mas o teu canto é na realidade consolo e contentamento.” Vinícius de Moraes

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canto mavioso, solene de DONA IVONE LARA talvez seja produto de lembranças da meninota apreciadora dos gorjeios dum pássaro. Quem sabe? Não seja o som de resposta aos chamados irresistíveis das corimas, rodas de jongo, samba de terreiro. Provável que seja a continuação inevitável duma herança cultural e familiar. Filha de músicos, sobrinha, esposa e nora de sambistas, não haveria como ignorar o chamado. Seja por inspiração do seu tiê-sangue, seja por obra de genes ancestrais influenciando sabiamente todos os seus companheiros de samba. Gente distinta e honrada que desde sempre vive o cotidiano do samba, defendendo o verde e branco da sua querida Império Serrano.

ENTREVISTA

Nascida para sonhar, cantar e espalhar o amor

É que tem muita gente que diz que faz samba. Mas você vai ouvir e vê que tá faltando alguma coisa, compreendeu? E diz que faz samba mas não faz. Às vezes, tem facilidade de escrever, mas quando chega na hora da melodia, que você sinta o samba mesmo, você não sente, compreendeu? E aí é isso que eu tava dizendo a vocês: não pode inventar. Tem que ter aquele ritmo, e que chame a pessoa...

Alexandre Florez

O espírito do samba...

Músico e Escritor Participaram da entrevista Giovanni Mesquita, Bira Azevedo e

Claro, justamente isso. A pessoa tem que sentir, é isso que eu falo.

Fernando Ramos.

E esse espírito do samba já veio com a sra. ou a sra. aprendeu com o tempo?

E o samba, Dona Ivone, como é que está hoje?

A sra. conhece o interesse que nós gaúchos temos pelo samba? De repente, a sra. chega aqui e o teatro está lotado. Foi uma surpresa?

Isso já vem comigo. Eu nasci e me criei no meio de sambistas. Meus primos, meu pai, minha mãe, todo mundo era sambista. Então, eu me criei naquele meio, eu já tenho isso comigo, compreendeu?

É. Meu tio compunha e de vez em quando ele fazia uma reunião em casa e gostava de ir logo apresentando a novidade que estava fazendo. Então, nessas reuniões ele me chamava pra acompanhá-lo com o cavaquinho o choro novo que ele tinha feito. E às vezes os colegas dele estavam ratiando, não estavam sabendo acompanhar, aí ele dizia vocês querem ver uma coisa, ver como é que é? Aí ele dizia, Ivone, vem cá. Eu ia e dobrava, ficava toda prosa. E os colegas perguntavam pra ele como é que pode, como ela sabe? E ele dizia, é que eu ensinei ela, olha aí, sai com qualquer coisa que ela acompanha. Mas eu não podia tocar samba. E nessa época a sra. já compunha? Já tinha a necessidade de criar? Já. Eu fazia, já compunha, escondido, mas já compunha. Depois eu ia compondo com os meus primos. E o samba é mesmo uma das maiores características do brasileiro? É. É isso mesmo. O brasileiro tem muita criatividade. Não só a criatividade nos versos, mas também na melodia. O brasileiro é rico em melodia.

O samba é uma forma de esperança, um jeito que o brasileiro tem de dobrar as coisas ruins da vida? Ôpa, é sim. É no samba que o brasileiro se mostra mesmo? É sim, o samba é coisa linda mesmo.

fotos: Kátia Ozório

Eu adoro o samba. Pra mim, em primeiro lugar, está o samba. Tem uma coisa: adoro, demais, demais, a quem escreve e quem canta o samba como ele é, sem aumentar e sem inventar. Porque, nós, graças a deus, temos uma coisa que eu acho que é a maior riqueza do Brasil, que é o samba. Porque quando a gente chega, por exemplo, lá na Europa e ouve falar da nossa música, isso nos enaltece muito. Então, pra mim, não tem outra coisa, em primeiro lugar é o samba. E o nosso samba levanta até defunto.

Meu primo me ensinou. E também tinha um tio que era chorão. Ele compunha e ia me ensinando. Já era no tempo da escola de samba Prazer da Serrinha?

Antes a sra. falou no samba sem inventar e sem aumentar. Explica um pouco isso pra gente.

E quanto prazer sentimos ouvindo o luxuoso piano de Leandro Braga acompanhando a voz lírica desta diva do samba! E ela, como se fosse uma Oxum plena de meiguice, nos conduziu aos sambas. Podiam-se ouvir de entremeio ecos de lundus, sembas e jongos. Caxambus e doces acalantos entoados com sentimento à flor da pele. Vistosa e linda pele a recobrir sua memória que se traduz em música e bênção. Bálsamo para nós, aconchegados em seu regaço para descansar da fealdade e sonhar as delícias de um mundo melhor. Mais belo e menos triste. Aonde mesmo a tristeza sem remédio poderia ser suavizada. Oh, grande mãe do samba, obrigado. Saravá!

E quem foi que ensinou cavaquinho pra sra?

Uma coisa que a sua música tem, como a música de Cartola e outros sambistas de sua geração, é a elegância nos versos, na linguagem, versos mais estilizados e leves... É isso. Não ofende tanto, né? Não é isso? E outra coisa: tem rapazes do pagode aí que massacram a mulher, massacram tudo. E nós não, temos aquela delicadeza de elogiar. E quando não se elogia, a a gente não massacra.

Pra mim, foi uma surpresa ver o teatro cheio. Aliás, eu tenho muitos amigos aqui, desde o Projeto Pixinguinha, vim várias vezes aqui, e, graças a deus, todas as vezes eu tive um público ótimo, muito bom. De maneira que eu já tinha dito pra minha empresária que o teatro poderia não ficar lotado, mas muita gente viria. Isso eu tinha certeza, porque eu conheço muito gaúcho sambista. E gaúcho gosta de samba, viu? Então, quando eu entrei e vi esse público todo, pra mim estava melhor ainda.

O romantismo também é muito presente na sua música. O romantismo e a crítica com classe. Justamente isso.

Como é este sentimento de palco pra sra? Isso que aconteceu hoje. A sra. entrou dançando e cantando, emocionando-se e emocionando as pessoas. Como é que foi? Eu me senti em casa. E outra coisa: além de me sentir em casa, com vontade de cantar, de botar pra fora tudo quanto eu sabia fazer. Porque eu senti uma troca de energia muito grande, troca de energia de vocês para comigo. Então, eu me senti à vontade. Não tive constrangimento nenhum. E se tivesse que virar cambalhota, eu virava! Isso a sra. sabe o que é? Isso é o que o Giovanni falou aqui pra nós depois do show, citando um verso duma música sua: é o amor que a sra. leva pra onde vai. A sra. nos trouxe uma grande alegria.

E o samba “Tiê Tiê” a sra. compôs quando era bem menina, né? Sim, bem menina. Eu ganhei o passarinho tiê, e aí o que eu fiz pra ele? Eu logo fiz um samba pra ele, uns versinhos pra ele. Eu tinha 12 anos na época. E nessa época a sra. estudava num colégio interno, não é? Num colégio interno. E não podia cantar samba, só podia cantar músicas sacras, hinos, mas eu fazia meus sambas. E a sra. já mandava ver no cavaquinho, né?

Então, é isso, essa troca de energia de vocês para comigo. Me senti à vontade mesmo. Mas só que tinha horário pra acabar, senão eu tava cantando até agora.

Ôpa! Quando eu chegava em casa, pegava o cavaquinho e já viu...

Conclui na contracapa >>>


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SNEGE algum.

NELSON HOFFMANN autor de “Este Mundo é Pequeno” n.hoffmann@via-rs.net

TRILHA ESSE GOSTO DE Esse gosto de caos na boca Todas as manhãs O desgosto de palavras Não gosto mais Esse gosto Esse desgaste Vícios que ainda não são poesia Todas as manhãs Esse hospício de letras E o poema não existe Esse gosto de caos na boca Seiva desletrada Fel Silêncio que não cala E não sabe dizer Todas as manhãs

BOM Acordei com o amanhecer Isso é bom Poderia não ter amanhecido Mas eu vi todo o azul possível de ver o milagre do sol minha íris contraindo negramente e o verde aumentando atento Acordei como poderia não ter acordado e ela a vida adormecida no meu mistério tornaria incognoscível esse dia bom

QUELÓIDE Tem coisas que não voltam Mesmo esperando Elas não voltam

A quem espero se trilho sozinha sem mim fico só quando espero alguém que trilha seu próprio caminho sem mim

ALFABETO Onde estão Os beijos que comeram Todas as palavras? Onde estão teus lábios A me pronunciar mulher E me criar no vôo De tuas costelas quebradas? Onde estás Não sou ainda Onde estou sem pecado e pura Sou poema e fúria Tempo em estado bruto

FOLHAGEM Descanso os olhos sobre as folhas miúdas que tremem piscam minhas pálpebras o vento me envolve Existo inacreditavelmente entre o abrir e o fechar Página folheada de um livro Vivo

CLICK Há esse instante em mim E me salva Das contas e números E do Apocalipse Há esse instante mágico E me salva Sintonizo com o poema Ele está ali na vitrine da loja (embora venda sapatos)

A espera não é suficiente Nem força de atração A espera não é vazia também A espera tece o tempo das coisas que se findam

“Feliz e forte em si mesmo amor é primo da morte e da morte vencedor por mais que o matem (e matam) a cada instante de amor”

E a esperança Fantasma ou lembrança Tece o remendo A infinita cicatriz

Há um instante em mim E estou salva Estou céu e sã Eu e Drummond

A POESIA DE CADA DIA

Foi meu primeiro contato, minha nota de conhecimento de Jamil Snege. Nunca tinha ouvido falar do autor nem sabia de seu valor. Só agora, já virado o milênio, consegui aproximar-me, catar alguma informação maior, trocar até algum recado. Foi pouco, mas tem o valor da eternidade. Quem nos aproximou foi Adélia Maria Woellner. Por um acaso. Falei a ela da simpatia que me causava a iniciativa da distribuição gratuita dos livretes “Poemas para orar e meditar” e “Poemas para amar”, ambos de sua lavra – a publicação era um patrocínio cultural da Associação dos Condomínios Garantidos do Brasil. No agradecimento, mencionou-me ela o nome de Jamil Snege, como alguém que também participava do programa, com o livrete “Senhor”. - Jamil Snege?! – exclamei. - Por quL? O que houve? - Tem o endereço? Ela passou-me o endereço. Escrevi para Jamil Snege. Em troca, veiome o livro “Os Verões da Grande Leitoa Branca”. Livro bonito, com dedicatória, autógrafo e data: Ctba, 20/8/01. Mandei-lhe livro meu, carta. Nossa troca de informações foi pouca. Havia sempre uma espécie de aura, um quê de mistério. Em 2002, quando da Feira do Livro de Porto Alegre, não sei como foi mas relampagueou a notícia: Jamil Snege não viria à Feira por estar em tratamento de quimioterapia. Foi um clarão, para mim. De luz, é verdade, eu entendi. Mas sofri mais, eu senti dor. Em maio de 2003, a notícia definitiva: Jamil Snege falecera no dia 16, de câncer. Reli “Os Vert es da Grande Leitoa Branca”. É difícil encontrar algum livro de Jamil Snege por aí. Da obra de Snege destacam-se: “Tempo Sujo”, “A Mulher Aranha”, “Ficção Onívora”, “O Jardim, a Tempestade”, “Como eu Se Fiz por Si Mesmo”, “Viver é Prejudicial B Saúde” e este “Os Verões da Grande Leitoa Branca”. “Os Verões da Grande Leitoa Branca” é um livro de contos. Bem adverte Miguel Sanches Neto, na orelha da capa, que não há neles uma unidade temática e estilística. E melhor ainda esclarece: Quando afirmo que o livro não tem uma unidade explícita, não quero dizer que lhe falte uma lógica própria. Jamil Snege tem sua própria lógica, que é única, sua própria e peculiar visão de mundo. Isto me foi prenunciado quando eu li que pagava pra não ter que dar satisfação. Vinte e dois contos compõem o livro. Em todos está o ser humano inteiro, cômico e trágico. Visto com olhos de ternura e uma ponta de ironia. O humano da infância e da velhice, a vida a dois, a cidade dos tempos que se foram, a violL ncia, o sexo, o dinheiro, a invasão cultural americana e a alienação que daí nos cerca por todos os lados. O livro cala fundo na alma da gente, cada texto, cada parágrafo. Cada linha desvela a condição humana em toques de lirismo, comédia e absurdidade. Cada palavra. Os contos de Jamil Snege são finos cortes no cotidiano de todos nós. O que ajuda na perfeição do corte é a extrema objetividade da linguagem. Esta é articulada sem rodeios nem subterfúgios, não se preocupa com imagens ou figuras. Vai direto ao assunto. Conta o máximo com o mínimo. Mostra o cerne. A fantasia, o sonho, o fantástico também é parte do nosso humano. Em Jamil Snege, o corriqueiro mistura-se com o absurdo, o sonho e a realidade confundem-se, melhor, fundem-se de tal modo que o personagem chega a ficar sem saber ao certo se sou o que sonha ou o que é sonhado. Essa transposição de um plano a outro, ou essa fusão entre real e irreal, entre comum e insólito, acontece de maneira tão natural que a gente nem estranha, conclui que é assim. E é assim mesmo porque é humano. Nós somos todos humanos. Poucas vezes encontrei tamanha humanidade em linguagem tão bem lavrada quanto nos contos de Jamil Snege. Tentei aproximações com outros autores e não achei. A lembrança que mais me cutucou foi a dos contos de Oswaldo França Júnior, em seu “As Laranjas Iguais”. Este também um autor de extrema humanidade, com textos impregnados de realidade e fantasia, escritos em palavra enxuta e funcional, pairando sempre, em tudo, um doce lirismo de compaixão e compreensão diante da miséria e da grandeza humanas. Os dois, autores ímpares. E então, naquela vez, quando li, em “Nicolau”, a afirmação de Snege, eu tinha sentido, senti, um estremeção de pasmo e assombro. Num meio em que a brilhatura era, e é, o fim de muitos, quase todos, eu estava encontrando alguém que se traçava a si mesmo, em autenticidade. Um Escritor! Que o tempo só confirmou e engrandeceu. Eterniza.

o longo de sua trajetória, que teve início com “No azul”(1991), depois seguiu com a publicação de “Itgadal, memória dos ausentes” (1997), chegando até “Luminosidades” (1999), a poeta carioca Rosália Milsztajn vem adensando e depurando seu fazer poético. Com “Aqui dentro de mim”, quarto livro agora publicado, ela chega ao ponto mais alto e lírico de sua criação poética. Rosália fez seus primeiros poemas já sendo uma mulher madura de mais de trinta anos, num momento de sua vida em que a procura por uma forma de expressão artística confluiu inexoravelmente para a sua memória afetiva e existencial. A partir da memória revela-se a poeta, e a poesia que estava entranhada e latente em seu ser emergiu. O poema “No azul” evoca as vivências de sua infância, poetiza a figura marcante de sua mãe e, assim como em outros poemas do livro homônimo, focaliza seu olhar sobre a cidade do Rio de Janeiro, desde Madureira, comovendo-se com suas belezas, mazelas e tipos humanos. Em “Itgadal, memória dos ausentes” Rosália emite um dolorido canto de dor e luto, em que a condição judaica expressa-se mais fortemente. Com “Luminosidades” ela projeta as luzes do erotismo e das desilusões e perdas amorosas, os flashes de instantâneos bem humorados, de versos e hai kais espirituosos, e os neons de acentuado lirismo e densidade poética. A poesia de Rosália é feita com a intensidade dos sentimentos e experiências de vida, brota do âmago de sua memória pessoal, sem deixar de dialogar com poetas que lhe são caros, como Rilke, Pessoa, Quintana, Cecília e Drummond. Os poemas desta página são do livro “Aqui dentro de mim” (ed. Aeroplano/RJ - aeroplano@aeroplanoeditora.com.br), publicado em 2003. Contato com a poeta: rosaliam@ig.com.br.

Fernando Ramos

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m algum tempo, publicou-se no Paraná uma excelente revista, ou jornal,de nome “Nicolau”. Nessa revista, ou jornal, um dia saiu uma reportagem, ou entrevista, com Jamil Snege. A certa altura, Jamil Snege disse mais ou menos o seguinte: - Eu publico e pago do meu bolso. Assim não devo satisfação a editor

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A construção do silêncio “Escutei ilusões de ótica. Enxerguei sons!” entania. Nascemos acompanhados de barulho. Antes, ainda no ventre, ouvimos não somente os batimentos cardíacos da mãe, mas também todos os ruídos do funcionamento da mecânica corporal. A filosofia, as ciências acústicas e até mesmo a teologia com seus ecos seculares dos interiores das belas naves das igrejas do mundo, adentraram no estudo do silL ncio, ou na ilusão de sua relativa existência. Jonh Cage, no início do século XX, realizou investigaçt es sobre o silL ncio, concluindo que este é tão importante quanto o som, pois o silêncio seria o elo de ligação entre os sons, principalmente quando estamos a tratar de sons ordenados, isto é, quando o homem passa a produzir música. Demonstrou como o silêncio é parte integrante nas obras musicais desde a Idade Média no mundo ocidental. Desconheço se realizou pesquisas sobre música oriental, mas certamente apontou a importância do estudo do silêncio para quem deseja criar ou ordenar sons. Cage, ao perceber que o silêncio é uma abstração do homem e que de fato inexiste na biosfera, colocou em prática um experimento extravagante. Trancouse em uma câmara hermeticamente fechada e à prova de som. Ouviu então os ruídos de sua circulação sanguínea, o caminhar dos seus sucos digestivos e sua afobada respiração. O homem está sempre acompanhado de sons. Como sina e sinos. Fugindo do terreno pseudocientífico que (quase) tudo precisa comprovar, podemos afirmar que não há nada mais ruidoso que nossos próprios pensamentos. Pensar faz barulho. Os sonhos também fazem barulho. Todos conhecemos a trilha sonora do ambiente onírico. Henry Steinway, o carpinteiro mais famoso da música, tinha de conviver com serrotes a rosnar, martelos a piar e todos os ruídos de uma marcenaria geral. Ao final de um ano, que era o tempo necessário para a fabricação de um piano, havia uma obra de arte, como sentenciou a pianista Martha Argerich: “as veces um steinway toca mejor que el pianista”. Existe, aí, uma espécie de autonomia da música, uma “onipresença universal” de que não podemos escapar. Sabe-se que o som musical é aquele proveniente de uma vibração periódica e matemática, que se caracteriza pela altura, pela intensidade, pelo timbre e duração. Estes atributos da música que se propagam pelo ar, proporcionam a qualquer ouvido, absoluto ou não, discernir música de rumores desarranjados.

Moebius

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Contudo, não sabemos se o homem conseguiria “fabricar o silêncio absoluto” na biosfera terrestre. Em um ramo bem mais caviloso do conhecimento humano, na Poesia, criar silêncios absolutos é uma tarefa de relativa facilidade. Foi necessário compartilhar com os pacienciosos leitores estas informaçt es preliminares, para um entendimento satisfatório do que virá a seguir. Ontem estive eu – um homem cego e, por este malogrado motivo, mais sensível aos sons naturais, artificiais e às melodias – frente a frente com o silêncio absoluto. Talvez tenha perdido algum detalhe mais luminoso durante o passeio que realizei com minha guia no dia de ontem. Eis o relato deste insólito encontro: Eu casei com minha guia, não somente pelo sentir do melado da palma de sua mão a agarrar meu braço. Não. A atração foi por sua voz. O tom de voz característico dos guias de cegos. Uma voz límpida, altiva, eficaz. Nas falas de guias, não existe espaço para paralelismos e ambigüidades. O receptor das ordens, por ser cego de visão, deve seguir as instruções por óbvia inferioridade sensorial. Ontem, minha guia andava muda ao meu lado, ela apenas relembrava alguns pensamentos durante nosso percurso até a praça. Sentamos em um banco e ela declarou: O que o bem faz, é guardar lugar para o mal. A dura voz de tenente de minha adorável esposa impossibilitava a intromissão de qualquer réplica, restando-me ouvir a praça lotada com o ranger de ferros nos balanços, gritos infantis e filhotes de cães a saltar em joelhos desavisados. Bem em frente ao banco onde estávamos, algumas crianças brincavam de cabra-cega e uma menina encarregou-se de convidar-me a participar daquela brincadeira táctil. Minha guia-esposa estava absorta em suas constatações e eu aceitei aquele ingênuo convite. Antes que amarrassem a venda em meus olhos, eu tateei ansioso o ar.

Fantasiei que a venda preta sobre meus olhos me transformaria em alguém que perderia a faculdade de enxergar somente por alguns instantes, me libertando de minha situação de cego perene. Na cena, sobre o gramado e misturado às crianças, eu era um cego redundante, patético, com uma venda a cobrir meus olhos inférteis. Um cego tolo e claudicante, com os braços esticados a procurar entre infantes gritinhos, os jovens que escapavam por todos os lados. Foi quando a menina com lavanda, a mesma que me fez o convite para brincar, se deixou agarrar. Ajoelhei com dificuldade sobre a grama e a abracei. Em meu ouvido semicoberto pela faixa amarrada, a pequena sussurrou: Mas acontece de às vezes, o amor chegar primeiro. A menina retirou o tecido negro que cobria meus olhos vazados e beijou minha face. Minha esposa e guia, como despertasse de um sono, agarrou meu braço com sua mão suada e com urgência seguimos para casa, como se ela houvesse lembrado de terminar uma impostergável tarefa. Cego, eu obedeci. Minha atenciosa guia auxilioume no banho e serviu minha refeição. Realizou todas estas tarefas sem pronunciar palavra alguma. Então, o ocaso do amor, as palavras de minha guia-esposa a furar por dentro meu ouvido: Não é então o bem, um covarde? Ainda mais nocivo que o mal, já que se presta a papel tão desprezível, o de garantir porto seguro a inconcebíveis atos humanos. Seja ou não seja, chegando antes o amor, este logo perecerá, restando somente o nada, uma escuridão mais atroz que o breu a que estás acostumado. O amor é o intercalado, o coadjuvante, o provisório, o covarde a zombar de ti. A chuva estralava no telhado quando escutei o último bater de porta de nossa casa. Cerrei os olhos e pensei: “Preciso de uma nova guia”. E nada mais se ouviu. Ventania.

Yuri Flores Machado yuritextos@yahoo.com.br


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HORIZONTAIS - 1- Antiga máquina de guerra usada para derrubar portas e muralhas - Dispositivo das armas de fogo manuais - 2- Logotipo - Lugar espaçoso na entrada de edifícios - 3- Pessoa exímia em sua atividade - Olavo de Carvalho, “filósofo” - Obrigação- 4- Caminho público - Desconhecido -5- Arrotar - 18a. letra do alfabeto português - 6-Desenhista carioca - Metal radioativo usado em química nuclear - 7- Anselmo Duarte, ator - Tribunal Regional Federal Escola de Falcatruas Regimentais(o Congresso) - 8-Praxe Consoante - Curva (..)do Senna, Interlagos - Consoante 10- Membrana que forra cavidades do organismo animal VERTICAIS- 1- Amedrontaram-se - 2- Riscado na escrita Urânio(símb.)- 3- Imposto de Renda - Até, em espanhol Trambique Administrativo Compulsivo (lobby) - 4- Som repetido - Cem, em romanos - Doença infecciosa causada por bacilos - 5- Calados e tristes- 6- Letra que exprime a idéia de adição - Surrupiara - 7- Culto, consideração- Iodo, símbolo - 8- Fracasso, logro - Contração da prep. em com o pron. demon. esse - 9- Úlcera em forma de canal estreito e profundo - Mato Grosso (sigla) - 10- Capital da Noruega - (...) Welss, cineasta, diretor do clássico Cidadão Kane.

Sobrevivente

A

gurizada chamava-o de carroceiro, cachaceiro e outras coisas que não me recordo. Seu nome era Alexandre, Alexsander, Alex. Sei lá, não importa. Augusto, acho que era isso. Também isso não faz a menor diferença. O interessante mesmo é que era um sobrevivente. Um certo dia, na ala, ele se aproximou com seu trote esquisito, ele tinha uma joelho estourado. Eu gastava o tempo de papo com um grupo de internos, e gastar o tempo é a coisa mais importante para se fazer quando se está preso. Eu, como qualquer monitor, fazia umas horas extras completamente malucas. Já devia estar ali a pelo menos trinta horas. Quando você passa um tempo desses cercado de grades e portões de ferro por todos os lados, sem poder dar uma saidinha, começa a pensar que também é prisioneiro. Bem, sei que ele se aproximou e não sei bem porque começou a contar esta história. Tinha um safado lá na minha banda que era meu contra. A mãe dele andava com o Firmino, tá sabendo aquele brigadiano do postinho ali perto do fim da linha, falava para um outro que era também da zona norte. Vila Umbu parece-me. É, a mãe dele era vadia, andava com aquele brigadiano. Aí, um dia eu, pagando a minha falsária, com a jaqueta preta, aquela dos Racionais, boné tri furioso da Nike, um Mizuno azul que eu tinha. - “Para de atochá, Augusto”, alguém protestava. Ele passava todo dia de moto pela rua do mercadinho dos gringo. Eu fiquei de campana num prédio que tem uma entrada pra dentro. Fiquei atrás duma coluna, oitão niquelado furioso que descolei numa parada. Tô ali, devia ser perto da meia-noite já tava esperando fazia uma cara, de repente vi a cross dele, era uma Yamaha vermelha, eu sacava de longe. O safado disse que ia me derrubá, eu pensei, vai tu

primeiro.

Quando vi ele me abaixei, tinha uma moita perto da grama, tava escuro, ele vinha bem devagar, sempre de olho nas mina, tirando uma onda de moto. E eu ali sereno, esperei ele chegar perto. Saí da moita e dei três estouro nele, ele chegou a saltá pra trás, caiu da moto. Só não estorô o melão no chão da rua porque tava de capacete. A cabeça dele chegô a picar no asfalto. Vi que não se mexia, olhei pros lado, ninguém, limpeza, guardei o cano no bolso de dentro da jaka e saí de canto a passo. Quando cheguei perto da esquina, escutei um estouro, algo bateu na minha perna e me derrubô, na hora eu não entendi. Só notei o que tinha rolado quando olhei pra perna e vi o sangue. Olhei pra trás e o safado tinha levantado e vinha no meu rastro, minha sorte é que ele tava meio tonto porque daquela distância era difícil errá. Bah, tava ruim pra malandro. Levantei e saí apavorado, nem me liguei em metê fogo nele. Mas tava brabo de corrê, tinha que arrastá a perna e ela começô a doê, e já me faltava força. A meleca velha descendo perna abaixo e eu pensei chegô a minha hora. Eu não entendia nada, como é que o desgraçado tava vivo, eu tinha certeza que tinha derrubado ele. Eu só ouvia os estouro e o assobio das bala passando perto da minha cabeça. Olhava pra trás e ele cada vez mais perto. Parecia que tinha passado um tempão, mas arrecém eu tinha chegado na esquina, apavorado, foi aí que uma luz forte bateu nos meus olhos de repente, eu que vinha do escuro aquilo me cegou, mas logo eu ti que era o T8, a linha dele passava ali na esquina, devia ser o último. Vinha devagar porque tinha que dobrá ali. Eu já não podia mais corrê e o desgraçado atirando em mim, não tive dúvida me atirei na frente do ônibus.

O motorista deu uma freada, parô pertinho de mim, viu o sangue, desceu do ônibus e veio me dá apoio. Naquela hora tava cheio de gente, era o último T8, todo mundo desceu e me rodearam. Tive um alívio, pensei o safado não vai queimá o filme dele me apagando aqui no meio dum monte de testemunha. O motorista perguntô o que tinha acontecido. Eu disse ô Seu, me ajuda tentaram me assaltá e eu corri e fui baleado.

Eu sabia que se os home chegasse eu caía por porte, né?! mas pelo menos tava vivo. O motorista perguntô se alguém tinha celular. Mas aí o meu contra chegô com o cano na mão e foi empurrando todo mundo, botô o ferro na minha cara, eu virei o rosto e só ouvi o barulho depois tudo ficô preto. “Oh, Augusto, vô te dizê, nunca vi vagabundo mais mentiroso que tu”, disse um ouvinte mais indignado antecipando a gozação geral. Que veio após, com estardalhaço, que não se ouvia mais nada. Os gritos da gurizada refletiam e se ampliavam ao chocar-se com o altíssimo muro da cancha de futsal. “Juro pela minha falecida mãe”, disse o contista, todos silenciaram, falar da mãe é um recurso forte e perigoso no código dos presos e não admite perjúrio. Por um breve momento, que me pareceu longo por causa do repentino silêncio, todos olhavam aquela figura loira atarracada de feições embrutecidas, com o corpo meio torto e a cara envelhecida. A tez encardida que só denunciava a verdadeira idade pela expressão dos olhos. Eram azuis, tinham um jeito entre o cômico e o ingênuo. Contava aquele fato, horroroso como quem narra o gol que fez numa partida bem disputada. “Ah, não é mentira?! Então me explica, tu deu dois teco” - três - consertou outro, “pior três, de cima, derrubô o cara, não foi o que tu disse?! E aí o cara era o Robocop?” - Tá ligado que eu disse que a velha dele dava pro guarda do postinho? O desgraçado arranjou um colete com o porco, tava por baixo da jaketa de couro dele. Eu disse que ele voou pra trás, daquela distância, não tinha como errá. Ele tava meio tonto da porrada das bala nos peito e da batida no chão.

“É, tá bem, Augusto, e tu tava com um colete também ou vai me dizê que o cara botô o cano na tua lata e errô.” - “O carroceiro já era! Tá aqui só a alma penada dele”, berrou um dos gaiatos. O grupo explodiu em nova risada. Augusto levantou a calça de abrigo cinza, roupa da FEBEM, e mostrou a cicatriz da bala, explicando por onde entrara e por onde saíra. Nesse momento o grupo fechou sobre ele para olhar, a curiosidade calou a todos. Curvando-se mais, empurrou a densa e desgrenhada cabeleira amarela para frente deixando a nuca exposta. Nela se via outra cicatriz com dois pontos roxos próximos. Fiquei com a cabeça cheia de sangue, o médico me disse que faltô pouco, ele pensô que eu tava morto e foi embora.

Giovanni Mesquita - tataranariel@bol.com.br

Sanderson

Luiz Gustavo Insekto

CRUZADAS MANJADAS

Planeta Inseck Thox

Furtar é pecado - diz meu cérebro bem nutrido meu jantar abundante, meu roupeiro repleto ou nossas células privilegiadas - bem ordenadas pela mão de Deus. Mas é outro assunto do lado de lá da má distribuição. Lá nas poças fedorentas onde dormem as injustiças. Roubar é crime no meu dicionário muito lido e usado, mas é discutível na mentalidade do guri pé gelado, piolho, mau hálito e casa despencando em beira de sanga podre. Todo cidadão é honesto até que prove o avesso da generosidade humana. Todo homem é bom até que prove noventa e nove vezes do meu sangue derramado pela ferida da sociedade bêbada, cambaleante, nojenta. Porque pobre não tem dublê para fazer as cenas mais difíceis. Magali Vidal Domingues Cachoeira do Sul-RS

Barricades. Bonnet phrygien au bout des piques. Salut! Pitié pour le sot qui reçoit le pavé? Jacques Canut Auch - France


V VI

V

11

IRONIAS CARIOCAS - OPUS 24 o CD Rabo de Lagartixa, editado pelo crítico de música Tárik de Souza, em que Elza Soares faz uma de suas antológicas interpretações para o samba Formosa, de Baden e Vinícius, fiquei conhecendo um atualíssimo samba vanguardista de João Lyra e Paulinho Pinheiro intitulado Carrapato não tem pai. O título, para mim, já diz tudo. Depois do deboche suspeito de Anthony Garotinho (Partido da Boquinha), me lembrei que o jogo do bicho nasceu quase dentro do palácio do Imperador D. Pedro II, na Quinta da Boa Vista (por isto os cariocas não matam os bichos do seu zoológico). Se o jogo do bicho tomou conta do Brasil a partir da Cidade Maravilhosa foi de São Paulo que emergiu Lula (agora abalado pelo escândalo dos bicheiros e bingueiros que agiam em sua Casa Civil...). Num explícito desprestígio do sistema de representação político dos cidadãos brasileiros o mesmo Presidente Lula premiou com ministérios e altos cargos governamentais os derrotados nas urnas que o consagraram em 2002! Por isso, agora o jurista Flávio Konder Comparatto está sugerindo em vez de desilusão a construção de um contra-poder que controle o poder (que nunca representa os que o referedaram eleitoralmente). E cita o primeiro historiador brasileiro, frei Vicente do Salvador, que já no início do século XVII nos escrevia: “Nem um homem é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do bem particular”. Nasci numa pacata cidade do interior de Minas Gerais e lá, desde criança, percebia que os membros da diretoria da Sociedade São Vicente de Paula (entidade católica que cuidava dos pobres famintos e entrevados) geralmente eram desempregados que acabavam sendo donos de farmácias e casas de produtos veterinários ou comerciantes que davam aos pobres o pior tipo de arroz ou o açúcar mais umedecido, embora tivessem ganhado o suficiente para fornecerem o melhor aos desamparados. Desde lá eu desconfio dos Tartufos caridosos vicentinos... Há muito eu conheço esse tipo. A Igreja forneceu-nos tantos!

N

José Luiz Dutra de Toledo Ribeirão Preto - São Paulo

Komiquase roteiro: Alexandre arte: Daniela

Cara, olha só: esse negócio de Fome Zero é que nem a vitrine nova da padaria do Manoel. A gente olha, mas não consegue entrar.

C

Comparação melhor que essa só a minha: Fome Zero é que nem a Laurinha Tanajura: ela só reparte “o lanche” sob promessa de fidelidade partidária!

FAFÁ

City of God

idade de Deus não precisa de Oscar para ser a obra-prima que já é. Se Gláuber estivesse vivo, provavelmente defenderia esta tese. Quem precisa de Oscar é uma parte da intelectualidade nacional incapaz de um pensamento autônomo. Que vive com o corpo no país, mas com a mente em Nova York, Paris ou Londres. Esta mesma inteligência que não consegue desenvolver um pensamento crítico genuinamente nacional e precisa do reconhecimento dos gringos para aplaudir os mais belos frutos da cultura nacional. Talvez quem precisasse ter dado este Oscar é a indústria cultural americana como uma forma de pedir perdão. Perdão por viver tantos anos dedicada a glorificar a cultura da violência ao redor do mundo em seus filmes. Quantas vezes fazendo a apologia do uso das armas e dos punhos para resolver seus problemas.

Uma sociedade que precisa consumir milhões de toneladas de droga para esquecer o que seu governo promove no mundo inteiro. Uma política genocida que faz de gente como Fernandinho Beira Mar um dos maiores empresários da América do Sul. A mesma política que faz meninos andarem armados e morrerem cedo nas favelas do Brasil (um detalhe que Paulo Lins não soube ver). A mesma cultura da violência que põe armas nas mãos de crianças nas lutas fratricidas da África. Ou que faz jovens Palestinos explodirem seus corpos no Oriente Médio, matando judeus inocentes. A mesma política que arma ditadores como Saddam ou terroristas como Bin Laden e que, depois, precisa bombardear nações para tentar reorganizar os negócios e corrigir os seus erros

Arno Kayser

PENSAMENTO É preciso desprezar o Céu para contemplar um precipício Sammis Reachers

Bukowskiana VIII Certa vez, no distante e fabuloso Reino de Sam houve uma grande rebelião: E as Cinderelas descobriram que os cabaços não eram de ouro. E os Príncipes confirmaram aquilo que já desconfiavam que fosse apenas lenda: Bucetas não têm dentes. E adveio sobre o aquilino reino a era pacífica & amorosa do Meter-Sem-Medo. Sammis Reachers

arte Luiz Gustavo Insekto


Bruno Veiga

entrevista

Dona Ivone Lara por Giovani Mesquita, Bira Azevedo e Fernando Ramos E o seu momento hoje como está? A senhora tem planos de gravar um disco? Tem contrato com gravadora? Eu tenho contrato com gravadora, sim. Mas é gravadora internacional. É a Lusáfrica, da França. Eu já tô com o segundo disco lá fora. O primeiro foi “Nasci pra sonhar e cantar”. Então podemos esperar pelo segundo, né? É. Com o primeiro eu ganhei vários prêmios. E tem que sair mais discos seus, porque todo mundo gosta muito da sua música, mas, nós daqui, temos raras oportunidades de vê-la cantar. São raros momentos como o de hoje. Sei, sei... E agora estou com um parceiro novinho, chama-se Bruno Castro e toca um cavaquinho que só vendo. Ele tá querendo se lançar solo, e tô dando uma força muito grande a ele. O Bruno tem 29 anos, é professor de educação física. É extraordinário, escreve muito bem.

E a senhora fez muitos sambas com o Silas de Oliveira também, né? Em 1965 eu fiz o “Cinco Bailes da História do Rio de Janeiro”, samba-enredo pra Império Serrano, com ele. Então a parceria foi Silas de Oliveira, eu e um rapaz que tinha o apelido de Bacalhau, mas também de uma sensibilidade extraordinária. Dona Ivone, como é o seu processo de criação, como vem a idéia, é uma coisa intuitiva ou a senhora procura a melodia, a idéia? Não procuro nada. Eu sou muito intuitiva. E às vezes, por exemplo, se tenho vontade de fazer qualquer coisa, eu pego o meu gravador e aí faço a melodia e gravo. Atualmente, eu preciso do gravador, mas antigamente não, porque a mente era mais jovem. Mas mesmo assim, às vezes eu faço, depois esqueço. Lá um dia eu me lembro, aí gravo e pronto. E telefono pros meus parceiros e digo pra eles a música, a melodia por telefone mesmo. Canto e eles gravam, depois botam a letra. Agora, não esqueço de nenhuma música minha. De jeito nenhum! Ninguém me rouba nada! (Bate forte na mesa) Se cantarem de tal jeito, vou e digo: é minha, é assim e assim, porque fica na mente.

E o Bruno não pertencia ao grupo de choro Semente, que toca na Lapa? Justamente, ele era do Semente. É uma turma muito boa. Agora, tem uma coisa: escreve muito bem e faz gosto a gente ouvir um samba feito por eles. . E o seu grande parceiro Délcio Carvalho? Délcio é meu parceiro há mais de 30 anos, e a maior parte das músicas fiz com ele. E como é que se dá essa parceria? A senhora faz mais melodia ou mais letra? Eu faço mais melodia, pelo seguinte: ele é um poeta e me pede sempre muita melodia, mas tenho também o Hermínio Bello de Carvalho que é um grande letrista. Com ele eu fiz o samba “Mas quem disse que eu te esqueço”. fotos Rosane Maranghello

“Dona Ivone Lara, nos abençoa! Com teu canto, que alivia a alma e afugenta a dor e a mediocridade, nos abençoa! Com tua música, que faz crer no profundo do espírito humano e traz alento ao Rio de Janeiro e ao Brasil, nos abençoa! Abençoa nossa gente, tão precisada de um orgulho, como o que temos de ti! Abençoa a teimosia de ainda crermos que os abençoados, como tu és, nascem de nós! E abençoa meu piano em seu pretensioso desejo de louvar a quem já é tão abençoado e cheio de luz! Dona Ivone Lara, nos abençoa!” O autor dessas lindas palavras é o pianista e arranjador Leandro Braga, que, no ano passado, homenageou Dona Ivone com o CD Primeira Dama - A música de Dona Ivone Lara (Carioca Discos). Leandro já prestou inestimáveis serviços à música popular brasileira e sua memória, e agora reúne um elenco de primeira, Jorge Helder, Paulo Sérgio Santos, Zé Paulo Becker, Zé Nogueira, Marco Pereira, entre outros cobras, para registrar o cancioneiro de Dona Ivone e parceiros em disco antológico. Dona Ivone participa cantando na música que abre o CD, “Há música no ar”, e Leandro, mostrando o ótimo compositor que é, fecha a sua homenagem com “Primeira Dama”. O disco é belo, majestático e emocionanteou seja, é puro Dona Ivone Lara. V

A sra. começou a ficar conhecida como compositora fazendo sambas-enredo pra Império Serrano, foi isso? Sim, na Império Serrano. Eu fui madrinha da ala dos compositores e depois fiquei uns 2 ou 3 anos na ala dos compositores. E, hoje, como é que a sra. vê os sambas-enredo? Mudou muita coisa? O samba-enredo sofreu muita modificação, porque eles mudaram o tempo de desfile. Antigamente, o samba-enredo era mais elaborado, era mais cadenciado, e atualmente o desfile é quase uma marcha, quase um frevo, porque tem que passar em oitenta minutos. Os compositores de samba-enredo ainda se reúnem dentro das escolas, como era tradição, ou se escolhem os sambas de outra maneira? Não. Mudou muito. O samba-enredo agora passou a ser comercial, de maneira que isso tá prejudicando muito as escolas. Às vezes uma escola tem um samba muito bonito, e o camarada que fez um samba medíocre mas tem dinheiro, acaba ganhando.



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