Visao 1303

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Nº 1303 . 22/2 A 28/2/2018 . CONT. E ILHAS: €3,50 . SEMANAL

A NEWSMAGAZINE MAIS LIDA DO PAÍS

POLÓNIA REPORTAGEM NO PAÍS QUE QUER ESQUECER O PASSADO SEXO POR DENTRO DO PRIMEIRO BORDEL DE BONECAS DO MUNDO

AS ESCUTAS, OS CLIENTES E AS PROVAS CONTRA RUI RANGEL TODA A TESE DA INVESTIGAÇÃO AO JUIZ QUE VENDIA SENTENÇAS

• OS EMAILS COMPROMETEDORES E OS PEDIDOS DE DINHEIRO • 270 DEPÓSITOS EM NOTAS E OUTROS MOVIMENTOS SUSPEITOS • A REDE DE INFLUÊNCIAS E FAVORES

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VISÃO 22 FEVEREIRO 2018 / Nº 1303

RADAR 18 Imagens da semana 24 Raio X 26 A semana em 7 pontos 28 Holofote 29 Almanaque 30 Inbox 31 Transições 32 Próximos capítulos FOCAR 66 Na Assembleia, baralha e volta a dar 70 O que é um bom professor? 72 Farfetch nº 5 74 Jamie Oliver: o fim do império? 76 O bordel das bonecas sexuais 80 Oxfam, a indústria das ONG VAGAR 82 Com Cristina Branco, em Paris 88 O regresso do Pantera Negra 94 Tendências: noites de quiz VISÃO SETE

DIANA TINOCO

14 Entrevista: Pedro Machado

34 O país que lida muito mal com o seu passado

Em julho de 1941, centenas de judeus polacos foram trancados num celeiro e queimados vivos pelos seus vizinhos. Reportagem VISÃO em Jedwabne, local que simboliza o papel sombrio da Polónia na II Guerra Mundial

44 Os clientes, os angariadores e os cúmplices do juiz

A VISÃO revela tudo o que o Ministério Público tem contra Rui Rangel: a lista dos 16 clientes, as escutas comprometedoras, os e-mails e os movimentos bancários que indiciam que o juiz-desembargador terá recebido da alegada clientela pelo menos 900 mil euros

52 E a melhor fotografia do ano é...

A imagem vencedora do concurso World Press Photo vai ser escolhida a partir de seis nomeadas. Todas refletem o mundo tenso e violento em que vivemos. Três especialistas comentam as fotografias finalistas, os seus pontos fracos e os fortes

60 Sozinho em casa

Quais as principais taras e manias de Donald Trump? A resposta está em Fogo e Fúria, o livro de Michael Wolff cuja edição portuguesa acaba de chegar às livrarias. Em exclusivo para a VISÃO, extratos da obra em que se revela, por exemplo, como o Presidente dos EUA receia ser envenenado

Online

W W W.V I S A O . P T

Últimos artigos na BOLSA DE ESPECIALISTAS VISÃO

97 Roteiro do ramen OPINIÃO 8 António Lobo Antunes 10 Rui Tavares Guedes 33 José Eduardo Martins 69 José Carlos de Vasconcelos 96 Miguel Araújo 130 Ricardo Araújo Pereira 4

VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

Hugo Rodrigues

PEDIATRIA Vacinas extra-Plano Nacional de Vacinação

Ricardo Gonçalves

EMPREGO Sabe comunicar o que sabe fazer?

Catarina Marcelina

CIDADANIA E IGUALDADE A propósito do Dia dos Namorados

Todos os dias, um novo texto assinado por um dos 28 especialistas convidados



LINHA DIRETA

MARCOS BORGA

Correio do leitor

As escutas, as SMS e os ‘‘clientes’’ da rede de Rangel “Papi, já enviei o relatório do 1º acórdão.” A SMS, intercetada pela Polícia Judiciária, foi enviada, a 3 de junho de 2017, por Fátima Galante ao ex-marido Rui Rangel, para lhe dar conta de que já tinha feito a sentença em nome do juiz, como este lhe pedira. É uma das muitas escutas que, segundo a acusação, demonstram a alegada rede que atuava dentro do Tribunal da Relação de Lisboa. A jornalista Sílvia Caneco explica também quem são os portugueses e estrangeiros suspeitos de recorrerem à teia de Rangel, o dinheiro envolvido, os esquemas de pagamento e o projeto benfiquista que o magistrado queria montar no local onde se realiza o Rock in Rio. A equipa constituída por Miguel Carvalho e Diana Tinoco, por seu lado, esteve na Polónia e conta-lhe como se vive em Jedwabne, onde em julho de 1941 centenas de judeus polacos foram trancados num celeiro e queimados vivos pelos vizinhos. Uma reportagem ao local que simboliza o papel sombrio da Polónia na Segunda Guerra Mundial e onde muitos dos habitantes ainda hoje lidam mal com o seu passado. Nesta edição, mostramos-lhe também as seis fotos finalistas do Word Press Photo – exposição que a VISÃO trará a Lisboa, como tem sido hábito nos últimos anos, no próximo mês de abril. Ao longo das páginas, pode ver as imagens acompanhadas de comentários de três dos mais conceituados fotojornalistas portugueses: Alfredo Cunha, Luís Vasconcelos e Augusto Brázio.

Tecnologia para os assinantes A partir de agora, os assinantes digitais da VISÃO passam a poder descarregar, de forma gratuita, a edição semanal da Exame Informática.

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“A banca, atualmente, só serve para financiar grandes empresários. O cidadão comum quase paga para lá ter algumas das suas poupanças” Gustavo Reis, Ferragudo

FUGAS INESQUECÍVEIS Coincidência ou talvez não, o facto é que, nos quatro títulos da vossa capa (V1301), três emanam da palavra “fuga”. Se as miniférias em Portugal podem muito bem ser “fugas inesquecíveis”, também é verdade que a(s) fugas(s) de e para Angola continua(m) a ser “luxos” para uns tantos! Porém, as ameaças na era Trump, essas sim, são mais que suscetíveis de não deixarem fuga possível. João Cerveira, São Pedro do Sul

ENCERRAMENTO DAS ESTAÇÕES DOS CTT E DOS BALCÕES DA CGD Apesar de ser adepto de futebol, não deixa de me causar alguma estranheza que os órgãos de informação (e especialmente os órgãos televisivos) se preocupem tanto com a chegada dos jogadores de futsal ao aeroporto, e que, em contrapartida, se preocupem tão pouco com o encerramento das estações dos CTT e dos balcões da Caixa Geral de Depósitos (CGD) que tanto prejudicam o País. Afonso Napoleão, Vila Nova de Gaia

O INTERIOR DO PAÍS Parabéns, Rui Tavares Guedes. Fez uma análise perfeita da realidade do Interior (V1301), onde nasci, tenho casa e terras, e espero ser sepultado. Como sou “capitão de Abril”, não queria morrer sem ver os “cravos” a florir nesse Interior onde as rosas florescem deslumbrantes. José Costa, Tavira

Contactos CORREIO: Rua Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 Paço de Arcos correiodoleitor@visao.pt As cartas devem ter um máximo de 60 palavras e conter nome, morada e telefone. A revista reserva-se o direito de selecionar os trechos que considerar mais importantes.


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CRÓNICA

Quatro Cartas de Amor:

Terceira

ILUSTRAÇÃO: SUSA MONTEIRO

POR ANTÓNIO LOBO ANTUNES

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evámos muito tempo a aproximarmo-nos um do outro porque nenhum de nós era de intimidade fácil. Achava-o antipático e frio, talvez não bem antipático, distante. Depois ele era capitão e eu apenas alferes e, no Exército, essa distância conta. Depois estava já uns meses com a sua companhia no Ninda e eu na sede do batalhão em Gago Coutinho, onde quase não havia guerra, enquanto ele batia com os ossos na mata onde a música era outra. Depois era arredio e eu também e nenhum de nós falava muito. Depois era bastante vigiado pela polícia política e eu não tinha nenhum passado de resistência e nunca mencionava a guerra. Não mencionava fosse o que fosse, fazia o meu trabalho e pronto. Depois passava o tempo livre fechado a escrever ninguém sabia o quê. Depois tinha um nome de família conhecido e não fazia confidências. Depois ninguém sabia o que eu pensava e quase não participava das conversas dos oficiais nem dizia piadas. Depois havia-me recusado a dormir na antiga casa do chefe de posto, uma ruína junto ao arame farpado, sozinho, no que se me afigurava um risco inútil porque o MPLA me podia com toda a facilidade, caçar à mão. Ele insistiu, eu tive que obedecer, em desacordo com ele e ao aceitar, contrariado, exigi uma ordem por escrito, o que ele não gostou. Andámos assim uns tempos, até que um soldado, que fora ao rio buscar água numa Berliet, apanhou uma mina numa roda da frente e morreu esmagado entre o volante e os sacos de areia da proteção. Ele disse uma única frase – Tinha jurado que os levava a todos ajudei a trazê-lo até ao arame, ao descer da Berliet olhámo-nos porque a sua frase e a raiva das suas palavras nos aproximaram um do outro e compreendemo-nos instantaneamente. Acho que percebemos que éramos irmãos. E irmãos ficámos até a sua morte. Chamava-se Ernesto Augusto de Melo Antunes, e principiámos a jogar xadrez no dia seguinte. Eu perdia quase sempre e tive a impressão que às vezes ele me deixava ganhar. O seu esquema posicional era muito mais forte do que o meu, a sua defesa indiana do rei excelente e eu tomava riscos idiotas, cometendo erros elementares, descurando o centro. Desatámos portanto a falar a pouco e pouco. A cara daquele homem, vagamente parecido com Edward G. Robinson, concentrada no tabuleiro, ia ganhando uma humanidade que me agradava. Pela primeira vez apertámos a mão antes de nos despedirmos. Depois foi mais um bocado de guerra, a sua promoção a major,

a pistola apontada a um pide que se apresentou a uma prisioneira (os prisioneiros eram evidentemente sagrados para o Ernesto) com um pontapé na barriga, a sua transferência para o norte, a poesia de Victor Hugo que me deixou “para o seu longo exílio”, as cartas que íamos trocando (“cada vez mais isto me parece um erro formidável”), o reencontro em Portugal quando o MFA começou a crescer, o seu empenhamento nele, com a serena coragem que sempre foi a sua, a generosidade, o bom senso, acompanhei o Movimento numa proximidade cúmplice, falávamos longamente, ia-me narrando a evolução e as peripécias e vicissitudes daquela complexa e arriscada aventura até o transferirem para os Açores, depois foi o 25 de Abril, depois a vitória, depois o seu regresso a Portugal, depois os problemas de toda a ordem que foram surgindo até ao 25 de Novembro, depois a vitória, depois a solidificação da democracia e o papel importantíssimo do Ernesto em tudo o que se passou, a sua inteligência, a sua rectidão, a sua muita coragem, as diversas missões de que se ocupou, o nosso diálogo constante, a eleição de António Ramalho Eanes, a quem tanto quero, para a Presidência, as múltiplas tarefas do Ernesto, a nossa relação fraterna, a preciosa amizade que mantivemos sempre, sem uma única ruga, ao longo dos anos, a notícia brutal da sua doença que ele comunicou aos filhos a meio do jantar (– Tenho um cancro do pulmão e não se fala mais nisso) a sua ida aos Estados Unidos ao hospital em que trabalhava o meu irmão Nuno, o estado horrível do seu mal que ele viveu de forma exemplar, as tardes de sábado juntos, sem testemunhas, que não vou reproduzir aqui, a progressiva deterioração do seu estado (– Hoje acordei todo molhado. Não me deixes morrer sem dignidade) a sua morte que me fez sofrer horrivelmente, que continua a fazer-me sofrer, o cemitério onde fui com uma das suas filhas em cada braço, a presença dos camaradas, a sua ausência que tanto continua a custar-me, a dor que se mantém em mim, a sua total confiança no meu trabalho, o modo como sempre esteve ao meu lado, os nossos eternos jogos de xadrez comigo a perder nove em dez, raios te partam Ernesto. Não há um dia em que não pense em ti, o irmão mais velho que ganhei e com tanta maldade a vida me tirou.

Chamava-se Ernesto Augusto de Melo Antunes, e principiámos a jogar xadrez no dia seguinte. Eu perdia quase sempre e tive a impressão que às vezes ele me deixava ganhar. O seu esquema posicional era muito mais forte do que o meu, a sua defesa indiana do rei excelente e eu tomava riscos idiotas, cometendo erros elementares, descurando o centro

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OPINIÃO

O jogo perigoso da impunidade P O R R U I T A V A R E S G U E D E S / Diretor-executivo

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escalada guerreira e de confronto: deais perigoso do que o clima de clarar guerra à comunicação social e aos hostilidade e de confronto em jornalistas, apresentando-os como inique o futebol português migos e chegando ao ponto de “proibir” mergulhou nos últimos anos os seus seguidores de comprar jornais ou é o estado de impunidade insver outros canais televisivos que não a TV talado que permite, de forma oficial do clube. Se alguém duvidasse que cúmplice, que, uma a uma, vão isso não foi um incitamento ao ódio e à sendo ultrapassadas as linhas violência, o resultado imediato dessa ação vermelhas do incitamento ao ódio e à viofoi esclarecedor: a tentativa de agressão lência. Por mais graves que sejam os atos, aos jornalistas presentes no local, numa por mais incendiárias que sejam as palareação vingativa a fazer lembrar outras vras, já todos sabemos que não vamos ver semelhantes ocorridas em alguns comíalguém ser castigado por ter feito ameacios de Donald Trump, na sua campanha ças ou por ter instigado agressões. Pior eleitoral para a Casa Branca. ainda: à medida que a tensão vai subindo, Apesar das queixas dos visados e dos que a violência verbal se banaliza e que o lamentos, mais ou menos tímidos, de alo ambiente se torna mais contaminado, gumas individualidades, a verdade é que a vai diminuindo perigosamente a censura ocorrência de um ato tão grave como o do social a muitas práticas e atos que, há não incitamento ao ódio e à violência não teve, muito tempo, a sociedade considerava nos dias seguintes, por parte de quem tem condenáveis. Em Portugal, sejamos francos, merguo dever de pugnar pela segurança, qualquer punição ou conselhamos num silêncio quência inibitória. Apenas e numa tolerância cúmpliA agressão, a reação do costume: os ces com todos os desvarios habituais apelos pífios provocados pela competição o insulto e o e ao diálogo. futebolística. Passámos a destilar do ódio à serenidade Mais uma vez, o país considerar “normal” assistir, passaram a ser político preferiu não se diariamente, a acusações considerados imiscuir nos assuntos constantes entre dirigentes do futebol – isso fica de clubes e seus funcioná“normais” em para os rios. O insulto livre e gritado Portugal, desde reservado momentos em que se pode passou a ser uma arma “baque o assunto celebrar uma grande vitória nal”, de defesa ou de ataque, caseira ou internacional. numa qualquer discussão seja futebol E, como sempre, a Justiça que envolva o resultado de seguiu em marcha lenta, um jogo. O País, no seu todo, como quem tolera tudo isto como factos deixou de preocupar-se com as notínormais, enquanto noutros países, cias de agressões aos árbitros e já não se como o Reino Unido, por exemplo, os escandaliza quando assiste a autênticas apelos ao ódio e à violência são imediata batalhas campais entre grupos de adepe severamente condenados em poucas tos, tanto dentro como fora dos estádios. horas, caso seja preciso, só para que não A agressão, o insulto e o destilar do ódio se voltem a repetir. passaram a ser considerados “habituais”, Por cá, continuamos neste estado de desde que o assunto seja o futebol. impunidade – do “vale tudo porque não É neste contexto que deve ser obserme acontece nada” –, principal responsávado e lido o discurso do presidente do Sporting Clube de Portugal, após a vitória vel pelo crescimento deste clima de hosesmagadora que obteve na assembleiatilidade e confronto. Com os três clubes -geral do seu clube, no último fim de “grandes” a disputarem, taco a taco, o tísemana. De forma calculada, a jogar em tulo nacional, a apenas 11 jornadas do fim, “casa” e a falar para os membros da sua não vai ser difícil adivinhar os próximos tribo clubística, Bruno Carvalho ultracapítulos. Mas a tragédia, se ocorrer, não passou mais uma linha vermelha nesta poderá ficar impune. rguedes@visao.pt

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HISTÓRIAS DA CAPA

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A escolha principal desta capa reside na forma como se vai apresentar o protagonista da história, tentando um bom equilíbrio entre a foto e o título

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A foto do juiz Rui Rangel fica melhor em fundo branco ou de cor? E de que cor? Como se arranja aqui espaço para o título sem perder o impacto?

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Uma solução pode ser a de reduzir o tamanho da foto e dar mais espaço ao título. Mas há sempre mais hipóteses...





Pedro Machado Deixámos de ser apenas sol e praia. Hoje, Portugal tem uma aposta estruturada na gastronomia, no património, no surf. E o Centro passa pela Nazaré, mas também pela serra da Estrela ou Bairrada Presidente do Turismo Centro de Portugal

LUÍSA OLIVEIRA

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MARCOS BORGA


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Entrevistámo-lo no recém-inaugurado parque de dinossauros, na Lourinhã, a seguir ao almoço. Quando acabou a conversa, a meio da tarde, meteu-se no carro para uma reunião em Montemor-o-Velho, a que chegaria atrasado. É assim o dia a dia do presidente da maior região de turismo de Portugal, que engloba 100 municípios, de Ovar a Sobral de Monte Agraço. O crescimento a dois dígitos dão-lhe força anímica para continuar a defender o “seu” território, dolorosamente ferido pelo fogo do ano passado. Acaba de assinar uma parceria com a Nissan para ajudar à reflorestação da zona afetada pelos incêndios. Em que consiste? Pela primeira vez, um construtor mundial de automóveis tem preocupações reais em contribuir para o processo de reflorestação de um território que foi atingido por incêndios. Além disso, também dará um contributo inestimável para alterar aquilo que é hoje um dos pontos críticos do destino. A que ponto crítico se está a referir? A perceção de insegurança e do desinteresse pelo produto, uma vez que estamos a falar de territórios que tinham na paisagem, nos trilhos, nos circuitos pedestres, na floresta, o seu principal foco de atração. O que esta parceria traz de inovador à onda de solidariedade que já existe para com este território? De facto, temos tido manifestações de solidariedade de muitas autarquias, do Governo, de várias organizações não-governamentais. Porém esta, em concreto, é diferente, por comparação ao que seria expectável de um construtor de automóveis. Por cada quilómetro percorrido em carros elétricos ou híbridos, será calculada

a quantidade de CO2 libertada se os veículos não tivessem essas características. Essa contabilização será convertida em novas árvores, as necessárias para compensar essa libertação e recuperar a pegada que os carros tradicionais deixam. Como é que isso será concretizado? Através da parceria connosco e com o envolvimento do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, que é responsável pela identificação dos territórios a reflorestar, das espécies a plantar, do número de árvores suscetíveis de serem plantadas. Neste momento, há vários movimentos de iniciativa privada que andam no terreno. Há muitos movimentos espontâneos, como o da Ferraria de São João, onde a comunidade identificou a necessidade de reflorestar à volta da aldeia, criando um perímetro de segurança, em consequência dos incêndios de junho do ano passado. Decidiram arrancar as espécies consideradas nefastas e substituí-las por outras. Mas também existem novas medidas oficiais para a floresta nacional? O Governo lançou, há três semanas, na Marinha Grande, o primeiro processo público de reflorestação que vai ser no pinhal de Leiria. E também esteve em Tondela, com um plano ambicioso para a recuperação sobretudo das indústrias e empresas afetadas pelos incêndios. Como está agora o território, quatro meses depois dos últimos incêndios? Em muitos casos, já há processos concluídos de recuperação das habitações – a prioridade. E partimos agora para outra ação prioritária: com o Turismo de Portugal, a Comissão de Coordenação da Região Centro e a Secretaria de Estado do Turismo desenvolvemos um conjunto de campanhas para que as empresas do setor consigam recuperar substantivamente a atração de fluxo turístico. Que percentagem dessas empresas está a operar como se nada tivesse acontecido? Não podemos generalizar, porque há estabelecimentos atingidos que ainda não estão operacionais, como por exemplo em Tábua, Oliveira do Hospital ou Seia. Existe, no entanto,

alguma normalidade em relação àquilo que acontecia antes dos incêndios. Há números concretos? Os do Instituto Nacional de Estatística permitem tirar algumas conclusões. Em setembro, a região Centro aumentou 19% em hóspedes e dormidas, 22% em outubro e 20% em novembro, o mês a seguir aos últimos incêndios. Curiosamente, lidera, em termos absolutos, o ranking de crescimento percentual comparativamente com o resto do País [Portugal cresceu 9%]. Isso é por ser a maior região de turismo do País e por ter muito mais do que os territórios afetados? Ou porque as pessoas foram, de facto, sensíveis à devastação da região? Existem vários fatores. Há uma manifestação de solidariedade para com o Centro, particularmente no que diz respeito à estratégia de organizações nacionais, como o Turismo de Portugal ou a Secretaria de Estado que se envolveram diretamente no processo de recuperação destes territórios. A consciencialização nacional também é importante – lembro-me concretamente das ações do senhor Presidente da República (passei o Dia de Natal com ele, em Pedrógão Grande). Isso teve um valor adicional, pois um dos obstáculos mais difíceis de ultrapassar é a baixa autoestima de quem ali vive, já para nem falar das pessoas que perderam familiares e amigos. Também não será alheio o facto de esta região abranger 100 municípios e de ter muito mais oferta do que os territórios afetados? Sim, claro. Hoje a linha de convergência deste destino é muito maior do que outros do País. E isto tem a ver com uma mudança de estratégia na promoção de Portugal e com a preferência dos mercados externos. Foram os estrangeiros que contribuíram para esse aumento? Crescemos cerca de 30% no mercado externo, suportado sobretudo pelo Brasil, EUA e França. Não eram turistas frequentadores deste território? Desde sempre, os mercados emissores tradicionais do Centro foram Espanha, Itália e França. O que os motiva agora a vir passear para o Centro? O turismo religioso, por exemplo, e também a tendência dos mercados 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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internacionais por produtos como a natureza, paisagem e cultura. Deixámos de ser apenas sol e praia. Hoje, Portugal tem uma aposta estruturada na gastronomia, no património, na História, no surf. E o Centro é, por definição, uma região multiproduto, que passa por Peniche ou Nazaré, mas também pela serra da Estrela, Tomar, Coimbra, Batalha, as termas ou o leitão da Bairrada. Sendo uma região que engloba um terço do território nacional, como é que se cria uma identidade? Ainda hoje estamos num processo de construção. Fizemos uma rebranding territorial, criámos uma logomarca, o que permitiu que todos os municípios se revissem numa estratégia de comunicação. E depois apostámos nas trilogias, conjugações com os vários produtos do Centro: por exemplo, o P serve para pera, porcelana e praia. No fundo, a diversidade é o nosso trunfo. Há infraestruturas na região para suportar este aumento de 20% da procura? O Centro tem 54 mil camas turísticas e a taxa de ocupação média fica perto dos 50 por cento. Há por isso capacidade para responder a este crescimento a dois dígitos, muito influenciado por alguns eventos, diga-se, como o centenário das aparições de Fátima. A vinda do Papa insuflou muito os vossos resultados? Estima-se que em média, por cada visita papal, os visitantes desse destino aumentem em um milhão nesse ano. Quer dizer que em 2018 as percentagens vão ser diferentes? Existem outras tendências, como o turismo associado aos desportos de deslize [como o esqui e o surf] e ao mar. Peniche ou Nazaré, com o surf, são atualmente um dos nossos focos principais da comunicação internacional. Mas o produto “congressos, incentivos e conferências” também é particularmente relevante e estruturante, porque permite a fruição dos 365 dias do ano e tem uma média de dormidas superior à da região. Esse é um dos vossos calcanhares de Aquiles: as pessoas vão muito ao Centro, mas não ficam por lá muitos dias. 16

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Mais do que a sazonalidade, preocupa-nos a litoralização da atividade turística – precisamos que o fluxo turístico se desloque para o Interior

O Centro, com as suas seis milhões de dormidas, está com uma média de apenas 1,8 noites de estada. Este território também é sazonal? Sofremos com o problema do País, que começa finalmente a esbater-se. Percebemos que há um alargamento da base da procura turística e um ligeiro aumento das dormidas. Agora temos o birdwatching, um produto de nicho que também ajuda a combater esses problemas, pois tem estadas médias na ordem das cinco noites. Mais do que a sazonalidade, preocupa-nos a litoralização da atividade turística – precisamos que o fluxo turístico se desloque para o Interior. Como é que isso se faz? Através das parcerias que estabelecemos com os nossos homólogos de Lisboa e Porto, mas também com outra estratégia, que o Centro iniciou em 2017 – parcerias de promoção conjunta com Espanha. Hoje, temos um plano em mercados como o alemão ou o chinês para promover o território em conjunto. Com a Estremadura espanhola, passámos a comunicar vinte sítios com chancela UNESCO, em vez de oito. Além de aumentarmos os recursos e o número dos produtos, estamos a focarmo-nos numa parceria em que o nosso Interior fica no coração das duas regiões, e assim deixa de ser o extremo e passa a ser o meio.

E as Aldeias do Xisto, que importância têm na promoção da região? A 23 Aldeias do Xisto e as 12 Aldeias Históricas são dois produtos com um grau de maturidade significativa, completamente profissionalizados e que estão no mercado de forma ativa e dinâmica. Neste ano vão ser o destino nacional convidado da Bolsa de Turismo de Lisboa (BTL). Que resultados espera? Não podemos escamotear que o convite teve que ver com os incêndios do ano passado. Mas também somos um dos três destinos nacionais que mais turistas portugueses capta, e a BTL é essencialmente uma montra para o turismo interno. Esperamos, por isso, atrair ainda mais pessoas para o nosso território e tirar partido das reuniões internacionais que vamos ter. Isto também vai servir para criarmos laços dentro do território, já que vão estar no nosso stand 30 empresas (10 das quais têm os seus custos suportados por nós, por se tratarem de pequenas e médias estruturas das zonas afetadas pelos incêndios). Uma das vossas apostas de crescimento é o turismo militar. De que se trata? É um produto que está a ser estruturado. A primeira parceria foi assinada com a Associação do Turismo Militar Português, liderada por Álvaro Covões, mais conhecido por organizar o festival Nos Alive. Consiste no aproveitamento das atuais infraestruturas, ativas ou desativadas, como são os casos de Almeida ou das Linhas de Torres. É um turismo mais ou menos emocional, associado a guerras e à atividade militar, que vai permitir a visitação turística desses locais. Qual o limite para o Centro? Não corremos o risco de ele ficar sobrelotado? Temos uma enorme capacidade de carga. Abrangemos 100 municípios, enquanto no Algarve são apenas 16. E só temos 55 mil camas, enquanto lá existem 250 mil. Ainda podemos crescer de forma consolidada nos nossos produtos premium, como natureza ou saúde e bem-estar. E ainda podemos crescer em receitas, porque temos um rendimento por quarto abaixo da média nacional. loliveira@visao.pt



RADAR

Recortar é viver

Pela primeira vez no País, decorreu um torneio nacional de recortadores. Esta é uma das vertentes da tauromaquia muito apreciada em Espanha e pouco conhecida em Portugal. E, por incrível que possa parecer, tolerada pelos defensores dos direitos dos animais. Isto porque esta arte não fere o touro e coloca-o perante o Homem de igual para igual. Quase parece uma brincadeira em que o recortador escapa às investidas com manobras de malabarismo: saltos, flexões, desvios repentinos, tudo para enganar o bicho e apresentar um espetáculo visual divertido e quase circense. Para estes homens é uma forma de ganhar a vida, por €200 arriscam a pele em frente a um touro Fotos: José Carlos Carvalho



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Na praça de Abiul, concelho de Pombal, onde decorreu a prova, a lotação foi pouco mais de 20%. Ali mora a convicção de que a praça de touros local, datada de 1561, é a mais antiga do País. Os touros de Francisco Oliveira já estão nos curros para serem lidados por 12 jovens que têm a esperança de ganhar algum dinheiro. Fernando Silva é supersticioso e não dispensa rezar a Nossa Senhora de Fátima antes de entrar na arena, mas tem também à sua frente o símbolo taurino mais conhecido em Espanha, o famoso touro de Osborne. O espetáculo começa com o passeio dos 12 especialistas

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Em cada touro, os participantes dispõem de 10 minutos para levar a cabo as sortes, as investidas de cada um. O movimento que dá origem ao nome de recortador consiste em deixar passar os cornos do bicho o mais perto possível das costas – sem que o animal lhe toque – só com a ajuda do corpo, sem tirar os pés do chão e simplesmente movendo a barriga para a frente. A tensão banha o meio ambiente, o choque entre os dois parece iminente: enquanto os passos do touro ecoam pelo chão, os do recortador são leves e quase não tocam a areia. A cena repete-se até ao último confronto, quando os recortadores se ajoelham perante o animal e dão por concluída a atuação

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RAIOS X

A arma dos massacres P A T R Í C I A F O N S E C A pfonseca@visao.pt

Preço acessível Hoje vários fabricantes produzem a AR-15, na versão semiautomática, com preços que variam entre os 500 e os 1000 euros

Arma de guerra

Criada em 1950 pela Armalite, era uma espingarda invulgar para a época, construída com plásticos e alumínio, o que a tornava mais leve. Foi comprada pela Colt e rebatizada como M-16, estreando-se na Guerra do Vietname

Nicolas Cruz, de 19 anos, matou 17 pessoas na sua antiga escola, na Florida, usando a AR-15: uma espingarda associada a quase todas as tragédias nos EUA

1800

pessoas morreram nos EUA, só no primeiro mês e meio de 2018, vítimas de armas de fogo. A AR-15 é considerada a arma mais popular da América, havendo registos para mais de 5 milhões de proprietários. Em cinco dos seis mais mortais massacres da década havia uma arma destas na mão do assassino: Newtown, San Bernardino, Las Vegas, Sutherland Springs e, agora, Parkland

A ferida de uma bala de pistola é semelhante à de uma facada; com a AR-15 é como se fôssemos atravessados por latas de Cola-Cola”

Peter Rhee, cirurgião militar especializado em trauma e que salvou a congressista Gabby Giffords, atingida na cabeça em 2011

90

tiros por minuto, é a capacidade da versão semiautomática da AR-15. Os carregadores trocam-se com grande facilidade

Características

É semelhante à G-3 e à AK-47 (Kalashnikov), com um alcance de 550 metros. As suas munições foram desenhadas para infligir o máximo de ferimentos, deslocando-se três vezes mais depressa do que a velocidade do som

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Venda livre?

Bill Clinton proibiu a venda de semiautomáticas (em que se inclui a AR-15) em 1994, mas a lei caducou em 2004, com George W. Bush. Em 2012, Barack Obama impôs uma malha mais apertada para os compradores, mas Donald Trump levantou as restrições


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POR MAFALDA ANJOS*

MARCOS BORGA

PONTOS DA SEMANA

UM ELEFANTE CHAMADO ELINA

*Diretora manjos@visao.pt

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É normal, na escolha dos vicepresidentes ou dos elementos das comissões dos partidos, surgirem algumas aves raras para agradar às bases e ceder aqui e acolá a alguma corrente considerada relevante. O que é menos normal é que estes vices sejam um elefante na sala que leva tudo à sua frente, incluindo a bonomia de que devia gozar o recém-empossado líder. Rui Rio, que até conseguiu envolver o antigo adversário num daqueles saltos engrupado à retaguarda que só Santana consegue protagonizar, acabou chamuscado com o apupo geral, no Congresso e fora dele, a Elina Fraga. Descontentamento que se traduziu em números: apenas Luís Filipe Menezes, com 61,8%, teve em 2007 uma votação mais baixa do que Rui Rio para a sua Comissão Política Nacional. Não é de estranhar o descontentamento do universo laranja. Elina, conhecida por ser um Marinho e Pinto em versão feminina, notabilizou-se pelo belicismo e pelas críticas ferozes ao governo de Passos Coelho e ao ministério de Paula Teixeira da Cruz, e não tem grandes amigos no universo judicial. Nas suas intervenções, não perdia a hipótese de atacar o governo, citando “a fome e miséria em Portugal”, a “classe média esmagada por impostos,

violentada por cortes e reduções de salários e pensões”, e a “produção esquizofrénica de legislação” imposta de “forma autocrática”. Dizia que o estado na Justiça era de “depressão catatónica” e apelava diretamente ao Presidente da República para obrigar a “despertar deste torpor”. Mas, mais do que as críticas de Elina aos governantes laranja, preocupa-me sim a sua visão para a Justiça, que ficou bem clara na Operação Marquês. Elina, que devia ser a maior defensora da independência dos tribunais, acabou por se revelar submissa em relação aos partidos e aos poderosos. Chegou mesmo a usar a Justiça em clara manobra dilatória (aquelas estratégias que os advogados se devem abster a qualquer custo de fazer), apresentando uma queixa-crime por atentado ao Estado de Direito contra todos os membros do Governo PSD/CDS que estiveram presentes na reunião do Conselho de Ministros que aprovou o novo mapa judiciário. Como se não bastasse, está sob suspeita de gestão danosa à frente da Ordem dos Advogados, com base numa auditoria financeira conhecida recentemente, e que está sob investigação do Ministério Público. Se Rui Rio quer, como anunciou, reformar a Justiça, não vê que seja por aqui o caminho.


6,12 NÚMERO

mil milhões de quilómetros

Distância da fotografia mais distante da Terra alguma vez feita. Esta imagem (artificialmente colorida) foi captada pela sonda New Horizon em dezembro de 2017 e divulgada agora pela NASA, mostra dois objetos da Cintura de Kuiper, uma área do sistema solar que se estende para lá da órbita de Neptuno. O recorde anterior tinha sido quebrado exatamente há 28 anos pela Voyager. A nave viaja a uma velocidade de 1,1 milhões de quilómetros por dia, desbravando o que há para lá de Neptuno, e mais além...

DÚVIDAS

Vizinhanças perigosas Depois de Almaraz, é a vez de uma mina de urânio a céu aberto causar tensão ibérica. Esta semana, 40 deputados portugueses visitaram o local para onde está prevista a construção da mina pela australiana Berkeley, a apenas 40 quilómetros de Portugal. Ambientalistas, autarcas e políticos dos dois lados da fronteira temem pelas consequências para populações e ecossistemas, e exigem mais informação, nomeadamente o estudo de impacto ambiental transfronteiriço envolvendo as autoridades dos dois países, o que não aconteceu.

FRASE

“Para ter um Mercedes preto não é preciso ir para a política, basta comprar um táxi velho” António Guterres, no seu doutoramento honoris causa pelo Técnico Servir e não servir-se: deve ser esse o propósito

maior de um político. “O poder pelo poder não faz sentido” disse o antigo primeiro-ministro, homenageado nesta semana por Marcelo Rebelo de Sousa, que lhe chamou “o governante mais consensualmente amado”. Na cerimónia, Guterres falou da sua passagem pela política nacional e da saída do “pântano”. “O que é preciso é saber sair”, afirmou. De preferência, pela porta grande.

ALUCINAÇÃO

FIGURA

A cartilha do bom sportinguista

Mini-Merkel

Esta semana, o presidente do Sporting Bruno de Carvalho e o diretor de comunicação (e ex-jornalista) Nuno Saraiva partilharam conselhos para o Universo Leonino. Aqui ficam os seis mandamentos recomendados pelos dois no discurso e num post público no Facebook... e mais um sétimo que acrescento eu. 1. Não comprarás nenhum jornal desportivo nem aquele outro que vocês sabem (entenda-se, o Correio da Manhã). 2. Não verás nenhum canal português de televisão sem ser por lazer a não ser a Sporting TV. 3. Não participarás como comentador em nenhum programa desportivo de difamação e calúnia com ‘cartilheiro’ e ‘paineleiro'. 4. Não falarás sobre o Sporting a qualquer rádio. 5. Não partilharás links de órgãos de comunicação social nas redes sociais sobre o Sporting. 6. Defenderás o superior interesse do Clube e do Universo Leonino acima de tudo. 7. Pararás o teu cérebro em obediência suprema ao grande líder e renunciarás à tua inteligência e liberdade por causa de um jogo da bola.

Fixe este nome, é bem possível que venha a ouvir falar dela adiante. Chama-se Annegret Kramp-Karrenbauer, tem 55 anos, será a mais do que provável sucessora de Angela Merkel à frente dos democratas-cristãos alemães. Muitos acreditam que esta mulher, uma aliada próxima a quem muitos chamam Mini-Merkel, é a forma encontrada para injetar sangue novo, evitando uma guinada à direita do partido, e preparar a saída de cena da chanceler da vida política. Durante as negociações para a coligação, Annegret teve um acidente de automóvel e continuou a trabalhar da sua cama de hospital.

BREXIT

Renovação, gritam eles Nasceu um novo partido em Inglaterra que tem uma bandeira clara: inverter o processo de saída da União Europeia agendado para março de 2019. O Renew, o partido da renovação assumidamente inspirado

no ‘República em Marcha’, de Emmanuel Macron, pretende ocupar o espaço dos descontentes com o Brexit que o Partido LiberalDemocrata, pró-europeu, não preencher “no centro vazio da política britânica”.

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HOLOFOTE

Elina Fraga A vice indesejada

Quem é Elina Fraga? Advogada, natural de Valpaços, o seu caminho até atingir a liderança da Ordem dos Advogados em 2014 foi feito praticamente na sombra. Tirando o envolvimento na candidatura autárquica do PSD à Câmara de Mirandela em 2005, Elina Fraga raramente tinha justificado algum destaque mediático. Antes de se filiar no PSD passou pelo CDS de forma discreta. Chegou a bastonária com o alto “patrocínio” do seu antecessor, Marinho e Pinto, que foi fundamental para garantir a sua eleição. Manteve-se no cargo apenas um mandato e em 2016 foi substituída pelo atual bastonário, Guilherme Figueiredo. Chega agora à vice-presidência dos sociais-democratas pela mão de Rui Rio, que há muito defende uma reforma na Justiça.

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As críticas a Passos Coelho Enquanto bastonária da Ordem dos Advogados, foi uma forte opositora de Pedro Passos Coelho e do seu governo. O episódio de maior tensão entre Elina Fraga e o ex-primeiro-ministro surgiu em 2014, quando o Conselho de Ministros aprovou a reconfiguração do mapa judiciário, levando ao encerramento de vários tribunais. Criticou duramente as alterações e convocou uma concorrida manifestação às portas da Assembleia da República. À época, e impelida pelo apoio popular, a agora vice-presidente de Rui Rio anunciou uma queixa-crime contra todos os ministros do Executivo passista e confessou estar arrependida por ter votado no PSD nas legislativas de 2011.

VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

EX-BASTONÁRIA DA ORDEM DOS ADVOGADOS É A GRANDE SURPRESA NA NOVA DIREÇÃO DE RUI RIO. CRÍTICA DE PASSOS COELHO, CHEGA À VICE-PRESIDÊNCIA DO PSD DEBAIXO DE POLÉMICAS E... APUPOS JOSÉ PEDRO MOZOS

Um mandato pouco imaculado Esteve apenas três anos à frente da Ordem dos Advogados mas foram suficientes para colecionar polémicas. Além das críticas ao Executivo, apoiou a defesa de José Sócrates nas acusações ao Ministério Público e falou até de um “colapso do sistema judicial”. Os casos continuaram depois de terminar o seu mandato. Uma das primeiras medidas do atual bastonário foi a de auditar as contas do Conselho Geral da Ordem, presidido por Fraga, o que se saldou numa “falta de controlo orçamental” e “suspeita de favorecimento na contratação de serviços.” O relatório foi enviado à Procurador Geral da República e o caso segue no Departamento de Investigação e Ação Penal de Lisboa.

O espanto e os apupos A notícia de que iria fazer parte da Comissão Permanente do PSD apanhou de surpresa o 37º Congresso do partido. O seu nome não tinha nunca surgido como possível vice-presidente, uma indignação que se refletiu em apupos quando foi anunciada. Mas não só. Paula Teixeira da Cruz, ex-ministra da Justiça de Passos, acusou Rio de traição (“todos aqueles que atacaram aquele governo do PSD estão a ser premiados”). Marques Mendes, no comentário televisivo, acentuou: “É um erro e uma cedência ao populismo.” Em sua defensa, saíram David Justino, outro dos seis vices escolhidos por Rio (“Haja tolerância para quem defende a instituição que representa”). E também Fernando Negrão, o atual candidato a líder parlamentar que foi ministro da Justiça durante menos de um mês, no último governo de Passos – substituindo Paula Teixeira da Cruz: “[Elina] pode dar um bom contributo sobre justiça”.


ALMANAQUE

NÚMEROS DA SEMANA

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Novos planetas descobertos fora do Sistema Solar pelo telescópio Kepler. A família de exoplanetas já vai nos 3 600

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Europa ignora diamantes ‘sem sangue’ Diamantes naturais ou sintéticos, criados em laboratório? Por mais questões éticas e ambientais que se levantem, continuamos a comprar em exclusivo os primeiros. Saiba porquê em três pontos 1

‘ G O TA D E Á G U A ’ EM NEGÓCIO BILIONÁRIO

Há dias, numa feira de joalharia, em Vicenza, Itália, o gemólogo Rui Galopim apenas encontrou um stand com diamantes sintéticos, criados em laboratório e mais baratos do que os naturais, extraídos de minas. “Eram poucos, de qualidade sofrível, e só estavam ali como mera curiosidade”, conta à VISÃO. É um exemplo da indiferença europeia, face aos diamantes sintéticos, que contribui para a fraca quota de mercado global desta “joia limpa”, estimada em 3% a 4% do total, o que equivale, no máximo, a seis milhões de quilates (cada um com 0,20 grama). Quase nada perante a produção mundial em 2016, que chegou aos 128 milhões de quilates e rendeu à indústria mineira 64,8 mil milhões de euros. 3

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NÃO TE OUVIMOS, DICAPRIO

Após protagonizar, em 2006, o filme Diamantes de Sangue, o ator e militante ecologista Leonardo DiCaprio tornou-se investidor de uma empresa produtora de diamantes sintéticos. Ali, sublinhou, não existem os “custos humanos ou ambientais da atividade mineira” nos países em desenvolvimento, sobretudo africanos – desde as emissões de CO2 ao financiamento de guerras e à corrupção das elites. Há dois métodos para o fabrico em laboratório daqueles produtos, implicando ambos uma “semente” de diamante sintético: um usa alta pressão e temperatura elevada para que os átomos de carbono se dissolvam na “semente”; o outro utiliza máquinas de vácuo, com baixa pressão e alta temperatura, para que a “semente” receba aqueles átomos e o diamante se forme. Mas a Europa não ouve DiCaprio. Rui Galopim diz que quem quiser comprar em Portugal um diamante de laboratório terá de o encomendar através de uma joalharia, que o adquirirá nas bolsas de Londres ou de Antuérpia. A compra online é desaconselhada, pelo risco de fraude.

GUERRA DE MARKETING

O diamante sintético é um produto artificial com as mesmas características de um diamante natural, definem os especialistas. Rui Galopim diz que “nem à lupa” consegue distinguir um sintético de um natural. Essa triagem só se faz com aparelhos sofisticados. Mas o gemólogo também afirma que os custos de produção e lapidação ainda não permitem a esta nova indústria apresentar, na Europa, preços competitivos. A paridade neste tipo de consumo já existe, porém, tanto na China e Índia como nos EUA e na Rússia, onde estão os maiores produtores de sintéticos. A guerra de marketing começou. As multinacionais da indústria mineira dizem que os diamantes sintéticos não têm a beleza dos naturais e alegam que pagam o carbono que emitem, fazem comércio justo e contribuem para o bem-estar das comunidades. As ONG dizem o contrário – e Rui Galopim prevê um crescimento da quota dos sintéticos até aos 10% em cinco anos, pelo “simbolismo do produto”, à boleia das questões éticas e ambientais levantadas por figuras como DiCaprio. Millennials, estão aí? J.P.J.

Autos de crimes de poluição no Tejo, levantados pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, Ambiente e Ordenamento do Território, em 2017

250 kg

Peso dos pedidos entregues na Direção-Geral de Veterinária para o cultivo industrial de cânhamo, variedade de canábis com baixo teor de Tetraidrocanabinol (THC), responsável pelo efeito psicoativo

€39,5 milhões

Valor que a atividade cinegética rendeu aos cofres do Estado nas licenças pedidas pelos caçadores nas últimas sete épocas

357 milhões

Crianças afetadas por conflitos armados em todo o mundo. Segundo a Save the Children, uma em cada seis vive a pelo menos 50 quilómetros de uma área de guerra

€1100 milhões

Prejuízo atribuído à seca, ao saber-se que mais de metade da área irrigável não será regada este ano, por falta de água 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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INBOX

A quem se questiona tanto sobre as mudanças do meu corpo só me resta dizer que não estou magra, estou doente

M O D É S T I A À PA R T E

Já me senti preso em filmes indie e livre em produções blockbuster

WILLEM DAFOE Artista norte-americano, nomeado para o Oscar de Melhor Ator Secundário, pela sua prestação em The Florida Project

GIGI HADID Manequim, 22 anos, considerada a melhor do ano, em 2016, a confessar que sofre da tiroide e que isso explica as alterações no seu metabolismo e a sua atual magreza.

Tenho medo dos seres humanos sempre convencidos das suas certezas absolutas

GUILLERMO DEL TORO Realizador de A Forma da Água, filme com mais nomeações aos Oscars deste ano

Fiquei um bocadinho invejoso

RICHARD BRANSON Empresário britânico, com uma série de investimentos, entre eles as viagens aeroespaciais, a propósito do feito da Falcon Heavy, do arquirrival Elon Musk

Visitei a região Centro e fiquei completamente chocada

CORINA CREȚU Comissária europeia com a pasta da política regional

Passos não deixa saudades nenhumas.

ALBERTO JOÃO JARDIM, Ex-líder madeirense, às portas do congresso do seu partido

FRASE DA SEMANA

Usar a canábis seria fantástico para algumas patologias

C H O Q U E F R O N TA L

MARIA DO CÉU MACHADO Médica, atual presidente do INFARMED, a defender o cultivo controlado, com prescrição, acompanhamento médico e venda em farmácia daquela substância

Sim, vou suprimir a [sua] presidência honorária. A justiça já o fez, mas ele ainda pertence às instâncias partidárias MARINE LE PEN Líder da Frente Nacional (FN) a garantir que irá afastar o pai, de vez, do partido que ele fundou

Ela só poderá romper as ligações comigo se se suicidar. É o meu sangue que corre nas suas veias. JEAN-MARIE LE PEN A resposta do ex-líder nacionalista francês que vai lançar o 1º volume das suas Memórias a dias do encontro da FN

Fonte: CNN, Correio da Manhã, El País, Expresso, Le Monde, Público, TSF

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TRANSIÇÕES

MORTE

“Morreu a Teresa Belo. A sua dedicação à herança poética do marido foi admirável. É preciso continuá-la, continuando a ler Ruy Belo”, escreveu Manuel Alberto Valente, diretor editorial da Porto Editora, na sua página de Facebook. “Foi das pessoas mais bonitas que encontrei no mundo dos poetas. Agradeci-lhe sempre o modo como, era eu um miúdo desconhecido, me recebeu como gente e me seguiu”, acrescentou, na sua cronologia, o escritor Valter Hugo Mãe. Professora aposentada, a conhecida viúva de Ruy Belo era responsável pelo espólio e divulgação da obra do poeta de País Possível. Dia 17, aos 74 anos. G I O VA N E B R I S O T T O 1 9 8 6 -2 0 1 8

Romancista, ensaísta e dramaturga, Natália Nunes era viúva do poeta António Gedeão, pseudónimo de Rómulo de Carvalho, professor de Física e Química, pioneiro na divulgação da Ciência para gente nova. Considerada – elogio que lhe foi endereçado pelo marido – “unanimemente uma das jovens mais bonitas da capital”, ficaram juntos até à morte dele em 1997 e foi ela quem completou as Memórias, de António Gedeão. “Não te digo adeus, a minha alma estará sempre contigo”, escreveu, no epílogo. Estreou-se literariamente em 1952, com a obra Horas Vivas: Memórias da Minha Infância, e a crítica logo lhe assinalou um “sentido do intimismo e do confessional, do mistério e da solidão”, acrescentando-lhe a “temática feminina e de intervenção social”. Traduziu ainda cinturões negros como Dostoiévski ou Tolstói e, durante os anos da ditadura, foi um dos nomes da resistência. Dia 13, aos 96 anos.

Queria saber o sentido da vida Portador da doença dos pezinhos, era o protagonista do novo documentário de Miguel Gonçalves Mendes “A Paramiloidose familiar (PAF) é uma doença incurável, hereditária, degenerativa e fatal. É popularmente conhecida como 'doença dos pezinhos' por ser nos pés que se manifestam os primeiros sintomas. Até hoje a sua origem continua sendo um mistério.” Assim se apresenta, num dos muitos trailers de O Sentido da Vida disponíveis na plataforma Vimeo, a história da vida de Giovane Brisotto, engenheiro cartógrafo, então quase a cumprir 28 anos. A PAF aconteceu--lhe a ele e ao irmão Geison, mas vai mais avançada no seu caso, adianta ainda um médico, depois de referir que há um tratamento disponível em Portugal. Já sabemos também que, na sua família, morreram todos os que receberam aquele diagnóstico. Giovane nasceu em 1986, em Erechim, no estado do Rio Grande do Sul, cidade onde vivia e trabalhava como engenheiro cartógrafo. Era muito novo quando, ao lado do tal irmão, acompanhou o processo degenerativo da mãe. Foram dez anos de

complicações de saúde sem que os médicos conseguissem decifrar os sinais daquela enfermidade. Depois de a mãe morrer, Giovane correu a fazer o teste para descobrir que havia herdado o gene maldito. Mas foi justamente a doença que o fez aceitar o desafio de dar a volta ao mundo, como parte de um documentário. Escolhido num casting de doentes de Portugal e do Brasil, países onde há o maior número de casos, Giovane largou tudo e embarcou na viagem, revisitando os locais para onde os portugueses, em épocas passadas, também tinham levado a PAF. A ideia era ter um cidadão comum a desafiar heróis da vida moderna sobre o sentido da vida (e é aqui que entram figuras como Valter Hugo Mãe, Baltasar Garzón ou o astronauta Andreas Mogensen). Esta é também a história do novo documentário de Miguel Gonçalves Mendes, cuja rodagem acabou no verão passado. A estreia foi adiada para 2019, o protagonista despediu-se agora. Teresa Campos

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PRÓXIMOS CAPÍTULOS

O mundo já está rendido aos emojis, do Dicionário de Oxford ao Museu de Arte Moderna de Nova Iorque PERISCÓPIO

GAFFE

TECNOLOGIA

Vêm aí emojis novos São 157, devem chegar no verão, e a lista inclui um grisalho, um ruivo, um careca e outro de cabelo encaracolado, chapéus de festa e corações Estão prestes a chegar a todos os smartphones, anunciou a Consórcio Unicode, organização responsável pela definição do padrão global para estes ícones: os emojis que estreiam neste ano devem entrar em ação a meio do verão. Além dos tons de pele diferentes, há outras partes do corpo a merecerem novas imagens: perna, pé, testa, osso e dente. A caminho, está também uma cara com chapéu de festa e uma face ruborizada e rodeada de corações. “Os emojis são uma linguagem em crescimento. Quando deixa de crescer, um idioma morre”, considerou Lauren Collister, especialista em Linguagem e Comunicação da Universidade de Pittsburgh, nos Estados Unidos da América, em declarações à agência Associated Press. A verdade é que crescer e adaptar-se parece fácil para a linguagem dos emojis. A mais recente inovação fora conhecida com o iPhone X, da Apple, o primeiro a permitir enviar animojis, “palavrão” para emojis animados que imitam expressões faciais e conseguem falar, uma modalidade que neste ano vai ser alargada a todos os smartphones. Em 2017, tinham já SÃO UMA surgido as personagens sem género, mãe a amamentar e uma mulher LINGUAGEM EM uma com hijab – e este vocabulário em CRESCIMENTO. expansão deu também outro ar da graça ao aventurar-se na tradução QUANDO DEIXA sua da obra Moby Dick para Emoji Dick. DE CRESCER, UM Antes disso, em 2015, já o “rosto com de alegria” tinha sido declarado IDIOMA MORRE lágrimas “palavra do ano” para o Dicionário LAUREN Oxford. E o reconhecimento do mundo COLLISTER Especialista em da arte chegou pouco depois, quando o Linguagem Museu de Arte Moderna de Nova Iorque e Comunicação adicionou um conjunto de emojis à sua da Universidade de Pittsburgh, nos EUA coleção permanente. T.C. 32

VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

Não há almoços grátis Fevereiro de 2018, dia 15. Enquanto se dirige para a sala do Grupo Parlamentar do PSD, Passos Coelho cruza-se com Assunção Cristas. Julgando tratar-se do último dia de Passos, enquanto deputado, a líder centrista já ensaiava uma despedida à medida, mas foi prontamente interrompida: “Eu não me vou já embora, ainda vou andar por aqui mais duas semanas”, disse o ex-primeiro-ministro. De facto, era o último plenário antes de Rui Rio assumir a liderança do partido, mas não o último do ex-líder socialdemocrata, que só a 28 deixa o Parlamento.

Tentando sair airosamente desta confusão, e depois de ter cometido a pequena gaffe, Cristas respondeu: “Então temos de combinar um almoço”... LUXÚRIA Rio sem Lust Na madrugada de sábado para domingo, dezenas de delegados sociais-democratas foram vistas na discoteca Lust in Rio, no Cais do Sodré. Da JSD, só faltou o líder em funções, Cristóvão Simão Ribeiro. Os candidatos à sucessão, Margarida Balseiro Lopes e André Neves, aproveitaram a ocasião para uma pequena operação de charme. Vá lá que, na manhã seguinte, não houve maratona de discursos.

APAGADO Um lapso do “speaker”? Pode parecer um mero detalhe, mas no domingo, 18, quando todos os membros da Comissão Política Nacional de Rui Rio foram chamados ao palco, houve um que ficou de fora. O líder parlamentar cessante, Hugo Soares (com assento por inerência), não foi convocado para a foto de família e alguns delegados presentes estranharam o “tique estalinista”. “Se é este o esforço de união...”, ironizou um social-democrata insatisfeito.


OPINIÃO

Nova esperança P O R J O S É E D U A R D O M A R T I N S / Advogado e ex-deputado do PSD

E

mbora não seja isso que captou a atenção dos presentes, o Congresso do PSD acabou por lidar também com vários dos temas que, afinal, foram a razão de ser da mudança de líder. O tema “Bloco Central” era, afinal, só um assunto que criámos para animar a campanha interna, tentar criar diferenças onde as não havia, como explicou Pedro Santa Lopes no seu discurso. Mas saber com que posicionamento nos apresentamos aos eleitores que perdemos é, de tudo, o mais importante. E aí, desde um presidente que quer recentrar as prioridades do PSD nos mais desfavorecidos às moções aprovadas contra uma lógica ultramontana e confessional a que parecíamos estar reservados nos últimos tempos, tudo parecem bons sinais. Mas o que mais gostei de ouvir foi que Rui Rio percebe as razões pelas quais perdemos as eleições autárquicas. Que são no fundo a razão da antecipação das eleições no PSD para quem já não está recordado… Nenhum partido pode ser forte no País se não for forte nas principais cidades. Nenhum partido pode ser alternativa de poder sem uma rede forte nas autarquias onde o PSD tem perdido a cada eleição a posição liderante que antes sempre foi a sua. Lisboa é hoje paradigma da mentira que é a governação de esquerda. Uma cidade dual, de 60 mil pessoas a viver em habitação municipal, cerca de 20% da população da cidade, e de um mercado livre que só é acessível a muito ricos e estrangeiros. Lisboa está a expulsar a sua classe média sem um pingo de remorso. Em Lisboa, o PSD tem de voltar a ser o que é da sua matriz: o defensor da classe média, do pequeno e médio empreendedor, dos jovens com rasgo, da integração com a experiência dos mais velhos. Sabemos que a recuperação de emergência do País teve um preço elevado junto deste nosso eleitorado, mas temos de mostrar que passado esse período de emergência é com o PSD que estas pessoas são acarinhadas.

Lisboa é hoje pela mão do governo de esquerda uma cidade planeada inteiramente pelos privados. Mas é possível ter um equilíbrio entre vários direitos, entre um mercado regulado pelo interesse público e o valor da livre iniciativa. É isso a social-democracia. A CML investiu nos eixos centrais, assim como se fosse um mestre de cerimónias de uma exposição, mas deixou para trás os bairros. Benfica, S. Domingos, Campo de Ourique, Telheiras, Restelo, Olivais, Alvalade, Alta de Lisboa… o Parque das Nações que está a envelhecer e ainda não tem a escola que lhe falta. Tantos e tantos bairros da classe média da Lisboa precisam de mais estacionamento, de melhor espaço público, de melhores ligações e transportes, de qualificar os seus mercados e comércio local. E precisam de manter a habitação acessível aos filhos de Lisboa, que não podem ser empurrados para a periferia da área metropolitana e que têm o direito de viver na proximidade dos seus pais e avós. O PSD não pode aceitar esta política de perpetuação da pobreza e da dependência do Estado, em que, ao fim de 40 anos de políticas públicas de habitação, Lisboa seja a capital da Europa com mais bairros sociais e maior percentagem de população a viver em bairros sociais. Lisboa precisa de uma visão reformista, progressista, centrada nas pessoas, moderada e não revolucionária. Lisboa precisa do PSD. Mas o projeto para Lisboa não se faz no último ano ou nos últimos 6 meses. Não vamos de novo procurar o empenho de um Fernando Negrão, de um Fernando Seara ou de uma Teresa Leal Coelho, em cima da meta e sem tempo. Desengane-se quem pensar que, por mal gerida, a cidade nos vai cair no colo. Lisboa e Porto conquistam-se, e esse caminho tem de começar a tempo. Com ideias e com protagonistas. Até porque, afinal, a vitória no País se decide nos grandes centros urbanos.

Lisboa e Porto conquistam-se, e esse caminho tem de começar a tempo. Com ideias e com protagonistas. Até porque, afinal, a vitória no País se decide nos grandes centros urbanos

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VIAGEM AO CORAÇÃO DAS TREVAS Em julho de 1941, centenas de judeus polacos foram trancados num celeiro e queimados vivos pelos seus vizinhos. O massacre de Jedwabne, símbolo do papel obscuro da Polónia na II Guerra Mundial, ilustra a incapacidade de enfrentar fantasmas e a vontade de criminalizar quem se atrever a pisar o gelo fino da memória. Percurso pelas encruzilhadas do país através da geografia perturbadora da História. Guiados por páginas incómodas e João Pinto Coelho, o escritor que se pôs a jeito M I G U E L C A R VA L H O

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DIANA TINOCO


Memorial O escritor João Pinto Coelho visitou, em Jedwabne, o monumento que assinala o massacre de 1941

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mal e os perpetradores que vivem amansados dentro de nós. Ou ao lado. Em versão literária, é um regresso. Mas, pela primeira vez, João calcorreia a Jedwabne real ao ponto de enregelar os ossos. “A primeira sensação foi de silêncio, quebrado pelo crocitar dos corvos que descrevi no romance sem saber que aqui existiam, muito menos nesta quantidade”, descreve, pesando as palavras. “Quando vou a sítios marcados por um sofrimento atroz, e tendo estado tanto tempo a escrever sobre isso, procuro lidar com as imagens que trago gravadas. Senti um vazio em Auschwitz e agora em Jedwabne. Se mudasse algo no livro, talvez falasse mais dos silêncios, seria essa a ‘personagem’ que acrescentaria.” O INFERNO TAMBÉM FOI AQUI

A Jedwabne não se chega por casualidade. Nem de forma inocente. A pequena cidade do Nordeste sempre foi um corpo estranho na Polónia que exalta o orgulho pátrio enquanto tenta domesticar as sombras do passado traumático. Para chegar à povoação de seis mil pessoas e 48 aldeias é forçoso sair da estrada que deixou Bialystok, lagos congelados e floresta densa para trás e seguir em direção à Avenida do Exército Polaco, marginada de mantos brancos a perder de vista. São nove horas de um dia de fevereiro, amanheceu abaixo de zero e o vento fustiga a paisagem com fiapos de neve. Celeiros dominam o cenário campestre, algumas casas são de madeira velha e os tratores passam pachorrentos. Pequenos santuários cristãos compõem o trajeto e contam-se cinco salões de beleza até chegar ao coração da terra. No Parque João Paulo II, outrora Praça do Mercado, os nativos entreolham-se. Outros assomam, furtivos, às janelas com cortinas de crochê, desconfiados dos forasteiros. Vestem roupas simples, talvez mal agasalhados para o tempo que faz, enquanto entram e saem da mercearia ou da florista sem franquear palavra a estranhos. Para uma cidade cujo nome significa “seda”, a receção é agreste. Desafiados, os velhos ainda desenferrujam russo ou alemão, línguas francas da guerra, mas a rapariga do quiosque nem inglês arranha. Tropeça-se em garrafas de vodka abandonadas nos passeios e, do alto das torres, a Igreja de São Jacob contempla, imponente, o quotidiano da comuna de recorte aldeão. O português João Pinto Coelho já esteve e não esteve aqui. Escavou as origens e memórias da cidade para escrever Os Loucos da Rua Mazur, arrecadando o mais importante galardão literário nacional (Prémio Leya) com a obra inspirada na matança de judeus em Jedwabne. Através de três personagens, o leitor é levado a refletir sobre a universalidade do 36

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O processo Segundo a investigação judicial ao massacre de Jedwabne, concluída em 2002, foram os polacos da cidade e dos arredores os autores do massacre. Ouvidas mais de cem testemunhas, não foi possível encontrar vivos ou identificar os perpetradores, além daqueles que já tinham sido condenados no pós-guerra

Os corvos seguem agitados, como se anunciassem maus presságios. Terão eles agoirado, também, a 10 de julho de 1941? A invasão nazi ocorrera em finais de junho. As ordens eram para varrer a herança dos meses de ocupação soviética, não deixar vestígio judaico e incitar populações locais a tomar em mãos o “trabalho sujo”. Dias antes, a chacina de Radzilów, a 18 quilómetros, deitara por terra esperanças na bondade alemã ou no auxílio polaco. A mortandade excitara ainda mais os ímpetos de camponeses, degredados da região e bandidagem de várias estirpes. Famílias de judeus desataram em fuga. Em Jedwabne, tudo foi premeditado. Manhã cedo, pelo menos 40 habitantes, apoiados por fazendeiros e rufiões de aldeias próximas, bloquearam acessos à cidade e arrancaram os judeus aos seus lares e ofícios. Concentrados na Praça do Mercado, sob um sol escaldante, aí foram mantidos, sem água, todo o dia, enquanto eram esfaqueados ou espancados com forquilhas, pás e bastões. Outros foram perseguidos e assassinados. O festim de crueldade, atiçado e observado à distância por um punhado de soldados alemães, não poupou idosos, grávidas ou recém-nascidos. Séculos de convivência sangraram logo ali. A primeira comunidade de judeus mudara-se de Tycocin para Jedwabne em 1660 e tornara-se maioritária nos primórdios da guerra. Registaram-se vagas clericais de antissemitismo ecoadas em sermões ou vertidas nas folhas paroquiais, mas cristãos e judeus tinham conseguido viver em paz, partilhando carteiras da escola, aniversários, casamentos e até frigoríficos. Pelo meio-dia, dezenas de judeus mais corpulentos foram obrigados a derrubar a estátua de Lenine que perdurara na praça e a carregar os pedaços até às imediações do cemitério judeu. Sujeitos a sórdidas humilhações, cavaram um buraco e acabaram enterrados com os destroços do monumento. As outras centenas seguiram ao entardecer, em


JEDWABNE TEM SIDO DESCRITO COMO UM LUGAR INFELIZ, ATRASADO, TERRITÓRIO DO ‘HOMO JEDWABICUS’, CARICATURA DA ESPÉCIE NACIONAL QUE ENTERRA A CABEÇA NA AREIA E TEM UM MEDO HISTÉRICO DE VERDADES DESAGRADÁVEIS 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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procissão forçada e violenta, para a mesma zona. Aí, cercadas pela multidão engrossada e assanhada, foram trancadas num celeiro. Homens, mulheres e crianças arderam vivos, depois de regados com litros de querosene. Os poucos alemães presentes limitaram-se a tirar fotografias. Os gritos escutaram-se a dois quilómetros e o fedor pairou como castigo sobre a cidade durante dias. Alguns judeus ainda escaparam. Sete sobreviveram durante a guerra escondidos num chiqueiro por uma família cristã, perseguida pelos conterrâneos após o conflito. A comunidade foi extinta e os seus bens destruídos ou saqueados ainda os cadáveres fumegavam. Os criminosos assenhoraram-se de casas, ouro, peles e móveis. “Sim, houve polacos envolvidos”, confirmaram residentes à historiadora Marta Kurkowska-Budzan, aqui nascida, no final de conversas arrancadas a ferros. “O pior é que o fizeram de boa vontade e por dinheiro judeu”, acrescentaram. A “punição” ou a “vontade de Deus” sempre serviram de justificação para as histórias contadas em Jedwabne, através de gerações, escreveu ela. Para muitos, o assassínio em massa de 1941 foi apenas mais um dia em que “o Diabo se estabeleceu na cidade”. Sebastian Grabowski, de 19 anos, vive a oito quilómetros do local do genocídio e a primeira vez que ouviu falar dele foi na TV, em criança. Encontramo-lo em Jedwabne, no supermercado, quando procurávamos um café e ele se preparava para pagar uns nacos de carne. “Venham comigo, dou-vos boleia até uma gasolineira.” Sebastian fala fluentemente inglês, estuda Direito e é um apaixonado por desportos motorizados. Quer saber ao que vimos. “Ah, o massacre... Ninguém te dirá isso aqui, é tabu, mas foram os polacos que mataram os judeus.” “Achas?!” “Não acho, sei!”, afirma, fitando nos olhos sem perder tino na estrada. “Quando tive idade para fazer perguntas, os meus pais contaram-me o que ouviram a quem assistiu a tudo.” O extermínio dos judeus é segredo apenas sussurrado ou aflorado no recato do lar, entre parentes e amigos. Ou quando o álcool entorna conversas de taberna. “Na escola não aprendi nada”, atalha Sebastian. “A minha geração fala sobre o assunto, soube pela televisão e pela internet porque é um tema quente, mas os mais velhos culpam os nazis pelo crime. Não querem ouvir dizer que os polacos foram capazes de fazer tal coisa.” A MALDIÇÃO DA MEMÓRIA

Sebastian era bebé quando, em 2000, o professor de História polaco-americano Jan Gross, recorrendo a documentos inéditos e processos judiciais do pós-guerra, publicou a primeira investigação detalhada sobre o reprimido massacre de Jedwabne. O livro Vizinhos 38

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Rejeição A Polónia nega qualquer hostilidade à comunidade judaica. Segundo a embaixada em Lisboa, o país foi visitado por mais de 150 mil judeus de Israel e centenas de milhares que vivem na diáspora. O Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia, é dos mais procurados

desencadeou a ira de autoridades, da Igreja e da população, mas gerou o maior debate histórico desde a queda do comunismo na Polónia. Pela primeira vez, perguntou-se, em campo aberto: pode uma vítima ser, ao mesmo tempo, um cruel perpetrador? Gross perdeu a condecoração que recebera do Estado, mas Joanna Michlic, coordenadora de uma obra coletiva sobre o tema, e Anna Bikont, jornalista autora de O Crime e o Silêncio, foram duas das investigadoras que mantiveram a controvérsia acesa. No ano passado, também João Pinto Coelho, após falar à VISÃO sobre o seu livro, foi insultado na Imprensa polaca sensacionalista. Comentários exaltados recordaram-lhe a cooperação de Salazar com os nazis, a Inquisição, o colonialismo e o comércio de escravos, desafiando o Estado polaco a levá-lo a tribunal. Numa carta aberta, que mereceu réplica do escritor, Jacek Kisielewsk, embaixador em Lisboa, criticou as declarações “infundadas,


Obras Perguntem a Sarah Gross inspirou-se em Oświęcim (Auschwitz). O segundo livro, em Jedwabne. O que se segue, João Pinto Coelho?

“ARTISTAS E CRIADORES DEVEM LEVANTAR A VOZ”, DIZ JOÃO PINTO COELHO, AUTOR DE ‘OS LOUCOS DA RUA MAZUR’ fora do contexto histórico” e baseadas em “generalizações injustas” citadas no artigo. “Acredito no poder da literatura” assume João, com Jedwabne à flor da pele. “Artistas e criadores devem levantar a voz e usar as suas formas de expressão para fazer o trabalho que alguns possam ver dificultado dentro da Polónia ou noutros lugares.” Jedwabne regressou às páginas da Imprensa mundial na sequência da decisão do governo do Partido Lei e Justiça de criminalizar quem sugerir a existência de “campos de extermínio polacos” ou referir-se “pública e falsamente” à cumplicidade polaca com os crimes do nazismo. O Presidente Andrzej Duda ratificou a lei, mas remeteu-a ao Tribunal Constitucional para clarificação. Está aberto um conflito com a União Europeia, Israel e os EUA. Junta-se a indignação geral dos historiadores, boquiabertos com o facto de tal ter origem no país que conta seis milhões de cidadãos assassinados pelos nazis (metade judeus) e quase sete

mil “Justos Entre as Nações”, liderando as distinções do instituto israelita Yad Vashem atribuídas a quem arriscou a vida pelos judeus na II Guerra Mundial. A Polónia é acusada de tentar neutralizar o escrutínio público do seu passado turbulento e rejeitar a “pedagogia da vergonha”. “O governo não sabe lidar com a grande política”, reconhece Sebastian Grabowski, andando na direção do memorial construído em Jedwabne no sítio do celeiro infame. Até março de 2001, a inscrição na pedra dizia que os nazis ali tinham assassinado 1600 judeus. Em julho seguinte, o então Presidente Kwasniewski deslocou-se ao local para pedir desculpa pelo genocídio em nome da nação polaca. População, autoridades locais e eclesiásticas boicotaram a cerimónia. Houve gestos obscenos, insultos e música alta para abafar os discursos, mas a nova inscrição foi inaugurada. E perdura, mesmo tendo sido vandalizada: “À memória dos judeus de Jedwabne e da área 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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circundante, homens, mulheres e crianças, coabitantes desta terra, que foram assassinados e queimados vivos neste lugar em 10 de julho de 1941”, lê-se. A referência aos nazis foi apagada. Já não existem alusões a perpetradores nem ao número de mortos, matérias inflamáveis. “Não acredito em mais de 300 mortos, como caberiam no celeiro?”, questiona Sebastian, enquanto olha as pedras e ramos de flores, cobertos de neve, junto ao monumento. “Dos irmãos judeus para os irmãos polacos”, lê-se, numa das faixas, com o vermelho e branco da bandeira da Polónia. A exumação superficial levada a cabo em 2001 no âmbito da investigação do Instituto da Memória Nacional, suspensa por razões religiosas a pedido da comunidade judaica, revelou duas valas comuns com restos de 340 corpos. As autoridades retiraram-se, admitindo a impossibilidade de verificar a existência de outras sepulturas no cemitério judeu, o que impede conclusões sobre o número total de vítimas. Além de relógios, joias, moedas, dentes de crianças, utensílios de sapateiros e alfaiates, encontrou-se um número inusitado de chaves e cadeados. Terão as vítimas acreditado num gesto de misericórdia? A descoberta de balas alemãs nas fundações do celeiro parecia ser a prova definitiva da culpa nazi, mas as munições eram da I Guerra Mundial ou posteriores a 1942. “Há ainda muitos equívocos”, admite Sebastian Grabowski, conhecedor dos mitos e conspirações que rondam a terra. “Não consigo julgar estas pessoas”, admite o jovem, interrogando-se em voz alta: “Porque o fizeram? Tinham medo, odiavam judeus? Os judeus fizeram-lhes mal? A realidade nunca é a preto e branco. Não sabemos as razões, embora seja injustificável”, reconhece, pedindo respostas. “Os jovens têm outra educação, sabem mais sobre tudo. Não posso falar por todos, mas a minha geração é mais aberta à verdade, sobretudo à verdade histórica.” QUEM PRECISA DE LIVROS?

Mas que espécie de verdade é aceitável para o povo de Jedwabne? Duas pedras são o que sobra da secular presença judaica: o memorial e o cemitério, onde as silvas e a terra revolvida dão uma imagem desoladora. Os locais não estão sinalizados, mas, a poucos metros, destacam-se o cemitério cristão, de campas majestosas, e o monumento que assinala a morte de 180 pessoas “e dois sacerdotes” pelos soviéticos e nazis. Na praça onde os judeus aguardaram o trágico destino, uma escultura presta tributo aos polacos deportados para a Sibéria e o Cazaquistão. Num livro luxuoso sobre a região, o massacre ocupa cinco linhas na página de Jedwabne e é atribuído aos nazis. Na biblioteca não existem livros sobre o Holocausto, falha que 40

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ESTATÍSTICAS ASSASSINAS

Um quarto dos 219 massacres de comunidades judaicas em cidades e pequenas localidades do Leste da Polónia, após a invasão alemã no verão de 1941, terá sido cometido por cidadãos polacos, encorajados ou não pelos nazis a fazer o “trabalho sujo”. Estes dados, apurados pelos investigadores Jeffrey C. Kopstein (Universidade de Toronto) e Jason Wittenberg (Universidade da Califórnia), serão publicados com mais pormenor em junho quando for lançada a obra Intimate Violence: Anti-Jewish Pogroms in the Shadow of Holocaust

um animador cultural quer colmatar. Kamil Mrozowicz, 31 anos, teve a ideia de criar uma pequena biblioteca de autores mundiais sobre o tema. Estamos em Kucze Wielkie, sua aldeia natal, ainda Jedwabne. O edifício tem um ar degradado, o telhado ameaça ruína e a sala de convívio reclama reforma, mas Kamil não precisa de luxos. Sonha levar conhecimento aos conterrâneos, promover debates com escritores e sobreviventes, falar sobre o massacre e preservar a memória dos judeus de Jedwabne, “nomes, profissões, ruas onde viveram, para que não fiquem anónimos”. Reuniu uma volumosa e contrastada coleção e recebeu das mãos de João Pinto Coelho os seus romances, incluindo Perguntem a Sarah Gross. “Espero humildemente que um dia se torne uma grande biblioteca dedicada ao Holocausto”, assume Kamil. “Jedwabne iniciou uma discussão nacional e foi estigmatizada como a “cidade do mal”. Porque não falamos sobre isso então? Porque não enviamos uma mensagem positiva a partir daqui?”, desafia. Acontece que a presença de câmaras tem, em Jedwabne, o efeito de um pano vermelho


Vítimas Foram, pelo menos, várias centenas, os judeus assassinados em Jedwabne. A antiga sinagoga, essa, ardeu muito antes do crime

SEMPRE SE SOUBE QUEM COLABOROU NO MASSACRE E QUEM ENRIQUECEU À CUSTA DOS JUDEUS ESPOLIADOS. TODA A GENTE SE CONHECE para o touro e há “razões para tal”, admite Kamil. Os residentes sempre souberam quem liderou ou colaborou no massacre e enriqueceu à custa dos judeus espoliados. Sentem-se interrogados em permanência. Toda a gente se conhece e a carga psicológica é demasiado pesada para a maioria da população (75 por cento) que chegou depois da guerra. Os preconceitos também medraram. Jedwabne foi ilustrada como lugar infeliz, atrasado, sem infraestruturas, nem emprego, território do Homo Jedwabicus, caricatura da espécie nacional que enterra a cabeça na areia e tem um medo histérico de verdades desagradáveis. “Vivemos tempos difíceis. É fácil perdermo-nos entre a verdade e a mentira, mas nenhum de nós é responsável pelo que aconteceu”, explica Kamil, que, entretanto, é surpreendido por três vizinhos mal-humorados: duas mulheres (a líder da aldeia e a responsável pela gestão do edifício) e um velho de cara redonda e aspeto rude. Cai a tarde, estão oito graus negativos, mas a conversa aquece. Querem saber quem deu autorização para Kamil entrar com os seus “amigos”, qual o tema da conversa – “aqui não

queremos nada sobre política” – e se o presidente da câmara está a par do que foi dito ou gravado. Kamil nasceu ali, mas é tratado como um mero domingueiro de visita. “Estou a falar sobre literatura do Holocausto e promovo o tema em várias cidades, incluindo as pequenas”, responde ele, apaziguador. “E o que temos que ver com isso?!”, reage o homem, brusco. “Não falaste sobre os judeus que mandaram polacos para a Sibéria”, questiona. “Procuras amigos da Polónia lá fora? São apenas bandidos e ladrões.” O aspeto frágil, o gorro com pompom vermelho e a barbicha loura acentuam o ar inofensivo de Kamil. “Quero mostrar que, mesmo em condições precárias, podemos educar as pessoas, que não somos atrasados.” “Eu sei mais do que tu!”, interrompe o homem, de novo. “Sabes alguma coisa sobre os judeus? Diz aos teus amigos que eles enviaram pessoas para a Sibéria. Podes falar com o meu irmão, ele conta-te.” “Não sou historiador, sou um ativista que apenas quer que as pessoas tenham acesso a livros”, insiste Kamil. “Quem é que ainda lê livros hoje?!”, interroga, em tom de desprezo, 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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E N T R E V I S TA

JOANNA MICHLIC / INVESTIGADORA

“Jedwabne é o símbolo do passado sombrio” Integra o Centro de Estudos de Violência Coletiva, Holocausto e Genocídio, em Londres, e investiga a História da Polónia. Joanna Michlic acusa o governo do seu país de tentar impor uma narrativa heroica e perseguir quem a contraria

M I G U E L C A R VA L H O

Concorda com a criminalização do termo “campos de extermínio polacos”? Criminalizar a expressão a pretexto do seu uso maciço é um argumento mentiroso. Estudiosos da sociedade polaca e da II Guerra Mundial jamais utilizaram o termo, embora outras pessoas o fizessem. A expressão sempre provocou reações sensíveis, mas as organizações judaicas, o museu Yad Vashem e os historiadores condenaram o seu uso, pois os polacos não podem ser responsabilizados pela construção de campos de concentração ou de extermínio. A legislação do governo é, aliás, muito perigosa: não especifica quem, e como, pode ser abrangido pela punição.

sobre o tema, mas agora quer reescrever a História. Devemos enfrentar as nossas páginas dolorosas. Só assim amadurecemos.

ATÉ O PARTIDO LEI E JUSTIÇA CHEGAR AO PODER, O NACIONALISMO RADICAL, XENÓFOBO, RACISTA E ANTISSEMITA ERA MARGINAL. MAS DEPOIS FOI ENCORAJADO. E AGORA TEM PESO’’

A Polónia tem dificuldade em enfrentar o seu passado negro? Nenhuma nação tem apenas páginas heroicas. As relações judaico-polacas na II Guerra Mundial incluem passagens negras e dolorosas. Académicos, clérigos e intelectuais polacos e estrangeiros escavaram esse tema desde 1989, suprimido durante a época comunista. Fizeram-no também com o passado sombrio da Polónia, desenterrando casos como o massacre de Jedwabne. À luz da nova legislação, qualquer professor que pretenda ensinar a II Guerra Mundial e a complexidade moral da natureza humana nesse período arrisca ser processado e preso. É uma situação muito perturbadora.

Falar do genocídio de judeus em Jedwabne ou episódios idênticos é um crime? Falar de Jedwabne como um dos lugares onde polacos mataram os seus vizinhos judeus, apesar de terem andado juntos na escola e se conhecerem bem antes da II Guerra Mundial, será um crime, de acordo com a nova lei. Jedwabne é o coração da escuridão, símbolo do passado sombrio das relações judaico-polacas, mas historiadores e políticos de direita radical desencadearam um processo de negação do que ali ocorreu, responsabilizando os nazis. Entre 2000 e 2002, o Instituto da Memória Nacional fez uma profunda investigação 42

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O Governo está a tentar impor uma narrativa heroica do País? O Partido Lei e Justiça [PiS, no original] pretende focar o ensino da História na grandeza do país e apagar aspetos vergonhosos, tendo em conta a relação com os judeus antes, durante e depois da II Guerra Mundial. Dizem que é o melhor para a construção de uma nação mais forte. O objetivo é mudar a perspetiva da história polaca do século XX, bastante problemática. Vivem-se tempos muito tristes na Polónia.

O que fazer para contrariar isso? Há protestos contra os líderes polacos dentro e fora do país, considerando que a legislação prejudica a imagem e a democratização da Polónia, mas é difícil combater isso. A reforma educativa em curso introduz a narrativa hegemónica e os professores são aconselhados a usar livros que a promovam. Perseguem-se académicos que estudam as páginas mais difíceis da história polaca durante a II Guerra Mundial. Mesmo o enorme papel de milhares de polacos que salvaram judeus deve colocar-se em perspetiva, pois esse heroísmo individual foi criticado e censurado pelas próprias famílias e vizinhos. O estudo desta complexidade histórica, e da natureza humana a ela associada, não tem condições para florir.

Ainda existe um problema judaico na Polónia? Até o Partido da Lei e Justiça chegar ao poder, o nacionalismo radical, xenófobo, racista e antissemita era marginal. Mas depois foi encorajado. E agora tem peso. Aumentaram as atitudes xenófobas, racistas e antissemitas em pequenas e grandes cidades e isso é preocupante para a comunidade de judeus polacos e para estrangeiros que visitam a Polónia. Muitos polacos, mesmo ao nível político e na hierarquia da Igreja, sentem-se envergonhados e condenaram os preconceitos e a discriminação.


Conflito A aldeia de Kamil reagiu mal à instalação de uma pequena biblioteca. A família foi insultada e ele procura outro lugar para o projeto

uma das mulheres. Nos dias seguintes, tudo se complicaria. A aldeia assustou-se, a família de Kamil recebeu olhares censórios na rua e insultos pelo telefone. Ele foi informado de que teria de encontrar outro sítio para montar a pequena biblioteca. “Não desisto. Vou procurar um novo lugar para os livros. Talvez em Lomza”, a vinte quilómetros. VERDADE, MODO DE USAR

A função do veterinário Michal Chajewski, 59 anos, é zelar pelo “bom nome da cidade”. Isso significa não embarcar em “propaganda” e destacar “os numerosos exemplos de heroísmo” da terra durante a II Guerra Mundial, sobretudo contra “o opressor soviético”. Rosto fechado, o presidente da comuna de Jedwabne, eleito pelo partido do governo, recebe os jornalistas e o escritor João Pinto Coelho num gabinete sem luxos, no qual se destacam alguns troféus, o crucifixo na parede e a fotografia com um dos gémeos Kaczynski, que governaram o país. O autarca já passou pelo cargo em 2001, depois de o antecessor, Krzystof Godlewski, ter sido forçado a resignar por organizar a cerimónia sobre o massacre de judeus. “As pessoas recompensaram-me”, disse então Chajewski, originário do Sul. “Sou firme e expressivo, não estou sujeito à propaganda judaica, não me ajoelho, nem abuso da palavra ‘desculpe’”, garantiu, prometendo nunca pôr os pés no memorial, o que, de resto, cumpriu. A região onde se inclui Jedwabne é, desde tempos longínquos, uma fortalezada ultradireita. O autarca sempre namorou setores mais radicais da sociedade polaca, entre os quais figura Leszek Bubel, político marginal da extrema-direita nacionalista e um dos líderes do Comité para a Defesa do Bom Nome de Jedwabne, criado em 2001, “a versão polaca do Ku Klux Klan”, segundo o dramaturgo Tadeusz Slobodzianek. O tal Bubel é autor de brochuras antissemitas distribuídas, em tempos, na região. Para o homem que manda em Jedwabne, a cidade é apenas “um dos muitos sítios onde houve massacres de judeus pelos nazis”. A atual inscrição no memorial é, por isso, “um ato de propaganda contra os polacos” e, como tal, nada se comemora no local. “É preciso iluminar a verdade”, pede Chajewski. Isso implica retomar a exumação dos corpos em Jedwabne. “É uma acusação injusta dizer que os polacos estiveram envolvidos no assassínio sistemático de uma nação, judaica ou qualquer outra. Uma afirmação dessas deve ser tratada por aquilo que é: um crime.” Pode ser apenas um sintoma de que o país precisa deitar-se no divã e enfrentar, de vez, a sua alma negra, mas quando se visita o palpitante Museu da História dos Judeus Polacos, em Varsóvia, as palavras do presidente de Jedwabne e as referências do primeiro-mi-

“VIVEMOS TEMPOS DIFÍCEIS. É FÁCIL PERDERMO-NOS ENTRE A VERDADE E A MENTIRA”, EXPLICA KAMIL, APOSTADO EM DIVULGAR LIVROS SOBRE O HOLOCAUSTO nistro polaco ao “colaboracionismo judeu” no Holocausto soam algo esquizofrénicas. “Aqui só nos interessa a verdade”, garante Marta Dziewulska, diretora de comunicação do labiríntico museu financiado pelo Estado polaco e capitais alemães, israelitas e britânicos, entre outros. Jedwabne tem direito a um canto especial no edifício visitado por mais de 2,5 milhões de pessoas desde 2013. Numa vitrina estão as chaves recuperadas nas imediações do celeiro e há fotos sépia de vítimas. Os polacos desempenharam “um papel fundamental” no crime. Os alemães encorajaram e observaram, “mas não estiveram diretamente envolvidos”. Lê-se. O dia é de entrada livre, acotovelam-se excursionistas, mas não neste setor. Ainda a digerir a passagem pela “cidade dividida entre aqueles que lidam com o passado e aqueles que o negam”, João Pinto Coelho teme pelas vozes “que possam ser abafadas”, mas emociona-se com “o exemplo corajoso” de Kamil e do seu projeto de biblioteca. “Este lugar contraria a história que querem impor-nos, por isso podemos ter esperança.” Ou estará a verdade, na Polónia, condenada a ser uma peça de museu? visao@visao.pt A VISÃO viajou a convite da Leya 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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TUDO O QUE HA CONTRA RANGEL A VISÃO revela o que a investigação tem contra o juiz suspeito de vender sentenças judiciais: a lista dos clientes, as escutas, os emails e os movimentos bancários de uma alegada rede que usava o poderoso Tribunal da Relação de Lisboa

S Í LV I A CA N E C O


€900 MIL

As transferências, cheques, depósitos em dinheiro e pagamentos de contas de Rangel, detetados pela investigação, ultrapassam este montante

270 Rui Rangel já só quase falava por Whatsapp (o sistema VOIP não é rastreável pelas escutas telefónicas) quando cometeu um deslize a 25 de maio de 2017. Nesse dia, desesperado por dinheiro para pagar as contas, o juiz enviou várias mensagens a José Bernardo Santos Martins, o advogado que é suspeito de ser o seu testa de ferro. Apesar de o desembargador ter disfarçado e ter perguntado como estava o assunto “Rita”, Santos Martins respondeu falando de uma “Natércia”, e dizendo que pensava que aquela já teria pago ou iria pagar. Não satisfeito, Rangel voltou a insistir. O amigo advogado respondeu-lhe que ela tinha andado “a juntar das receitas dos restaurantes” e no dia seguinte já pagava: “Ainda é um valor considerável, €1 300.” Mesmo assim, o juiz do Tribunal da Relação de Lisboa voltou a dar ordens: “Mas tem de ser hoje, fala com a Natércia.” Nesse mesmo dia, Santos Martins ter-se-á encontrado com uma secretária de Natércia, que o informou que já tinha feito o pagamento de uma das referências multibanco (no valor de €258,11) e no dia seguinte pagaria a outra. A 18 de agosto, foi Santos Martins quem voltou a abordar o assunto “Natércia” junto de Rangel, informando-o de que “€130” teriam chegado através dela. Santos Martins e Rui Rangel falavam sobre Natércia Pina, funcionária hospitalar e dirigente do PSD Oeiras que é suspeita de fornecer ao marido, empresário da restauração, informações confidenciais sobre os concursos para a concessão de cantinas e cafetarias em hospitais no processo Pratos Limpos e que já foi visada 46

VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

Número de depósitos em dinheiro que Santos Martins e o filho fizeram nas contas do juiz, às vezes três no mesmo dia

€124 MIL

Valor que Santos Martins depositou nas contas de Rangel só no ano de 2013

€10 MIL

Montante que o alegado testa de ferro gastou com despesas de telefone, carro, água, luz, gás e farmácia do juiz

em outros quatro processos judiciais por crimes de burla e de abuso de confiança fiscal. Os procuradores que conduzem a Operação Lex estão convencidos de que Natércia Pina fez pagamentos e transferências bancárias, via Santos Martins, que “beneficiaram diretamente Rui Rangel” ou pessoas indicadas pelo juiz. Natércia é uma das 16 pessoas ou entidades que o Ministério Público aponta como supostos clientes da rede de Rui Rangel. Como sabia que estava a ser investigado pelo Supremo Tribunal de Justiça, Rangel terá tido cuidados redobrados no último ano, evitando falar ao telefone com alegados clientes e procurando não deixar rasto destes alegados trabalhos paralelos. Foi por isso que, a determinada altura, a investigação ficou vidrada nas conversas telefónicas de Rita Figueira, ex-companheira do desembargador e mãe de uma das suas filhas. A 17 de maio de 2017, Rita Figueira contou ao pai, Albertino Figueira, que o juiz do Tribunal da Relação de Lisboa vendia a sua influência junto de clientes que procuravam decisões judiciais favoráveis. E usou expressões pomposas para descrever a alegada atividade oculta do desembargador. Chamou-lhe serviço de “distribuição [de processos] a juiz da sua confiança para decisão a contento” (decisão satisfatória). Acrescentou ainda, nessa mesma conversa, que todo o dinheiro do desembargador estava nas mãos do advogado Santos Martins, nas contas do filho desse advogado (Bernardo Martins) e “lá fora”. Cerca de dois meses depois, a 27 de julho, a ex-companheira de Rangel trouxe ao processo outro pormenor sumarento, confidenciando ao pai que o juiz teria escondido dinheiro numa casa de Santos Martins, na Guarda. Também Santos Martins, detido na Operação Lex por suspeitas de manter negócios privados com Rangel e de ser há anos o guardião do seu dinheiro, esteve sob escuta durante meses. A 30 de maio de 2017, enquanto conversava com um alegado cliente seu e do juiz, desabafou que Rangel tinha “a vida toda enredada” à sua volta, pelo que, se ele caísse, o juiz também cairia e iria ser “uma grande confusão”. Estas conversas são consideradas vitais para a investigação por sustentarem a tese de que Rui Rangel, desde pelo menos 2004, “de forma sistemática e reiterada”, ofereceria a terceiros um alegado poder de influência junto de outros magistrados para conseguir decisões judiciais favoráveis. O Ministério Público chama-lhe “mercado de traficância de influência” e alega que Rangel chegaria mesmo a invocar junto da sua clientela que teria poderes “de manipulação da distribuição de processos aos juízes do Tribunal da Relação de Lisboa” – onde trabalhava e onde chegam os recursos da maior parte dos processos mediáticos do País. Tem 154 juízes e é o fim da linha para muitos arguidos que lutam por uma medi-


A REDE DO JUIZ É escrivão no Tribunal da Relação de Lisboa

Octávio Correia Funcionário judicial

É juíza numa secção civil do Tribunal da Relação de Lisboa

TRIBUNAIS

Fátima Galante Juíza-desembargadora

É juiz na 9ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

Mulher de Rui Rangel

É suspeito de servir de intermediário de Rangel junto de João Rodrigues

RUI RANGEL

Principal arguido da Operação Lex

OS ANGARIADORES/INTERMEDIÁRIOS

Santos Martins Advogado Alegado testa de ferro de Rangel e “distribuidor” de dinheiro

Fernando Tavares Dirigente desportivo Intermediou um pedido de Luís Filipe Vieira

João Rodrigues Ex-presidente da FPF Suspeito de ser um angariador de clientes

Jorge Barroso Advogado Teria negócios com Rangel e intermediava pedidos de Vieira

OS CLIENTES

José Veiga Empresário

Luís Filipe Vieira Presidente do Benfica

Pedro Sousa Ex-assessor do Sporting

Natércia Pina Dirigente do PSD Oeiras

Renato Pereira Hotel Jupiter

Eliseu Bumba MERAP

Jaime Rodrigues Visagest Investments

Vítor Costa Martifer Empresário/ empresas

José Figueira Não identificado

Paulo Morais Presidente da Fundação Pro-Justitiae

Mário Benavente Ligado ao Dubai

Álvaro Matos Não identificado

Rui Fernandes Empresário

Inaete Merali Banqueiro moçambicano

Mamade Idrisse Empresário

Sandro Não identificado

OS “BRANQUEADORES”

Bernardo Martins Filho de Santos Martins Nas suas contas terão entrado montantes para Rangel

Nuno Proença Enteado de Santos Martins Pagou despesas de Rui Rangel e fez-lhe serviços

Bruna Amaral Ex-companheira de Rangel Suspeita de receber dinheiro de atos ilícitos do juiz

Albertino Figueira Pai de Rita Figueira Suspeito de receber dinheiro de Rui Rangel

Rita Figueira Ex-companheira de Rangel Suspeita de ajudar a branquear o dinheiro do juiz 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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JUIZ PEDE AJUDA PARA ACÓRDÃOS

A 31 de março de 2017, Rui Rangel diz a Fátima Galante que não consegue fazer seis acórdãos até segunda-feira. Diz que vai enviar-lhe três e que os outros ficam para a semana seguinte.

Fátima Galante responde:

RANGEL DÁ ORDENS A TESTA DE FERRO

A 25 de maio de 2017, Rangel envia uma SMS a Santos Martins e pergunta: “O assunto da Rita Figueira” [sua ex-mulher] “está resolvido?”

Santos Martins responde: “Penso que a Natércia pagou”, referindo-se a uma alegada cliente

“Ok, está bem!”

A 3 de julho de 2017, Fátima Galante envia uma SMS a Rangel sobre o mesmo assunto:

“Papi, já enviei relatório do 2º acórdão”

da de coação mais reduzida, uma vez que só algumas penas permitem que se recorra para o Supremo Tribunal de Justiça (tribunal acima da Relação). É também o tribunal para o qual se recorre das decisões de juízes de instrução. Ou seja: é onde um arguido pode tentar invalidar escutas e arrestos de bens ou reduzir as suas medidas de coação. MAIS DE €900 MIL E 270 DEPÓSITOS

A 8 de janeiro deste ano, dia em que o juiz Pires da Graça ia interrogar Rui Rangel no Supremo Tribunal de Justiça, o desembargador optou por ficar em silêncio. Uma sala cheia de caixas com documentos esperava pelo juiz, mas o seu advogado João Nabais alegou que uma hora seria insuficiente para consultar todo o processo. Além das escutas telefónicas, o Ministério Público já tinha concentrado em dossiers os emails apreendidos nas primeiras buscas e 29 apensos bancários que mostram em pormenor como ele iria recebendo dinheiro dos alegados clientes. 48

VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

Não se dando satisfeito com a resposta, Rangel volta a insistir e Santos Martins explica que Natércia ia pagar no dia seguinte: “Tem estado a juntar das receitas dos restaurantes. Ainda é um valor considerável, €1300”

€550 MIL

Total do montante que entrou nas contas de Rangel e de Galante através de Santos Martins (€394 mil em numerário e €156 mil em cheques e transferências bancárias)

Rangel pede que Santos Martins confirme se Natércia Pina vai mesmo pagar. E este diz: “Penso que ela já pagou ou vai pagar em função das receitas”

Mas Rangel não desiste e dá instruções a Santos Martins: “Tem de ser hoje. Fala com a Natércia”

Uma boa parte das verbas chegaria via Santos Martins. O advogado terá depositado €394 mil em dinheiro vivo em contas conjuntas do desembargador com a juíza Fátima Galante (com quem Rangel ainda é casado oficialmente), entre janeiro de 2007 e janeiro de 2017. Ao todo, terão sido 270 depósitos em numerário, havendo dias em que houve três em três agências bancárias distintas. 2013 foi o ano em que mais dinheiro vivo caiu nas contas de Rangel via Santos Martins: 124 mil euros. O advogado alega que fazia há anos pagamentos a Rangel e a Galante para saldar uma dívida decorrente de negócios imobiliários. Mas a frequência das operações e a sofreguidão de Rangel nos pedidos de auxílio financeiro deixam o Ministério Público com muitas dúvidas sobre esta defesa. Além dos depósitos em numerário, Santos Martins terá feito chegar às contas de Rangel mais €156 mil através de cheques e transferências bancárias. Terá ainda assegurado


pagamentos de um crédito pessoal contraído por Rangel e Galante junto da Credibom, num total de perto de €48 mil; comprado móveis para Rangel de quase €20 mil e cedido perto de €10 mil para pagar despesas do juiz com telefone, carro, água, luz, gás e farmácia. A investigação também detetou depósitos de Santos Martins nas contas de Rita Figueira e do seu pai, Albertino Figueira, e desconfia que o advogado suportou pelo menos uma parte das rendas mensais de €2 350 de um apartamento no Saldanha, em Lisboa, onde Rangel morou entre 2012 e 2013. Alguns destes movimentos bancários estão até sublinhados a negrito no processo. O Ministério Público reparou, por exemplo, na coincidência das datas dos depósitos nas contas de Rui Rangel com as datas de transferências do ex-agente de futebolistas José Veiga para Bernardo Martins, filho de Santos Martins – porque coincidem com dois momentos: um primeiro, em que Veiga manda a Santos Martins o recurso que ia apresentar no Tribunal da Relação de Lisboa; um segundo momento, já após Veiga ter sido absolvido por aquele tribunal superior. José Veiga encabeça a lista de alegados clientes de Rangel: é suspeito de ter pago pelo menos €280 mil pelas alegadas influências de Veiga nesse processo da Relação de Lisboa; de ter intercedido junto de Rangel para saber informações sobre o estado de um processo fiscal pendente no Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra, e para que influenciasse a juíza da Relação de Lisboa a quem tinha sido distribuído um processo que visava Pedro Sousa, ex-assessor de comunicação do Sporting e amigo de Veiga. O Ministério Público ainda está à procura de indícios que demonstrem se Rangel exerceu influência junto desses juízes, como terá prometido a Veiga. A análise aos movimentos bancários ainda não está concluída, mas a investigação já suspeita de que, no final, os valores somados ficarão aquém dos montantes alegadamente pagos a Rangel pela sua clientela, já que algumas quantias terão sido entregues em mãos ao desembargador, ou diretamente pelos clientes, ou pelo intermediário Santos Martins, quando se encontravam no escritório do advogado no 4.º andar do número 30 da Avenida de Berna. Para já, o Ministério Público terá descoberto que o magistrado encontrara outras formas mais criativas de receber dinheiro pelos seus alegados serviços. Nalguns casos os clientes seriam chamados a pagar contas do juiz, usando as referências multibanco; noutros, assinariam contratos de arrendamento e pagariam as rendas de apartamentos em Lisboa. Até ao momento, a investigação já detetou transferências, cheques, depósitos, pagamentos de rendas, de contas e de outras despesas do

LIGAÇÕES SUSPEITAS Rui Rangel é suspeito de, desde 2004, vender a sua influência para conseguir decisões judiciais favoráveis. José Veiga terá pago ao juiz para ser absolvido pelo Tribunal da Relação de Lisboa e ter-lhe-á pedido ajuda em mais dois processos. Luís Filipe Vieira terá prometido bons cargos no Benfica em troca dos bons ofícios de Rangel junto de uma colega do Tribunal Administrativo e Fiscal de Sintra. Mas a lista ainda não está fechada. A investigação vai ter de cruzar a alegada clientela do juiz com os arguidos dos seus acórdãos e de sentenças de outros tribunais.

OUTRAS NEGOCIATAS

Rangel não venderia só as suas capacidades para influenciar sentenças. Também se dedicaria a outras atividades jurídicas remuneradas, violando o dever de exclusividade a que os juízes estão obrigados. O MP já identificou 16 alegados clientes. Muitos pagaram por pareceres jurídicos ou ajudas de Rangel na obtenção de vistos.

dia a dia de Rangel ou de pessoas próximas no valor de mais de €900 mil. CENTRO DE ALTO RENDIMENTO DO SLB

Mas afinal quem são estes clientes de Rui Rangel? A lista não está fechada, e o Ministério Público assume que ainda falta cruzar a lista da alegada clientela do juiz com os visados nos processos que decidiu ou foram decididos noutros tribunais. Para já, a investigação suspeita da existência de 16 clientes que terão sido angariados por Rangel, Jorge Barroso ou Santos Martins num esquema em que os três partilhariam as vantagens obtidas com esses serviços. Essa lista tanto engloba nomes sonantes, como o de José Veiga ou de Luís Filipe Vieira, como o de desconhecidos apresentados apenas pelo nome próprio. Nalguns casos, estarão em causa suspeitas mais graves de tráfico de influência para conseguir decisões judiciais favoráveis; noutros serviços jurídicos prestados pelo juiz do mais variado tipo, desde pareceres para parcerias público-privadas relacionadas com pescas em São Tomé a ajudas na obtenção de vistos. Comecemos por um dos mais sonantes: Luís Filipe Vieira. Em 2017, o dirigente benfiquista Fernando Tavares e o advogado Jorge Barroso terão intermediado um pedido para que Rangel influenciasse uma juíza que tinha nas mãos um processo fiscal relacionado com uma empresa de Vieira, hoje designada como Votion – Investimentos Imobiliários. Era importante, dizia o presidente do Benfica, pelo menos saber “o nome do juiz” e que a questão estivesse resolvida antes do encontro com os “marqueses”. Em troca, Rangel teria um cargo bom no Benfica, com um salário “atrativo” de diretor. Por várias vezes, ao telefone, Jorge Barroso terá pedido a Rangel para que ele não se esquecesse do assunto. Enquanto o juiz ia desviando a conversa ou dando respostas vagas, como “está a andar”, e Jorge Barroso se queixava de que o desembargador era “um baldas”, Luís Filipe Vieira dizia que ia “apertar” com Rangel para ver se este resolvia aquele problema. O juiz e Jorge Barroso terão mantido outros contactos relacionados com negócios do SLB que nada tinham que ver com processos judiciais. Ao longo de 2017, discutiram a formulação dos estatutos para um projeto de uma fundação conexa com o Benfica, serviços de catering para o SLB e os planos para construir um centro de alto rendimento, apetrechado de um hotel e de uma clínica, nos terrenos da Câmara de Lisboa, onde é o Rock in Rio. Para o último projeto, Jorge Barroso terá mesmo chegado a encontrar-se com Azim Jamal, membro do grupo Azinor, que controla a cadeia de hotéis Sana, apresentando-se como amigo de Rangel e sugerindo um jantar com Luís Filipe Vieira. 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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Ao mesmo tempo, Rangel também terá intermediado encontros entre Barroso e Jaime Rodrigues, administrador da Visagest Investments, em que seriam discutidos negócios com o grupo de investidores que adquiriu o BES de Cabo Verde. O BANQUEIRO MOÇAMBICANO E O EX-MINISTRO ANGOLANO

Não foi a primeira vez que a investigação se debruçou na Visagest. Em 2010, Santos Martins foi informado por Jaime Rodrigues de que a empresa Levon Construções devia 45 milhões de dólares à Visagest e que o pagamento estava dependente de um financiamento bancário que só seria desbloqueado se o governo angolano emitisse uma declaração de dívida à Levon. No seguimento desta conversa, Jaime Rodrigues disse a Santos Martins que seria necessário “um empurrão” e que, caso esse empurrão fosse dado, haveria compensações financeiras “muito atrativas”. O advogado com escritório na Avenida de Berna escreveu um email a uma mulher chamada Nady, dizendo que seguia as instruções de “Rui”, o “meritíssimo” e “amigo em comum”. Prometeu-lhe uma compensação monetária e identificou Carlos Feijó, ex-chefe da Casa Civil e ex-ministro de Estado do governo de Angola, como a pessoa que podia influenciar o Ministério das Finanças angolano a emitir a declaração. Santos Martins ainda deu nota à Nady de que os 2,5 milhões de dólares afetos àquela questão seriam libertados, assim que o banco aprovasse o financiamento à Visagest. Em comunicações posteriores, fica claro que a Visagest terá conseguido atingir estes objetivos com a intervenção de “pessoas influentes”. E, em 2011, a empresa volta a aparecer nos emails de Santos Martins, numa relação com Renato Pereira, ligado à Hotel Jupiter e que também aparece no processo Lex como suspeito de ser cliente de Rangel. Em julho de 2011, Santos Martins propôs-lhe um projeto de reabilitação de um hotel no Porto e adiantou-lhe que o negócio podia ser feito em Angola e pago em kwanzas. Em novembro, Renato Pereira concordou em ceder um patrocínio de €1 500 à tuna académica do filho de Rangel e, em dezembro desse ano, acedeu que a sua empresa disponibilizasse à Visagest €80 mil. Esse dinheiro destinar-se-ia a financiar uma viagem de Jaime Rodrigues, administrador da Visagest, aos Emirados Árabes Unidos, na companhia do general Higino Carneiro. O Ministério Público acredita que Renato Pereira pagava os serviços de Rui Rangel e de Santos Martins “de forma dissimulada”, usando a conta bancária de Bernardo Martins. Em junho de 2012, as relações entre os três azedaram, queixando-se Renato Pereira, num email, de que entregara dinheiro a Santos Martins, porque o mesmo lhe dissera que era “para o Rui”. 50

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EMAILS REVELAM QUE FÁTIMA GALANTE CHEGOU A FICAR ZANGADA POR O ALEGADO TESTA DE FERRO DE RANGEL NÃO LHE FAZER OS PAGAMENTOS DE FORMA TÃO RÁPIDA COMO AO JUIZ

Já a Visagest não saiu de cena. O Ministério Público desconfia que a empresa poderá ter pago algumas das rendas mensais do apartamento que Rui Rangel arrendou, em 2012, na Praça Duque de Saldanha, em Lisboa. Isto porque Santos Martins remeteu para um email da empresa, com o assunto “Saldanha Piso 5”, uma mensagem do proprietário do imóvel dando conta de que pretendia rescindir o contrato de arrendamento por falta de pagamento. Rangel acabaria por deixar este imóvel em julho de 2013, data em que encontrou outro, na Avenida Infante Santo, com quatro lugares de garagem e uma renda mensal de €3500. Eliseu Bumba, um angolano que é arguido no caso Vistos Gold e a quem Rangel terá prestado serviços, terá suportado, através de uma das suas empresas angolanas (a MERAP), os pagamentos da renda desse apartamento, onde Rangel morou durante 31 meses. Essa ajuda terá permitido ao juiz poupar €108 500. Até fevereiro de 2016, o juiz foi enviando a Santos Martins faturas da água, gás, luz e MEO que ascendiam aos€ 721. Nenhuma estava emitida em seu nome. Os contactos entre Rangel e Eliseu Bumba decorreram pelo menos entre 2010 e 2013. Em 2011, €10 mil de Eliseu Bumba, e que se destinavam a uma conta de Santos Martins, terão sido trazidos para Portugal por Renato Pereira, da Hotel Jupiter. O juiz do Tribunal da Relação de Lisboa e os seus alegados colaboradores andariam há anos a apostar noutros mercados. É assim que aparece no processo um banqueiro moçambicano: Inaete Merali, presidente do Moza Banco. Apesar de ser arguido no Rota do Atlântico, por suspeitas de receber subornos de empresas para conseguir obras públicas no Congo Brazzaville, José Veiga não parou de apostar em negócios naquele país. Barroso fez a ponte entre o empresário e o banqueiro moçambicano, para um esquema de financiamento de hospitais públicos no Congo que deveria envolver os fundos árabes de Inaete Merali. Barroso iria relatando a Rangel o andamento destes projetos. O juiz terá ainda sido chamado a arranjar um parecer para uma PPP, no âmbito do setor das pescas em São Tomé e Príncipe, e não se terá inibido de exigir um pagamento a quem lhe fez este pedido (Paulo Morais e Silva, presidente da Fundação Pro-Justitiae). Estas relações da rede chegam também a países árabes e apanham a multinacional Martifer. Em 2009, Vítor Costa, gestor da Pink Bubble, escreveu um email a Santos Martins, dizendo-se desiludido com os resultados de uma viagem de negócios a um país árabe. Antes disto, Santos Martins tinha enviado outro email com a descrição da viagem, do itinerário e de quem integrava a comitiva, incluindo aqui a Pink Bubble/staff do xeique e a Martifer/Prio, representada pelos fundadores Carlos Martins


CONFIDÊNCIA DO GUARDIÃO DO DINHEIRO

A 30 de maio de 2017, Santos Martins diz a um cliente que se cair, Rangel também cai: “Ele tem a vida toda enredada à minha volta. Iria ser uma grande confusão”

EX-MULHER FALA DO DINHEIRO DO JUIZ

A 17 de maio de 2017, Rita Figueira conversa com o pai sobre a fortuna do juiz. Conta que “o dinheiro todo” de Rui Rangel está com Santos Martins, nas contas do filho e “lá fora”. E ainda diz que o juiz oferece um serviço de “distribuição” de processos a “juiz da sua confiança”

LUÍS FILIPE VIEIRA DESAGRADADO

A 24 de junho de 2017, Jorge Barroso, alegado intermediário, fala com Vieira sobre Rangel: “Ele é um baldas”

Luís Filipe Vieira responde: “Tenho de apertar com o Rangel, para ver se ele resolve” aquele problema

e Jorge Martins. Nesse texto, Santos Martins dizia que os representantes da Prio poderiam dar uma “oferta de €40-50 mil ao ministro do Interior” do país em causa, o que leva o Ministério Público a suspeitar de corrupção de titulares de cargos políticos no comércio internacional. No último ano, Santos Martins foi dando informações ao minuto a Rui Rangel sobre o dinheiro que ia entrando nas contas. O advogado chegou ao ponto de sossegar o nervosismo de Rangel, dizendo-lhe que “o homem que traz o dinheiro” estava a chegar. Na verdade, nestes últimos meses, o desembargador foi dando instruções quase diárias a Santos Martins para que aquele fizesse pagamentos diversos. O advogado destacou o seu enteado Nuno Proença para socorrer o juiz nos seus apertos. Um dia, Nuno levava embrulhos de dinheiro a uma das ex-companheiras de Rangel, noutro dia tinha de pagar contas, noutro tinha de ir instalar a Via Verde no carro do desembargador e noutros ainda tinha de ir buscar €1 000 a uma comerciante de Algés, para depois entregar esse dinheiro a Fátima Galante, a juíza com quem Rangel ainda é oficialmente casado. O juiz saiu do Supremo Tribunal de Justiça indiciado por tráfico de influência, fraude fiscal e branqueamento de capitais, e impedido de contactar 31 pessoas. Todos aqueles que são suspeitos de serem seus clientes estão nessa lista. A defesa de Rangel irá alegar que muitos destes serviços não constituem crimes, apenas condutas que podem sofrer sanções disciplinares. A matéria disciplinar dos juízes prescreve passado um ano dos factos. A MULHER PARCEIRA NOS ACÓRDÃOS

TESTA DE FERRO ACALMA RANGEL

A 25 de outubro de 2017, Santos Martins diz a Rui Rangel: “O homem que traz o dinheiro está a chegar”

FÁTIMA GALANTE PEDE DINHEIRO

A 26 de julho de 2017, Fátima Galante [juíza e mulher de Rui Rangel] envia uma longa SMS a Santos Martins: “Urgente. Deposita €1 300 na conta de Rui porque vêm contas para trás incluindo a eletricidade.” A juíza pede ainda a Santos Martins para fazer um depósito “sem falta” naquele dia numa conta sua. “No mínimo €3 500”, diz, pois precisava de pagar “o empreiteiro da casa do Algarve”. E termina insistindo: “Ambos têm de ser feitos hoje”

Fátima Galante também se remeteu ao silêncio no Supremo Tribunal de Justiça. É suspeita de ajudar a dissimular os dinheiros oriundos das atividades de “traficância de influência” e outras negociatas. Emails do processo mostram que a juíza também pedia a Santos Martins para lhe pagar um carro e outras despesas. Se em algumas alturas se queixava ao advogado por aquele dar preferência a Rangel, noutras ela própria dava instruções para que Santos Martins pagasse despesas do juiz, como a renda da casa do Alto do Dafundo, onde Rangel agora mora. Galante é ainda suspeita de ajudar Rangel a fazer acórdãos. O Ministério Público detetou vários pedidos de Rangel neste sentido. Em março de 2017, o juiz queixou-se de que não conseguia fazer seis acórdãos até à segunda-feira seguinte e disse a Galante que lhe ia enviar três e que os outros ficariam para a semana seguinte. Em outubro, o desembargador voltou a queixar-se da falta de tempo: tinha 12 acórdãos para fazer até ao final da semana, pelo que ia enviar alguns à juíza da área cível. Em julho, perante mais um prévio pedido de Rangel, Galante enviou-lhe esta SMS: “Papi, já enviei relatório do 2º acórdão.” 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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WORLD PRESS PHOTO

E A IMAGEM DO ANO É...

O FAMOSO GALARDÃO DE FOTOJORNALISMO MUDOU AS REGRAS: HÁ SEIS CANDIDATAS A MELHOR FOTOGRAFIA DO ANO. A CONVITE DA VISÃO, TRÊS FOTÓGRAFOS PORTUGUESES EXPLICAM O QUE VEEM NELAS S Í LV I A S O U TO C U N H A

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Se o World Press Photo fosse o barómetro definitivo sobre o estado do mundo, as previsões seriam tendencialmente pessimistas. O concurso internacional que distingue a excelência no fotojornalismo tem revelado, sobretudo, as convulsões no planeta vistas pelas câmaras dos profissionais. Este ano houve candidaturas oriundas de 125 países, tendo sido selecionados, em oito categorias, 42 fotógrafos de 22 países (Portugal não consta da lista): 15 foram já anteriormente distinguidos pelo WPP, 27 foram escolhidas pela primeira vez, num total de 312 nomeações. A VISÃO é a organizadora da exposição The World Press Photo 2018, que inaugurará em Lisboa, a 26 de abril. No ano passado, a fotografia vencedora do WPP 2017, da autoria do turco Burhan Ozbilici, foi polémica: captava o assassínio a tiro do embaixador russo, numa galeria de arte, em Ancara. Este ano, as regras novas do galardão diminuem o suspense: a organização revelou já seis imagens candidatas a Fotografia do Ano (que será revelada a 12 de abril). A VISÃO mostra-as, comentadas por três fotógrafos: Alfredo Cunha, um dos mais conceituados fotojornalistas portugueses, Luís Vasconcelos, diretor do Festival Estação Imagem (dedicado ao fotojornalismo) e ex-editor de fotografia da VISÃO e Augusto Brázio, fotógrafo documentarista, membro do extinto coletivo Kameraphoto, galardoado com o Prémio Fotojornalismo VISÃO/BES 2008. Todos têm opinião sobre este novo método do WPP: “Revelar as seis imagens finalistas faz-nos pensar e refletir sobre todas em vez de nos concentrarmos na fotografia vencedora”, defende Brázio. Luís Vasconcelos crê que é uma forma de “criar expectativa junto da comunidade que se interessa pelos WPP” mas expressa reservas: “Isto não são os Oscars...” Sublinha ainda a qualidade do fotojornalismo atual, tal como Alfredo Cunha, que denuncia, num período de “agonia” para o jornalismo, o paradoxo de existir fotojornalismo de grande qualidade, como se vê no WPP 2018: “Um ano grande de fotografias que não se prestam a subjetividade nem a manipulações.”

LONDRES

Toby Melvill

AGÊNCIA REUTERS

Uma anónima ajuda uma vítima do atropelamento na Ponte de Westminster ocorrido a 22 de março

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Acabara de acontecer o ataque levado a cabo por Khalid Masood ao volante de um carro, que matou cinco pessoas e feriu muitas outras, às portas da sala de decisão dos Lordes britânicos. Esta é a imagem do WPP que mostra que “o horror já não está longe, está aqui, está em todo o lado”, defende Alfredo Cunha. O olhar desta mulher ferida impressiona: dramático e direto, interpela o fotógrafo e observador. “Esta pessoa não devia ser a notícia, é a pessoa que ouve as notícias”, uma troca de papéis sublinhada pelo fotojornalista. Outro veterano, Luís Vasconcelos, sublinha a carga dessa proximidade, também patente no facto de ser uma rapariga loura, europeia. “É uma imagem próxima de nós, não uma figura num conflito distante, o que aumenta o impacto desta fotografia de Toby Melvill, que é efetivamente uma das melhores do ano”, defende. À história percetível sem legendas, ele aponta ainda a bela composição: “É uma fotografia muito forte: o olhar, o sangue no canto da boca, os postais turísticos espalhados no chão, o braço a agarrar quem a ajuda... Não tem nada a mais nem a menos. Transporta-nos para esse drama, para essa rua.” A desconhecida que ajuda outra desconhecida, dobrando-se sobre o sangue, tem um grande simbolismo captado por Augusto Brázio: “A normalidade foi interrompida por uma ação violenta. Mas há, aqui, esperança. Esta imagem é uma poderosa mensagem.”


MOSSUL, IRAQUE

Ivor Prickett Os civis que permaneceram em Mossul, durante a batalha com o Estado Islâmico, fazem fila para receber ajuda

O fotógrafo irlandês foca as lentes nas consequências humanas dos conflitos nesta região. Mossul alimentou igualmente muitos telejornais em 2017. Levante-se a questão: estaremos dessensibilizados? “Esta é uma boa fotografia de reportagem, não mais do que isso. Já vimos muitos retratos de refugiados com estes elementos e enquadramento, esta imagem não surpreende. Não nos vamos lembrar dela por muito tempo”, preconiza Luís Vasconcelos, ainda recordado dos portefólios sobre a queda de Mossul que o impressionaram no Festival Visa pour l'Image: “Aqui, sinto que não há movimento, não há emoção”, confessa. Outro olhar é apresentado por Augusto Brázio, tocado pelo “epicentro” desta fotografia, uma menina loira (encurralada? protegida?) que ele descreve como “alguém que não sabe o que vai acontecer”. O fotógrafo documentarista encontra, aqui, ecos da realidade mais suja dos conflitos: “Continuamos a cometer as piores atrocidades, e os civis são sempre o elo mais fraco, usados como escudos humanos. Esta imagem faz-nos pensar: a maneira como Ivor Prickett criou o enquadramento, com as duas linhas de horizonte paralelas, quebradas por este rosto central, mas tudo aquilo carregado sobre a figura infantil. Está tão ordenado que parece que alguém os está a coreografar...” Outros universalismos são ressalvados por Alfredo Cunha por entre a “exaustão, passividade assustadora e esperança” da multidão na imagem (uma das suas favoritas a vencedora do ano): “Afinal, os árabes não são todos feios, porcos e maus: são altos, baixos, loiros, gordos, magros, como os outros povos... Somos todos humanos.” 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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MAIDUGURI, NIGÉRIA Adam Ferguson Aisha, 14 anos, sequestrada pelo Boko Haram, escapou duma missão suicida para a qual foi enviada com um cinto de explosivos

O fotógrafo australiano, em reportagem feita para o The New York Times, retratou raparigas raptadas pelo grupo terrorista Boko Haram, que, instadas a fazerem-se explodir em zonas urbanas movimentadas, conseguiram fugir e pedir ajuda. Entre elas, inclui-se Aisha, protagonista de uma das seis imagens candidatas a melhor fotografia do ano do WPP: rosto meio coberto, janelas cerradas, cores atenuadas. Para Augusto Brázio, esta fotografia “traz mais camadas de significados”: “A imagem não é óbvia, foi aquela em que me detive mais tempo a observar. Há uma luz, modelar, que não chega a revelar o rosto, captado exatamente ao centro. Há um exterior, que não sabemos o que é. Há a história da sua coragem, alguém que conseguiu não afundar-se na tragédia.” É também um retrato mais contido, sem sangue ou armas ou violências óbvias, ao contrário de outras imagens associadas ao histórico galardão internacional. “É um daqueles casos: uma foto bonita com bela luz e enquadramento, o mistério reforçado pelo facto de não se reconhecer o rosto. Mas se não soubermos a história, esta imagem limita-se a ser um bom retrato e, na minha opinião, nunca seria o retrato do ano”, declara Luís Vasconcelos. O diretor e cofundador do Festival Estação Imagem sublinha ainda: “Contar a história sempre foi fundamental no fotojornalismo. No Estação Imagem, valorizamos sobretudo as histórias. O WPP continua a viver, em termos de imagem para o exterior, em função da ‘fotografia do ano.’” Opinião semelhante tem Alfredo Cunha: “É uma técnica muito usada, a de um bom retrato com uma boa história. Mas esta fotografia tem o 'azar' de estar ao lado de outras imagens muito fortes. E isso é como, no campeonato de futebol, ter o Benfica com o Eusébio em campo...” 56

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NOME?

PREMIO? OPoreicaest fugitin BANGLADESH ellia nisBrown ipsus Patrick sendus eatio. Imolo Refugiadosexcessequi rohingya totatemped após o naufrágio officimagnam laborepe do barco onde cem voluptias maiore, pessoas tentavam fugir de Myanmar. Só 17 sobreviveram

É certamente difícil enfrentar esta imagem registada por Patrick Brown, fotojornalista radicado na Tailândia há 20 anos, que registou os cerca de 80 corpos de vítimas da etnia rohingya, depositados a oito quilómetros de Inani Beach, cobertos por panos humildes. É também, de entre as seis imagens escolhidas, aquela sobre a qual se poderia levantar uma velha questão: deve fotografar-se tudo, mostrar tudo? “Isto é o horror”, atira Alfredo Cunha. “Mas eu acredito que se deve sempre fazer a fotografia, que esse gesto é importante. Neste caso concreto, os corpos estão tapados, houve um pudor...”, assinala. O dito valor-choque funcionou com Augusto Brázio: o fotógrafo assume evitar ver estas imagens e não esconde a perturbação perante a visão destes corpos deitados no relvado, os pés assim descobertos, os panos tintados de vermelho. “Estas fotografias não são neutras, são formas de chamar a atenção para a realidade. E esta imagem de Patrick Brown ganha força porque revela essa realidade sem revelar a identidade das vítimas”, considera. Se a causa dos rohingya é bem conhecida do público, Luís Vasconcelos considera, no entanto, que a questão destes refugiados não se pode esgotar assim. Diz o fotojornalista e ex-editor de fotografia da VISÃO: “Esta é uma imagem imensamente trágica, fortíssima, com uma boa composição técnica. Mas não me parece que o drama dos rohingya se limite aos cadáveres de um barco que se afundou.”

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CARACAS, VENEZUELA

Ronaldo Schemidt Manifestante em chamas num confronto com a polícia durante os protestos contra o Presidente Maduro

José Victor Salazar Balza, 28 anos, é uma tocha humana nesta imagem de violenta espetacularidade, captada pelo fotojornalista venezuelano a trabalhar para a Agence France Press na Cidade do México. “Esta fotografia é fotojornalismo puro e duro na sua essência”, diz, sem rodeios, Alfredo Cunha. E explica: “É a fotografia de coragem: o fotógrafo está lá. Devido ao seu impacto, ela pode ter o poder de mudar alguma coisa.” Questionado sobre essa outra questão ética, levantada em anteriores edições do WPP, sobre o socorro que um fotógrafo pode ou deve prestar perante estas situações, o fotojornalista português é resoluto: “Essa é uma falsa questão: é importante que o mundo inteiro veja esta imagem, é por isto que ainda somos jornalistas.” E não esquece de colocar a hipótese de o fotógrafo ter, de seguida, ajudado o retratado. Um mesmo impacto é expresso por Brázio e Vasconcelos. “Esta é uma fotografia arrepiante e simbólica, porque se trata de um regime incendiário, de um homem que incendiou um povo. Aqui, há um corpo em desespero, em chamas, que irrompe no enquadramento e que, através da sua proximidade, nos faz uma tangente. Este fotógrafo tem um propósito: mostrar o que acontece no país. E consegue-o”, declara Augusto Brázio. Luís Vasconcelos não camufla o “voto” de “júri sem o ser”: “Esta é a fotografia vencedora do WPP. De todas as imagens a concurso, é a mais forte. Basta ter a simples palavra 'Venezuela' para que esta imagem tenha todo o significado: um país em chamas devido à política desastrosa de Maduro. A composição é muito boa: por trás do manifestante a arder, há algo mais a arder também; a proximidade, fundamental no fotojornalismo, está lá; a fotografia tem imensa ação; há o drama de te manifestares e pegares fogo. Mas este homem não se imola em protesto, e isso faz toda a diferença. E conta toda a história da Venezuela. Se conta!”

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MOSSUL, IRAQUE Ivor Prickett Criança ao colo de um suspeito de ser militante do Estado Islâmico, durante a evacuação da última área controlada pela organização

O fotojornalista representado pela Panos Pictures tem duas imagens suas no grupo das seis “finalistas” do WPP, incluindo esta imagem captada em Mossul, reveladora da destruição da cidade e cenário do interrogatório feito por soldados das Forças Especiais do Iraque a um homem que segura o rapazinho nu. “Para mim, esta é ‘a’ fotografia. A fotografia que eu gostaria de ter feito”, declara Alfredo Cunha, fotojornalista experiente que já esteve em Mossul. E explica as suas razões: “Tem uma humanidade fantástica, extraordinária, sem artifícios nem maneirismos estéticos. É outro exemplo de jornalismo puro e duro, e mostra uma réstia de esperança no meio do caos.” Mas a forma de ver uma dada fotografia é sempre subjetiva, tanto por parte do público como de quem tem um olhar treinado. Também com reportagens efetuadas no Iraque no currículo, Luís Vasconcelos filtrou com outros critérios a imagem de Ivor Prickett: “Não posso comentar sobre a suspeita a que a legenda da imagem alude... Mas esta é uma boa fotografia de reportagem, melhor do que a outra também selecionada: tem os intervenientes no sítio onde as coisas acontecem, a cidade destruída... Mas a ação é algo parada, e não me parece fotograficamente relevante”, conclui. Outras leituras e suspeitas são suscitadas por Brázio: “Esta fotografia é representativa do que é o World Press Photo. Mas experiencio alguma dificuldade perante esta imagem, porque há uma ambiguidade perturbadora: a de não sabermos o que se passa, se este individuo é um militante do Estado Islâmico ou se na verdade esta criança está viva...” Uma interrogação que, depois de colocada, abre um abismo a quem vê a fotografia por uma segunda vez.

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SOZINHO EM CASA

QUAIS AS PRINCIPAIS TARAS E MANIAS DE DONALD TRUMP NA CASA BRANCA? AS RESPOSTAS PODEM SER ENCONTRADAS EM ‘FOGO E FÚRIA’, O LIVRO DE MICHAEL WOLFF, CUJA EDIÇÃO PORTUGUESA ACABA DE CHEGAR ÀS LIVRARIAS (ACTUAL EDITORA). EM EXCLUSIVO PARA A VISÃO, EXTRATOS DA OBRA EM QUE SE REVELA, POR EXEMPLO, COMO O PRESIDENTE DOS EUA RECEIA SER ENVENENADO MICHAEL WOLFF

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A solidão do poder Donald Trump passa a maior parte do seu tempo nas áreas reservadas da Casa Branca, sobretudo no segundo andar da residência, onde fica a sua suíte. Por ter mandado instalar uma fechadura na porta do quarto, criou um diferendo com os serviços secretos, que é suposto terem sempre acesso ao Presidente

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A OBRA E A FÚRIA DE TRUMP

Ao fim das primeiras semanas da sua presidência, surgiu entre os amigos de Trump uma teoria segundo a qual a sua atuação não tinha um nível presidencial ou, na verdade, não levava de forma alguma em conta o seu novo estatuto, nem o obrigava a restringir o seu comportamento – desde os tweets às primeiras horas da manhã, até à sua recusa em seguir guiões, passando por telefonemas de autocomiseração junto dos amigos, pormenores dos quais já estavam a chegar à imprensa – pelo facto de o novo Presidente não ter dado o salto que outros antes dele haviam dado. A maioria dos presidentes chegava à Casa Branca vindos de uma vida política mais ou menos comum, e não podiam deixar de se sentir intimidados pela súbita ascensão a uma mansão com empregados e segurança dignos de um palácio, um avião permanentemente pronto a descolar e, no andar de baixo, um séquito de cortesãos e conselheiros. Tudo isto, no entanto, não seria assim tão diferente da sua vida anterior na Trump Tower, mais cómoda e mais a seu gosto do que na Casa Branca, com empregados, segurança, cortesãos e conselheiros sempre presentes e um avião sempre pronto a descolar. A grande diferença de ser Presidente não era, para ele, de todo evidente. Outra teoria postulava exatamente o contrário: sentia-se totalmente fora do seu ambiente aqui porque todo o seu mundo bem ordenado fora virado de pernas para o ar. Segundo esta perspetiva, Trump, com os seus setenta anos, era uma criatura de hábitos com um nível inimaginável para pessoas que não detêm um controlo despótico do seu ambiente. Vivera sempre na mesma casa, um vasto espaço na Trump Tower, após a conclusão do edifício em 1983. Todas as manhãs desde então, a sua viagem para o trabalho consistia 62

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Caprichoso, fanfarrão, ignorante, incompetente, sem escrúpulos, eis alguns dos adjetivos que Michael Wolff não precisou de usar no livro de quase quatrocentas páginas que escreveu sobre Donald Trump. O jornalista que já colaborou com o USA Today, a Vanity Fair ou o Hollywood Reporter faz um relato impiedoso do 45º Presidente dos Estados Unidos da América, após ter falado com o próprio biografado, em junho de 2016, e ainda com uns 200 funcionários da Administração – incluindo Steve Bannon, o principal estratega da Casa Branca que viria depois a ser demitido, há oito meses, por ser a grande fonte inspiradora de Michael Wolff. Ao conhecer o conteúdo da obra, Trump prometeu vingança e tentou impedir a publicação do livro, o que viria a contribuir para o seu enorme sucesso editorial, com mais de dois milhões de exemplares vendidos. E isto pode ainda vir a dar origem a uma série de televisão.

em descer alguns andares. O seu gabinete de canto era uma cápsula temporal dos anos 80, com os mesmos espelhos debruados a ouro, as mesmas capas da Time a desbotar na parede; a única alteração substancial fora a substituição da bola de futebol americano de Joe Namath pela de Tom Brady. Fora do seu gabinete, para onde quer que olhasse, via os mesmos rostos, os mesmos colaboradores – criados, segurança, cortesãos, os “yes people” – que sempre o haviam acompanhado. “Consegue imaginar a perturbação que se sofre quando é isso que se faz todos os dias e, de repente, se vai parar à Casa Branca?”, interrogava-se um amigo de longa data de Trump, sorrindo perante este golpe do destino, quando não castigo abrupto. JANTARES E AMIGOS IMPROVÁVEIS

Trump achou a Casa Branca, um edifício antigo alvo de meras manutenções esporádicas e renovações casuísticas – incluindo um famo-


so problema com baratas e roedores – motivo de vexame, e mesmo um pouco assustadora. Os amigos que admiravam os seus dotes de hoteleiro perguntavam-se por que razão não renovava simplesmente as instalações, mas ele parecia assustado com o peso dos olhos que o vigiavam. Na Casa Branca, Trump retirou-se para o seu próprio quarto – era a primeira vez, desde a Casa Branca de Kennedy, que um casal presidencial dormia em quartos separados. Nos primeiros dias, mandou instalar dois televisores, a juntar ao que já lá se encontrava, e uma fechadura na porta, criando uma breve tensão com os serviços secretos, que insistiam em ter acesso ao quarto. Passava reprimendas ao serviço doméstico por lhe apanharem a camisa do chão: “Se a minha camisa está no chão, é porque eu a quero no chão!” De seguida, impôs um conjunto de novas regras: ninguém toca em nada, especialmente na minha escova de dentes. (Há

Família especial Durante os primeiros seis meses de Trump na Casa Branca, a primeira-dama e o seu filho mais novo, Barron, de 11 anos, residiram em Nova Iorque devido às obrigações escolares do jovem. Mas esta é a primeira vez desde os tempos de John Kennedy (1961-63) que um casal presidencial dorme em quartos separados

muito receava ser envenenado, razão por que gostava de comer no McDonald’s – ninguém sabia que ele estaria presente, e a comida era tranquilizadoramente pré-cozinhada.) Além disso, fazia saber ao serviço doméstico quando queria que lhe mudassem os lençóis, e desfazia ele próprio a cama. Se não marcava presença no seu habitual jantar das seis e meia com Steve Bannon, então, mais a seu gosto, estava na cama por essa hora com um cheeseburger, a ver os seus três televisores e a fazer chamadas – o telefone era o seu verdadeiro ponto de contacto com o mundo – para um pequeno grupo de amigos, entre os quais, mais habitualmente, Tom Barrack, que registavam os seus níveis crescentes ou decrescentes de agitação ao longo da noite, comparando depois as observações entre si. Após o começo atribulado, porém, as coisas começaram a correr melhor – ou mesmo, na opinião de alguns, a adquirir 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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um cariz presidencial. Na terça-feira, 31 de janeiro, numa cerimónia em horário nobre e eficientemente coreografada, um Presidente Trump bem-disposto e confiante anunciou a nomeação do juiz federal Neil Gorsuch para o Supremo Tribunal. Gorsuch era uma perfeita combinação de impecável postura conservadora, probidade admirável, e credenciais legais e judiciais a toda a prova. A nomeação constituía não apenas o cumprimento da promessa de Trump às bases e ao establishment conservador, mas igualmente uma escolha que parecia bem presidencial. A nomeação de Gorsuch representou igualmente uma vitória para uma equipa que vira Trump, com o seu trabalho milionário e constante gratificação, vacilar uma e outra vez. Satisfeito com o acolhimento recebido pela nomeação, especialmente por os media não poderem apontar-lhe grandes defeitos, Trump transformar-se-ia rapidamente num fã de Gorsuch. Mas antes de se decidir por ele, interrogava-se por que não havia o cargo de ser confiado a um amigo fiel. Do seu ponto de vista, era um desperdício dar o lugar a alguém que nem sequer conhecia. Em diversos momentos do processo, percorrera a lista de todos os seus amigos advogados – todos escolhas improváveis, quando não peculiares, e, em quase todos os casos, sem perspetivas de sucesso político. A única opção improvável, peculiar e sem perspetivas de sucesso político a que Trump regressava constantemente era Rudy Giuliani. FANTASIAS NOTURNAS E EM ROUPÃO

Os media têm um filtro cuidadoso, ainda que seletivo, no que toca a retratar a vida real na Casa Branca. O Presidente e a Primeira Família não são, pelo menos habitualmente, sujeitos ao tipo de perseguição de paparazzi que no caso das revistas sociais resulta em fotografias pouco lisonjeiras, embaraçosas ou mesmo ridicularizantes, ou em especulação interminável acerca das suas vidas privadas. Mesmo no meio dos piores escândalos, é ainda atribuída ao Presidente uma formalidade empresarial, de tipo fato e gravata. As sátiras presidenciais do Saturday Night Live fazem-nos rir, em parte, porque põem em causa a nossa crença de que, na realidade, os presidentes são figuras contidas e aprumadas, e as respetivas famílias, caminhando pouco atrás, insípidas e obedientes. A piada sobre Nixon era a sua cruel rigidez – mesmo no auge do Watergate, a beber intensamente, não abandonou a gravata, ajoelhado a rezar. Gerald Ford tropeçou à saída do Air Force One, gerando grande divertimento nesta interrupção da postura formal presidencial. Ronald Reagan, provavelmente sofrendo já os primeiros efeitos da doença de Alzheimer, permaneceu um retrato cuidadosamente geri64

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TRUMP E AS HISTÓRIAS DA TRETA No próximo mês será lançado mais um livro que promete novas revelações sobre Trump. Intitulado The Gatekeepers (Os Guardiões, ainda sem edição portuguesa), o seu autor é Chris Whipple e retrata as experiências dos chefes de gabinete dos últimos presidentes dos EUA. Claro que o testemunho mais aguardado é o de Reince Priebus, demitido dessas funções por Donald Trump, a 28 de julho. Este dirigente do Partido Republicano, segundo a revista Vanity Fair, reconhece que os seis meses passados na Casa Branca foram a loucura total: “Multipliquem por 50 tudo o que ouviram contar.” A começar logo no primeiro dia, 20 de janeiro de 2017, com a polémica sobre o número de pessoas que foi à tomada de posse. Trump não admitia que houvesse menos gente do que ele pretendia e acusava os jornalistas de deturparem a realidade: “Esta história é uma treta.”

do de calma e confiança. Bill Clinton, no meio da maior falta de decoro da história moderna, era ainda assim retratado como alguém que mantém o controlo da situação. George W. Bush, apesar de todo o seu alheamento, era, não obstante, apresentado pelos media como estando dramaticamente ao leme. Barack Obama, porventura para desvantagem sua, era constantemente apresentado como reflexivo, estável e determinado. Este é em parte o benefício de um controlo obsessivo da imagem, mas acontece igualmente porque se espera que o Presidente seja o executivo por excelência – ou então, porque o mito nacional lhe exige que o seja. Era esse, de facto, o tipo de imagem que Donald Trump tanto trabalhara para projetar ao longo da maior parte da sua carreira. Esta imagem corresponde a um tipo de ideal de empresário dos anos 50. Aspira a parecer-se com o pai – ou, em todo o caso, a não lhe desagradar. Exceto quando equipado para o golfe, é difícil imaginá-lo sem fato e gravata, pois quase nunca o faz. A dignidade pessoal – isto é, a aparência de verticalidade e respeitabilidade – é uma das suas obsessões. Sente-se desconfortável quando os homens à sua volta não vestem fato e gravata. Formalidade e convenção – antes de se tornar Presidente, quase todos os seus interlocutores sem estatuto de celebridade ou muitos milhões de dólares no banco o tratam por “Mr. Trump” – constituem uma parte fundamental


da sua identidade. A informalidade é inimiga da pretensão. E a sua pretensão era que a marca Trump representasse poder, riqueza e realização pessoal. A 5 de fevereiro, o New York Times publicou uma reportagem realizada na Casa Branca segundo a qual o Presidente, ao fim de duas semanas, deambulava pela casa a altas horas da noite de roupão de banho, incapaz de se entender com os interruptores das luzes. Trump perdera a cabeça. Era, observou de forma não totalmente incorreta o Presidente, uma forma de o retratar como estando a perder as faculdades mentais, como Norma Desmond no filme Crepúsculo dos Deuses, uma estrela decadente ou mesmo senil que vive num mundo de fantasia. (Era esta a interpretação feita por Bannon da imagem de Trump projetada pelo Times, e rapidamente adotada por todos na Casa Branca.) E, evidentemente, uma vez mais, era uma coisa dos media – estava a ser tratado como nunca nenhum outro Presidente fora tratado. GARGANTA FUNDA DE TODA A GENTE

Esta noção não era de todo incorreta. O New York Times, nos seus esforços de fazer a cobertura de uma presidência aberrante, acrescentara aos seus habituais ataques à Casa Branca uma espécie de nova forma de cobertura noticiosa. Ao mesmo tempo que realçava os anúncios feitos pela Casa Branca – separando o trivial do importante – o jornal

Formalidades obsessivas Donald Trump vive em função da imagem e das aparências. Todos os homens à sua volta têm de estar de fato e gravata (na foto, com o vice-presidente Mike Pence e o demitido chefe de gabinete Reince Priebus). Michael Wolff diz que, para o Presidente, a informalidade é “inimiga da pretensão”, da vontade de exibir “poder, riqueza e realização pessoal”

realçava igualmente, com direito a primeira página, tudo o que era absurdo, digno de dó, demasiado humano. Estas reportagens transformavam Trump numa figura ridícula. Os dois repórteres da Casa Branca mais consistentes nestes ataques, Maggie Haberman e Glenn Thrush, passariam a fazer parte das recorrentes queixas de Trump sobre os media não lhe darem tréguas. Thrush tornar-se-ia mesmo uma personagem permanente nos sketches do Saturday Night Live que zombavam do Presidente, dos filhos, do secretário de imprensa, Sean Spicer, e dos conselheiros Bannon e Conway. O Presidente, se muitas vezes efabulava na sua descrição do mundo, era bastante literal relativamente à forma como se via a si próprio. Por isso, contestava o retrato que dele se fazia como alguém quase demente ou gravemente confuso a caminhar a meio da noite pelos corredores da Casa Branca, insistindo que nem sequer tinha roupão de banho. – Eu pareço-vos o tipo de pessoa que usa roupão de banho, a sério? – perguntou ele, e não jocosamente, a quase todos aqueles com quem se cruzou ao longo das 48 horas seguintes. – Falando a sério, estão a ver-me de roupão de banho? Quem fora o autor da fuga? Para Trump, os pormenores da sua vida pessoal tornavam-se subitamente uma maior fonte de preocupação do que todos os outros tipos de fugas noticiosas. O escritório de Washington do New York Times, ele próprio bastante preocupado com a possível ausência de um verdadeiro roupão de banho, lançou uma contrafuga segundo a qual era Bannon o autor da história. Bannon, que se via a si próprio como uma espécie de buraco negro do silêncio, tornara-se igualmente uma espécie de voz oficial do buraco negro, o Garganta Funda de toda a gente. Era perspicaz, intenso, com a sua teórica descrição sempre a ceder a um constante comentário semipúblico acerca das pretensões, vacuidades e insanável falta de seriedade da maioria dos outros ocupantes da Casa Branca. No final da segunda semana da presidência Trump, todos na Casa Branca pareciam ter a sua própria lista de autores prováveis de fugas, e davam o seu melhor para as emitirem, antes que alguém os referisse a eles. Mas uma outra fonte provável de fugas na Casa Branca era o próprio Trump. Nos seus telefonemas durante o dia, e à noite na cama, falava frequentemente com pessoas que não tinham quaisquer razões para não cometer inconfidências. Ele era um poço de lamentações – incluindo sobre a lixeira que, vista de perto, era a Casa Branca. E, numa coscuvilhice implacável, muitos dos seus interlocutores nestes telefonemas espalhavam prontamente muitos desses exemplos. visao@visao.pt 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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FOCAR

“Ninguém, no seu perfeito juízo, começa uma guerra sem saber como pretende conduzi-la e que objetivos se propõe alcançar” Carl von Clausewitz Estratega militar alemão (1780-1831)

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Rutura Presidente da bancada do PS desfaz as dúvidas e avisa a direita de que ou tem maioria absoluta ou volta a ser empurrada para a oposição

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‘‘Não viabilizamos um Governo minoritário do PSD’’

Carlos César diz que a geringonça é “repetível” e que os parceiros privilegiados voltarão a ser o BE e o PCP. Elogia a disponibilidade de Rui Rio para dialogar, mas considera que o líder social-democrata “não disse nada que Passos Coelho não pudesse ter dito”

TIAGO MIRANDA

O C TÁV I O L O U S A D A O L I V E I R A

suspeita já existia, sobretudo entre os sociais-democratas mais céticos, mas Carlos César tratou de desfazer as dúvidas e deixou um sério aviso a Rui Rio. Em 2019, mesmo que o PSD vença as legislativas, dificilmente conseguirá formar Governo. Em declarações à VISÃO, o presidente e líder parlamentar socialista foi cristalino: “A posição do PS tem um histórico recente que fala por si. Nós não viabilizamos um Governo minoritário do PSD. Não viabilizámos agora [nesta legislatura], porque haveríamos de viabilizar em 2019?” Mesmo que, em entrevista ao Público e à Rádio Renascença, ainda durante a campanha para as diretas, o novo presidente social-democrata se tenha mostrado “disposto” a suportar, “a nível parlamentar”, um Governo minoritário do adversário, César enfatiza que o contrário não acontecerá. Pedro Santana Lopes, no Congresso do PSD, já tinha alertado Rio de que não acreditava que Costa tivesse um ato desse tipo. E prevenira o homem que enfrentou no combate interno: “Até admitia viabilizar um Governo [PS] se eles primeiro batessem com a mão no peito e um dia, quando ganhássemos as eleições sem maioria absoluta, viabilizassem um Governo nosso.” Agora, César confirma esse receio. O figurino “ideal”, aponta o dirigente socialista, será uma maioria absoluta do partido liderado por António Costa, mas, caso esse cenário não se concretize, o “compromisso” que considera “repetível” passa pelos partidos à esquerda do PS. “Se não tivermos maioria absoluta, evidentemente teremos gosto em sentarmo-nos à mesa com aqueles que foram os nossos parceiros [BE, PCP e PEV] no decurso destes quatro anos”, antecipa. Sem se alongar acerca da estreia de Rio ao leme do PSD, o presidente da bancada socialista frisa, porém, que a mudança imediata face ao antecessor de Rio reside na forma, não tanto no conteúdo. “O dr. Rui Rio não disse nada que o dr. [Pedro] Passos Coelho não pudesse ter dito, ou que já não tenha dito. A única diferença é que há uma maior predisposição para o diálogo. A nova direção do PSD pretende encurtar a distância para o Presidente da República, para o Governo e para todos os partidos na Assembleia

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Fernando Negrão ‘‘Não há nenhum líder que tenha sido eleito com todas as pessoas do mesmo lado...”

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da República – isso é algo que naturalmente se saúda –, mas não há nenhuma notícia sobre o conteúdo e sobre o objetivo desses diálogos”, sustenta. No entanto, à esquerda, começam a surgir os primeiros sinais de inquietação sobre arranjos parlamentares entre o PS e o PSD. Se António Costa tem, por um lado, as posições conjuntas a limitá-lo numa série de matérias, por outro, começa a ser indisfarçável a satisfação por ter ganho um novo interlocutor na São Caetano, onde fica a sede do PSD, que permitirá alcançar acordos – já defendidos por Marcelo Rebelo de Sousa – que com Catarina Martins e Jerónimo de Sousa serão impossíveis. Veja-se o caso da Segurança Social. Costa garantiu que não haverá mexidas nas pensões em pagamento e Rio assegurou que a sua intenção passa por tomar medidas que garantam a sustentabilidade do sistema, reformando-o, “daqui a 10, 20 ou 30 anos”. BE e PCP agitam-se, porque associam reformas a cortes, mas têm o amparo dos acordos assinados em novembro de 2015. O panorama é semelhante no caso da Taxa Social Única (TSU): os parceiros do PS defendem a penalização das empresas que abusem da contratação de trabalhadores a termo, ao passo que Costa e Rio prefeririam incentivar as sociedades que optem pelos vínculos efetivos, desagravando a contribuição que é paga atualmente (23,75%). Talvez por isso, pelo Bloco, Pedro Filipe Soares sublinhe que “não se vê” no PSD de Rio “um projeto tão diferente do que tinha o PSD de Passos Coelho”. Tendo ainda como âncora a ideia de reforma da Segurança Social, nota que o seu partido tem “muitas dúvidas em acompanhar propostas de cortes em serviços públicos e pensões e de privatização de algum tipo de Estado Social”, o que, justifica, “parece ser o que está na calha no lado do PSD”. E, pelo meio, lança um recado dirigido ao Largo do Rato, caso Costa sinta a tentação de se voltar para a direita e de negociar no Parlamento com Fernando Negrão e a renovada direção da maior bancada no hemiciclo: “O PS avaliará essa intenção...” Apesar disso, o líder parlamentar bloquista opta por contornar a questão sobre as próximas legislativas, uma vez que a recusa do PS em dar luz verde a um Executivo chefiado por Rio, observa,

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MARCOS BORGA

INQUIETAÇÃO À ESQUERDA

nada tem que ver com “tranquilidade” ou “intranquilidade” para Catarina Martins e os restantes dirigentes do partido. “Nós estamos a disputar um projeto político que influencie o País e que não esteja dependente das votações da direita e, já agora, também, das votações do PS.” PCP FORA DE “ENTENDIMENTOS”

“ADMITIA VIABILIZAR UM GOVERNO PS SE ELES PRIMEIRO BATESSEM COM A MÃO NO PEITO E VIABILIZASSEM UM GOVERNO NOSSO”, PREVENIRA SANTANA

“Consensos para quê?”, questionou, por sua vez, logo no domingo, 18, Jerónimo de Sousa, antes de lançar outra interrogação: “Para privatizar mais na área da Saúde, para proceder a cortes na Segurança Social, para alterar o regime democrático através de alterações e produtos de secretaria em relação a eleições?” O PCP, frisou, estará fora desses entendimentos, até porque eles ”nunca chegam ao concreto”. Para o líder comunista, o PSD “quis pôr o conta-quilómetros a zero”, ou seja, procurou limpar a imagem deixada pela governação anterior. Com ou sem a simpatia dos parceiros da geringonça, a verdade é que os próximos tempos serão determinantes em


PSD

COMO NEGRÃO QUER UNIR A BANCADA Fernando Negrão é o homem que se segue na liderança da bancada do PSD. Faz tenções de reunir mais do que uma vez por semana com Rui Rio. E, à VISÃO, Negrão diz continuar a contar com a disponibilidade de Hugo Soares: “Se a disponibilidade for total, conto totalmente com ele”

três temas: a descentralização, o próximo quadro de fundos comunitários, o Portugal 2030 – Álvaro Amaro será interlocutor para o primeiro dossiêr, enquanto Manuel de Castro Almeida ficará responsável pelo segundo –, e o pacote legislativo sobre a transparência no exercício de cargos públicos. A partir daí, e com as eleições regionais na Madeira e as Europeias pelo caminho, os consensos não deverão passar da retórica quotidiana. As questões relacionadas com a demografia, a Justiça, a Saúde, a Educação, a Reforma do Estado – ou mesmo a revisão da legislação laboral, o tema mais quente entre a maioria de esquerda – terão de ficar para mais tarde. O PS guia-se pelo Programa de Governo e concessões de maior só serão feitas à esquerda. Apesar da estabilidade política que poucos poderiam prever, Carlos César reconhece que a liberdade do partido está “mais condicionada” devido aos acordos. Rui Rio e Fernando Negrão terão de ir para o fim da fila. visao@visao.pt

A bancada social-democrata, no Parlamento, despede-se de Hugo Soares e dá as boas-vindas a Fernando Negrão, na liderança. Novos protagonistas para uma nova fase do partido com o devido período de transição. Mas os primeiros momentos depois da saída de Passos Coelho não estão a ser propriamente fáceis para Rui Rio. Depois de ver um congresso ovacionar Luís Montenegro, de ouvir os apupos do partido a Elina Fraga e de a sua direção ter sido reprovada por mais de um terço dos congressistas, o novo presidente do PSD ainda tem de enfrentar um novo desafio – talvez o mais premente: o de unir o grupo parlamentar. Para isso conta com o ex-ministro de Santana Lopes, Fernando Negrão, perante uma bancada não totalmente identificada com a estratégia do novo presidente do partido e que não entende o afastamento de Hugo Soares, líder parlamentar cessante que foi eleito há seis meses com 85,4% dos votos. “Não compreendo porque querem mudar alguém que tem estado a fazer um bom trabalho, sobretudo nos debates quinzenais com o primeiro-ministro”, referiu à VISÃO um deputado que pediu para não ser identificado. “As pessoas que apoiaram Rui Rio esperavam ter sido recompensadas de alguma forma, mas não o foram, perceberam que ele vai decidir sozinho e isso deixou-os desapontados”, explica outra fonte social-democrata. Sobre Negrão, ouve-se que “pode não ser uma escolha tão consensual quanto seria desejável”. Ou seja, apoiantes e opositores do novo presidente do partido parecem não concordar com as primeiras decisões do mais recente inquilino da São Caetano à Lapa. Em declarações à VISÃO, Negrão tenta amenizar o alarido: “Não há nenhum líder que tenha sido eleito com todas as pessoas do mesmo lado.” O experiente deputado acredita ter “o perfil e a experiência” suficientes para voltar a colar

os estilhaços decorrentes da eleição de Rui Rio. Apoia-se, para isso, “nas inúmeras mensagens de apoio e de apreço” que recebeu “de muitos deputados” desde que assumiu a candidatura. A tática que idealizou para pôr os deputados a remar no mesmo sentido é simples: reduzir o número de vice-presidentes, passando-o de 12 para sete, de forma a ter “uma direção mais coesa”, mas em que todos “vejam competência”, e “trabalhar diariamente para unir a equipa”, fazendo com que os sinais passem a “ações diárias de agregação”. A estratégia foi alinhavada com o próprio Rui Rio, com quem tem estado em contacto desde que anunciou a candidatura. “Existe muita sintonia entre nós”, revela Negrão. O ex-ministro faz, aliás, tenções de reunir-se mais de uma vez por semana com o novo líder. “Além da reunião semanal da Comissão Permanente, sei que há disponibilidade da parte de Rui Rio para reunir sempre que se justificar”, explica. Hugo Soares, que deixou o cargo, depois de ter percebido que não contava para o novo líder, diz à VISÃO que, a partir de agora, na condição de deputado sem cargos na direção, estará “disponível, como sempre, para combater o PS”, uma declaração que se assemelha a uma das frases que marcaram o discurso de Luís Montenegro no congresso. O deputado bracarense acrescentou ainda que não fará questão de se resguardar, mas avisa que não irá expor-se de forma desnecessária: “Vou intervir sempre que considere oportuno fazê-lo, nem mais nem menos”, disse. E aí parece estar em sintonia com o seu provável sucessor: “Conto com Hugo Soares na medida da sua disponibilidade – se a disponibilidade for total, conto totalmente com ele.” A consonância de posições pode ser um bom indício. Cabe agora a Negrão – e a Rui Rio – aproveitá-lo.

José Pedro Mozos

jpmozos@visao.pt

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EDUCAÇÃO

Nuno Markl Radialista

“Há professores para quem ensinar é mais do que simplesmente um emprego e uma dor de cabeça. Passar conhecimento é das melhores coisas que um ser humano deve fazer, e sei que há professores que o fazem com paixão. O professor deve ser uma pessoa que nos marca para a vida, nos abre portas e, de certa maneira, nos dá uma pista sobre o que é, eventualmente, o próprio sentido da vida.”

Testemunhos inspiradores dos jurados e dos embaixadores do Global Teacher Prize Portugal, que está à procura do melhor professor do País, confirmam porque é a educação a arma mais poderosa para mudar o mundo, como dizia Nelson Mandela

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SÓNIA CALHEIROS

arinhosas, diz João Vieira Pinto das melhores professoras que teve. Quem nos dá pistas sobre o sentido da vida, sugere Nuno Markl. Alguém que transforma a desobediência em dissidência crítica, destaca Laborinho Lúcio. Formas diferentes de descrever uma das profissões mais importantes do mundo – e todas igualmente indesmentíveis.

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Elevar a educação para a primeira linha da atualidade é o principal objetivo do Global Teacher Prize, a que chamam o “Nobel da Educação”, presente em 120 países e que chegou agora ao nosso País. Os €30 mil a entregar, em maio, ao vencedor – ao “melhor professor de Portugal” – servem para “valorizar a profunda importância dos professores no desenvolvimento do nosso País e de cada comunidade onde está inserido”, esclarece a organização. Há três anos, o indiano

Laborinho Lúcio Magistrado e ex-ministro da Justiça “Quando olho para trás e vejo o conjunto de professores que fez de mim muito daquilo que sou, tenho a noção de que gostei sempre mais daquele professor que, diante da criança rebelde, a tornava competente, sem lhe restringir a rebeldia. Tenho uma profunda admiração por quem lhe ensina as regras de aprendizagem social e é capaz de lhe transformar a desobediência em dissidência crítica. Gosto imenso daquele professor que, perante a matéria, não se preocupa em dá-la, mas sobretudo com que os alunos a recebam.”


Fernanda Serrano Atriz

“Na primária, a professora Guilhermina foi o motor para tudo o que adviria. Na escola secundária, a professora Rute Ramires, com quem ainda hoje mantenho contacto, foi uma presença constante na minha vida académica, muito atenta – um papel importante que os professores têm por serem mais próximos do que alguns familiares. Foram professoras que perceberam que eu era muito comunicativa, que queria fazer muita coisa e que me alertaram para eu não me dispersar.”

Laurinda Alves Cronista

“A professora de Francês Teresa Belo era uma mulher extraordinária, culta, com um espírito aberto e livre. Uma mulher que identificava e multiplicava os talentos dos alunos, e isso enchianos de confiança. Houve outro mestre, que não era professor: o meu treinador de basquetebol, Vítor Hugo, usou uma pedagogia extraordinária, não só para o desporto mas também para a vida – foi a primeira pessoa a dizer-me que talvez pudesse ser jornalista. Eu tinha só 16 anos e ele acertou. Estas pessoas que nos marcam, nos orientam, que olham para nós e veem mais do que conseguimos ver sobre nós próprios, enchemnos de confiança.”

João Vieira Pinto Ex-futebolista e dirigente federativo

“No quarto ano, com a professora Eulália lembro-me de acabar todas as aulas a cantar, algo que nunca tinha visto e que me marcou. Também as minhas três professoras de Educação Física da Escola Ramalho Ortigão me marcaram imenso pela forma paternal com que nos educavam. No contexto de bairros sociais, em que o apetite pelo estudo não era muito grande, elas conseguiram cativar turmas complexas, de forma carinhosa e ao mesmo tempo responsável e divertida.”

Pedro Ribeiro Diretor da Rádio Comercial

“A minha primeira referência é a professora da segunda à quarta classe, Gabriela Roldão, de quem sou hoje amigo... no Facebook. Foi absolutamente estruturante, numa fase muito importante da minha vida, e da vida de todas as crianças – pois há muita coisa da personalidade das pessoas que se constrói nessa altura. Ela foi essencial, não só para os básicos, como ler, escrever e contar, mas também para o resto: a formação cívica, a passagem de valores, e é a isso que associo a nobreza da profissão de professor. É alguém que passa mais do que só a matéria.”

“OS CRITÉRIOS DO PRÉMIO VALORIZAM O ENVOLVIMENTO DOS PROFESSORES NA SOCIEDADE E O SEU IMPACTO ALÉM DA ESCOLA”, DIZ AFONSO MENDONÇA REIS, ORGANIZADOR DO GLOBAL TEACHER PRIZE Sunny Varkey e a sua Varkey Foundation, uma organização sem fins lucrativos, criou o Global Teacher Prize como forma de valorizar professores, incentivando outros a seguir a mesma profissão – que se quer que seja a mais importante do mundo. O prémio de um milhão de dólares (cerca de €800 mil) já chegou às mãos da canadiana Maggie MacDonnell (professora da comunidade inuíte), a palestiniana Hanan al-Hroub e a inglesa Nancie Atwell. Depois de ter conhecido Sunny Varkey e de se ter tornado membro do júri do prémio mundial, Afonso Mendonça Reis, professor na Universidade Nova SBE, foi convidado a criar uma edição do prémio em Portugal, através da associação que dirige: As Mentes Empreendedoras. “Os critérios do prémio valorizam o envolvimento dos professores na sociedade e o seu impacto além da escola”, diz. As candidaturas online, em globalteacherprizeportugal.pt, estão abertas até 18 de março, a todos os professores de todos os níveis de ensino, desde o pré-escolar ao 12º ano. Seja do ensino público ou do ensino particular, cooperativo e especial, em atividade em Portugal ou em instituições nacionais fora do País, o que interessa é o ensino ser em Língua Portuguesa. scalheiros@visao.pt

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COMÉRCIO

O unicórnio veste Chanel Pela primeira vez, há uma plataforma digital de comércio online a vender tecnologia. A parceria entre a luso-britânica Farfetch e a francesa Chanel é inédita. A expansão da empresa que desenvolve os programas em Portugal antecipa a cotação em bolsa? C E S A LT I N A P I N T O

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Quase ano e meio depois, está aí a app e outras novas ferramentas, conquistando o glamour da Chanel, uma das mais fortes marcas mundiais de luxo. Ao ponto de ter estabelecido com a plataforma luso-britânica (há uma empresa com base em Portugal que desenvolve a tecnologia e outra com escritório em Londres que centraliza a gestão do negócio global das vendas) uma parceria inédita neste setor e, até, se ter juntado à base de investidores, assumindo uma pequena participação acionista. LUCÍLIA MONTEIRO

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o outono de 2016, a plataforma global de vendas online da moda de luxo preparava-se para duplicar o espaço que ocupa no Centro Empresarial da Lionesa, em Matosinhos. Mais de cinco mil metros quadrados eram necessários para acolher mais 500 jovens engenheiros. E esta expansão não era apenas porque a vida estava a correr bem à Farfetch, que registava “um crescimento de 60% face ao ano anterior”, com “vendas totais superiores a 800 milhões de dólares”. Era, sim, porque José Neves, fundador e CEO, adivinhava já uma forte concorrência entre as plataformas digitais de e-commerce e sentia que, para vingar no futuro, era preciso oferecer algo mais do que um serviço de intermediação entre o cliente e a loja. Por isso, preparava-se fortemente para apostar no desenvolvimento de tecnologia capaz de criar e tratar bases de dados de consumidores à medida dos clientes. “Estamos a desenvolver uma app, porque nos queremos diferenciar pela tecnologia”, foi tudo quanto José Neves adiantou na altura à VISÃO, já depois de desligado o gravador, e enquanto fazia a visita guiada entre umas dezenas de jovens engenheiros vidrados nos seus computadores.

MAIS DO QUE UMA PLATAFORMA PARA VENDER ROUPA, A FARFETCH ESTÁ A EVOLUIR PARA NOVOS SERVIÇOS DIGITAIS

Na prática, a Farfetch sai do “armário” do seu negócio central de comércio de roupa de terceiros para atacar o segmento de outros serviços, digitais, prestados a grandes marcas. Pela primeira vez, a Farfetch está a vender tecnologia, isto é, conhecimento e inovação, e não a remeter-se somente ao papel de mera intermediária no negócio de comércio online, diferenciando-se, desta forma, de grandes concorrentes como o Alibaba ou Net-a-Porter. Os valores e termos deste negócio são confidenciais e ninguém quer adiantar


Dispersão José Neves continua a dizer que a iminente entrada em bolsa da Farfetch é apenas um "rumor"

A agonia da Chic by Choice Nem tudo são rosas no mundo digital. A concorrência das plataformas globais de comércio online está ao rubro, mas a exigência de muito capital e longo tempo de rentabilização começa a fazer mossa e a evidenciar falhanços. É o que parece ter acontecido à Chic by Choice, que proporcionava o aluguer de vestidos de luxo e cujas fundadoras, Lara Vidreiro e Filipa Neto, foram distinguidas pela revista norte-americana Forbes, em janeiro, no ranking das 30 jovens brilhantes promessas sub-30 da Europa, na categoria de retalho e comércio eletrónico. A história é bem contada pela publicação digital Observador. Para um volume de negócios de cerca de 278 mil euros, a plataforma terá registado prejuízos de um milhão. Criada em 2014, a Chic by Choice parece estar em desmantelamento, com os artigos em promoção constante para venda (e não para alugar), os trabalhadores em debandada, os escritórios encerrados e alguns dos clientes que arriscaram comprar ainda estarão à espera que o artigo lhes chegue a casa. A sociedade pública de capital de risco Portugal Ventures, que arrancou com o investimento inicial, diz não ter qualquer informação e refugia-se no contrato de confidencialidade. As próprias fundadoras terão arranjado outros empregos, uma delas como especialista de inovação na... Farfetch.

pormenores. Mas foi já assumido que esta colaboração não vai pôr na plataforma da Farfetch qualquer peça da Chanel, que tem uma estratégia própria. Vai antes melhorar todo o serviço oferecido ao cliente, quer no atendimento em cada loja quer na sua própria rede de venda digital. Esta app, que reunirá informações de cada cliente (medidas, gostos, preferências ou outros dados), permitirá que cada consumidor Chanel seja um “velho conhecido” em qualquer loja do mundo da marca. “Chanel e Farfetch partilham uma visão convergente do futuro do mer-

cado de retalho. Ambos acreditam que a tecnologia permite hoje dar ao cliente experiências ultrapersonalizadas, reais e digitais, e pretendem que esses dois mundos estejam completamente conectados”, lê-se no comunicado. É o que José Neves chama de Augmented Retail, que desenhará a loja do futuro. A Chanel acredita que o envolvimento do cliente com as coleções na própria boutique e a emoção que isso proporciona é “um pilar-chave para uma ótima experiência”. O CEO da Farfetch espera igualmente que esta seja “a primeira de muitas outras

iniciativas conjuntas”, já que esta parceria vai alavancar a vertente tecnológica da sua plataforma e “acelerar o desenvolvimento de iniciativas orientadas para a tecnologia que garantam uma permanência na vanguarda da excelência no retalho”. Para ele, o truque é “aproveitar a magia da experiência de boutique física e combiná-la com as vantagens dos serviços digitais e online”. “Temos vindo a investir mais do que ninguém na tecnologia e no conhecimento do consumidor para tornar essa visão uma realidade”, realçou. Também Bruno Pavlovsky, presidente de moda da Chanel, mostra-se entusiasmado: “Estamos confiantes de que a tecnologia inovadora da Farfetch nos ajudará a desenvolver um serviço aos clientes ainda mais notável, combinando uma ótima oferta de serviços eletrónicos com a experiência de uma boutique genuína.” Se a Chanel está a tentar fidelizar o seu cliente, a Farfetch parece estar com uma estratégia segura do caminho a seguir. Menos de uma semana antes de anunciar esta colaboração com a Chanel, a Farfetch tinha revelado a entrada da Burberry no cardápio da sua plataforma. No início de fevereiro, a empresa luso-britânica também tinha avançado com outra parceria, dessa vez com o grupo Chalhoub, uma congénere de retalho de luxo, mas para o Médio Oriente, um mercado que está há muito no horizonte de José Neves. E se, no final de 2016, a Farfetch já contava com um private equity chinês (Silas Chou, dono da Michael Kors) na sua base de financiadores, em junho do ano passado deu o salto em grande: na última ronda de financiamento angariou 356 milhões de euros (397 milhões de dólares) do grupo chinês JD.com, gigante da logística online naquele continente. Foi o maior financiador até à data, o que o tornou no principal acionista da Farfetch e lhe deu entrada direta na administração. Apesar de em Londres a informação económica avançar um aumento dos prejuízos, precisamente devido ao grande investimento em tecnologia e na expansão, a Farfetch continua a ser um unicórnio, uma startup avaliada em mais de mil milhões de dólares. Têm crescido os “rumores” de que estará para breve a sua entrada em bolsa – algo que José Neves continua a negar. Assim como há quem perspetive que, se tal acontecer, ela poderá ser avaliada acima dos quatro mil milhões de euros. É esperar para ver. cmpinto@visao.pt

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NEGÓCIOS

DAVID LOFTUS

Em queda O chefe britânico tem mais jeito para as câmaras do que para o negócio

Jamie Oliver queimou-se

Três semanas depois de abrir um restaurante em Lisboa, o choque: o chefe de cozinha britânico tem parte do império a esfumar-se

O

s ânimos ainda mal assentaram com a abertura do Jamie’s Italian, no Príncipe Real, em Lisboa – nas redes sociais, os fãs portugueses exultaram-se com a chegada do restaurante de Jamie Oliver a Portugal (o 64º da cadeia, espalhada por todo o mundo). Ninguém imaginava os problemas financeiros com que lutava o famoso chefe de cozinha britânico que não marcou presença na inauguração, no final de janeiro. Na verdade, as notícias

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JOANA LOUREIRO

publicadas nesta semana por jornais ingleses mostram que, embora não tenha perdido a mão para a cozinha, Jamie sofreu queimaduras intensas. E terá uma convalescença dura. Por enquanto, foi anunciado o fecho de 12 dos 37 Jamie’s Italian em território britânico, para responder aos €80,7 milhões em dívidas a fornecedores, finanças, senhorios, empréstimos, funcionários e outros credores. Dentro deste plano de recuperação, outros 11 estabelecimentos estão a negociar cortes nas rendas para conseguirem

manter as portas abertas. Nesta semana, foi ainda encerrado e entregue a um administrador de insolvências um dos dois Barbecoa (as arrojadas steakhouses que Oliver criou com o amigo Adam Perry Lang, em 2011), com localização privilegiada em Piccadilly Circus, Londres, e uma renda altíssima difícil de comportar. Cerca de 80 funcionários perderam o emprego, a juntar aos 200 dos Italian's, e não foram encontrados compradores. Outro Barbecoa, junto à Catedral de St. Paul’s, foi salvo no último minuto por uma subsidiária de


RECENTEMENTE, FOI ANUNCIADO O FECHO DE 12 DOS 37 JAMIE’S ITALIAN EM TERRITÓRIO BRITÂNICO, ASSIM COMO UM DOS LUXUOSOS RESTAURANTES BARBECOA Oliver, recentemente criada, que comprou os ativos e a licença da steakhouse. Para a derrocada dos restaurantes, principalmente dos Jamie’s Italian, os responsáveis da empresa escolheram como bode expiatório o Brexit e o aumento do custo dos produtos importados do resto da Europa. Embora não se possa dizer que este seja um caso isolado, pois outras cadeias britânicas têm enfrentado sérias dificuldades e anunciado cortes, a marca JO (como o cozinheiro gosta de lhe chamar) parece estar em apuros por outras razões. “LIXEI 40% DOS NEGÓCIOS”

Apesar das vendas de livros e das audiências globais dos programas culinários serem impressionantes, os resultados dos restaurantes nunca as acompanharam. Jamie Oliver era já uma estrela quando abriu a primeira casa em 2002, o Fifteen, onde integrava jovens desempregados de contextos problemáticos, uma das muitas causas pela qual se envolveu apaixonadamente (ver caixa Chefe de Causas). Uma paixão que parece não se ter refletido nas outras cadeias e que o intenso e competitivo mercado britânico da restauração não perdoou. Há quem o acuse de ambição em demasia e de investimento a menos na marca, a necessitar de renovação constante para se manter na crista da onda. As ementas e a decoração dos Jamie’s Italian – cujo primeiro spot em Oxford, em 2008, surpreendeu agradavelmente o público e a crítica – arrastaram-se ao longo dos anos. A inércia foi fatal para o negócio do casual dining (as avaliações dos clientes nas redes sociais não eram brilhantes), principalmente para o da sobrelotada cozinha italiana. A introdução de emen-

CHEFE DE CAUSAS 2002: Abre o primeiro restaurante, o Fifteen, onde integra jovens desempregados, de contextos problemáticos. Orgulha-se de ter dado emprego a mais de 500 aprendizes em todo o mundo 2005: Transmissão do documentário Jamie’s School Dinners, em que faz um ataque sem tréguas às refeições servidas nas escolas britânicas. Seguiu-se uma petição online, a Feed Me Better, que recolheu 270 mil assinaturas, entregues em mão no nº 10 da Downing Street. O governo aprovou, entre outras iniciativas, um aumento de 280 milhões de libras (€318 milhões) nas verbas atribuídas às refeições escolares 2010: Lança nos EUA o Food Revolution. O programa foi um alerta contra o uso de hidróxido de amónio no processamento da carne picada. A McDonald’s foi forçada a abandonar o uso daquele produto nos seus hambúrgueres 2015: Ataca o açúcar e outros alimentos processados em Sugar Rush, o documentário em que Jamie alerta para os perigos que estes têm na obesidade e na saúde dentária infantil, na diabetes tipo 2 e outras doenças. Voltou a arrecadar uma vitória, ao garantir a aprovação de um imposto sobre os refrigerantes

NÚMEROS DA CRISE

€80,7

milhões de euros em dívida 13 restaurantes fechados 11 sujeitos a reestruturação 280 postos de trabalho perdidos

tas de almoço a preços mais convidativos não deu grandes frutos. Pelo contrário, contribuiu para a queda dos lucros. A par disso, enfrenta uma concorrência cada vez maior, com novos chefes de cozinha a surgirem todos os anos, alimentando inúmeros canais de culinária, na televisão e no YouTube. Oliver foi um dos pioneiros. Um verdadeiro showman de avental e de faca na mão, que captou a atenção das câmaras em 1999, quando a BBC realizou um documentário no restaurante londrino The River Café, onde representava um papel secundário. Seguiu-se o convite para fazer The Naked Chef, o programa de culinária que o tornou famoso em todo o mundo. Com o seu estilo jovial e entusiástico, Oliver é um comunicador nato. Não se cala um segundo durante a preparação das receitas e não se coíbe de lamber os dedos para louvar os sabores dos alimentos. Os livros acompanharam o sucesso televisivo, sendo autor de inúmeros best-sellers no Reino Unido, apenas ultrapassado nas vendas por J. K. Rowling. Nascido em 1975, em Clavering, uma vila do Essex, no Leste de Londres, começou cedo a servir às mesas e a dar uma mão na cozinha do pub dos pais, The Cricketers. Não era um estudante brilhante (sofre de dislexia) e, aos 16 anos, rumou a Londres para ingressar num curso de culinária. O primeiro passo para um sucesso fulgurante que tem agora o seu mais sério soluço. Estes últimos fechos de restaurantes, porém, não foram o único contratempo de Oliver. Em 2017, a popularidade já era posta em causa com a retirada das bancas da Jamie Magazine, após nove anos de publicação, e o encerramento do último dos quatro estabelecimentos da cadeia Union Jack Pizza, um conceito que nunca foi bem acolhido pelo público. Numa entrevista dada em 2015, fazendo o balanço de 17 anos de carreira, o chefe de cozinha admitia, com a sua descontração habitual, ter “desperdiçado e lixado 40% dos negócios” em que se metera. Um dado penoso, mas encarado pelo próprio como “investigação e desenvolvimento”. Agora, teve de retirar €3,39 milhões da fortuna pessoal (avaliada em €169,32 milhões) e recorrer a empréstimos de €7,34 milhões a outras das suas empresas, para cobrir as dívidas dos restaurantes. Uma coisa parece certa: o panorama internacional mostra-se bem mais convidativo do que a Inglaterra pós-Brexit. E, se quiser, Jamie terá sempre Lisboa para ser feliz. jloureiro@visao.pt

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XXX

‘Brandy’ e ‘Yoko’ Fabricadas na Ásia, têm uma “vida” útil de 3 a 4 meses a satisfazerem todas as fantasias que não impliquem movimento próprio

O prazer é todo meu

Inertes, mas dóceis. Hirtas, mas maleáveis. Realistas, mas idealizadas. Cem euros à hora. Bem-vindo ao primeiro bordel de bonecas do mundo LUÍS RIBEIRO

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MARCOS BORGA, EM BARCELONA


A mulher possível No Ocidente, as bonecas sexuais são luxúria de luxo. Na China e no Japão são um bem de primeira necessidade

Quando há homens a mais Na China, eles são mais 30 milhões do que elas

S

ão onze da manhã e já se trabalha na Apricots. Para lá da porta de madeira de pinho do bordel, a cem passos do estádio do Barcelona FC, há um hall escuro que atravessa quatro camarins improvisados com cortinas pretas e termina num corredor estreito com duas portas de cada lado. Uma mulher acaba de entrar num dos camarins. Os primeiros clientes podem chegar a qualquer momento. A última porta do lado direito corresponde ao melhor quarto da casa. Em cima da cama, debaixo de uma meia-luz avermelhada, estão sentadas duas prostitutas incomuns – tão sedutoras e convidativas quanto possível a dois objetos de silicone. Brandy enverga apenas um babydoll transparente e manifestamente pequeno para o seu peito gigantesco. Yoko, de medidas

Após décadas de uma política de filho único, aliada à preferência tradicional por rapazes, a China tem hoje mais 30 milhões de homens do que mulheres. O desequilíbrio está a deixar muitos jovens solteiros, que recorrem em massa às bonecas. No Dia dos Solteiros (11 de novembro) de 2016, foi vendida uma boneca por minuto no país.

Uma solidão menos solitária A solução para a timidez

O problema do Japão não é de desequilíbrio demográfico entre sexos – é cultural. O crescente individualismo na sociedade nipónica tem levado cada vez mais homens a recorrer a estas bonecas, sobretudo por dificuldades de relacionamento com pessoas do sexo oposto.

mais modestas (copa C), usa um vestidinho cor de rosa. Ambas estão prontas a dar prazer. Não que alguém tenha de lhes pedir licença. “São realistas, não são?” O sorriso de Sergi Prieto denota a confiança compreensível de um jovem de 27 anos que apostou, com dois amigos e uma amiga mais ou menos da mesma idade, num negócio original e, aparentemente, está a dar-se bem com ele. Sim e não. São anatomicamente próximas da realidade (braços, pernas, cara, três orifícios, clitóris) e respiram, salvo seja, sexualidade. Mas sem imaginação não é possível olhar para Brandy e Yoko e ver duas mulheres. E não apenas por causa do olhar mortiço e inexpressivo, da consistência mole do corpo ou da rigidez das articulações. Brandy, por exemplo, tem uma cinturinha de vespa que umas mãos grandes são capaz de abraçar, com os dedos a tocarem-se, e mamas que deixam muito espaço desperdiçado quando são apalpadas, envergonhando as mãos de qualquer homem. É, quando muito, um realismo irrealista. Daí o estímulo extra proporcionado pelos filmes pornográficos que passam na televisão do quarto. “O orgasmo é garantido”, diz Sergi, triunfante, como se atingir o êxtase fosse uma dificuldade masculina comum. A LumiDolls, traduzível por “bonecas prostitutas”, anunciou-se como o primeiro bordel de bonecas do planeta, quando abriu há um ano em Barcelona (entretanto, nasceram mais três, na Alemanha, na Áustria e no Reino Unido). Mas teve um arranque penoso e fechou duas semanas após a inauguração. Na imprensa catalã, falou-se em problemas com as licenças de funcionamento, queixas dos vizinhos e fúria do senhorio, que não saberia o que se ia passar no apartamento quando assinou o contrato. A empresa, porém, diz que só mudaram de poiso porque o local inicial não tinha condições para atender a uma procura inesperadamente intensa. Na Apricots, um dos bordéis mais populares de Barcelona, as bonecas sentem-se em casa. Sobretudo porque trabalham com a licença da Apricots, de atividades sexuais – a prostituição é proibida na Catalunha, mas a empresa, tecnicamente, só aluga os quartos. “Eles estão entre o legal e o ilegal, mas nós estamos 100% legais, porque isto são bonecas, não prostitutas. Não é gente a sério”, sublinha Sergi (que pede para que se escreva na VISÃO “Se quiser experimentar ou comprar as melhores bonecas do mercado visite lumidolls.com”). O conceito tem sido muito comentado na imprensa e nas redes sociais, com as críticas negativas a suplantarem largamente os elogios. Contribui para a objetivação da mulher, repetiu-se. Sergi tem resposta pronta. “Os dildos consolam mulheres há milhares de anos, e estão, no fim de contas, a reduzir um homem a um

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SEXO

Sergi Prieto O catalão de 27 anos abriu o negócio com mais dois amigos e uma amiga. “Isto é masturbação de luxo”, descreve o empresário

pénis. Isto é um dildo 2.0 para os homens: uma mulher completa. Não é sexo. É masturbação de luxo. Uma fantasia. Talvez o homem queira fazer sexo anal e a namorada não. Com a boneca, já pode.” Yoko tem o ânus rasgado. Em comunicado, a Aprosex, associação que representa as profissionais do sexo em Espanha, parece concordar, pondo as bonecas no lugar delas. “São serviços diferentes e compatíveis. As bonecas não te ouvem nem te acariciam. Não te dão opinião nem bebem uma taça de champanhe contigo.” Ainda assim, na Apricots, onde trabalham 20 a 30 mulheres, a primeira reação foi de apreensão. “Julgavam que iam perder clientes. Mas a verdade é que vêm cá muitas pessoas para estarem com bonecas; depois, talvez algumas queiram passar tempo com uma mulher”, arrisca Sergi. “Há muitas casas de mulheres em Barcelona, e isto pode fazer a diferença num mercado muito competitivo.” Pelo menos não é pelo preço que a LumiDolls quer concorrer com as prostitutas de carne e osso. Meia hora de “masturbação de luxo” é mais cara do que sexo: uma mulher da Apricots cobra 70 euros; uma boneca faz-se pagar a 80 euros. Se for uma hora, já se inverte a relação (€110 de carne, osso e talvez algum silicone, €100 por uma “prostituta” toda ela silicone). NEM VIOLAÇÕES NEM PEDOFILIA. MAS...

A LumiDolls recebe clientes de todo o mundo (incluindo portugueses, sim), beneficiando do facto de Barcelona ser uma cidade turística. Mas alguns vêm de longe só para estar com uma boneca. “Tivemos um cliente que veio de Paris de autocarro”, conta Sergi. “Mais de 15 horas de viagem, passou duas horas e meia com uma boneca e apanhou o autocarro de volta. Mas parecia uma pessoa normal.” O cliente médio, continua o empresário, terá entre 30 e 50 anos e é de uma classe média-alta. Fora isso, não consegue apontar um freguês-tipo. Há gente tímida com óbvias dificuldades em relacionar-se com outras pessoas; há homens que recorrem habitualmente aos serviços de prostitutas; há solteiros e há casados; há quem venha às escondidas da companheira, por vergonha ou porque sente que está a traí-la, há quem deixe a mulher no carro à espera e há quem venha com ela, numa tentativa conjunta de quebrar a monotonia sexual; há curiosos em busca de uma experiência diferente, e há habitués que pedem sempre a mesma boneca; há quem peça duas ou três bonecas ao mesmo tempo. E há jovens virgens. “Eles não dizem, mas uma pessoa consegue perceber, com aquelas caras de bebé. Vêm cá treinar antes de…” Números é que a empresa não revela – limita-se a assegurar que tem clientes todos os dias. O secretismo poderia ser interpretado como

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Este é o “Ken” Desde o início deste mês, a LumiDolls tornou-se mais inclusiva: a juntar às suas sete bonecas, passou a ter um boneco. O Ken (assim batizado pela equipa de quatro sócios), no entanto, é uma piscadela de olhos à clientela gay, não ao mundo feminino. “Não é para mulheres”, explica Sergi Prieto. “Há cerca de 2 mil modelos de mulheres e apenas uns cinco modelos de homens. Se estas bonecas precisam de melhorias, então os bonecos ainda mais. Parecem muito japoneses. Não têm um ar viril, macho. Quando muito, pode ser apreciado por casais.” O preço de Ken é o mesmo das suas colegas.


30 a 50 anos

É o intervalo médio de idades dos clientes do bordel de bonecas

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O número de bonecas (incluindo um boneco) disponibilizadas pela empresa

um sinal de que talvez o sucesso não seja estrondoso. Por outro lado, a empresa começou com quatro bonecas e neste momento já tem oito, incluindo um boneco, o Ken, para satisfazer o mercado gay. As primeiras, aliás, já estão todas arrumadas, prontas para serem alugadas para fins menos carnais, como festas. O tempo de vida útil de cada uma ronda os 3 ou 4 meses, dependendo da delicadeza dos clientes (Yoko está à beira da reforma; Brandy vai a meio). Uma das bonecas originais aposentou-se sem grande uso. “Tínhamos duas europeias, uma asiática e uma africana”, conta Sergi Prieto. “Mas a africana não tinha grande procura. Acho que depende da localização, da cultura... Os clientes asiáticos querem sempre bonecas asiáticas. Eu julgava que um homem, estando habituado a asiáticas, quereria experimentar uma coisa diferente. Mas não. É curioso.” A empresa, que está em negociações para dois franchisings em países europeus, tem um segundo negócio associado ao bordel: a venda de bonecas, a preços entre os €1595 e os €2045; os potenciais clientes podem experimentar e, no fim, se comprarem uma, é-lhes descontado o que gastaram. Cinco já foram vendidas para Lisboa.

€80

Preço de uma sessão de meia hora com uma boneca; uma hora é €100

€70

Preço cobrado por uma prostituta verdadeira, nas mesmas instalações; uma hora custa €110

HÁ RAPAZES VIRGENS QUE VÃO AO BORDEL DE BONECAS PARA TREINAR A julgar pelos preços de revenda, é de crer que cada exemplar custe à empresa (que as adquire na Ásia a preços de fábrica) não mais de mil euros. Ou seja, a cada dez sessões de uma hora, a boneca fica paga, sem contar com os custos administrativos, o aluguer do espaço, os preservativos e o lubrificante, e a limpeza e desinfeção (que demora meia hora). É a funcionária perfeita: não há salário nem impostos para pagar, não há folgas, férias, greves. E, no entanto, não se queixa. Não vale tudo. Apesar de as bonecas não terem sentimentos, os seus donos seguem algumas regras éticas. Por exemplo, um cliente que peça uma boneca amarrada, para concretizar uma fantasia de violação, não verá o desejo atendido – claro que, se levar uma corda na mariconera, ninguém saberá. E bonecas que pareçam crianças, também disponíveis na China, nunca. Mas uma das três fantasias – roupas – disponíveis na LumiDolls por mais €20 é school girl (as outras são fitness girl e executiva). Sergi Prieto acredita que este é o início de uma revolução sexual. “Os cientistas dizem que daqui a 30 anos vamos ter mais sexo com androides do que com outras pessoas.” O primeiro passo, continua, é dar algum nível de Inteligência Artificial às bonecas. “Mas o que fará mais diferença é elas conseguirem mover-se.” O mais perto que a LumiDolls esteve da realidade foi com uma boneca aquecida a 37°C, e que se revelou um falhanço comercial. Atualmente, o topo de gama no setor, diz Sergi, são as ultrarrealistas RealDolls, fabricadas nos EUA. Mas têm vários senãos: custam entre €6 mil e €8 mil, pesam mais de 40 quilos, são duras ao toque e pouco práticas para o fim que se quer. “Não podemos pô-las de quatro.” Brandy e Yoko assistem à conversa, tão dóceis como sempre. Duas mulheres a fingir, que só não estão mortas porque nunca estiveram vivas. Não fazem nada, mas podem fazer-lhes tudo. “Só pedimos aos clientes para não acabarem nos cabelos delas. De resto...”, diz Sergi. Na mesa de cabeceira, há um frapê com Möet & Chandon e dois copos de plástico – vêm sempre dois quando um cliente pede uma garrafa. Ajuda a manter a ilusão. lribeiro@visao.pt

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Pecado humanitário

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Festas com prostitutas, auxílio em troca de favores sexuais, violações. O escândalo na Oxfam, ONG de ajuda humanitária, põe em causa as boas intenções em cenários de catástrofe

oland van Hauwermeiren, 68 anos, acumula vasta experiência de campo em organizações não governamentais (ONG) de ajuda humanitária. O ex-oficial do Exército belga passou pela Caritas Internacional, liderou as missões da Merlin na Libéria e as da Oxfam no Chade, durante as guerras civis nestes países africanos, coordenou o programa de assistência da Oxfam após o grande sismo no Haiti e dirigiu as operações da Action Against Hunger para melhorar as condições de vida no Bangladesh. Um currículo de invejar qualquer bom samaritano, não fosse a avalancha de denúncias, nos últimos dias, sobre o recurso a prostitutas nestes países em estado de sítio, com meios das organizações de ajuda hu-

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GETTY IMAGES

Anjos e demónios Os abusos sexuais da Oxfam aconteceram no Haiti, após o sismo de 2010 que matou 220 mil pessoas, quando a ONG se encontrava no terreno a ajudar os sobreviventes

POLÉMICA

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RUI ANTUNES

RONALD VAN HAUWERMEIREN USOU RECURSOS DA OXFAM PARA RECORRER A PROSTITUTAS NO HAITI

manitária e coação a funcionários locais para as transportarem, em total violação do código de conduta e da própria lei. Desde que o The Times expôs a atividade pós-laboral de Roland van Hauwermeiren e outros altos funcionários da Oxfam sob o seu comando no Haiti, na edição de dia 9 do jornal britânico, multiplicam-se os relatos de exploração e abusos sexuais a envolver o seu nome, a ONG britânica e até outras organizações de ajuda humanitária, como uma bola de neve a ganhar volume, à imagem do movimento #MeToo. A Médicos Sem Fronteiras já assumiu que registou, em 2017, 24 casos de assédio ou abuso sexual entre os seus colaboradores, incluindo violações. A Save the Children, que se dedica a ajudar crianças, contabilizou 31 episódios de abuso por parte dos seus funcionários.


OPINIÃO

E a International Rescue Committee detetou três casos de abuso na República Democrática do Congo. A Oxfam, apesar de ter descoberto o escândalo na altura, não alertou as autoridades do Haiti, que só nesta segunda-feira, 19, muito depois da notícia do The Times, tiveram conhecimento oficial do caso, que remonta a 2011. “Não há nada mais indigno do que um predador sexual utilizar a sua posição num quadro de resposta humanitária para explorar as necessidades das pessoas nos seus momentos de grande vulnerabilidade”, reagiu Jovenel Moise, Presidente do Haiti, convicto de que Roland van Hauwermeiren e os seis subordinados da Oxfam são apenas “a ponta do icebergue”. “ISTO ACONTECE TODOS OS DIAS”

Segundo fontes do The Times, os homens ameaçavam motoristas contratados pela Oxfam que não lhes renovariam os contratos se estes não conduzissem as prostitutas até às “festas” nas residências alugadas em nome da ONG. Não ficou provado que algumas mulheres fossem menores de idade, “apesar de não se poder descartar” a possibilidade, concluiu a investigação interna da Oxfam, ocultada durante sete anos até ser divulgada sob a ameaça do governo do Reino Unido suspender as contribuições monetárias (mais de €36 milhões em 2017). Ao esconder as conclusões para proteger a sua reputação, a Oxfam acabou por permitir que o seu chefe de missão no Haiti seguisse para outra ONG. A própria Oxfam terá sido vítima dessa política de segredo quando o recrutou, em 2006: um ex-colega de Hauwermeiren, Paul Hardcastle, revelou agora que o belga deixou o seu posto na Libéria, ao serviço da Merlin, sob as mesmas acusações. “A casa da equipa de gestão era uma casa de festas com raparigas.” Nada surpreendida com as últimas notícias, Naomi Tulay-Solanke, fundadora da ONG Iniciativa Saúde Comunitária, na Libéria, diz que “o mundo das ajudas é um clube de rapazes”, em que se troca auxílio por favores sexuais, não sendo um acaso haver no seu país “tantas mães adolescentes engravidadas por soldados da paz e ajudantes humanitários”. À revista Bright, a ativista garante que “estas coisas acontecem todos os dias” e atira sem rodeios: “Vêm com a ideia de salvar pessoas e em vez disso causam mais problemas a quem já está vulnerável? Metem-me nojo.” rantunes@visao.pt

Rui Rio: minas e armadilhas... P O R J O S É C A R L O S D E VA S C O N C E L O S

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em que o agora internamente tão ui Rio tem à sua frente, elogiado Passos Coelho liderou o dentro do PSD, um terreno partido, quer aqueles em que esteve pouco propício ao que no Governo, quer aqueles em que pretende que seja o seu esteve na oposição, sobretudo ao caminho - tem mesmo um atual Governo, no imediato tornam terreno bastante "minado". muito difícil que uma boa parte Como é natural, quis-se do PSD aceite o que Rui Rio deseja que a imagem dominante mudar, e até o seu estilo. do seu Congresso fosse de unidaE o que Rui Rio deseja mudar, de, para fortalecer o partido tão ou penso que deseja, com base fragilizado como se viu nas eleições no que disse - e admitindo que autárquicas. E tal unidade, pela não disse mais por óbvios motiqual Rio fez e disse tudo que podia vos de oportunidade política, na - e talvez até mais do que devia, hora da liturgia dos encómios ao no discurso de abertura -, supulíder cessante -, vai, além do resto, nha-se assegurada pela posição do no sentido de o PSD: 1) defender seu adversário na disputa interorientações e políticas, mormenna, Santana Lopes. Ou seja, pelo te sociais, consentâneas com a acordo a que ambos chegaram, até social-democracia que o inspirou para apresentar uma lista comum e de que se reclama, o que implica ao Conselho Nacional. Porém, apeum seu “recentramento”; b) colocar sar disso, não foi uma imagem de unidade, quase nem o interesse nacional de verniz de unidade, em primeiro lugar, o A ideologia que saiu do Congresque exige vontade e e a prática so – sem que a Sancapacidade de diálogo dominantes tana e seus apoiantes com partidos e forças próximos se possam sociais sem discrimiem oito anos imputar responsanações, e com a próde Passos bilidades. Aliás, se pria sociedade, para se tornam muito ele teve também o encontrar consensos difícil que parte apoio dos fervorosos e celebrar acordos de do PSD aceite seguidores de Passos médio/longo prazo o que Rio Coelho, esse apoio sobre grandes opções deseja mudar foi sobretudo tático, do País; c) fazer polítipor o considerarem o ca com mais qualidade "mal menor". e menos agressividaTal imagem, de quase nem verde, tendo sempre em vista a primaniz de unidade, não resultou tanto, zia daquele interesse, contribuindo creio, do resultado das votações para aumentar o prestígio de inspara os órgãos do partido, quanto tituições como o Parlamento e dos de outras razões mais de funpróprios políticos; d) ser oposição do. Tais resultados deveram-se a firme a António Costa e seu Goverrazões circunstanciais e em geral no, mas sem o demonizar como o habituais, acrescentadas do notório seu antecessor - o que aliás só pode erro da escolha para a comissão favorecer o PSD. política da ex, e não reeleita, basMas será que os Relvas, os Montonária da Ordem dos Advogados, tenegros e o seu herdeiro Hugo Elina Fraga. Mais de fundo foi o Soares, outros da mesma escola, que transpareceu do entusiasmo e o vão compreender? Ou, comdos aplausos, ou da falta deles, de preendendo, não falarão mais alto várias intervenções e reações, de outros desígnios? E será que Rio certo clima... E vou direto ao cerne terá coragem, força e talento para do problema: a ideologia e a prática não ceder no essencial e chegar à dominantes nos cerca de oito anos meta? Só o tempo dirá. visao@visao.pt

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MÚSICA

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“Fazer alguma coisa a partir de uma má ideia é melhor do que não fazer coisa nenhuma. Porque o proveito de uma ideia só se torna aparente se o fizermos” Nick Cave Músico e escritor (n. 1957)

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Cristina Branco A cantora por engomar FOMOS A PARIS OUVIR 'BRANCO', O NOVO ÁLBUM EM QUE CRISTINA, MAIS UMA VEZ, ATRAVESSA AS FRONTEIRAS DO FADO MANUEL HALPERN

J O S É C A R L O S C A R VA L H O , E M PA R I S


Em ação Lá fora, Paris vestia-se de branco. No palco, todas as ilusões são possíveis. O Théâtre de la Ville encheu-se para ouvir a cantora portuguesa

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P MÚSICA

Por coincidência cósmica ou providência divina, calhou que para receber as novas canções do álbum Branco a cidade de Paris se vestisse a condizer, com um esplendoroso manto de neve que acrescenta magia à sua monumentalidade. Na véspera, a intempérie – o maior nevão dos últimos 30 anos – mergulhara a cidade num caos, com vias cortadas, transportes públicos inoperantes e cidadãos forçados a dormir dentro dos seus carros perante a impossibilidade de chegarem a casa. Mas ainda assim, mesmo no pico do caos, só a miopia do transtorno e da enervação impossibilitaria alguém de reconhecer a beleza da paisagem, da Torre Eiffel rodeada de branco, assim como as margens do Sena, ou das crianças a atirarem bolas de neve no Jardim do Luxemburgo. A neve não estava no programa. A própria Cristina Branco viajara despreocupada, à espera de uma Paris a preparar-se para a primavera. Mais do que roupa quente, faltou-lhe o calçado apropriado. Não tanto para a neve fofa, em que se enterram os pés, mas para aquele gelo duro e cinzento. Ali, os ténis de sola lisa assemelham-se a patins em linha, e um tombo no gelo em dia de concerto seria o pior cenário possível. Paris não lhe pregou essa partida. A COR DAS CANÇÕES

Dentro da sala de espetáculos, o Théâtre de la Ville (Châtelet), todos se mostram indiferentes ao tempo lá fora. Os músicos ensaiam em traje casual, enquanto os técnicos testam o som e as luzes. Aqui, a cor dominante é o negro da escuridão, contrastando sempre com focos iluminando o palco de diferentes direções, criando uma cortina de luz entre os artistas e o público. Por enquanto, é apenas um ensaio. A informalidade e a boa disposição dominam, mas não se conseguem disfarçar alguns nervos. Aquele não será apenas mais um concerto. Estamos no centro de Paris. E os músicos vão arriscar pela primeira vez ao vivo alguns temas do novo disco. Canções que, seguramente, aquele público nunca ouviu, mas que os músicos confiam que são suficientemente melódicas para serem encaixadas à primeira. No palco, durante os ensaios, o experiente Bernardo Moreira, no contrabaixo, parece tomar conta da lide, enquanto Cristina, com alguma tensão, vai cantando, sem puxar demasiado pela voz, lendo as letras no telemóvel. Para já,

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Bastidores Cristina Branco momentos antes de entrar em palco, e, no fim, já pronta para enfrentar a neve lá fora


O DISCO

BRANCO O álbum Branco, de Cristina, é feito de vários tons. Não há qualquer contradição, é ela própria que o define assim, porque o branco, como se sabe, é a mistura de todas as cores. Também é a cor do seu nome. E, assim, este álbum é igualmente uma afirmação de identidade. Ao contrário do que tem vindo a acontecer de disco para disco, com uma mudança de conceito, em Branco há sobretudo a cimentação das ideias apresentadas no anterior, Menina. Os temas foram pedidos a jovens compositores e letristas, identificados com estilos musicais que não o fado. Isso é feito com alguma originalidade no critério das escolhas. Entre outros, Beatriz Pessoa, Afonso Cabral (You Can't Win Charlie Brown), Filipe Sambado, André Henriques/Filho da Mãe, Nuno Prata/Peixe e Luís Severo. Kalaf escreve duas letras, sobre músicas de Mário Laginha e do angolano Toty Sa'med. Cristina volta a cantar Sérgio Godinho e Jorge Cruz. Musicalmente o disco é enriquecido, não só pela variedade de temas originais mas sobretudo pelo tratamento que lhes é dado por um trio de instrumentistas de luxo. Uma formação original, com contrabaixo, piano e guitarra portuguesa, com uma influência jazzísticas, que torna melodias simples, algumas mesmo bastante banais, em peças sofisticadas, ricas em pormenores. Sobretudo pela forma como o contrabaixo de Bernardo Moreira preenche o espaço e a guitarra de Bernardo Couto se expande, ao lado do piano de Luís Figueiredo, explorando todo o seu potencial sonoro, desafiando as limitadas balizas entre as quais se desloca convencionalmente no fado. Tudo o resto é a voz de Cristina, límpida e expressiva. Branco é um álbum de grande maturidade artística, de uma cantora que sempre soube trilhar um caminho próprio nas fronteiras do fado.

apenas se experimenta, é só logo à noite que as coisas acontecem. O novo disco de Cristina Branco, que chega às lojas nesta sexta-feira, 23, tem 12 canções, mas para já ensaiaram apenas quatro (e, na verdade, só iriam tocar três). Aos poucos, acrescentarão temas ao alinhamento, sendo que os próximos espetáculos, em território português, deverão incidir sobretudo no novo disco. Em Paris, o reportório para o concerto baseia-se ainda no álbum anterior, Menina, com um ou outro fado à mistura e alguns temas mais antigos. Para Branco, Cristina optou por manter a mesma formação de Menina – que acaba por ser a consolidação do conceito iniciado em Não Há Só Tangos em Paris, com contrabaixo, piano e guitarra portuguesa. Só que desta vez entregou ao trio a totalidade dos arranjos. “O som dos meus discos e dos meus concertos é feito por eles, por isso não vi qualquer

SEMPRE QUE CANTO SÉRGIO GODINHO É COMO SE LHE FIZESSE UMA HOMENAGEM, ATÉ IMITO O SEU ESTILO. MAIS AINDA DO QUE O ZECA, É O GRANDE HOMEM DA MINHA MÚSICA necessidade de chamar mais alguém.” Os músicos trabalharam sobre uma matéria-prima original feita de canções que Cristina encomendou a diferentes músicos e letristas, quase todos da nova ou novíssima geração. Nomes como Filipe Sambado, Beatriz Pessoa, Kalaf, Afonso Cabral (You Can't Win Charlie Brown), Filho da Mãe, Nuno Prata, Peixe, Jorge Cruz ou Luís Severo. Algumas destas canções aparentam uma estrutura melódica extremamente simples, mas são brilhantemente transformadas pelos arranjos do trio, com pormenores de exceção. “Não foi fácil”, confessa Bernardo Moreira, “recebemos aquele conjunto de melodias e começámos a partir pedra, até que, aos poucos, fomos chegando ao que procurávamos. Não existe qualquer outro trio de contrabaixo, guitarra portuguesa e piano pelo que não temos onde ir buscar referência ou procurar soluções”.

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Com que voz O fado mais tradicional foi perdendo espaço nos discos de Cristina Branco mas tem sempre presença garantida nos seus concertos

MÚSICA

Cristina Branco, que não se cansa de enaltecer o trabalho dos seus músicos, diz: “Por vezes, os autores ficaram tão espantados com o que ouviam que diziam ‘isto já não é a minha música’. Mas isso para mim é um elogio, consegui apropriar-me das canções deles e trazê-las para o meu universo”. Este trio muito original é liderado por Bernardo Moreira, grande figura do jazz português que aceitou o desafio de navegar por águas próximas do fado e da música pop. A primeira experiência musical com Cristina deu-se em Abril, o álbum de homenagem a José Afonso, em que a cantora se sujeitou a um universo musical jazzístico. Ao piano está Luís Figueiredo, que tomou o lugar de Ricardo Dias no grupo e recentemente se tornou mais conhecido por ter feito os arranjos de cordas de Amar pelos Dois, de Salvador Sobral, acompanhando muitos outros músicos, como Ana Bacalhau. Depois, há Bernardo Couto, guitarrista criativo, executante perfeito do fado tradicional mas sempre capaz de se libertar das amarras da ortodoxia, levando a guitarra portuguesa para outros lugares. Ao ouvi-los e ao vê-los interagir fica uma certeza: divertem-se e fruem do seu próprio trabalho. A forma teve que ser apurada ao longo dos tempos. Há aqui demasiados universos que se cruzam. Por um lado, a adaptação de Cristina Branco a um som e modus operandi mais jazzístico. Por outro, a contenção dos músicos, que não podem fazer de cada canção uma jam session. O desafio é fazer com que todos se sintam confortáveis fora da

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sua zona de conforto. O que chama mais a atenção é mesmo o trabalho sobre a guitarra portuguesa. “O Bernardo toca comigo desde muito novo. De início tocava demasiado e eu ia-lhe dizendo para retirar notas, para que ficasse reduzido à essência.” Há nitidamente uma postura descomplexada perante o instrumento, tentando explorar em diferentes vertentes as suas possibilidades sonoras. FADO COM SWING

Apesar da neve, a casa está cheia. Cerca de 600 lugares para um concerto íntimo. Portugueses, mas também muitos franceses, alguns dos quais beneficiando de um programa de assinaturas da sala (semelhante ao da Gulbenkian). Cristina, falando sempre devagar, com humor e empatia, vai explicando em francês de que falam as canções. Ela canta, o público aplaude. Às tantas, diz: “Esta canção é sobre uma mulher muito resistente, como costumam ser as mulheres portuguesas; e um homem muito persis-

'ESPERO QUE ESTA NECESSIDADE QUE SINTO DE CANTAR DESAPAREÇA. SENÃO VOU TER DE A CALAR. NÃO ME VEJO EM CIMA DO PALCO COM MUITA IDADE OU SEM VOZ'

tente, como costumam ser os homens portugueses.” E canta Bomba Relógio, de Sérgio Godinho, temas que os portugueses dificilmente descreveriam assim. Em Branco, canta outro tema de Sérgio Godinho, Armadilha, mas que ainda não transpôs para o concerto. “Sempre que canto Sérgio Godinho é como se lhe fizesse uma homenagem, até imito o seu estilo. Mais ainda do que o Zeca, o Sérgio é o grande homem da minha música.” E, de facto, esse estatuto justifica a exceção à regra: está incluído num disco feito por compositores da nova geração. A mulher da sua vida musical é, como já se sabe, Amália Rodrigues. Ao ponto de ter dito, em entrevistas antigas, que não gostava de fado, do que gostava era de Amália. Agora já não subscreve a primeira parte da frase. “Fui aprendendo a ouvir outros fadistas e hoje, por exemplo, gosto muito de ouvir Marceneiro.” No novo disco não canta um único fado tradicional, mas ao vivo Amália e o fado têm inevitavelmente os seus momentos. “Preciso disso, cantar o fado é regressar à essência”, diz. De Amália também herdou (sobretudo nos últimos tempos) uma certa noção cénica do espetáculo. Há sempre momentos do reportório para desanuviar do ambiente melancólico e mais taciturno. Amália servia-se do folclore; Cristina encontra outros temas que cumprem essa função. Em Branco, isso acontece com Este Corpo, de Filipe Sambado. Em Menina, acontecia com Boatos. Cristina puxa pelo público, pede que acompanhem o ritmo com palmas. Outro novo tema apresentado ao vivo é Aula de Natação, de Jorge Cruz, uma história de amor e desamor bem contada. Mas o momento mais comovente é Eu por Engomar, de Filho da Mãe, com letra de André Henriques. Uma música que fala do envelhecimento: “Estou a mostrar o avanço da idade em palco, perante os outros. E não tenho medo de o fazer.” Contudo, revela: “Espero que esta necessidade que sinto de cantar desapareça. Senão vou ter de a calar. Não me vejo em cima do palco com muita idade ou sem voz. Tenho outras coisas para fazer.” E que coisas serão essas? Para já, no final do ano, vai lançar um livro de receitas on the road. Entretanto, esperemos que ainda nos ofereça a sua música por muitos e bons anos. E é assim, por engomar, que mais gostamos dela. visao@visao.pt A VISÃO viajou a convite da Universal Music Portugal


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CINEMA

Pantera negra O ator Chadwick Boseman, no papel de T'Challa/Black Panther, marca um antes e um depois nos filmes com super-heróis negros

Superpoder negro ‘‘Black Panther’’ já está a fazer história nas bilheteiras de todo o mundo, como um dos mais bem sucedidos filmes de sempre saído do universo da Marvel. Mas significa muito mais do que isso nos EUA como explica este premiado jornalista freelancer, observador atento da cultura negra no seu país

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primeiro filme que me lembro de ver no cinema tinha um herói negro. Lando Calrissian, interpretado por Billy Dee Williams, não possuía superpoderes mas dirigia a sua própria cidade. Nesse filme de 1980 (O Império Contra-Ataca, uma sequela de Star Wars) Calrissian, sendo um indivíduo complexo, fazia o que era correto. Foi um dos motivos por que cresci sabendo que podia ser assim. Se está a ler isto e é branco, ver pessoas parecidas consigo não é uma coisa em que pense com frequência. Todos os dias, a cultura reflete-o; não apenas a si mas a versões suas praticamente infinitas − executivos, poetas, homens do lixo, soldados, enfermeiros e por aí adiante. O mundo mostra-lhe que as suas possibilidades não têm limites. Aqueles de nós que não somos brancos temos bastante mais dificuldade em descobrir representações nossas nos mass

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JAMIL SMITH

media e noutras zonas da vida pública, e também em encontrar representações que indiquem a nossa humanidade multifacetada. As personagens do ecrã não nos são necessárias apenas a nós, para nos sentirmos visíveis e compreendidos, mas também a outros que precisam de nos ver e compreender. Quando isso não acontece, todos ficamos mais pobres. Essa é uma das muitas razões pelas quais Black Panther é significativo. Aquilo que parece apenas mais um título de uma parada incessante de filmes de super-heróis é, na realidade, algo muito maior. É um filme sobre o que significa ser negro tanto na América como em África − e, mais em geral, no mundo. Em vez de fugir a questões complicadas sobre raça e identidade, o filme ataca de frente os temas que afetam a vida dos negros na atualidade. Também é incrivelmente divertido, cheio de comédia bem calibrada, ação coreografada com precisão e gente de todas as cores belissimamente iluminada. “Há filmes de super-heróis que são dramas sombrios e outros que

são comédias de ação”, explica o realizador Ryan Coogler. Mas este filme, diz, aborda outro género importante: “Filmes de super-heróis que lidam com questões sobre o que é ter ascendência africana.” DASHIKIS, BOUBOUS E KANZUS

Black Panther é o 18º filme do Marvel Cinematic Universe, franchise que gerou receitas multimilionárias em vendas de bilhetes de cinema ao longo dos últimos dez anos. A Marvel é, atualmente, propriedade da Disney. Este poderá ser o primeiro filme de megaorçamento – não apenas sobre super-heróis mas sobre quem quer que seja – a ter um realizador afro-americano e atores predominantemente negros. Hollywood nunca antes tinha produzido um blockbuster tão esplendidamente negro. O filme surge na altura em que a indústria do entretenimento se confronta com o seu tratamento tóxico dado a mulheres e a pessoas de cor. Este reconhecimento, agora em rápida expansão (refletindo a importância da representação da nossa


cultura), era devido há muito. Black Panther está em boa posição para mostrar a Hollywood que as narrativas afro-americanas têm capacidade para gerar lucros com todos os públicos. E, mais importante, que fazer filmes sobre vidas negras faz parte do objetivo de mostrar que elas importam [referência ao movimento social, criado em 2013, Black Lives Matter]. O convite para a antestreia de Black Panther dizia: “Requere-se traje real.” Mas a 29 de janeiro ninguém apareceu no Dolby Theatre, Hollywood Boulevard, Los Angeles, com aspeto de interveniente num filme histórico britânico. Em lugar disso, viam-se coroas de um tipo diferente: altas e feitas de vários tecidos africanos. Lupita Nyong’o, vencedora de um Oscar, levava o seu cabelo natural bem preso acima de um resplandecente vestido púrpura com joias. Os homens, incluindo a estrela Chadwick Boseman e o próprio Coogler, usavam roupa e padrões afro-cêntricos, dashikis e boubous. O coprotagonista Daniel Kaluuya, apareceu com um kanzu, a túnica formal dos seus antepassados ugandeses. Após a era Obama, talvez nada disto devesse parecer revolucionário, mas parece. No meio de um movimento cultural e político retrógrado, a própria existência do filme Black Panther soa a resistência. Os seus temas desafiam o preconceito institucional, as suas personagens fazem alusões nada subtis a opressores e a sua narrativa inclui perspetivas sobre a vida e tradição negra em vários ângulos. Em 2014, quando o filme foi anunciado, ninguém sabia que a estreia iria coincidir com o clima carregado da América de Trump, quando é mais difícil entrever um futuro negro próspero.

DURANTE DEMASIADO TEMPO, FILMES QUE REPRESENTASSEM UMA REALIDADE EM QUE O MUNDO DOS BRANCOS NÃO FOSSE A REGRA, A BASE, ERAM POSTOS NUM GUETO, PROMOVIDOS SOBRETUDO JUNTO DE PÚBLICOS DE COR, COMO ENTRETENIMENTO DE NICHO, NÃO COMO PARTE DO ‘MAINSTREAM’

Reagindo ao caos em Charlottesville no verão passado, Trump equiparou quem protestava contra o racismo aos neonazis violentos que defendiam uma estátua de homenagem a um general da Confederação. Imigrantes do México, da América Central e de países predominantemente muçulmanos são alguns dos bodes expiatórios mais frequentemente apontados pelo Presidente. Assim, o que significa ver este filme, uma visão não mitigada de excelência negra, no momento em que o líder máximo do país, numa reunião recente, se terá referido a 54 países africanos com desprezo, chamando-lhes “países de merda”? “ELES QUE TENTEM”

Como é típico do clima atual, Black Panther já tem a sua quota de trolls e adversários, incluindo um grupo do Facebook que tentou, sem sucesso, inundar o agregador de críticas Rotten Tomatoes com classificações negativas. Que o filme seja visto como ameaça por alguns, não surpreende. Um rei africano ficcional com poder tecnológico para nos aniquilar − ou, pior, com riqueza para comprar a nossa terra – poderá não agradar a quem apenas deseja consumir o último capítulo da Marvel sem considerações políticas profundas. Quando penso naqueles que odeiam preventivamente Black Panther e procuram impedi-lo de influenciar a cultura americana, recordo a resposta dada pelo herói do filme, T’Challa, quando é avisado sobre os que tentam invadir a sua pátria: “Eles que tentem.” A história do Black Power (Poder Negro) e do movimento com esse nome remonta ao verão de 1966. O ativista Stokely Carmichael estava à procura de

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algo mais do que liberdade. Para ele, a integração numa América dominada pelos brancos significava apenas uma espécie de assimilação regulamentar. Cerca de um ano após o assassínio de Malcolm X e os motins de Watts, em Los Angeles, Carmichael sucedeu a John Lewis no Comité Coordenador Estudantil Não Violento. Carmichael decidiu afastar a organização de uma filosofia pacifista e escalar a militância do grupo para enfatizar a autodefesa armada, defender a propriedade empresarial negra e assumir o controlo das comunidades. Em junho desse ano, James Meredith, um ativista que quatro anos antes se havia tornado o primeiro negro aceite na Universidade do Mississípi, começou a Marcha contra o Medo, uma longa caminhada de protesto desde Memphis até ao Mississípi, sozinho. No segundo dia de marcha, foi ferido por um atirador. Carmichael e dezenas de milhares de outros continuaram na sua ausência. Carmichael, que foi preso a meio da marcha, estava furioso quando o libertaram. “A única forma de impedirmos os brancos de acabarem connosco é tomarmos o poder”, declarou em frente a uma multidão exaltada em 16 de junho. “Andamos há seis anos a dizer 'liberdade' e não conseguimos nada. O que vamos começar a dizer a partir de agora é Black Power!”. AFRO-FUTURISMO

A personagem Black Panther (Pantera Negra) nasceu na era dos direitos civis e refletia a política desse tempo. Apareceu, pela primeira vez, na edição nº 52 das revistas de quadradinhos d'O Quarteto Fantástico. Os seus principais atributos eram força sobrenatural e agilidade, aliados a um intelecto de génio. T'Challa/ Black Panther era o rei de Wakanda, uma nação africana ficcional que se tinha tornado o país tecnologicamente mais

O QUE ‘BLACK PANTHER’ TEM DE REVOLUCIONÁRIO É QUE IMAGINA UM MUNDO NÃO DESTITUÍDO DE RACISMO, MAS ONDE OS NEGROS DETÊM A RIQUEZA, A TECNOLOGIA E O PODER MILITAR 90

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Quadradinhos A personagem Black Panther chegou ao universo da Marvel, ligada ao Quarteto Fantástico, em 1966. Força sobrenatural, agilidade e inteligência eram os seus superpoderes

avançado do mundo. Era uma visão de grandeza negra e, na verdade, de poder – numa época difícil, quando mais de 41% dos afro-americanos viviam no limiar da pobreza ou abaixo dele, representando quase um terço dos pobres no país. Black Panther era uma expressão de afro-futurismo – um ethos que funde mitologias africanas, tecnologia e ficção científica, servindo para desmentir representações convencionais de (ou, pior, esforços para concretizar) um futuro sem gente negra. Os seus criadores brancos, Stan Lee e Jack Kirby, não imaginaram deliberadamente uma resposta, na forma de um mundo de fantasia, ao apelo de Carmichael, mas essa imagem tinha muito poder. T’Challa não era apenas forte e educado; também era realeza. Não precisava de tomar o poder. Já o tinha. “Podia dizer-se que aquela nação africana era fantasia”, diz Boseman, que interpreta T’Challa no filme, “mas ter a oportunidade de ir buscar ideias reais, lugares reais e conceitos africanos reais e pô-los dentro da ideia de Wakanda era uma grande oportunidade para desenvolver um sentido de identidade, em especial quando estamos desconectados dela”. Cinquenta e dois anos depois do aparecimento de T’Challa, muitas exigências ainda não foram respondidas. A desigualdade económica entre famílias brancas e negras ainda é uma realidade evidente. O que Black Panther tem de revolucionário é que imagina um mundo não destituído de racismo, mas onde os negros detêm a riqueza, a tecnologia e o poder militar para equilibrar o jogo. O Black Panther Party (Partido Black Panther), organização revolucionária fundada em Oakland, Califórnia, uns meses depois do aparecimento de T’Challa no mundo da Marvel, foi descrito nos media como um grupo

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ameaçador e radical que divergia dramaticamente da visão mais pacifista de líderes dos direitos civis como Martin Luther King e Lewis. A Marvel chegou a mudar temporariamente o nome da personagem para Black Leopard (Leopardo Negro) por causa da associação inevitável aos Panthers, mas depressa voltou atrás. Para alguns espectadores, Black Panther pode ter conotações injustamente sinistras, mas o filme de 2018 reclama o símbolo da pantera negra como um avatar de mudança. AS CICATRIZES DA ESCRAVATURA

O realizador Ryan Coogler diz que Black Panther, tal como os seus filmes anteriores – incluindo o drama de brutalidade policial Fruitvale Station, A Última Paragem e a sua inovadora sequela Creed: o Legado de Rocky – explora questões de identidade. “É algo com que sempre me debati enquanto pessoa”, diz o realizador. “Como a primeira vez que descobri que era negro.” Está menos a falar de uma autoconsciência epidérmica do que de perceber como a sociedade branca vê a sua pele negra. “Não apenas a identidade, mas mesmo nomes. ‘Quem és tu?’ é uma pergunta que aparece muito neste filme. T’Challa sabe exatamente quem é. O antagonista neste filme, esse, tem muitos nomes.” O vilão assume a forma de Erik 'Killmonger' Stevens, um ex-soldado de operações secretas com ligações a Wakanda,

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que procura vencer T’Challa e ficar-lhe com a coroa. Tal como interpretado por um irresistível Michael B. Jordan, as motivações de Killmonger iluminam questões complexas sobre a melhor forma de os negros pelo mundo fora usarem o seu poder. No filme, Killmonger é, tal como Coogler, um nativo de Oakland. Ao explorar as experiências díspares de africanos e afro-americanos, Ryan Coogler foca-se brilhantemente nas cicatrizes psíquicas do legado da escravatura e fala de como, até hoje, os americanos negros sofrem as consequências disso na vida real. A perspetiva do Killmonger é apresentada por inteiro: a sua raiva em relação à marginalização e fragilização dos negros é justificável. Coogler, que escreveu o argumento em parceria com Joe Robert Cole, também utiliza outro importante antagonista da banda desenhada: o cobarde e preconceituoso Ulysses Klaue (Andy Serkis). “O que gosto nesta experiência é que não se limitou ao que podia ter sido, na linha da black exploitation: ele vai lutar com Klaue, vai atrás do homem branco e é só isso, está ali o inimigo”, diz Boseman. O ator reconhece que alguns fãs não vão apreciar que um homem negro lute contra protagonistas negros. O Killmonger luta não apenas com T’Challa mas também com guerreiras como a espia Nakia (Nyong’o), Okoye (Danai Gurira) e o resto da Dora Milaje, a guarda real inteiramente feminina de T’Challa.

Dupla vencedora O ator Chadwick Boseman e o realizador Ryan Coogler são os grandes responsáveis pelo sucesso de Black Panther. Em termos de bilheteira, no primeiro fim de semana de exibição, foi a quinta melhor estreia de sempre nos EUA

Killmonger e Shuri (Letitia Wright), a irmã de T’Challa que é uma grande especialista em tecnologias, também se enfrentam. T’Challa e o Killmonger são o espelho um do outro, separados apenas pelo acaso do nascimento. “O que eles não compreendem”, diz Boseman, “é que o maior conflito que alguma vez enfrentamos é connosco mesmos”. Tanto T’Challa como o Killmonger precisavam de ser fascinantes para o filme ter êxito. “Obviamente, é o super-herói que nos faz sentar na cadeira”, diz Coogler. “É ele quem queremos que vença. Mas diabos me levem se os vilões também não são cool! Têm de ser capazes de enfrentar o herói e pôr-nos a dizer: ‘Oh pá, não sei se o herói vai conseguir safar-se disto...’”: “Se não tivermos isso”, conclui, “não temos filme”. FILMES BRANCOS, FILMES NEGROS...

Este não é apenas um filme sobre um super-herói negro. Carrega um peso que nem Thor nem o Capitão América alguma


Afirmação negra A expressão Black Power ganhou força na década de 60 do século passado, nos EUA. “Andamos há seis anos a dizer ‘liberdade’ e não conseguimos nada. O que vamos começar a dizer a partir de agora é Black Power!” foram palavras que mudaram tudo, ditas por Stokely Carmichael, em 1966

vez poderiam levantar: servir um público negro há muito sub-representado. Durante demasiado tempo, filmes que representassem uma realidade em que o mundo dos brancos não fosse a regra, a base, eram postos num gueto, promovidos sobretudo junto de públicos de cor, como entretenimento de nicho, não como parte do mainstream. Ninguém fala de filmes de Woody Allen e Wes Anderson como “filmes brancos” a promover unicamente junto dessa audiência. Black Panther assinala o maior movimento na onda até agora: é ao mesmo tempo um “filme negro” e a mais recente entrada na mais lucrativa franchise cinematográfica da história. Para um negócio cinematográfico avesso ao risco, dirigido em larga medida por executivos brancos historicamente predispostos a aprovar projetos com personagens parecidos com eles, Black Panther prova que mostrar uma realidade não branca pode fazer muito, muito dinheiro. Parte do sucesso inicial do filme deve ser

creditada a Nate Moore, um produtor executivo afro-americano na divisão de filmes da Marvel, que tem falado expressamente sobre a importância de incluir personagens negros no universo Marvel. Mas para além de Wakanda, as questões de poder e responsabilidade, dir-se-ia, não são apenas aplicáveis aos personagens em Black Panther. Assim que este filme escancare portas que estavam fechadas, como é esperado, Hollywood deve fazer mais do que limitar-se a aprovar outras histórias negras. Também precisa de mais executivos como Nate Moore. “Conheço pessoas na indústria do entretenimento que vão ver isto e querer o mesmo”, diz Boseman. “Mas isto também tem a ver com ter pessoas nos lugares certos – em posições onde se controlam acessos, pessoas que podem abrir portas e pegar numa ideia. Como pode isto ser feito? Como podemos ser representados de uma forma aspiracional?.” Por Black

EM VEZ DE FUGIR A QUESTÕES COMPLICADAS SOBRE RAÇA E IDENTIDADE, O FILME ATACA DE FRENTE OS TEMAS QUE AFETAM A VIDA DOS NEGROS NA ATUALIDADE

Panther marcar um tal momento sem precedentes, a excitação com o filme sente-se de forma especial. Estão a ser organizadas festas Black Panther, soirées pré e pós-filme, para fãs novos e velhos. No início de fevereiro, tornou-se viral um vídeo de jovens estudantes em Atlanta a dançar depois de saberem que iam ver o filme juntos. A atriz Octavia Spencer, vencedora de um Oscar, anunciou na sua conta do Instagram que ia estar no Mississípi quando Black Panther estreasse e planeava comprar todos os bilhetes num cinema “numa comunidade mal servida para garantir que todas as nossas crianças de cor podem ver-se como super-heróis.” Muitos pioneiros dos direitos civis, e outros antepassados que abriram caminho, receberam luxuosos tratamentos cinematográficos em filmes como Malcolm X, Selma e Hidden Figures (Elementos Secretos). Jackie Robinson até se interpretou a si mesmo no ecrã. Campeões ficcionais no celuloide incluíram Virgil Tibbs, John Shaft e Foxy Brown. Mas Black Panther tem mais importância, pois é a melhor oportunidade para pessoas de todas as cores verem um herói negro. Essa é a sua própria forma de poder. visao@visao.pt

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TENDÊNCIAS

Perguntas para queijinho São cada vez mais os bares que organizam noites de quiz. Sem batota nem internet para ajudar, os jogadores passam o serão a testar os seus conhecimentos, entre um copo e outro

ual o maior afluente da margem esquerda do rio Amazonas, na América do Sul? Na passada quinta-feira de quiz no Joker Club, esta foi a pergunta mais difícil do jogo de cultura geral – e aquela a que ninguém conseguiu responder. Numa noite lotada (com 67 jogadores), como já é habitual há quatro anos, neste bar de Lisboa, nem mesmo a equipa tricampeã de Andreia Rodrigues descobriu a resposta (*Ver solução no final do texto). Viciada em quiz (vício doce para quem se habituou a ganhar), Andreia vai, todas as semanas, de Oeiras para Lisboa para se juntar aos outros membros da equipa. Para Christophe, Miguel, Pedro e Nuno, participar no jogo – com origem em Dublin, na Irlanda, a meio do século passado – é “um desafio por não poder consultar a internet no telemóvel, uma maneira de se aprender alguma coisa”, concordam. E só nesta época, iniciada em outubro passado, já contabilizam 18 vitórias. Vão no bom caminho para no fim, em maio, com os prémios ganhos (€15 em consumo), fazer uma bela jantarada. Há ano e meio que José Gomes André é o anfitrião no Joker Club, ou quiz master como se diz no meio: o responsável por “inventar” 50 novas perguntas todas as semanas, levando o seu jogo a outra meia dúzia de bares da cidade. O seu segredo é uma base de dados rica, com informação

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variada, sobre temas como Desporto, Atualidade, Música, Política, além dos clássicos de História e de Geografia. “As pessoas sabem muito”, garante José Gomes André que não se coíbe de perguntar o que quer que seja. “O quiz clássico, o das 50 perguntas, é o tipo de jogo preferido, por se responder por escrito e permitir o anonimato. É ideal para iniciados.” NÃO BASTA SABER, É PRECISO PENSAR

Júlio Alves é o culpado por esta febre de cultura geral, que se tem espalhado por diversos bares e associações recreativas do País. Além do jogo clássico, a sua versão cascata é usada em campeonatos nacionais e em olimpíadas no estrangeiro, tudo com equipas organizadas e muita competição e rivalidade à mistura.

PARA MUITOS, OS QUIZ ACABAM POR SER UMA DESCULPA PARA SE ENCONTRAREM COM OS AMIGOS PELO MENOS UMA VEZ POR SEMANA

MARCOS BORGA

Q

SÓNIA CALHEIROS

TIPOS DE QUIZ CLÁSSICO 50 perguntas, respondidas por escrito, por vezes sem penalização se errar. No fim do jogo, o prémio dá desconto no bar. CASCATA Joga-se uma vez por mês e insere-se num campeonato de 11 jornadas para apurar o vencedor. As perguntas, com maior nível de dificuldade, são de resposta oral, em curtos dez segundos. IRISH Menos comum, joga-se em língua inglesa em alguns bares irlandeses, com rondas de perguntas temáticas.


Casa cheia Em 2013, a noite de quiz no Joker Club, em Lisboa, começou de forma discreta, hoje tem em média 55 pessoas

ONDE JOGAR Um quiz para cada dia da semana SEGUNDA DéjàVu Coffee House, Lisboa; Dr. Why, Gaia TERÇA DéjàVu Coffee House, Bus – Paragem Cultural, Estado d’Alma, Tarannà, Zeitnot e Hennessy’s Irish Pub, Lisboa; Aqui Base Tango, Coimbra QUARTA Magic Pool e Al Café, Lisboa; Breyner85, Porto QUINTA Clube Atlético de Arroios, Apple House, Joker Club, Entre Nós – Petiscar e Conversar, em Lisboa; Mary Spot Vintage, Matosinhos; Casa da Madeira, Porto SEXTA Espiral, Voz do Operário e Academia Recreativa da Ajuda (3ª sexta do mês), Lisboa SÁBADO Estado d’Alma (1º sábado do mês), Lisboa DOMINGO Magic Pool, O’Gillins Irish Pub (versão inglesa de 15 em 15 dias), Lisboa

desconstruir uma palavra de um pacote de açúcar. Hoje, conta com uma legião de fãs que o segue de bar em bar, tendo há três anos assentado arraiais no mítico Apple House, a primeira hamburgueria de Lisboa, todas as quintas. É o caso de Inês, Joana e António (que andam entre os 25 e os 31 anos). “Vimos porque gostamos de ganhar”, brincam. Mais a sério, dizem que é uma desculpa para se encontrarem. “Sabemos que a cada duas semanas nos juntamos.” E já é assim há largos meses. Até já têm uma certa rivalidade saudável com a mesa do lado. “Vamos para a nossa mesa habitual”, diz Graça Teles, 60 anos, assim que entra no mítico Apple House, que mantém a decoração retro dos anos 70, apesar dos três televisores flatscreen pendurados nas paredes. Além da professora, acompanhada pela filha Inês Leal e os amigos dela, Afonso e Bernardo, em cerca de dez

minutos a casa compõe-se com mais 15 jogadores. Para a professora do Ensino Básico, o quiz é uma forma de limpar a cabeça. “As sextas-feiras correm-me sempre melhor por causa da noite de quiz na véspera”, garante. No grupo, Bernardo é dos mais empolgados a responder, para ele as perguntas de Carlos Santos são menos académicas e com raciocínio, “em vez do típico sabes ou não sabes”. Os habitués já conhecem as regras: uma das respostas é o número da sessão (118...); as perguntas 1 e 26 são de atualidade; há pistas nas perguntas terminadas em 4 e 7; ouvem-se músicas nas questões acabadas em zero. É o lado divertido das suas charadas e perguntas, das que obrigam a pensar, que mais cativa as pessoas. Com as pistas que Carlos dá, mesmo quem não sabe consegue chegar à resposta certa. scalheiros@visao.pt * Rio Negro

Considerado o pai do quiz em Portugal, depois de no final dos anos 1990 ter jogado o irish quiz num bar irlandês no Cais do Sodré, Júlio Alves começou por adaptar as perguntas e respostas para o público português. Autor do Grande Livro do Quiz, com 800 perguntas (editado pela Manuscrito, em 2016), além de jogador, Júlio passou a quiz master nos dois bares que, na altura, teve na Madragoa. Por lá passaram vários dos atuais quiz masters, incluindo Carlos Santos, que sempre gostou de jogos de cultura geral, do Stop ao carismático jogo de tabuleiro Trivial Pursuit. Hoje, com 42 anos, este engenheiro civil é responsável pela elaboração das perguntas apresentadas no Brainstorm, concurso do horário nobre da RTP1. Normalmente é quando vai no carro que Carlos Santos se lembra de perguntas, seja porque ouviu um pormenor de uma notícia que o chamou a atenção, seja porque se lembrou se

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CRÓNICA

P O R M I G U E L A R A Ú J O / Músico

Crónica do rapazito de ar melancólico junto ao paredão de Matosinhos

Se nada interessa por que carga de água é que o meu coração parece que me sai da boca de cada vez que ela passa por aqui a esta hora 96

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Q

uase todos os dias vou correr junto ao mar e quando, ao descer, dando de cara na água viro para a direita, costumo ir até Leça e passo na marginal de Matosinhos junto às estátuas de umas velhotas de pedra de ar constantemente assarapantado. Uma vez reparei num rapaz a reparar numa miúda que passava e dava para ouvir o que ele pensava, ela pensava que se este mundo é uma migalha de pão suspensa no nada, uma poeirazita, um microgrão de areia que se soltou numa explosão que ocorreu muito no antigamente e nós, os habitantes deste mundo, somos poeira de estrela, somos o que restou de uma fuga de gás, porque algum Deus ausente deixou o gás aberto e é capaz de ter acendido um isqueiro ou coisa que o valha e puuum, o nada estilhaçou-se como uma bola de areia se estilhaça ainda no ar e que se saiba nada a não ser nós, aqui dum lado para o outro junto ao paredão de Matosinhos, uns de gelado na mão outros de jornal debaixo do braço, os que ainda compram jornal, será que sequer o leem ou a cova do braço já se habituou àquela trouxa de papel, e se isto é assim aqui em Matosinhos imagino no mundo inteiro, que apesar de migalha de pão suspensa no nada ainda vai daqui até à Austrália e volta, imagino a quantidade de gelados, a quantidade de jornais, uns a passear cães, outros a passear fantasmas e tudo para quê, um grão de areia a rebolar sobre si próprio no nada, do nada e para nada, só porque alguma ameba rebolou para fora do mar e foi por aí fora em cascata até que houve um macaco que desceu dum galho e desengatou-se este rebuliço todo, este motim, este tropel, pessoas dum lado para outro em tais preparos que qualquer dia não se cabe nesta poeira aos trambolhões no céu, isto sem contar com os que já morreram, os que morreram de doenças que já não existem, como por exemplo escorbuto, os que apanharam peste negra, os que foram devorados pelos espanhóis, os que morreram no caminho porque nem sequer existiam comboios, e porquê, porquê tanta consumição, porque tantos comboios, os que morreram de vergonha, os que morreram de peçonha, os que nem sequer nasceram, os que ainda se arrastam junto ao paredão de Matosinhos a esta hora porque se estão aqui a esta hora é porque estão sem emprego, emprego para quê, se calhar é melhor assim, sempre passeiam junto ao mar e o cheiro talvez lhes lembre quando ainda eram uma simples ameba, um ser unicelular a salvo de tanta consumição, basta olhar para as velhas, de costas para os que passam e de mãos na cabeça a olhar para o mar, aflitas, empedernidas, com certeza que não terá sido alguma ameba que naufragou, as amebas não dão nem se dão a consumições, e mesmo as alegrias, alegrias para quê, se o mundo é uma poeira às voltas no nada, um berlinde lançado em direção a coisa nenhuma infestado de bichos e pessoas, da mesma maneira que um berlinde a sério vai cheio de micróbios e coisas assim que daqui não dá para ver, da mesma maneira que do espaço a Terra é um berlinde azul e se afastarmos mais é um ponto negro e se afastarmos mais ainda nada, absolutamente nada, nem Matosinhos nem Austrália, não se vê nada e tudo isto porquê, tudo isto para quê, se nada importa, nada interessa, e se nada interessa por que carga de água é que o meu coração parece que me sai da boca de cada vez que ela passa por aqui a esta hora, era o que parecia pensar o rapazito sentado no muro junto ao paredão de Matosinhos, com um olho no nada (como que a olhar para dentro) e outro na tal rapariga que ia a passar, pelos vistos era costume ela passar naquele sítio àquela hora, pela cara do rapaz.


COM PAUZINHOS, PARA SORVER SEM CERIMÓNIAS

Os melhores sítios, em Lisboa e no Porto, para comer ramen, o fumegante (e substancial) caldo com massa fresca e outros ingredientes que fazem uma refeição


Massa sem fim num caldo saboroso

Comer ramen já não é só para quem pode, é para quem quer. Lisboa e Porto (mais devagarinho) entraram na onda de servir sopas orientais que fazem as vezes de refeição. A VISÃO Se7e passou a semana a caldos para mostrar agora os restaurantes onde pode saboreá-los L U Í S A O L I V E I R A loliveira@visao.pt

KOPPU LISBOA Abriu em 2016 e, desde então, tem sido um ver-se-te-avias. Os 30 lugares da sala deste restaurante que fica junto ao Príncipe Real são quase sempre insuficientes para todos os que querem provar os sete pratos de ramen que aqui se servem. Quer dizer, podem ser só seis, que o tonkotsu (€14,50, o mais caro) é uma edição especial e avisamos logo para perguntar se este está disponível nessa noite. Todos os caldos (de porco, galinha ou vegetariano) levam ovo nitamago, que se coze primeiro para depois se imergir num molho de soja e mirin (um tipo de vinho de arroz). No Koppu (uma palavra japonesa deixada por lá pelos portugueses, que quer dizer isso mesmo que a sua sonoridade sugere), este tipo de preparações exige que se comece a trabalhar com muitas horas de antecedência. O sítio mais cosy é o privado, disponível para seis a sete pessoas, num ambiente especial, por entre almofadas em tons de preto, cinzento e amarelo-mostarda – ideal para o deleite que as enormes taças pretas anunciam, assim que pousam, a escaldar, na mesa de mármore.  R. Gustavo Matos Sequeira, 30, Lisboa > T. 21 390 0043 > ter-qui 19h-24h, sex-sáb 19h-1h

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De onde vem, afinal, o ramen?

O ovo nitamago, marinado em molho de soja e mirin, é um ingrediente essencial em todos os ramens do Koppu. Este é a versão vegetariana, com tofu e cogumelos

SIGNIFICADO

DIANA TINOCO

ABC

HAPPY NOODLES LISBOA

MÁRIO JOÃO

Se a porta do restaurante estivesse aberta às 11 da manhã, poderíamos ver como a essa hora já há duas mãos que amassam um enorme pedaço de farinha misturada com água – é essa massa que há de servir de base a todos os pratos do Happy Noodles que tem apenas um ano e quatro meses. Meia hora depois, o caldo de vegetais vai para o lume e só sai de lá quando a enorme panela se esvazia. Assim que um cliente pede um dos cinco ramens da lista, há que voltar a pegar na massa, batê-la e esticá-la com as mãos, até esta se transformar em fios sem fim. Por último, mergulham-se esses noodles em água a ferver, durante uns segundos, para ficarem com a textura certa, e estão prontos a ir para a mesa. A porta só abre ao meio-dia, mas todo este processo pode ser visto por quem aqui entra – a cozinha não tem segredos e tudo se passa ao balcão aberto para o restaurante. O tipo de massa que aqui se serve é o que se come em Lanzhou, uma cidade do Noroeste da China, que fugiu à tradição arrozeira do resto do país, explica uma das donas do Happy Noodles que pede por todos os santinhos para conservar o anonimato (há mais dois sócios orientais, mas quem anda sempre por aqui é ela, portuguesa de gema). O sucesso tem sido tal – é muito frequentado por chineses – que já pensam em abrir uma segunda casa dedicada à massa artesanal (também pode ser comida fora do caldo, mais à portuguesa). Por enquanto, podemos comer noodles de Lanzhou com carne de vaca, chucrute, legumes, bolas de peixe ou camarão, e os preços variam entre €6,30 e €7,50. Avisa-se já que é difícil dar vazão a tudo o que vem na taça.  Av. 5 de Outubro, 279-A, Lisboa > T. 21 793 0289 > seg-dom 12h-15h, 19h-23h

Ramen foi o nome ocidental encontrado para definir um tipo de massa de trigo, trabalhado manualmente e transformado em fios apenas com o manusear dos dedos. Este pode ser servido a seco, com ingredientes à escolha, ou mergulhado num caldo apurado com outros condutos ORIGEM

A tradição nasceu na cidade chinesa de Lanzhou e passou depois para o Japão, democratizando-se até chegar ao Ocidente DIFERENÇAS

O que se consome no Japão, enquanto comida de rua, é baseado num caldo de ossos e carne de porco (ou galinha) que demora 12 horas a apurar. A versão chinesa pode ser de vegetais ou de galinha e não fica tanto tempo a ganhar sabor, tornando-se mais leve E T I Q U E TA

Deve ser comido com a ajuda de pauzinhos, para se enrolar sem fim a massa e depois sorve-se o caldo até à última gota: pela tigela, a fazer barulho e sem cerimónias

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DIANA TINOCO

KOKORO RAMEN BAR LISBOA Neste pequeno restaurante, de apenas 16 lugares, numa rua lateral ao Instituto Superior Técnico, come-se apenas ramen. Mas nem por isso este deixa de ter fila à porta perto das horas de refeição. Os clientes já habituais, embora tenha aberto há pouco mais de um ano, sabem ao que vão e que terão de fazer poucas escolhas. A ementa – simples, com preços a variar entre os €7 e €8,50 – exibe apenas três opções: shoyu (de frango), tonkotsu (entremeada) ou vegetariano. Os três amigos que conseguiram arranjar mesa ao almoço são estudantes da universidade vizinha e, apesar de nunca terem ido ao Oriente, conhecem bem o prato que aqui se come porque sempre foram fãs de animé e da personagem Naruto que passa a vida de pauzinhos em punho, a sorver (sim, o ramen sorve-se, sem cerimónias) estes caldos de massa, carne e ovo. Os empregados mal falam português, mas isso pouco importa. A tradução da ementa, adivinha-se, foi feita à custa do Google, mas consegue-se perceber que a pequenez da oferta se deve ao facto de gastarem “grande quantidade de tempo a preparar o ramen e o caldo”. Quando ele chega à mesa, já ninguém precisa de instruções, nem para utilizar os molhos de alho, picante ou soja. E todos têm a garantia de que na cozinha não adicionaram glutamato monossódico (um aditivo alimentar que realça o sabor dos alimentos), conservantes ou corantes. Ah, e a massa é fresca.  R. Rovisco Pais, 30A, Lisboa > T. 21 197 4713 > seg-sáb 12h-14h30, 19h30-22h

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RO PORTO É um restaurante sem salamaleques aquele que os chefes João Pupo Lameiras e Francisco Bonneville abriram, há pouco mais de um ano, na Baixa do Porto. Dedicado ao caldo japonês, que João Pupo aprendeu a devorar nos nova-iorquinos Momofuku e Ivan Ramen, o RO é descomprometido, e isso nota-se nas dicas que dão quando nos põem a ementa na mesa: “Puxar a massa com os paus e sorver, sem vergonha do barulho”, “é mais fácil quando nos debruçamos sobre a taça” ou “beber o caldo diretamente da taça”. “Nunca quisemos um restaurante japonês puro e duro”, salientam. Todos os meses mexem na carta, mas há propostas que não mudam, como os quatro ramens (€12): o veggie shoyu, com caldo de cogumelos, a pensar nos vegetarianos; o ramen shoyu, com caldo de frango, cozinhado lentamente (ossos incluídos)


DIANA TINOCO LUCÍLIA MONTEIRO

NOOD LISBOA

durante três horas; o tantan e o tonkotsu, de cozedura mais demorada, a partir de ossos, cachaço e barriga de porco. Sempre diferente é o ramen do mês, como o de rosbife e cogumelos (€14) que, por ter tido muita aceitação, acabou por integrar a ementa. Todas as carnes são cozinhadas a baixa temperatura, garantindo a consistência do produto, salienta João Pupo. Quem quiser, acompanha o caldo a fumegar com ro hai (uma bebida feita com vodca, à base de fruta e soda) ou sangria de saqué, lírias e framboesa (€11,50). João e Francisco querem um dia fazer a própria massa mas, por agora, os noodles vêm da norte-americana Sun Noodle. A partir de abril, terão take away e entrega em algumas zonas do Porto, e nessa altura, sim, poderemos comer o ramen do RO no conforto de casa. F.A.

Este ramen do RO é feito com caldo de cogumelos e leva rosbife, ovo, cebolinho, cogumelos shiimoji, enoki e shiitake

Há dez anos, se alguém quisesse comer um ramen em Lisboa ia ao Nood, num muito menos glamoroso Largo Bordalo Pinheiro, em pleno Chiado. Este espaçoso restaurante impôs-se pela sua cozinha de fusão, mas os caldos – uma total novidade para os portugueses em 2007 – pegaram logo, lembra Cleber Costa, o gerente. Não admira: as massas são feitas aqui, o caldo de galinha é caseiro e os ingredientes são todos acrescentados na hora de servir. E as doses são bastante generosas. Há que escolher entre uma oferta de cinco ramens: galinha (€9,10), galinha e chili (€9,20), porco (€9,10), carne de vaca (€10,35) ou vegetais (€8,95). Quase todos levam ainda cebola-roxa, cebolinho, rebentos de soja, ovo, pakChoy e lima. Às mesas com bancos corridos de madeira clara (há um ano nasceu a esplanada) chegam os caldos a fumegar, em enormes taças pretas, e devem ser comidos com a colher adequada e a ajuda dos pauzinhos.  Lg. Bordalo Pinheiro, 20, Lisboa > T. 21 347 4141 > dom-qua 12h-23h30, qui-sáb 12h-24h

 R. Ramalho Ortigão, 61, Porto > T. 96 730 7887 > seg-qui, dom 12h-23h, sex-sáb 12h-14h

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RAMEN BREAK PORTO O primeiro restaurante do Porto dedicado ao ramen, aberto em abril de 2016, parece ir de vento em popa. Apesar de funcionar só três dias por semana, de quinta-feira a sábado, não tem mãos a medir para tanto cliente. E, talvez por isso, fica a nota, os donos não se mostraram disponíveis para nos receber, a propósito desta reportagem. Socorremo-nos então da carta para verificar que, quase dois anos depois da nossa primeira visita, o Ramen Break tem o dobro das variedades iniciais: cinco para omnívoros (€9,75) e cinco para vegetarianos (a partir €8,25). O segredo parece estar nos ingredientes invulgares – como a manteiga de amendoim, o azeite de alho negro e o leite de coco, usado nos temperos – ou na preparação cuidada dos caldos cozinhados “durante várias horas, com amor e outros ingredientes especiais”, lê-se no site. E no qual alertam: “A cozinha fecha quando acaba o caldo.” Neste restaurante, situado entre a Boavista e Cedofeita, também a yuzunada ou limonada (€1,50) tem ganho adeptos, assim como o mochi de flor de cerejeira à sobremesa (€3). Isto se tiver a sorte de arranjar mesa. F.A.  R. Oliveira Monteiro, 280, Porto > T. 22 600 0701 > qui-sex 12h30-14h30, 19h30-22h30, sáb 13h-15h, 19h30-22h30

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AJITAMA LISBOA Não é um restaurante, mas como há quase um ano serve ramen todos os sábados, pelas nove e meia da noite (e às vezes até há edições especiais), não poderia ficar de fora deste roteiro. Apenas uma dúzia de afortunados é que semanalmente consegue reservar uma refeição neste supperclub, que funciona na casa de António Carvalhão, em Lisboa, mas que se concretiza com a ajuda indispensável do seu amigo João Ferreira. A preparação do caldo de inspiração japonesa começa na véspera, quando o porco preto vai para a panela largar a gordura na água – no dia seguinte servirá também de conduto ao ramen. Mas há mais águas a ganharem sabor ao longo de horas, uma com galinha lá dentro


Shiko-Tasca Japonesa Porto

O Japo-Tokyo Flavours fechou em dezembro, mas o chefe Ruy Leão já anda a preparar a sua reabertura noutra zona da Baixa do Porto, antes do verão. Enquanto isso não acontece, é no seu Shiko que serve o tan tan, o karé ou o miso ramen (mediante encomenda com 24 horas de antecedência), feitos com cachaço ou barriga de porco e ingredientes do dia.  R. do Sol, 238, Porto > T. 22 323 9671 > ter-sáb 12h-15h, 19h30-23h

Ikeda Porto

O restaurante japonês tem um ramen na ementa, feito com caldo de frango, milho-bebé, espinafre, cogumelos shitake e lombo de porco (€15).  R. do Campo Alegre, 416, Porto > T. 91 549 9363 > seg-dom 12h30-15h, 20h-23h

Ichiban Porto

Para provar este ramen terá que o encomendar com 24 horas de antecedência. O caldo, feito com carne de porco e gengibre, leva miso, ovo, cebolinho e carne de porco braseada (€15).

e outra com elementos do mar (dashi). Ao mesmo tempo, travase a batalha da confeção dos ovos, que devem ser marinados durante a noite para ficarem amarelados e naquele ponto perfeito, a meio caminho entre o cozido e o escalfado. Nas tardes de sábado, os dois amigos, que não são cozinheiros mas parecem, dedicam-se a fazer com as próprias mãos os noodles que complementam este prato. Antes de os 12 convidados saírem da casa de António Carvalhão, normalmente muito satisfeitos com a experiência, circulam umas caixinhas pretas, onde cada pessoa põe a quantia justa para pagar esta refeição especial. Vale mesmo a pena tentar vencer a lista de espera.  reservas: ajitamalisbon@gmail.com

Neste supperclub, nada é deixado ao acaso. E isso resulta num saboroso caldo de porco preto, apenas acessível às 12 pessoas que conseguem mesa no Ajitama

 Av. do Brasil, 454, Porto > T. 22 618 6111 > ter-qui 12h30-15h, 19h30-23h, sex-sáb 12h30-15h, 19h30-1h, dom 12h30-15h

Atari Baby Lisboa

Neste restaurante asiático do Cais do Sodré só existem dois ramens: o tradicional tonkatsu (€10), de barriga de porco, e o yasai (€9,50), vegetariano.  R. de São Paulo, 120-124, Lisboa > T. 91 036 1040 > seg-qua 12h-15h, 19h-24h, qui 12h-15h, 19h-1h,

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YI MIAN YUAN RAMEN LISBOA RAMEN TONKOTSU LISBOA Ponto prévio importante: este nanorrestaurante só vai estar no Mercado de São Bento até final de março. Afinal, quem se senta num dos seis lugares ao balcão transforma-se imediatamente numa cobaia. Luís Pina e Pedro Cardigos (do Go Juu) quiseram monitorizar o comportamento dos portugueses perante o ramen que aqui servem. E, neste caso, “servir” é o verbo perfeito, porque nada é confecionado no fogão, que funciona apenas para manter a comida quente. O caldo de porco, a massa, o ovo e os restantes ingredientes chegam já prontos da empresa de caldos de Luís Pina, muito afinados, depois de vários meses de testes. A barriga de porco, este coze-a a baixa temperatura e em vácuo, durante 12 horas, e o ovo marina-o como manda a lei. Só há duas opções para provar: a versão shoyu ou miso, a primeira menos forte do que a segunda, e ainda leva gengibre (€9,50, com shot de saqué). Qualquer um deles se complementa com carne de porco, alga nori, metade de um ovo, rebentos de soja e cebolo (a rama da planta que vai dar a cebola). Quem achar que isto não chega pode pedir reforço de ingredientes, mas há que contar com €1,50 por cada dose a mais. Em cima do balcão, há uma folha para se deixar o contacto caso se fique interessado no resultado prático da pesquisa destes dois amigos. Habemus novo restaurante? Só o tempo o dirá...  Mercado de São Bento > R. Nova da Piedade 101, Lisboa > qua-dom 12h30-15h30, qui-dom 20h-23h30

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Aqui a refeição faz-se acompanhar, de vez em quando, por umas sonoras pancadas. Nada de mais: atrás do balcão de inox, bate-se a massa para transformá-la em noodles sempre que alguém pede um ramen. O seu dono, um chinês que já adotou o nome ocidental de Alex, garante que este é o primeiro restaurante típico que serve esta massa estendida à mão. Mas não o dizem todos? Passando rapidamente pelas entradas de guiozas ou crepes vietnamitas, chega-se ao prato principal que aqui se traduziu em sopa de massa. A base custa €4,20 e já vem com legumes. Depois, vão-se somando os acompanhamentos, como pato assado, gambas fritas, legumes salteados, entrecosto, frango frito ou carne picada, cada um a €1,80. “Esta modalidade é para os portugueses. Para os chineses que cá vêm, servimos tudo preparado”, revela Alex. O que mais sai por aqui é o menu a €6,90, que é válido ao almoço ou ao jantar, incluindo uma entrada e um ramen já com acompanhamento. No site pizza.pt é possível encomendar estas sopas para casa, e lá chegará o caldo numa caixa, conduto noutra. E é o próprio dono que se encarrega de levá-las no seu carro.  R. Francisco Sanches, 35-37, Lisboa > T. 21 823 2419 > ter-dom 12h-16h, 18h-23h, seg 18h-23h


A sopa de massa serve de base a todos os ramens do Yi Mian Yuan Ramen. A ela deve juntar-se os acompanhamentos, desde pato assado a gambas fritas sex-sáb 12h-15h, 19h-2h, dom 13h-16h30, 19h-24h

Bonsai Lisboa

Só servem 30 doses ao sábado, de 15 em 15 dias. O caldo de ossos e de carne demora 96 horas a apurar, depois acrescenta-se-lhe alho-francês, cogumelos shitake, dashi e gengibre, barriga de porco, ovos e ingredientes da época (€15).  R. da Rosa, 248, Lisboa > T. 21 346 2515 > sáb 12h30-14h30

Ori Lisboa

Não há quem não lamente que este restaurante seja apenas um balcão no confuso food court do Colombo. No meio de uma variada oferta, existe o sapporo ramen (menu €9,30) e o Tokyo ramen (€9,25).

DIANA TINOCO

 C.C. Colombo > Av. Lusíada, Lisboa > T. 93 247 2979 > seg-dom 10h-24h

SUN TAN LISBOA

DIANA TINOCO

Não é todos os dias que há ramen neste balcão. Mas é todos os dias que há um caldo asiático − ou melhor, dois: um de carne, outro vegetariano. Tudo depende dos ingredientes que Francisca van Zeller, a dona e cozinheira, de 32 anos, encontra no mercado e da sua inspiração. Neste pequeníssimo espaço com 15 metros quadrados, onde só cabem seis pessoas (oito, com muito boa vontade), as doses de caldo são servidas em taças desenhadas por Margarida Mendes – não há uma igual à outra. Francisca prepara um ramen à portuguesa, com espinafres, em vez de pak-choy, pedaços de frango marinado, ovo na consistência certa, pickles de cebola-roxa, óleo de alho e a massa fresca, claro, que manda vir de fora, congelada, e é mesmo específica para este tipo de prato. Existem vários toppings para acabar de desenhar o caldo a gosto: sementes de sésamo, amendoins esmagados, cebola frita, molhos picantes e de soja, malagueta desidratada e vinagre com alho. Além do serviço ao balcão, pouco usual em Portugal para este tipo de comida mas comum por esse mundo fora, também há take away. Por mais 50 cêntimos (custam entre €7,50 e €8), levamos o ramen em duas caixinhas: caldo de um lado, massa e conduto do outro, para que não fiquem espapaçados.  R. de São Bento, 66 A, Lisboa > T. 91 110 2127 > dom-qua 12h-16h30, qui-sex 12h-16h30, 19h-22h

Wasabi Sushi Bar Lisboa

Especializado em sushi, tem uma surpresa na ementa: um ramen de rabo de boi (€13,50).  R. Azedo Gneco, 74B, Lisboa > T. 21 099 7186 > ter-qui 20h-23h30, sex-dom 13h-15h, 20h-23h30

Miss Jappa Lisboa

Entre guiozas e sushi, a chefe Anna Lins não dispensa os dois ramens que são um clássico na sua lista (€11,50 e €13,50).  Pr. do Príncipe Real, 5A, Lisboa > T. 21 137 9763 > ter-qui 19h30-24h, sex 19h30-1h, sáb 12h30-15h30, 19h301h, dom 12h30-15h30, 19h30-24h

Soi Lisboa

Num restaurante que se quer pan-asiático, o ramen não poderia ficar de fora. Há dois: o de porco (€11) e o de pato (€13).  R. da Moeda, 1C, Lisboa > T. 308 809 268 > seg-dom 12h-1h

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Manifesto

O QUE ANDAMOS A GOSTAR (OU NEM POR ISSO) DE DESCOBRIR POR AÍ J O A N A L O U R E I R O jloureiro@visao.pt

> muitíssimo bom OLÁ, CELÍACOS

Entre as novidades para o verão, os gelados Olá anunciaram um Cornetto clássico sem glúten, para os celíacos matarem saudades deste sabor intemporal. O Magnum Praliné de avelãs e o 4 O’clock em formato de sanduíche são os outros lançamentos da marca

> bom ROMÂNTICO RENOVADO O Museu Romântico do Porto reabriu com nova exposição permanente. Houve peças restauradas e o reforço da coleção desta antiga casa de campo do séc. XVIII, na Quinta da Macieirinha, outrora aposento do Rei Carlos Alberto, o exilado monarca da Sardenha e Príncipe do Piemonte

> bonzinho VINHO A DOBRAR O Porto está em modo enófilo. Até domingo, 25, o Palácio da Bolsa acolhe o Essência do Vinho, a celebrar 15 anos de vida (entrada €25). Sexta e sábado, dias 23 e 24, entra em ação o Simplesmente... Vinho, na Casa do Cais Novo, cruzando vinhos, petiscos, arte e música (€18)

> assim-assim SALVEM A SARDINHA! Reinventar o símbolo das Festas de Lisboa é o apelo lançado a artistas e a amadores pelo Concurso Sardinhas. A liberdade criativa é total e as cinco sardinhas vencedoras receberão um prémio no valor de dois mil euros. Aceitam-se propostas até 19 de março

> para esquecer EXPOSIÇÃO ESCHER É urgente organizar o sistema de entradas na exposição do Museu de Arte Popular. Quando a afluência é maior, fica-se horas à espera, sem a certeza de se conseguir ver os desenhos do artista holandês

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MAIOR GRUPO DE FRANCHISING NO PAÍS FECHA 2017 COM 196 NOVAS FRANQUIAS Grupo que detém os conceitos RE/MAX, Maxfinance e Melom/Querido Mudei a Casa Obras é o maior Franchising em Portugal com um total de 664 lojas Lisboa, 22 de fevereiro de 2018 A confirmar o bom momento que a economia portuguesa está a atravessar, impulsionado em parte pelo desenvolvimento do turismo e do setor imobiliário, o Grupo Ganhar, que, em Portugal, é responsável pelos conceitos de franchising RE/MAX, MaxFinance e Melom/ Querido Mudei a Casa Obras, fechou 2017 com 196 novas franquias. Um crescimento de 42% face à rede existente no final do ano anterior, que garante ao Grupo o lugar de maior rede de franchising do país em franquias, agentes e faturação. A marca que mais viu a sua rede crescer foi a MaxFinance que, no ano passado, concedeu 90 novas franquias. Fundada há 10 anos, este crescimento demonstra a confiança do mercado no desenvolvimento da rede de agências que presta serviços financeiros. Com 216 franquias, a maioria das novas unidades concentrou-se em Lisboa e zona centro do país, onde abriram 51 unidades, e zona norte, com 32 novas unidades.

Já a RE/MAX passou de 223 agências para 278 no final de 2017. Com um total de 55 novas unidades, viu a rede crescer 25%, o que se explica pelas garantias que a marca com 18 anos oferece a franchisados e consequentemente à rede de agentes. A grande maioria das franquias abriu em Lisboa e restante zona centro, onde foram inauguradas 36 novas agências, e zona norte, com 13 novos espaços RE/MAX.

Manuel Alvarez, presidente do Grupo Ganhar, que destaca ainda o crescimento da rede RE/MAX, a maior rede imobiliária a atuar no país: “Depois de já termos chegado a grande parte dos concelhos, a nova aposta é marcar presença nas cidades do país com pelo menos 50 mil habitantes. Existem muitas oportunidades para empreendedores no interior de Portugal, onde o mercado está cada vez mais ativo e existe pouca oferta no ramo imobiliário.”

Por sua vez, a Melom/Querido Mudei a Casa Obras, fundada em 2011, viu abrir 51 novas agências, terminando 2017 com uma rede de 170 espaços.

“Também os conceitos Melom e Querido Mudei a Casa Obras têm registado uma expansão significativa, justificada pelo cada vez maior número de portugueses a melhorar as suas casas e pela busca de empresas que garantam segurança e fiabilidade em projetos de reabilitação ou até mesmo construção”, explica Manuel Alvarez.

“Foi um excelente ano para o Grupo e para as nossas marcas, que ultrapassaram crises e reforçaram as suas posições, sendo reconhecidas como marcas consolidadas e líderes nos seus segmentos de negócio. Numa altura em que o investimento em Portugal tem vindo a aumentar, a MaxFinance é a marca mais reconhecida na área da consultoria financeira”, explica

No total, o grupo é agora responsável por 664 agências, 30% das quais abertas no ano passado.

N.º de Agências

N.º de Agências abertas em 2017

Variação na Rede

MaxFinance

216

90

+71%

RE/MAX

278

55

+25%

Melom/Querido Mudei a Casa Obras

170

51

+43%

TOTAIS GRUPO

664

196

+42%

Empresa

Empresa

Maiores Zonas de Expansão Lisboa e Centro

Zona Norte

Zona Sul

Ilhas

MaxFinance

51

32

4

3

RE/MAX

36

13

6

0


MARCOS BORGA

CO MER E BEBER

Kanazawa Lisboa Do Japão, com todo o rigor Às sextas e sábados, Paulo Morais transforma o restaurante num salão de chá. Os yokans e os yakimanjyu, nomes difíceis de repetir mas fáceis de saborear, podem acompanhar com matcha Os doces japoneses são bem coloridos. Para fugir aos corantes, desidratam-se os morangos para conseguir o vermelho e o rosa, o roxo vai buscar-se às violetas e o laranja às cascas deste citrino

São quatro da tarde, e no interior do restaurante Kanazawa, em Lisboa, o chefe Paulo Morais anda de volta de duas caixas com bolos de diferentes formatos e cores. Ao seu lado, a pasteleira Ana Miyuki Kanu prepara o chá matcha, um dos mais utilizados na tradicional cerimónia do chá japonês, que há de acompanhar as criações doces. Ali, todas as sextas-feiras e sábados, das 13 às 18 horas, preparam-se doces e chás de sabor nipónico, ou não estivéssemos num dos melhores restaurantes japoneses de Lisboa. À primeira vista, algumas destas especialidades são parecidas com os doces finos do Algarve, mas uma simples dentada leva-nos para bem longe da região portuguesa. E desengane-se quem for à espera de encontrar doçaria com muito açúcar. Assim que Paulo Morais acaba de arrumar as caixas, confessa-se: “Sempre gostei muito de doces”, diz num tom que deixa a dúvida se estaria a falar de os fazer ou de os comer. “Já faço este tipo de pastelaria há algum tempo”, recorda o chefe que iniciou o seu percurso profissional na cozinha japonesa há 28 anos, tendo já passado pelas cozinhas do Midori, da Bica do Sapato e do Umai. “Nessa altura, tinha grande dificuldade em encontrar os ingredientes, especialmente as farinhas de arroz.” “Agora”, diz,

“já se consegue encontrar praticamente tudo.” Na cultura japonesa, os doces estão sempre associados aos chás, por isso, no menu do lanche, encontramos uma grande variedade: matcha (chá verde em pó), genmai (verde com pipoca de arroz), sencha (verde em folha), jasmim, chá branco, entre outros. Antes de se escolherem os cinco bolos, assiste-se a uma lição de pastelaria, com nomes difíceis de repetir, e ainda mais de escrever: o yakimanjyu, no fundo, é um pastel recheado com castanhas e assado no forno; já o dorayaki é uma panqueca com doce de feijão. Há ainda quatro variedades de namagashi, doce feito de feijão, e o yokan, espécie de marmelada preparada com feijão, batata-doce ou castanha. Segue-se a descrição dos mochis, de sabor a arroz gelatinoso com doce de sésamo preto, e dos awayuki, feitos de claras em castelo com gelatina recheadas com castanha ou doce de feijão-azuki. De todas as variedades, bem coloridas, só o bolo Castela (o pão de ló japonês) é comprado fora. Para fugir aos corantes, Paulo Morais e Ana Miyuki Kanu desidratam os morangos para conseguir o vermelho e o rosa. Já o roxo vão buscar às violetas e o laranja às cascas deste citrino. Um “capricho” de Paulo Morais, estes lanches japoneses, que quis fazer “outras coisas dentro da cozinha japonesa”. E nós agradecemos. S.P.

 R. Damião de Góis, 3A, Algés, Lisboa > sex-sáb 13h-18h > €10 (inclui um chá e cinco doces), pode ser levado para casa

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Quorum Lisboa A opinião do cliente também conta Rui Silvestre deixou o Algarve e mudou-se para Lisboa, onde acaba de abrir um restaurante descontraído, com boa onda e, acima de tudo, boa comida

DIANA TINOCO

Pode não ser a forma mais correta esta de começar pela descrição do terceiro prato do menu de degustação, criado pelo chefe Rui Silvestre. Mas foi a canja feita com caras de bacalhau confitadas, pão e alho que perdurou na memória (e no paladar) nas horas seguintes ao jantar no novíssimo restaurante Quorum, no Chiado. Há um ano e meio que Rui Silvestre − distinguido, em 2015, com uma Estrela Michelin no restaurante Bon Bon, no Carvoeiro − queria ter um restaurante em Lisboa. “É uma cidade lindíssima”, diz o chefe que apresenta fortes bases de técnica francesa, e ali conta com a ajuda do seu sous-chef Tiago Melo. Feitas as apresentações, deu-se início à refeição seguindo a ordem da ementa composta por seis momentos (€58), assente nos produtos da época e de qualidade (em alternativa, existe uma ementa com quatro pratos por €46, ambas acompanhadas por uma harmonização de vinhos, cerveja ou cocktails). Começa com um amuse-bouche de ostra, pepino e alga kombu que se prova com o vinho rosé Oaked, de “sabor seco, elegante e muito gastronómico”, descreve Sérgio Antunes, o sommelier do Quorum, aberto, discretamente, há cerca de uma semana, no edifício do Chiado com assinatura do arquiteto Siza Vieira. No Quorum, a opinião dos clientes é fundamental. Por isso, há uma aplicação onde se convida à eleição dos pratos preferidos. “É uma votação anónima e democrática”, explica Rui Silvestre. Segue-se o ceviche, tapioca e flores preparado com leite de tigre tradicional, peixe-branco, clorofila de coentros e tapioca com wasabi. “A mistura de flores serve para dar o toque amargo”, descreve o chefe que se inspirou nas suas viagens para criar uma “ementa curta mas muito dinâmica, baseada nas cozinhas peruana, vietnamita e portuguesa”. O jantar continua com o fricassé de cogumelos e ovos mexidos com trufa, e uma reinterpretação da carne de porco à alentejana, feita com presa de porco preto, amêijoa e legumes avinagrados, com batata suflé. “Gosto muito de usar as especiarias e os citrinos. Cerca de 90% dos meus pratos são picantes, mas equilibrados.” Um “gosto” justificado pelas origens familiares de Rui Silvestre − metade moçambicana, metade indiana. E se a descrição da sobremesa de chocolate com abacate e coco já não cabe nestas linhas, aproveite-se para dizer que é num ambiente “cool e jovem”, com música electrojazz, que se janta neste Quorum, decorado com um jardim vertical e paredes revestidas a madeira. Em breve, entrará em funcionamento o bar e a zona de finger food. Sandra Pinto Rui Silvestre não deixou o Algarve de vez. Depois do Quorum, em Lisboa, o chefe prepara-se para abrir um restaurante em Almancil. Este ainda não tem data de inauguração nem nome escolhido. Aguarde-se, por isso, pelas novidades.

 R. do Alecrim, 30, Lisboa > T. 21 604 0375 > seg-sáb 18h-24h

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COMER E B E B E R

POR MANUEL G O N ÇA LV E S D A S I LVA

D.R.

comer&beber@visao.pt

Adega do Sossego Melgaço Apaziguar o estômago Restaurante muito tranquilo e agradável com boa cozinha tradicional à base da lampreia, do bacalhau e das carnes O restaurante está instalado numa casa rural antiga bem restaurada e a ementa constrói-se à medida do que os clientes procuram: lampreia e sável, nas suas épocas, bacalhau, naco de vitela e costeletão de boi todos os dias e, ao domingo, cabrito assado

Um dos “postos cimeiros” da gastronomia do Alto Minho é o da lampreia – os outros são o do arroz de sarrabulho, da “aranhola no carro” (género de santola) e do bacalhau à Margarida da Praça, segundo António Manuel Couto Viana, poeta e gastrónomo vianense, perito na matéria –, e um dos lugares seguros para saborear essa iguaria encontra-se na beira do rio Minho, junto de Melgaço, na Adega do Sossego. Instalado numa casa rural antiga bem restaurada, mantendo a simplicidade e ganhando o devido conforto, o restaurante tem uma sala principal ao lado da cozinha, outra mais descontraída com garrafeira e petiscos, um pequeno anexo de 16 lugares para refeições privadas, como as de negócios, por exemplo, e um salão para eventos. Tudo convidativo. A ementa é curta, na medida exata do que os clientes procuram: lampreia e sável, nas suas épocas; bacalhau, naco de vitela e costeletão de boi, diariamente; cabrito assado à moda de Melgaço, ao domingo. Acrescem as entradas, em número significativo, entre as quais se destacam a cabeça de porco fumada com molho verde, a tábua com queijos de cabra, de ovelha e de vaca; o prato de enchidos com alheira, chouriço de carne

e chouriço ceboleiro; o presunto; e, para grupos, bolos de bacalhau, croquetes e rissóis. Petisco raro, a não perder, é a lampreia seca fumada que pode ser demolhada e assada na brasa, panada com ovo ou cozida com presunto e salpicão no recheio. Nos pratos principais, a lampreia à bordalesa ou em arroz, conforme as preferências, justifica a fama que tem pela sua qualidade e pela maneira exemplar como é confecionada; o sável não consta da ementa, mas, quando há, faz-se com arroz de debulho, como manda a tradição, ou assado na brasa, e surpreende; o bacalhau é bom e o favorito dos vizinhos espanhóis, sobretudo à moda da casa, tipo Narcisa, com a posta frita, a cebolada e as batatas às rodelas; o naco de vitela não precisa de mais do que sal para ir à brasa e vir tenro, suculento e sedutor; o costeletão de boi que, bem dividido, dá para dois, também satisfaz plenamente; o cabrito com arroz amarelo, feito no forno com um caldo enriquecido com o “pingo” da carne, é a grande iguaria de domingo. Por encomenda, prepara-se uma cabidela de galo caseiro memorável. Doçaria tradicional com o leite-creme queimado em destaque. A garrafeira exibe praticamente todos os vinhos Alvarinho e espumantes da região, incluindo os da casa, que predominam. Serviço eficiente.

 Peso, Melgaço, Viana do Castelo > T. 251 404 308 > qui-ter 12h-15h, 19h-22h > €25 (preço médio)

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Real Companhia Velha Séries Donzelinho Branco 2016

Tasca do João Lisboa Vai a meio a época da lampreia e é tempo de passar pela Tasca do João, cumprindo uma velha rotina de ir lá saborear a iguaria pescada no rio Minho. Sabemos que já não está no 51 da Rua do Lumiar – onde o senhor João Vieira, minhoto de Valença, cirandava entre o balcão, a cozinha, as mesas e os bancos corridos – mas um pouco abaixo, num espaço mais amplo e confortável. Na ementa figuram, ainda, os pratos que deram fama ao restaurante, como os choquinhos fritos, o coelho frito, os rojões a par de outros mais recentes, como o polvo à lagareiro, a posta à mirandesa, os lombinhos e os secretos de porco preto na grelha. Na ementa contam-se oito pratos de peixe e outros tantos de carne, número ajustado à capacidade da cozinha, onde tudo é feito na hora. Para entrada há salpicão com broa e queijo de cabra, mas são as pataniscas de bacalhau estaladiças e saborosas que predominam. Nos pratos principais, a lampreia à bordalesa ou em arroz impõe-se nos primeiros quatro meses do ano, sendo de bom tamanho e servida à unidade, o que significa que é preciso reunir três ou quatro pessoas para partilhar a refeição; o sável vem depois, frito com açorda de ovas; o bacalhau cozido, assado ou frito (à minhota) é prato diário; o coelho-bravo frito tem sempre lugar na ementa, tal como o cabrito, grelhado ou frito, e os rojões à Tasca do João. Por encomenda fazem galo no forno e cabidela. Doçaria tradicional. Garrafeira adequada, com os pedidos a recaírem no vinho verde da casa. Serviço atento e simpático.  R. do Lumiar, 122 A, Lisboa > T. 217 590 311 > seg-sáb 12h-15h, 19h-22h > €20 (preço médio)

Tem um perfil aromático muito agradável em que sobressaem notas de flores e frutos cítricos, e um final breve, mas agradável. Promete boa companhia para entradas com salmão e para pratos de cozinha asiática. São 1556 garrafas. €17

Real Companhia Velha Douro Boas surpresas em Séries A casa apresentou seis varietais, com castas da região, que vieram enriquecer a coleção e despertar a curiosidade dos apreciadores de vinho Dois brancos, das castas Donzelinho e Gouveio, e quatro tintos, de Tinto Cão, Malvasia Preta, Cornifesto e Bastardo, são as novidades com que a Real Companhia Velha, a mais antiga empresa de vinhos de Portugal, com mais de dois séculos e meio de atividade, e uma das mais emblemáticas, presenteia os apreciadores no início deste ano. Três já se encontram no mercado: Donzelinho Branco 2016, Malvasia Preta Tinto 2015 e Bastardo Tinto 2014, os outros três sairão logo após a chegada da primavera, todos ao mesmo preço de 17 euros. Pertencem à linha experimental Séries, na qual, segundo Jorge Moreira, diretor de enologia da empresa, em que se procura fazer vinhos “excecionais”, quase sempre a partir de “velhas” castas da mais antiga região demarcada do mundo. “Vinhos que serão sempre ensaios em que procuramos explorar diferentes técnicas, castas ou abordagens que nos ensinem algo passível de vir a ser aplicado na nossa gama comercial”, continua. A verdade é que são vinhos únicos, que marcam a diferença e refletem, cada um a seu modo, a natureza do Douro. O Donzelinho é floral, fresco, leve, exótico; o Gouveio apresenta-se mais complexo no nariz e estruturado na boca; o Tinto Cão mostra rusticidade no aroma e no paladar, mas tem um perfil distinto; o Malvasia Preta revela caráter, que se afirma no aroma e no paladar intensos; o Cornifesto exibe notas vegetais e acidez vibrante; o Bastardo é um senhor de boa linhagem com aroma fino e concentrado, e paladar elegante e charmoso. As garrafas, poucas, vão ser disputadas.

Real Companhia Velha Séries Malvasia Preta Tinto 2015 Fermentado em inox e estagiado por oito meses em madeira usada, tem cor aberta, paladar elegante com taninos finos e final longo e persistente. Insinua-se para a mesa com pratos como bife de atum, carnes brancas e pastas italianas. Só 666 garrafas. €17

Real Companhia Velha Séries Bastardo Tinto 2014 Bela cor granada, aroma complexo com boas notas de frutos pretos e vermelhos, final longo e sedutor. É um senhor vinho com manifesta aptidão gastronómica que se harmoniza tanto com um bom guisado como com caça. 1573 garrafas. €17

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COMER E B E B E R

Fábrica de Cervejas Portuense Porto O abrigo da Nortada

LUCÍLIA MONTEIRO

Os produtores de marca regional criaram um bar e um restaurante dentro da fábrica, para promover a cultura cervejeira

Não estão na liga das grandes marcas de cerveja nem tão-pouco se identificam com os produtores artesanais. O campeonato da Fábrica de Cervejas Portuense é outro e, por enquanto, está concentrado no Norte do País, aliando à qualidade da matéria-prima a capacidade e o rigor da produção. Tiago Talone, licenciado em Marketing, e Pedro Mota, formado em Microbiologia, de 34 e 36 anos, conheceram-se durante o estágio profissional na Unicer, empresa com a qual o primeiro mantinha fortes ligações (o avô lançou a Super Bock). Ambos sentiam estar na hora de avançar com um projeto que promovesse a cultura cervejeira, pouco explorada em Portugal. “As microcervejeiras têm vindo a conquistar terreno em todo o mundo”, sublinha Tiago. Lançaram a marca Nortada a 7 de abril de 2017, mas sempre acreditaram que a criação de um bar e de um restaurante, no mesmo edifício da fábrica, no coração do Porto, era essencial como ferramenta de comunicação. No passado dia 15, este bar-restaurante abriu finalmente as portas ao público. À entrada, um longo balcão recebe os clientes. No interior, estão várias salas, com as  R. Sá da Bandeira, 210, Porto > T. 22 018 1000 > ter-sáb 10h-02h

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mesas dispostas entre as caldeiras, os tanques de fermentação e o laboratório da empresa. De umas janelas assiste-se ao processo de fabrico, concentrado no piso inferior, e a ideia será organizar, no futuro, visitas guiadas com a explicação de todas as etapas. Na carta, as estrelas são os cinco tipos de cervejas (Porto e Vienna Lager, Brown Porter, India Pale Ale e Imperial Stout, mais uma ou outra edição limitada), com o perfil, grau alcoólico e escala de amargor devidamente descritos. À volta destas construiu-se a ementa. Há snacks como prego no pão, bruchetas e hambúrgueres, além de pratos para partilhar, como cubos de queijo fritos (€4,50), filetes de bacalhau (€7), bife oriental (€8), caris (de frango, legumes e de gambas, entre €6 e €9) ou um valente costeletão (€60), a sugestão mais cara de um “espaço democrata”, descreve Tiago. A toda a hora pode-se pedir azeitonas, amendoins, tremoços ou tábuas de queijos e enchidos. Estão também à disposição garrafas de dois litros (a partir de €10,50), para encher na altura e levar para casa a cerveja acabada de fazer. Estupidamente fresca, pois claro. Joana Loureiro

Na loja da Fábrica de Cerveja Portuense vende-se a Nortada, merchandising (copos, t-shirts, bandejas) e outros produtos associados ao Norte, desde livros turísticos sobre o Porto a bolachas da Paupério.



PORTO INSÓLITO

SAIR

G E R M A N O S I LVA

Atração turística

Lounge Golfe Vila Nova de Gaia Faça chuva ou faça sol

LUCÍLIA MONTEIRO

Neste simulador de golfe “indoor”, inédito em Portugal, garantem-se horas de lazer ou treino puro e duro

O software traduz para uma tela a análise da pancada, da distância à velocidade da bola

As gotas de suor a escorrer pela testa revelavam o esforço despendido por Amadeu Loureiro durante uma hora de tacadas no Lounge Golfe. Lá fora, a chuva não dava tréguas e os campos próximos, de Espinho e de Miramar, estavam impraticáveis. “Este software dá uma imagem muito real na maioria das pancadas”, testemunha o sócio do primeiro simulador de golfe indoor do País, aberto no final de novembro, em Vila Nova de Gaia. “Aqui posso melhorar o meu jogo”, acredita o golfista amador. Na verdade, os profissionais partilham a mesma crença. “O Tiger Woods tem este sistema em casa”, diz Filipe Morais, o proprietário. Um quadrado relvado no chão imita o green. Por cima, uma câmara e duas barreiras de infravermelhos fazem a leitura dos movimentos do jogador, que tem à sua frente uma tela a transmitir imagens virtuais de um campo (foram mapeados 15, dos Estados Unidos da América à Escócia, cada um com as suas particularidades). Imediatamente após a pancada, o software traduz para a tela a sua análise, distância e velocidade da bola, os desvios na direção ou o trajeto do taco. “As informações, de uma grande fiabilidade, permitem corrigir os erros”, explica Filipe. J.L.  R. de S. Félix, 958, S. Félix da Marinha, Vila Nova de Gaia > T. 96 288 9887 > seg-qui 14h-20h, sex-dom até às 24h > €15 a €45/hora (1 a 4 jogadores), anuidade €60 com direito a descontos, happy hour ter-sex 14h-16h > €10 a €40

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VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

Os painéis de azulejos que cobrem as fachadas ou paredes laterais de algumas igrejas portuenses são uma irresistível atração para os turistas. Um dos sítios mais fotografados é a fachada lateral da Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo. Chegados aqui, pergunta o leitor: “Terceira? Porquê?” A explicação é simples: os primeiros são os frades fundadores da Ordem dos Carmelitas Descalços, que se instalaram no Porto (Convento do Carmo) em 1622; os segundos são as monjas carmelitas; e os terceiros são os indivíduos (advogados, juízes, negociantes) que pretendem seguir as regras dos carmelitas mas que, por serem leigos e alguns casados, não as podem respeitar na totalidade. Mas aceitam os restantes. A Igreja dos Terceiros do Carmo foi construída mesmo ao lado da dos carmelitas. O painel de azulejos em causa evoca a devoção do escapulário do Carmo,

representado em várias figuras de diversas classes sociais. É o mais imponente painel cerâmico da cidade. Foi concebido pelo artista italiano Silvestre Silvestri, pintado por Mário Branco e executado, em 1910, nas fábricas do Senhor d’Além e da Torrinha, em Vila Nova de Gaia. Foi colocado em 1912.


COMPRA R

Amadeo de Souza Cardoso Lenço, crepe de seda, 138x100 cm

DIANA TINOCO

€158

Antiflop Arte para levar ao pescoço De crepe de seda e de caxemira, estes lenços e echarpes têm padrões com obras de artistas portugueses, de José de Guimarães a Sofia Areal A marca Antiflop está à venda em vários museus, como o de Serralves (Porto), da Marinha (Lisboa) ou de Nadir Afonso (Chaves), na Loja das Meias (Lisboa) e na 9 Séculos (Guimarães), entre outras lojas e galerias.

Teresa Bacalhau, 50 anos, sempre trabalhou na área da moda e do vestuário, onde já fez de tudo, desde criar coleções e padrões, gestão de lojas, consultoria. Quando começou a pensar num novo projeto, sabia que teria de relacionar arte com moda. E o que fez? Simples. Abriu o seu guarda-roupa e focou-se nas peças que mais usava. Entre jeans, t-shirts e lenços, foi o acessório que lhe chamou a atenção. “É uma coisa que eu uso sempre, intemporal, que dura e se usa durante anos”, justifica Teresa. Estava assim decidido o suporte que levaria estampado obras de artistas portugueses, como Ilha dos Amores, de José de Guimarães, ou Antropomorfismo, de Nadir Afonso, dando origem, em abril de 2015, à Antiflop, uma marca portuguesa de lenços e echarpes. A originalidade está nos padrões, impressões digitais de quadros e serigrafias de referência de Amadeo de Souza Cardoso, Sofia Areal, Nadir Afonso, João Feijó, Fernando Álvaro Seco, António Soares, José de Guimarães, entre outros. A utilização da arte neste acessório tão versátil, que se usa ao pescoço nas mais diversas formas, deu origem a peças vistosas e coloridas, maioritariamente de edição limitada e que chegam ao cliente com certificado numerado. Também existe a linha Icónica com padrões pensados por Teresa. Confecionados em crepe de seda e em caxemira (10% caxemira e 90% modal), estão disponíveis em vários tamanhos, do lenço mais pequeno, de 40 por 40 centímetros, às echarpes com quase dois metros. “Os materiais tinham de ser nobres para terem uma boa relação com a qualidade dos artistas”, explica Teresa. À exceção dos tecidos, provenientes de Itália, todo o processo de fabrico é nacional − da impressão digital à produção, asseguradas, respetivamente, por uma fábrica e uma costureira no Norte do País. Sobre a escolha do nome, que nada ter que ver com lenços ou com os próprios padrões, já Teresa foi muitas vezes questionada, mas justifica-a facilmente, com a vontade que tinha de não falhar. “Tinha de ser uma coisa que funcionasse, não podia ser um flop.” S.L.F.  www.antiflop.pt

Paper dolls Echarpe, seda e modal, 138x180 cm €138

Calçada portuguesa Lenço, crepe de seda, 50x50 cm €43

Sofia Areal Lenço, crepe de seda, 40x40 cm €68

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Just Porto A seguir as tendências

Guava x L'Occitane

D.R.

Na Baixa portuense, uma nova loja com propostas para todas as ocasiões. Uma das marcas, a portuguesa WLROD, produz calças e casacos de ganga de longa duração

Quem gosta de fazer compras em casal encontra na Just o local ideal. No piso superior, concentram-se as propostas para senhora, mas há logo à entrada uma chamada de atenção para os clientes homens, com a construção de um pequeno cenário referente ao universo masculino. “Pensamos que seria interessante criar uma loja que conjugasse todas as marcas que representamos em Portugal”, diz Pedro Tavares, diretor comercial da Just Fashion, empresa de distribuição do Porto. O chão de mármore, os candeeiros arrojados e todo o desenho arquitetónico, a cargo de Paulo Calapez, dão a elegância e a sofisticação à loja, inaugurada em meados de dezembro. Entre as marcas femininas, está em grande destaque a italiana Elisabetta Franchi, com peças de pronto-a-vestir que exploram a silhueta feminina. Estão ainda à disposição a AnnaRita N, para um segmento mais acessível, a Pinko, para quem goste de seguir as tendências, e a norte-americana Michael Kors, com uma grande oferta de acessórios (calçado e carteiras). No piso inferior, estão as propostas para o público masculino. “Existem poucas lojas no Porto para o homem que gosta de seguir a moda, sem ser refém dela”, sublinha Pedro Tavares. Na Just, este encontra opções para ocasiões formais, mas também para o dia a dia e para momentos de descontração. Quem procura a elegância e a distinção do corte italiano encontra na marca Daniele Alessandrini as peças indicadas. Outra etiqueta transalpina, a Hamaki-Ho (o nome lança a confusão sobre a sua origem), apresenta propostas mais jovens e irreverentes, a um preço mais acessível. Há ainda uma representante nacional, a WLROD, que trabalha o heritage denim – as calças e casacos de ganga de longa duração (que não necessitam de lavagens) –, com as ligações ao universo motard exploradas na própria loja. “O luxo aqui passa, não pelo reconhecimento de uma grande marca, mas pelo lado artesanal da confeção”, explica Pedro. Uma tendência a ganhar cada vez mais adeptos. J.L.  R. de Ceuta, 38, Porto > T. 22 400 6106 > seg-sáb 10h-20h

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Depois de ter sido a marca de sapatos escolhida para o desfile e exposição de homenagem a Gianni Versace, em Berlim, no passado mês de janeiro, a portuguesa Guava some e segue com uma colaboração com a L'Occitane en Provence. As formas geométricas e a ousadia que distinguem o trabalho de Inês Caleiro convenceram a marca de beleza francesa e o resultado está numa edição especial de malas, que vêm com uma bolsa com dois cremes de mãos da L’Occitane (flor de cerejeira, pétalas de peónia, baunilha, manteiga de karité, amêndoas e mel de lavanda). A city bag, produzida à mão por artesãos portugueses, está disponível em dois tamanhos (€325-€475) que se multiplicam por seis cores: preto, nude, lemon zest (amarelo), electric blue (azul), emerald green (verde-esmeralda) e lipstick red (vermelho). Todas com forro cor de vinho em pele. I.B.

 www.guava.shoes


VE R

JOSÉ CARIA

Tricky Lisboa e Porto

The Legendary Tigerman Lisboa A nova vida do homem-tigre Paulo Furtado mostra ao vivo “Misfit”, editado no mês passado, num concerto que servirá também para apresentar a nova formação do projeto liderado pelo músico A digressão nacional de The Legendary Tigerman contará, nas primeiras partes, com o convidado especial Sean Rilley, que apresentará o álbum a solo, California, o primeiro feito sem a sua banda, os Slowriders.

Inicialmente pensado por Paulo Furtado como um projeto lateral, uma experiência, este The Legendary Tigerman ganhou vida própria – um daqueles casos em que a criatura se tornou maior do que o criador. Pouco mais de 15 anos bastaram, aliás, para que este alter ego musical, em versão one man band do também guitarrista e vocalista dos Wraygunn, ascendesse à primeira divisão da música nacional, à boleia de um rock visceral e urgente, com raízes nos blues, como o que agora apresenta em Misfit, o oitavo trabalho em nome próprio e no qual The Legendary Tigerman se apresenta, pela primeira vez, acompanhado de uma banda composta pelo baterista Paulo Segadães, o saxofonista João Cabrita e o baixista Filipe Rocha (este último apenas ao vivo). Foi esta formação que, sob a “direção artística” de Paulo Furtado, ajudou a moldar o som deste álbum, considerado pelo próprio como um regresso ao rock “mais instintivo” dos primeiros trabalhos. Gravado no mítico estúdio Rancho de la Luna, em Joshua Tree, Califórnia, por onde já passaram nomes como Queens Of The Stone Age, Eagles of Death Metal, Dave Grohl ou Kurt Vile, o disco é apresentado, também, como “o mais conceptual” de toda a carreira de The Legendary Tigerman. Foi criado a partir de uma viagem aos EUA, feita por Paulo Furtado na companhia do realizador Pedro Maia e da fotógrafa Rita Lino, e que também resultou num filme. É todo este imaginário que a banda agora transpõe para o palco, naquele que será o primeiro concerto de apresentação do disco em Portugal. Miguel Judas  Lux Frágil > Av. Infante D. Henrique, Armazém A, Cais da Pedra a Sta. Apolónia, Lisboa > T. 21 882 0890 > 22 fev, qui 23h > €14

Em março do ano passado, o britânico pioneiro do trip-hop atuou na Aula Magna num espetáculo estranho (quase não se ouviu a sua voz), escuro (mal se deixou ver) e curto (pouco mais de uma hora). As expectativas são, pois, altas para uma redenção neste regresso com o novo disco, Ununiform, na bagagem.  Lisboa ao Vivo > Av. Infante Dom Henrique, Armazém 3, Lisboa > T. 96 708 9462 > 27 fev, ter 22h > €25 > Hard Club > Pç. do Infante D. Henrique, Porto > T. 22 010 1186 > 28 fev, qua 22h > €25

Terra do Rap Convida! Lisboa Depois de quatro edições no Brasil, este festival de hip-hop em língua portuguesa chega a Lisboa para uma versão de bolso que terá como anfitrião o rapper brasileiro Vinicius Terra. Entre os artistas convidados destacam-se Maze (dos Dealema), KESO, NBC ou Denise. Alguns novos valores do rap nacional vão subir juntos ao palco para, nas palavras da organização, “uma espécie de live-mixtape”.  Musicbox > R. Nova do Carvalho, 24, Lisboa > T. 21 347 3188 > 22 fev, qui 22h30 > €6 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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HMB Lisboa O concerto mais desejado

Six Organs of Admittance Coimbra, Braga e Lisboa Liderada pelo génio de Ben Chasny, a banda norte-americana cruza na sua música universos tão díspares como o folk, a música improvisada ou o rock psicadélico, numa miríade de referências que tem sempre como argamassa a música tradicional norte-americana. Já com dezenas de discos editados, estão de regresso a Portugal para apresentarem o último álbum, Burning the Threshold, em três concertos em Coimbra, Braga e Lisboa, sendo que nestas duas últimas cidades os espetáculos serão antecedidos de um workshop também a cargo de Ben Chasny.

O grupo da Linha de Sintra comemora em palco dez anos de carreira, numa festa ao ritmo da soul e do funk que contará também com alguns convidados especiais É um verdadeiro conto de fadas pop, o trajeto dos HMB que, depois de já terem enchido o Coliseu do Porto, se preparam para fazer o mesmo no Campo Pequeno, em Lisboa, no segundo concerto de comemoração dos dez anos de carreira da banda. Amigos “desde quase sempre”, já todos tocavam noutras formações quando, em 2007, decidiram criar os HMB. O objetivo era tão-só divertirem-se, enquanto tocavam a música de que gostavam, uma mistura de funk, soul e R&B cantada em português, então ainda pouco comum no panorama pop nacional. Começaram por tocar em bares, mas as sucessivas vitórias em diversos concursos de bandas cedo os catapultaram para outros voos. O disco de estreia homónimo, lançado em 2012, apenas veio confirmar tudo isto, mas seria

necessário esperar pelo álbum seguinte, Sente, lançado apenas dois anos depois, para que eles conquistassem em definitivo o mercado, com temas como Feeling, Talvez ou Naptel Xulima. Dos bares dão o salto para os grandes palcos de festivais como o NOS Alive, o Sol da Caparica, a Festa do Avante ou as Festas do Mar, em Cascais. Mas o melhor ainda estava por vir, com um improvável dueto com a fadista Carminho, no tema O Amor É Assim, que viria a transformar-se num dos maiores êxitos dos últimos anos em Portugal e que serviu também de apresentação ao novo disco, Mais, editado no ano passado. É este percurso que agora volta a ser comemorado, com um concerto muito especial, em que vão partilhar o palco com alguns dos artistas que mais admiram, como é o caso de Carminho, Dj Ride ou Virgul.

 Salão Brazil > Lg. do Poço, 3, 1.º Andar, Coimbra > T. 239 837 078 > 22 fev, qui 22h > €10 > GNRation > Pç. Conde de Agrolongo, 123, Braga > T. 253 142 200 > 24 fev, sáb 22h > €7 > Teatro Maria Matos > Av. Frei Miguel Contreiras, 52, Lisboa > T. 21 843 8801 > 27 fev, ter 22h > €7 a €14

M.J.

HUGO MOURA

Gurre-Lieder Porto

 Campo Pequeno > Campo Pequeno, Lisboa > T. 21 799 8450 > 24 fev, sáb 22h > €20 a €45

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VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

Estreada na musikverein de Viena (1913), esta cantata para orquestra, coro, narrador e cinco solistas, é considerada uma das grandes obras-primas da música. Sob a direção do maestro suíço Stefan Blunier, a Orquestra Sinfónica junta-se ao Coro Casa da Música e a um elenco internacional de solistas de topo, em que se inclui André Baleiro, o jovem barítono português e o mais recente vencedor do Concurso Internacional Robert Schumann de Zwickau.  Casa da Música > Av. da Boavista, 604, Porto > T. 22 012 0220 > 24 fev, sáb 18h > €22 a €26


BRUNO JOSÉ SILVA

Sombra Lisboa

You Need Heart to Play This Game Lisboa É preciso coração Em palco, um retrato da sociedade da informação que, através do papaguear do ‘‘karaoke’’, nos faz questionar o papel de cidadão em cada um de nós Há umas semanas saía a notícia de que houve confrontos numa cadeia francesa de supermercados quando esta colocou frascos de Nutella à venda com 70% de desconto. Aqui, há uma cara que a dada altura é besuntada com creme de chocolate para barrar. É esse o tema central do espetáculo You Need Heart to Play This Game: o do seguidismo e da falta de comunicação. Num palco que se quer um grande karaoke, com vídeos de letras projetados em fundo, a personagem – sempre de costas para o público, sem percebermos se não quer comunicar connosco ou se nos acompanha, pondo-se na nossa dianteira – canta frases proféticas como “perdi a fórmula/ falham-me os propósitos”, “irrito-me e nem sei bem por onde começar/ consegues ajudar-me?” “Este espetáculo é sobre a ideia da repetição, sobre escolhermos dizer as coisas dos outros”, diz à VISÃO Se7e Raimundo Cosme, cocriador do espetáculo pela Plataforma285 e único ator da peça. “Limitamo-nos a repetir códigos. Achamos que somos livres, mas estamos apenas a repetir causas, movimentos, linguagens.” As letras das canções deste espetáculo-karaoke foram dadas a músicos, como o DJ Pastilhado, Filipe Sambado, Tiago Nunes ou Vaiapraia, e às Rainhas do Baile que compuseram os temas. “Estamos sempre a ancorar a vida em coisas que a justifiquem: 'Agora vou fazer música', 'Agora vou fazer isto', 'Agora vou fazer aquilo'. Não paras para pensar e decidir”, acrescenta Raimundo Cosme. “Na verdade, não há folha em branco.” You Need Heart... denuncia a ideia de apropriação, exacerbada pelas redes sociais. E a lógica do karaoke induz a ideia da repetição no espectador que dá por si a acompanhar a performatividade do ator em palco. E cantamos, embalados pelo tema de Filipe Sambado: “Na transparência do reflexo/ estou baralhado”; “e nem domino o que quero desconhecer”. “As pessoas têm todas muitas opiniões, mas quantas aguentam mais do que um scroll?”, questiona Cosme. “Aquela luta dura o tempo de tirar a Nutella da cara.” Cláudia Marques Santos  Teatro Municipal Maria Matos > Av. Frei Miguel Contreiras, 52, Lisboa > T. 21 843 8801 > 22-25 fev, qui-sáb 21h30, dom 18h30 > €6 a €12

Inserido no ciclo De Zeus a Varoufakis – A Grécia nos destinos da Europa, o novo espetáculo de Aldara Bizarro dirige-se ao público jovem, seduzindo-o com uma ferramenta infalível: a tecnologia. Um ato de dança que trabalha sobre as ideias de luz e penumbra. Em palco, existem miniestações de DJ que apelam à participação do público.  Centro Cultural de Belém > Pç. do Império, Lisboa > T. 21 361 2400 > 22-25 fev, qui-sex 11h, sáb 18h, dom 16h > €3,5 a €6

Democracy in America Lisboa Inspirado no clássico Da Democracia na América, escrito pelo francês Alexis de Tocqueville, na primeira metade do século XIX, o espetáculo do italiano Romeo Castellucci descortina as raízes da sociedade norte-americana que, segundo Tocqueville, está assente na austeridade do Antigo Testamento. A mulher, “enquanto semente de dúvida”, é o centro da tragédia.  São Luiz Teatro Municipal > R. António Maria Cardoso, 38, Lisboa > T. 21 325 7640 > 23-25 fev, sex-sáb 21h, dom 17h30 > €11 a €22 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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Sócrates Tem de Morrer Guimarães Perseguir a utopia

Eis o Homem Vila Nova de Gaia

Mickaël de Oliveira lança os clássicos gregos numa espiral distorcida em palco, adotando um singular processo criativo

D.R.

A Palmilha Dentada regressa ao formato café-teatro, que tanto marcou o seu percurso, neste tributo à condição humana. Um espetáculo para adultos, da autoria do núcleo duro da companhia: Ivo Bastos, Ricardo Alves e Rodrigo Santos – com o humor que lhes é conhecido.

A trama enreda-se em múltiplos percalços, com contornos de ficção científica e até de filme de terror, que nos coibimos de revelar em pormenor. Em A Vida de John Smith, o segundo capítulo do díptico de peças Sócrates Tem de Morrer, em estreia nesta sexta, 23, no Centro Cultural Vila Flor, Mickaël de Oliveira extravasa o questionamento do discurso platónico e leva até às últimas consequências as teorias contidas nos clássicos que moldaram a nossa sociedade. O programa dedicado ao jovem encenador e dramaturgo começa nesta quinta-feira, 22, com a apresentação do primeiro episódio do díptico, A Morte de Sócrates, estreado em janeiro de 2017, tendo como ponto de partida Fédon, de Platão. O relato do mês de clausura de Sócrates (interpretado por Albano Jerónimo), após ter sido condenado à execução capital, é resumido, na peça, aos seus três últimos dias. Assim se pretendeu captar a urgência dos amigos (os atores Paulo Pinto, Pedro Lacerda, Raquel Castro e Ana Bustorff) que se reúnem à volta do mestre para o demoverem da morte. A dramaturgia perverte o clássico e, no final, são os discípulos quem ficam convencidos de que a morte é a melhor solução e estes apresentam a Sócrates um plano insólito para atingir a utopia de um mundo livre. As personagens reaparecem em A Vida de John Smith, despertas de um sono profundo por três membros (Miguel Moreira, Pedro Gil e John Romão) de uma Academia que perpetua as suas teorias. Mas a concretização está longe de corresponder aos ideais de Sócrates que, por sua vez, reencarna na figura de um norte-americano simplório e ultraconservador (o tal John Smith). Qualquer semelhança com a realidade não é pura coincidência. “Fiz uma viagem de um mês pelos Estados Unidos da América, uma sociedade muito polarizada, esquizofrénica e caricaturável que eu procuro descrever nesta peça”, conta Mickaël de Oliveira. Uma oportunidade de ter uma visão abrangente do seu trabalho, complementada com uma conversa pós-espetáculo e duas oficinas de criação. J.L.  Centro Cultural Vila Flor > Av. D. Afonso Henriques, 701, Guimarães > T. 253 424 700 > 23-24 fev, sex-sáb 21h30 > €7,50 ou €10 (dois espetáculos)

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VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

 Armazém 22 > R. Guilherme Braga, 22, Vila Nova de Gaia > T. 91 550 9149 > 22 fev-18 mar, qua-dom 21h46 > €8 a €10

O Deserto de Medeia Vila Nova de Famalicão e Porto A encenadora Luísa Pinto reflete sobre o complexo de Medeia, a partir de casos reais de filicídio ocorridos em Portugal. O texto joga com a hibridez entre o passado e a atualidade, confrontando diferentes versões da Medeia.  Casa das Artes > Parque de Sinçães, Vila Nova de Famalicão > T. 252 371 304 > 22-24 fev, qui-sáb 21h30 > €6 > Palácio do Bolhão > R. Formosa, 342, Porto > T. 22 208 9007 > 28 fev, qua 21h30 > €10


D.R.

Todos os Títulos Estão Errados Lisboa

Bem-vindos à Cidade do Medo Lisboa E depois do colapso da civilização? João Fonte Santa trabalha a cultura pop como meio de representação dos nossos medos e obsessões. Agora, olha para o mundo pós-crise atual Arrumemos já uma pergunta obrigatória: As novas obras têm algo que ver com Trump? “Trump está presente neste trabalho, sim. De forma superficial, mas é impossível abordar a contemporaneidade sem falar dele”, responde João Fonte Santa à VISÃO Se7e. O artista plástico, reconhecido pelas telas de forte impacto cromático, carregadas de metáforas e de ressonâncias da cultura popular (filmes, BD, música, personagens...), apresenta agora uma série de trabalhos inéditos que são a continuidade do projeto O Colapso da Civilização (2016), exposição e livro de autor em que Fonte Santa reflete sobre o período de crise em Portugal, entre 2012 e 2015. Se aí dominava o registo diarístico, já em Bem-vindos à Cidade do Medo, sublinha, faz “uma abordagem mais teórica, profunda e lenta de recolha de dados”. O

artista reflete sobre os medos, as guerras, o estado de sítio civilizacional, em obras que, reforça, alargam o questionamento ao panorama internacional e assumem um debate mais político. Desenhos, três vídeos e uma instalação-vídeo são revelados na sala Cinzeiro 8, forrada a negro: estes têm cores menos exuberantes, mas estão lá realidades reconhecíveis, paisagens, manifestações de conflitos urbanos, imagens de telejornais. E o título que parece inspirado num filme série B? É retirado de um panfleto nova-iorquino sobre a crise fiscal que, em 1975, era entregue aos turistas: “A cidade estava em falência, anunciava-se um sistema austeritário e confrontos políticos. Terá sido um teste para aplicação futura e que hoje continua a ser repercutido. Esse é o ponto de partida que ecoa nas políticas intimidatórias ligadas ao pensamento liberal.” A luta continua... Sílvia Souto Cunha

 MAAT > Av. Brasília, Central Tejo, Lisboa > T. 21 002 8130 > 28 fev-30 abr, qua-seg, 11h-19h > €5

Três décadas de trabalho de Paulo Quintas (1966) são dadas a ver nesta antologia, organizada pela mão segura da curadora Isabel Carlos. Em torno de uma centena de obras, é possível observar o trajeto de um artista plástico para quem as ausências e suspensões são tão importantes como as presenças das matérias, os traços e as camadas na tela. Reclamando um gesto experimental e radical, Quintas explorou registos diferentes, desde o expressionismo abstrato à geometria, sinalética ou fotografia − aqui representada por Dilúvio, 12 de novembro de 1983, Ericeira, obra única, feita a partir da digitalização e montagem de negativos que captam imagens ditas “quase abstratas” da costa após uma tempestade. Sobre as suas pinturas, diz o artista que são “sempre objetos inacabados”. “Olhar para dentro e olhar para fora é a mesma coisa. Prefiro uma arte que me ponha a divagar mais do que a representar.” A liberdade estende-se ao título enigmático e aparentemente lúdico da exposição: “Os títulos são as legendas da vida. Palavras derivadas como titulares ou sinónimos de nomear não me interessam; o título é uma síntese, e as sínteses hoje estão erradas. O Trump é muito bom em títulos, as sínteses são ambivalentes.” Logo, a intenção, anuncia-se, é “instalar uma espécie de desconforto com as afirmações, as nomeações, as sínteses, as grandes definições e os sistemas fechados”. Um ponto de partida bem interessante para o observador. S.S.C.  Galeria Torreão Nascente da Cordoaria Nacional > Av. da Índia, Lisboa > T. 21 364 6128 > 24 fev-30 abr, ter-dom 10h-13h, 14h-18h 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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FESTin Lisboa

Eu, Tonya Quebrar o gelo com os patins A escandalosa história da patinadora norte-americana Tonya Harding convertida num filme que é uma hilariante tragédia Início dos anos 90. O caso deixou o mundo do desporto em choque. Alegadamente, uma atleta mandou partir a rótula a uma companheira para facilitar a classificação dela para os jogos olímpicos. Isso ainda se tornou mais surpreendente por se tratar de patinagem artística, um desporto na antítese da violência física, de fina delicadeza, que se confunde com bailado, em que as patinadoras, de alguma forma, procuram o belo – e, também por isso, praticada pelas elites. A incrível e triste história de Tonya Harding, cisne negro da patinagem norte-americana, é contada de forma muito original neste filme de Craig Gillespie, com três nomeações para os Oscars. Gillespie recorre a um dispositivo ousado. Serve-se dos depoimentos originais de Tonya e seu marido, Jeff Gillooly, para criar uma falsa reportagem em que as personagens são entrevistadas diretamente para a câmara. Tal é intercalado com a ação propriamente dita, onde acompanhamos Tonya desde a infância. E então percebemos que a sua história é, na essência, uma história de violência. Um talento nato para a patinagem mas completamente fora do meio − as suas colegas, competidoras, vêm de uma classe social e económica mais favorecida −, e com uma mãe obstinada e pouco afetuosa que lhe batia na infância e na adolescência. O marido continuou a fazê-lo, tornando a violência uma marca contínua e quotidiana na vida da patinadora. Eu, Tonya cruza drama com comédia, apostando na construção quase caricatural das personagens: a frieza impávida e manipuladora da mãe; a linguagem de violência entre Tonya e Jeff; e a personagem mitómana e megalómana de Shawn, que acaba por ser mostrado como o cabecilha do desastroso plano para apurar Tonya para os Jogos Olímpicos. O filme também nos obriga a uma reflexão sobre a (des)igualdade de oportunidades nos EUA de todos os sonhos. O mundo não é feito para Tonyas e o seu oitavo lugar em Lillehammer vale ouro. Manuel Halpern  De Craig Gillespie, com Margot Robbie, Sebastian Stan, Allison Janney, Paul Walter Hauser > 120 minutos

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O filme brasileiro Como Nossos Pais abre a próxima edição do FESTin, Festival de Cinema Lusófono,na próxima terça, 27, no Cinema São Jorge, com a presença da realizadora Laís Bodanzky. Um filme que fala da condição feminina e da questão geracional. É uma das obras da sessão competitiva que também integra, entre outras, as anteestreias de Aparição, de Fernando Vendrell, a partir de Vergílio Ferreira; Uma Vida Sublime, de Luís Diogo; Vazante, de Daniela Thomas; Praça Paris, de Lúcia Murat (filme brasileiro com a atriz portuguesa Joana Verona); ou Não Devore o Meu Coração, de Felipe Bragança. Quase todas com a presença dos realizadores. Na competição de documentários, o grande destaque vai para a primeira apresentação de A Casa, filme de Rui Simões sobre a Casa dos Estudantes do Império, por onde passaram grandes figuras da África lusófona, incluindo Amílcar Cabral e Agostinho Neto. Outro filme importante é a média-metragem Humberto Delgado, Relâmpago no Céu Azul, uma biografia do General Sem Medo, assinada por José Jorge Letria e Jaime Serôdio. Fora de competição, o FESTin oferece uma mostra de cinema brasileiro, na qual se podem ver algumas obras recentes daquele que é de longe o maior produtor de cinema do espaço lusófono. A secção “Os diferentes sotaques da Língua Portuguesa” inclui filmes de sete países lusófonos (fica de fora apenas a Guiné-Bissau). Há, ainda, o ciclo “Latim”, aberto a outras geografias e línguas latinas e, como é habitual, a Festinha, com uma programação dedicada aos mais novos. M.H.  Cinema São Jorge > Av. da Liberdade, 175, Lisboa > T. 21 310 3402 > 27 fev-6 mar > €1 a €3


D.R.

LIVROS E DISCOS

Um Cavalo Entra num Bar David Grossman O verdadeiro artista “Stand up comedy” para ir às lágrimas? Aqui, o holofote acende-se sobre a dor, e sobre um Israel dissecado em palco por um “one man show”

Um Cavalo Entra num Bar (D. Quixote, 232 págs., €15,90), 11º romance de David Grossman, venceu o prémio Man Booker Internacional atribuído a livros escritos em língua não inglesa. O júri elogiou-lhe a “disponibilidade para correr riscos emocionais e estilísticos”

O faux pas da primeira linha é tanto a essência da stand up comedy universal como o segredo deste romance extraordinário: “Boa noite, boa noite, boa noi-i-te, Cesarei-aaa!!!”, grita o comediante, um “homem baixo e franzino” que “voa para o palco de uma porta lateral como que atirado ou chutado de lá” e que se deixa ficar “agachado numa posição simiesca” − ou será um arremedo de posição fetal? É que estamos no princípio de tudo: do livro, da atuação, do warm up da sala ainda descomposta, dos primeiros aplausos, da curiosidade do leitor. Dovaleh Grinstein, figura ácida de meia-idade, emenda à mão a anedota básica: está em Natania, povoação de 176 500 almas no distrito central de Israel. O one man show não precisa desta cábula: “Parabéns, Dovaleh, pérola entre os homens, saiu-te a sorte grande, foste escolhido para participar numa experiência especial na região costeira, nada de demorado, hora e meia ou duas no máximo, que é o tempo limite que um ser humano normal pode estar exposto às pessoas daqui.” O riso dos insultados não amarelece, e Dov continua, propulsionado não pelos “750 shekels que o Yoav me paga, sem recibo e toma lá e vai-te lixar” mas por uma honestidade crescente. O número de stand up comedy transfigura-se: primeiro inquieta, depois irrita e, por fim, entristece o público que abandonará a sala − à exceção dos seus vagos conhecidos, como o juiz reformado Lazar, narrador deste romance com ritmo e vocabulário afinados como um tambor, que é, na verdade, um libelo sobre a dor e a capacidade de sobrevivência às circunstâncias adversas. As piadas fáceis (ecoadas no título Um Cavalo Entra num Bar) serão substituídas pela psicanálise sob os holofotes, o striptease emocional de Dovaleh: o rapazinho que faz o pino para escapar ao bullying, filho de uma sobrevivente do Holocausto e de um pai distante, cujos traumas, finalmente expostos, o revelarão como um exemplo humano de todos, personagens e leitores. S.S.C.

Os Ballets Russes em Lisboa Maria João Castro Esta coleção apura bem a ambição dos livros de bolso: informação num formato portátil e acessível a todos. O Essencial sobre os Ballets Russes em Lisboa (Imprensa Nacional, 120 págs., €7,50) evoca a passagem acidentada por Portugal de uma das companhias mais vanguardistas do século XX: a fusão da técnica francesa, virtuosismo indiano e folclore russo, sob a direção de Serge Diaghilev, elevou a dança a arte maior em 1900. Os Ballets Russes eram um “laboratório artístico”, criado em torno da revista Mir Iskusstva (O Mundo da Arte), gerador de espetáculos e exposições. A passagem por Portugal, em 1917, coincidiu com a sombra da Primeira Guerra Mundial e o golpe de Sidónio Pais: no final das apresentações foram obrigados a ficar por cá um ano... Uma história a (re)descobrir. S.S.C. 22 FEVEREIRO 2018 VISÃO

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L IVROS E DI S C OS

Linda Martini Linda Martini Rock intensivo

Transangelic Exodus Ezra Furman

ÂNGELO LOURENÇO

O quarteto lisboeta está de regresso, reinventando-se sem perder a identidade. Um disco feito em três residências artísticas, a tempo inteiro

É um dos maiores lugares-comuns do rock: há momentos em que é necessário, aos artistas, saírem da sua zona de segurança para poderem avançar. E foi precisamente essa máxima que os Linda Martini levaram à letra para fazer este quinto álbum de originais, composto ao longo de três residências artísticas em Amares (Braga), na Arrábida (Setúbal) e na Catalunha, em Espanha. Segundo a banda, o objetivo era apenas um: focarem-se a tempo inteiro na criação do novo disco. E enquanto no álbum anterior, o aclamado Sirumba, de 2016, o conceito criativo tinha que ver com uma abordagem mais comedida aos instrumentos, agora centra-se totalmente num método de trabalho intensivo, que elevou a música dos Linda Martini a um novo patamar, sem no entanto abandonar a identidade muito marcada do som da banda. Veja-se o caso do tema de abertura Gravidade, em que regressam ao seu passado punk-hardcore à boleia de um rock abrasivo e urgente. Esse registo vai adocicando-se à medida que o disco avança, com pitadas de jazz e até, podemos dizê-lo, uns pozinhos de fado. O resultado de tudo isto é talvez o mais coeso trabalho da discografia da banda lisboeta, que aos 15 anos de vida, e ainda com fome de palco, vive um momento de plena maturidade musical. M.J. 124

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Fartos de responder à mesma pergunta − “porquê o nome Linda Martini?” −, decidiram colocar na capa do novo álbum uma fotografia da verdadeira Linda Martini, antiga colega de Erasmus do músico Pedro Geraldes que acabou por dar nome à banda lisboeta

O artista norte-americano será um dos nomes presentes no festival Nos Primavera Sound (de 7 a 9 de junho, no Porto), e, a avaliar por este seu segundo álbum de originais em nome próprio, tem tudo para ser uma das figuras em destaque na edição deste ano. Outrora líder de bandas como The Harpoons ou The Boyfriends, Ezra Furman sempre foi um exímio contador de histórias sob a forma de canções. Neste disco, porém, eleva essa capacidade ao máximo, contando uma “saga queer fora da lei”, plena de referências literárias e poéticas, na qual se narra a história de um casal gay em fuga das autoridades, num universo quase springsteeniano, construído em cima de uma folk travestida de punk-rock, que confirma o músico de Chicago como um dos grandes escritores de canções deste tempo. M.J.


TV

Club Atlas RTP2 Mundo: a banda sonora de Branko Nesta nova série documental, uma verdadeira “road trip”, o músico e produtor João Barbosa, dos Buraka Som Sistema, mostra como a música de dança não tem fronteiras Muito provavelmente, a música que no futuro nos fará vibrar na pista de dança já poderá ser ouvida (e sentida) nesta nova série documental, para ver às segundas-feiras, ao fim da noite. Club Atlas é uma verdadeira road trip musical, em que João Barbosa, conhecido como Branko, vai tentar perceber como a tradição e a nova música eletrónica se encontram nas pistas de dança do mundo. O músico e produtor, de 37 anos, membro dos Buraka Som Sistema, saiu de Lisboa – que considera ser atualmente “a cidade mais mestiça da Europa” – à procura dos ritmos e dos sons que vão traçar as novas coordenadas da música de dança. “É um programa de viagens, no qual vou a oito cidades com cenas musicais locais muito fortes e interessantes. Vou falar sobre elas, explicando como surgiram, ao mesmo tempo que falo com artistas locais, como, bebo e toco com eles”, explicava à VISÃO Se7e, em novembro passado, aquando do lançamento de Atlas, o álbum de

estreia gravado entre São Paulo, Nova Iorque, Amesterdão, Cidade do Cabo e Lisboa, em 2015. Agora, Club Atlas vai passar por Lima (Peru), Bombaim (Índia), Acra (Gana), Montreal (Canadá), São Paulo (Brasil) e Cidade da Praia (Cabo Verde). “Nada é mais urgente para mim do que pôr em frente a uma audiência toda a diversidade cultural que eu próprio encontro na música, e, felizmente, hoje em dia isso não falta. O boom digital veio alterar as regras do jogo, mas continua a ser mais importante do que nunca amplificar fenómenos musicais e as suas coordenadas geográficas para nos conseguirmos conhecer e entender melhor”, justifica o fundador da Enchufada, editora criada em 2006, que já lançou cerca de 500 temas de músicos e produtores de todos os cantos do mundo. Só a música urbana eletrónica interessa a Branko, mais nenhuma. Nestes oito episódios, vai revelar, por exemplo, a nova tendência musical no Gana ou os novos personagens da cena musical de São Paulo. “Já não tenho paciência para músicas que não tentem abolir fronteiras.” Sónia Calheiros

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Em Club Atlas, Branko conta com a realização de João Moreira, que também se torna uma personagem, além dos convidados improváveis como Slow J e Rodrigo Leão, logo no primeiro episódio

 Seg 00h35

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E SCA PA R

Eurostars Museum Lisboa Dormida com direito a lição de História Na frente ribeirinha, o antigo palácio Coculim foi transformado num hotel de cinco estrelas, onde há vestígios para descobrir de uma cidade antiga A decoração do Eurostars Museum tem como tema os Descobrimentos, destacando-se os tecidos e materiais com texturas, desde o papel de parede ao veludo dos sofás

Como é que um hotel novo, a estrear, pode ter mais de 8 mil anos de História para contar? Quando esse hotel fica na zona ribeirinha de Lisboa, junto à colina de Alfama, instalado num palácio do século XVI de nome Coculim, onde foram encontrados verdadeiros tesouros arqueológicos. Uma estela gravada com escrita fenícia, um mosaico romano com a representação de Vénus, um núcleo com uma antiga rua romana, tanque fontanário e um poço são alguns dos achados agora visíveis no Eurostars Museum, a contar, no seu conjunto, quase toda a história de Lisboa. “Valorizámos o hotel com esta vertente cultural e histórica e criámos um espaço vivo”, explica Luís Cruz, diretor-executivo do grupo Hotusa, proprietário do hotel de cinco estrelas aberto há cerca de um mês. Para adaptar o edifício, mais conhecido por armazéns Sommer, à nova função foi necessário incluir, no projeto arquitetónico, os vestígios arqueológicos. É por isso que, à medida que se circula pelas várias zonas do hotel, vamos encontrando detalhes curiosos − em breve haverá visitas guiadas, por marcação. No piso térreo, onde funciona o bar e se toma o pequeno-almoço, observa-se a muralha  R. Cais de Santarém, 40, Lisboa > T. 21 116 6100 > a partir de €170

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antiga de Lisboa, também presente na zona da garrafeira. Do lado da receção, a partir de uma das zonas de estar, acede-se ao primeiro núcleo museológico, em que está o tal mosaico romano com a representação de Vénus a descalçar a sandália. E subindo a grande escadaria em pedra lioz, que nos leva ao primeiro andar, temos acesso à estela gravada com escrita fenícia. Com cerca de 6 mil anos, será o elemento de escrita mais antiga recuperada na Europa Ocidental, e surpreende pela dimensão da área arqueológica que ocupa. Com 91 quartos, biblioteca e spa (onde não falta a piscina interior, sauna, banho turco e ginásio), o Eurostars Museum aposta numa decoração que tem como tema os Descobrimentos, como as reproduções de mapas do século XVI com as antigas rotas de navegação que decoram as paredes dos quartos. A localização privilegiada permitiu tirar partido das belas vistas para o rio Tejo e para a Ponte 25 de Abril – no caso dos quartos nos pisos superiores – ou para o casario do bairro de Alfama. Outras viagens proporciona o restaurante, em que a gastronomia galaico-portuguesa promete surpreender os hóspedes e não só – tal como o museu, de resto. Susana Lopes Faustino


O gosto dos outros

Café Candelabro Porto Aliado ao “ar” de café/livraria/biblioteca, “a banda sonora é mais do que mero ambiente”, diz Miguel Ângelo sobre o Candelabro, frequentado por gente da música e das artes e local perfeito para uma bebida ao fim da tarde. “Isto depois de uma ida à loja de vinil Porto Calling e antes de seguir para jantar.”

Miguel Ângelo O músico português, que acaba de lançar o EP Grotesco vs. A Canção, composto por quatro temas e editado em vinil, partilha aqui os seus lugares de eleição I N Ê S B E L O ibelo@visao.pt

Passos Manuel Porto “Ainda há bares onde é possível conversar – e, neste caso, dançar ou assistir a um filme ou concerto. Mas, para que haja uma boa conversa, terá sempre de haver boa companhia. Além do Becas (António Guimarães), dono do Passos Manuel, encontramos sempre gente interessante com quem falar dos nossos mundos interiores...”

Sobre o Schilling,

em Barcelona, conta: “Em duas temporadas que passei nesse velho/novo país, no final do século XX, usei este café para me armar em escritor solitário e observador. Continua igual, com a sua classe intemporal, a convidar quem passa diante das suas montras.”

O Las Ficheras,

no Cais do Sodré, é um dos seus restaurantes preferidos: pelo ambiente de Dia de Muertos, pela magistral margarita e pela ementa criativa a desafiar nos graus de picante. “Depois? Depois vem a margarita outra vez...”

Rough Trade East Londres Nesta loja “respira-se” os novos discos e a reedição dos velhos, os lançamentos e showcases habituais, o ADN da cultura pop na música, literatura, cinema e merchandise. “Apesar da desmaterialização da cultura – e se calhar por isso mesmo –, sítios como este tornam-se cada vez mais fascinantes para uma turma que continua a querer viver por dentro e por fora a história da música popular e o seu desenrolar.”

100 Club Londres “Numa Londres que se descaracteriza a um ritmo alucinante (atenção, Lisboa!), o 100 Club, em Oxford Street, é um dos grandes resistentes. Talvez a dimensão pequena o tenha salvaguardado dos milhões de libras, mas a coerência que tem mantido é também responsável por isso: é ainda um beat club.”

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JOGOS

Palavras cruzadas

O S T E R M O S - C H AV E D A AT U A L I D A D E

>> Q U I Z >> 1. A. // 2. C // 3. A // 4. A // 5. B // 6. A // 7. A // 8. B // 9. A // 10. A >> HORIZONTAIS >> 1. Autoeuropa. // 2. Tiro, Apito. // 3. Aro, Cima, Eh. // 4. Canhol, Gim. // 5. Oro, Sintra. // 6. Ai, Peguei. // 7. Farad, Por. // 8. Gel, Revezo. // 9. Sacho, Zê, El. // 10. Unhaca, Sena. // 11. Atolado, Mas. >> VERTICAIS >> 1. Atacoar, Sua. // 2. Uirari, Gant. // 3. Trono, Fecho. // 4. Oo, Palhal. // 5. Coser, Oca. // 6. Iligar, Ad. // 7. RAM, Nudez. // 8. Opa, Te, Vês. // 9. Pi, Gripe, Em. // 10. Ateia, Ozena. // 11. Ohm, Arolas.

SOLUÇÕES

>> HORIZONTAIS >> 1. Os trabalhadores da (…) começaram a cumprir o novo horário transitório que prevê a obrigatoriedade do trabalho ao sábado e que foi imposto administrativamente pela empresa após a rejeição dos acordos negociados previamente com a Comissão de Trabalhadores. // 2. Detonação. Pequeno instrumento para assobiar. // 3. Qualquer abertura circular. A parte mais elevada. Designa surpresa, admiração, chamamento (interj.). // 4. Cão pequeno (Douro). Aguardente de cereais. // 5. Discurso. Requalificação urbana sem critério, invasão sem controlo de turistas e trânsito caótico são algumas das acusações expressas no Manifesto Salvar (…), lançado por um grupo de cidadãos residentes na vila Património Mundial. // 6. Suspiro. Segurei. // 7. Unidade de medida de capacidade elétrica. Designa várias relações tais como causa, modo, tempo, meio, etc. (prep.). // 8. Substância gelatinosa formada pela coagulação de soluções coloidais. Pastagem para onde se muda o gado, enquanto se desenvolve o pasto no lugar onde pastava. // 9. Espécie de pequena sachola. Nome da letra Z. Artigo antigo. // 10. Pessoa sovina (pop.). Carta ou face de dado com seis pintas. // 11. Metido em atoleiro. Senão, dificuldade. >> VERTICAIS >> 1. Pôr tacões. Que é próprio dela. // 2. Tóxico vegetal com que os Índios envenenam as flechas. A empresa têxtil Ricon de Vila Nova de Famalicão, representante da (…) em Portugal, deverá avançar para o despedimento dos seus 580 trabalhadores, consequência da prevista entrada das oito empresas do grupo em falência e liquidação. // 3. A soberania. Aldraba ou ferrolho de porta. // 4. Elemento de formação de palavras que exprime a ideia de ovo. Casa coberta de colmo. // 5. Costurar. Vazia. // 6. Atar. Prefixo indicativo de movimento, direção, junção. // 7. Tipo de memória mais usada nos computadores. Estado de nu. // 8. Espécie de capa sem mangas, que é usada em atos solenes pelos membros de irmandades e confrarias religiosas. A ti. Observas. // 9. Letra grega correspondente a p. Porque é que a (…) pode matar – pode ser uma doença passageira para muitos, mas para quem sofre de doenças crónicas o risco de morte é real. Indica lugar, tempo, modo, causa, fim e outras relações (prep.). // 10. Mulher que não crê em Deus. Ulceração da membrana das fossas nasais, com pus fétido. // 11. Unidade prática de resistência elétrica. Troca-tintas (prov.).

Sudoku

DIFÍCIL

Quiz POR PEDRO DIAS DE ALMEIDA

1. Além do conhecido músico australiano, que outro artista assina como Nick Cave. Em que área? A. Artes plásticas/performance B. Cinema/vídeo C. Teatro/dança 2. Que músico britânico colaborou no mais recente disco dos The Gift, Altar? A. Jimmy Page B. David Gilmour C. Brian Eno 3. Em que ano foi inaugurada a Pastelaria Versailles, em Lisboa? A. 1922 B. 1933 C. 1946 4. O filme Linha Fantasma inspira-se na vida de que costureiro? A. Cristóbal Balenciaga B. Christian Dior C. Yves Saint Laurent

DÊ-NOS NOTÍCIAS > T.21 469 8101 > T. 22 043 7025 > VISAOSE7E@VISAO.PT

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5. Quantos jogadores tem uma equipa de voleibol? A. Cinco B. Seis C. Oito

6. Quem apresenta o programa Todas as Palavras (RTP 3) e lançou recentemente o livro de poemas Suite sem Vista? A. Inês Fonseca Santos B. Anabela Mota Ribeiro C. Ana Sousa Dias 7. Onde morreu o compositor Ludwig van Beethoven, nascido em Bona em 1770? A. Viena B. Berna C. Munique 8. João Ricardo Pedro lançou, em 2016, o romance Um Postal de... A. ... Chicago B. ... Detroit C. ... São Francisco 9. Onde decorre o festival literário Correntes d'Escritas? A. Póvoa de Varzim B. Óbidos C. Penafiel 10. Onde nasceu a artista plástica Joana Vasconcelos? A. Paris B. Viena C. Bruxelas


Proprietária/Editora: TRUST IN NEWS, UNIPESSOAL LDA. Sede: Rua Rodrigo Reinel, 9, 1.º - Esq. 1400-319 Lisboa. NIPC: 514674520. Gerência da TRUST IN NEWS: Luís Delgado, Filipe Passadouro e Cláudia Serra Campos. Composição do Capital da Entidade Proprietária: 10.000,00 euros, Principal acionista: Luís Delgado (100%) Publisher: Mafalda Anjos

COLEÇÃO DE ÓCULOS PRIMAVERA/ VERÃO 2018 by MARC JACOBS

Diretora: Mafalda Anjos Di­re­to­r-Executivo: Rui Ta­va­res Gue­des Subdiretora: Sara Belo Luís Edi­to­res-Exe­cu­ti­vos: Catarina Guerreiro e Filipe Luís Ga­bi­ne­te Edi­to­rial: Jo­sé Car­los de Vas­con­ce­los (Coor­de­na­dor) EXAME/Economia: Tiago Freire (diretor) Edi­to­res: Alexandra Correia (So­cie­da­de), Fi­li­pe Fia­lho (Mun­do), Inês Be­lo (VISÃO Se7e), João Car­los Men­des (Grafismo), Ma­nuel Bar­ros Mou­ra (vi­sao.pt) e Pe­dro Dias de Al­mei­da (Cul­tu­ra) Re­datores Prin­ci­pais e Gran­des Re­pór­te­res: Cláudia Lobo, José Plácido Júnior, Mi­guel Car­va­lho e Ro­sa Rue­la Re­da­ção: Carmo Lico (online), Cesaltina Pinto, Cla­ra Car­do­so, Cla­ra Soa­res, Clara Teixeira, Flor­be­la Al­ves (Coor­de­na­do­ra VI­SÃO Sete/Por­to), Joana Loureiro, José Pedro Mozos, Luí­sa Oli­vei­ra, Luís Ri­bei­ro (Coor­de­na­do­r Sociedade), Margarida Vaqueiro Lopes, Patrícia Fonseca, Paulo C. Santos, Paulo Zacarias Gomes, Rui Antunes, San­dra Pin­to, Sa­ra Ro­dri­gues, Sara Santos (redes sociais), Sa­ra Sá, Síl­via Caneco, Síl­via Sou­to Cu­nha, Só­nia Ca­lhei­ros, Su­sa­na Lo­pes Faustino, Su­sa­na Silva Oli­vei­ra, Te­re­sa Cam­pos (Coordenadora Radar) e Vânia Maia Gra­fis­mo: Pau­lo Reis (Editor adjunto), Te­re­sa Sen­go (Coor­de­na­do­ra), Ana Ri­ta Ro­sa, Edgar Antunes, Hugo Filipe e Patrícia Pereira In­fo­gra­fia: Álva­ro Ro­sen­do e Ma­nue­la To­mé Fo­to­gra­fia: Fer­nan­do Ne­grei­ra (Coordenador), Diana Tinoco, José Carlos Carvalho, Lucília Monteiro, Luís Barra e Marcos Borga Co­pydesk: Rui Car­va­lho Se­cre­ta­ria­do: Sofia Vicente (Di­reção), Te­re­sa Ro­dri­gues (Coor­de­na­do­ra), Ana Pau­la Fi­guei­re­do e Luís Pin­to Co­lunistas: Adolfo Mesquita Nunes, An­tó­nio Lo­bo An­tu­nes, Capicua, Ger­ma­no Sil­va, Isabel Moreira, João Semedo, José Eduardo Martins, Paul Krugman, Pe­dro Nor­ton, Ricardo Araújo Pereira, Rita Rato e Thomas Piketty Co­la­bo­ra­do­res Texto: Manuel Gonçalves da Silva, Manuel Halpern, Mi­guel Ju­das Ilus­tra­ção: João Fazenda (Boca do Inferno), Susa Monteiro (António Lobo Antunes) Centro de Documentação: Gesco Redação, Administração e Serviços Comerciais: Rua Calvet de Magalhães, nº 242, 2770-022 Paço de Arcos – Tel.: 214 698 000 Fax: 214 698 500 Delegação Norte: Rua Conselheiro Costa Braga nº 502 – 4450-102 MATOSINHOS Telefone – 220 437 001 Marketing: Marta Silva Carvalho (diretora) e Teresa Gomes (gestora de marca) Publicidade: Vânia Delgado (Diretora Comercial) vdelgado@trustinnews.pt Maria João Costa (Dir. Coordenadora de Publicidade) mjcosta@visao.pt Ana Ribas (Gestora de Marcas) aribas@trustinnews.pt José Maria Carolino (Gestor de Marcas) jmcarolino@trustinnews.pt Tel.: 21 469 8000 – Fax: 214 698 543 (Lisboa). Tel.: 22 043 7035 Fax: 228 347 558 (Porto). Produção, circulação e assinaturas: Vasco Fernandez (Diretor), Nuno Carvalho, Nuno Gonçalves, Pedro Guilhermino e Paulo Duarte (Produtores). Helena Matoso (Coordenadora de assinaturas). Serviço de apoio ao assinante. Tel.: 21 469 88 01 (Dias úteis das 9h às 19h) Aceda a Assineja.pt Impressão: Lisgráfica – Casal de Sta. Leopoldina – 2745 Queluz de Baixo. Distribuição: VASP MLP, Media Logistics Park, Quinta do Grajal. Venda Seca, 2739-511 Agualva-Cacém Tel.: 214 337 000. Pontos de Venda: contactcenter@vasp.pt – Tel.: 808 206 545, Fax: 808 206 133 Tiragem média: 76 100 exemplares Registo na ERC com o nº 112 348 Depósito Legal nº 127961/98 – ISSN nº 0872-3540 Estatuto editorial disponível em www.visao.pt A Trust in News não é responsável pelo conteúdo dos anúncios nem pela exatidão das características e propriedade dos produtos e/ou bens anunciados. A respetiva veracidade e conformidade com a realidade, são da integral e exclusiva responsabilidade dos anunciantes e agências ou empresas publicitárias. Interdita a reprodução, mesmo parcial de textos, fotografias ou ilustrações sob qualquer meios, e para quaisquer fins, inclusive comerciais.

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BOCA DO INFERNO

Um mar de trocadilhos com rio POR RICARDO ARAÚJO PEREIRA

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VISÃO 22 FEVEREIRO 2018

Rio foi eleito há pouco menos de um mês, mas creio que ao fim de uma semana já tinham sido feitas todas as alusões fluviais possíveis

ILUSTRAÇÃO: JOÃO FAZENDA

U

m aspecto menos referido da ascensão de Rui Rio à presidência do PSD é a alegria que ela veio trazer a um grande número de jornalistas e comentadores amigos dos jogos de palavras. Rio foi eleito há pouco menos de um mês, mas creio que ao fim de uma semana já tinham sido feitas todas as alusões fluviais possíveis. Qual viria a ser o curso de Rio? Alguns militantes desejavam que ele corresse para a foz. Mas outros queriam fazer-lhe barragem. Ou limitavam-se a ficar nas margens, recusando ir na corrente. Teria ele um caudal exuberante nos primeiros tempos de estado de graça? O entusiasmo não parecia suficiente para gerar cheias. Alguma intriga palaciana já estava mesmo a poluir as águas. Seria Elina Fraga a ninfa de Rio? E Costa teria capacidade para suster a enxurrada nas legislativas? Foi, sem dúvida, um momento extremamente enriquecedor da discussão pública, mas agora começa a sentir-se algum desespero. Como continuar a embelezar notícias e colunas de opinião sem repetir fórmulas? Permitam-me que ajude. É importante notar que o apelido do presidente do PSD não designa apenas um curso de água. É também uma forma do verbo rir. Talvez isso possa consolar profissionais dos media que ficaram prematuramente órfãos dos trocadilhos com o substantivo rio. Por exemplo, podemos supor que alguns sociais-democratas dizem: “Com Rui rio, mas com Santana choraria.” É possível que esta ideia dê origem a uma boa dezena de artigos. Por outro lado, não devemos esquecer que o nome de Rui Rio também pode proporcionar estupendas figuras de linguagem, tais como aliterações. Porque não regalar os leitores com o título: “Rui Rio refere risco de recessão e recomenda realismo”? Sucede ainda que rui é uma forma do verbo ruir. “Edifício do PSD de Passos rui com Rio” pode ser uma boa maneira de noticiar a mudança da estrutura dirigente do partido. Há ainda outro problema de ordem onomástica que tem sido descurado. O PSD é formado por grupos afectos a algumas figuras: há os santanistas, os cavaquistas, os barrosistas. Ora, “riistas” não parece ser uma designação com futuro. É verdade que não me lembro de ter havido “ferreiraleitistas” – e bem, porque a denominação correcta teria sido, provavelmente, “ferreiraleiteiros”. Do mesmo modo, creio que ganharíamos se “riistas” desse lugar ao mais elegante “ribeiros”. Que, como é evidente, seriam afluentes de Rio. visao@visao.pt


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