“FELIZMENTE HÁ LUAR!” de LUÍS DE STTAU MONTEIRO
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RESUMO DA ACÇÃO DRAMÁTICA
Esta peça de estreia de Sttau Monteiro tem como cenário o ambiente político dos inícios do século XIX: em 1817, uma conspiração, encabeçada por Gomes Freire de Andrade, que pretendia o regresso do Brasil do rei D. João VI e que se manifestava contrária à presença inglesa, foi descoberta e reprimida com muita severidade: os conspiradores, acusados de traição à pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir... No entanto, esta peça marca também posição, pelo conteúdo fortemente ideológico, como denúncia da opressão que se vivia na época em que foi escrita (1961), sob a ditadura de Salazar. O recurso à distanciação histórica e à descrição das injustiças praticadas no início do século XIX, em que decorre a acção, permitiu-lhe, assim, colocar também em destaque as injustiças do seu tempo. ESTRUTURA/ACÇÃO Ao nível da estrutura externa, a peça divide-se em dois actos. No interior de cada acto não existe divisão em cenas. Ao nível da estrutura interna a peça tem uma estrutura dual, fazendo-se, no I acto a apresentação da situação, mostrando-se o modo maquiavélico como o poder funciona: não olhando a meios para atingir os seus objectivos; no II acto, conduz-se o espectador ao campo do anti-poder e da resistência. •
Síntese dos momentos/episódios que ocorrem no I acto: - o povo, face à miséria e opressão em que vive, manifesta o seu descontentamento e sonha com a sua salvação, movido pela esperança que lhe inspira o general Gomes de Andrade, um homem generoso e “amigo do povo”; - Vicente, um elemento do povo, tece comentários desfavoráveis acerca do general (“estrangeirado” e não aliado do povo); - é levado por dois polícias à presença D. Miguel de Forjaz, manifestando-se como traidor; - os governadores tentam encontrar o nome de um responsável pela conspiração que se prepara segundo Beresford, responsabilidade essa que vai recair sobre Gomes Freire; - Morais Sarmento e Andrade Corvo dispõem-se a denunciar o chefe da conspiração; - Vicente informa os governadores das pessoas que entram em casa de Gomes Freire; - D. Miguel ordena que se prendam os conspiradores e tenta que a sua atitude surja de forma justificada. Breve resumo da acção que ocorre no II acto: - A esposa do general, Matilde, e o seu grande amigo, Sousa Falcão, tentam por todos os meios ao seu alcance salvar Gomes Freire, pedindo ajuda a Beresford, aos populares, a D. Miguel e, por fim, a Principal Sousa, mas a morte de Gomes Freire de Andrade era um mal necessário às razões de Estado. - O general, juntamente com outros conspiradores, é executado na praça pública, em S. Julião da Barra.
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TEMPO a) b) c) d) e)
tempo histórico: século XIX tempo da escrita: 1961, época dos conflitos entre a oposição e o regime salazarista tempo da representação: 1h30m/2h tempo da acção dramática: a acção está concentrada em 2 dias tempo da narração: informações respeitantes a eventos não dramatizados, ocorridos no passado, mas importantes para o desenrolar da acção
PARALELISMO – Tempo Histórico da peça / Tempo da escrita : denúncia da violência Felizmente Há Luar! tem como cenário o ambiente político dos inícios do século XIX: em 1817, uma conspiração, encabeçada por Gomes Freire de Andrade, que pretendia o regresso do Brasil do rei D. João VI e que se manifestava contrária à presença inglesa, foi descoberta e reprimida com muita severidade: os conspiradores, acusados de traição à pátria, foram queimados publicamente e Lisboa foi convidada a assistir. Luís de Sttau Monteiro marca uma posição, pelo conteúdo fortemente ideológico, e denuncia a opressão vivida na época em que escreve a obra, em 1961, precisamente sob a ditadura de Salazar. O recurso à distanciação histórica e à descrição das injustiças praticadas no século XIX em que decorre a acção permitiu-lhe, assim, colocar também em destaque as injustiças do seu tempo e a necessidade de lutar pela liberdade. Em Felizmente Há Luar! percebe-se, facilmente, que a História serve de pretexto para uma reflexão sobre os anos 60, do século XX. Sttau Monteiro, também ele perseguido pela PIDE, denuncia assim a situação portuguesa, durante o regime de Salazar, interpretando as condições históricas que mais tarde contribuíram para a Revolução dos Cravos, em 25 de Abril de 1974. Tal como a conspiração de 1817, em vez de desaparecer com medo dos opressores permitiu o triunfo do liberalismo, também a oposição ao regime vigente nos anos 60, em vez de ceder perante a ameaça e a mordaça, resistiu e levou à implantação da democracia.
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PARALELISMO – Tempo da História / Tempo da escrita Tempo da História (século XIX – 1817)
Tipo de Regime
Tempo da escrita (século XX – 1961)
Regime absolutista e tirânico
Regime ditatorial de Salazar
- povo oprimido e resignado
- povo reprimido e explorado
Desigualdades
- a “miséria, o medo e a ignorância”
-miséria, medo e analfabetismo
Sociais
- classes dominantes com medo de perder privilégios
- classes exploradas, com reforço do seu poder
- As classes dominantes (nobreza, clero) possuem enormes privilégios que não querem perder.
- Existem grandes desigualdades entre abastados e pobres.
- obscurantismo, mas “felizmente há luar”
-obscurantismo, mudanças
mas
crença
nas
- Agitação social que levou à revolta liberal de 1820
- agitação social dos anos 60
- luta contra a opressão do regime absolutista: conspirações internas; revolta contra a presença da Corte no Brasil e influência do exército britânico
- luta contra o regime totalitário e ditatorial: conspirações internas; principal irrupção da guerra colonial;
- Manuel, “o mais consciente dos populares”, denuncia a opressão e a miséria.
- agitação social e política com militares antifascistas a protestarem
Denúncia,
- Vicente, Andrade Corvo e Morais Sarmento representam denunciantes hipócritas e sem escrúpulos.
- São muitos os chamados “bufos” que denunciam e ajudam a manter o regime ditatorial.
Perseguição
- Perseguições feitas pelos agentes de Beresford.
- Perseguições feitas pela PIDE
- Inúmeros processos de condenação sem provas (caso de Gomes Freire).
- Inúmeros processos de condenação sem provas
- Severa repressão dos conspiradores (Gomes Freire é executado).
- Inúmeros processos de tortura para os que se opõem ao regime (o General o “General sem Medo” é executado em 1965).
Agitação Social
e Repressão
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CARACTERIZAÇÃO DAS PERSONAGENS
• Manuel: o mais consciente dos populares; é corajoso, denuncia a opressão a que o povo tem estado sujeito e a incapacidade de conseguir a libertação e de sair da miséria em que se encontra • Vicente: traidor; desleal; acaba por ser um delator que age dessa maneira porque está revoltado com a sua condição social (só desse modo pode ascender socialmente). • D. Miguel: prepotente, autoritário, servil (porque se rebaixa aos outros); deixou-se corromper pelo poder. • Principal Sousa: defende o obscurantismo, deformado pelo fanatismo religioso, desonesto. • Beresford: cinismo em relação aos portugueses, a Portugal e à sua situação, oportunista, autoritário, mas é bom militar, preocupa-se somente com a sua carreira e com dinheiro, ainda consegue ser minimamente franco e honesto, pois tem a coragem de dizer o que realmente quer, ao contrário dos dois governadores portugueses. • Sousa Falcão: representa a amizade e a fidelidade; é o único amigo de Gomes Freire de Andrade que aparece na peça; ele representa os poucos amigos que são capazes de lutar por uma causa e por um amigo nos momentos difíceis. • Frei Diogo: homem sério, representante do clero, honesto – é o contraposto do Principal Sousa. • Matilde: representa uma denúncia da hipocrisia do mundo e dos interesses que se instalam em volta do poder (faceta/discurso social); por outro lado, apresenta-se como mulher dedicada de Gomes Freire, que, numa situação crítica como esta, tem discursos tanto marcados pelo amor, como pelo ódio. • Denunciantes (Morais Sarmento e Andrade Corvo): mesquinhos, oportunistas, hipócritas. • Gomes Freire: defensor do povo oprimido; o herói (no entanto, ele acaba como o antiherói, o herói falhado); símbolo de esperança de liberdade. ESPAÇO
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a) espaço físico: a acção desenrola-se em diversos locais, exteriores e interiores, mas não há nas indicações cénicas referência a cenários diferentes b) espaço social: meio social em que estão inseridas as personagens, havendo vários espaços sociais, distinguindo-se uns dos outros pelo vestuário e pela linguagem das várias personagens •
O TÍTULO
A expressão “Felizmente há Luar” surge duas vezes ao longo da peça, inserida nas falas das personagens: 1) página 131 – D. Miguel: salientando o efeito dissuasor das execuções, querendo que o castigo de Gomes Freire se torne num exemplo 2) página 140 – Matilde: na altura da execução são proferidas palavras de coragem e estímulo, para que o povo se revolte contra a tirania Num primeiro momento, o título representa as trevas e o obscurantismo; num segundo momento, representa a caminhada da sociedade em busca da liberdade. •
SIMBOLOGIA
Saia Verde – sinal do amor verdadeiro e transformador, pois Matilde, vencendo aparentemente a dor e revolta iniciais, comunica aos outros esperança através desta simples peça de vestuário. A saia encontra-se associada à felicidade e foi comprada numa terra de
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liberdade: Paris. O verde é a cor predominante na natureza e dos campos na Primavera, associando-se à força, à fertilidade e à esperança. A luz – como metáfora do conhecimento dos valores do futuro (igualdade, fraternidade e liberdade), que possibilita o progresso do mundo, vencendo a escuridão da noite (opressão, falta de liberdade e de esclarecimento), advém quer da fogueira quer do luar. Ambas são a certeza de que o bem e a justiça triunfarão, não obstante todo o sofrimento inerente a eles. Se a luz se encontra associada à vida, à saúde e à felicidade, a noite e as trevas relacionam-se com o mal, a infelicidade, o castigo, a perdição e a morte. A luz do luar é a força extraordinária que permite o conhecimento e a lua poderá simbolizar a passagem da vida para a morte e vice-versa, o que aliás, se relaciona com a crença na vida para além da morte. A luz da lua, devido aos ciclos lunares, também se associa à renovação. O fogo é um elemento destruidor e ao mesmo tempo purificador e regenerador, sendo a purificação pela água complementada pela do fogo. Se no presente a fogueira se relaciona com a tristeza e escuridão, no futuro relacionar-se-á com esperança e liberdade. Moeda de cinco reis – símbolo do desrespeito que os mais poderosos mantinham para com o próximo, contrariando os mandamentos de Deus. Tambores – símbolo da repressão sempre presente. •
CLASSIFICAÇÃO LITERÁRIA DA OBRA
Segundo Brecht, o teatro deve tomar como ponto de partida a realidade envolvente, denunciando as injustiças sociais e procurando criar uma consciência política no espectador que o leve a intervir socialmente. Brecht classificava o seu teatro como épico, no sentido em que ele é sobretudo narrativo, demonstrativo, processando-se essencialmente pela argumentação e deterimenta da sugestão. Nele deve-se fazer uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar uma posição. O teatro deve pois intervir activamente no decurso dos factos históricos. Não pode ser apenas espelho de uma época, deve constituir-se como meio para mudar essa época. Portanto podemos classificar esta peça como sendo um drama narrativo de carácter épico, uma vez que ele é sobretudo narrativo e demonstrativo, fazendo um apelo constante ao espírito crítico do espectador. De certo modo ela deve produzir um novo espectador, um novo actor que começa quando acaba o espectáculo – mas agora na vida. •
O EFEITO DA DISTANCIAÇÃO
Para conseguir o objectivo de formar um espectador novo, crítico e interveniente na sociedade. Brecht utiliza um conjunto de técnicas que criam o que ele designa por efeito da distanciação. Distanciar é fazer com que o espectador se afaste da história narrada de modo que possa fazer juízos de valor sobre o que está a ser representado. Luís Sttau Monteiro pretende através da distanciação, envolver o espectador no julgamento da sociedade, tomando contacto com o sofrimento dos outros e percebendo que pode ser agente de intervenção de mudança (espectador produtivo). •
FUNÇÃO DAS DIDASCÁLIAS
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Nesta obra, as didascálias assumem especial relevância, pois constituem a explicitação ideológica da peça. A par das palavras proferidas pelas personagens, surgem como explicação, denúncia e explicitação da linguagem destas. Assim, as didascálias funcionam na obra como: explicações do autor, referências à posição das personagens em cena, indicações aos actores, caracterização das personagens, do tom de voz das personagens, indicação das pausas, saída ou entrada de personagens, apresentação da dimensão interior das personagens, indicações sonoras ou ausência de som, ilações que funcionam como informações e como forma de caracterização das personagens, sugestões do aspecto exterior das personagens, movimentação cénica das personagens, expressão fisionómica dos actores, linguagem gestual a que, por vezes, se acrescenta a visão do autor, expressão do estado de espírito das personagens. Carácter épico da peça/Distanciação histórica (técnica realista; influência de Brecht) Felizmente Há Luar! é um drama narrativo, de carácter social, dentro dos princípios do teatro épico. Na linha do teatro de Brecht, exprime a revolta contra o poder e a convicção de que é necessário mostrar o mundo e o homem em constante devir. Defende as capacidades do homem que tem o direito e o dever de transformar o mundo em que vive. Por isso, oferece-nos uma análise crítica da sociedade, procurando mostrar a realidade em vez de a representar, para levar o espectador a reagir criticamente e a tomar posição. O teatro é encarado como uma forma de análise das transformações sociais que ocorrem ao longo dos tempos e, simultaneamente, como um elemento de construção da sociedade. A ruptura com a concepção tradicional da essência do teatro é evidente: o drama já não se destina a criar o terror e a piedade, isto é, já não é a função catártica, purificadora, realizada através das emoções, que está em causa, pela identificação do espectador com o herói da peça, mas a capacidade crítica e analítica de quem observa. Brecht pretendia substituir “sentir” por “pensar”. Observando Felizmente Há Luar! verificamos que são estes também os objectivos de Sttau Monteiro, que evoca situações e personagens do passado (movimento liberal oitocentista em Portugal), usando-as como pretexto para falar do presente (ditadura nos anos 60 do século XX) e assim pôr em evidência a luta do ser humano contra a tirania, a opressão, a traição, a injustiça e todas as formas de perseguição. “Trágica apoteose” da história do movimento liberal oitocentista Felizmente Há Luar! é uma “trágica apoteose” da história do movimento liberal oitocentista, interpretando as condições da sociedade portuguesa no início do século XIX e a revolta dos mais esclarecidos, muitas vezes organizados em sociedades secretas, contra o poder absolutista e tirânico dos governadores e do generalíssimo Beresford. Como afirma Luciana Stegagno Picchio, é retratada a conspiração, encabeçada por Gomes Freire de Andrade, que se manifestava contrária à presença inglesa (“Manuel – Vê-se a gente livre dos Franceses e zás!, cai na mão dos Ingleses!”), na pessoa de Beresford, e à ausência da corte no Brasil. Coloca-se em destaque ao longo de toda a peça a situação do povo oprimido, as Invasões Francesas, a “protecção” britânica, iniciada após a retirada do rei D. João VI para o Brasil, e a falta de perspectivas para o futuro. Para que o movimento liberal se concretize, é necessária a morte de Gomes Freire, dos seus companheiros e também de muitos outros portugueses, que em nome dos seus ideais são sacrificados pela pátria. Conspiradores e traidores para o poder e para as classes dominantes, que sentem os seus privilégios ameaçados, são os grandes heróis de que o povo necessita para reclamar a justiça. Por isso, as suas mortes, em vez de amedrontar, tornam-se num estímulo. A fogueira acesa na noite para queimar Gomes Freire, que os governadores querem que seja dissuasora, torna-se na luz para que os oprimidos e injustiçados lutem pela liberdade. Na altura da execução, as últimas palavras de Matilde, “companheira de todas as horas” do general Gomes Freire, são de coragem e estímulo para que o Povo se revolte contra a tirania dos governantes: (“Matilde – Olhem bem! Limpem os olhos no clarão daquela fogueira e abram as almas ao que ela nos ensina! / Até a noite foi feita para que a vísseis até ao fim…/ (Pausa) Felizmente – felizmente há luar!”).
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