N.º 207
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Leitores de mentes Como funciona a ligação emocional entre humanos Prós e contras de ser (ou não) empático
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Julho 2015
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Estado empático
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que vou dizer a seguir é básico, mas certas coisas básicas têm de ser ditas repetidamente, para não as esquecermos. Como disse alguém, a democracia não é um dado adquirido, é preciso regá-la todos os dias, como o amor. Vamos a isso! O que separa as democracias das ditaduras é que, nas primeiras, as liberdades são garantidas, enquanto nas ditaduras são concedidas. Entre essas liberdades garantidas, conta-se a de conspirar contra o governo: ao resultado, chama-se “eleições”. Este processo pode levar (e já levou muitas vezes) à queda da própria democracia. No entanto, nenhuma democracia moderna caiu por si, de madura. Para lá chegar, foi preciso que os cidadãos aceitassem primeiro certas limitações dos seus direitos, após o que o governo decreta o fim do debate de ideias e a prisão (quando não a eliminação física) dos opositores. Ora, o primeiro obstáculo a abater são as garantias constitucionais, que existem por muito bons motivos. Por exemplo, a garantia de que um cidadão, chamemos-lhe Manuel Platão, não pode ser detido sem culpa formada. No entanto, no Portugal do século XXI, qualquer Manuel Platão, incluindo eu próprio e o leitor, pode ficar preso durante mais de seis meses sem condenação em tribunal, apesar dos mecanismos constitucionais para evitar que isso aconteça. Não há recurso ou pedido de habeas corpus que consiga ultrapassar a blindagem que um juiz pode tecer em torno de um caso. Isto devia assustar-nos a todos, e principalmente aos constitucionalistas, mas muita gente continua a assobiar para o lado, como se não estivessem em causa as fundações do próprio estado de direito. Se um juiz isolado pode fazer isto, o que poderá um governo determinado fazer aos opositores incómodos? Estamos à espera de quê? Estado empático, precisa-se! C.M.
FÍSICA
Apanha a luz! FÍSICA
Em busca de SUSY FÍSICA
O homem das dimensões BOTÂNICA
Viver como vegetal SAÚDE
A imbatível Miriam JORGE NUNES
MARCO ANSALONI
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TECNOLOGIA
Fuel cell: o arranque definitivo DOCUMENTO
Empatia: os leitores de mentes LIVRO
Como Sentimos PSICOLOGIA Umas selvagens As plantas não se mexem muito, mas têm uma vida de longe mais ativa do que um leigo poderá pensar à primeira vista. Pág. 34 Será agora? O rearranque do LHC, no CERN, permite alimentar esperanças de que se encontrem partículas supersimétricas. E se assim não acontecer? Pág. 24
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Bicho carpinteiro Muitas crianças são hiperativas, o que lhes causa problemas de aprendizagem e socialização. No entanto, há formas de minorar as consequências. Pág. 70
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Reavivar o passado Lentamente e com muito rigor, está a ser restaurado o que resta da Domus Aurea, o grande palácio de Nero que icou oculto sob escombros até ao século XV, fascinando a Itália do Renascimento. Pág. 92
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Com o diabo no corpo DESPORTO
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Deslizes que matam ANTROPOLOGIA
A nossa nova tataravó ARQUEOLOGIA
O palácio de Nero
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Observatório
O RoboSimian, também conhecido como Clyde, é um quadrúpede que pode adotar a postura bípede. Os seus criadores, engenheiros do Jet Propulsion Laboratory, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, inspiraram-se nos movimentos dos símios.
Nova vida ecológica
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odos os anos, cerca de 4500 petroleiros movem 2000 milhões de toneladas de crude pelos oceanos do mundo. Os maiores ultrapassam em muito os 300 metros de comprimento, e, esvaziados da sua carga, poderiam acolher no seu interior uma pequena cidade. De facto, é essa a intenção do Projeto Ouro Negro, uma iniciativa do arquiteto Chris Collaris que, em essência, consiste em reaproveitar uma destas embarcações para a transformar num imenso
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complexo multifuncional. Collaris e os seus colaboradores afirmam que o navio poderia ser transformado para acolher habitações, salas de exposição e outras zonas dedicadas ao lazer, e que o duplo casco da embarcação facilitaria a instalação dos sistemas de climatização necessários. A ideia seria fixar a estrutura num dos países do golfo Pérsico, onde se converteria no “ícone perfeito para representar a história cultural, económica e geográfica da região”.
O Lado Escuro do Universo
Massa escura detetada pelo Fermi?
CHRIS COLLARIS DESIGN / CATERS NEWS / CONTACTO
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ada a esperada elevada massa das partículas que constituirão a matéria escura, para além da sua distribuição no halo galáctico, o centro da Via Láctea é naturalmente o local privilegiado para a sua densa aglomeração gravítica. Não surpreende, pois, que, em 2009, o satélite de raios gama Fermi tenha detetado um foco de emissão vindo do centro galáctico. À data, com apenas um ano de observações, os astrónomos foram cautelosos, admitindo que outras fontes astrofísicas (como pulsares, por exemplo) poderiam produzir um fluxo gama similar. O problema deste cenário, porém, é que os pulsares conhecidos e a sua distribuição rarefeita em torno do centro galáctico não dão uma resposta espectral compatível com as observações do Fermi. Ainda assim, seria mais fácil “digerir” a ideia de um novo tipo de pulsar ainda por descobrir do que afirmar desde já a existência de novas partículas “escuras”. Em 2014, porém, fortaleceu-se o cenário favorável à origem escura do luxo gama do Fermi. Analisando agora cinco anos dos dados, mais limpos em termos de direcionalidade do satélite, uma equipa liderada por Dan Hooper, da Universidade de Chicago, gerou um mapa de alta resolução das emissões gama cobrindo cerca de dez graus em torno do centro galáctico, ou cerca de cinco mil anos-luz. Os resultados seguem de muito perto o que seria de esperar para a dependência radial (~ 1/r1/2) típica da distribuição de densidade da massa escura no centro galáctico, com uma simetria esférica que é muito difícil de explicar por outras fontes astrofísicas. Os mais otimistas airmam, pois, que este será o sinal indireto mais convincente de sempre no caminho da deteção da massa escura! A conirmar-se a natureza escura dos hooperões, como alguns lhe chamam, estes teriam uma massa entre os 36 e os 51 GeV/c2, que poderiam produzir diretamente fotões gama por autoaniquilação (estes candidatos escuros são as suas próprias partículas de antimatéria). A radiação gama observada com energias entre 1 e 3 GeV (gigaeletrões-volt), resultaria também dos derivados da autoaniquilação dos hooperões (sobretudo pares de quarks e antiquarks do tipo b), através de interações inversas de Compton ou por radiação de travamento (bremsstrahlung). Para que estes resultados indiretos sejam aceites como prova séria da deteção da massa escura, então deveriam ser corroborados por luxos gama compatí-
veis provenientes de galáxias esferoides anãs (dSph, na sigla inglesa). Como já foi referido nestas crónicas, as dSph são essencialmente constituídas por massa escura, tendo um brilho (em luz visível) muito fraco por comparação com a sua massa total. Há cerca de dois anos e meio, abordámos aqui precisamente o primeiro estudo (publicado em 2011) das dSph, feito com dez destas galáxias e dois anos de observações do Fermi. Em 2013 e 2015, o Fermi atualizava os seus resultados, sendo os últimos baseados em 15 dSph e seis anos de observações. Embora haja quem alimente a possibilidade de poderem vir a observar-se excessos de radiação gama provenientes das dSph, até agora nada foi detetado categoricamente. A utilização do Fermi para detetar massa escura em centros galácticos não acaba aqui. O matemático Roger Penrose propôs, em 1969, que seria possível extrair energia da ergoesfera de um buraco negro. A ergoesfera situa-se na imediata vizinhança do horizonte de acontecimentos de um buraco negro, sendo que as partículas que entram na ergoesfera são arrastadas pela sua rotação. Através do Processo de Penrose, é possível “roubar” um pouco do momento angular do buraco negro e as partículas que escapam da ergoesfera podem mesmo ter mais massa-energia do que tinham ao entrar. Para partículas de igual massa que se autoaniquilam para fotões gama, é possível, por exemplo, ter uma energia de saída da ergoesfera de cerca de seis vezes a energia de entrada. Este “brilho gama” extra que os buracos negros podem conferir ao resultado da aniquilação de massa escura seria, assim, uma assinatura muito especíica da sua existência. Os cientistas do Fermi e da NASA esperam que este sinal “Penrose” seja muito fraco comparado com outras fontes gama, e estão no processo de selecionar as galáxias com menos fontes gama conhecidas e com os buracos negros mais maciços. Estima-se, por exemplo, que o sinal procurado seja mil vezes mais forte para um buraco negro com dez vezes mais massa. Claro, tudo isto assume que a massa escura se autoaniquila, mas estejamos atentos a futuros resultados do Fermi nas suas várias frentes! PAULO AFONSO Astrofísico
N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o novo acordo ortográico, embora sob protesto.
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Observatório Depois de ultrapassar Plutão, a nave deverá estudar outros objetos da cintura de Kuiper, a nuvem de cometas e mundos anãos que se estende para lá de Neptuno.
Encontro com Plutão
A
superfície e o relevo plutonianos, assim como a composição do seu solo e de uma eventual atmosfera. Além disso, os instrumento tentarão analisar as características de Caronte, o maior dos seus cinco satélites conhecidos, dois dos quais foram descobertos já depois de iniciada a missão da New Horizons.
NASA
sonda New Horizons, da NASA, lançada em janeiro de 2006, está quase a chegar ao seu destino: Plutão. A missão gera grandes expectativas, pois não se sabe grande coisa sobre este planeta anão, que ainda não tinha recebido a visita de um engenho espacial. Entretanto, as imagens já obtidas pela câmara Long Range Reconnaissance Imager começam a revelar algumas das suas propriedades. Por exemplo, graças a elas, foi possível anunciar, em 29 de abril, que Plutão deverá possuir algo parecido com uma calote polar. A sonda possui dois discos rígidos de 64 GB cada, destinados a armazenar toda a informação recolhida, que depois será (muito lentamente) enviada para a Terra. O principal objetivo da missão é estudar a
A OPINIÃO DO LEITOR Alergias e imunoglobulinas Gostaria, em primeiro lugar, de congratular a revista, uma vez que sempre tem procurado alcançar um equilíbrio consistente entre transmissão do rigor cientíico e a necessidade de divulgar ciência e outros aspetos para o grande público. Contudo, na minha qualidade de imunoalergologista, com funções clínicas, de ensino e em associações cientíicas nacionais e internacionais ligadas a essa área, devo chamar a atenção para alguns problemas ligados ao artigo intitulado À Flor da Pele [Especial Saúde Verão 2015]. Trata-se de um artigo escrito de forma simples e interessante mas que, sob o meu ponto de vista, tem uma falha extremamente relevante e para a qual é meu dever chamar a atenção. Para tal, é necessário primeiro clariicar um conceito. Uma alergia é uma reação imunitária (por qualquer tipo de mecanismo imunitário: células, imunoglobulinas de vários tipos, etc.) exagerada, contra antigénios do meio ambiente. Contudo, a maior parte das alergias, designadas como alergias atópicas (atopia), certamente em relação àquelas mais referidas no artigo (rinite alérgica, asma brônquica...),
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estão ligadas à produção exagerada da imunoglobulina E (IgE), que é fundamental em todo o processo, e cuja produção exagerada está associada a alterações em linfócitos T (células h2), que induzem linfócitos B a produzirem IgE nessas quantidades exageradas contra os antigénios do meio ambiente (alergénios). Ora estas moléculas de IgE vão-se colocar na membrana de células como mastócitos e basóilos e, perante uma exposição ao alergénio relevante, podem causar os episódios agudos de rinite ou asma alérgicas ou, em casos mais graves, estar na base do aparecimento de reações muito graves e generalizadas de alergia, os casos de anailaxia. De facto, a esmagadora maiora dos casos de anailaxia são mediados pela IgE. Assim, penso ser uma falha muito grande não se falar em IgE em nenhum ponto do artigo. Pelo contrário, numa pequena caixa intitulada “Diz-me onde atuas...”, fala-se em IgG e não em IgE. Tal como referido, a IgE (e não a IgG) é que está associada à grande maioria dos casos e, na realidade, apenas alguns subtipos de IgG poderão estar associados, numa minoria de casos, a reações imediatas alérgicas. Penso mesmo que o cientista Richard Lockey, citado nessa
secção não deverá ter mencionado IgG, mas IgE, caso contrário não faz muito sentido. Finalmente, a imagem que mostram nessa secção é de uma IgM e a IgM não está, geralmente, associada a fenómenos de alergias. Falar de IgG como sendo a principal imunoglobulina associada às alergias é ainda mais grave quando existem muitos testes no mercado, não totalmente validados cientiicamente, baseados em IgG, e que supostamente avaliam “alergias” em pessoas, muitas vezes conduzindo a dietas com restrições alimentares extensas, muitas vezes até desnecessárias. Luís Taborda Barata, presidente da Faculdade de Ciências da Saúde, UBI N.R. – Agradecemos os esclarecimentos, devendo notar o seguinte: no conjunto dos três artigos dedicados ao tema das alergias, falamos duas vezes de IgE, e apenas uma de IgG (é uma gralha, de facto, devia ser IgE); em lado nenhum se diz que a imagem se refere a IgG (ou IgE), mas apenas a uma imunoglobulina, escolhida por razões gráicas. Fica, em todo o caso, a nota, com o pedido de desculpas aos leitores.
Escreva para superinteressante@motorpress.pt. Não podemos publicar todas as cartas, e as que publicarmos serão editadas.
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Motor
Raio X Volkswagen Sport Coupé GTE
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Saída cautelosa
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s sistemas de auxílio ao condutor, na ótica do aumento da segurança, são cada vez mais vulgares e abrangem cada vez mais áreas da condução e da simples utilização do automóvel. A prioridade tem sido dada a funções que monitorizam, alertam e, em alguns casos, tomam ações concretas relativas a situações de trânsito potencialmente perigosas. Os mais básicos sensores de estacionamento foram o princípio, a par dos sistemas de cruise control ativos, em que a velocidade pode ser regulada de acordo com a do veículo que circula à frente. Depois, surgiram os avisadores de ângulo morto e de saída involuntária de faixa, neste caso também com sistemas ativos que rodam o volante se o condutor estiver distraído ou adormecer. Outra área de desenvolvimento, apoiada na disponibilidade generalizada de todo o tipo de pequenas câmaras de vídeo, é a visão em redor do veículo, que tem sido usada como apoio ao estacionamento mas também como auxílio na saída de parques sem visibilidade. A simulação
CARRO DO MÊS
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da vista aérea, com base em tratamento de imagens recolhidas por quatro câmaras apontadas para o chão, é um auxílio precioso. Agora, a Audi investiu numa nova funcionalidade, que usa, em grande parte, equipamento já instalado no carro: o auxílio de saída. A situação é simples e diária, para quem anda de carro: como abrir a porta e sair com toda a segurança? Para garantir que não acontece um acidente, assim que o condutor ou um dos ocupantes puxa o fecho interior da porta, sensores colocados no retrovisor e nos para-choques traseiros detetam se está a aproximar-se um ciclista ou um veículo por trás, avisando os ocupantes através de um sinal sonoro e dois luminosos: um no espelho retrovisor, sendo acionados as três luzes usadas em andamento para alerta da saída involuntária de faixa, e um LED colocado num friso no interior da porta. Assim, é possível esperar que o perigo passe, antes de abrir a porta e sair do carro. Pode parecer um preciosismo, mas a verdade é que se dão muitos acidentes neste tipo de situação.
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Volkswagen está a apostar na submarca GTE para os seus modelos híbridos, que tiveram início com o Golf e vão continuar no Passat. Porém, a marca pensa mais além, como o mostrou no recente concept-car Sport Coupé GTE, que estreia um sistema híbrido mais potente e mais complexo, capaz de proporcionar tração às quatro rodas. Espera-se que esteja no mercado em 2017. 1 – O motor V6 TSI a gasolina de três litros debita 299 cavalos e 500 Newtons-metro
Ford Mustang Convertible 2.3 Ecoboost
inquenta anos e nove milhões de unidades depois, o Ford Mustang vai, pela primeira vez, ser vendido fora dos Estados Unidos. A decisão levou ao desenvolvimento de um motor de quatro cilindros turbocomprimido, o 2.3 Ecoboost de 317 cavalos, que terá certamente mais compradores do lado de cá do Altlântico do que o 5.0 V8 de 421 cv. Com um preço de 49 787 euros, a versão descapotável até é competitiva, face aos melhores rivais alemães, mas tem menos equipamento e uma qualidade de materiais no habitáculo claramente inferior. A capota é de lona e exige que o condutor rode um fecho manual, antes de carregar no botão elétrico que a recolhe em sete segundos. Quando está fechada, isola bem dos ruídos; quando está aberta, os turbilhões invadem o interior logo a partir dos 100 quilómetros por hora. O motor tem um desempenho razoável, com um pequeno tempo de resposta a baixos regimes, mas depois embala até ao corte da injeção, às 6750 rotações por minuto, o suficiente para chegar aos 234 km/h. Até podia ser mais rápido a subir de regime, se a caixa manual de seis veloci-
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dades não fosse tão longa. Para dar uma outra aura sonora à experiência de condução, o Mustang tem um sintetizador de som, sincronizado com o acelerador, que reforça o som natural do motor através dos altifalantes. É artificial, mas resulta bem. A transformação de coupé em convertible fez perder metade da rigidez torcional, o que se nota através da vibração da estrutura em pisos irregulares. Em termos dinâmicos, claro que o descapotável não é tão eficaz como o coupé, mas continua a ter potência para brincar com a tração traseira, nas saídas das curvas mais apertadas. Para apimentar o momento, até há quatro modos de condução que o condutor pode escolher através de botões na consola: Normal/Sport+/Track/Snow+Wet, que fazem alterar a sensibilidade do acelerador, a assistência da direção e a entrada em ação do controlo de estabilidade. Na prática, o modo Normal é melhor em quase todas as situações, até porque, com 1,7 toneladas de peso, este Mustang está mais virado para uns passeios descontraídos pelo campo do que para fazer o melhor tempo por volta numa pista.
Opinião
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Híbridos desportivos
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e está montado em posição transversal. Tem embraiagem para ser desacoplado da transmissão quando não está a ser usado, por exemplo na função “bolina” em desaceleração, quando o automóvel se move apenas pela inércia. 2 – A eletrónica de potência gere todos os luxos de eletricidade dentro do veículo. 3 – O motor elétrico traseiro de 116 cv move apenas as rodas traseiras e é responsável por uma autonomia de 50 quilómetros, em modo elétrico. No total, a potência combinada é de 380 cv, suicientes para atingir os 250 km/h
e acelerar dos 0 aos 100 km/h em cinco segundos. 4 – Tomada de carregamento da bateria através da rede doméstica. 5 – A bateria de 10,7 quilowats-hora está colocada no túnel central da plataforma e também é recarregável através do motor a gasolina ou da regeneração durante a travagem. 6 – Caixa DSG de dupla embraiagem com seis relações. 7 – Motor elétrico dianteiro de 55 cv, incorporado entre o motor a gasolina e a caixa de velocidades. Também funciona como gerador, acionado pelo V6, para carregar a bateria em andamento. 8 – Cablagem que transmite potência elétrica ao motor elétrico traseiro, naquilo a que se pode chamar “veio de transmissão elétrico”. 9 – Depósito de gasolina, suiciente para uma autonomia híbrida total de 1200 km.
epois de terem tido um princípio humilde, os automóveis híbridos têm vindo a crescer de ambição e de performance, para não dizer de estatuto. Longe vão os tempos do primeiro Toyota Prius, com o seu ar tímido, dinâmica amorfa e prestações limitadas. Agora, todas as marcas de prestígio têm os seus híbridos e a sua preocupação não é só reduzir os consumos. Há várias razões para que os novos híbridos sejam potentes e prometam prestações de desportivos. Por um lado, essa estratégia encaixa perfeitamente com a introdução do conceito híbrido nos mais altos escalões do desporto automóvel mundial, desde a Fórmula 1 ao campeonato mundial de resistência, WEC, estando previsto que no futuro próximo chegue também ao campeonato do mundo de ralis, o WRC. No entanto, a razão mais próxima tem menos de imagem e mais de contabilidade. Os custos de fabricar um híbrido são maiores do que os de fazer um modelo convencional. Por isso, é preciso encontrar clientes que estejam dispostos a dar mais dinheiro por uma nova geração de híbridos. É que, para que o programa de um híbrido deste calibre dê lucro, já não chegam os compradores “loucos” por gadgets: é preciso atrair os outros, os que dão valor à qualidade e às prestações. Por isso, os modelos híbridos começam a ter uma faceta desportiva tão vincada, como se pode ver no exemplo da Volkswagen e da sua submarca GTE. Foi inventada para os seus híbridos desportivos e não deixa de fazer lembrar os famosos desportivos convencionais GTI. Com um mesmo princípio, a marca alemã vai equipar vários modelos, dos quais o Golf GTE e o Passat GTE são os primeiros. Depois, será preciso fazer subir a parada, com carros como o que será o sucessor do atual CC e que o concept-car Sport Coupé GTE antecipa com tanto pormenor: um motor a gasolina de maior capacidade, inclusão de um segundo motor elétrico para o eixo traseiro e resultados que passam por prestações entusiasmantes, mantendo os consumos reduzidos. FRANCISCO MOTA Diretor técnico do Auto Hoje
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SUPER Portugueses
O ministro absoluto Ainda hoje é uma figura polémica: pombalistas e antipombalistas ainda discutem. O que é indiscutível é que o primeiro marquês de Pombal marcou profundamente a nossa história.
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impossível abordar, num espaço reduzido, a vida, a obra, as virtudes, os vícios, as grandezas e misérias de Sebastião José de Carvalho e Melo, primeiro conde de Oeiras e primeiro marquês de Pom bal. Tal como é impossível, nes se mesmo espaço, apresentar a argumentação completa de pombalistas e antipombalistas. A figura histórica em questão é demasiado complexa, demasiado rica. Tudo medido e ponderado, diremos, numa conclusão decerto simplista mas que, pelo menos, não estará errada: Pombal dominou o século XVIII português e ocupa um lugar ímpar na nossa história. Acrescente-se que, de um modo geral, tanto os seus defensores como os seus detratores têm sólidas razões para o atacar ou para o defender. Já agora, diga-se também que há, entre os seus defensores mais acérrimos, um grupo que o louva pelas razões erradas. Dito isto, convirá recordar um pouco da história deste homem extraordinário. Sebastião José nasceu numa família da pequena nobreza. Um tio seu, Paulo de Carvalho, foi lente da universidade e em sua casa se reunia a “Academia dos Ilustrados”, uma das tertúlias culturais criadas em Lisboa; é possível que esse mesmo tio o tenha ajudado no início da carreira, que foi tardio: até aos 38 anos, não logrou obter grandes progressos sociais ou económicos: a família não era propriamente rica, os irmãos eram muitos (onze, mais exatamente) e ele teve de se ocupar com a gestão do património. De notável, haverá apenas a assinalar o seu casamento com uma senhora da alta nobreza, D. Teresa de Noronha e Bourbon Mendonça e Almada, da família dos condes dos Arcos. De assinalar, igualmente, a sua tentativa para entrar na administração pública, mais precisamente no Conselho da Fazenda, mas D. João V recusou-
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-lhe essa entrada; aliás, este rei parece nunca ter visto com bons olhos o futuro marquês. Enfim, em finais de 1738, o cardeal D. João da Mota, secretário de Estado de D. João V, nomeou Sebastião José de Carvalho e Melo ministro plenipotenciário em Lon dres. Começava, portanto, a sua carreira na diplomacia, mas – fosse por falta de qualidades diplomáticas, fosse por falta de sorte – tal começo não se revelou auspicioso. Em Inglaterra, não se distinguiu; em contrapartida, algo de importante terá aprendido sobre as novas correntes do pensamento político e económico que floresciam na Europa. Antes mesmo de ser demitido do seu posto em Londres, deram-lhe nova missão, agora em Viena de Áustria, na corte de Maria Teresa. Uma vez mais, a sua ação não sobressaiu, embora conseguisse boas relações a nível pessoal. Aliás, foi na Áustria que se casou pela segunda vez – tinha enviuvado em 1739 – com Leonor Ernestina Daun, filha do general conde de Daun, militar notável e membro da grande aristocracia. No seu regresso a Portugal, contava com um grupo de amigos e, digamos, protetores, bem colocados na corte, entre os quais se incluía a rainha, D. Maria Ana, tia da imperatriz austríaca. No entanto, D. João V continuava a não gostar dele e nenhuma porta lhe foi aberta. Porém, as coisas iam mudar…
A SUBIDA AO PODER
Oito meses após o regresso de Sebastião José a Lisboa, D. João V falecia. Quando o novo rei, D. José I, reformou o governo, nomeou, para surpresa quase geral, o ex-diplomata para o cargo de secretário dos Negócios Estrangeiros. Porquê? Possivelmente, a sua decisão foi o fruto de várias sugestões e recomendações: uma carta que o grande diplomata D. Luís da Cunha
lhe terá escrito, quando era ainda príncipe herdeiro (o famoso “Testamento Político” de D. Luís da Cunha), a influência da rainha sua mãe e o conselho (trágica ironia!) de um jesuíta, o padre José Moreira, confessor do novo soberano. Assim, aos 50 anos de idade, quando muitos outros pensariam, então, em retirar-se, começava para este homem uma nova carreira: a de ministro omnipotente, providencial, venerado e odiado. De facto, não tardou que o novo secretário dos Negócios Estrangeiros se tornasse muito mais do que isso. Na verdade, os seus colegas do governo, Pedro da Mota e Silva e Diogo de Mendonça Corte Real, eram fracas cabeças. A inteligência e a energia de Sebastião José não tardaram a impor-se e em breve o rei lhe confiava assuntos que não eram da alçada dos Negócios Estrangeiros: o problema das minas do Brasil, o dos tabacos e do açúcar brasileiros, que se acumulavam no porto de Lis boa à espera de despacho, o do comércio de diamantes. Como se vê, todas estas questões estavam relacionadas com o Brasil; e é também sobretudo a propósito do Brasil que se abrirá o furioso conflito com os jesuítas, que se opuseram ativamente à sua política brasileira, que punha em causa os domínios da Companhia no continente sul-americano. De qualquer modo, os primeiros cinco anos de permanência de Sebastião José na Secretaria dos Negócios Estrangeiros foram como que um prelúdio, durante o qual se esboçou a sua atuação po lítica e se terão também revelado os seus principais inimigos: a grande nobreza, por um lado, e, por outro, a Companhia de Jesus – mas não só: todos aqueles a quem as medidas que tomava iam pre-
SEBASTIÃO JOSÉ DE CARVALHO E MELO (1699–1782) O branco e o negro
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ntre as medidas positivas que Pombal tomou – para além da sua ação aquando do terramoto de 1755 – contam-se sem dúvida a aceitação da naturalização dos habitantes nascidos na Índia portuguesa com os mesmos direitos dos naturais de Portugal e o fim da distinção entre cristãos-novos (de origem judaica) e cristãos-velhos. Mencione-se igualmente o fim da escravatura – mas só na metrópole, não no espaço imperial. A proteção à indústria, o seu fomento, a criação de novas manufaturas, como as fábricas de cordoaria e outras, merecem ainda menção. Claro que esta relação está muito longe de ser exaustiva. No lado negativo, haverá que apontar várias medidas económicas ou
judicar, entre eles os pequenos mercadores. Entretanto, a situação portuguesa exigia uma mudança política de fundo. O paternalismo absolutista de D. João V funcionara razoavelmente bem, em termos práticos, enquanto aquele monarca tivera forças para conduzir o barco (e ninguém pode, honestamente, negar-lhe uma enorme ca pacidade de trabalho, apesar dos dislates que se contam a seu respeito). Porém, nos últimos dez anos do seu reinado, com a degradação da saúde do rei, a crise instalara-se: o estado enfraquecera, incapaz de mobilizar o clero, de pôr cobro aos abusos da nobreza e de obstar à ineficácia da burocracia ou à insuficiência dos órgãos administrativos. Para operar a mudança necessária, seria precisa uma enorme energia, e também um enorme poder e condições propícias. Tudo isso se conjugou por vias de uma catástrofe: o grande terramoto de 1755. Foi essa tragédia que, num tempo mínimo, catapultou Carvalho e Melo para o poder absoluto: foi ele o único a manter a cabeça fria, a saber quais as medidas a tomar – e a tomá-las, com uma espantosa energia, desde o momento em que o rei lhe deu os necessários poderes. Poucos governantes, na época ou mesmo agora, fariam o que ele fez. Durante vários dias, a sua residência era a carruagem em que percorria as ruínas de Lisboa, impondo a ordem, dando ânimo e coragem, expedindo ordens. É difícil de imaginar a dimensão do seu trabalho: desde a caça aos saqueadores e criminosos fugidos das prisões ao socorro às vítimas, ao abastecimento, à remoção das ruínas, ao restabelecimento dos serviços administrativos… Aquilo a que chamamos hoje a Lisboa pombalina, obra da sua energia e da competência
da equipa de engenheiros que ele reuniu – Manuel da Maia, Eugénio dos Santos e o húngaro Carlos Mardel – é certamente o legado mais importante que nos deixou. Sobre as suas reformas económicas, políticas e educativas, pode-se dizer bem e mal; quanto à cidade reedificada, essa, é a sua grande e indiscutível obra. Ainda hoje, arquitetos e engenheiros se maravilham com as soluções encontradas, com a inovação, a inteligência, o engenho.
CONDE DE OEIRAS
Como ficou referido, a consoli da ção do governo de Carvalho e Melo iniciou-se com a sua ação após o terramoto. Logo em 1756, passa a ser secretário do Reino, o que equivale a primeiro-ministro. A partir de então, o seu poder não pára de crescer e crescerá ainda mais com o atentado contra o rei D. José I, em 1758: é então que o ministro cala a nobreza e lança o seu programa contra os jesuítas. Os marqueses de Távora, o conde de Atouguia, o duque de Aveiro e vários outros acusados são presos e torturados; serão depois executados com requintes de crueldade. Diga-se que todo o processo não primou pela transparência. Ao mesmo tempo, Carvalho e Melo acusa os jesuítas, que já haviam sido expulsos do paço real, de terem inspirado e encorajado os conspiradores. O ano de 1759 é o do triunfo: em janeiro, são supliciados os nobres acusados do atentado contra D. José; logo a seguir, vem o confisco dos bens da Companhia de Jesus. Em junho, o rei confere ao seu primeiro-ministro o título de conde de Oeiras. No mês seguinte, os jesuítas são expulsos do Brasil. No final do ano, começa-se a reforma do ensino. É o início do período áureo. Considerada no seu conjunto, a governação
educacionais que, sendo espetaculares na aparência, não tiveram os resultados esperados. Sobretudo, é preciso assinalar a brutalidade dos métodos, que foi impressionante, mesmo para a época. As prisões encheram-se. Já icou referido o suplício dos Távoras e do duque de Aveiro (cujos pormenores são impressionantes). A execução do padre jesuíta Gabriel Malagrida, um pobre visionário antimarquês, é verdade, mas algo incoerente, foi uma crueldade inútil. O mesmo se pode dizer sobre a execução do genovês João Batista Pele, acusado (ao que parece falsamente) de preparar um atentado contra o primeiro-ministro: foi esquartejado por cavalos. Também aqui, mais se poderia dizer sobre o assunto…
de Sebastião José de Carvalho e Melo, conde de Oeiras (só em 1769 recebeu o título de marquês de Pombal), é de qualidade desigual e o seu legado é também heterogéneo. Não houve, na sua atuação, uma conceção coerente ou programática; não mediu, muitas vezes, todas as con sequências das medidas que tomava e que fazia aplicar com desusada brutalidade. No fundo, talvez o maior problema tenha sido este: Pombal queria introduzir o iluminismo, mas não estava disposto a aceitar aquilo que era adjacente a tal conceção, mesmo quando ela se traduzia em despotismo iluminado: um intercâmbio de ideias, uma liberdade acrescida nas iniciativas e nos pensamentos. Os “velhos republicanos” louvam-no por ter amordaçado a Inquisição e expulso os jesuítas do reino, mas fazem por esquecer que ele só enfraqueceu a Inquisição para assumir (e usar) o seu poder, não para dar liberdade aos portugueses. Por seu turno, a campanha contra os jesuítas – que foi tão eficiente que ainda hoje nos influencia e que conheceu grande êxito na Europa setecentista – teve muito de irracional e muito de injusta: tornou-se um ódio pessoal, que ultrapassou a política. Se é verdade que Pombal caiu logo após a morte de D. José, já é falso que D. Maria I se empenhasse em persegui-lo – embora tivesse razões pessoais para o fazer. Pelo contrário, tentou ignorá-lo, deixá-lo tranquilo no seu canto, mas foi a voz dos agravados (e eram muitos) que falou mais alto e levou à instauração do processo que o condenou, mas que apenas o sentenciou ao exílio para fora da capital. Nenhum dos seus muitos defeitos, porém, lhe tira a qualidade de super-português… JOÃO AGUIAR Este artigo foi publicado originalmente na SUPER 117. João Aguiar faleceu em 2010.
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Histórias do Tejo
Ciganos do rio Há mais de cem anos, os avieiros, eternizados por Alves Redol, começaram a trocar o quezilento mar invernal de Vieira de Leiria pelo amável estuário do Tejo. Depois, trouxeram as famílias, e pelo rio ficaram.
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u não quero ir para o campo/ que lá faz muito calor/ eu não quero ser campina/ que o meu bem é pescador.” No seu Cancioneiro do Ribatejo, António Alves Redol pincela uma das rugas mais vincadas dos avieiros: o seu caráter reservado, isolado no rio, de costas para o vizinho mundo das lezírias e fechado aos camponeses que as habitam e trabalham. Esse lado recluso, que os leva a casar sempre dentro da própria comunidade, é uma das razões para o escritor neorrealista os apelidar de “ciganos do rio”, no livro Avieiros, publicado em 1942. Outra justificação, porventura mais forte, é o seu lado nómada – os avieiros vieram de longe, de Vieira de Leiria, e durante muito tempo andavam de trás para a frente de barco às costas a fazer-lhes de casa. O século XIX não foi um bom século para Vieira de Leiria. Começou logo mal, com o exército das invasões napoleónicas a saquear e arrasar a eito a vila piscatória, no seu caminho para Lisboa. O saldo só não foi pior porque a maioria da população fugiu antes para o pinhal de Leiria, levando consigo tudo o que conseguia carregar. Mesmo assim, nos anos seguintes, metade da população sucumbiu às epidemias, consequência da fome e de muitos terem encontrado as suas casas destruídas pelos franceses. A arrasadora passagem das tropas inimigas tornou ainda mais difícil uma vida já de si duríssima. Os pescadores enfrentavam todos os anos invernos cruéis, de mar frio e bravo, em barcos demasiado pequenos e frágeis para encararem olhos nos olhos as descomunais ondas. Porém, ver os filhos a passar fome dá coragem ao mais poltrão dos homens. Muitas
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vezes, os pescadores da Vieira de Leiria arriscavam sair para o Atlântico debaixo de tempestade. Bastas vezes não regressavam. A alternativa era empregarem-se nas serrações, à jorna, mas o bom pescador enjoa longe do mar. Até que, no final do século XIX, um deles aventurou-se a descer a costa até Lisboa e a entrar no Tejo. O pioneiro encontrou um mar dentro do rio – mas um mar de ondas suaves e peixe gordo. Palavra puxa palavra e o estuário foi-se enchendo de homens de Vieira de Leiria nos meses frios. No verão, continuavam a lançar a rede à sardinha, na terra natal; no inverno, faziam do Tejo casa, à cata de sável, enguia, robalo, lampreia, fataça. O povo que há séculos habitava as margens do rio imediatamente os batizou: avieiros, à conta da longínqua vila que lhes serviu de berço. Ao princípio, os homens vinham sozinhos, com o colorido barco a servir-lhes de casa e local de trabalho. A ré era a oficina, de onde lançavam as redes e guardavam o peixe. A barriga da embarcação fazia de cozinha, apetrechada com fogareiro a petróleo e um armário para guardar alguidares, comida e o material de costura, para consertar as redes. A proa empinada transmutava-se de quarto, separado da cozinha por uma taipa, chamada “emparedeira”, que também servia para apoiar os pés no momento de dar uso ao remo. Aí dormiam, embalados permanentemente pelo ondular das águas e mal protegidos da chuva por uma pobre e precária cobertura de lona. Nestes seis ou sete metros de comprimento por metro e meio de largura viviam os avieiros uma boa parte do ano. Cinco meses parecem cinco anos quando se está sozinho. A temporada longe das mulheres
e dos filhos alongava-se, cada vez mais penosa, e a saudade esmagava espíritos, mas o peixe deixava-se apanhar e no Tejo raramente se morria. Já com o século XX mais do que inaugurado, alguns avieiros começaram a trazer as famílias com eles e deixaram de regressar a Vieira de Leiria. Lentamente, os nómadas sedentarizaram-se, e passaram a ter como viagem maior as excursões até Lisboa para vender o pescado. A grande migração aconteceu entre 1919 e a eclosão da Segunda Guerra Mundial. Assentar raízes no concorrido rio, no entanto, não foi fácil. Incontáveis centenas de pescadores abarrotavam já as águas, e os avieiros nem sequer tinham sido os primeiros forasteiros a chegar. Era constante o choque com os varinos, naturais de Ovar, os murtoseiros, da Murtosa, e os ílhavos, de Ílhavo, que haviam descoberto o Tejo nos séculos XVIII e XIX. Tam-
Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro (A Esfera dos Livros, 2013) http://bit.ly/1hrY8Zc
Inspiração neorrealista bém os homens e as mulheres dos campos olhavam com desconfiança para estas gentes de estranhos hábitos, que acampavam nas praias, para ficarem mais perto do peixe, às vezes erguendo casitas feitas de caniços, não ousavam dar dez passos terra adentro e se tratavam uns aos outros pelas mais estrambólicas alcunhas: o Diabo Coxo, o Boga, o Malho, o Tubarão, o Japão, o Picareto, o Cientista, o Póri, o Botas, o Cosminha... A estabilidade e o generoso número de filhos com que os pescadores eram agraciados obrigaram-nos a procurar habitação mais condigna. Tábua a tábua, o rio ia sendo ladeado por barracos de madeira, iguais aos palheiros das praias de Vieira de Leiria mas assentes em estacas cravadas no leito ou nas margens, para escaparem às copiosas inundações e não se afastarem do barco, seu único sustento. É por esta altura, nos anos 20 e 30, que o Tejo ganha
cor: ao invés da monotonia alva que rodeia o estuário, as casas de palafita dos avieiros são pintadas de vermelho, azul e verde. No apogeu da migração de Vieira de Leiria, chegaram a “fundar-se” 80 lugarejos avieiros. Escaroupim, Palhota, Caneiras, Carrasqueira, Barreira da Bica, Lezirão, Muge, Valada, Carregado, Vila Franca de Xira, Alhandra, Póvoa de Santa Iria… Por todo o lado, quase até Santarém, assomavam pequenas aldeias berrantes, que ao longe pareciam flutuar nas águas. Habitações trôpegas e modestas – “pequenas, talvez para que as não vissem; tímidas, para que não as mandassem destruir”, no dizer de Alves Redol – com cozinha, uma salinha e um ou dois minúsculos quartos. Por cima das camas, apetrechadas com singelos colchões de palha e velhas mantas, ficavam penduradas as redes. A entrada fazia-se por umas escadas que desciam para o rio.
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oincidência ou não, os dois impulsionadores do neorrealismo em Portugal beberam toda a sua inspiração no Tejo e nas vidas ásperas de quem vivia no rio e do rio. Alves Redol (na foto), nascido em 1911 em Vila Franca de Xira (e que aos 15 anos já colaborava com o jornal local Vida Ribatejana), começou cedo a debruçar-se sobre as miseráveis condições de vida dos trabalhadores mais pobres, explorados pela ganância capitalista. As obras Gaibéus, Marés e Avieiros têm “este” Tejo como personagem principal. Igualmente impregnado dos ideais comunistas, Soeiro Pereira Gomes (dois anos mais velho do que Alves Redol), natural do Norte do País mas que escolheu Alhandra como sua terra, tem o seu expoente no romance Esteiros, onde descreve cruamente o trabalho infantil nos telhais à beira do rio.
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Histórias do Tejo Casas avieiras em Escaroupim.
Não eram só as casas a pintalgar o Tejo. Também os naturais de Vieira de Leiria se vestiam com roupas garridas. As mulheres envergavam blusas com pregas, saias de xadrez preto ou castanho e amarelo (ou vermelho, ou azul), casacos rematados por rendas, lenço na cabeça e um omnipresente avental – fosse no labor mais árduo, ajudando o marido a puxar as redes, fosse na festa mais catita. Os homens usavam calças de fazenda, sempre arregaçadas na bainha, e camisas de flanela aos quadrados, com um barrete preto ou uma boina vermelha. Com o tempo, a comunidade abriu-se mais. Aqui e ali, um ou outro pescador oferecia-se aos campos, quando o peixe, a crescer de esperteza ou a mingar de tamanho, fintava as redes ou as atravessava sem mácula. Empurrados para fora do rio, desempregados e puxados pelas fábricas que lhes invadiram o espaço, os netos e os bisnetos dos
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avieiros largaram paulatinamente a vida no Tejo. Hoje, pode dizer-se que o tempo dos avieiros já lá vai. A modernidade encarregou-se de os extinguir, pescador por pescador. Restam apenas algumas casas, abandonadas ou a servir de barracão, entretanto empalidecidas, desbotadas pelo sol e pela água, apoiadas em apodrecidas e débeis escoras de madeira. As poucas casitas originais que ainda se mantêm de pé estão agora entre as últimas habitações típicas de palafita da Europa. Em Escaroupim, no concelho de Salvaterra de Magos, um antigo lar avieiro foi remodelado e convertido em museu. A história dos pescadores que fizeram da aventura rotina, essa, não morrerá nunca. Alves Redol deixou-a contada no romance Avieiros, um dos pilares do neorrealismo português. O livro foi editado em 1942, mas começou a ser escrito na cabeça do vila-franquense
quando ele era ainda uma criança: Alves Redol, que crescera ao lado dos filhos dos varinos, seus companheiros de escola e de brincadeiras, ficou certo dia embasbacado a olhar para o singular e rude desconhecido que viu entrar numa taberna, encher um garrafão de tinto e abalar sem uma palavra; um amigo disse-lhe que o homem era um avieiro, que vivia da apanha do sável, e a curiosidade transformou-se em obsessão por conhecer melhor aquele povo. Três décadas depois deste episódio, e ao fim de quatro anos a tentar convencê-los, Alves Redol conseguiu que o deixassem viver com eles, na aldeia de Palhota, durante a época do sável, para os acompanhar nas pescarias, entrar-lhes na alma e imortalizar-lhes o legado. Com uma condição – tinha de levar a mulher com ele, não fosse o escritor roubar-lhes mais do que a história. L.R./A.R.
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Caçadores de Estrelas
XXII Astrofesta
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umprindo o objetivo de contribuir para a cultura científica dos cidadãos em geral, a iniciativa anual, em Portugal designada, há mais de vinte anos, por Astrofesta, vai este ano voltar a ambientes de céu escuro, circunstância ideal para permitir imagens límpidas e alcances mais profundos dos telescópios móveis, qualquer que seja a sua potência. Em pleno Ano Internacional da Luz e numa vasta planície alentejana, muito perto de Castro Verde, o céu vai proporcionar, nas noites de 21 e 22 de agosto, a experimentação dos limites da visão humana e perceber como a poluição luminosa – para além de outros efeitos negativos na vida e no bem-estar dos povos – nega o contacto direto com o natural ciclo dia-noite e impede a contemplação do magnífico “manto” que, salpicado de milhares de pontos luminosos, continua, agora como na pré-história, a transmitir a sensação de acolhimento e proteção, num período em que o Sol está ausente. Mantendo o princípio de que um convívio deste género – em que se pretende promover contactos entre cidadãos comuns e astrónomos e astrofísicos, bem como a partilha de experiências e conhecimentos – deverá ser
repetido em ambientes e locais diversos do país (aldeias, cidades, planícies, montanhas, etc.), a Astrofesta 2015 conduzirá centenas de participantes para a Herdade do Vale Gonçalinho, no município de Castro Verde, local que contrasta com a maior parte dos locais que a vida quotidiana proporciona. Assim, os participantes poderão adquirir experiências diversificadas que permitam, em ocasiões e locais diferentes, e sem a presença de especialistas, repetir o reconhecimento do céu e, eventualmente, a utilização de recursos óticos que visualizem objetos que os olhos não conseguem alcançar. Simultaneamente, partilhar-se-ão experiências próprias de “turismo científico e cultural”, ao ouvir uma palestra num museu com vestígios romanos aos quais estão associadas referências astronómicas, ao seguir uma visita a um espaço onde se demonstram antigas práticas e técnicas agrícolas locais, ou ainda no contacto com a gastronomia alentejana e o cante, recentemente proclamado património da humanidade. O envolvimento dos participantes será, desta vez, alargado a atividades ligadas à observação da natureza, em que os aspetos da fauna e da flora estudados e preservados naquele amplo
espaço pertencente à Liga para a Proteção da Natureza serão “mostrados” por especialistas “residentes” e que, por isso, conhecem tão bem os locais onde certas aves nidificam, ou a que horas emitem determinados sons ou voam, como os astrónomos conhecem as estrelas do céu e as razões da sua evolução. Como sempre, cada participante regressará confortado – mesmo que tenha interrompido o ritmo das férias – com a beleza do que viu e ouviu e com algum conhecimento adquirido que tornará mais compreensível um ou outro assunto científico cuja divulgação nem sempre é feita de modo acessível a todos os cidadãos. Informações sobre a Astrofesta 2015: info@ constancia.cienciaviva.pt ou tel. 926 979 346. MÁXIMO FERREIRA Diretor do Centro Ciência Viva de Constância
O céu de julho
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comparação do céu do início deste mês com o de junho, ao princípio das noites, tornará evidente que Vénus – o ponto mais brilhante de toda a esfera celeste – trocou de posição com Júpiter, o segundo de maior brilho, passando da sua direita para a esquerda, como resultado de possuir um movimento mais rápido. No entanto, com o decorrer do mês de julho, ver-se-á que a “estrela da tarde” como que estaciona, deslocando-se muito ligeiramente, sempre nas proximidades da estrela Régulo e afastando-se um pouco para sul, até que, já nos últimos dias do mês, começará a retrogradar, ou seja, a deslocar-se em sentido contrário, num movimento que resulta do seu deslocamento próprio em volta do Sol e do facto de estarmos a observar as suas sucessivas posições a partir da Terra. Depois, é o “adeus” a Vénus, que, tal como Júpiter, mergulhará no crepúsculo para deixar de ser visível ao fim do dia, preparando-se para um período em que será “estrela da manhã”, desde finais de agosto até março do próximo ano. No lado oposto – a este –, Saturno continua
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a retrogradar, embora de modo impercetível, deslocando-se um pouco acima do Escorpião em direção à Balança, movimento que só terminará em finais de julho, ocasião em que retomará o sentido de deslocamento normal em relação às estrelas, de oeste para este. Até ao Quarto Crescente da Lua, período em que o luar não prejudica muito a observação de objetos celestes pouco luminosos, é possível – em locais afastados de iluminação noturna – ver um céu escuro e perceber que a Via Láctea se apresenta como um “meio arco” tombado para este, emergindo a sul, um pouco à esquerda da constelação do Escorpião, elevando-se até ao “triângulo de verão” (constituído pelas estrelas Altair, Vega e Deneb) e “descendo” depois para o horizonte, a norte, sobre estrelas da Cassiopeia. É então fácil identiicar estrelas e constelações que, embora conhecidas, não é possível avistar sempre que o luar ou a poluição luminosa “apaguem” as de menor brilho. Tomando como referência as estrelas Arcturo e Vega – a primeira facilmente localizável se
se prolongar a curvatura sugerida pela cauda da Ursa Maior e a segunda por marcar um dos vértices do “triângulo de verão” – não será difícil identiicar a parte principal da constelação de Hércules, que parecerá um H gigantesco, embora ligeiramente deformado. Há quem consiga “ver” ali uma borboleta, juntando às estrelas facilmente visíveis mais duas de brilho muito inferior e já pertencentes à Coroa Boreal, as quais marcariam as antenas do inseto, que, assim imaginado, parece voar em direção à Coroa Boreal. Nesta última constelação, a disposição das estrelas sugere um arco incompleto, razão por que, na sua origem árabe, o nome da estrela de maior brilho, Alpheca, signiica “taça quebrada”. No Hércules, situa-se um dos enxames estelares de mais fácil observação, sendo, teoricamente, observável à vista desarmada. Um binóculo simples mostra uma pequena mancha e os telescópios permitem ver muitas das mais de cem mil estrelas que constituem o “enxame globular” mais famoso (M13), situado a uma distância próxima de vinte mil anos-luz.
Mapa do Céu Como usar Vire-se para sul e coloque a revista sobre a cabeça, de modo que a seta ique apontada para norte. Se se voltar em qualquer das outras direções (norte, este, oeste), pode rodar a revista, de modo a facilitar a leitura, desde que mantenha a seta apontada para norte. Os planetas e a Lua estarão sempre perto da eclíptica. O céu representado no mapa (no que se refere às estrelas) corresponde às 21.30 horas do dia 5. A alteração que se veriica ao longo do mês, à mesma hora, não é muito importante. No entanto, com o decorrer da noite, as estrelas mais a oeste irão mergulhando no horizonte, enquanto do lado este vão surgindo outras, inicialmente não visíveis.
As fases da Lua
Lua Cheia Quarto Minguante Lua Nova Quarto Crescente Lua Cheia
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Dia 2 às 03h20 Dia 8 às 22h24 Dia 16 às 02h24 Dia 24 às 05h04 Dia 31 às 11h43
NORTE
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Física Como estudar outros mundos
Apanha a LUZ! Encontrar planetas como a Terra, no espaço longínquo, não será tarefa fácil. Para o conseguir, é preciso recorrer a diferentes métodos, capazes de os achar e caracterizar, a exemplo do que se fez para os 1900 planetas extrassolares já descobertos. O astrónomo Jorge Martins testou uma nova técnica e conseguiu detetar, pela primeira vez, o espectro da luz refletida por um planeta fora do Sistema Solar.
N
a Grécia Antiga, Belerofonte era o herói que capturou e cavalgou Pégaso, o mítico cavalo alado, mas que logo caiu em desgraça quando, montado no dorso do animal voador, tentou visitar os deuses no monte Olimpo. Para os astrónomos, Belerofonte é a alcunha do planeta extrassolar 51 Pegasi b, o primeiro do seu género a ser encontrado em torno de uma estrela como o Sol: a 51 Pegasi, situada na constelação de Pégaso, a pouco mais de 50 anos-luz da Terra. O planeta, pouco maior do que Júpiter e com metade da sua massa, causa espanto por circundar a sua estrela-mãe em somente quatro dias. A grande descoberta, feita em 1995, abalou o que até então se conhecia sobre os sistemas estelares. Afinal, era possível a um planeta gigante gasoso, semelhante a Júpiter, ter uma
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órbita muito próxima da estrela que o alberga. A esta nova classe de planetas, deu-se o nome de “Júpiter quente”. Passados 20 anos, uma equipa internacional de investigadores, encabeçada por Jorge Martins, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e da Universidade do Porto, publicou um estudo em que afirma ter detetado diretamente, pela primeira vez, o espectro da luz visível refletida pela atmosfera de um planeta extrassolar, usando uma nova técnica que desenvolveram. O centro das atenções recai, mais uma vez, sobre o 51 Pegasi b. Os dados obtidos não trouxeram grandes novidades sobre o planeta, mas o que se pretendia é que a nova ferramenta de análise provasse o seu potencial. De futuro, quando combinado com a próxima geração de telescópios e de espectrógrafos, espera-se que seja capaz
de caracterizar planetas longínquos parecidos com a Terra. O teste que se fez, recorrendo ao espectrógrafo HARPS, instalado no telescópio de 3,6 metros do Observatório Europeu do Sul (ESO), no deserto chileno do Atacama, utilizou o espectro da estrela 51 Pegasi como referência para procurar um sinal similar, refletido pelo planeta que a orbita. Foi assim que se conseguiu, pela primeira vez, a deteção espectroscópica da luz estelar refletida pelo 51 Pegasi b, o que, na prática, significa que se está a observar diretamente o planeta, afirmam os investigadores por detrás do estudo, grande parte deles ligados à Universidade do Porto. “Esta técnica de deteção tem grande importância científica”, explica Jorge Martins, “pois permite-nos medir a massa real do planeta e a sua inclinação orbital, o que é essencial para compreendermos completamente o sistema.
Quente, quente. O planeta extrassolar 51 Pegasi b, também conhecido como Beleforonte (na imagem, uma simulação), orbita uma estrela que se encontra a 50 anos-luz da Terra, na constelação do Pégaso. Foi o primeiro planeta a ser encontrado, em 1995, em torno de uma estrela semelhante ao Sol. Trata-se de um “Júpiter quente”, um planeta parecido com Júpiter, mas que orbita a sua estrela muito de perto. Passados vinte anos, volta a estar nas bocas do mundo por ser o primeiro planeta extrassolar cuja luz visível reletida foi diretamente detetada por um espectrógrafo. A técnica foi desenvolvida por portugueses.
mS ARCmS-ÍRIS DAS ESTRELAS
A nova técnica, que Jorge Martins ajudou a desenvolver, “é uma adaptação de uma outra que é utilizada há muito tempo, para calcular as velocidades radiais”, vulgarmente usada para confirmar e caracterizar planetas extrassolares. De forma sucinta, o método das velocidades radiais permite medir, através do espectro eletromagnético, a variação de velocidade de uma estrela, provocada pelo efeito gravitacional de um ou mais planetas. É preciso não esquecer que todos os objetos presentes no sistema orbitam um centro de massa comum, pelo que o astro luminoso acaba
por sofrer pequenas deslocações que assinalam a presença de algo a orbitá-lo. Contudo, só é possível medir os movimentos que ocorrem na direção de quem faz a observação: neste caso, na Terra. A velocidade a que se movimenta fica impressa na radiação eletromagnética que recebemos, sendo depois decomposta através de dispositivos de difração, para se obter uma espécie de banda colorida (um pouco ao jeito do arco-íris), isto é, o seu espectro. Quando se afirma que os movimentos ficam “impressos”, quer-se dizer que surge uma variação, na posição das riscas coloridas do espectro, de cada vez que a estrela se aproxima ou afasta da Terra. Se a estrela se move na direção da Terra, o espectro que emite sofre um desvio para o azul, inclinando-se para o vermelho quando ela se afasta. Cabe a instrumentos como o HARPS dete-
ESO/M. KORNMESSER/NICK RISINGER (SKYSURVEY.ORG)
Permite-nos, também, estimar a refletividade do planeta, o albedo, o que pode ser depois usado para inferir a composição tanto da superfície como da sua atmosfera.”
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á passaram 20 anos desde a descoberta do planeta extrassolar 51 Pegasi b. A notícia preencheu os cabeçalhos das revistas científicas, mas também da imprensa generalista: era a primeira vez que, fora do Sistema Solar, se descobria um planeta a orbitar uma estrela parecida com o Sol. “A descoberta deiniu todo um paradigma ao nível das ciências planetárias”, diz o astrónomo Jorge Martins, do Instituto de Astrofísica e Ciências do Espaço e da Universidade do Porto. “Antes dele, pensávamos que os restantes sistemas estelares seriam parecidos com o nosso: haveria planetas gigantes gasosos na zona exterior do sistema e, na parte interior, planetas como a Terra.” Com o tempo, esta teoria foi empurrada para o esquecimento, à medida que novos e diferentes planetas extrassolares foram sendo descobertos. O Pegasi 51 b, por exemplo, apesar de ser um planeta gasoso e ter um diâmetro pouco maior do que o de Júpiter, orbita a sua estrela a uma distância cerca de oito vezes menor do que Mercúrio em relação ao Sol. Até ao momento, “entre tudo o que descobrimos, e com a exceção de um ou dois candidatos, não há mais um sistema igual ao nosso”, refere o investigador. Inclusivamente, “descobriram-se novos tipos de planetas que nem sequer conhecíamos, como as superterras”, objetos com uma massa maior do que a da Terra (no máximo, até dez vezes mais), mas menor do que a dos gigantes gasosos. Coube a dois astrónomos suíços, usando o método das velocidades radiais, anunciar a descoberta do 51 Pegasi b, em outubro de 1995. No mesmo mês, dados obtidos por espectrógrafo (é sempre importante obter uma conirmação por outros métodos) corroboraram o achado. Todavia, a primeira evidência de um planeta extrassolar, mais tarde conirmada, deu-se três anos antes, em 1992, quando Alex Wolszczan e Dale Frail publicaram um estudo que dava conta de um sistema planetário exótico em torno de um pulsar, o PSR 1257+12, uma estrela de neutrões extremamente densa que gira a grande velocidade: trata-se do resquício de uma estrela de grande massa que explodiu numa supernova. Os dois investigadores, ao analisarem a estrela de neutrões, repararam que a pulsação emitida na forma de ondas de rádio era irregular, tendo encontrado, ao procurar a causa, dois planetas a orbitá-la. Pouco tempo depois, veriicou-se que o sistema tinha um terceiro planeta. Como é que se formaram? De acordo com os astrónomos, há duas alternativas: podem
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ser os restos rochosos de gigantes gasosos que, num passado distante, se viram despidos das suas atmosferas, devido à supernova; ou, então, formaram-se depois desse evento catastróico, numa segunda fase de formação planetária. Décadas antes destas descobertas pioneiras, já havia quem jurasse, a pés juntos, ter encontrado um sinal deste tipo de planetas. Em abril de 1963, o jornal New York Times anunciava, numa das suas notícias, que “um outro sistema solar foi encontrado a 36 mil milhões de milhas do Sol”. O autor da pretensa descoberta era um astrónomo muito respeitado à época, Peter van de Kamp, o qual airmava ter encontrado um objeto, não visível, a perturbar gravitacionalmente a estrela de Barnard, na constelação de Oiúco, a seis anos-luz da Terra. Segundo ele, tratar-se-ia de um planeta com uma massa 1,6 vezes superior à de Júpiter. No entanto, havia mais: Van de Kamp e os seus colegas, do Colégio de Swarthmore (Pensilvânia), também diziam ter encontrado provas de outros objetos planetários a orbitar as estrelas 61 Cygni e Lalande 21185. Era tão grande o entusiasmo que o artigo do New York Times chegava ao ponto de descrever como seria o hipotético planeta e o impacto que teria: tratar-se-ia de um planeta frígido e desabitado, cuja descoberta “sustenta a convicção dos astrónomos de que muitos mais sistemas solares existem, alguns deles possivelmente com vida”. De certo modo, a previsão revelou-se acertada. Atualmente, são conhecidos cerca de 1900 planetas extrassolares, a esmagadora maioria deles conirmados nos últimos dois anos, e a lista deverá continuar a aumentar exponencialmente nos próximos tempos. Porém, no rol de candidatos e de planetas conirmados, nem sinal dos objetos que Peter van de Kamp e a sua equipa diziam ter encontrado. A razão é simples: eles não existem. Ao longo da década de 1970, outros astrónomos, apetrechados com melhores dados, colocaram em causa a existência dos três supostos sistemas estelares, até que, inalmente, se conirmou não existir qualquer planeta a orbitar as estrelas em causa. Os dados obtidos pela equipa de Swarthmore, pelos vistos, apesar de numerosos, estavam longe de serem os melhores. Porque levou tanto tempo até tudo isto ser refutado? Em parte, devido à reputação de que gozava Van den Kamp, e, ao mesmo tempo, porque não havia, na década de 1960, outros astrónomos, apetrechados com bons dados, capazes de desmontar a ideia.
NASA AMES/JPL-CALTECH
Verdadeiras e falsas descobertas
tar os “abanões” que as estrelas sofrem, mas, para isso, é preciso antes criar um espectro de referência, constituído pelos vários comprimentos de onda medidos em repouso, que é como quem diz, sem que se tenha em conta os possíveis movimentos da fonte emissora. O que se faz depois, com o espectrógrafo, é observar as variações que ocorrem no espectro da estrela, ao longo do tempo, comparando-as depois com o espectro de referência, de modo a ver se há desvios para o vermelho (afasta-se da Terra) ou para o azul (aproxima-se). Com este método, consegue-se saber quão grandes são as deslocações que a bola de gás incandescente sofre e a sua periodicidade, o que permitirá conhecer algumas características sobre o planeta que provoca estes movimentos, sem ser preciso observá-lo diretamente.
TAlTm TRABALHm, nARA oUÊ?
Com isto em mente, o que se lembrou a equipa de astrónomos de fazer? Fizeram o mesmo e calcularam as velocidades radiais da estrela 51 Pegasi, e, com os dados obtidos, criaram um espectro de referência (uma média de todos os espectros obtidos). A diferença
Irmãos Dalton. Encontrar um planeta extrassolar igual à Terra, capaz de albergar vida, será um dos maiores feitos da ciência. Até ao momento, o que se encontrou de mais parecido foram superterras, planetas maiores do que o nosso e que orbitam a zona habitável das suas estrelas, onde a água pode permanecer no estado líquido. Na imagem, a representação de alguns deles. Da esquerda para a direita: Kepler-22b, Kepler-69c, Kepler-62e, Kepler-62f e a Terra (a única imagem real).
O método agora validado será usado nos novos telescópios é que, a partir dele, conseguiram subtrair o espectro da estrela, ficando com um registo da sua “assinatura”, isenta de ruídos e do sinal emitido pelo planeta. “O que fizemos, em seguida, foi procurar no meio do ruído residual um sinal semelhante ao da estrela, mas na posição onde sabemos que está o planeta”, diz Jorge Martins. Conseguiu-se, desta forma, dar de caras com a luz visível refletida. O artigo com a descrição do que foi feito, assim como os resultado obtidos, foi publicado em abril, na revista Astronomy & Astrophysics (http://ow.ly/NQOOx). “O artigo descreve a primeira aplicação direta desta técnica. Há outras que são usadas para fazer investigações quase semelhantes, mas trata-se, sobretudo, de estudos que recorrem ao infravermelho”, frisa o investigador, atualmente a completar o seu doutoramento no Chile. “Apesar de ser muito mais difícil fazer tudo isto no espectro ótico [a luz visível], escolhemos
fazê-lo porque, neste caso, só temos uma emissão refletida, o que permitirá fazer melhores observações, ter mais dados e avançar com mais estudos. Para o 51 Pegasi b, obtivemos um sinal muito mais forte do planeta e, dessa forma, um sinal igualmente forte do seu albedo.” O nível de reflexão de um planeta, ou seja, o seu albedo, pode dar pistas valiosíssimas sobre ele, nomeadamente sobre a sua atmosfera: “Um planeta que esteja coberto de nuvens de poeira vai refletir bastante luz, por exemplo. Tipicamente, pode refletir metade da luz que recebe, enquanto um outro, sem nuvens, como seja um Júpiter gasoso, vai absorver muita da luz da sua estrela, pelo que terá um albedo pequeno”, refere o astrónomo. No entanto, as aplicações do novo método não se ficam por aqui. Acima de tudo, poderá ser mais uma arma para o arsenal dos caçadores de planetas extrassolares: “Mesmo para a
caracterização das órbitas dos planetas, não existe uma técnica que faça isso de forma completa. Precisamos de combinar métodos diferentes.” De futuro, pretende-se que o método seja usado pelo Very Large Telescope (VLT), do ESO, também situado no deserto do Atacama, no que é o maior conjunto de telescópios óticos situados num único local: o espelho de cada um mede 8,2 metros. Para tal, será necessário recorrer ao espectrógrafo de alta resolução ESPRESSO, que, apesar de já estar a ser montado no VLT, ainda continua a ser aperfeiçoado, à medida que vão surgindo novos avanços, como o protagonizado pela equipa de Jorge Martins. A nova ferramenta, que inclui a participação de instituições académicas e científicas de Portugal, tem por objetivo a deteção de planetas parecidos com a Terra, capazes de suportar vida. Daí que se tenha feito esta experiência num telescópio mais pequeno, de modo a garantir que realmente funcionará na nova geração de instrumentos que aí vem. Pode dizer-se que superou a prova com sucesso. J.P.L.
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Física Grande máquina. Há esperanças de que o detetor CMS, que já deu com o bosão de Higgs (juntamente com o detetor ATLAS), revele também a existência de partículas supersimétricas, ampliando assim o modelo-padrão da física.
Supersimetria, o novo Graal
Em busca de SUSY Depois de detetar o bosão de Higgs, o Grande Colisionador de Hadrões (LHC) voltou ao trabalho com renovada energia. Agora, prepara-se para dar caça às hipotéticas partículas que formam a base da supersimetria, ou SUSY.
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Todavia, o puzzle não está completo. A fim de podermos entender o que os físicos esperam após o primeiro grande êxito do LHC, será útil recordar, sumariamente, as propriedades que fazem as partículas comportar-se de diversas maneiras. Entendemos algumas, pois manifestam-se no mundo macroscópico, como a massa e a carga elétrica. Contudo, há outra característica fundamental menos intuitiva: o spin.
A ROTAÇÃO QUE NÃO EXISTE
Tanto o nome como o próprio conceito, introduzido na década de 1920 para explicar as características da luz emitida por alguns gases, fazem referência a um movimento de rotação, uma espécie de momento angular. Porém, tudo é mais complicado no mundo subatómico, governado pelas leis quânticas: as partículas não são verdadeiramente bolas que giram, mas regiões de diferente probabilidade consoante as equações que regem o seu estado. Além disso, são também ondas... De qualquer forma, o spin, tal como a massa ou a carga, caracteriza os ingredientes básicos da natureza, e possui valores discretos, múltiplos de uma unidade fundamental. Se essa rotação possuir um valor inteiro (0, 1, 2 ou 3), as partículas comportam-se de determinada forma; se for semi-inteiro (1/2, 3/2 ou 5/2), adotam outra. As primeiras, denominadas bosões, são o fotão, os bosões de Higgs, W e Z, os gluões, os gravitões, hipotéticas partículas da gravidade, e alguns núcleos atómicos, como o do carbono-12. O segundo grupo, o dos fer-
RICHARD JUILLIART / AFP / GETTY
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primeira “temporada” do Grande Colisionador de Hadrões (LHC) foi consagrada à procura do bosão de Higgs. O superacelerador de partículas do CERN, em Genebra, demonstrou, além disso, que o modelo teórico elaborado nos anos sessenta podia ser experimentalmente confirmado. Em 2013, o Prémio Nobel da Física foi entregue a François Englert e Peter W. Higgs em reconhecimento desse trabalho teórico, mas toda a gente percebeu que era também o acelerador a receber o galardão. Os físicos de partículas são frequentemente equiparados a uma ordem de cavaleiros, empenhados em aventuras quase impossíveis ou míticas. Ao longo dos últimos cinquenta anos, não há divulgador nem jornalista científico que não tenha comparado a tentativa de entender a estrutura íntima da matéria com a procura do Santo Graal. Contudo, para descrever o que acontece entre quadros negros cheios de fórmulas e os gigantescos ímanes dos túneis subterrâneos, as analogias não chegam: o CERN não é o cenário de uma cruzada, mas o lugar onde as mentes mais privilegiadas e as tecnologias mais surpreendentes criam máquinas capazes de viajar até quase à origem do universo; ou, pelo menos, conseguem avançar na compreensão do que o compõe e como funciona. O bosão de Higgs permitiu encaixar no modelo-padrão da física a massa, isto é, o que torna tão diferentes certas partículas das outras, mesmo que estejam sujeitas, em tudo o resto, a simetrias e leis idênticas.
Apaga e recomeça
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14 de fevereiro de 2013, às 7h24 da manhã, o centro de operações do LHC desligou os feixes de partículas que estavam em colisão desde 2012, a energias de até 8 teraeletrões-volt (TeV). Agora, poderão alcançar 13 TeV. Durante as obras, foram adaptados os 1232 ímanes dipolares, além de se terem substituído dezoito. Trata-se de uma operação delicadíssima, pois as correntes necessárias (de cerca de 11 mil amperes) dissipam muito calor, algo que os materiais supercondutores tentam evitar, pelo que são mantidos à temperatura mais baixa da Terra e no maior vácuo possível. Foram também modificadas mais de dez mil interligações entre os ímanes.
Interessante
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Aos pares
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e acabar por se confirmar experimentalmente, a supersimetria (ou SUSY, como lhe chamam carinhosamente os físicos) duplicaria a lista de partículas fundamentais. Além disso, uma das variantes da teoria, conhecida por “modelo-padrão supersimétrico mínimo” (MSSM na sigla inglesa), também prevê a existência de cinco bosões de Higgs, com os correspondentes companheiros supersimétricos, para explicar a massa dos restantes elementos básicos da matéria. Esse zoo subatómico paralelo poderia resolver, de forma elegante, o principal desequilíbrio do modelo-padrão da física: o facto de metade das partículas, os bosões, terem valores de spin inteiros (0, 1, 2...), enquanto na outra metade (os fermiões) são semi-inteiros (1/2, 3/2...). Muitos cientistas acreditam que as partículas na sombra ainda não foram detetadas por possuírem massas muito grandes, e que o LHC talvez tenha, agora, a potência necessária para obrigá-las a sair do seu esconderijo.
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CMS / CERN
Acidente provocado. Colisão de protões captada pelo detetor CMS. Entre os “escombros” destes choques, os cientistas procuram a pista de fenómenos que conirmem as suas hipóteses.
Atirar um brinquedo à parede para perceber como funciona miões, integra os eletrões, os muões, os neutrinos, os quarks e o núcleo do carbono-13. Todas as partículas elementares são idênticas quando estão isoladas: dois eletrões obtidos em lugares distantes do universo são indistinguíveis. Porém, ao agruparem-se, o spin conta. Assim, os fermiões estruturam-se de forma ordenada, em diferentes estados quânticos. É o que se passa, por exemplo, com os eletrões, que adotam determinadas energias e órbitas em redor de um núcleo atómico. Os bosões, todavia, têm menos problemas: podem juntar-se (ou mesmo condensar-se a baixas temperaturas) no mesmo estado quântico, de forma mais promíscua. A estatística apresentada pelo físico indiano Satyendra Nath Bose, em 1920, e depois desenvolvida por Albert Einstein, permitiu entender essa importante diferença. É considerado algo incómodo do ponto de vista da mecânica quântica, pois talvez noutras condições (por exemplo, com energias mais elevadas), pudessem agir de forma semelhante. Não se trata de uma intuição fortuita: as quebras de simetria
permitiram que a física atual seja muito precisa e tenha criado um modelo-padrão coerente, se bem que incompleto, como já referimos. No início dos anos 80, pensou-se que talvez cada partícula conhecida tivesse uma gémea oculta, o que reporia de alguma maneira o equilíbrio. Distinguir-se-iam pelo seu spin, que passaria de inteiro a semi-inteiro (de bosão para fermião ), ou o inverso. Este tipo de hipótese funcionava muito bem na física desde 1932, quando o britânico Paul M. Dirac propôs a existência de uma partícula correlativa do eletrão, com carga de sinal oposto: o positrão. O conceito das antipartículas (com inversão da carga elétrica) foi totalmente comprovado.
SIMPLES, MAS ESQUIVO
No caso da nova teoria, que começou a adquirir forma com os trabalhos de Howard Georgi e Savas Dimopoulos, em 1981, a sugestão era que o correlato do eletrão, com spin 1/2, seria o eletrão supersimétrico (ou seletrão ), com spin 0 (zero). O mesmo aconteceria com todas as partículas. A denominação dos bosões
SERGE BRUNIER / CSIC / UNIVERSIDADE DE ESTOCOLMO
Véu de mistério. A descoberta de partículas exóticas superpesadas no LHC poderia ajudar a explicar de que é feita a matéria escura, que constitui quase um quarto do universo. Nesta imagem, o halo azul marca a sua hipotética presença na Via Láctea.
supersimétricos é antecedida pela letra S; para complicar as coisas ainda mais, os companheiros dos fermiões levam o sufixo ino: do fotão, fotino; do gluão, gluino... No papel, isto é, nas equações sumamente complexas dos modelos da física quântica, a cada bosão corresponderia um fermião supersimétrico com a mesma massa, e vice-versa. Contudo, não é o que parece acontecer na realidade. Aqueles que acompanharam a primeira temporada do LHC sabem que a massa é, precisamente, uma das questões mais melindrosas do enredo. A fim de perceber por que motivo os eletrões são muito mais leves do que os quarks (as bases de neutrões e protões), foi sugerida a existência de um bosão pesado e fugidio que resolveria o enigma. Por isso, diversas formulações introduzem mecanismos nos quais as candidatas supersimétricas apresentam grandes massas, da ordem ou maiores do que a do bosão de Higgs. Um dos objetivos do renovado LHC consiste em localizar essas s-partículas. Trata-se da base da supersimetria (ou SUSY), uma ideia promissora que aguarda, há décadas, comprovação ou refutação. Com os oito biliões de eletrões-volt ou teraeletrões-volt (TeV) de energia alcançados pelos protões acelerados até 2013, no LHC, deveriam ter surgido sinais que permitissem
averiguar se a SUSY fazia sentido. Contudo, nada foi visto: por isso, começou a dizer-se que talvez o acelerador estivesse a confirmar o modelo-padrão e a desferir, simultaneamente, uma punhalada fatal nas propostas mais populares da supersimetria, muito acarinhadas pelos físicos, pois poderiam justificar o facto de o universo ter muito mais massa do que a que conseguimos ver. Referimo-nos à matéria escura, detetada pelas observações de astrónomos.
A ENERGIA DE UM MOSQUITO
A energia alcançada pelas partículas no anel do LHC é descomunal. Podemos equipará-la à que impulsiona o voo de um mosquito, mas o inseto contém triliões de protões, enquanto o acelerador a concentra num único. Contudo, ainda não parece suficiente para conseguir acionar a magia da supersimetria. Por isso, a potência das colisões foi aumentada em 62 por cento, até aos 13 TeV. Além disso, os feixes serão mais estreitos, de modo que será, também, maior o número de colisões registadas pelos quatro detetores (ALICE, ATLAS, CMS e LHCb). Como acontece em todos os aceleradores, os físicos concentram enormes quantidades de energia para ver o que acontece. São muitas vezes comparados a uma criança que atira um carro de brincar contra uma parede e estuda
as peças que foram projetadas para saber como funciona. Nos espaços onde se produz uma colisão, a energia libertada desencadeia uma sucessão de acontecimentos diferentes. Os modelos (é aí que reside a precisão da física teórica) permitem antecipar os cenários que o choque de partículas irá produzir, atribuindo-lhes uma série de probabilidades. Como cada produto deixará um tipo de marca, se provocarmos muitas colisões, poderemos comprovar se a distribuição registada corresponde a um modelo concreto. Contudo, há mais: se se tratasse apenas, como acontecia na primeira temporada, de acumular encontrões subatómicos e obter uma estatística isenta de ruído, não haveria muitas expectativas. O que se deu bem com o Higgs não parece funcionar com a SUSY. De facto, as leis de conservação destas teorias colocam condições ao modo como se produzem as s-partículas e à maneira como interagem. Por isso, os físicos vão tentar aperfeiçoar a experiência e analisar mais dados, mais variados. Como reconheceu Rolf Heuer, diretor-geral do CERN, “estamos a abrir uma janela para o desconhecido: a supersimetria, que talvez esteja ao virar da esquina, ou qualquer outra teoria que amplie o modelo-padrão”. J.A.
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Física Muita matemática. Pedro Vieira, físico teórico do Instituto Perimeter, no Canadá, foi o vencedor da medalha Gribov 2015, entregue pela Sociedade Europeia de Física a um jovem investigador que tenha contribuído, de forma inovadora, para a física teórica de partículas ou para a teoria quântica de campos. O seu trabalho envolveu a teoria N=4 Supersimétrico de Yang-Mills, utilizada como laboratório teórico.
Prémio europeu para Pedro Vieira
Pegue numa fotografia do seu lugar preferido e olhe para ela. Estará perante uma representação a duas dimensões de um espaço tridimensional. Se a estudar bem, talvez consiga descobrir alguns segredos sobre o que lá existe, sem ter de ir ao local. O físico teórico Pedro Vieira tenta fazer algo parecido, procurando soluções para a gravidade quântica, a teoria que quer unir todas as forças fundamentais do universo em modelos teóricos com menos dimensões. O objetivo é simplificar os cálculos matemáticos.
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magine que, num jantar com amigos que pouco ou nada percebem de física, revela que passa o seu tempo a estudar uma teoria chamada “N=4 Supersimétrico de Yang-Mills”. O mais natural é observar vários olhos arregalados e sobrolhos levantados, seguidos de um constrangedor silêncio. A pior parte, porventura, será explicar-lhes que é impossível fazer experiências capazes de testar a sua existência. Não é possível agora, e nunca será. Na verdade, esta teoria não descreve a realidade física, embora seja usada pelos teóricos das cordas como uma poderosa ferramenta capaz de descobrir alguns dos segredos do universo, nomeadamente na teoria quântica de campos. Essencialmente, “é um laboratório teórico, serve para desenvolvermos e testarmos as nossas teorias físicas”, explica o investigador Pedro Vieira. “É uma teoria parecida com um afiador de facas, capaz de ajudar a desenvolver novos métodos, mais poderosos, que nos permitem estudar a física de partículas, as interações entre elas, principal-
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mente no regime forte acoplado: o regime em que as partículas interagem fortemente, que é difícil de estudar com as técnicas usuais”. Vieira sabe do que fala, ou não tivesse ganho, recentemente, a medalha Gribov 2015, um galardão atribuído a cada dois anos pela Sociedade Europeia de Física a um investigador com menos de 35 anos cujo trabalho tenha contribuído de forma inovadora para a física teórica de partículas ou para a teoria quântica de campos. Um dos problemas complexos que o português resolveu, e que lhe valeu o prémio, foi a “determinação exata do espectro e das amplitudes de dispersão de dimensões anómalas na teoria N=4 Supersimétrico de Yang-Mills”, refere a Sociedade Europeia de Física. Confuso? Não esteja. Já vamos tentar explicar. Por agora, fique com esta analogia em mente: a mosca da fruta é para os biólogos o mesmo que esta teoria é para os físicos. Dito de outra forma, ela permite aos investigadores estudar um sistema mais simples e daí tirar conclusões sobre outros bem mais complexos, tal como a
PERIMETER INSTITUTE
O homem das DIMENSÕES
mosca da fruta permite aprender muita coisa sobre outros organismos, incluindo o humano. A N=4 Supersimétrico de Yang-Mills é mais fácil de manipular, pelos físicos teóricos, do que outros sistemas que tentam descrever o mundo real. Na prática, o que se faz é transcrever os problemas de uma teoria para uma outra mais simples, para então se resolver a questão inicial. A solução obtida será convertida, depois, para a teoria original. Todavia, esta teoria de laboratório tem de ser aperfeiçoada, de modo a que os investigadores possam usar todo o seu potencial. No século XVIII, Isaac Newton também foi obrigado a desenvolver o cálculo diferencial e integral, uma ferramenta matemática que permitiu ao cientista britânico chegar à sua Lei da Gravitação Universal, que descreve o movimento dos corpos no espaço (planetas, estrelas, etc.) e o modo como se atraem. De momento, tenta-se fazer o mesmo com esta teoria de Yang-Mills, num processo de afinação para que consiga fornecer novas informações sobre o cosmos.
Regras do mundo subatómico
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É precisamente aqui que se insere a linha de investigação de Pedro Vieira, com o seu trabalho teórico a contribuir para este aperfeiçoamento, e daí a medalha Gribov.
CAMPOS COM ELÁSTICOS
“O Pedro Vieira e os seus colaboradores abriram caminho para uma compreensão mais rica e conceptual da teoria quântica de campos, que é a linguagem na qual está escrita a física de partículas, a física de matéria condensada e grande parte da cosmologia”, adianta Robert Myers, diretor do Instituto Perimeter (Canadá), um dos centros de investigação em física teórica mais reputados do mundo e onde Vieira trabalha como investigador principal. Em que consiste, e qual a importância para toda esta história, da teoria quântica de campos? Em 1860, James Clerk Maxwell conseguiu unificar a eletricidade e o magnetismo numa única força: o eletromagnetismo. Para lá chegar, contudo, teve de recorrer a uma ideia criada, vinte anos antes, pelo físico Michael
Faraday. Trata-se do conceito de “campo”, o qual explica como uma força pode ser transferida de um corpo para outro ao longo do espaço vazio. Por exemplo: se colocarmos um papel sobre um íman de barra e, em seguida, espalharmos limalhas de ferro sobre a folha, veremos que as linhas do campo magnético se tornam visíveis. Como explica o físico norte-americano Lee Smolin em O Romper das Cordas, um campo é uma grandeza, um número que existe em todos os pontos do espaço, e, à medida que nos deslocamos por ele, o valor do campo (o número) vai variando. Mais: o seu valor, num único ponto, varia ao longo do tempo, havendo leis, bem conhecidas dos físicos, “que nos indicam como o campo se altera e evolui ao longo do espaço e do tempo”, escreve Smolin. “Estas leis indicam-nos que o valor do campo num ponto particular é influenciado pelo valor do campo em pontos vizinhos. [Esse ponto particular] pode também ser afetado por um corpo material no mesmo
m poucas palavras, podemos dizer que a teoria quântica se baseia em três princípios-chave: a energia, como a luz solar, está dividida em pequenas parcelas, a que se deu o nome de quanta (plural de quantum; daí dizer-se que a energia está quantizada); toda a matéria que vemos é constituída por partículas, mas estas podem ser encontradas e estudadas como se fossem uma onda (é a dualidade onda-partícula); assim que se faz uma medição (o simples ato de observar), essa onda “colapsa”, o que permite determinar o estado do objeto em causa. A teoria também nos diz que não é possível conhecer, em simultâneo, a posição e a velocidade de uma partícula: ao determinarmos uma destas duas variáveis, deixamos de conseguir fazer o mesmo para a outra. Uniicar esta teoria com a da Relatividade Geral de Albert Einstein, que explica o mundo macroscópico e em que está presente a força da gravidade, é o Santo Graal da física moderna.
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O suspeito do costume. Obter uma teoria da gravidade quântica constitui um dos grandes desaios da física atual, mas está a ser difícil conciliar a Relatividade Geral de Albert Einstein (na imagem), que explica a força da gravidade no mundo macroscópico, com a teoria quântica, que nos diz o que se passa ao nível subatómico.
A cromodinâmica quântica não é abordável pelas vias convencionais ponto. Assim, um campo pode transportar uma força de um corpo para outro. Não há necessidade de acreditar numa ação fantasmagórica à distância.” No caso do campo elétrico, estudado por Faraday, estava-se perante uma grandeza vetorial, como se os pontos do campo estivessem ligados por elásticos: ao puxarmos um, acabamos por puxar o resto. No campo magnético, por sua vez, esses pontos ligados por elásticos são puxados na direção dos pólos. O feito de Maxwell foi criar as equações que unificaram um conjunto de leis, possibilitando que os campos elétricos e magnéticos se tornassem convertíveis entre si. Várias décadas depois, em pleno século XX, entra em cena a teoria quântica, que explica o que acontece à escala subatómica. O novo desafio passou por uni-la ao eletromagnetismo, que se manifesta entre partículas com carga elétrica e é explicável pela teoria da relatividade restrita de Albert Einstein, dando lugar à teoria quântica de campo. Basicamente, trata-se de um conjunto de princípios físicos que explicam o comportamento das partículas subatómicas e as suas interações ao longo de campos de força.
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TODAS DIFERENTES, TODAS IGUAIS
O ato seguinte, que teve lugar na década de 1970, consistiu em estender a teoria quântica de campo às forças nucleares forte (que além de formarem os protões e neutrões, os mantêm juntos, originando os núcleos atómicos) e fraca (responsável pelo decaimento radioativo). Para o conseguir, foi preciso descobrir o que tinham em comum as três forças fundamentais do universo, as duas nucleares e a eletromagnética. Verificou-se, por fim, que estão ligadas por simetrias, têm propriedades idênticas, algo a que os físicos chamam “princípio de gauge”. Um breve exemplo: um feixe de protões é acelerado contra um alvo feito de núcleos atómicos, produzindo-se, com o embate, um padrão de dispersão. Se substituirmos os protões por neutrões, mantendo iguais as condições da experiência, obtemos um padrão de dispersão quase igual ao primeiro. Conclusão: as forças envolvidas agem de forma simétrica, tanto para uma como para a outra partícula. Melhor ainda: conhecendo as simetrias, é possível determinar todas as propriedades de uma força. Este facto foi uma das mais importantes descobertas da física nos últimos cem anos. E como vieram à baila as teorias de Yang-
-Mills (sim, existem várias)? Surgiram da constatação de que podem ser criadas outras teorias de campo usando o princípio de gauge, recorrendo-se a simetrias que envolvem diferentes tipos de partículas elementares. “São teorias que estudam e descrevem a física das partículas, o modo como elas interagem”, diz Pedro Vieira. “Elas dizem-nos que partículas existem, quais as suas massas, quais as propriedades fundamentais das partículas mais pequenas que existem no universo. Constituem a teoria matemática que está por detrás de tudo isto.” Entre as teorias de Yang-Mills, há uma especial, refere o investigador português, a teoria da cromodinâmica quântica (QCD). Surgiu no início da década de 1970, quando se aplicou o princípio de gauge à força nuclear forte, descrevendo a interação entre os quarks (as partículas elementares que formam os protões e neutrões) e os gluões, a força que mantém juntos os quarks. A grande questão é que ela ainda está incompleta: “Seria fantástico se conseguíssemos resolvê-la, completamente, com a matemática que temos, mas ninguém consegue fazê-lo”, diz Vieira. Os cálculos envolvendo a QCD são tão difíceis que se tornou necessário procurar uma solução que fintasse o problema. Felizmente, existe uma versão das teorias de Yang-Mills com a qual se podem fazer cálculos bem mais simples, capazes de esclarecer partes essenciais da cromodinâmica quântica. Chegá-
Como será um mundo de cordas?
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Pioneiro. Coube ao físico e químico britânico Michael Faraday criar, na primeira metade do século XIX, o conceito de “campo”, o qual explica como uma força pode ser transferida de um corpo para outro. Depois de muitos desenvolvimentos, a ideia desembocou na teoria quântica de campos, que explica o comportamento das partículas subatómicas e as suas interações.
mos, por fim, à N=4 Supersimétrico de Yang-Mills. A existência desta dualidade, entre uma teoria mais complexa e outra mais simples, é um caso verdadeiramente interessante e intrigante.
SIGAM AS SETAS
Antes de mais, porque se diz que é supersimétrica? “A simetria existente nesta teoria, a que damos o nome de ‘supersimetria’, ainda não foi medida na Natureza. Essa é uma das coisas que o LHC está a tentar detetar”, esclarece o físico português. “De acordo com a supersimetria, um bosão (como seja um fotão ou um gluão) tem um parceiro que é um fermião (como, por exemplo, o eletrão ou o quark). Ela diz-nos que existe uma simetria que transforma o fotão num fermião, e este último de volta a um bosão. Logo, se estudarmos o que acontece com os bosões, conseguimos saber o que se passa com os fermiões, e vice-versa.”
São quatro as supersimetrias existentes na teoria (daí o N=4), “tornando-a na mais simétrica que existe”, diz Pedro Vieira. Deste número não pode passar, “senão as equações começam a tornar-se inconsistentes”. Para se ter uma pequena ideia do que está em causa, imagine que tem várias partículas à sua frente, com setas a apontar para outras: cada seta corresponde a uma simetria e diz-nos que determinada partícula pode transformar-se naquela para a qual aponta. Explicando de forma simples, o N=4 refere-se ao número de setas que existem para cada partícula, “à quantidade de maneiras diferentes que existem para relacionar as partículas”.
DIMENSÕES ESCONDIDAS
Outra faceta apelativa da teoria é estar ligada, de várias formas, a uma das grandes candidatas a ser a “mãe de todas a teorias”, capaz de descrever tudo o que existe no universo: a teoria
m dos mais fortes candidatos a ocupar o lugar de teoria fundamental – a teoria que unifica a gravidade da Relatividade Geral com o mundo subatómico da teoria quântica – é a teoria de cordas. A grande crítica que lhe é feita está no facto de as suas propostas não terem sido verificadas experimentalmente, até ao momento. Aliás, muitas delas são quase impossíveis de verificar, como é o caso das seis dimensões adicionais, pelo menos, que a teoria propõe. O seu nome deve-se à ideia de que as partículas subatómicas são formadas por minúsculas cordas que vibram. A ser real, então teremos cordas abertas, ou seja, uma linha com extremidades, e cordas fechadas, a que os físicos chamam loops. Uma partícula sem massa, como é o caso do fotão, seria descrita como resultando da vibração tanto de cordas abertas como fechadas. Já o gravitão, uma partícula elementar hipotética prevista pela teoria, e responsável pela transmissão da força da gravidade, dever-se-ia à vibração de cordas fechadas. O físico norte-americano Lee Smolin, no livro O Romper das Cordas, resume como funcionaria o jardim zoológico de partículas e forças, de acordo com a teoria de cordas: “As extremidades de uma corda aberta podem ser vistas como partículas carregadas. Por exemplo, uma ponta pode ser uma partícula carregada negativamente, como um eletrão; a outra seria, então, a sua antipartícula, o positrão, carregado negativamente. A vibração da corda sem massa, entre as extremidades, descreve o fotão, que transporta a força elétrica entre a partícula e a sua antipartícula. Assim, obtêm-se de forma similar partículas e forças a partir das cordas abertas e, se for delineada de forma suicientemente inteligente, a teoria poderá produzir todas as forças e todas as partículas do modelo-padrão.” E como se formam as cordas fechadas, isto é, como surge a gravidade? No universo, produzem-se colisões entre partículas e antipartículas, dando origem a um fotão quando se aniquilam. Segundo Smolin, e do ponto de vista da teoria de cordas, “isto é descrito pela aproximação e pela união das duas extremidades da corda; as pontas desaparecem, restando apenas um loop fechado”.
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Para estudar os quarks, usa-se a técnica da dualidade holográfica de cordas, que pretende combinar a gravidade com a teoria quântica. Tal como o nome indica, a conceção base é que existem pequeníssimas cordas que, submetidas a determinada vibração, vão corresponder a uma partícula subatómica. É como ter uma corda de guitarra que dedilhamos em diferentes zonas do comprimento, sendo que cada nota libertada equivale a uma partícula da matéria que vemos no mundo. Além disso, ela prevê que o universo tenha mais dimensões do que as quatro que conhecemos (três espaciais mais o tempo). O problema, para o comum dos mortais, é que não conseguimos ver essas dimensões adicionais. Para dar a volta ao problema, os teóricos das cordas propuseram a ideia de que essas dimensões são “invisíveis”, pois estão enroladas de uma determinada forma que nos impede de as ver. Um dos princípios da teoria de cordas é que o espaço consegue moldar-se de diferentes formas, explicando essa aparente bizarria. Em 1997, o argentino Juan Maldacena, usando as propostas da teoria de cordas, demonstrou teoricamente que eventos que ocorrem numa região do espaço-tempo com cinco dimensões, regida pela gravidade quântica (a teoria
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da gravidade de Einstein unida à teoria quântica, algo que ainda não se conseguiu), correspondem, matematicamente, a eventos que têm lugar na fronteira dessa região: a diferença é que esta zona de fronteira tem menos uma dimensão e é dominada pela teoria quântica, não estando nela presente a gravidade. Se olharmos para este cenário como se fosse uma esfera, a descoberta de Maldacena, batizada de “dualidade holográfica”, mostrou que os fenómenos que ocorrem na região interior (dentro da esfera), envolvendo a gravidade e que são passíveis de serem descritos pela teoria de cordas, são matematicamente equivalentes aos eventos que tomam lugar na zona de fronteira (a superfície), sem gravidade e explicáveis através da teoria quântica. A ideia revolucionária de Maldacena constitui, até ao momento, “a melhor maneira de perceber a gravidade quântica, um dos grandes desafios atuais da física”, diz Pedro Vieira. A cereja no topo do bolo é que a N=4 Supersimétrico Yang-Mills, com as suas quatro dimensões, corresponde, precisamente, ao que existe na zona de fronteira. Temos aqui, portanto, uma ferramenta capaz de fazer cálculos
Em busca da grande simetria Uma das tarefas do Grande Colisionador de Hadrões (LHC) é encontrar sinais de supersimetria na natureza.
mais simples sobre o que acontece ao nível da gravidade quântica, em que a matemática exigida é bem mais difícil e complexa. Tal como já se explicou, basta transcrever os problemas de um lado para o outro, onde é mais simples resolvê-los, com a solução obtida a ser convertida de volta à origem. “Resolver esta teoria de Yang-Mills é como matar dois pássaros com uma só pedra”, afirma o investigador do Instituto Perimeter. “Por um lado, a nível pragmático, ajuda-nos a aprender muito sobre as teorias de campo e de gauge, a trabalhar com a física das partículas e a desenvolver técnicas para estudar a natureza a escalas mais pequenas, técnicas essas que ainda não temos. A nível conceptual, e olhando de forma filosófica, descreve de forma holográfica uma teoria da gravidade quântica. Em física, esta ideia parece-me revolucionária.”
DOIS PROBLEMAS RESOLVIDOS
Houve dois problemas relacionados com a N=4 Supersimétrico de Yang-Mills que o físico português resolveu, levando à atribuição da medalha Gribov. Essencialmente, eram duas quantidades que precisavam de ser estudadas.
MELIRIUS
Valeu-lhe o Nobel. O norte-americano Murray Gell-Mann foi um dos dois físicos que propuseram, na década de 1960, a existência de quarks, as partículas elementares que estão na origem dos hadrões (protões e neutrões). Na década seguinte, ajudou a escrever as equações da teoria da cromodinâmica quântica, aplicando o princípio de gauge à força nuclear forte para descrever a interação entre os quarks e os gluões, a força que os mantém juntos
Uma delas diz respeito à medição dos espectros. Sabemos que os átomos têm vários níveis de energia. Quando os eletrões saltam de um nível para o outro (de uma camada para a outra), emitem fotões. A energia (luz) libertada, que mais não é do que radiação eletromagnética, pode ser analisada através de dispositivos de difração, formando-se uma espécie de banda colorida (um pouco ao jeito do arco-íris) com várias riscas, identificadoras das propriedades dos materiais que emitiram os fotões, isto é, o seu espectro. Estudar o espectro dos materiais corresponde a estudar os níveis de energia emitidos e as suas propriedades: um átomo de hidrogénio emite um determinado nível de energia, diferente do de um átomo de hélio. Outro exemplo: as lâmpadas incandescentes emitem um nível de energia que não é igual ao das fluorescentes, por serem feitas de diferentes materiais. “No contexto das teorias de campo, quando falamos do espectro, não estamos a referir-nos a algo muito diferente”, assegura Pedro Vieira. Nesta situação, o que interessa obter é o “espectro de energia da teoria; ou seja, queremos saber quais são os níveis de energia da teoria”. Explicando de forma corriqueira, se colocarmos a teoria de Yang-Mills dentro de uma caixa e analisarmos as energias emitidas, é possível medir e conhecer o seu espectro. Um dos grandes feitos do cientista português
foi conseguir escrever as equações finais, para esta teoria, que descrevem o seu espectro. Não obstante, “as quantidades mais interessantes estão relacionadas com as amplitudes de dispersão” das partículas subatómicas dentro da teoria, adianta o investigador. “Ou seja, o que acontece quando, depois de conhecermos as partículas e o seu espectro, as lançamos umas contra as outras? Isto é o equivalente a, no LHC, lançar um protão contra o outro para saber o resultado da colisão.” Esta foi outra pergunta a que o português e a sua equipa de investigadores também conseguiram dar resposta. “Foi por termos resolvido estes dois problemas, e proposto um conjunto de funções para eles, que nos foi atribuído o prémio.”
UM MUNDO FEITO NUMA LINHA
Todavia, isto sabe a pouco. Daí que, nos últimos anos, o jovem português e os seus colegas tenham estado a desenvolver um método que usa a técnica da dualidade holográfica, capaz de converter questões que fazem parte das teorias de campo a quatro dimensões (dimensões espaciais, somente) em questões ligadas às teorias de cordas bidimensionais (uma dimensão espacial mais o tempo). Tendo em conta que se está a lidar com um sistema unidimensional, houve que recorrer a uma poderosa técnica matemática, a “integrabilidade”, capaz de resolver problemas em duas
dimensões espácio-temporais. Depois, recorre-se à dualidade holográfica para transformar a solução de duas dimensões noutra a quatro dimensões. Dito assim, até parece fácil. “O intuito é arranjar uma outra forma de estudar a física de quarks que se movem em quatro dimensões, algo que é muito difícil de fazer”, diz o investigador. “A teoria quântica diz-nos que os quarks se propagam por todo o espaço ao mesmo tempo, o que obriga a estudar tudo o que acontece em simultâneo. Assim sendo, será que, em vez de estudarmos estes problemas em quatro dimensões, podemos estudar cordas e fios de energia, que são objetos unidimensionais?” A resposta final: sim, é possível. “Foi precisamente isso o que conseguimos fazer, e é aqui que entra a integrabilidade.” A ideia é que, numa só dimensão, a interação entre partículas é muito simples. Basicamente, elas estão localizadas ao longo de uma linha, pelo que, ao lançar-se uma contra outra, terão de chocar, pois não têm outra rota possível. Ao fim e ao cabo, físicos teóricos como Pedro Vieira estão a tentar dizer-nos que é possível desvendar os intricados segredos do universo através de artifícios aparentemente simples, embora tremendamente sofisticados e difíceis de conceber. Basta um bom “dicionário” e saber traduzir de uma língua para a outra. J.P.L.
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Botânica O mundo fascinante das plantas
Viver como VEGETAL H
á dias, ao folhear o jornal Público, deparei-me com as seguintes palavras do escritor Valter Hugo Mãe: “As plantas são animais sem pernas.” Apesar de saber que foram escritas por um poeta e contador de histórias, e que em literatura tudo é possível, despertou-me a curiosidade: será mesmo assim, serão as singelas plantas comparáveis aos complexos animais? Como uma ideia puxa outra, veio-me à memória uma curiosa conferência proferida pelo prof. Jorge Paiva, investigador aposentado do Centro de Ecologia Funcional da Universidade de Coimbra, há já alguns anos. O distinto botânico lembrava o paralelismo existente entre um carro e o corpo humano, mostrando que ambos usam combustíveis com hidrogénio e carbono, oriundos de seres vivos. O motor mecânico utiliza hidrocarbonetos derivados do petróleo, como a gasolina e o gasóleo, enquanto o motor biológico recorre a nutrientes obtidos através da alimentação. Os combustíveis com hidrogénio e carbono, tanto os usados pelas máquinas como os utilizados pelos seres vivos, como o homem, têm uma característica importante: oxidam-se facilmente, libertando calor, ou seja, intervêm em reações químicas exotérmicas. Nos motores, este processo chama-se “combustão” e con-
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siste numa reação entre o combustível e o comburente, geralmente o oxigénio, resultando calor e diversos produtos, libertados pelo escape, como, por exemplo, o dióxido e o monóxido de carbono e os dióxidos de enxofre e de azoto. Nos organismos vivos, denomina-se “respiração celular” (não confundir com a entrada e saída de ar dos pulmões, que se designa por “ventilação” e não por “respiração”, como se ouve amiúde). A respiração celular consiste num conjunto de reações que ocorrem nas células, mais precisamente nos organelos citoplasmáticos denominados “mitocôndrias”, que existem em todas as células eucarióticas, vegetais e animais. Estas reações podem ocorrer na ausência de oxigénio, denominando-se “respiração anaeróbia” ou “fermentação”, ou na presença de O2, tomando o nome de “respiração aeróbia”. Neste último caso, verifica-se a degradação completa de nutrientes energéticos, como a glicose ou os lípidos, obtidos através dos alimentos, na presença de oxigénio, libertando-se dióxido de carbono, água e energia química: uma parte desta perde-se na forma de calor, a restante é armazenada sob a forma de ATP (adenosina-trifosfato), para posterior utilização no metabolismo celular. Embora todos os combustíveis existentes
FOTOS: JORGE NUNES
Apesar de convivermos todos os dias com plantas, ignoramos completamente o seu modo de vida. Existe a ideia de que são insensíveis, inativas e desinteressantes, uma vez que, ao contrário dos animais, não se movem. Porém, estão em movimento permanente, evitam predadores e vizinhos, conquistam território e competem por um lugar ao sol. Um mundo pacífico?
Entre dois mundos. As plantas vivem literalmente entre o céu e a terra: enquanto os ramos e as folhas crescem para cima, em direção ao irmamento e à luz, as raízes medram em sentido oposto, afundando-se no solo e fugindo da claridade.
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Notícias do reino
M
Por dentro. Ao microscópio, é possível observar os tecidos constituintes de uma raiz: de fora para dentro, a epiderme (que reveste o órgão), o córtex (numa posição intermédia) e o cilindro central (onde surgem, de forma intercalada, os vasos condutores da seiva: xilema e loema).
A cafeína é um pesticida natural que paralisa e mata os insetos sejam de origem biológica, incluindo o petróleo e o carvão, nem todos têm o mesmo rendimento energético. Por exemplo, um litro de petróleo gera tanta energia como cem pares de mãos durante vinte e quatro horas. Esta foi, aliás, a principal razão porque, desde a Revolução Industrial, a força humana tem vindo a ser progressivamente substituída pelas máquinas que funcionam com combustíveis fósseis.
ANIMAIS SEM PERNAS
“A vida é uma forma de energia autorreplicável”, continuou Jorge Paiva no seu tom eloquente. É por isso que os motores biológicos precisam de um outro combustível de que os motores mecânicos não necessitam, uma vez que, além de funcionarem, têm a particularidade de crescerem e de se multiplicarem, o que não acontece com as máquinas. Esse crescimento, resultante da renovação e da multiplicação celular, exige, além de carbono e hidrogénio, a presença de azoto, ou seja, de proteínas. O problema é que o azoto, embora essencial para o crescimento dos seres vivos, é muito tóxico. Assim, “enquanto os motores mecânicos só necessitam de um tubo de escape, os animais exigem dois: um para expelir as fezes (com resíduos resultantes da chamada ‘combustão normal’) e outro para expulsar a urina (rica em substâncias azotadas tóxicas, como a ureia, o ácido úrico e o amoníaco)”, lembrou o palestrante.
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E as plantas? Também crescem, as suas células também se dividem, precisam de proteínas… Como expulsam o excesso de azoto? “Nas plantas, os tubos de escape não são tão óbvios, mas existem”, brincou o botânico. “Os resíduos tóxicos azotados, resultantes da fisiologia vegetal, são expulsos através, por exemplo, do caule e das folhas, sob a forma de alcaloides.” O mais curioso, porém, é que essa “urina vegetal” (leia-se: os alcaloides) é muito procurada e apreciada pelos humanos. Para quê? Entre outras coisas, para fins farmacológicos e culinários, pois são os alcaloides que conferem às plantas as suas propriedades medicinais e aromáticas. Por exemplo, a cafeína (que, ao contrário do que muita gente pensa, não existe apenas na planta do café, mas está presente em muitas outras espécies botânicas), é uma substância idêntica à xantina: um composto orgânico encontrado na urina humana, que lhe confere a sua cor amarela. Sendo o café uma bebida tão apreciada por milhões de pessoas em todo o mundo, o que poucos saberão é que a função da cafeína nos organismos vegetais que a produzem é, entre outras, atuar como uma espécie de pesticida natural, paralisando e matando determinados insetos fitófagos, ou seja, que se alimentam de vegetais. “É por isso que determinados produtos vegetais e medicamentos, mesmo que naturais, quando consumidos em doses excessivas, são
uitos leitores lembram-se de ter estudado que as algas (verdes, castanhas e vermelhas) faziam parte do reino das Plantas, sendo denominadas “plantas aquáticas”. Hoje, porém, os cientistas, de um modo geral, defendem que fazem parte do reino Protista, onde se incluem também os protozoários, como as amibas e as paramécias, e os mixomicetes, semelhantes a fungos. Esta mudança de reino ficou a dever-se, entre outras razões, ao facto de serem unicelulares ou apresentarem uma multicelularidade com baixo grau de diferenciação. Segundo os paleobotânicos, foi a partir das algas marinhas que começaram a sobreviver fora de água, acabando por colonizar os terrenos emersos (no Ordovícico, há aproximadamente 450 M.a.), que evoluíram as primeiras plantas. Esses primeiros vegetais terrestres tinham, no entanto, uma enorme limitação, que os impediu de se expandirem muito para além das margens dos mares, rios, lagos e pântanos: eram altamente dependentes da água. Além de necessitarem dela para a sua reprodução, também não possuíam tecidos condutores (daí serem denominadas “plantas não vasculares”) nem verdadeiras raízes. Tinham apenas rizoides, uns pelinhos que as ixavam tenuemente ao substrato, mas que não intervinham na absorção de substâncias minerais e água. Portanto, estas plantas primitivas formavam simplesmente extensos tapetes verdes, constituídos por um grande número de indivíduos juntos, que retinham água e não iam além de um palmo de altura. Curiosamente, algumas ainda persistem entre nós, fazendo parte de um grupo botânico conhecido como “brióitas”, em que se incluem os musgos e as hepáticas. Só mais tarde (há cerca de 360 M.a), haveriam de surgir as pteridóitas, como os fetos e as cavalinhas. Estas eram muito mais evoluídas, pois usufruíam de um sistema vascular e de verdadeiras raízes, o que lhes permitia uma melhor ixação e captação de água subterrânea. Com estes novos apetrechos, puderam ocupar os lugares mais secos, longe dos ambientes aquáticos (embora continuassem dependentes da água para a fecundação), elevar-se em direção aos céus e originar as primeiras lorestas, tão densas e luxuriantes que ainda hoje continuamos a usar os seus restos vegetais fossilizados sob a forma de carvão mineral. As pteridóitas não produzem lores, frutos e sementes, sendo consideradas as plantas vasculares mais antigas. Isto porque possuem tecidos condutores especializados, como o xilema, onde circulam a água e os sais minerais captados do solo, e o loema, que transporta as substâncias orgânicas
As brióitas (como o musgo, na imagem) são os últimos descendentes das algas que outrora cobriram o mundo.
produzidas nos órgãos fotossintéticos. Mais tarde (há aproximadamente 300 M.a.), surgiram as coníferas (outrora conhecidas como “gimnospérmicas”), como o pinheiro, que, ao desenvolverem a fecundação independente da água e ao produzirem sementes, tomaram deinitivamente o ambiente terrestre. Tinham, no entanto, um calcanhar de Aquiles: os óvulos e as sementes estavam ainda muito desprotegidos. Se olharmos com atenção para um pinheiro, podemos veriicar que não possui lores, mas estruturas reprodutoras denominadas “estróbilos” ou” cones”. Na parte feminina, os óvulos encontram-se a descoberto, abrigados apenas por uma pequena escama (que funciona como um ovário aberto). A separar as escamas ovulares, existem folhas modiicadas, conhecidas por “brácteas”. Cada uma destas escamas equivale a uma lor feminina, mas muito incompleta, pois não possui as sépalas e as pétalas típicas das lores atuais. O conjunto das “lores” femininas forma o cone feminino, que constitui uma espécie de inlorescência. A parte masculina surge noutros ramos e ostenta grupos de escamas amarelas, que constituem cones masculinos, onde é produzido o pólen. A polinização faz-se pelo vento (anemóila) e, após a fecundação, cada óvulo origina uma semente. A escama ovulífera torna-se lenhosa (formando uma asa típica, que facilita a dispersão) e constitui o pericarpo, que suporta a semente. Como esta não está encerrada no interior do pericarpo, encontra-se mais vulnerável. Impõe-se lembrar algumas curiosidades das coníferas, como a sua capacidade para produzir resina, um exsudado natural que serve para
proteger as plantas contra agressões do meio, como fungos patogénicos e insetos itófagos. Essa substância é composta por duas frações: uma volátil, a terebentina, e outra não volátil, o breu ou pez. Ambas têm inúmeras aplicações industriais, incluindo a produção de borrachas sintéticas, colas, materiais adesivos e à prova de água e tintas, entre outros. Além disso, as coníferas detêm inúmeros records, como sejam o do ser vivo mais antigo do mundo (um abeto-vermelho sueco, com 9500 anos) e de maiores dimensões (uma sequoia-gigante californiana, com 88 metros de altura, 32 m de perímetro, cerca de 1500 metros cúbicos de volume e 6000 toneladas de peso estimado, acumulados ao longo de 2500 anos de idade). Todavia, para que o objetivo de chegar a todo o lado fosse plenamente atingido pelas plantas, surgiram as angiospérmicas (há cerca de 130 M.a.), responsáveis pelo derradeiro marco evolutivo do reino vegetal: o aparecimento da lor, que passou a proteger condignamente os óvulos e as sementes. Foi esse pequeno apêndice que contribuiu para mudar a face da Terra. O mundo, até aí exclusivamente verde, dominado pelas pteridóitas e coníferas, transformou-se, de súbito, numa realidade a cores. As lores resultam de folhas altamente modiicadas que se especializaram num objetivo essencial: a reprodução sexuada. Assim, uma lor típica completa é constituída por dois tipos de órgãos: os de proteção e os de reprodução. Nos primeiros, incluem-se o cálice, conjunto de sépalas, geralmente de cor verde, e a corola, grupo de pétalas, habitualmente coloridas. Nos segundos, verdadeiramente reprodutivos, encontramos o estame, que é o órgão reprodutor
masculino, formado pelo ilete e pela antera (onde se produzem os grãos de pólen), e o carpelo, órgão reprodutor feminino, constituído pelo estigma, pelo estilete e pelo ovário (onde se encontra guardado o óvulo). A existência de carpelos é a característica básica e distintiva de todas as angiospérmicas, funcionando estes como pequenos cofres, onde são guardados os gâmetas femininos (as oosferas), bem acondicionados no interior dos óvulos. Porém, de pouco vale guardar bem os óvulos se eles não puderem ser fecundados pelos gâmetas masculinos (anterozoides, transportados pelos grãos de pólen), de modo a originar as sementes que irão assegurar a geração seguinte. Os grãos de pólen (que carregam os gâmetas masculinos) são um truque evolutivo da maior importância no reino vegetal, pois permitem que as plantas tenham relações sexuais à distância e que indivíduos distantes se reproduzam. Os paleobotânicos acreditam que o seu aparecimento, há 375 M.a., altura em que terá ocorrido também a primeira polinização, foi um dos segredos do sucesso das gimnospérmicas e das angiospérmicas em meio terrestre. A polinização pelo vento é característica de algumas plantas, como a bétula, o salgueiro, a azinheira, a oliveira e as gramíneas, entre outras, mas, há cerca de 100 M.a., as lores começaram a desenvolver pétalas coloridas e vistosas que chamaram a atenção da bicharada. Num abrir e fechar de olhos (em termos geológicos, claro), muitas criaturas esfomeadas foram atraídas pelas fragrâncias e tornaram-se parceiros indissociáveis das plantas com lor. Foi como se dois reinos celebrassem um acordo de cooperação: eu dou-te néctar e tu espalhas o meu pólen. Sem os veículos de transporte de pólen (insetos polinizadores), não haveria muitas das hortaliças que conhecemos, como couves, cenouras, feijões, abóboras, tomates e beterrabas, ou dos frutos, como maçãs, peras, pêssegos, melões e morangos, entre muitos outros. Não teríamos amêndoas, algodão, linho, girassol, café e chocolate, nem vinho (a lor da videira também é polinizada por insetos) e leite, pois as vacas alimentam-se de forragem constituída essencialmente por luzerna, trevo-branco e outras herbáceas dependentes da polinização entomóila. Os especialistas garantem que não morreríamos de fome, mas, sem os insetos polinizadores, o nosso regime alimentar teria de ser bem diferente: limitado a vegetais cujo pólen é transportado apenas pelo vento. Não seria apenas a alimentação a modiicar-se, mas toda a nossa vida.
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Devoradoras de carne
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Génese. As algas verdes, como a espirogira (na foto), também conhecidas por cloróitas, são consideradas as precursoras das plantas terrestres. Tal como as plantas, apresentam cloroilas a e b e carotenoides, amido como substância de reserva e paredes celulares com celulose.
O sistema circulatório das plantas é mais eficaz do que o dos animais tóxicos.” Por incrível que pareça, “estamos a consumir os produtos nocivos que as plantas rejeitam”, concluiu Jorge Paiva. Não se pense, porém, que as semelhanças entre plantas e animais se ficam apenas pelo sistema excretor, nomeadamente pela eliminação de azoto. As plantas também possuem um sistema circulatório, ou seja, tubos de transporte: o lenho (xilema) e o líber (floema), que transportam a seiva bruta e a seiva elaborada, respetivamente. O xilema é o principal tecido vegetal (constituído por diferentes tipos de células: tracoides, elementos de vaso, fibras e células parenquimatosas), que sustenta a planta e conduz água e sais minerais das raízes até às folhas. O floema (composto por distintos tipos de células: células do tubo crivoso, de companhia, de parênquima e fibras), por seu lado, está encarregado de levar os solutos orgânicos (seiva elaborada, geralmente, produzida pelas folhas, durante a fotossíntese), através do caule até à raiz e aos órgãos de reserva. O mais interessante, no entanto, é que, de certo modo, os vasos vegetais acabam por ser muito mais eficazes do que os das espécies animais. Os animais morrem frequentemente por entupimento dos seus vasos (acidentes vasculares), pois são incapazes de os substituir, ou seja, têm de viver com a mesma “canalização” desde o nascimento até à morte. As plantas, ao invés, “renovam-nos duas vezes por ano”, lembrou Jorge Paiva.
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Além disso, algumas plantas possuem sistemas vasculares compartimentados, o que lhes permite que algumas partes da sua estrutura continuem vivas, enquanto outras vão morrendo. Por esta razão, e por produzirem compostos defensivos que combatem a ação de parasitas e bactérias, os vegetais podem ter uma longevidade muito superior à dos animais, conhecendo-se exemplares com mais de 9500 anos. É o caso de um abeto-vermelho (Picea abies) encontrado, em 2008, na Suécia, considerado o ser vivo mais antigo do mundo: nasceu logo após o fim da última idade do gelo.
MATUSALÉNS VEGETAIS
Anteriormente, esse título era atribuído a um pinheiro (Pinus longaeva), que, evidentemente, não recebeu esse nome científico por acaso: longevo significa que tende a chegar a uma idade excessivamente avançada. Um dos exemplares, existente no Bosque de Matusalém, localizado na Floresta Nacional de Inyo (Califórnia), atinge os 4765 anos de idade. Quando essa árvore nasceu, ainda faltavam 2750 anos para o nascimento de Cristo, ou seja, estava-se no calcolítico, um período em que o homem só fazia construções megalíticas (edificações com grandes pedras), como as antas. Em território luso, as árvores mais antigas são oliveiras: um exemplar com 2850 anos, existente em Santa Iria de Azoia (Loures), e outro com cerca de 2210 anos, localizado em Pedras d’El Rei (Tavira). O espécime mais velho
reino vegetal está cheio de excentricidades. Possivelmente, nenhuma supera a das plantas carnívoras, que inverteram a ordem natural das coisas e transformaram os tradicionais predadores em presas. Quando falamos de “presas”, referimo-nos, obviamente, a pequenos animais invertebrados, sobretudo insetos (daí estas plantas também serem conhecidas por “insetívoras”), aracnídeos e crustáceos, e, ocasionalmente, anfíbios e pequenas aves e mamíferos, como roedores. Apesar de livros e ilmes de icção cientíica mostrarem, amiúde, plantas famintas e traiçoeiras capazes de devorarem seres humanos, na realidade, não há registo cientíico de que tal tenha alguma vez acontecido, e a razão é muito simples: nenhum destes vegetais possui os poderosos tentáculos sugadores de sangue apregoados pelo imaginário popular desde tempos imemoriais, nem tamanho para “abocanhar” uma pessoa. As plantas carnívoras têm, geralmente, algumas dezenas de centímetros, podendo chegar, no máximo, a dois metros de altura. Porém, mesmo nestes casos, exibem um aspeto completamente inofensivo, que nada tem a ver com monstros aterrorizadores ou majestosas árvores tentaculares, de apetite insaciável, a fazer lembrar hidras de sete cabeças. O que é preciso, então, para uma planta ser considerada “carnívora”? De um modo simples: possuir a capacidade de atrair, capturar e digerir as suas presas, que são, sobretudo, insetos. Ora, como as plantas não podem perseguir os animais, resta-lhes ser ardilosas e atraí-los até si. Com esse propósito, costumam usar as cores vivas das folhas, o brilho das mucilagens e os mais eicazes de todos os chamarizes: odores adocicados e putrefactos. Contudo, não basta atrair os bichos, é necessário possuir armadilhas eicazes para os aprisionar. As mais simples e passivas são imóveis, constituídas habitualmente por substâncias pegajosas, tipo papel mata-moscas, onde icam presos os insetos. As mais elaboradas e ativas apresentam movimento, fazendo lembrar ratoeiras, como acontece com a famosa papa-moscas (Dionaea muscipula), comercializada nos quatro cantos do mundo como planta ornamental. A capacidade de digerir as presas é a derradeira característica para que uma planta receba o carimbo de “carnívora”, isto porque necessita de absorver o seu azoto. Por que razão estas plantas não absorvem os compostos azotados pela raiz, como acontece com as restantes espécies botânicas? Simplesmente, porque não podem, pois habitam em solos oligotróicos (pobres em nutrientes minerais, sobretudo azotados),
A orvalhinha é uma das plantas carnívoras mais conhecidas de Portugal. Após o contacto, os pelos envolvem a presa.
como as zonas pantanosas e as turfeiras. Assim, a sua espantosa capacidade de atrair, capturar e digerir animais não passa de uma notável adaptação nutricional, que lhes permite sobreviver em locais com poucos nutrientes, onde a falta de oxigénio (condições anaeróbias) e o meio ácido e húmido (características das zonas pantanosas) diicultam a decomposição da matéria orgânica, tornando a formação do húmus um processo lento. Diversos estudos têm demonstrado que a nutrição heterotróica aumenta o crescimento e o desenvolvimento destas plantas e, em algumas espécies, parece ser essencial para que ocorra a loração. Portanto, pode dizer-se que o carnivorismo nas plantas corresponde a um complemento nutritivo, pois todas as carnívoras são autotróicas, ou seja, sintetizam o seu próprio alimento através da fotossíntese. O mais curioso, porém, é que o carnivorismo vegetal não é uma característica de um determinado grupo botânico, mas encontra-se em diversas ordens e famílias. Até ao momento, já foi identiicado em mais de seiscentas espécies, que se distribuem pelos cinco continentes, sendo a Austrália o local onde existe maior variedade especíica (alberga cerca de um terço das espécies conhecidas). Esta singular adaptação terá surgido, durante o Cretácico (há cerca de 65 milhões de anos), por um processo de evolução convergente, em que diferentes plan-
tas ancestrais (oriundas de distintos lugares do planeta) terão desenvolvido a mesma capacidade de se “alimentarem” de animais. No território português, existem oito espécies de plantas carnívoras espontâneas. A mais famosa é o pinheiro-baboso, orvalho-do-sol ou erva-pinheira-orvalhada (Drosophyllum lusitanicum), em alusão ao facto de estar coberta por gotas brilhantes de mucilagem que faz lembrar orvalho. A sua importância é reconhecida internacionalmente, pois, para além de estar coninada a Portugal, ao sul de Espanha e a Marrocos, possui uma particularidade que a distingue das restantes carnívoras: ocorre somente em solos secos, arenosos ou xistosos, quando todas as outras surgem em zonas húmidas. O pinheiro-baboso possui folhas verdes, alongadas e cobertas por pelos glandulosos vermelhos, geralmente recobertos por mucilagem pegajosa, que exala um odor característico a mel, muito eicaz na atração de insetos. Ao pousarem sobre a planta, estes icam aprisionados na mucilagem (armadilha viscosa que funciona como o papel apanha-moscas), são digeridos pelas enzimas proteolíticas e absorvidos em poucos dias. Na época da loração, ostenta lores de pétalas grandes e amarelas. Todavia, as plantas carnívoras mais conhecidas do nosso país são, com certeza, as orvalhinhas, também denominadas “dróseras”, “orvalhos-
-do-sol” ou “rorelas”. São pequenas plantas de zonas húmidas ou pantanosas, que atingem, no máximo, vinte centímetros de diâmetro. Apresentam as folhas constituídas por um pecíolo relativamente comprido, terminando num limbo verde, aproximadamente arredondado (Drosera rotundifolia) ou oblongo (D. intermedia), cuja página superior se encontra coberta por numerosos pelos viscosos. Logo após o contacto com a presa, geralmente pequenos insetos que pousam sobre as folhas, os pelos começam a curvar-se de modo a envolver a preciosa “refeição”. Segue-se a ação das enzimas digestivas, que são libertadas pelas glândulas, e a absorção dos produtos assimiláveis. Findo todo este processo digestivo, os pelos e a folha retomam a posição inicial. Na época da loração (maio a setembro), apresentam inlorescências suportadas por hastes que se erguem da parte central da roseta de folhas. As pinguícolas (Pinguicula lusitanica e P. vulgaris) costumam aparecer associadas às orvalhinhas, pois possuem as mesmas exigências ecológicas: surgem, habitualmente, em turfeiras ácidas, charnecas e prados húmidos. São pequenas plantas, com raízes pouco desenvolvidas, que apresentam rosetas de folhas aplicadas ao solo, do centro das quais emerge, na época da loração (maio a julho), uma haste que suporta uma única lor (violácea, na espécie vulgaris, e amarelada, na espécie lusitanica). As folhas são geralmente de cor verde-clara, com as páginas superiores revestidas por glândulas que produzem mucilagem pegajosa, e exibem os bordos ligeiramente enrolados. Após sentir a presença dos insetos a debaterem-se para se libertarem do visco que os mantém aprisionados, inicia-se o enrolamento das folhas, de modo a envolvê-los melhor nas enzimas digestivas. As presas parecem ser atraídas para estas armadilhas através do intenso odor a cogumelos putrefactos exalado pela planta. Os representantes mais excêntricos das plantas carnívoras portuguesas são, sem dúvida, as utriculárias (Utricularia subulata, U. gibba e U. australis). Para as encontrar, não basta procurar em zonas húmidas, mas é necessário que estejam imersas, pois estes vegetais são aquáticos, habitando em lagoas, charcos, açudes e outras águas paradas. Por este facto, são desprovidos de raízes e possuem um caule muito ino sobre o qual se inserem formações foliáceas e pequenas vesículas ou utrículos, que constituem armadilhas altamente especializadas, com as quais capturam pequenos insetos e crustáceos aquáticos, em milésimos de segundo.
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Todos os animais dependem das plantas do país é verdadeiramente monumental: o perímetro da sua base mede 10,15 metros, a altura chega aos 4,40 metros e a copa tem 7,60 por 8,40 metros.
SERES AUTOTRÓFICOS
Até ao momento, temos feito diversas comparações entre os animais e a as plantas. Porém, os vegetais são organismos tão singulares que valem por si mesmos. Aliás, para dizer a verdade, todos os animais dependem dos vegetais, direta ou indiretamente. Uma coisa é certa: se nunca tivesse havido plantas, a Terra seria um planeta muito diferente e, hoje, viveriam cá, provavelmente, apenas bactérias primitivas. Se perguntar a qualquer pessoa de que se alimentam as plantas, ouvirá, certamente, respostas como “solo”, “água”, “sais minerais” e “adubo”, absorvidos pela raiz, uma vez que as pessoas sabem que as plantas ornamentais lá de casa não resistem muito tempo se não forem regadas e adubadas. Porém, por incrível que pareça, as plantas não se alimentam disso, pois são seres singulares, com a capacidade especial de produzirem o seu próprio alimento, através da fotossíntese. Então, isso significa que as plantas não necessitam do solo, da água e dos sais minerais para o seu crescimento? Nada disso, todos estes elementos são essenciais, mas não lhes podemos chamar “alimentos”, uma vez que “nutrição” e “alimentação” não são palavras sinónimas. Além disso, o modelo de alimentação dos animais não se pode aplicar aos vegetais, uma vez que usam mecanismos diferentes para obtenção de matéria, nomeadamente de matéria orgânica (que é, simultaneamente, fonte de energia, permitindo a realização de reações químicas características da vida). Os animais são seres heterotróficos, isto é, requerem, para elaborar as suas próprias moléculas, substâncias orgânicas já formadas por outros organismos. Assim, costumam ingerir o alimento e submetê-lo a um processo digestivo em que substâncias complexas são transformadas noutras mais simples, capazes de serem absorvidas e assimiladas pelas células. Ao invés, os vegetais são seres autotróficos, ou seja, conseguem elaborar matéria orgânica a partir apenas de substâncias minerais. Por tudo isto, não é correto dizer que as plantas retiram o seu sustento do meio, quando, na verdade, recolhem apenas substâncias inorgânicas que irão utilizar na produção do seu próprio alimento.
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O solo é, assim, importante para suprir os vegetais com fatores de crescimento, para permitir o desenvolvimento e a fixação de raízes e para possibilitar o movimento de nutrientes minerais, de água e de ar através das superfícies radiculares. Contudo, é possível cultivar plantas sem utilizar solo: são as chamadas “culturas hidropónicas”. Neste caso, usam-se meios inertes (gravilha, areia, serradura, perlite ou vermiculite, entre outros) ou simplesmente água (considerado o meio hidropónico por excelência). Maribela Pestana e Pedro Correia, professores da Universidade do Algarve, esclarecem que, qualquer que seja o sistema (substrato sólido ou líquido), haverá sempre necessidade de adicionar uma solução contendo todos os elementos nutritivos essenciais ao desenvolvimento da planta. As plantas formam e mantêm as suas estruturas celulares, crescem e reproduzem-se de acordo com os elementos minerais que encontram no solo. O fósforo, por exemplo, é um elemento químico que surge como constituinte de compostos orgânicos (ácidos nucleicos, enzimas, fosfolípidos e ATP). Ora, como a molécula de ATP é a fonte de energia para as células, quando o fósforo escasseia no solo, desenvolvem-se áreas necróticas (mortas) nas folhas e reduz-se o crescimento caulinar e radicular, uma vez que as células não dispõem de
energia para realizarem o seu metabolismo. A deficiência deste elemento pode ser percebida quando as folhas jovens surgem escuras ou verde-azuladas e as mais velhas avermelhadas ou arroxeadas. O azoto, considerado o principal agente do crescimento das plantas, também surge na composição dos ácidos nucleicos, além de estar presente noutros importantes compostos orgânicos, como a clorofila e as proteínas. Assim, a falta de compostos azotados absorvíveis no solo retarda o crescimento e leva à clorose foliar (amarelecimento das folhas), entre outras mazelas.
FÁBRICAS DE ALIMENTO
Os primeiros organismos simples dos quais descendem as plantas atuais apareceram, nos oceanos primitivos, há cerca de 3000 milhões de anos. Eram constituídos por uma única célula, semelhante à das atuais bactérias, com uma capacidade ímpar: conseguiam fazer fotossíntese, ou seja, geravam o seu próprio alimento e libertavam oxigénio, que se foi acumulando na atmosfera. Apesar de esses seres bacterianos fotossintéticos ainda existirem, na atualidade, e continuarem a encher a atmosfera de oxigénio, é nas plantas superiores que se encontram organelos celulares (cloroplastos) e órgãos (folhas) especializados na realização da fotos-
Toma lá, dá cá. As plantas são o sustentáculo de toda a vida. Como têm a capacidade única de produzir o seu próprio alimento, estão na base de todas as cadeias alimentares. Por outro lado, as plantas com lor precisam de animais (principalmente insetos) que lhes carreguem o pólen e as fertilizem.
ser polimerizada em glícidos mais complexos, como, por exemplo, a celulose e o amido. Os compostos orgânicos produzidos costumam ser utilizados pela planta na construção dos seus próprios tecidos ou no seu metabolismo celular, podendo também ser armazenados em órgãos de reserva (geralmente, estruturas volumosas e intumescidas), como bolbos, bolbilhos, cormos, tubérculos, rizomas e cladónios (caules que se assemelham a folhas suculentas). Assim, não é de admirar que o homem, e muitos outros animais, utilizem estas estruturas vegetais na sua dieta alimentar, uma vez que são muito ricas em nutrientes.
PLANTAS SEM CLOROFILA
síntese. Recorde-se que, nas bactérias, os pigmentos fotossintéticos (bacterioclorofila) e as enzimas encontram-se em expansões da membrana plasmática ou em singelas lamelas internas, como acontece nas cianobactérias (que possuem como pigmentos, além das ficobilinas, a clorofila a). Nas plantas, as folhas são verdadeiras fábricas de alimento (matéria orgânica), porque são os principais órgãos fotossintéticos, ainda que, por vezes, a tarefa possa também ser partilhada pelos caules. Esta missão, comum às folhas de todas as plantas, torna-as bastante semelhantes na estrutura, ainda que possam ser extremamente diferentes na forma. De um modo geral, todas possuem cloroplastos (cada célula pode conter 50, enquanto que num milímetro quadrado de folha podem encontrar-se 500 mil), organelos celulares delimitados por uma dupla membrana, em que a mais interna se invagina formando sáculos: os tilacoides. Na superfície destes tilacoides, encontram-se enzimas e pigmentos fotossintéticos, como as clorofilas a e b e carotenoides (xantofilas e carotenos), encarregues de captar a luz solar e de a transformar em energia química. Os tilacoides encontram-se mergulhados numa matriz semifluida, o estroma, no qual podem surgir grânulos de amido, gotículas lipídicas e ribossomas, e que é o local onde ocorrem as
reações fotossintéticas independentes da luz. A fotossíntese é um processo muito complexo, que compreende duas fases complementares: a fase fotoquímica (cujas reações dependem diretamente da luz), ao nível dos tilacoides, em que a energia luminosa absorvida pelos pigmentos é transformada em energia química (que a planta utilizará como “combustível”, na fase subsequente), libertando-se oxigénio proveniente das moléculas de água; e a fase química (não dependente diretamente da luz), ao nível do estroma, em que o dióxido de carbono é fixado e, em consequência de uma série de reações cíclicas, ocorre a produção das moléculas orgânicas, como a glicose. Vale a pena destacar que a fotossíntese existe com este propósito e não para produzir oxigénio, como se ouve dizer amiúde. Graças à fotossíntese, as plantas conseguem produzir o seu alimento (matéria orgânica) a partir simplesmente de energia luminosa, dióxido de carbono e água. Embora se considere a glicose (um açúcar simples) como produto final da fotossíntese, na verdade, são também sintetizados outros compostos orgânicos, sobretudo a partir de substâncias intermediárias do ciclo de Calvin (que ocorre na fase química), como aminoácidos, que farão parte das proteínas, e os ácidos gordos e o glicerol, que irão originar os lípidos. Além disso, a glicose pode
Apesar de os organismos pertencentes ao reino das plantas serem, geralmente, fotossintéticos, ou seja, produzirem o seu próprio alimento através da fotossíntese, há algumas exceções curiosas. Por exemplo, as espécies da família Orobanchaceae não possuem clorofila e vivem como parasitas das raízes de outros vegetais, retirando daí os nutrientes necessários à sua sobrevivência. Para se ter uma ideia do seu aspeto, atentemos na sua descrição botânica: “São ervas anuais, bianuais ou perenes, com folhas reduzidas a brácteas, dispostas helicoidalmente ao longo de caules habitualmente ocos; flores hermafroditas, tubulares ou campanuladas e zigomórficas, dispostas ao longo de cachos (por vezes ramificados) apicais; androceu com quatro estames dispostos em dois verticilos; ovário súpero, bicarpelar e uniloculado, plurispérmico; fruto em forma de cápsula.” Em Portugal, estão confirmadas, pelo menos, 16 espécies de orobancáceas autóctones, sendo uma das mais conhecidas a Orobanche rapum-genistae, que o povo denomina por “erva-toira-grande”, “erva-toira-maior”, “erva-toira-maior-folhosa”, “genistão”, “rabo-de-raposa” ou “rabo-de-zorra”, conforme a região do país. Surge sobretudo em matos e matagais (giestais, tojais, piornais) e orlas de bosques, parasitando leguminosas arbustivas dos géneros Cytisus, Ulex e Genista. Também existe a erva-toira-menor, erva-toira-pequena ou orobanca (O. minor), que aparece em prados, pastagens, matos e bosques, parasitando os trevos (Trifolium) e outras leguminosas herbáceas. Enfim, o mundo vegetal é interessante e cheio de surpresas: se nos parece frequentemente monótono e aborrecido, é só porque não aprendemos ainda a conhecê-lo. J.N.
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Saúde Detetar cancros em 90 minutos
A imbatível MIRIAM O engenheiro informático mexicano Jorge Soto inventou a Miriam, uma técnica que identifica as marcas bioquímicas de vários tumores malignos em apenas hora e meia, com base no plasma sanguíneo. A sua invenção poderá salvar milhões de vidas.
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nas se encontrava nas células) e que determinadas combinações dessas moléculas com outras indicam se há alguma lesão num órgão, o que as transforma num biomarcador muito mais sensível do que outros (como, por exemplo, as proteínas, que servem, entre outras coisas, para conhecer o risco de desenvolver certos tumores). “Uma análise de ADN revela se se possui o gene que codifica determinada proteína, mas o micro-ARN avisa-nos se ele foi ativado ou não. Por outras palavras, a genética adverte que se pode desenvolver um tumor, enquanto o exame do micro-ARN dita se já se tem o cancro”, esclarece Soto. Como o miARN diz às proteínas quando se têm de formar, ter acesso às manifestações dessa substância significa conhecer a presença da doença antes de ela se fazer anunciar através de sintomas. Contudo, a sua utilidade não se restringe ao diagnóstico precoce. O micro-ARN também nos informa sobre a velocidade a que a doença avança, em função da intensidade da sua presença no sangue. Por isso, o acompanhamento da evolução destas moléculas permitiria saber como está a funcionar um tratamento, e modificá-lo caso fosse necessário.
O GRANDE DESAFIO
Na posse de todo este conhecimento, restava a Soto e à sua sócia enfrentar o maior desafio: desenvolver um mecanismo rápido e barato com capacidade para localizar o microácido ribonucleico delator.
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ada de mamografias, biópsias ou outros exames incómodos. A Miriam apenas precisa de uma simples amostra de plasma para descobrir a presença de dezenas de doenças (incluindo vários tipos de cancro) antes de surgirem os sintomas e ser, frequentemente, demasiado tarde. Nascida na Califórnia, a Miriam deve a sua existência à empresa Miroculus. Um dos seus jovens pais é Jorge Soto, um engenheiro e empreendedor mexicano distinguido pelo Instituto Tecnológico do Massachusetts (MIT) como um dos que mais se destacavam na categoria de inovadores com menos de 35 anos, em 2012. Nessa altura, Soto impulsionara várias iniciativas para favorecer a comunicação online entre cidadãos e governantes, mas decidiu mudar de registo quando conheceu Foteini Christodoulou, uma investigadora de origem grega. O que os uniu foi o micro-ARN (miARN), um tipo de ácido ribonucleico descoberto em 1993 e que a cientista estudava há mais de oito anos. O importante papel da pequena molécula, que participa decisivamente na regulação da atividade dos genes através de diversos processos, mostrou-lhes o caminho para detetar a presença de muitas doenças através da conjugação da especialização de cada um: a biologia molecular e a engenharia informática. Graças a descobertas recentes, Soto e Christodoulou sabiam que o micro-ARN circula pelo sangue (anteriormente, pensava-se que ape-
MIROCULUS MIROCULUS
Simples, rรกpido e barato Jorge Soto fundou a Miroculus em 2013, com o objetivo de acelerar o diagnรณstico de diversos cancros e outras doenรงas. Dois anos depois, a Miriam consta de uma placa com 96 poรงos (em cima), onde se coloca uma gota de plasma do paciente, e de um forno que proporciona a temperatura e a luz adequadas (em baixo, cortado). Um telemรณvel fotografa o resultado.
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Passados os exames em laboratório, tem agora de ser testado nos hospitais
Pequeno, mas poderoso. Esta versão do protótipo permite apreciar as suas pequenas dimensões, um dos objetivos primordiais dos seus criadores. Ao reagir com o plasma sanguíneo, as substâncias químicas depositadas nos poços iluminam-se com um padrão determinado. Analisando as diversas combinações, é possível identiicar micro-ARN de uma longa série de doenças. No caso da imagem de baixo, foi detetado um cancro da próstata.
“Até agora, isso só era possível com recurso a máquinas monstruosas, que custam entre 25 e 130 mil euros e são propriedade de grandes empresas, como a Illumina e a Life Technologies”, explica Soto. Ano e meio depois, e após várias tentativas fracassadas, os fundadores da Miroculus conseguiram o milagre: a Miriam concluía o processo a um custo inferior a 150 euros. Nascia, assim, a primeira versão da sua técnica de diagnóstico, dotada de três componentes: um biológico, outro de hardware e um terceiro de software. O primeiro consiste num composto bioquímico que se combina com o plasma extraído do sangue do doente. A mistura obtida é depositada numa placa com 96 pequenos orifícios, os poços, previamente condimentados com outras substâncias que irão “iluminar-se” no caso de reação com as moléculas procuradas. A fim de se poder produzir o alerta luminoso, é necessária a intervenção de outro componente da Miriam: um dispositivo de 30 por 30 centímetros (o hardware) onde se introduz a placa. Este “forno” proporciona as condições necessárias de calor e luz que permitem aos compostos reagirem. É então que entra em ação o terceiro e último elemento: o software. Trata-se, na realidade, de uma simples aplicação para telemóvel. Depois de colocado na parte superior do “forno”, o telemóvel obtém uma foto dos poços e envia-a para a base de dados online da Miroculus, que irá verificar se a imagem é conforme à manifestação da doença, para poder avisar o utilizador. É importante confirmar que a sequência coincide com algum padrão delator. Por exemplo, se se iluminar o orifício B3, que corresponde ao micro-ARN 22 (relacionado com o cancro colorretal), será necessário encontrar na placa mais vestígios do miARN associado a essa doença. Caso contrário, estaríamos perante um falso alarme.
MARCAR A DIFERENÇA
Da extração de sangue ao diagnóstico final, passaram apenas 95 minutos. “Dispomos, assim, de um método rápido e económico que funciona com a mesma margem de certeza dos grandes dispositivos existentes, mas a uma fração do custo”, diz Soto. Além do fator económico e da grande rapidez, a Miriam possui uma terceira virtude, que é fundamental:
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Espírito de equipa . Três dos membros da Miroculus: a bioquímica grega Foteini Christodoulou, cérebro cientíico da irma, Jorge Soto e o empresário panamenho Ferrán Galindo.
a simplicidade. Para utilizar o dispositivo da Miroculus, não é preciso ser um especialista. Em contrapartida, trabalhar com as máquinas da concorrência exige a intervenção de peritos em bioinformática e micro-ARN. Na opinião do empreendedor mexicano, a facilidade de utilização da Miriam poderá marcar a diferença em países como o Brasil, o México, a China ou a Índia, os quais, como assinala Soto, não possuem um exército de cientistas especializados. A história não termina aqui. Os fundadores da Miroculus gostam de fazer as coisas de maneira diferente e decidiram pedir apenas a patente da parte bioquímica do seu inovador dispositivo. De facto, o próprio design do aparelho é disponibilizado a qualquer pessoa para que possa fabricá-lo com uma impressora 3D, em consonância com a filosofia de software livre com o qual foi concebido. Na opinião de Jorge Soto, a Miriam não é apenas um teste barato de diagnóstico: a sua capacidade para obter informação poderá ajudá-los a aperfeiçoar os algoritmos com os quais funciona. Assim, será possível identificar novas correlações bioquímicas e proporcionar uma assessoria personalizada para melhorar os tratamentos médicos.
MIL MILHÕES DE PESSOAS
O objetivo da Miroculus é ambicioso: ter impacto sobre mil milhões de pessoas daqui a dez anos. “Há estudos para aplicar a Miriam no
cancro, na diabetes, nas doenças psiquiátricas e nos problemas cardiovasculares”, adianta Soto, que confia nos avanços da genómica para ampliar o seu alcance. A verdade é que é cada vez mais fácil sequenciar a informação e perceber o que se passa no nosso corpo, a nível molecular. O grão de areia com que a Miroculus contribui para a promessa de uma medicina personalizada traduz-se em “acrescentar uma camada de informação que poderá ser muitíssimo útil para entender como os genes se exprimem e como se desenvolvem determinadas doenças”. Não é por acaso que o micro-ARN está envolvido em múltiplos processos: a apoptose (morte celular), a especialização das células em diferentes tecidos, o desenvolvimento da massa muscular, o crescimento do coração, o metabolismo do colesterol, a produção de insulina, o envelhecimento... O futuro imediato da Miriam passa pela aprovação clínica, pois já demonstrou a sua eficácia a nível científico. “Sabemos que é eficaz em laboratório, mas temos agora de demonstrar que irá funcionar quando for utilizada nos hospitais. Trata-se de um contexto mais caótico, onde há pessoal com formação diferente e que extrai sangue de diversas formas.” Por isso, os responsáveis pela Miroculus já estão a estabelecer acordos com instituições de países como o Brasil, os Estados Unidos, a Alemanha ou o Chile, que lhes permitam observar o dispositivo em meio hospitalar.
MELHORAR E APERFEIÇOAR
A tarefa manterá ocupados os fundadores da empresa nos próximos dois anos: o fator humano pode não deixar o processo resultar. Por isso, Soto, o pai tecnológico da Miriam, continua a procurar soluções para simplificar o engenho. Por exemplo, já criou uma nova versão, mais pequena e sensível, que incorpora sensores para ler os resultados, em vez de fazê-lo através da câmara do telemóvel. Contudo, o verdadeiro desafio reside na dimensão bioquímica do invento: o ideal seria obter um método que pudesse detetar o micro-ARN diretamente de uma amostra de sangue, sem necessidade de ter de manipulá-lo primeiro para extrair o plasma. Entra em cena o fator monetário. Para poder continuar a trabalhar, a equipa da Miroculus precisa de recursos. Até agora, conseguiram avançar graças a subsídios provenientes dos governos dos Estados Unidos, do Chile, da Grécia e da Alemanha, assim como à ajuda de uma organização filantrópica do México. Todavia, precisam de maior envergadura financeira. A figura-chave nesta fase é Alejandro Tocigl, o sócio chileno que se dedica às finanças da Miroculus. Tocigl e os seus colegas procuram um investimento de cerca de três milhões de euros, pelo que estão a negociar com várias empresas. Disso dependerá a sobrevivência da Miriam e, talvez, o de milhões de futuras vítimas de cancro. E.P.
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Tecnologia Primeiro fuel cell no mercado
O arranque DEFINITIVO Depois de vários anos de desenvolvimento e de algumas indecisões políticas, os automóveis a pilha de combustível estão a um passo da produção em série. O Toyota Mirai é o pioneiro na tecnologia do hidrogénio e começará a ser vendido já este ano na Europa.
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á mais de vinte anos que a indústria automóvel desenvolve as pilhas de combustível como alternativa aos convencionais motores de combustão interna e como opção aos modelos elétricos com bateria. Os protótipos, feitos por várias marcas, têm-se sucedido ao longo deste tempo, com a tecnologia a bordo cada vez mais evoluída, podendo dizer-se que, hoje, o nível a que se chegou é suficiente para equacionar a entrada em produção em série. Terá sido isso mesmo que a Toyota pensou, ao lançar o Mirai (“futuro”, em japonês) no mercado nipónico em dezembro último. Provavelmente, este será um ponto fulcral na história do automóvel, mas é justo recordar que outras marcas já tiveram programas piloto com utilização de modelos a pilha de combustível, como é o caso da General Motors e da Honda, que produziu um modelo específico para o efeito, o Honda FCX Clarity, entregue a um grupo de duas dezenas de utilizadores selecionados, nos Estados Unidos. A própria Toyota já tinha feito um trabalho experimental do mesmo tipo, no Japão, mas as ambições do Mirai são totalmente diferentes. A partir de setembro, o Mirai será o primeiro modelo a pilha de combustível a estar à venda no mercado aberto, inicialmente no Reino Unido, na Alemanha e na Dinamarca. A produção estimada para o primeiro ano é de 400 unidades, e o objetivo de 3000 unidades, para
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2017, permitirá chegar rapidamente a outros mercados europeus. Devido à especificidade da sua tecnologia, o Mirai será produzido exclusivamente na fábrica japonesa de Motomachi Flora, pelo menos numa primeira fase. Segundo os dados da Toyota, o preço anunciado para a fase de lançamento é de 66 mil euros mais IVA, o que o posiciona no segmento Premium, tendo em conta aquilo que oferece em termos de tipologia e de valores de potência e de prestações. Se, no início, é de esperar que o preço não seja um entrave, pois os primeiros compradores serão os early adopters, os entusiastas pelas novas tecnologias, é de prever que, nos anos seguintes, com o aumento do volume de produção, o preço possa descer. Seja como for, o importador da Toyota para Portugal não tem planos para a comercialização imediata do Mirai no nosso país, pela simples razão de que não existem postos públicos de abastecimento de hidrogénio. Quando essa realidade mudar, certamente que os seguidores da chamada “sociedade do hidrogénio” terão o Mirai e outros modelos fuel cell à sua disposição.
VAPOR DE ÁGUA PELO ESCAPE
De uma forma muito resumida, pode dizer-se que uma pilha de combustível funciona com oxigénio, retirado do ar atmosférico, e hidrogénio, armazenado sob pressão nos depósitos do automóvel. Da reação entre estes dois elementos, gera-se eletricidade, que é
armazenada numa bateria, e vapor de água, que é a única substância emitida pelos gases de escape. Ou seja, um veículo a pilha de combustível tem sempre zero emissões poluentes locais. Neste momento, ultrapassados que foram os problemas do armazenamento do hidrogénio, da eficácia da pilha a baixas temperaturas (está certificada para 30 graus negativos) e da gestão do sistema, aquilo que realmente tem impedido esta tecnologia de progredir mais rapidamente é a extração e a distribuição daquele que é o elemento químico mais abundante no planeta, mas que só existe combinado com outros elementos. Até agora, todo o hidrogénio produzido para vários fins, como a indústria química e outras, é obtido a partir do gás natural, ou seja, uma fonte que continua a ser fóssil, por isso não renovável, nem sequer uma alternativa realmente “limpa”. Contudo, é verdade que existem outras formas de obtenção de hidrogénio. Uma delas são as fábricas de produção de cloro,
Nem dá para um café. A rapidez do abastecimento de hidrogénio é uma grande vantagem face à recarga dos veículos elétricos, demorando apenas três minutos.
em que o hidrogénio surge como subproduto. Esta é uma das soluções encontradas para alguns postos de distribuição, na Alemanha, mas há outras fontes, que permitem o aproveitamento a partir de origens inesperadas, como o lodo dos esgotos. O grande objetivo continua ser a obtenção de hidrogénio de forma cem por cento limpa, o que implica obter energia elétrica a partir de fontes renováveis (Sol, vento, marés, barragens e outros) e usar depois essa energia para fazer a eletrólise da água e assim separar o hidrogénio. Esta cadeia implica um forte investimento em fontes renováveis, o que não tem sido feito na escala necessária, por motivos orçamentais, mas também devido à vontade dos responsáveis políticos, que têm visto maior interesse nos automóveis elétricos com bateria. Estes são muito mais simples de produzir e fáceis de colocar no mercado em pouco tempo, o que se alinha perfeitamente com os ciclos políticos da maioria dos governos. Interessante
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A Toyota abriu as patentes para facilitar o acesso à sociedade do hidrogénio A verdade é que a pilha de combustível tem várias vantagens face às mais simples baterias. As duas mais determinantes são uma maior densidade energética do hidrogénio, quando comprimido, o que permite gerar energia capaz de alimentar o motor elétrico do automóvel durante muito mais quilómetros. Contra um máximo de 200 km dos automóveis elétricos, o Mirai anuncia uma autonomia de 480 km, ou seja, mais do dobro. Também o tempo de recarga é muito menor, pois um reabastecimento de hidrogénio demora cerca de três minutos, enquanto a recarga da bateria de um carro elétrico demora várias horas, numa tomada doméstica, e pelo menos meia hora, num ponto de carga rápida. Face aos motores de combustão, o Toyota Fuel Cell System (TFCS) tem maior eficiência energética, significando que retira mais energia do hidrogénio do que os motores convencionais tiram da gasolina ou do gasóleo. Porém, o veículo com pilha de combustível deve ser visto num enquadramento mais amplo, ajudando a caminhar para a sociedade do hidrogénio, em que a maior fonte de energia será este gás, o mais abundante do universo e um dos mais abundantes da Terra.
OTIMIZAÇÃO DE COMPONENTES
Sendo a mais recente evolução do conceito, o Mirai surge com todos os componentes Raio X. Esquema básico do Mirai. A amarelo, os dois depósitos de hidrogénio, com a bateria sobre o de trás. Sob os bancos da frente, está a pilha de combustível, e na frente situa-se o motor elétrico, com todo o sistema de comando por cima.
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Gerador. Se faltar a eletricidade em casa, o proprietário pode pôr o Mirai a funcionar na garagem e ligá-lo ao quadro doméstico, abastecendo assim a habitação de energia elétrica. A tomada está localizada na mala.
específicos otimizados, a começar pela própria pilha de combustível, que debita 155 cavalos. Para isto ser possível, são usados canais tridimensionais de malha fina na superfície das várias células, de modo a garantir uma produção uniforme de energia na superfície, o que permite a utilização de células mais pequenas, com uma densidade de potência record na indústria automóvel de 3,1 quilowatts por litro, o que representa uma subida de 2,2 vezes, em relação ao anterior sistema fuel cell da Toyota. Outro progresso importante foi feito na gestão da quantidade de água e humidade formada nas membranas eletrolíticas da pilha
de combustível, realizada agora através de um sistema de circulação interna que faz recircular a água criada durante a reação, abolindo assim a necessidade da existência de um humidificador, dispositivo essencial na geração anterior da TFCS. Foi também concebido um novo conversor de alta eficiência e capacidade que trabalha a 650 volts. Esta elevada tensão tornou possível a redução do tamanho do motor elétrico e o número de células da pilha, diminuindo o peso. Ponto fulcral do sistema e ainda visto com algum ceticismo por parte do público são os depósitos de hidrogénio. No Mirai, são dois,
Futuro perfeito. Tal como o estilo exterior, também o interior faz apelo a um visual futurista, mas a estrutura base do Mirai é bastante convencional.
um colocado sob o banco traseiro e outro sob o fundo da mala, ambos construídos com três camadas de fibra de carbono reforçada com resina, sendo capazes de armazenar um total de 122,4 litros de hidrogénio a uma pressão de 700 bar, um acréscimo de capacidade de 20% face à geração anterior e uma densidade de armazenamento líder a nível mundial, com 5,7 wt% (peso da massa de hidrogénio em relação ao peso do depósito). O motor que move o Mirai é elétrico síncrono, capaz de 154 cv de potência e 335 Newtons-metro de binário máximo. Está montado à frente, em posição transversal, e faz mover as rodas dianteiras através de uma caixa automática de seis velocidades. Quanto à bateria, foi julgada suficiente uma de hidretos metálicos de níquel, que está alojada sobre o depósito posterior. Sabendo do receio que ainda existe em relação ao hidrogénio, a Toyota tomou várias medidas para vigiar eventuais fugas, com a colocação de sensores em diversos locais, que permitem desligar as válvulas de bloqueio dos depósitos em caso de fuga. Todos os equipamentos e tubos por onde passa o hidrogénio foram colocados fora do habitáculo, para garantir que, se houver uma fuga, o gás se dissipará rapidamente na atmosfera. A proteção em caso de embate foi precavida, desde logo com a colocação de todos os componentes específicos na parte mais baixa do veículo, tendo sido estudadas estruturas de deformação em caso de acidente, tanto para a frente como para a traseira. A própria pilha de combustível é alojada numa estrutura
de fibra de carbono, para maior proteção. Depois, existem os já habituais sistemas de auxílio à condução, como a travagem autónoma em caso de embate frontal iminente, o alerta de saída involuntária da faixa de rodagem, o monitor de ângulo morto e um controlo de arranque que limita as acelerações súbitas durante passagens de caixa.
VISUAL FUTURISTA
Como vem sendo hábito em todos os modelos de automóveis que utilizam uma nova tecnologia, também o Mirai tem um estilo exterior muito próprio e futurista. Neste caso, a forma segue a função: as duas enormes entradas de ar triangulares, colocadas na frente, servem efetivamente para captar o oxigénio necessário ao funcionamento da pilha de combustível. De perfil, o desenho é um pouco mais fantasista, com formas que evocam a gota de água, tida como a forma com menor resistência aerodinâmica. Na traseira, para manter um equilíbrio visual com a frente, existem também duas formas triangulares, meramente decorativas. Por dentro, o tema “futuro” mantém-se, assente num painel de instrumentos com monitor TFT de alta definição com 4,2 polegadas de diagonal e configurável. Os comandos do aquecimento dos bancos e de outras funções estão num painel sensível ao toque. Tanto o aquecimento individual dos bancos como o ar condicionado usam tecnologias mais eficientes, para gastar menos energia. Com um peso total anunciado de 1850 quilos e um comprimento de 4,89 metros, o Mirai
não é um automóvel leve, nem pequeno, mas o facto de ter todos os componentes pesados junto ao piso contribui para manter baixo o centro de gravidade, o que é sempre uma garantia de estabilidade dinâmica. Para mostrar como este seu investimento nos veículos com pilha de combustível é serio e a longo prazo, a Toyota decidiu abrir a outros construtores automóveis as patentes que detém relativas a áreas fulcrais do sistema, como os módulos das pilhas de combustível, os depósitos de hidrogénio de alta pressão e os sistemas de controlo. A ideia é facilitar a comercialização de outros modelos deste tipo, criando um efeito de escala que seria benéfico para todos. A marca fez o mesmo do lado dos sistemas de reabastecimento de hidrogénio, abrindo também as suas patentes neste tipo de equipamentos, de forma a incentivar os operadores de energia a investirem mais rapidamente na sociedade do hidrogénio, em que o Mirai pode ter outro papel: na mala, existe uma tomada elétrica, não para recarregar a bateria a bordo, mas para ligar a pilha de combustível ao quadro elétrico da habitação e assim alimentar a casa, se a rede pública falhar. Na verdade, a Toyota quer fazer com o Mirai aquilo que fez com o Prius: colocar no mercado uma nova tecnologia, de uma maneira suficientemente convincente, tanto para os consumidores como para os seus concorrentes, dando o arranque definitivo nos automóveis a pilha de combustível. F.M.
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Os leitores de mentes
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Quando nasceu o dom de nos identificarmos com os sentimentos e as ideias dos outros? Como acontece? É algo genético ou aprende-se? Os animais também o sentem? Estes são os segredos evolutivos do contágio emocional.
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EMPATIA
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Tu e eu. Símios que compartem alegrias; bebés que captam o mínimo gesto da sua mãe e o repetem: manifestações diferentes da empatia, uma faculdade que partilhamos, pelo menos, com os restantes primatas.
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nsinar o filho a andar de bicicleta, emocionar-se no cinema, tratar o próximo e preocupar-se com as suas necessidades... Todas estas ações e sentimentos, que implicam um contágio emocional e a adoção de perspetivas alheias, não existiriam sem a empatia, uma capacidade que utilizamos tanto que não nos apercebemos da sua importância decisiva na nossa vida. O caso de Phineas Gage (1823–1861), um dos mais famosos e estudados da neurociência, ilustra bem o que queremos a dizer. Gage, que trabalhava para uma companhia ferroviária em Cavendish (Vermont), sofreu um acidente laboral em 1848, quando uma barra de metal lhe trespassou o cérebro. Sobreviveu, embora com graves lesões nos dois lóbulos frontais. Para os desconhecidos, parecia levar uma vida normal, mas a sua personalidade mudou radicalmente. Deixou de ser um indivíduo extremamente amável para passar a maltratar amigos e familiares. Era como se tivesse perdido repentinamente a ligação com os outros. O que mudara? Parte dos mecanismos e das redes neuronais envolvidos nas relações sociais encontram-se na área afetada do cérebro de Gage, o qual, devido à desgraça que lhe acontecera, ficou sem a faculdade de reconhecer as consequências dos seus atos e sem empatia, essa característica particularmente desenvolvida na nossa espécie que nos permite partilhar o estado emocional dos que nos rodeiam e ser afetados por ele, mas também avaliar as razões de uma situação.
LIGAÇÃO INSTANTÂNEA
Essa capacidade é ativada de forma automática e inconsciente e liga-nos instantaneamente aos outros, algo essencial para regular as interações sociais, coordenar atividades com os nossos semelhantes e conseguir objetivos comuns. A vantagem desse elo emocional encontra a sua origem nas relações materno-filiais dos animais, muitos milhões de anos antes de ter surgido no planeta o Homo sapiens. Uma mãe que consegue detetar com rapidez as necessidades da sua prole, tanto fisiológicas como emocionais, cuida melhor dos filhos e aumenta, assim, as suas probabilidades de sobrevivência. Os cuidados dispensados pelos animais com menor capacidade empática ou que não a possuem não passam de reações condicionadas ao choro ou a um perigo iminente, mas não têm a flexibilidade dos que entendem a situação e podem adaptar a sua resposta em função do que é necessário. Assim, a flexibilidade constitui a grande vantagem evolutiva da empatia, e a razão pela qual foi favorecida pela seleção natural num grupo de animais que inclui o homem. Depois de surgir, ultrapassou os limites familiares e
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Maldita barra. O operário ferroviário Phineas Gage posa com a barra de metal que atravessou o seu cérebro e mudou a sua personalidade. À direita, uma litograia de 1850 mostra o trajeto da barra. O caso de Gage foi muito estudado, incluindo por António e Hannah Damásio, em O Erro de Descartes.
começou a ser aplicada às relações sociais. A partir daí, nada seria igual. Por exemplo, permite-nos identificar com precisão aquilo de que cada pessoa necessita e o que lhe faz mal. Isto é, as reações ajustam-se ao indivíduo e ao contexto. Atividades como a caça, a defesa ou o apoio mútuo mudaram radicalmente: com esse mecanismo mental, os seres humanos podiam antecipar situações e necessidades alheias e sincronizar as atividades coletivas. Porém, a empatia também pode ser utilizada para fazer mal. Torturar, mentir, manipular e fazer chantagem emocional requerem que seja utilizada.
EMOÇÕES, REAÇÕES, RAZÕES
Há diferentes níveis de empatia. O mais básico, sobre o qual outros mais complexos se alicerçam, é o contágio emocional, um processo em que um ou vários indivíduos se veem afetados pelos sentimentos de pessoas próximas. É o que acontece nos concertos, no teatro ou no cinema, onde as emoções se transmitem de espetador para espetador. Outro exemplo clássico é o do choro de crianças numa creche. Quando uma começa a choramingar, o fenómeno propaga-se como um rastilho de pólvora. A causa é uma emoção, ou estímulo externo, como também acontece com o contágio do riso ou do bocejo. Além de emoções, imitam-se reações corpo-
rais, como expressões e posturas. O mesmo acontece em aspetos relacionados com a linguagem, como é o caso do tom de voz, da pronúncia ou do léxico. Tudo acontece de forma inconsciente e automática. Produzem-se, também, pequenos movimentos involuntários dos músculos do rosto que copiam, em menor escala, os dos nossos semelhantes; quando nos sorriem, os músculos que utilizamos para sorrir são imediatamente ativados. Estas reações faciais são impercetíveis e ocorrem em décimos de segundo, o que dificulta a sua análise. Trata-se de uma mímica que foge ao nosso controlo e que é muito difícil de inibir, como demonstram as experiências. A conquista evolutiva seguinte chegou quando conseguimos acrescentar a esse contágio emocional a compreensão das causas do mal-estar ou do bem-estar alheios. Permite-nos ir um pouco mais longe, sem ter de reagir sempre de acordo com o mesmo padrão. O primatólogo holandês Frans de Waal fala em “empatia cognitiva” quando à reação empática se junta a compreensão do contexto. Ao identificarmo-nos com os outros, a emoção e a motivação que nos movem já não são apenas externas, como no contágio emocional, mas também internas, pois sentimos de modo muito semelhante ao de quem observamos. Se os seres humanos se identificam tanto uns com os outros, como é que não acabam por
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EMPATIA Sorriso contagioso
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os anos 80, um psicólogo norte-americano, John Lanzetta, realizou um teste para estudar a chamada “imitação facial rápida”, reações gestuais inconscientes que copiam as dos outros. Na experiência, mostrou a estudantes republicanos e democratas dois tipos de vídeos do republicano Ronald Reagan, então presidente dos Estados Unidos: num, o político sorria; no outro, franzia as sobrancelhas num gesto de desagrado. Depois de os verem, foi perguntado aos voluntários o que tinham sentido. Os republicanos partilhavam as emoções de Reagan, enquanto os democratas diziam sentir-se fartos dele. Todavia, os elétrodos colocados no rosto dos indivíduos durante o teste demonstraram que ambos os grupos repetiam as expressões faciais de Reagan, ativando os correspondentes músculos. Todos imitaram, de forma involuntária, os gestos, independentemente do partido em que votavam.
ficar dilacerados perante tantas emoções e acidentes que ocorrem diante dos seus olhos? Os especialistas sugerem que, na realidade, a empatia é produto do que o nosso cérebro simula, pelo que representa apenas uma parte da experiência de outra pessoa. Por isso, quando alguém se corta na mão com uma faca e estamos a observar, não sentimos a carne a ser rasgada, mas apenas uma versão ou dose menor da vivência alheia. Se assim não fosse, médicos, bombeiros e enfermeiros, entre outros profissionais, não poderiam trabalhar.
CAPACIDADE INATA
As crianças parecem nascer já preparadas para perceber quando as pessoas estão com alguma dificuldade, e também com os mecanismos mentais necessários para utilizar a empatia. Contudo, esta acaba de se desenvolver nos primeiros anos de vida. Por exemplo, bebés com menos de um ano já reagem aos problemas dos outros com preocupação e aproximam-se de quem sofre. Trata-se das primeiras demonstrações dessa capacidade cognitiva, mas a reação não é muito diferente da de um cão ou de um gato. Porquê? Verifica-se devido à necessidade de amadurecimento de certas estruturas cerebrais. Nessa idade, também não reconhecem a sua própria imagem num espelho, ou não se consegue contagiá-los com um bocejo, um dos indicado-
res da existência de empatia. Porém, passados poucos meses, os bebés adquirem outras reações e revelam uma maior compreensão do que está a acontecer. O psicólogo Felix Warneken, da Universidade de Harvard (Estados Unidos), demonstrou que as crianças que ainda não falam já corrigem ações erradas ou dão informação a quem necessita. Warneken, sem olhar para os bebés nem lhes falar, fingia não saber empilhar livros por ordem ou ter perdido objetos numa sala. Quase todas as crianças tentaram ajudá-lo, sem receberem qualquer ordem ou recompensa por isso. Isto é, mostravam uma preocupação empática ou simpática, o que implica processos mais complexos do que o simples contágio emocional. Que mecanismos neuronais e fisiológicos são responsáveis por essa empatia precoce? Para sabê-lo, é preciso recuar até 1996. Nesse ano, o neurobiólogo Giacomo Rizzolatti e os seus colegas da Universidade de Parma (Itália) investigavam o cérebro dos macacos, com recurso a elétrodos, para estudar os neurónios que intervinham no domínio dos movimentos das mãos: registavam a atividade de uma única célula nervosa enquanto um dos macacos apanhava bananas. Numa pausa, um dos investigadores agarrou num dos frutos para o comer. O neurónio do primata foi ativado ao observar a cena, embora não tivesse mexido um dedo.
Depois de comprovar que não se devia a um erro tecnológico, a experiência foi repetida sucessivas vezes. Obteve-se sempre o mesmo resultado. Tinham descoberto, acidentalmente, os chamados “neurónios-espelho”, a manifestação fisiológica da empatia. Estas células nervosas permitem-nos compreender o que acontece aos outros, pois são ativadas ao observar situações e contextos, fazendo-nos experimentar, sem termos consciência disso, uma versão simulada do que estamos a ver. Estão diretamente relacionadas com a empatia, pois, através da sua atividade, podemos sentir as emoções dos outros e entendê-las sem necessidade de raciocinar. Isto significa que as semelhanças entre observar e executar nós próprios uma ação são grandes, mas os efeitos semelhantes, ao ponto de poderem ser confundidos, da perspetiva da ativação neuronal. Os neurónios-espelho também são ativados pelo ouvido. A bióloga italiana Valeria Gazzola estudou ações quotidianas e sons que lhes estavam associados, como amarrotar uma folha de papel, comer batatas fritas ou escutar o ruído das ondas do mar. Descobriu que as áreas dos lóbulos temporal e parietal e o córtex pré-motor são ativados com tais estímulos acústicos. Trata-se das mesmas zonas utilizadas quando se faz, efetivamente, essas coisas. O fenómeno já era regularmente aproveitado pelo markeInteressante
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NATURE
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Neurónios que adivinham. Observar a ação de pegar em algo em contextos diferentes (a), que sugerem intenções distintas (beber, à esquerda, e limpar, à direita) provoca diferentes atividades (maior para a bebida) nos neurónios-espelho situados no giro frontal inferior do cérebro (b). Isto mostra que estas células nervosas codiicam não apenas a ação observada (pegar), como também a intenção associada a esse gesto concreto (isto é, agarrar para beber).
ting antes de se descobrir a sua existência. Pense no típico anúncio em que se ouve o som de uma garrafa a ser aberta. Ainda resta muito para saber no que diz respeito a estes neurónios e às suas funções. Até agora, foram encontrados em seres humanos, vários primatas e outros mamíferos de grande inteligência, como elefantes, golfinhos e baleias. Alguns cientistas sugerem que essas células nervosas estariam especializadas não só na compreensão como, também, na imitação e na importante função de captar as intenções dos que nos rodeiam. Isso significaria que se tornam fundamentais nos processos de aprendizagem por imitação, como é o caso da aquisição da linguagem, e também na transmissão de conhecimentos, na qual é necessário recorrer à empatia para além da mera observação. Assim, o professor pode meter-se na cabeça dos alunos e fazê-lo por passos, corrigir atos ou movimentos errados, efetuar os movimentos mais devagar ou repeti-los sucessivas vezes. Os neurónios-espelho seriam também fundamentais para os juízos morais sobre os atos dos outros, que apenas podemos avaliar corretamente se conhecermos as suas intenções.
ELEFANTES E BALEIAS
A empatia desenvolveu-se até alcançar um nível espantoso no ser humano, mas não é património exclusivo da nossa espécie. Existe uma certa continuidade entre o cérebro dos
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animais e o nosso. De modo geral, os comportamentos de ajuda são bastante comuns entre os mamíferos mais gregários, para os quais a coletividade é um elemento imprescindível para a sobrevivência do grupo. Contudo, apenas algumas espécies parecem aproximar-se de nós quando se trata de entender o que se passa com os seus congéneres. Por exemplo, é vulgar ver manadas de elefantes a abrandarem o passo para corresponder às necessidades de algum exemplar doente ou aleijado. De igual modo, o grupo ajuda os companheiros que caem de cansaço ou que se encontram moribundos. Foi documentado um comportamento semelhante entre os golfinhos, que já foram vistos a auxiliar companheiros que subiam à superfície para respirar depois de terem sido feridos em prospeções subaquáticas ou arpoados por pescadores. As baleias também nos surpreendem, periodicamente, com novas demonstrações da sua inclinação empática. Há alguns anos, um grupo de orcas foi visto a atacar uma cria de baleia-cinzenta; a estratégia consistia em empurrá-la para o fundo para tentar separá-la da mãe. De repente, surgiram várias baleias-corcunda que trataram de impedir as orcas, interpondo-se entre as caçadoras e a cria ferida. Embora não tivessem conseguido salvá-la, os improvisados guarda-costas permaneceram na zona, perseguindo as orcas e batendo com as caudas na água para impedir que comessem o cadáver
ou matassem a mãe. O mais interessante é que as orcas não são predadoras das baleias-corcunda, o que demonstra a intenção heroica destas e a sua compreensão do perigo. Entre os animais, talvez sejam os primatas os que melhor sabem o que é colocar-se na pele do outro. Em experiências de laboratório, se um grupo de macacos recebe um choque elétrico de cada vez que se dá de comer a um indivíduo isolado, este nega-se a receber alimento até um máximo de seis dias, para os seus companheiros não sofrerem. Entre os chimpanzés, o apoio a indivíduos débeis ou feridos acontece com uma certa frequência. Se uma cria ficar órfã, outros membros do grupo (as tias ou as avós,
EMPATIA
Não te esqueceremos! Chimpanzés observam atentamente o transporte para a fossa do cadáver de um membro do seu grupo. Alguns estudos indicam que os chimpanzes podem sentir empatia até pelos seres humanos.
em geral) tomam conta dela. Porém, também pode acontecer que um macho sozinho decida protegê-la até à adolescência. Por outro lado, tanto chimpanzés como bonobos são contagiados pelo bocejo, como as pessoas.
TREINAR A IMAGINAÇÃO
A empatia está presente em diversas espécies, mas como podemos nós, seres humanos, desenvolvê-la ao máximo? Uma atitude aberta, praticar a escuta ativa e treinar a imaginação para poder adotar diferentes perspetivas do mesmo problema são os primeiros passos para consegui-lo. Tirar proveito de histórias inventadas também ajuda.
Assim, o psicólogo social belga Emanuele Castano encontrou provas de que a literatura melhora a compreensão do que acontece aos nossos semelhantes. No seu estudo, distribuiu a dezenas de pessoas livros de vários géneros e, depois, avaliou a sua capacidade para entender os pensamentos e as emoções alheios. Descobriu diferenças importantes entre os que tinham lido ficção e não-ficção, e também com aqueles que nada tinham lido. Os primeiros obtiveram as melhores pontuações. Apesar do caminho percorrido nas últimas duas décadas, alguns mecanismos e implicações psicológicas da empatia ainda estão por explicar. É fundamental saber se o contágio
emocional não se limita a situações simples e pode chegar a condicionar sentimentos mais complexos, como é o caso da vingança ou da culpa. É também necessário destrinçar como a manifestação e o desenvolvimento dessa faculdade afetam a cultura, e até se existe uma predisposição genética para a experimentar. A empatia é uma das maiores conquistas da evolução. Sem ela, parece provável que a nossa vulnerável espécie não tivesse conseguido sobreviver. Podemos afirmar que os seres humanos são os descendentes de hominídeos que encontraram na empatia a resposta para a sua bem-sucedida história de expansão. P.H.
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Uma ligação de risco
Colocar-se no lugar do outro é imprescindível para viver em sociedade e poderá mesmo melhorar a nossa saúde, mas ser excessivamente empático pode prejudicar-nos. O segredo reside em equilibrar a empatia emocional com a racional. 56 SUPER
EMPATIA REUTERS
Coisas desprezíveis. Os extremistas coisiicam as suas vítimas. Aqui, imagem de um vídeo gravado pelo autoproclamado Estado Islâmico antes de executar uma série de reféns egípcios cristãos numa praia líbia.
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Velhos e felizes Um estudo da Universidade do Michigan relacionou empatia e longevidade. Quem não relatou experiências altruístas tinha 60 por cento de probabilidade de morrer antes dos outros.
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o dia 2 de janeiro de 2007, Wesley Autrey, um operário de Nova Iorque, demonstrou que a empatia continua viva até no ambiente frio das grandes metrópoles. Autrey esperava com os filhos pela chegada do metro quando um jovem caiu na linha férrea, vítima de um ataque de epilepsia. Apesar do risco, aquele que viria a ser conhecido por Subway Superman saltou para a linha para socorrê-lo. Ao ver que não conseguiria içá-lo a tempo para a plataforma, colocou o rapaz de cabeça para baixo e protegeu-o com o próprio corpo. O comboio passou por cima de ambos sem lhes tocar. A maior parte das pessoas (exceto os psicopatas) sente-se afetada pela dor alheia. O termo “empatia” foi introduzido na psicologia há mais de um século e tem vindo a somar pontos. Hoje, à pala da inteligência emocional, constitui uma qualidade em voga. As razões científicas que confirmam a sua importância estão relacionadas com o seu contributo para a solidariedade social. Segundo muitos investigadores, a falta de identificação com os outros é a causa dos nossos males. No livro Zero Degrees of Empathy – A New Theory of Human Cruelty, Simon Baron-Cohen, professor de psicopatologia do desenvolvimento na Universidade de Cambridge (Reino Unido), afirma que um défice dessa qualidade explica a crueldade que grassa à nossa volta. Na sua opinião, certas condições podem eliminar a empatia: fatores de personalidade, como o
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narcisismo, psicopatologias, estados de consciência alterados pelo consumo de drogas e fatores ambientais, como a despersonalização do outro provocada pelos fanatismos. O resultado de qualquer dessas variáveis no indivíduo é idêntico: leva-o a coisificar, isto é, a transformar em coisa os seres vivos que o rodeiam. O terrorismo islâmico é um exemplo dos limites a que se pode chegar, como demonstram os vídeos que divulga, os quais incluem mesmo crianças a executar pessoas.
NÃO CONHECER O MEDO
O contágio emocional conduz ao altruísmo e sabemos, desde tempos remotos, que solidarizar-se com o sentimento alheio aumenta o bem-estar. Segundo a milenária Ishaupanishad, uma das escrituras sagradas do hinduísmo, “o homem que consegue ver todas as criaturas em si mesmo e a si mesmo em todas as criaturas não conhece o medo”. O poeta e pensador norte-americano Ralph Waldo Emerson (1803–1882) escreveu: “Uma das mais belas compensações da vida consiste em ninguém poder tentar sinceramente ajudar outro sem se ajudar a si próprio.” Estudos modernos corroboram a sua afirmação, e os especialistas descobriram benefícios fisiológicos internos da empatia. Numa investigação desenvolvida na Universidade de Harvard (Estados Unidos) pelo psicólogo David McClelland, comprovou-se que, depois de
verem um filme sobre madre Teresa de Calcutá, aumentava na saliva dos espetadores o teor de imunoglobulina A, um anticorpo que ajuda a combater as infeções respiratórias. Por sua vez, Redford Williams, do Centro Médico da Universidade Duke (Estados Unidos), descobriu que, quanto mais hostil for a pessoa, mais obstruídas se encontram as suas artérias coronárias. Ainda neste aspeto, o psicólogo Charles Spielberger, da Universidade da Flórida, descobriu que a ira, a irritabilidade e a competividade são fatores de risco cardiovascular. Foram também encontrados, como é óbvio, benefícios psicológicos. Exemplo: o psiquiatra George Vaillant, que estudou durante 30 anos a evolução de um grupo de licenciados em Harvard, concluiu que um estilo de vida altruísta está relacionado com uma boa saúde mental.
NÃO CONTÁGIO, MAS RACIONAL
Parece evidente que a empatia possui efeitos benéficos, mas alguns casos e estudos científicos questionam a universalidade desse proveito. Será suficiente deixar-se contagiar emocionalmente pelos sentimentos alheios para ajudar a pessoa a sentir-se melhor consigo própria? Todos conhecemos exemplos que demonstram que a sensibilidade perante a dor alheia não é uma condição suficiente (e, por vezes, nem sequer necessária para lançar uma corda de salvação aos que nos rodeiam). Por isso, os apologistas da empatia como
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EMPATIA Crueldades do destino
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Terapia canina. A empatia entre cães e humanos permite usar os animais para reabilitar presos, como nesta prisão de Bollate, perto de Milão (Itália).
importante fator da solidariedade tratam de delimitar o conceito. Um exemplo dessa abordagem são as teorias do psicólogo evolucionista Steven Pinker. No livro The Better Angels of Our Nature – Why Violence Has Declined, acumula dados que mostram que o ser humano é, hoje, menos violento do que nunca. As suas estatísticas revelam que vivemos na época com menos guerras, genocídios e repressão. Nunca foram tão baixas as possibilidades de sofrer uma morte violenta. Um exemplo: desde 1945, não houve guerras entre grandes potências, algo insólito na história, e deixaram de ser generalizadas a escravatura, a tortura dos condenados à morte antes de serem executados e uma série de brutalidades que antes eram vulgares. As controversas ideias de Pinker (as suas estatísticas colidem com a sensação de insegurança do mundo atual) são completadas por uma hipótese sobre a causa dessa evolução positiva: na sua opinião, tornámo-nos mais altruístas ao transcender o conceito sentimental da empatia e passar para outro mais racional: “Muitos adeptos da empatia escrevem sobre ela como se o contágio emocional fosse a base do sentido da empatia mais relacionado com o bem-estar humano”, escreve no seu livro. “Contudo, o sentido da empatia que mais valorizamos é uma reação distinta que poderíamos chamar reação solidária ou, simplesmente, solidariedade. Consiste em alinhar o bem-estar de outra entidade com o próprio,
partindo do conhecimento dos seus prazeres e dores. Apesar de ser fácil identificar solidariedade com contágio, vê-se nitidamente que não são o mesmo.” Por que é tão importante para uma empatia inteligente não nos limitarmos a deixarmo-nos contagiar pelos sentimentos alheios? Entre outras coisas, porque, como nos ensina a ciência, as manifestações emocionais possuem um sentido adaptativo: influenciar alguém. Esse efeito sobre os outros pode ser utilizado para benefício pessoal daquele que produz o contágio emocional.
LÁGRIMAS E SORRISOS
Estudos recentes exemplificam essa vulnerabilidade produzida pela empatia. Uma investigação do Instituto Weizmann de Ciências (Israel) chegou à conclusão de que as lágrimas femininas inibem a produção de testosterona no homem que as contempla, reduzindo o seu nível de cólera e aumentando a necessidade de estar de acordo com a pessoa que chora... ou finge chorar, como acontecia no estudo. O psicólogo Piercarlo Valdesolo, do Claremont McKenna College (Estados Unidos), analisa, num artigo, o modo como os pugilistas utilizam o sorriso para influenciar o comportamento do adversário quando sentem que vão perder: a piedade faz o adversário reduzir os seus esforços para vencer. Por outro lado, uma experiência recente da University of Central
m novembro de 1923, os Ballin, uma família judaica alemã, tiveram oportunidade de demonstrar o seu grau de empatia. Um indivíduo chegou ferido à sua casa: uma bala tinha-lhe perfurado a bacia. Acolheram-no e esconderam-no enquanto recuperava dos ferimentos (que poderiam ter sido fatais) e, ao saber que era procurado pela polícia, ajudaram-no a fugir do país. Protegeram o estranho por pura humanidade: não houve motivações económicas nem ideológicas pelo meio. Provavelmente, nos anos que se seguiram, os Ballin interrogar-se-iam muitas vezes sobre o acerto daquela ação altruísta. O ferido que tinham salvo era Hermann Göring, que depois se transformaria num dos principais nomes do regime nazi. O futuro lugar-tenente de Hitler fora atingido a tiro pelas forças da ordem durante uma tentativa de golpe de estado do Partido Nacional Socialista, o chamado “Putsch de Munique”, ocorrido nos dias 8 e 9 de novembro. A solidariedade dos Ballin permitiu a um dos grandes responsáveis pelo Holocausto curar-se, fugir e vir a ser um dos carrascos contra os judeus. Göring, que dirigiu a aviação nazi, suicidou-se em 1946, ingerindo cianeto, para escapar à pena de morte por enforcamento decretada pelos Aliados.
Lancashire (Reino Unido) demonstra que os gemidos das mulheres durante as relações sexuais não representam verdadeiramente uma manifestação de prazer, mas são antes uma tática para estimular o parceiro: a mulher geme para otimizar o seu potencial de dar prazer ao companheiro. Como se vê, na tristeza, no combate, no prazer erótico e em todas as outras expressões emocionais, existe uma vontade de influenciar a pessoa com quem estamos. Essa intenção de alterar o comportamento dos outros é natural e incentiva a convivência, mas pode ter um lado menos simpático. Existem muitas experiências para mostrar como e com que facilidade os aplausos ou os risos são contagiantes, um efeito multiplicador que há décadas é explorado economicamente pela televisão. É praticamente impossível que a vulnerabilidade provocada pela empatia não seja aproveitada com más intenções, pois existem pessoas especializadas em manipular-nos dessa forma: Interessante
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É uma pessoa empática?
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lassifique as vinte frases seguintes e veja se tem propensão para se compadecer dos males alheios e solidarizar-se com quem sofre. Escolha um número entre 1 e 5. 1 significa que a frase não se aplica a si em absoluto; 2, que apenas se identifica com ela em raras ocasiões; 3, que se aplica a si em muitas ocasiões; 4, que se identifica quase sempre; 5, que está totalmente de acordo com o enunciado. 1. Acabo, geralmente, por chorar quando os outros choram. 2. Se outra pessoa me conta os seus problemas, a minha mente tende a procurar soluções. 3. Entendo geralmente bem o ponto de vista daqueles que me rodeiam. 4. Faço, frequentemente, conjeturas acertadas sobre o que outras pessoas sentem, embora mais ninguém as partilhe. 5. Quando tomo decisões, tenho consciência das necessidades das outras pessoas envolvidas. 6. Custa-me fazer coisas que me beneiciam mas prejudicam os outros. 7. Sinto-me bem quando ajudo outras pessoas. 8. Tenho muitas vezes a sensação de que perdi oportunidades egoístas para ajudar os que me rodeiam. 9. Tenho muita facilidade em colocar-me no lugar de outra pessoa quando me conta algo que lhe sucedeu. 10. Quando cometo erros que afetam outras pessoas, sinto uma grande culpa.
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11. Gosto de tomar em consideração todas as perpetivas quando se trata de resolver um conlito de interesses. 12. Sou muito vulnerável à chantagem emocional. 13. A maior parte dos meus problemas tem a ver com o mal feito por pessoas próximas. 14. Vejo-me muitas vezes metido em sarilhos por ajudar outras pessoas. 15. Sinto-me mal quando mudo de opinião e essa mudança afeta outras pessoas. 16. Deixo-me contagiar pelas alegrias e tristezas das pessoas que me rodeiam. 17. Os meus tempos livres dependem muito do que apetecer às pessoas mais próximas de mim. 18. Sinto-me culpado quando tomo decisões egoístas. 19. Assumo muitos compromissos que não me apetece cumprir. 20. Tenho muita diiculdade em saber o que quero, mas sei muito bem o que quem me rodeia quer. RESULTADOS Se somar as pontuações, obterá um total cuja máximo é 100. Será essa a sua percentagem de empatia. Por exemplo, 22 por cento signiica que é uma pessoa com pouca tendência para tomar em consideração as emoções dos outros; 89% quer dizer o contrário, ou seja, que tem uma grande propensão para sentir ou entender as alegrias e dores daqueles que o rodeiam.
indivíduos que o psicólogo social Mark Snyder denomina “automonitorizados”.
MANIPULADORES DOS OUTROS
Estes indivíduos procuram contagiar as suas emoções, pois têm continuamente consciência da imagem de si próprios que projetam nos outros. Autocontrolam a sua expressão emocional depois de terem avaliado o ambiente social que os rodeia. Não possui qualquer importância, para eles, o alívio da expressão emocional (não os tranquiliza chorar, exprimir a sua cólera ou mostrar afeto) e, por isso, canalizam-na com o único objetivo de produzir o efeito desejado. O risco de manipulação é uma das causas pelas quais o contágio emocional pode colocar em perigo a eficácia do nosso altruísmo. O outro fenómeno que contesta uma atitude demasiado sentimental é que a excessiva empatia também pode acabar por ser pouco adaptativa para nós próprios e levar ao autossacrifício. Assim, as pessoas que sofrem de uma ligação exagerada aos seus semelhantes acabam por esquecer as suas próprias necessidades. O hábito de pensar mais nos outros do que em si próprias leva-as, inicialmente, a adiar as suas próprias necessidades e os seus prazeres. Pouco a pouco, acabam por esquecê-los. No final, não só cedem e fazem o que o outro quer como, sobretudo, não sabem o que elas próprias querem. Então, se o simples contágio de sentimentos não assegura o bem-estar alheio nem o próprio, não seria melhor uma solidariedade teórica, sem acompanhamento emocional?
BONS SAMARITANOS?
No início dos anos 70, uma experiência demolidora dos psicólogos John Darley e Daniel Batson demonstrou os perigos do frio racionalismo ético. O estudo foi feito com alunos do Seminário Teológico da Universidade de Princeton (Estados Unidos). Pediu-se aos futuros sacerdotes que preparassem e gravassem uma dissertação sobre a parábola do bom samaritano. Depois de lhes conceder algum tempo para pensar sobre o tema e pôr as suas ideias em ordem, os investigadores disseram-lhes para se dirigirem rapidamente a um estúdio de gravação situado noutro edifício. Pelo caminho, os estudantes encontraram um homem caído na soleira de uma porta, gemendo e tossindo lastimosamente, que parecia necessitar de auxílio imediato. Todavia, a pressa para efetuar a gravação foi mais importante do que o altruísmo: o número de estudantes que se detiveram para socorrer o pobre indivíduo não chegou a dez por cento. O seu ideal racionalista de altruísmo provou não ser suficiente para ajudar os que sofrem. Como acontece geralmente com as questões humanas, a solução para o dilema não é
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EMPATIA Amor fraterno. Alvin Straight (sentado) percorreu em 1994 quase 400 km no seu pequeno trator para ir visitar o irmão Henry (de pé), que tinha sofrido um AVC.
simples. Há exemplos de atos de solidariedade impressionantes, guiados por sensações viscerais. Alvin Straight, um modesto agricultor do Iowa, protagonizou um desses casos. Alvin era um viúvo de 63 anos que vivia com uma das filhas, afetada por problemas de linguagem. Além disso, tinha de se preocupar com a sua própria saúde: acabava de passar algum tempo no hospital devido a um enfisema e a problemas na anca. Apesar disso, quando o informaram de que o seu irmão, Henry (os dois não se falavam há dez anos), tinha sofrido um AVC e lhe restava pouco tempo de vida, não hesitou em subir para o seu pequeno trator e iniciar a viagem de 400 quilómetros até ao Wisconsin, onde aquele vivia. Não tinha muito dinheiro, nem carta de condução, e o inverosímil meio de transporte prometia criar-lhe grandes problemas técnicos, como realmente aconteceu. Contudo, Alvin conseguiu percorrer a enorme distância para
fazer as pazes com o irmão. Posteriormente, o filme Uma História Simples, de David Lynch, narrou a sua proeza e tornou-o conhecido em todo o mundo. Quando perguntavam a Alvin a razão para o ter feito, respondia sempre: “Porque era o que o corpo me pedia.”
TERCEIRA GUERRA MUNDIAL ADIADA
Todavia, existem também casos de atos de um altruísmo heroico que parecem ultrapassar a razão. Poucos conhecem, por exemplo, Stanislav Yevgrafovich Petrov. Contudo, é provável que esse militar russo tenha salvo a humanidade do apocalipse. A 26 de setembro de 1983, produziu-se o chamado “Incidente do Equinócio de Outono”: um satélite soviético detetou cinco mísseis norte-americanos que se dirigiam para a URSS. Vivia-se uma época de grande tensão na Guerra Fria, e parecia que o aviso recebido podia constituir o princípio da Terceira Guerra Mundial.
O coronel Petrov era responsável pelo centro de inteligência militar que emitia alertas sobre possíveis ataques inimigos. Contudo, não deu voz de alarme. Esperou, pois sabia que não fazia sentido os Estados Unidos iniciarem um ataque com tão poucos mísseis. Além disso, conhecia bem as deficiências do sistema de satélites de deteção. Pôs em jogo a sua carreira e acertou: o aviso fora criado por uma raríssima conjugação astronómica entre os sinais emitidos pelo Sol e a posição relativa da Lua e da Terra. A improvável fatalidade poderia ter sido o princípio do fim do ser humano, se Petrov não tivesse colocado em risco os seus interesses pessoais. Num tema tão complexo, não há conclusões simples. A pergunta permanece sem uma resposta inequívoca: empatia racional ou empatia emocional? Talvez não interesse a proveniência do apelo alheio. Talvez a única coisa importante seja estarmos dispostos a escutá-lo. L.M.
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Como Sentimos O neurocientista italiano Giovanni Frazzetto resolveu indagar o que tem a ciência a dizer sobre a forma como surgem, evoluem e desaparecem algumas das nossas emoções. Dessa investigação, resultou o livro Como Sentimos, recém-editado em Portugal pela Bertrand. Nestas páginas, apresentamos-lhe excertos do terceiro capítulo, intitulado “Ansiedade: Medo do Desconhecido”
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recisamente quando estava a adormecer, o telefone começou a tocar. Passara um longo dia no laboratório a esmagar dezenas de cérebros de ratos para obter alguns preciosos miligramas de proteína purificada e acabara de me deitar. Exausto, atendi depois de o telefone tocar quatro vezes. Do outro lado da linha, encontrava-se Robert, um velho amigo da universidade. “Já ouviste as notícias?”, perguntou ele. “Notícias de quê?” “A economia mundial vai pelo cano abaixo.” “E ligaste-me para me dizer isso?”, bocejei. “Desta vez é mesmo mau, acredita em mim.” Era dia 1 de dezembro de 2008. Pelo mundo inteiro, as bolsas caíam, ao mesmo tempo que o número de empregos destruídos continuava a aumentar. Foi um dos piores dias para a economia naquele ano e eu tinha-o passado em isolamento numa sala de bioquímica. A recessão que começara nos Estados Unidos fazia o seu caminho pelo oceano como um derrame de petróleo. Uma vez acordado, saltei para a secretária para ver as notícias no portátil. “Parece que não compreendes.” Conseguia ouvir a tensão na sua voz. “Estás preocupado?” “Preocupado? Estou aterrorizado. Nem consigo dormir.” Passando os olhos pelos títulos, percebi que as coisas estavam mesmo más. E, sim, eu sabia que o Robert tinha começado a trabalhar para
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um dos principais bancos de investimento da cidade, um daqueles gigantes financeiros que apenas um ano antes pareciam absolutamente imunes a uma queda da economia. As coisas ainda lhe estavam a correr bem mas quem o ouvisse pensaria que ele estava a poucas semanas de se transformar num mendigo a pedir na estação de metro. “Poderia sempre ganhar dinheiro a atuar na rua”, disse-me ele. “Ou tentar, de uma vez por todas, tornar-me uma estrela de rock.” “Robert, estou realmente cansado”, foi tudo o que consegui dizer. “Vá lá, trabalhas num laboratório de neurociência, não deverias saber o que fazer nestas circunstâncias?”, insistiu o Robert. “Resolver a crise financeira? Tu é que és o banqueiro.” “Não, ajudar-me a lidar com a ansiedade”, respondeu ele. Pus fim à conversa, prometendo que o visitaria no dia seguinte; apaguei as luzes e voltei para a cama. Mas o sono fugia-me. Estranhamente, os números e índices obscuros da crise económica continuavam a ocupar-me a mente, como trabalhos de casa de matemática por concluir ou uma incómoda equação irresolúvel. Os meus olhos permaneceram bem abertos e, embora tivesse um bom emprego e não tivesse poupanças em risco de se evaporarem numa nuvem de fumo, dei comigo preocupado com a atual recessão. Daí, os pensamentos vaguearam livremente e transformaram-se em preocupações amargas. Uma preocupação
criava outra, pois numa questão de minutos dei comigo a preocupar-me com quase tudo. Ouvi o meu coração acelerar, a cabeça e o peito pareciam pesados, a garganta fechou-se e os pensamentos e questões seguintes começaram a deambular pela minha mente numa sucessão desordenada: • Teria desligado corretamente a centrifugadora?
Nascido na Sicília, Giovanni Frazzetto é um dos fundadores da European Neuroscience & Society Network e o criador do projeto transdisciplinar Neuroschools, pelo qual ganhou o Prémio John Kendrew para Jovem Cientista, em 2008.
de Natal e não o vou conseguir fazer a tempo. • A caldeira vai avariar-se novamente, sem sombra de dúvida, na semana que vem. • Poderei nunca ter condições para adquirir casa própria. • Nunca na vida vou receber pensão. • E se tiver um acidente de mota amanhã? • Pairará no ar um novo ataque terrorista? A lista poderia continuar facilmente. Tudo parecia estar a acelerar em direção a um fim catastrófico.
SOZINHO NO ESCURO
• Uma doença crónica rara era o que continuava a provocar aquelas terríveis enxaquecas logo pela manhã. • A porta da rua estaria trancada? • Não devia ter lido aquela notificação no Facebook. • E se a minha universidade ficasse sem fundos para a investigação? • Eu nunca iria concluir as experiências para
o meu próximo artigo a tempo, por isso os meus concorrentes iam decerto passar-me à frente. • O meu vizinho não me deu os bons-dias esta manhã. Será que a festa no fim de semana foi demasiado ruidosa? • Um novo ponto vermelho no meu braço esquerdo é o início de cancro. • Ainda tenho de comprar todos os presentes
Se examinadas com atenção, algumas daquelas preocupações parecem ridículas ou, pelo menos, desnecessárias, não parecem? No entanto, sozinho na escuridão do quarto, não parecia ter grande poder sobre elas. Por fim, as minhas preocupações transformaram-se noutra coisa. Às voltas num vórtex de confusão, comecei a sentir-me desorientado, pondo em causa toda a minha existência. Acabadinho de passar a barreira dos trinta, solteiro, com excesso de trabalho, prestes a dar um salto na carreira, comecei a preocupar-me com o significado de tudo o que fizera, se tinha ou não tomado todas as decisões certas ao longo da vida. Foi um daqueles momentos em que pensei que precisava imediatamente de fazer algo mais, como se o mundo estivesse prestes a acabar e eu tivesse apenas algumas horas para concluir tudo o que queria fazer. Sentia-me como se alguém tivesse desligado a banda sonora do meu dia e um vento forte e persistente me tivesse desalojado do carrossel da vida de que eu fazia confortavelmente parte, desenraizando os pilares de esperança no futuro e deixando um palco vazio, no centro do qual eu me encontrava, sob a luz dos holofotes. Esse vento tinha um nome – ansiedade – e soprava com força e determinação. Interessante
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LIVROS Quando voltei a acender a luz fiquei espantado por ver que ainda era apenas meia-noite. Decidi voltar a ligar a Robert. “Ainda estás acordado?”, perguntei. “Sim.” “Muito bem. Encontramo-nos para tomar um copo daqui a meia hora.” Então ali estávamos nós, um cientista e um banqueiro, a tentar domar as nossas ansiedades num bar aberto toda a noite, nas primeiras horas de uma noite de inverno. As circunstâncias fizeram-me recordar um poema de W.H. Auden, The Age of Anxiety, no qual quatro personagens discutem as suas vidas e partilham esperanças e aflições sobre a condição humana, num bar da Terceira Avenida, na cidade de Nova Iorque. “Quando o processo histórico se decompõe... quando a necessidade está associada ao horror e a liberdade ao aborrecimento, então, o negócio do bar parece estar de boa saúde”, é assim que começa o poema. Bem, um copo de vinho pode de facto ajudar se os tempos forem difíceis e se se estiver a tentar acalmar. As personagens são: Quant, um empregado de escritório; Malin, um médico oficial da Força Aérea canadiana; Rosetta, uma responsável de compras; e Emble, um jovem que se alistou recentemente na marinha. O sentimento do poema é de incerteza. Os quatro protagonistas sentem-se perdidos, sem uma direção clara. Auden começou a escrever o poema em julho de 1944, contra o pano de fundo de uma guerra que deixou a humanidade imersa em dúvidas quanto ao futuro e sedenta de paz. Toda a gente, escreveu ele, foi “reduzida ao estado de ansiedade de um caráter sombrio ou de uma pessoa deslocada”. Auden tinha 37 anos de idade e considerava-se a si próprio “ainda demasiado jovem para ter qualquer sentido de orientação”.
RECESSÃO, EURO, DEPRESSÃO
Quase setenta anos mais tarde, será que ainda vivemos numa era de ansiedade? Certamente que nem Robert nem eu estávamos sozinhos naquela noite. As nossas ansiedades ecoavam as ansiedades de milhões de pessoas do mundo inteiro. O risco de uma recessão global era real. Cinco anos depois e ainda nem sequer estamos perto de uma recuperação total. Todas as semanas ouvimos notícias horríveis sobre a economia geral e estamos todos à espera de uma solução que parece nunca mais chegar. O euro esteve prestes a cair várias vezes, com os países devedores como a Grécia, a Itália e a Espanha em risco de terem de abandonar a união monetária. O nosso dinheiro e o futuro das nossas economias nacionais encontram-se nas mãos de uns tipos de fato em quem nos é pedido que confiemos. O atual estado lastimoso da economia
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afetou o bem-estar e a calma da população global. Nos últimos anos, uma dieta diária de notícias sobre despedimentos, falências, índices flutuantes e spreads monetários, bem como sobre outros desastres financeiros, provocou um aumento do número de pessoas, por todo o mundo, que exibem sintomas de ansiedade, desde alterações dos padrões do sono a nervosismo e dores de cabeça dolorosas. Em 2010, um relatório revelou que 52 por cento das pessoas que tinham perdido o emprego na recessão manifestavam sintomas de ansiedade e 71 por cento afirmaram estar deprimidas. Os mais afetados foram aqueles que se encontravam no grupo de idades compreendidas entre os 18 e os 30 anos. Na Grã-Bretanha, o Serviço Nacional de Saúde estima
que um em cada vinte adultos é afetado pela ansiedade. Nos Estados Unidos, todos os anos cerca de 18 por cento da população sofre de distúrbios de ansiedade. Em 2009, o governo do Reino Unido ofereceu ajuda psicológica aos milhões de pessoas que foram confrontadas com o desemprego e com as dívidas, aumentando o número de terapeutas e de conselheiros numa vasta rede de serviços que incluía centros de psicoterapia e linhas telefónicas de ajuda. A ansiedade é também um fardo para a economia em geral. Hoje em dia, o custo anual com distúrbios de ansiedade na Europa chega aos 77,4 mil milhões de euros, um número suficientemente alto para provocar, ele mesmo, ansiedade e levar muitas pessoas a considerar a necessidade de tomar ações no imediato
Escombros. W.H. Auden começou a escrever The Age of Anxiety em 1944, contra o pano de fundo de uma guerra que arrasou a Europa (na foto, Dresden) e deixou a humanidade imersa em dúvidas quanto ao futuro.
para resolver a crise e tratar este enorme desafio de saúde pública. Mesmo excluindo a recessão, vivemos num mundo onde não há falta de razões para nos preocuparmos. Existem tanto razões pessoais como globais, próximas e distantes.
TERRORISMO E CLIMA
Por um lado, todos nós enfrentamos a pressão diária de acompanharmos as exigências laborais, de lutarmos contra uma concorrência alargada e implacável, de alcançarmos o sucesso e subirmos na carreira. Temos de nos manter financeiramente vigilantes, de ter o suficiente para pagarmos as despesas mensais, de pensar antecipadamente e de poupar para o futuro. Também poderemos ser res-
ponsáveis por uma família ou ter de sustentar crianças e espera-se que iniciemos e cultivemos relações sociais. Por outro lado, a situação global não é, no seu conjunto, muito animadora. A atitude mundial para com o perigo do terrorismo internacional alterou-se profundamente com os acontecimentos do 11 de Setembro e com os subsequentes ataques da Al-Qaeda, com as forças armadas de vários países ocidentais a mobilizarem-se para os dois maiores conflitos da última década. Vivemos sob a ameaça constante de que uma simples disputa política e ideológica sobre a construção e utilização de programas nucleares no Médio Oriente possa acabar por dar início à Terceira Guerra Mundial. Epidemias implacáveis – por exemplo, o
VIH – e o surto de novas e inesperadas infeções de disseminação rápida, como a gripe das aves e a febre suína, são uma realidade que temos de aceitar e que continua a ameaçar a saúde da população mundial. Como se tudo isto não bastasse, foi-nos dito que a ameaça iminente das alterações climáticas pode transformar irreversivelmente o planeta Terra e dar início a desastres naturais de enormes proporções. O furacão Sandy, que atingiu a costa leste dos Estados Unidos em novembro de 2012, pode ter sido prova disso. Sem dúvida alguma que cada período histórico ultrapassou a sua quota-parte de ameaças diferentes, mas igualmente preocupantes e sérias. Do ponto de vista biológico, os mecanismos com os quais estamos equipados para contrariar tais ameaças e sentirmos a ansiedade não são diferentes daqueles que os nossos antepassados possuíam. Mas a frequência e velocidade a que somos bombardeados com notícias de riscos, perigos e desastres reais implica um desafio sem precedentes às nossas mentes. Ligar o rádio ou ler um jornal é o suficiente para sermos esmagados por uma carga brutal de acontecimentos preocupantes. Enquanto Robert e eu estávamos sentados a conversar e a beber, percebi que raramente me desafiava a mim próprio a aproveitar todas essas horas passadas num laboratório do cérebro para resolver as necessidades da vida real. Cada vez que digo a alguém que acabo de conhecer que trabalho num laboratório que se dedica ao estudo do medo e da ansiedade, todos se voluntariam para serem objeto de estudo numa das minhas experiências, pretendendo ser material de primeira qualidade, o melhor espécime para a investigação daquelas terríveis emoções. No entanto, o significado das minhas experiências foi demasiadas vezes abstrato, confinado por trás das paredes do laboratório. Conversas sobre as regiões do cérebro, os genes, os neurotransmissores e as medidas comportamentais pareciam-me incrivelmente distantes do monólogo do tumulto ansioso pessoal. Estava na hora de compreender se o conhecimento reunido no laboratório podia ser útil em tais circunstâncias.
CONHECE O TEU INIMIGO
Se tiver de se defender dos seus inimigos, ou se tiver de os derrotar, tem de os conhecer bem. Um bom primeiro passo é distinguir a ansiedade do medo. O medo é uma das nossas emoções básicas e, de longe, a mais investigada no laboratório. É classicamente definida como uma resposta a uma ameaça iminente ou ao perigo. Quando temos medo, é, por norma, de algo específico, de um leão, de cobras ou de voar. Do ponto de vista evolutivo, o medo é um traço útil e protetor, vital para a nossa sobrevivência. AguçaInteressante
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LIVROS -nos os sentidos e prepara os nossos corpos para enfrentarem perigos repentinos. Se não conseguíssemos senti-lo, morreríamos, tão-só porque não evitaríamos as situações perigosas que poriam a nossa vida em risco. O medo faz-nos nadar mais depressa para a costa se avistarmos um tubarão, mas dissipa-se assim que o tubarão deixa de ser uma ameaça. Como acontece tantas vezes, Charles Darwin pode dar-nos aqui uma ajuda. Na secção da sua obra dedicada ao medo, Darwin escreveu: “O medo é muitas vezes precedido pelo espanto e é tão parecido com ele, que ambos levam a que os sentidos da visão e da audição sejam imediatamente excitados. [...] A princípio, o homem assustado parece uma estátua, incapaz de se mover e respirar, ou agacha-se como se estivesse, instintivamente, a evitar ser visto.” “O coração bate rápida e violentamente, de tal forma que palpita ou bate nas costelas [...] a pele torna-se instantaneamente pálida, como numa debilidade incipiente, a transpiração exsuda de imediato dela.” Além disso, as pupilas dilatam. Ficamos com o estômago às voltas. A respiração torna-se difícil. Por vezes, até os pelos se eriçam! Darwin também acrescentou que o “terror” – assim designou um estado de muito medo – envolvia “tremores dos órgãos vocais e do corpo”.
AS EMOÇÕES COMO REAÇÕES
Todo este conjunto de respostas ocorre de forma inconsciente e em milésimos de segundo. À medida que se revelam, vamos ficando conscientes delas, mas não temos de estar realmente conscientes delas para que ocorram. O psicólogo americano William James deixou isto claro no seu ensaio fundamental What Is an Emotion?, publicado em 1884. Neste ensaio, James apresentou os seus pensamentos [pioneiros] sobre como nos “emocionamos”. Naquela época, a teoria prevalecente sobre as emoções descrevia-as como uma espécie de estado mental de consciência da nossa reação relativamente a um facto ou a uma alteração no meio ambiente. Por sua vez, esta perceção mental acionaria uma sequência de respostas físicas. Logo, aplicando esta teoria ao caso do medo, ver um urso no bosque provocar-nos-ia, a princípio, medo e, consequentemente, o estado de medo levar-nos-ia a estremecer e a tremer. James achava que esta sequência de acontecimentos estava errada e que o que acontece é precisamente o oposto. Ele afirmava que sentimos medo porque estremecemos e trememos, não o inverso. As emoções são, antes de mais, reações corporais. Só depois vem o sentimento ou a consciência dele. Estava tão convencido desta sequência quanto à forma como nos emocionamos que afirmava inclusivamente que, se separássemos
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os sintomas corporais das emoções, nada restaria. Apenas um “estado de perceção intelectual” frio e neutro. “Que tipo de medo restaria, se a sensação de pulsação acelerada, a respiração entrecortada, os lábios a tremer, os membros fracos, a pele de galinha ou o estômago às voltas não estivessem presentes, é impossível de imaginar.” Mas voltemos à distinção entre medo e ansiedade. O medo tem um objetivo específico. E a ansiedade? Bem, a ansiedade não é tão simples. A ansiedade costuma corresponder a um medo do indefinido, algo que nem sempre conseguimos explicar nem localizar no espaço e no tempo. É imprevisível e, muitas vezes, trata-se de uma antecipação de uma ameaça desconhecida ou não necessariamente atual. Tal como me aconteceu na noite em que Robert me ligou, sentimo-nos irritadiços e agitados com a possibilidade de acontecimentos negativos ou catastróficos que podem nunca chegar a materializar-se. Por outras palavras, a ansiedade é o medo em busca de um motivo.
O PEDIGREE DA ANSIEDADE
As razões opacas e obscuras da ansiedade escondem-se bem, mas vale a pena procurá-las. Sigmund Freud dedicou muito tempo a esta busca. Estava convencido de que a “ansiedade é um ponto nodal no qual convergem as mais variadas e importantes questões [psicológicas], um enigma cuja solução representaria o lançar de um feixe de luz sobre toda a nossa existência mental”. No final do século XIX e no início do século XX, uma doença começou a invadir as grandes cidades, afetando em especial as classes mais altas e os trabalhadores dessas classes. Consistia, principalmente, em incómodos de estômago, dores de cabeça, nevralgia e cansaço generalizado e disseminou-se rapidamente, tal como uma gripe, como resposta à rápida urbanização e ao aumento frenético e agitado do estilo de vida gerado pelo mundo industrializado. Do outro lado do oceano, o físico americano George Beard chamava a esta nova condição “neurastenia”, para indicar o excesso de excitação ou “exaustão”
Um exemplo emblemático deste mecanismo, que impressionou e inspirou Freud, foi Anna O., uma paciente de Breuer. Anna apresentava tosse nervosa, perturbações visuais, paralisia do lado esquerdo do corpo, bem como alguns problemas na fala. Estranhamente, algures pelo caminho, também manifestou uma forma aguda de hidrofobia. Durante várias semanas não conseguiu beber qualquer líquido. Algo tão inócuo como um copo de água dava-lhe a volta ao estômago e fazia-a ficar nervosa, mas não conseguia explicar porquê. Durante uma sessão hipnótica, revelou que certa vez, na casa de uma mulher inglesa que estava a visitar, tinha visto um cão a beber de um copo. A cena enojou-a mas os seus bons modos impediam-na de dizer fosse o que fosse à anfitriã. Depois de se lembrar deste episódio, contudo, conseguiu voltar a beber.
O PRINCÍPIO DA CLASSIFICAÇÃO
Medo climático Estragos provocados pelo furacão Sandy na costa de Nova Jersey (Estados Unidos), em 30 de outubro de 2012.
do sistema nervoso e acreditava que esta era sobretudo comum entre os norte-americanos, afirmando que a sociedade norte-americana gerava muito mais excitação do sistema nervoso do que a sociedade europeia. De facto, “o nervosismo norte-americano” ou “americanite” tornou-se um sinónimo popular da doença. Freud concordava com a ideia de que o penoso incómodo que observara nos pacientes estava de alguma forma relacionado com a tensão contínua da vida urbana, mas achava que esta tinha de ser provocada por mais do que simples fatores externos. Chamou a esta condição “neurose de ansiedade” e suspeitou que fosse o resultado de uma oposição entre a constituição, os desejos e as aspirações de um indivíduo e aquilo que a civilização moderna exigia dele. Como provavelmente o leitor sabe, nesta busca para encontrar as causas internas da neurose, Freud recebeu e ouviu um elevado número de pacientes, que se deitavam no sofá do seu pequeno consultório em Viena. Freud
foi inspirado a fazê-lo pelo seu amigo Josef Breuer, outro médico de Viena que hipnotizava os pacientes e os deixava falar sobre si próprios durante os seus estados hipnóticos. Depois de analisar um elevado número de casos, Freud teorizou a neurose como uma manifestação de conflitos por resolver que, na sua maioria, tinham origem na infância e estavam com frequência ligados a experiências traumáticas, muitas vezes de natureza sexual. Em geral, uma pessoa neurótica era alguém que reprimia a descarga de algum tipo de energia psíquica que continuava a tentar emergir. Por isso, continuou a ouvir os seus pacientes para os ajudar a desenterrar essas memórias, deixando que as razões das suas angústias viessem à superfície. Um dos traços mais notáveis deste tipo de terapia era os sintomas de um paciente desaparecerem quase por completo quando o momento da sua primeira ocorrência era invocado e quando acontecimentos desagradáveis ou traumáticos esquecidos, ligados a esses sintomas, eram trazidos à memória.
Talvez valha a pena resumir o que se viria a tornar subsequentemente o conceito de neurose. Ao longo do último século, à medida que o número de doenças mentais que afetava a população ia aumentando, os médicos começaram a pensar que seria necessário incluí-las todas num livro. Com esta finalidade, em 1952, a American Psychiatric Association publicou um volume chamado Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (ou DSM, para abreviar). Criado para ajudar os psiquiatras a chegarem a acordo sobre como definir e reconhecer a patologia mental, o livro deveria funcionar como um manual de instruções, listando os sintomas que deviam ser observados e utilizados para identificar cada distúrbio numa variedade de pacientes. O livro, que é agora considerado uma referência essencial para todos os que trabalham em saúde mental e estão envolvidos no diagnóstico e tratamento de distúrbios psiquiátricos, tinha como objetivo de base unificar a linguagem do diagnóstico. Deste modo, ao consultar as páginas no DSM, dois psiquiatras que viviam em duas cidades diferentes, ou até em dois países diferentes, podiam utilizar os mesmos parâmetros de diagnóstico em pacientes que exibiam sintomas semelhantes. As “neuroses” foram incluídas na primeira edição do DSM. Nessa edição, as neuroses surgiam como uma categoria abrangente na qual as angústias emocionais se manifestavam por vários distúrbios psicológicos e mentais. De certa forma, ser neurótico correspondia a apresentar uma pequena alteração do comportamento normal. A mesma classe abrangente de “neurose de ansiedade” foi mantida na segunda edição do manual, publicada em 1968, mas drasticamente desconstruída na terceira versão. A alteração na terceira edição do DSM marcou um importante capítulo na históInteressante
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LIVROS ria da psiquiatria e estabeleceu as fundações para o atual sistema de categorização da ansiedade e de todos os outros tipos de doenças mentais. No fundo, a nova edição livrou-se do termo “neurose” – e de tudo o que conservava um significado psicanalítico – e separou os ataques de pânico e distúrbios de paranoia das restantes formas de ansiedade, acima de tudo porque respondem a tipos de medicação diferentes. A quarta edição manteve esta separação principal e introduziu novas formas de ansiedade, cada uma com o seu próprio conjunto de sintomas. A classificação incluía: fobias específicas, nomeadamente medo de determinado objeto ou de determinada situação que, por normal, é desproporcional ao perigo, por exemplo, um medo exagerado de aranhas; fobia social ou transtorno ansioso social, o medo de situações sociais; agorafobia, o medo de espaços públicos; distúrbio de stress pós-traumático, a manifestação de ansiedade no rescaldo de uma exposição passada a um acontecimento traumático ou a uma ameaça aterradora; distúrbio do pânico, no qual o paciente sente episódios frequentes e inesperados de medo intenso (como ataques de pânico); e distúrbios obsessivo-compulsivos, caracterizados por pensamentos intrusivos e pela necessidade de perseguir sem parar um pensamento ou uma ação para se livrar do medo – por exemplo, ter de lavar as mãos compulsivamente porque se sente medo de ser infetado por uma bactéria.
UM MAL GLOBAL
Outra categoria é o distúrbio de ansiedade generalizada. Se o leitor passasse os olhos pelos critérios de diagnóstico deste distúrbio, concluiria que se aplicam a toda a gente que conhece, incluindo a si. De facto, o DSM afirma que, para poder qualificar-se para um diagnóstico de distúrbio de ansiedade generalizada, tem de sentir o seguinte: ansiedade e preocupação excessiva e difícil de dominar “que ocorra, na maioria dos dias, ao longo de, pelo menos, seis meses, sobre um determinado número de acontecimentos ou atividades (como desempenho no trabalho ou na escola)”. Também deve manifestar três ou mais dos seguintes sintomas: “sentir-se inquieto ou enervado ou no limite; cansar-se facilmente; ter dificuldade em concentrar-se ou ter brancas; irritabilidade; tensão muscular; distúrbios do sono (dificuldade em adormecer ou em dormir, ou sono inquieto e insatisfatório)”. A preocupação também não deve ser sobre algo específico e deve “provocar distúrbios clinicamente significantes ou deficiências nas áreas social, ocupacional ou outra importante para o normal curso” da vida. O DSM pretende facilitar a deteção de distúrbios em pessoas que precisam realmente de
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apoio médico. Contudo, tendo em conta estes critérios, quem não reúne as condições para tal diagnóstico? De certa forma, o distúrbio de ansiedade generalizada encontra-se, assim, mais perto da condição anteriormente rotulada como neurose e representa o tipo comum de ansiedade que nos apanha regularmente de surpresa. Digno de nota é que, claramente, o distúrbio de ansiedade generalizada e outros tipos de ansiedade listados no DSM não passam de construções arbitrárias dos psiquiatras, doenças geradas pela classe médica e baseadas em sintomas clínicos, não na sua biologia. Os distúrbios são entidades monolíticas para um diagnóstico conveniente que por si mesmas não nos dizem nada sobre a experiência dos indivíduos com o distúrbio. É importante assinalar que, tanto do ponto de vista sintomático como biológico, existe uma
considerável sobreposição dos diagnósticos. As várias formas de ansiedade partilham os seus substratos neurais primários. Da mesma forma, os genes subjacentes à manifestação de uma forma de ansiedade também desempenham um papel na manifestação de outra. [Seguem-se 24 páginas sobre a investigação científica nesta área, cortadas nesta transcrição por razões de espaço.]
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Robert acabou por perder o emprego de banqueiro. A princípio não foi nada fácil para ele. Enquanto esteve desempregado, encontrei-me com ele várias vezes para o ajudar a decidir os próximos passos a tomar. Durante as nossas conversas abrangentes sobre ciência, filosofia e sobre a vida em geral, concordámos que, ainda que sejamos impotentes para afetar a economia, podemos decerto alterar as nossas
Por isso, quando o vento uivante da ansiedade sopra, temos de ser suficientemente robustos para nos mantermos firmes na nossa vontade de atingirmos as nossas aspirações, mas suficientemente flexíveis para abraçarmos os tipos de mudança de que precisamos. A ansiedade é uma oportunidade para transformar o indefinido em algo mais preciso, a incerteza e a imprecisão em precisão e clareza. Se o conseguir, então a ansiedade esmorecerá e instalar-se-ão emoções mais positivas.
MEDO E CORAGEM
Imprevisível. Talvez um dos grandes segredos da vida seja aprender a abraçar a incerteza, um aspeto fundamental e intrínseco da existência.
reações relativamente à mesma. Ocasionalmente, dávamos por nós a ponderar como seria a vida se aqueles anos do início da nossa vida adulta não fossem afetados pela crise. Com resignação, questionámo-nos se, quem sabe, não teríamos nascido tarde demais. Contudo, ainda que concedêssemos que vivíamos numa era de maior e desproporcionada ansiedade, não havia verdadeiramente muito que pudéssemos fazer. Estes são os tempos em que vivemos e temos de os aproveitar o melhor possível. Exceto no caso de uma experiência traumática flagrantemente séria que deixe uma marca duradoura na nossa memória, a maior parte da ansiedade reside, realmente, no nosso desejo constante de alterar as nossas identidades e na perceção da impossibilidade de encontrar qualquer orientação definitiva para as nossas ações. A ansiedade está em
sermos incapazes de lidar com a incerteza e, em casos mais graves, a experiência pode ser aterradora. Mas não é a vida apenas incertezas? Apesar da tentativa do mundo em estigmatizar a ansiedade, devemos acarinhá-la. Precisamos da ansiedade para uma avaliação objetiva da nossa existência e, subsequentemente, procedermos a uma alteração significativa, esforçando-nos por alcançar algo positivo. A ansiedade é o nosso semáforo amarelo: uma oportunidade para tomarmos as escolhas certas e para identificarmos os objetivos e ações que consideramos valerem a pena, se quisermos viver vidas autênticas ou, pelo menos, vidas que tenham significado para nós. Claro que esses objetivos variam. Mas quer deseje uma família grande, um emprego na área comercial, uma carreira como músico ou o corpo perfeito, precisa de ser determinado.
Para minha grande alegria, Robert utilizou corajosamente parte das suas poupanças para a reforma para começar um novo negócio, um café-livraria no coração do Soho. Tendo sonhado desde sempre com um tal negócio, agarrou a oportunidade que a recessão lhe deu para alimentar a sua paixão por livros. Agora, sempre que ele ou eu precisamos de trocar pontos de vista sobre a vida, vou visitá-lo ali. Muitos dos que perderam os seus competitivos empregos na alta finança, durante a recessão, tiveram ideias criativas para uma ocupação alternativa, redescobrindo algumas das suas antigas paixões há muito reprimidas, e dedicaram-se a elas. Quem sabe se o café de Robert o sustentará durante a crise económica. No entanto, o seu triunfo é ter aceitado que tudo na vida são incertezas. Medo e coragem são dois lados da mesma moeda. A coragem reside em ir avante com as suas ações apesar do medo e dobrar esquinas sem saber o que irá encontrar. Quando preciso de me recordar disto, invoco um belo texto escrito pelo boémio poeta austríaco Rainer Maria Rilke. Este aborda o “medo do inexplicável”, uma frase que encerra, em si mesma, o significado de ansiedade. Diz o seguinte: “O medo do inexplicável não empobreceu sozinho a existência do indivíduo; [...] é timidez perante qualquer espécie de experiência nova, imprevisível, com a qual alguém pensa não ser capaz de lidar [...] Pois se pensarmos na existência do indivíduo como uma sala maior ou mais pequena, parece evidente que a maior parte das pessoas aprendem a conhecer apenas um canto da sua sala, um lugar à janela, uma faixa de chão sobre o qual caminham de um lado para o outro. Assim, sentem uma certa segurança. E, no entanto, essa perigosa insegurança é tão mais humana.” Rilke encoraja-nos a abraçar as incertezas. Aceitar e aprender a lidar com esse aspeto fundamental e intrínseco da existência é a melhor abordagem para viver com a ansiedade e por entre ela. N.R. – Os subtítulos são da responsabilidade da Redação. Interessante
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GETTY / TRATAMENTO DIGITAL: J.A. PEÑAS
Psicologia Como lidar com a hiperatividade
Com o diabo no CORPO Três a sete por cento da população infantil sofre do transtorno por défice de atenção com hiperatividade (TDAH), caracterizado por uma impulsividade excessiva e pela incapacidade de concentração. O problema aflige pais e professores e, por vezes, persiste na idade adulta.
Bicho carpinteiro. As crianças com TDAH têm diiculdade em icar quietas, mexem-se nos momentos mais inoportunos, mudam de atividade sem terminar a anterior e não conseguem descontrair.
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ora do pequeno-almoço. Entra numa pastelaria e fica hipnotizado pela montra com a sua variedade interminável de doces. Qualquer um deles poderá arruinar, numa questão de segundos, os seus planos para manter a linha. Enquanto espera que lhe sirvam um café, desvia o olhar, pensa que não precisa desses bolos e imagina-se com menos dois quilos. Assim, consegue não cair em tentação. O investigador norte-americano Russell A. Barkley, que se especializou no transtorno por défice de atenção com hiperatividade (ou TDAH), descreve num dos seus artigos uma cena semelhante para explicar um dos distúrbios mentais mais comuns entre crianças e adolescentes. Este professor de psiquiatria e pediatria da Universidade Médica da Carolina do Sul perdeu o irmão gémeo, que sofria de TDAH, num acidente de trânsito. Estamos a falar de uma disfunção que altera os processos cognitivos complexos, os mesmos que nos permitiram, no início deste texto, evitar os doces. Os afetados têm dificuldade em focar a atenção e controlar o comportamento, dominar a impulsividade e adiar a gratificação. A consciência de si próprio e a inibição também são, para eles, tarefas complicadas.
FILTRAGEM DE INFORMAÇÃO
Quando conduzimos um carro e metemos uma mudança, fazemo-lo automaticamente e podemos continuar a falar com a pessoa ao lado sem desviar a atenção do que se passa na estrada. Isto é, filtramos a informação em função dos estímulos. Todos estes processos mentais estão concentrados no córtex pré-frontal, na parte exterior do encéfalo. Quando se tem TDAH, é ali que se produz um défice da ação reguladora de certos neurotransmissores envolvidos no controlo dos impulsos, como a noradrenalina, a serotonina e a dopamina. A última está relacionada com a atenção, a atividade motora, a motivação e a recompensa. A maior parte dos diagnosticacos com TDAH têm entre seis e nove anos e são do sexo masculino, numa proporção de quatro para um. Entre a população mundial, a incidência oscila entre os três e os nove por cento. Em dois terços dos casos, persiste na idade adulta, embora os sintomas variem com a maturidade. A hiperatividade e a impulsividade diminuem, mas a falta de atenção, a desorganização e as variações de humor (irritabilidade, por exemplo) permanecem. Por enquanto, a observação dos sintomas é o único indicador para se poder efetuar o diagnóstico. Até hoje, não foram identificadas variantes genéticas que predisponham para o distúrbio. A genética parece ser um fator de
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egundo os resultados preliminares de um estudo realizado no Hospital Sant Joan de Déu, em Barcelona, contou com a participação de sessenta pacientes com TDAH, os pais destas crianças manifestavam uma maior percentagem de mal-estar psíquico (27,5 por cento) relativamente aos pais de jovens sem TDAH (5,5%). As mães tinham maior tendência para sofrer de depressão e ansiedade. Por outro lado, o TDAH na idade adulta era mais frequente entre os progenitores do sexo masculino. Muitas crianças com hiperatividade manifestam outras síndromes associadas ao transtorno, como a depressão. Algumas sofrem de tristeza patológica, pois são consideradas preguiçosas ou pouco inteligentes devi-
do ao fraco rendimento escolar, o que mina a sua autoestima. Não é também raro encontrar pessoas afetadas que sofrem, igualmente, de dislexia, transtorno desafiador opositivo ou problemas de ansiedade ou afetivos. O abuso de substâncias e os distúrbios alimentares são, também, frequentes. Por outro lado, Allen Frances assegura que a data de nascimento também tem influência no diagnóstico infantil do TDAH. Segundo o psiquiatra norte-americano, as crianças nascidas em dezembro têm mais 70% de probabilidades de serem diagnosticadas do que as nascidas em janeiro. “É um erro, não deveríamos considerar a falta de maturidade normal de uma criança como uma doença”, denuncia o especialista.
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Haverá mais casos ou só mais diagnósticos? suscetibilidade e de risco, mas não explica por que motivo a pessoa sofre de TDAH. Em 2013, a Agência norte-americana dos Alimentos e dos Medicamentos (FDA) aprovou a comercialização do primeiro método de diagnóstico com base nos impulsos elétricos dos neurónios e na sua frequência por segundo. No entanto, a instituição recordou que se tratava apenas de “parte de um exame médico e psicológico completo”. Por sua vez, o psiquiatra norte-americano Allen Frances denuncia, no seu livro Saving Normal – An Insider’s Revolt Against Out-of-Control Psychiatric Diagnosis, DSM-5, Big Pharma, and the Medicalization of Ordinary Life, uma inflação no diagnóstico de doenças psiquiátricas e na medicalização da sociedade. Os seus argumentos ganham outro peso se pensarmos que foi o coordenador do DSM-IV (o manual de diagnóstico usado pelos psiquiatras de todo o mundo), mas se rebelou contra o DSM-5: “Não conseguimos prever epidemias de TDAH, autismo ou doença bipolar. Deveríamos recorrer ao manual para evitar os diagnósticos pouco elaborados, e não para diagnosticar em excesso”, adverte. “O DSM-IV previa alterações que provocariam um aumento de apenas 15% nos diagnósticos, mas, agora, 30% dos universitários norte-americanos e 10% dos alunos do ensino primário e secundário tomam medicamentação contra o TDAH!” O espanhol Francisco Xavier Castellanos,
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MEDICALIZAÇÃO DA SOCIEDADE
vice-presidente do grupo de trabalho do DSM-5 sobre TDAH e distúrbios do comportamento, discorda: “Não há duvida de que o número de pessoas diagnosticadas é maior do que antes, mas isso não significa que haja excesso de diagnósticos. Estamos é mais sensibilizados para o problema e dispomos de estudos mais aprofundados do que antes, a fim de não deixar de fora pessoas que devem ser tratadas”, afirma.
Outros especialistas creem que, antes, eram a pouca expansão da rede de saúde mental e a reduzida escolaridade obrigatória que levavam a menos diagnósticos de hiperatividade. Para eles, o TDAH existe, e não intervir no momento certo pode ter consequências graves. Admitem que possa haver erros de diagnóstico, mas estão tão preocupados com o diagnóstico em excesso como com os casos que passam despercebidos.
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Implicações familiares
Três tipos de TDAH
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novo manual de diagnóstico psquiátrico (DSM-5) refere três manifestações distintas de TDAH: com hiperatividade (menos frequente); de falta de atenção (os primeiros sintomas surgem geralmente mais tarde e passa despercebido devido à ausência de hiperatividade), e o que combina hiperatividade e falta de atenção, o tipo de distúrbio mais frequente. Entre as mulheres, predomina a síndrome com falta de atenção (sem hiperatividade); por isso, são casos mais difíceis de diagnosticar.
As meninas são diferentes O TDAH deteta-se mais facilmente nos rapazes, mais impulsivos do que as raparigas. Elas tendem a ter o déice de atenção, mas não a hiperatividade.
Todos concordam, no entanto, que só os casos mais graves devem ser medicados. Tal como acontece com outros distúrbios mentais, o tratamento farmacológico pode chegar aos mil euros por mês. A Bélgica, os Países Baixos e Espanha são os três países europeus com mais adultos diagnosticados e a tomar medicação: entre 20 e 24%. Embora sejam um estimulante, as anfetaminas são um dos fármacos mais receitados.
A ideia é focar o objetivo e centrar a atenção, com estimulantes à base de lisdexanfetamina e metilfenidato. O Rubifen (nome comercial do segundo) já foi receitado a mais de 120 milhões de pessoas em todo o mundo. Em Portugal, há outras duas alternativas terapêuticas disponíveis no mercado para tratar o TDAH: o Concerta e a Ritalina. Todavia, também existem medicamentos que não são estimulantes, como a atomoxetina, seguros, muito eficazes e indicados para crianças a partir dos seis anos. Os fármacos não constituem, porém, a única intervenção disponível. A terapia psicológica oferece aos pais padrões de relacionamento e estratégias para lidarem com o comportamento hiperativo dos filhos. A conclusão mais fácil é pensar que a criança é malcriada, mas é preciso deixar de ver um menor com TDAH como sendo problemático. De facto, as famílias dos hiperativos devem enfrentar a situação com base noutra perspetiva. “É preciso entendê-los e estabelecer continuamente pactos com os pacientes”, explica a psicóloga Isabel Vargas. De acordo com a sua experiência, deve-se passar sempre mensagens positivas, pois é muito importante trabalhar a sua autoestima. De igual modo, a mediação psicopedagógica reforça as áreas vitais em que a criança sente maiores dificuldades. As adaptações na sala de aula são fundamentais para melhorar a sua atenção e afastá-la de distrações, como as que podem ser proporcionadas por portas e janelas. Sentá-la na primeira fila, fornecer-lhe informação em pequenas doses e rever diariamente a sua agenda são alguns dos recursos disponíveis. “O TDAH caracteriza-se por exercer um grande impacto na aprendizagem escolar, na capacidade para se relacionar com os outros e na dificuldade em seguir normas de conduta”, explica a psicóloga clínica Rosa Nicolau. Por outro lado, é necessário proceder a uma avaliação global dos casos, a nível biológico, psicológico e social.
PATOLOGIA DE GENTE GRANDE
Não é raro encontrar adultos que pedem para ser submetidos a uma avaliação para ver se sofrem de TDAH, depois de terem passado a infância e a adolescência sem obter uma explicação médica para as suas dificuldades e o seu sofrimento. Dados obtidos por Stephen Faraone, investigador da Upstate Medical University (Nova Iorque), sugerem que apenas 25% dos casos tinham sido detetados em idades precoces. Atualmente, as estimativas sobre a sua prevalência em adultos varia entre 1% e 8% da população. Além disso, não se aceitava, até 1970, que os sintomas de TDAH persistissem depois de alcançada a maturidade. O psiquiatra nova-iorquino Luis Rojas Marcos é um desses casos. Nos anos 50, quando era criança, reprovava em todas as disciplinas, e recorda que a diretora da escola o ajudou muito quando decidiu sentá-lo na primeira fila. “O diagnóstico deu muito sentido a tudo o que me tinha acontecido até então”, resume Mateus, outro adulto com TDAH. Aprendeu precocemente a ler e a escrever, mas nunca fez trabalhos de casa. Tirava boas notas até que, em plena adolescência, mudou de cidade. “Podiam vencer-me, mas não convencer-me”, diz, referindo-se aos anos em que as suas únicas preocupações eram a música e as suas primeiras experiências com raparigas e drogas. Os estudos demonstram que existe uma grande tendência para utilizar estupefacientes em adultos com TDAH, em comparação com a população em geral. A proporção é de 52% para 27 %, segundo uma investigação do Hospital Geral do Massachusetts e da Escola Médica de Harvard (Estados Unidos), coordenada por Joseph Biederman, psiquiatra da primeira. As substâncias mais habituais são o álcool, seguido pelos estimulantes, a cannabis e os opiáceos. Mateus, por exemplo, passou por uma má viagem, que o deixou seis dias sem dormir. A ansiedade apoderou-se dele e, então, com ajuda médica, conseguiu deixar Interessante
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Segundo um estudo conjunto realizado por duas universidades australianas (Curtin e Nova Gales do Sul) e uma holandesa (Amesterdão), os pacientes de TDAH são mais propensos a ter acidentes de viação (e a não usar cinto de segurança).
Teste só para adultos
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eia as frases seguintes e assinale aquelas que considere poderem aplicar-se a si. 1. Tenho diiculdade em ser organizado. 2. Depois de iniciar uma tarefa, acabo por deixá-la para outra altura, em vez de a concluir de uma vez por todas. 3. Trabalho em muitos projetos mas não costumo levá-los até ao im. 4. Tendo a tomar decisões impulsivas e a pô-las em prática, como gastar dinheiro, envolver-me sexualmente com alguém, comprometer-me com novas atividades ou mudar de planos. 5. Aborreço-me facilmente. 6. Por mais que faça ou por muito que tente, parece que não consigo alcançar as metas que estabeleço. 7. É frequente distrair-me quando os outros falam. É como se desligasse. 8. Por vezes, estou tão absorto em algumas coisas que tenho diiculdade em parar para descansar ou fazer outra coisa. 9. Tendo a levar as coisas ao extremo, como comprar impulsivamente, beber sem moderação, trabalhar em excesso ou comer até icar empanturrado. 10. Fico frustrado e impaciente quando tenho de esperar. 11. A minha autoestima não é tão elevada como a de outras pessoas que conheço. 12. Tenho de me sentir muito estimulado, pelo que opto por ver ilmes de ação, ir às compras, estar com amigos com muita energia, conduzir depressa ou praticar desportos radicais.
13. Estou habituado a dizer e a fazer coisas sem pensar e, por vezes, isso acarreta problemas. 14. Preiro fazer as coisas à minha maneira do que seguir as regras e os procedimentos dos outros. 15. Muitas vezes, brinco com um lápis, balanço uma perna ou faço qualquer outra coisa para atenuar os nervos. 16. Fico facilmente deprimido se me afastarem do que é imporante para mim, quer sejam pessoas, coisas ou projetos. 17. Não me vejo como as outras pessoas me veem e, quando alguém se aborrrece com algo que iz, ico muito surpreendido. 18. Tendo a ser muito distraído e propenso a acidentes. 19. Engano-me muitas vezes por descuido. 20. Tenho familiares próximos que sofrem de TDAH, depressão, doença bipolar ou toxicodependência. RESULTADOS. No caso de se identiicar com quinze ou mais dos enunciados, é possível que sofra do transtorno de déice de atenção, com ou sem hiperatividade. Pode também sofrer do transtorno se se identiicar com menos de quinze: o questionário não substitui uma avaliação clínica, pelo que, no caso de suspeitar que pode ser incluído na categoria de hiperativo, o melhor será consultar um psicólogo especializado. Existem diferentes tratamentos para cada caso que poderão ajudar a melhorar a sua qualidade de vida.
O sistema educativo não está preparado para estes pacientes os estupefacientes. “Mais tarde ou mais cedo, encontramo-nos connosco próprios, e pode acontecer que as drogas acelerem o processo”, diz agora. Outras atitudes sintomáticas em adultos são a tomada impulsiva de decisões, a dificuldade em cessar atividades ou comportamentos no momento oportuno, o facto de se iniciar projetos ou tarefas sem ler ou escutar atentamente as instruções, o incumprimento de promessas, a desorganização e uma condução excessivamente rápida. Um dia, depois de ler algo sobre o TDAH, Mateus quis investigar e saber se era também vítima do distúrbio. Depois de ver confirmado o diagnóstico que já intuía, sentiu-se mais tranquilo e perdoou, nas suas palavras, aos professores, aos pais e a muitas outras pessoas. De facto, muitas vezes, o diagnóstico é uma libertação. Um exame atempado e o início do tratamento são fundamentais para evitar o efeito “bola de neve”, sublinha a psicóloga clínica Rosa Nicolau.
CARACTERÍSTICA DA PERSONALIDADE
O transtorno por défice de atenção com hiperatividade é descrito na literatura médica desde finais do século XVIII. Contudo, ainda há um longo caminho a percorrer. Em particular, é preciso compreender o que é o TDAH e fazer os ajustes necessários, diz Mateus: “O sistema educativo deveria ter uma perspetiva mais ampla, de forma a tornar-se abrangente para pessoas com TDAH. Eu nunca tive problemas cognitivos”, argumenta. No mesmo sentido, especialistas na matéria asseguram que não se deve deixar de potenciar as capacidades intelectuais dos pacientes com TDAH. Talvez eles demorem mais a aprender, pois podem distrair-se, mas a sua energia é uma vantagem: quando se faz algo de que gostamos e que nos estimula, e não nos importamos de lhe dedicar mais horas, todos somos capazes de fazer um esforço especial. Para Mateus, o TDAH “é apenas mais uma característica da personalidade; o T de transtorno é atribuído pela sociedade”, diz. Por sua vez, os especialistas confirmam que ter alguém que acredite nas capacidades de uma pessoa com TDAH é muito importante para poder ultrapassar eventuais dificuldades. N.J.
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Desporto As armadilhas do exercício
Aprenda a CORRER As ruas encheram-se de corredores que parecem levar muito a sério a sua atividade. Sendo assim, quer se dediquem à prática para manter a forma, quer pretendam participar em competições, convém-lhes conhecer os problemas físicos mais frequentes que dela resultam. JOELHO DO CORREDOR
A síndrome da banda iliotibial é uma lesão comum em corredores e ciclistas, apresentando-se geralmente na forma de dor no lado exterior do joelho. Afeta uma faixa grossa de tecido conjuntivo que começa na articulação da anca e desce pelo músculo até cruzar e juntar-se à face externa da fíbula (o peróneo). Se não for tratada a tempo, pode impedir a corrida. Andar reduz ou alivia os sintomas, enquanto subir e descer escadas os agrava. O tratamento mais comum são os alongamentos, principalmente da parte exterior das pernas. Para evitar este mal, deve usar-se calçado apropriado, para amortecer a passada e proporcionar estabilidade no interior do pé, de modo a que o arco interno não ceda excessivamente em cada passo. Se correr no asfalto, evite a berma, para impedir que a inclinação constante do solo modifique a postura do pé.
UNHA NEGRA
O dedo do corredor ou do tenista é uma lesão que surge na forma de mancha negra ou roxa sob a unha do pé. Geralmente, o hematoma ocorre no primeiro ou no segundo dedos, e ocorre após executar exercícios que colocam pressão sobre os pés; por exemplo, ao correr em terrenos a descer, em que as unhas batem continuamente na biqueira do calçado. O problema também ocorre se os sapatos forem pequenos e não deixarem espaço em volta
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dos dedos. À medida que for cicatrizando, a unha pode soltar-se e cair, para ser substituída por uma nova.
CORAÇÃO DE ATLETA
Quem treina mais de uma hora por dia, todos os dias da semana, está em risco de desenvolver esta síndrome, uma adaptação crónica do músculo cardíaco ao esforço extremo. Os desportos aeróbicos, como correr, jogar futebol, nadar ou andar de bicicleta, podem aumentar o tamanho do coração (cardiomegalia), que, como consequência, bombeia mais sangue e oxigénio a cada batida. Outra adaptação ao esforço é a redução da frequência cardíaca tanto em repouso (40 a 60 pulsações por minuto, face às 70, em média, de uma pessoa sedentária ou pouco treinada), como durante a prática de exercício, o que reduz a fadiga. A razão é que baixou o número de pulsações necessárias para bombear certa quantidade de sangue e alcançar determinado nível de esforço, o que permite treinos mais prolongados e mais duros. Alguns atletas apresentam arritmias e até mesmo pausas na pulsação superiores a dois segundos, alterações que não prejudicam a saúde.
EXCESSO DE TREINO
Para que o desporto nos fortaleça, é necessário alternar de forma equilibrada períodos de intenso trabalho físico com outros de recu-
peração. Só assim se produz uma melhoria fisiológica prolongada, já que, durante o descanso posterior ao treino, e para compensar o esforço, o corpo aumenta a eficiência cardíaca, assim como a irrigação sanguínea e os depósitos de glicogénio nos músculos, e acelera a atividade das mitocôndrias, as centrais energéticas das células. Se não se respeitar o tempo de recuperação e a intensidade do exercício provocar um desgaste excessivo, o resultado é o oposto do desejado, ou seja, fadiga e quebra do rendimento. Este efeito pode durar até seis meses e, nos casos mais graves, arruinar uma carreira desportiva. Um dos sintomas que dão o sinal de alarme é o aumento agudo da concentração de adrenalina e noradrenalina e a produção excessiva de serotonina, a hormona do prazer, um neurotransmissor que, quando se acumula, pode causar sonolência e fadiga.
FASCITE PLANTAR
É uma dor localizada na planta do pé, pouco antes do calcanhar, e que chega até aos dedos. A causa são as microrruturas devidas ao esforço repetitivo na corrida. Nas suas fases iniciais, a lesão costuma manifestar-se ao iniciar a corrida e desaparecer passados alguns quilómetros. À medida que se agrava, leva mais tempo a passar, e pode até incomodar ao andar. Pode tratar-se correndo sobre superfícies macias e calçando sapatos almofadados ou amortecidos. Outra ajuda para minorar o problema é alongar e fortalecer o tendão de Aquiles e os quadríceps, assim como os músculos pequenos dos pés. E.S.
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Flash
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Macho ou fêmea? “Como transporta ovos, é certamente uma fêmea”, dirá a maioria dos leitores. Recorde-se que, na natureza, nem tudo é aquilo que parece. Este é um bom exemplo disso: estamos perante um macho de sapo-parteiro, que deve o seu nome ao peculiar hábito de cuidar dos ovos até à sua eclosão. Assim, este pai extremoso, após fecundar os ovos, que podem ser oriundos de várias fêmeas, enrola-os nas suas patas traseiras e transporta-os consigo durante um ou dois meses, até os depositar na água para eclodirem. Nas noites estivais, os machos cortejam as fêmeas através de assobios monossilábicos que se repetem horas a io (cuidado, não se deixe enganar, pois o mocho-pequeno-d’orelhas assobia da mesma forma). Em Portugal, existem duas espécies: o sapo-parteiro-comum (Alytes obstetricans), na imagem, e o sapo-parteiro-ibérico (A. cisternasii). Embora possam coexistir em alguns lugares, o comum surge essencialmente na metade norte do país, enquanto o ibérico se distribui principalmente pela metade sul e ao longo da fronteira até à zona de Bragança. Estes são sapos de tamanho pequeno, que raramente ultrapassam 5 cm de comprimento, com hábitos noturnos ou crepusculares. Foto: Jorge Nunes.
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Terra Desastre natural pouco falado
DESLIZES que matam Há desabamentos de terra que sepultam localidades inteiras. Este tipo de desastre natural não recebe tanta atenção dos media como outros, mas são fenómenos frequentes e podem causar grandes estragos. O que os provoca e como podem ser evitados?
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pedras, terra ou sedimentos”. Estes acontecimentos são classificados em função do material arrastado, do tipo de movimento e da sua origem. Regra geral, podem ser causados por atividade vulcânica ou sísmica ou ainda, como aconteceu em Hiroxima, pelos efeitos do mau tempo. Alguns não só afetam as camadas mais superficiais do terreno como arrastam elementos enterrados no solo.
DECLIVES INSTÁVEIS
O fator mais frequente que desencadeia um deslizamento é a instabilidade do declive da montanha, a qual se produz quando uma parte do terreno se solta da encosta. À medida que os materiais se precipitam para baixo, forças exteriores, denominadas de cisalha ou de tensão tangencial, aumentam a pressão da água no solo que está a ser arrastado, pelo que este se transforma numa massa praticamente fluida. O processo, conhecido por “liquefação”, resulta geralmente do aumento do volume de água proporcionado por abundantes precipitações, ou pela ação de sismos. As consequências deste fenómeno natural são graves. Por exemplo, em maio de 2014, no Afeganistão, um deslizamento de terras causado por chuvas torrenciais, na província de Badakhshan, no nordeste do país, causou mais de duas mil mortes e fez cerca de quatro mil desalojados. Mais recentemente, em outubro passado, outro deslizamento de terra, numa
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s habitantes de Hiroxima não esquecerão o verão de 2014. A chuva caiu durante um mês sem lhes dar um dia de trégua. Para terminar, a 20 de agosto, foram registados 240 litros por metro quadrado em apenas 24 horas. As chuvas torrenciais provocaram inundações e um gigantesco deslizamento de terra, algo que já sucedera antes e que pode ser em parte explicado pela localização da cidade. Hiroxima está situada no sudoeste do Japão. Os seus alicerces assentam nas verdes montanhas da região de Chugoku, célebre pela beleza das suas paisagens e pelos seus monumentos. Os níveis mais superficiais do solo fértil acumulam a água proveniente das frequentes precipitações registadas na zona. Por vezes, como aconteceu nesta ocasião, nem mesmo a abundante vegetação das encostas consegue deter a grande quantidade de material solto pelas águas que correm pelos declives. Tanto o centro urbano como a área rural que o rodeia sofreram os efeitos de uma maré de lodo e terra que pôs fim à vida de 74 pessoas, fez desabar edifícios e arrastou terrenos agrícolas. Foram evacuadas 26 mil habitações situadas no sopé dos montes da zona. Segundo o Portal Europeu do Solo, do Instituto para o Ambiente e a Sustentabilidade da Comissão Europeia, um deslizamento de terra pode ser definido como “o movimento gravitacional encosta abaixo de uma massa de
plantação de chá no Sri Lanka, matou cerca de cem pessoas, que ficaram soterradas. Um estudo recente da Universidade de Durham (Reino Unido) revela que as autoridades ficam geralmente aquém da realidade quando se trata de contabilizar as mortes causadas pelo fenómeno. Os investigadores reuniram dados dos desabamentos registados e respetivas consequências , entre 2004 e 2010, nas regiões mais afetadas do planeta: China, América do Sul e Central e Índia. As 3000 mortes
Estrada para o inferno. Os terramotos são uma das causas principais dos desabamentos de terras. Um sismo de grau 7,2 na escala de Richter provocou este espetacular deslizamento perto da cidade de Kurihara, no nordeste do Japão.
oficialmente atribuídas a estas catástrofes naturais passaram para 32 300! David Petley, um dos geólogos responsáveis pela investigação, afirma que os efeitos ambientais dos deslizamentos de terra são devastadores para as populações afetadas: “É preciso reconhecer o verdadeiro alcance do problema e adotar as medidas adequadas para gerir um risco ambiental que afeta milhões de pessoas no mundo.” Acrescenta que os padrões climáticos, a deflorestação, o
degelo e a crescente densidade populacional nas zonas montanhosas do planeta constituem os fatores mais importantes para determinar a distribuição, o número, o alcance e as consequências dos desabamentos.
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS
Assim, os mais graves registam-se habitualmente entre os meses de maio e outubro, na temporada de chuvas característica da monção, e durante furacões ou fenómenos atmosféricos
extremos (cada vez mais frequentes, devido às alterações climáticas), que descarregam grande quantidade de água no terreno, sobretudo na Ásia, nas Caraíbas e na América Central. Um exemplo é o furacão Camille, que causou, em 1969, mais de uma centena de mortes entre as populações das cordilheiras na parte central do estado da Virgínia. Caíram 600 litros por metro quadrado em apenas seis horas. Os deslizamentos associados a grandes tempestades, como as ocorridas em Hiroxima Interessante
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BRANDON FORBES / USGS
Lasers e GPS são usados para vigiar zonas com alto risco de desabamento.
Vigilância espacial
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s satélites podem integrar sensores remotos que utilizam laser ou radar, como as tecnologias LiDAR e InSAR, para detetar os movimentos de terras e assinalar nos mapas as regiões mais sensíveis aos deslizamentos. Contudo, ainda não existe um método que permita prever com exatidão se um declive irá ceder, nem em que medida o fará. Apesar de os cientistas estarem a desenvolver modelos para simular o processo, também não se conhece com precisão o modo como a chuva, responsável por cerca de dois terços dos desabamento de terra, altera a dinâmica da água no solo, ou as forças que agem nas partículas do terreno. Um exemplo nesse sentido é o projeto empreendido pelo governo do Japão com investigadores da Universidade de Quioto, os quais analisam o comportamento de um declive de grande instabilidade no sul do Vietname, reunindo dados sobre precipitações e previsões meteorológicas para comprovar se as ferramentas matemáticas que conceberam conseguem prever o que acontecerá na encosta se a chuva forte continuar. Na região chinesa de Zhangmu, onde os deslizamentos são também frequentes, o governo de Pequim financiou uma campanha para instalar sensores no solo que avaliem a pressão da água nos poros do terreno, além de tomar medidas para tornar as encostas mais estáveis, drenar o excesso de líquido e impedir a passagem dos sedimentos.
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Ameaça global. Este mapa mostra os lugares onde ocorreram os deslizamentos de terra mais importantes desde 2004. O centro e o leste da China concentram um bom número, mas o fenómeno veriica-se em praticamente todo o mundo.
As zonas de maior risco situam-se em países pobres e na Virgínia, são fundamentalmente desencadeados por três fatores: precipitações abundantes, orografia escarpada e um solo composto por materiais especialmente moles ou pouco consistentes, que se soltam facilmente e podem mesmo escapar à constrição normalmente exercida pelas raízes das árvores e dos arbustos que crescem nas encostas.
FATORES HUMANOS
No entanto, os desabamentos de terra têm outras causas sem ser o clima ou a geologia locais. No verão de 2010, a chuva torrencial que caiu na região chinesa de Zhouqu provocou uma enorme tragédia: mais de um milhar de mortes, e muitas zonas ficaram soterradas sob sete metros de lama. Um estudo governamental chinês analisou o acontecimento e os fatores que o tinham desencadeado. Os especialistas tomaram em consideração tanto as condições meteorológicas prévias como as características do solo e a seca dos meses anteriores, e concluíram que o homem tinha desempenhado um papel fundamental no processo, devido à deflorestação e à erosão do solo provocada por diversas atividades.
Além disso, as alterações climáticas, como já se referiu, aumentaram a intensidade e a frequência de furacões e tempestades que provocam os deslizamentos. Segundo os cientistas, os resultados demonstram “a necessidade urgente de lançar um programa de reflorestação na região de Zhouqu, sem o qual continuará exposta aos efeitos de futuras catástrofes naturais”. Se a vegetação for eliminada das encostas, as probabilidades de deslizamento dos materiais que compõem o solo aumentam exponencialmente, pois também desaparece a função de retenção que os seus elementos subterrâneos exercem. O deslizamento de Zhouqu não foi o único com um final trágico. Também no ano passado, como já referimos, registou-se outro na localidade de Ab Barak, no nordeste do Afeganistão, que causou mais de 2000 vítimas. Ao longo do ano passado, estes fenómenos foram especialmente abundantes, como confirmaram cientistas da NASA num estudo baseado em dados sobre precipitação obtidos pelos satélites da Missão para Medição das Chuvas Tropicais (TRMM). Entre a informação reunida, foi selecionada a que correspondia a três zonas do
planeta onde se produziu algum desabamento de terras durante o referido período: o centro e o leste da China, a América Central e a cordilheira dos Himalaias. As três regiões têm diferentes climas e topografias, mas possuem em comum a frequência com que se produzem os deslizamentos provocados por chuvas torrenciais.
SISTEMA DE ALERTA
Os peritos da NASA advertem que não existe um sistema de alerta para estes fenómenos naturais, e defendem que é necessário, para poder criá-lo, mais do que uma análise aos fatores que os causam em separado. Localizar os deslizamentos no mapa constitui o primeiro passo para a sua prevenção. “Noutras ameaças, como no caso dos furacões, existe uma sazonalidade muito definida. No Atlântico, o período vai de 1 de junho a 30 de novembro”, esclarece Dalia Kirschbaum, especialista em hidrologia e membro da equipa. Contudo, “não temos um registo dos deslizamentos que se produzem no mundo, e queremos saber quando e onde poderão ocorrer”, prossegue. Uma forma de alcançar o objetivo a que Kirschbaum se refere é analisar a distribuição e a intensidade das chuvas registadas pelos satélites, e comprovar se essas variáveis estão de alguma forma relacionadas com os deslizamentos. Tal como a Universidade de Durham, a NASA também desenvolveu uma
base de dados, que incluía, desta vez, todos os deslizamentos documentados que tivessem sido causados por precipitações. Trata-se do Catálogo Global de Deslizamentos de Terra (GLC), para cuja elaboração se basearam em notícias surgidas nos meios de comunicação social. Dessa informação, extraíram as características do fenómeno: entre outros aspetos, se foi antecedido por chuvas, se se tratava de sedimentos ou lodo, e quantas mortes causou. O GLC já tem seis anos completos de dados (2003 e de 2007 a 2011), durante os quais foram documentados mais de 4000 desabamentos que causaram 20 600 mortos em 60 países. Foi assim que Kirschbaum se apercebeu da grande quantidade de deslizamentos de terra concentrados no ano 2010, sobretudo em áreas da China, da América Central e dos Himalaias, as três regiões mais fustigadas. O número de desabamentos registados nesse ano triplica o dos ocorridos nos anos anteriores.
FROTA DE SATÉLITES
“O que caracteriza 2010 é o choque entre os fenómenos meteorológicos de El Niño e de La Niña (relacionados com variações nas temperaturas das correntes marinhas no Pacífico equatorial), os quais exerceram um forte impacto nos padrões de chuva em todo o mundo”, indica Kirschbaum. A fim de obter novos dados, a NASA, juntamente com a
agência espacial japonesa JAXA, enviou para o espaço, em fevereiro de 2014, uma frota de satélites com a missão de medir as precipitações a nível global. Os mais críticos asseguram que as autoridades preferem tomar medidas a posteriori, em vez de reduzir os riscos perante possíveis catástrofes. A maior parte dos núcleos urbanos em regiões montanhosas dos países em vias de desenvolvimento onde abundam os desabamentos de terra não foi alvo de planos urbanísticos adequados, e os centros foram construídos sem tomar em linha de conta essas ameaças naturais. Além disso, a elevada densidade populacional das referidas áreas faz com que muitas das casas sejam erguidas em zonas de declive ou muito perto das faldas da montanha, o que torna inevitável que sejam afetadas pelos deslizamentos. Embora, numa zona como a de Hiroxima, seja quase impossível não edificar em solos contíguos aos montes, programas internacionais como o Quadro de Ação de Hyogo, gerido pela ONU e adotado por 168 países, advogam a prevenção. O plano, lançado em 2005 e que terminará este ano, inclui recomendações e estratégias para reduzir o impacto das catástrofes naturais no planeta. Agir na prevenção dos danos evitará que se tenha de atenuá-los quando já for demasiado tarde. L.C.
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RÉMI BENALI / PATRICK LANDMANN / LIGHTMEDIATION
Antropologia Reviravolta nas teorias
A nossa nova TATARAVÓ
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As análises dos restos de Little Foot, uma australopiteca que viveu há 3,67 milhões de anos, sugerem que a nossa estirpe, mais antiga do que se pensava, poderá ter tido o seu berço na África do Sul.
Presa na rocha. O paleoantropólogo Ronald J. Clarke observa os restos de Little Foot na jazida sul-africana de Sterkfontein, de onde os extraiu em 2010.
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1 Outros parantropos
Linhagem humana
Homo rudolfensis
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Australopithecus garhi
Australopithecus africanus
Paranthropus aethiopicus
? Australopithecus prometheus Outros ardipitecos
Australopithecus afarensis Australopithecus anamensis
? Orrorin tugenensis
Sahelanthropus tchadensis
Os Australopithecus prometheus, entre os quais se encontraria Litle Foot (em cima, uma recriação), foram contemporâneos dos A. afaren-
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6 Milhões de anos
Parentes não tão distantes
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Ardipithecus kadabba
uando o paleoantropólogo Donald C. Johanson encontrou os restos da célebre Lucy na localidade etíope de Hadar, em 1974, houve uma verdadeira comoção mediática. Tratava-se de cerca de 40 por cento do esqueleto de um hominídeo que caminhava ereto, pertencente à espécie Australopithecus afarensis. Lucy viria a revelar-se muito velha: a idade dos seus ossos atinge os 3,18 milhões de anos. Essa antiguidade e o grau de conservação transformaram-na num dos principais tesouros da paleontologia. Nessa altura, era difícil imaginar que, décadas depois, seria encontrado outro australopiteco na outra ponta de África, ainda mais vetusto e com um esqueleto muito mais completo. A África do Sul é terra natal de importantes hominídeos. O primeiro Australopithecus africanus foi ali descoberto pelo professor de anatomia Raymond Dart, em 1924. Entre 1936 e 1947, o paleontólogo escocês Robert Broom recuperou muitos restos de Australopithecus e de fauna associada nos sedimentos de uma das principais jazidas da zona, as grutas de Sterkfontein, a noroeste de Joanesburgo. Outro programa de escavações, iniciado em 1966 pelo paleoantropólogo Philip V. Tobias, aumentou ainda mais a coleção de valiosos exemplares. O nosso conhecimento de Little Foot (Pé Pequeno), um esqueleto praticamente completo de uma australopiteca (classificado com a designação StW 573), deve-se a uma sucessão de pequenos milagres. Em 1992, Tobias pretendia conhecer melhor a fauna fossilizada mais
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sis. Porém, pareciam-se mais com os parantropos, hominídeos com fortes músculos faciais e cérebros mais pequenos do que os nossos.
Little Foot caminhava erguida, mas também subia às árvores antiga de Sterkfontein. Incumbiu da tarefa Ronald J. Clarke, um paleoantropólogo com vastíssimos conhecimentos de anatomia e reconstrução craniana de hominídeos. Os sedimentos mais antigos pertencem ao depósito Membro 2, e boa parte encontra-se exposta numa grande câmara subterrânea conhecida por “gruta Silberberg”, que foi outrora utilizada na exploração mineira para extrair rochas dolomíticas.
HISTÓRIA DETETIVESCA
Explorar o interior do Membro 2 não é tarefa fácil, pois é formado por uma brecha rochosa dura como o betão. Para se poder fazer uma ideia do seu conteúdo fóssil, em outubro de 1992 foi dinamitada uma amostra que demonstraria ser rica em restos de carnívoros e cercopitecídeos, grupo de símios que incluem os macacos e os babuínos. Curiosamente, havia poucos mamíferos ruminantes. Em 1994, intrigado por essa escassez, Clarke decidiu procurar fósseis de cascos de herbívoros nas caixas onde se guardava parte dos restos encontrados em Sterkfontein e encontrou ali alguns sacos de plástico com restos de herbívoros de Silberberg, recuperados entre 1978 e 1980. No entanto, para sua surpresa, Clarke descobriu entre os fósseis quatro ossos do
pé esquerdo de um hominídeo, e outro, mais pequeno e bastante danificado, conhecido por “cuneiforme lateral”, que pertencera a um pé direito. Os quatro ossos do pé esquerdo tinham uma articulação perfeita, prova de que tinham pertencido ao mesmo indivíduo. Essa coleção de fósseis, a que chamaram Little Foot, daria início a uma extraordinária história detetivesca. Em 1995, Clarke e Tobias publicaram um estudo paleoantropológico sobre Little Foot no qual destacavam a notável mistura de características daquele pé esquerdo: a parte de trás possuía traços humanos, enquanto a região dianteira tinha um aspeto simiesco. Embora adaptado à deslocação bípede, o dedo grande podia estender-se lateralmente, como acontece nos chimpanzés, mas não connosco. Clarke e Tobias interpretaram essas características como prova de que Little Foot, embora pudesse caminhar na posição erguida, devia também ser uma boa trepadora, capaz de levar uma existência arbórea. Em 1997, enquanto examinavam mais restos ósseos nas coleções armazenadas na Faculdade de Medicina da Universidade de Witwatersrand, na África do Sul, Clarke encontrou mais ossos do pé esquerdo de Little Foot, outros pertencentes ao direito e mesmo fragmentos de
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Uma face muito dura
A
caveira de Little Foot conserva os 32 dentes. Além disso, apresenta certas características anatómicas que proporcionam pistas sobre a sua possível semelhança com os Paranthropus.
Segundo Ronald J. Clarke, este orifício no osso frontal deve-se a danos produzidos pela pressão e pela queda de pedras.
O espécime não tem espessura supraorbital.
O arco zigomático é muito robusto.
Os caninos, de tamanho relativamente reduzido, mostram, na opinião de Clarke, que Little Foot é uma fêmea. Nos machos, estes dentes são maiores.
Os incisivos surgem um pouco projetados para diante.
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A mandíbula é grande e sólida.
O achado pode lançar nova luz sobre os primeiros hominídeos ambas as tíbias. Dado que um deles apresentava uma fratura limpa, que parecia ter sido provocada por uma explosão mineira, suspeitou que poderia haver mais restos do mesmo indivíduo enterrados na gruta Silberberg. O problema era descobrir a sua localização na imensa e escura caverna. Clarke lembrou-se de moldar uma réplica do fragmento distal da tíbia direita e pediu aos seus assistentes, Steven Motsumi e Nkoane Molefe, para procurarem um pedaço de osso na superfície da brecha que encaixasse no molde. Era como encontrar uma agulha num palheiro, mas, surpreendentemente, descobriram-no passados apenas dois dias de exploração com a ajuda de lanternas. Ali, sepultado nas profundezas da rocha durante milhões de anos, estava um esqueleto quase intacto. De todos os fósseis de animais
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e hominídeos recuperados em Sterkfontein, Little Foot é o único praticamente completo. As ossadas foram encontradas no fundo de um declive que comunicava com a entrada original, o que sugere duas possibilidades para explicar por que morreu ali: “Pode ter caído acidentalmente na gruta, ou talvez tenha ali entrado por alguma razão e, depois, não conseguiu trepar e sair. A verdade é que estas covas têm paredes muito escarpadas, são quase como poços na vertical. Mesmo assim, é estranho que fosse o único fóssil de hominídeo descoberto na caverna, quando temos muitos de símios e carnívoros com sinais de terem caído nessa armadilha fatal”, diz Ronald J. Clarke.
A LIMPEZA AINDA PROSSEGUE
Os paleontólogos perceberam que os ossos de Little Foot poderiam esclarecer muitas
incógnitas sobre a anatomia dos primeiros hominídeos. Contudo, seria preciso libertá-los primeiro da rocha que os guardava. A extração seria extremamente árdua e laboriosa, devido à dureza dos depósitos e à natureza frágil dos restos ósseos. “Utilizámos cinzéis e martelos e, sobretudo, compressores de ar de ponta fina, semelhantes a lápis gravadores”, relata Clarke. Por fim, em agosto de 2010, foi possível resgatar o esqueleto inteiro, extraído por blocos. Por exemplo, todo o braço esquerdo foi recuperado numa única peça. O processo prolongou-se até dezembro de 2011, quando se reuniram os últimos elementos. Atualmente, ainda prosseguem em laboratório as tarefas de limpeza da matriz rochosa que rodeia os ossos. Aproximadamente metade do esqueleto já foi examinado através de tomografia axial computorizada (TAC) na Universidade de Witwatersrand, o que permite efetuar uma análise mais pormenorizada das suas características. Os especialistas esperam que o estudo do esqueleto proporcione novos dados sobre as relações entre as diferentes espécies conhe-
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Talvez se tenha descoberto uma sequência evolutiva completa cidas de australopitecos, as do leste do continente e as sul-africanas. O crânio apresenta certas características notáveis, como é o caso da acentuada robustez. O arco zigomático (o osso da face que, observado de cima, forma uma espécie de curva em consequência da união do processo temporal com o zigomático) é espesso e largo. A mandíbula surge também grande e sólida, enquanto os incisivos se projetam ligeiramente para diante. Estas e outras peculiaridades levaram Clarke a considerar que Little Foot poderia pertencer a uma espécie de australopiteco definida por Raymond Dart em 1948, o Australopithecus prometheus. O segundo termo tem algo de poético. Dart acreditava que a marca de uma pequena fogueira encontrada na jazida de Makapansgat, cerca de 300 quilómetros a nordeste de Joanesburgo, fora deixada no chão da caverna pelos australopitecos que ali viviam. Embora se tenha averiguado, posteriormente, que as marcas eram muito mais modernas do que aqueles hominídeos, os vestígios dos australopitecos de Makapansgat serviram-lhe para definir uma nova espécie, batizada em honra de Prometeu, o titã da mitologia grega que teria roubado o fogo aos deuses para o entregar aos homens. O ultimo ato da história de Little Foot foi escrito em abril deste ano: uma equipa multidisciplinar encabeçada por Darryl E. Granger, especialista em deodinâmica da Universidade Purdue (Estados Unidos), anunciou na Nature o resultado da análise das rochas que conti-
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nham os seus ossos. Segundo estes peritos, Little Foot teria apenas 3,67 milhões de anos. Seria, por conseguinte, contemporânea dos primeiros Australopithecus afarensis que viveram na África oriental.
oUEBRA-CABEÇAS DE DATAS
A antiguidade do espécime é uma questão controversa há décadas. Os desmoronamentos que a gruta Silberberg sofreu, as inundações e a dinamite utilizada pelos mineiros no início do século XX tornaram-na um quebra-cabeças geológico que complica qualquer estudo. Uma datação paleomagnética das camadas calcárias, de 1999, sugeria que Little Foot teria cerca de 3,3 milhões de anos. Análises posteriores realizadas através de um sistema com urânio e chumbo atribuíram-lhe 2,2 milhões de anos. A fim de pôr fim à disputa, a equipa de Granger recorreu a uma sofisticada técnica geocronológica denominada “datação por meio de isócronas”: para averiguar a idade de Little Foot, os geofísicos basearam-se em isótopos de origem cósmica, como o alumínio-26 e o berílio-10, dos minerais de quartzo contidos na camada rochosa em que o esqueleto repousava. As rochas terrestres são muito ricas nos isótopos oxigénio-16 e silício-28, que podem ser encontrados, por exemplo, nos cristais de quartzo. Quando os raios cósmicos de alta energia provenientes do Sol e do espaço exterior o atravessam, o oxigénio-16 transforma-se em berílio-10, e o silício-28 em alumínio-26. Os dois isótopos são radioativos e desintegram-se
a diferentes velocidades. A análise feita com um potente acelerador de espectrometria de massas e uma câmara magnética cheia de azoto no Prime Lab, o Laboratório de Medida de Isótopos Raros da Universidade Purdue, permitiu determinar, de forma precisa, o conteúdo em alumínio-26 da amostra. Os resultados obtidos desse modo são consistentes e indicam que Little Foot possui uma idade semelhante à dos Australopithecus afarensis de Laetoli, na Tanzânia, e de Woranso-Mille, na Etiópia. Contudo, não são parecidos em termos morfológicos. Os traços craniofaciais do StW 573 sugerem que poderia ser um antepassado de um clado de hominídeos agrupado no género Paranthropus. Caracteriza-se por possuir rosto plano e uma anatomia craniodental robusta, com cristas sagitais situadas ao longo da linha média da parte superior do crânio, nas quais se inseriam os poderosos músculos para a mastigação. Os dentes eram grandes, de esmalte espesso e com uma clara função de trituração. Por último, a possibilidade de existir uma relação filogenética entre os Australopithecus prometheus e os Paranthropus abre novas perspetivas sobre a diversidade, expansão geográfica e relação de parentesco entre os hominídeos africanos. Depósitos mais recentes de Sterkfontein, pertencentes ao Membro 5, contêm restos fossilizados de Paranthropus, a par de utensílios de pedra com 2,18 milhões de anos. É possível que esses Paranthropus fossem descendentes de Little Foot e que Sterkfontein nos esteja a mostrar, desse modo, uma interessante sequência evolutiva. Contudo, temos de aguardar pelo resultado de mais estudos para confirmar essa hipótese. M.G.B.
RÉMI BENALI / PATRICK LANDMANN / LIGHTMEDIATION
Agarrada à eternidade Clarke compara a sua mão com a de Little Foot, que, em proporção, era muito semelhante à nossa.
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Cemitério privado. A Domus ocupava um imenso complexo rodeado de vinhedos, um bosque e um lago artiicial. No interior, foram encontrados nove túmulos, como o da imagem, onde foi descoberto um crânio.
Visitámos as obras da Casa Dourada
O palácio de NERO Após o incêndio do ano 64, que destruiu parte de Roma, o imperador Nero mandou construir uma nova residência repleta de ouro, mármores e frescos. Inacabada à data da sua morte, a Domus Aurea foi abandonada e sepultada sob as termas de Trajano. Agora, um projeto arqueológico quer ressuscitá-la. 92 SUPER
FOTOS: MARCO ANSALONI
Arqueologia
Ricas pinturas. A restauradora Irene Simonelli ultima a fase de consolidação dos frescos numa das galerias principais do palácio. O autor dos murais foi Fabullo, um dos artistas mais destacados na Roma do século I.
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Grotesco. Um arco une o Grande Criptopórtico e a Sala Octogonal. Os motivos estranhos das pinturas e o facto de, ao serem encontradas, no século XV, se ter pensado que fariam parte de um sistema de grutas, e não de um edifício, deram origem ao termo “grotesco”.
Os salões foram expoliados das obras de arte
Como o original. Devolver a forma e a cor aos frescos do Grande Criptopórtico, que fascinaram artistas do século XVI como Rafael e Giovanni da Udine, é tarefa da restauradora Ana Borzomati.
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Ostentação. A sala 44 da Domus Aurea foi reservada para guardar e restaurar os frescos da sala 41, que se encontravam em péssimo estado. Originalmente, as paredes da mansão, além de pintadas, ostentavam mármore, ouro e pedras preciosas.
Labirinto precioso Uma restauradora estuda a cartograia do complexo, enquanto se procede aos delicados trabalhos de reforço de uma parede da sala 63.
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Passos no telhado. Escavação no parque de Colle Oppio. Esta zona ica sobre as abóbodas de algumas galerias da Domus Aurea. Os especialistas estão a estudar os substratos, para procurar soluções que protejam o edifício.
O parque aberto em 1932 danificou as estruturas Grande goteira. O restaurador Riccardo Mancinelli ilumina a abóbada da sala 28. A água e as raízes das plantas do parque de Colle Oppio penetram na Domus, destruindo os tetos e as paredes.
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Vizinho famoso. O Coliseu, aqui visto da entrada da Domus Aurea, foi erguido nos anos 70 e 80 por Domiciano e Tito, no espaço antes ocupado pelo lago mandado fazer umas décadas antes por Nero, no parque do seu palácio. Na coluna que lanqueia a entrada, na Via Labicana, vê-se o retrato do imperador (em baixo).
A
Domus Aurea (Casa Dourada, em latim) foi a faustosa residência que Nero mandou construir em Roma, após o incêndio do ano 64, mas não chegou a ser terminada e caiu em desgraça quatro anos mais tarde, com o suicídio do imperador. A mansão, repleta de adornos extravagantes, ouro em abundância, móveis luxuosos e frescos, foi abandonada, danificada por outro incêndio em 104, e, finalmente, coberta de escombros por ordem de Trajano, o que acabaria por evitar a pilhagem que afetou outros edifícios, como o Coliseu. Pelo contrário, permaneceu esquecida até ao século XV, quando um jovem caiu por um buraco no chão e deu consigo dentro de uma das abóbadas subterrâneas. A descoberta assombrou a Itália do Renascimento. Artistas como Rafael ficaram fascinados com as suas imaginativas pinturas murais, que contradiziam a suposta racionalidade do mundo clássico. O palácio de Nero é umas das joias mais preciosas do ameaçado património italiano. Para o ministro dos Bens Culturais, Dario Franceschini, “a Domus Aurea é um tesouro e um desafio para o país”: “A sua proteção é dos grandes projetos nacionais. A prioridade é impermeabilizar e redesenhar o jardim supe-
rior, para reparar as humidades e fugas de água que obrigaram a fechá-la ao público.” O pavilhão do palácio, situado na colina (colle, em italiano) Oppio, tem nada menos de 150 divisões! Embora os imperadores flávios que sucederam a Nero as tenham despojado dos objetos e materiais mais valiosos, ainda restam sobre as suas abóbodas e paredes esplêndidos frescos e estuques, atribuídos ao pintor Fabullo, que abarcam uma área de 30 mil metros quadrados, trinta vezes mais do que a Capela Sistina. A Superintendência Arqueológica de Roma está a projetar uma estrutura que proteja o conjunto da vegetação do jardim, já que as raízes de loureiros, acácias e pinheiros penetram através do buraco aberto no tempo de Trajano para as obras do terraço das suas termas e, mais tarde, em 1932, quando se abriu o parque de Colle Oppio. A Domus Aurea reabriu de novo ao público, após oito anos de trabalhos, mas as visitas turísticas estão limitadas a uma parte do recinto e aos fins de semana. A abertura completa está prevista para 2018, quando, previsivelmente, chegarem ao fim as obras, que terão custado mais de 30 milhões de euros. F.G./L.O.
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LUIZ FERNANDO RIBEIRO
Foto do Mês
Mão-cheia de rãs
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Sete novas espécies de Brachycephalus (rãs minúsculas que não costumam ter mais de um centímetro de comprimento) foram descobertas na mata atlântica dos estados brasileiros do Paraná e de Santa Catarina, no sul do país. Encontrá-las exigiu cinco anos de buscas, já que a maior parte destes batráquios são endémicos de umas quantas elevações montanhosas, e alguns vivem apenas
Conselho de Gerência Marta Ariño, Rolf Heinz, Carlos Franco Perez, João Ferreira Editor Executivo João Ferreira
a uma determinada altitude. Os investigadores brasileiros responsáveis pela descoberta explicam que os reduzidos habitats correspondem à extrema vulnerabilidade dos animais às menores alterações ambientais. A única forma de distinguir as espécies de Brachycephalus (de momento, conhecem-se 21, tendo a primeira sido descrita em 1824) é através da rugosidade da sua pele.
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