Super interessante nº 209

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N.º 209

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Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

História O papel da paz Micróbios Afinal, a sua casa é deles! Espaço Atmosferas do Sistema Solar Evolução Fantasmas de Darwin Escritas O que não sabemos decifrar Extinções Entrámos na sexta?

Neandertais Últimos enigmas • O que pensavam Como se extinguiram O que herdámos deles


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SUPER


Interessante

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Política editorial

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mbora não seja hábito, vou usar este espaço para responder a um leitor, Francisco Leal, a quem desde já agradeço o contributo. É questionando tudo que encontramos o melhor caminho ou podemos ter esperança de o fazer. Escreve o leitor: “Sou assinante da SUPER desde o primeiro número e tem sido uma revista de formação e informação nas áreas da ciência, das tecnologias e da história que me agrada (já foi melhor).” Não tenho (não temos) essa opinião. É certo que perdemos dois colaboradores ímpares (João Aguiar e Maria Lúcia Lepecki, falecidos respetivamente em 2010 e 2011), mas ganhámos outros e tentámos acompanhar a evolução da sociedade (aconteceu tanta coisa...). Além disso, temos hoje uma linha de edições especiais (saúde, história, perguntas e respostas) que em muito alargam o nosso impacto em termos de promoção do conhecimento. “Desapareceu a página em que os leitores opinavam, corrigiam e pediam explicações.” Não desapareceu: publica-se sempre que os leitores escrevem algo que mereça publicação e/ou resposta (elogios não contam). “Infelizmente, CM, no editorial, começa a opinar sobre política. Parece-me (são muitos anos de edições) que o tema não se enquadra no espírito da SUPER. Existem revistas próprias para esse fim. Os meus 17 anos de fidelidade à SUPER (anterior a CM) permitem-me reclamar por essa intromissão.” Poderia reclamar mesmo que só tivesse comprado uma edição, mas não há uma SUPER “anterior a CM”: fui eu que a desenhei desde o primeiro momento. É uma criação minha, com base no material disponível no grupo a que a revista pertence e as contribuições nacionais que a cada momento foram decididas. Sobre a sua reclamação concreta: quem se dedica a este ramo fá-lo por uma razão, que é acreditar que a promoção da cultura científica é indispensável ao bom funcionamento da democracia (pense nas leis sobre homeopatia, por exemplo, ou na resposta ao aquecimento global). Quem se dedica a estes temas tem a esperança de contribuir para um mundo melhor. Quando vê o mundo a piorar, tem o direito de se revoltar. No meu caso, faço-o no espaço reservado à opinião do diretor. Nesta edição, por exemplo, tinha pensado comentar uma alínea dos programas eleitorais do PS e da coligação PAF. A Hungria está a construir um muro com centenas de quilómetros para impedir a entrada de imigrantes. A própria UE contrata mercenários para patrulhar o Mediterrâneo e destina dezenas de milhões de euros para impedir que os “ilegais” atravessem a Mancha. Leia a edição especial sobre o nazismo (está nas bancas): não reconhece sinais preocupantes? Entretanto, há uma crise populacional em Portugal e em quase todos os outros países europeus: não nascem crianças suficientes, a pirâmide demográfica está completamente desequilibrada. Solução política demagógica (PS e PAF): estimular a natalidade (como e para quê, havendo já tanta gente no mundo?). Solução óbvia, do ponto de vista racional (chame-lhe científico, se quiser): abrir as portas aos migrantes. Os incentivos espúrios à natalidade podem render votos, mas não tem lógica entupir o mundo com mais gente. Como a SUPER existe para combater a falta de lógica, tinha pensado falar neste assunto, mas foi um prazer debater outro: ao fim de tantos anos, adquirem-se rotinas que têm de ser revistas e confirmadas de vez em quando. Escreva sempre, Francisco Leal: “A Opinião do Leitor” abrir-se-á sempre que haja uma boa justificação. C.M.

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Diga? Os cientistas continuam a tentar decifrar algumas escritas que resistem a todos os esforços. São histórias por contar, de povos que permanecem ocultos. Pág. 80

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CDLI / UCLA

À janela O prémio fotográfico da Sony premiou este ano uma jovem portuguesa e uma lusodescendente inglesa. Pág. 20

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FOTOGRAFIA

O teatro do mundo TECNOLOGIA

As superbaterias AMBIENTE

A casa é dos micróbios ESPAÇO

Nuvens para alienígenas SAÚDE

Prevenir tumores SAÚDE

O caçador de cancros DOCUMENTO

Novidades dos neandertais NATUREZA

À beira da extinção EVOLUÇÃO

Os fantasmas de Darwin HISTÓRIA

Histórias ocultas HISTÓRIA

O poder da paz ARTE

Segredos sobre tela

Setembro 2015

20 24 28 34 40 46 50 66 74 80 86 92

SECÇÕES Observatório 4 O Lado Escuro do Universo 5 Motor 8 Super Portugueses 10 Histórias do Tejo 12 Caçadores de Estrelas 14 Sociedade digital 18 Flash 64 Marcas & Produtos 97 Foto do Mês 98


BEN CRANKE / GETTY

Observatório

Manhas bestiais

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s corvos da Nova Caledónia (Corvus moneduloides), que habitam em algumas ilhas do Pacífico Sul, desenvolveram a habilidade de extrair dos seus esconderijos os insetos de que se alimentam. Desde há anos que se observa que empregam finos pauzinhos com os quais “pescam” as suas vítimas. Agora, uma equipa de investigadores da Universidade de Saint Andrews (Escócia) descobriu que, depois de os usarem, os guardam cuidadosamente entre as patas. Assim, podem comer sem problemas, e depois continuar a colher bichos com a sua “cana”,

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sem terem de procurar outro pauzinho. O estudo, publicado na revista Proceedings of the Royal Society B, deixa claro que estas aves, tal como os humanos, conceberam uma técnica para conservar as suas ferramentas e evitar perdê-las quando não estão a utilizá-las. Segundo a ecóloga e etóloga Barbara Klump, que coordenou o estudo, “os corvos têm mais cuidado com as suas coisas quando as empregam em locais situados a uma certa altura do que quando estão no chão, já que, se as perdessem, teriam mais dificuldade em recuperá-las; de facto, costumam ficar muito aborrecidos quando perdem um pauzinho por

Os macacos capuchinhos utilizam pedras para abrir os frutos mais duros.

acidente”. Entre as aves, os corvos da Nova Caledónia demonstraram ser especialmente perspicazes, mas não são os únicos animais que empregam ferramentas. Alguns primatas usam pedras para vários fins, e os chimpanzés apoiam-se em bastões para cruzar alguns cursos de água. Tal como os corvídeos mencionados, também usam paus para “pescar” insetos. No seu caso, não só escolhem cuidadosamente os paus mais adequados, como também os que lhes agradam mais, como mostrou um estudo recente das universidades de Cambridge (Reino Unido) e de Quioto (Japão) e da Universidade Livre de Berlim.


SARAH JELBERT / PLOS ONE ALICE M. I. AUERSPERG ET AL / PLOS ONE

Um corvo deixa cair pedras num depósito, para fazer subir o nível do líquido e poder chegar à guloseima que nele flutua.

CORBIS

Este papagio da Nova Zelândia descobriu a maneira mais eficaz de extrair a comida guardada no recipiente. Para isso, tem de introduzir uma bolinha num buraco específico.

Os chimpanzés usam paus para “pescar” formigas nos seus ninhos, e usam varetas de diferentes comprimentos consoante a espécie de inseto que pretendem capturar.

O Lado Escuro do Universo

O teste de Alcock-Paczyński

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ive a honra de conhecer brevemente Bohdan Paczyński, em 2001, quando visitei a Universidade de Princeton no âmbito da minha tese de mestrado no Centro de Física Nuclear/Centro de Astronomia e Astrofísica da Universidade de Lisboa. Nos intervalos para chá, ao meio da tarde, todos nos reuníamos para relaxar um pouco e ter as mais variadas discussões. Fiquei triste quando me pediram (para efeitos de memorial) as poucas fotografias que tirei desses momentos, aquando da sua morte, em 2007, com cancro no cérebro. Paczyński foi um dos mais brilhantes astrofísicos contemporâneos, com trabalhos notáveis em diversas áreas. Discute-se aqui um dos seus contributos, chamado “teste de Alcock-Paczyński” (AP), cuja publicação na revista Nature (em 1979) se intitulava “Um teste de uma constante cosmológica não nula, independente de evoluções”. As motivações dos autores tinham a ver com dados astrofísicos de então, que apontavam para uma constante cosmológica não nula. O teste AP consiste essencialmente em medir os efeitos da constante cosmológica em termos das distorções geométricas induzidas na distribuição simétrica de objetos como os aglomerados de galáxias, ou nas estatísticas de aglomeração e distribuição de quasares. Sumariamente, pode dizer-se que as equações de campo de Einstein relacionam a densidade e a distribuição de massa e energia com a curvatura do espaço-tempo, e por isso é usual chamar “geometrodinâmica do espaço-tempo” à Teoria da Relatividade Geral. O papel da constante cosmológica nas equações de Einstein é hoje associado à natureza da energia escura, sendo responsável pelo aumento da aceleração do universo. Muitas vezes, entende-se igualmente a constante cosmológica como uma espécie de energia do vácuo quântico que permeia todo o universo, continuando a sua verdadeira natureza a ser um dos maiores mistérios em cosmologia. Procurando explicar melhor o teste AP, a ideia é ver como se expande com o fluxo de Hubble uma distribuição simétrica de objetos emissores de luz (como galáxias, por exexmplo) localizados numa superfície esférica. Estas galáxias estarão separadas entre si a grandes distâncias radiais (expressas em unidades z, de desvio para o vermelho) por um pequeno intervalo Δz, distribuindo-se ao longo de um círculo de diâmetro angular Δθ. O teste AP mede pois Δz/(zΔθ), ou seja, a razão entre as medidas do diâmetro angular e da “espessura radial” de aglomerados de galáxias com simetria esférica,

cuja evolução será diferente em diferentes modelos cosmológicos, mas independente da própria evolução galáctica em si. Podemos considerar, por exemplo, que, em universos com curvatura positiva, linhas de luz que começam paralelas acabam por convergir. Alternativamente, em universos planos, de curvatura nula, linhas paralelas continuam sempre paralelas, como aprendemos na geometria euclidiana. Assumir uma determinada geometria para o universo pode levar então, por exemplo, a uma compressão espacial ao longo da linha de observação, causando anisotropias na distribuição de galáxias que poderão ser testadas em rastreios telescópicos. As linhas mestras do teste AP para detetar a constante cosmológica por via geométrica são menos complexas do que a sua efetiva concretização. Isto porque o maior problema reside em distinguir claramente dos efeitos do fluxo de Hubble as grandes velocidades peculiares associadas ao crescimento dos enxames ou aglomerados galácticos. Estas velocidades peculiares introduzem distorções nos desvios para o vermelho que podem confundir-se com os efeitos geométricos da constante cosmológica. O teste AP presta-se portanto a testes de massa e energias escuras, sendo necessários tratamentos estatísticos de vastos números de aglomerados galácticos de diferente extensão angular, mas aproximadamente com o mesmo z, para eliminar o problema das velocidades peculiares. O efeito cinemático de Sunyaev-Zel’dovich (já aqui referido em crónicas anteriores) permite medir estas velocidades peculiares, em grandes rastreios da radiação de micro-ondas de fundo cósmico conduzidos pelo Telescópio do Pólo Sul, pelo Telescópio Cosmológico do Atacama, etc. Mais tecnicamente, os astrónomos trabalham com a chamada “função de correlação entre galáxias”, que é uma função de probabilidade da localização de outra galáxia a uma certa distância da galáxia de referência. Para já, os resultados mais recentes de aplicações do teste AP (baseados no Rastreio Celeste Digital Sloan, ou SDSS na sigla inglesa) favorecem os modelos com constante cosmológica (energia escura) e massa escura fria, conhecidos na sigla inglesa como ΛCDM (Lambda-CDM), o dito modelo de concordância cosmológica. PAULO AFONSO Astrofísico

N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o novo acordo ortográfico, embora sob protesto. Interessante

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Observatório

Buraco colossal

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inguém esperava encontrar um buraco negro tão grande como o da galáxia CID947, a 11 mil milhões de anos-luz. De facto, a sua massa, equivalente à de 7000 milhões de sóis, é um décimo de toda a galáxia. A proporção é assombrosa, pois um buraco negro não costuma representar mais de 0,5 por cento da galáxia que o contém. Os dados recolhidos por uma equipa de astrofísicos através do telescópio Keck de dez metros, no Hawai, e dos observatórios espaciais de raios X Chandra, da NASA, e XMM-Newton, da ESA, levanta questões sobre a formação galáctica que escapam às atuais teorias. Como se terá formado o monstro? Será que a galáxia aproveita a sua esmagadora gravidade para agregar mais material?

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dade de Northumbria (Reino Unido), desenvolveu um modelo informático que prediz com precisão a atividade do astro-rei. Os seus dados sugerem que esta se reduzirá por volta de 2022, e de uma forma tal que poderiam ocorrer as condições observadas durante o chamado “mínimo de Maunder”, entre 1645 e 1715. Irão as temperaturas baixar tanto? Na foto, as regiões mais ativas do Sol, captadas em ultravioleta (amarelo e verde) e raios X (azul).

M. HELFENBEIN / YALE UNIVERSITY / OPAC

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vida terrestre depende do Sol. De facto, quase tudo o que acontece na nossa estrela se repercute na Terra. Entre os séculos X e XIV, as temperaturas no hemisfério norte foram invulgarmente quentes, um fenómeno que coincidiu com uma fase de intensa atividade solar. Pelo contrário, quando esta diminui, os termómetros costumam baixar, por vezes muito. A astrónoma Valentina Zharkova, da Universi-

NASA / JPL-CALTECH / GSFC / JAXA

A perder energia


O que entende por Siri? um caranguejo brasileiro uma fonte tipogrรกfica sueca

um assistente pessoal da Apple

J ba รก n nc as as

s a s a d t o st as res p oq ui! a


Motor

Raio X Mercedes-Benz GLC

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Visão de 180 graus

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m estudo do observatório europeu para a segurança rodoviária concluiu que 19 por cento dos acidentes ocorridos em cruzamentos se deveram a dificuldades de visibilidade. A Ford espera contribuir para a redução desta estatística com a Front Split View Camera, que oferece uma visão de 180 graus à frente do para-choques do automóvel. O sistema foi estreado na nova geração Galaxy/S-Max, sendo constituído por uma câmara de vídeo de um megapixel colocada na grelha dianteira, que produz uma imagem visível no monitor central de oito polegadas. O sistema é ativado pressionando um botão na consola, que ativa uma câmara de apenas 33 milímetros, capaz de transmitir para o monitor imagens em tempo real, tendo sido incluído um sistema de lavagem de alta pressão, que é ativado quando se ligam os limpa-pára-brisas, para manter a qualidade das imagens. O condutor tem assim visibilidade para a esquerda, frente e direita, quando entra

CARRO DO MÊS

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Opel Karl 1.0 Ecotec

Opel acabou de lançar no mercado nacional um novo modelo citadino de cinco portas e cinco lugares, que se posiciona logo abaixo do Corsa, tanto em termos de dimensões como de preço. O Karl utiliza uma nova plataforma mundial da GM que será partilhada por modelos de várias marcas do grupo, sendo para já produzido nas instalações da General Motors na Coreia do Sul. Com 3,7 metros de comprimento, o novo Opel vem disputar vendas a duas famílias de modelos gémeos, VW Up/ Seat Mii/Skoda Citigo, por um lado, e Citroën C1/Peugeot 108/Toyota Aygo, por outro, mas sem prescindir de equipamentos básicos como os vidros de descer das portas traseiras, que os

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num cruzamento sem visibilidade ou sai de um estacionamento “cego”. A Ford testou o sistema nas mais variadas condições, sendo as questões de luminosidade os maiores desafios, como o nascer e o pôr do Sol, túneis, garagens e quando a luz incide diretamente na câmara. Outro obstáculo a transpor foi a necessidade de uma perfeita captação de imagens, não só de veículos, mas também de ciclistas e de peões. Esta câmara de 180 graus será útil também em situações em que outro tipo de obstáculos surja entre o condutor e a estrada para onde quer entrar, como árvores, postes e veículos mal estacionados. O departamento de transportes do Reino Unido tem outro estudo no qual se pode ler que, em 2013, 11% de todos os acidentes ocorridos no seu território tiveram como causa a dificuldade de visibilidade, provocada por fatores externos ao automóvel. Mais um dado que poderá tornar este tipo de sistemas tão apreciado como hoje já o são as câmaras traseiras de estacionamento.

seis modelos rivais não têm. O Karl tem 205 litros de capacidade de mala e um interior mais espaçoso do que é normal neste segmento, com um bom nível de qualidade de materiais e de montagem. O único motor disponível é um 1.0 litros de três cilindros com 75 cavalos, que mais não é do que uma versão sem turbo e sem injeção direta do motor usado no Adam e no Corsa 1.0T. Em cidade, mostra vivacidade suficiente para se esgueirar entre o trânsito, bem ajudado por uma boa caixa manual de cinco velocidades e uma direção leve que tem um modo City, para ficar ainda mais leve. O consumo anunciado para circulação urbana é de 5,4 litros aos 100 quilómetros e a aceleração

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marca de Estugarda substituiu o seu anterior modelo GLK pelo novo GLC, aproveitando para introduzir um conjunto de novas tecnologias que o colocam a par do que melhor se faz neste segmento. 1 – Para reduzir o peso, foi utilizada a nova plataforma do Classe C, devidamente alterada para utilização num SUV. Com guarda-lamas dianteiros, capô e tejadilho em alumínio, o peso desceu 80 quilos. 2 – A gama de motores disponíveis no lançamento são dois Diesel, o 220d (170 cavalos) e o 250d (204 cv), um motor a gasolina com turbo, o 250 (211 cv) e uma motorização híbrida recarregável (plug-in), com o mesmo motor a gasolina de 211 cv acoplado a um motor elétrico de 116 cv.


Opinião

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De tudo para todos

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3 – Tal como no Classe C, também o GLC tem um botão Dynamic Select que permite ao condutor escolher entre cinco modos de condução, que alteram a resposta do motor, a firmeza da suspensão, a rapidez da caixa de velocidades automática e a atuação do controlo de estabilidade: Eco, Comfort, Sport, Sport+ e Individual. 4 – A aerodinâmica foi cuidada de forma a melhorar o coeficiente de penetração, que a marca anuncia ser de 0,31. Isto contribuiu para uma descida média de consumos de 19 por cento, face ao modelo anterior. 5 – A suspensão passa a ter a opção de uma variante pneumática, designada Air Body Con-

trol. Permite descer a altura ao solo em 15 milímetros, para condução em autoestrada, ou subir em 50 mm, para condução fora de estrada. Há outra suspensão, também opcional, a desportiva AMG, rebaixada em 15 mm. 6 – A transmissão utiliza uma caixa automática de nove velocidades 9G-Tronic e tração às quatro rodas 4Matic, com distribuição de potência 45/55 (frente/trás). Há um pacote Off Road opcional, para quem pretender uma utilização fora de estrada mais intensa, que inclui suspensão 20 mm mais alta e mais quatro modos de condução específicos: Slippery, Off-Road, Incline e Trailer, que acrescenta ainda um quinto modo, Rocking Assist, se o modelo for equipado com suspensão pneumática. 7 – O espaço interior cresceu significativamente face ao GLK, devido ao aumento das dimensões exteriores: mais 11,8 centímetros na distância entre eixos, mais 12 cm no comprimento, mais 5 cm na largura e mais 1 cm na altura.

de zero a 100 km/h é feita em 13,9 segundos. Em estradas com mais curvas, o Karl mostra um bom comportamento dinâmico, muito previsível e seguro e com limites de aderência bem acima daquilo que o motor lhe pode pedir. Nesta fase de lançamento, o Karl é vendido com a oferta do chamado Pack Style, que inclui faróis de nevoeiro com luz de curva, alerta de saída involuntária de faixa e jantes de 15 polegadas, além de outro equipamento de série como Cruise Control, rádio com comandos no volante, ar condicionado manual e garantia de cinco anos. O preço é de 11 850 euros, muito competitivo face à concorrência.

oferta de diferentes modelos de automóveis passa por uma autêntica explosão, que pode deixar alguns consumidores baralhados, já para não falar dos próprios vendedores de algumas marcas. A segmentação tradicional do mercado, baseada no tamanho de cada modelo, há muito se tornou obsoleta. Com o surgimento de novos subsegmentos, de novos nichos de mercado, os consumidores são constantemente aliciados a aderir a novos conceitos, uma estratégia que funciona particularmente bem nas marcas Premium. A oferta domina claramente a procura, não em termos de volume de vendas, mas nas novas tendências que vão aparecendo. Como em muitos outros produtos de luxo, é a novidade que tem mais força. Por isso, as marcas esforçam-se por oferecer automóveis inéditos todos os anos. O que é preciso é criar a ideia da “necessidade” que leva ao impulso da compra a curto prazo. A Mercedes-Benz é das marcas que melhor têm sabido dominar esta dinâmica, oferecendo cada vez mais variantes de carroçaria, feitas com base em cada vez menos plataformas e motores. Longe vão os tempos em que o catálogo da marca alemã tinha basicamente três modelos, de aparência semelhante e em que apenas mudava o tamanho. Hoje, a sua oferta é das mais diversificadas do mercado automóvel e não pára de crescer. Não há praticamente um tipo de carroçaria que não tenha, com um crescimento acelerado da oferta de SUV. Aliás, a diversificação tem sido tão ampla que já obrigou a uma reformulação das designações (feitas com base na combinação de letras) das diversas variantes, de forma a estabelecer uma lógica que o cliente compreenda. Só para dar o exemplo do protagonista do Raio X deste mês, trata-se do GLC, que substitui o GLK e se posiciona abaixo do maior GLE, que substitui o ML, especulando-se sobre o lançamento de um SUV ainda maior, que seria o GLS. Parece confuso, mas não é: GL é a referência à versão SUV, enquanto C, E e S remetem para a família de berlinas convencionais a que cada um pertence, ou seja, Classe C, Classe E e, eventualmente, Classe S. Para o comprador típico de modelos Premium, tudo isto pouco importa. O que lhe interesse é ter a última novidade. FRANCISCO MOTA Diretor técnico do Auto Hoje

Interessante

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SUPER Portugueses

Um triplo talento D. Luís de Meneses foi militar, político e homem de letras. Nestes três domínios, mostrou talento excecional e deixou uma marca duradoura. Verdadeiramente, um triplo superportuguês…

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. Luís de Meneses ti­nha oito anos de ida­de quando se deu a Res­tauração de 1640. Pou­co depois, entrava ao serviço do príncipe D. Teodósio, primogé­ni­to de D. João IV e her­deiro do tro­no. Entre as duas crian­ças – D. Teo­dósio era dois anos mais no­vo –, formou-se uma só­li­da ami­ zade, que duraria até à mor­te pre­matura do príncipe, com de­za­no­ve anos somente. Por essa altura, já D. Luís ini­cia­ra a sua vida militar. Foi em 1650, tinha ele dezoito anos: pre­ pa­rava-se então a partida para a Índia do novo vice-rei, D. João Sil­va Telo e Meneses, conde de Avei­ras, e D. Luís decidiu partir com ele. Na época, esperava-se de um membro da nobreza que, in­de­pendentemente de outras ati­v i­d ades, seguisse a carreira das ar­m as. Porém, havia um teatro de ope­rações bem mais próximo do que a Índia e altamente prioritá­rio – e esse teatro de operações era

o próprio reino, que lutava pa­ra consolidar a independência re­conquistada. Assim, o conde de Soure, que fora nomeado gover­na­dor das armas do Alentejo, não te­ve dificuldade em convencer o jo­vem fidalgo a ficar em Portugal, pa­ra empenhar-se na guerra contra os invasores espanhóis. O futuro conde da Ericeira não tar­dou a distinguir-se em várias ações em que participou, o que lhe valeu uma rápida ascensão na hie­ rarquia. Em 1658, já era gene­ral de artilharia e tomou parte no ata­que ao forte de S. Miguel, du­ran­te o qual a unidade sob o seu co­mando eliminou dois ter­ços dos efetivos inimigos. No ano se­guin­te, participou na impor­tan­te ba­talha das Linhas de Elvas, na qual foi vencido o general espa­nhol D. Luis de Haro. Em 1663, de­sempenhou um papel impor­tan­te na batalha do Ameixial, con­siderada por muitos como a mais importante da Guerra da Res­tauração;

O Colbert português

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usual chamar ao 3.º conde da Ericeira “o Colbert português”. Jean-Baptiste Colbert, o célebre mi­nistro de Luís XIV, foi um dos gran­des nomes do mercantilismo do século XVII. Em resumo, po­de­remos referir que a doutrina mer­cantilista considerava que a ri­queza de um país estava no ente­sou­ramento de metais preciosos, ou seja, ouro e prata, e que estes me­tais se obteriam promovendo as exportações e reduzindo ou eli­mi­nando as importações. Era uma po­lítica altamente protecionista, que favorecia os monopólios e a in­ter­ venção direta do estado na eco­nomia.

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Convirá referir, porém, que D. Luís de Meneses não foi um “mer­can­ti­lista absoluto”. Temperou as ideias de Colbert, divulgadas em Por­tugal pelo diplomata e econo­ mis­ta Duarte Ribeiro de Macedo, com uma moderação sensata. De fac­to, o conde da Ericeira era contra um protecionismo exagerado e era também contra os excessos da burocracia. Procurou sempre dei­xar espaço para as iniciativas li­vres, e – outro aspeto notável da sua atuação – mostrou-se in­te­ressado na situação e nas condi­ções de vida dos trabalhadores, so­bretudo no que se refere ao seu alo­jamento.

mostrou-se, então, um auxiliar precioso dos dois co­man­dantes das forças portuguesas, D. Sancho Manuel e o conde de Schomberg. Foi a sua artilharia que malogrou a tentativa do co­mandante inimigo, D. João de Áus­tria, para atravessar o rio De­ge­be, e foi o seu conselho que le­vou Schomberg a cortar a retira­da ao exército espanhol. A ação do conde da Ericeira foi também muito importante na ba­talha de Montes Claros (1665), du­rante a qual a artilharia portu­gue­sa quebrou o ímpeto da cava­la­ria espanhola. Nesta batalha, que seria o último grande com­ba­te da Guerra da Restauração, o comandante português foi o mar­quês de Marialva e, no lado es­panhol, estava o marquês de Ca­racena, que substituíra D. João de Áustria. A carreira militar de D. Luís de Meneses não terminou em Mon­tes Claros; mais tarde, em 1673, já em tempo de paz – paz que fora estabelecida em 1668, pe­lo Tratado de Madrid –, o prín­c i­p e regente, D. Pedro, no­m eou-o go­v ernador das armas de Trás-os-Montes. Exerceu essas fun­ções durante cerca de dois anos. De­pois, em 1675, iniciou-se a sua car­reira na administração pú­bli­ca, onde daria, uma vez mais, ex­ce­lentes provas.

A INTERVENÇÃO POLÍTICA

Isto não quer dizer que o 3.º con­de da Ericeira se tivesse man­ti­do à margem da política até 1675. Durante os 25 anos que durou a sua carreira militar, muitos fac­tos políticos aconteceram – entre eles, a morte do príncipe D. Teodósio (1653) e o reconheci­men­to do infante D. Afonso como herdeiro do trono. Depois, em 1656, morrera o rei D. João IV e D. Afonso – seriamente afetado, no corpo e no espírito, por uma doen­ça contraída na infância – su­bi­ra ao trono, sob a regência da rai­nha mãe, D. Luísa


D. LUÍS DE MENESES, 3.º CONDE DA ERICEIRA (1632–1690) Perguntas sobre um suicídio

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ão foi tranquila a morte do 3.º con­de da Ericeira: a 26 de maio de 1690, D. Luís de Meneses ati­rou-se de uma janela do seu pa­lá­cio e morreu pou­co depois. Por­quê? Parece estar bem es­tabelecido que ele so­fria de ataques de “me­lan­colia”, um ter­mo vago que era en­­tão usado para de­sig­nar os estados de­pressivos. O conde te­rá sido ví­tima, portan­to, de uma profunda de­pressão. As fontes portuguesas que con­

de Gusmão. Em 1662, uma “revolução de pa­lá­ cio” tinha afastado a regente e en­tregue o governo ao rei, mas ape­nas oficialmente, pois quem pas­sara a governar, de facto, fora o 3.º conde de Castelo Melhor, que, aliás, mostrou ser um exce­len­te estadista. Em 1667, há mais um golpe palaciano: Cas­te­lo Melhor cai em desgraça e D. Afon­so VI é afastado do poder. A fi­gu­ra que emerge é a do infante D. Pedro, irmão mais novo do rei, in­teiramente são, física e mental­men­te. A paz com Espanha, em ja­neiro do ano seguinte, é ainda as­sinada em nome do rei, mas o po­der pertence ao regente. O conde da Ericeira seguiu todas estas peripécias, tomou, fir­me­mente, partido por D. Pedro, e en­volveu-se no movimento que o ele­vou à regência. Aliás, podemos es­pecular: talvez a sua nomeação pa­ra comandante militar de Trás-os-Montes fosse já de natureza po­lítica: nesse mesmo ano de 1673, foi descoberta uma conspi­ra­ção visando devolver o poder real a D. Afonso VI e trazê-lo dos Aço­res, onde estava exilado. É na­tu­ral que, nessa altura, o regente qui­sesse assegurar-se de que ti­nha gente da sua confiança em to­dos os comandos militares. Dois anos mais tarde, D. Luís de Meneses tornava-se deputado da Junta dos Três Estados e ve­dor da Fazenda – um cargo muito im­por­ tante, este, que correspondia (apro­xi­ma­da­ mente) a ministro das Finanças. Foi nesta qualidade que ele se destacou, ao adotar os princípios básicos da doutrina eco­nómica do mercantilismo. Não é possível abordar aqui a fun­do a doutrina mercantilista; aliás, o que importa é referir as me­didas concretas tomadas por D. Luís de Meneses para acudir a uma situação financeira e econó­mi­ca que era grave. O que ele tentou, acima de tudo, foi lan­çar as bases de uma verdadeira política industrial, ao mesmo tem­po que fomentava o comércio e a navegação. Enquanto se es­for­ça­va por reestruturar as indús­trias exis­tentes, lançava também no­vas in­dústrias – fundou fábricas de te­ci­dos em Portalegre, no Fun­­dão e na Covilhã, fez plantar amo­­reiras em baldios e hortas, pa­ra permitir

sul­támos li­mi­tam-se a referir es­se estado depres­si­vo como causa do sui­cídio, mas há, pe­lo menos, um histo­ria­dor inglês que conta uma versão diferente: para David Bir­ming­ham, autor de A Concise His­­to­ry of Portugal, a de­pressão que levou ao suicídio de D. Luís de Me­neses deveu-se ao “reduzido êxi­to” das suas reformas e da polí­ti­ca que tentou apli­car. Outro historiador bri­ tâ­nico, Char­les Boxer, em The Por­tu­­guese

a criação de bichos-da-seda, man­dou vir do es­trangei­ro téc­nicos espe­cia­lizados em têx­teis, fo­mentou a indústria de cur­tu­mes e o fa­brico de vi­dros. Ao mes­mo tem­po, fez publicar (em 1677 e 1686) duas prag­má­ti­cas que prote­giam as produções na­­cionais em matéria de te­cidos, ves­tuário e vários outros ar­tigos. Lançou ainda uma reforma da moe­da. Todas estas medidas destinavam-se a reduzir ou – se possível… – eliminar a terrível depen­d ên­­cia de Portugal em relação ao es­t ran­g eiro. Era enorme o fosso en­t re as nossas exportações e as nos­sas importações, e tornara-se cla­ro que um país sem indústria es­ta­va condenado. Neste domí­nio, a atuação do conde da Eri­cei­ra marca a primeira tentativa, de­ter­minada e coerente, para in­dus­ tria­lizar o país, segundo os mé­t o­d os que então prevaleciam na Europa. Foi um esforço enorme e prolongado, pois durou de 1675 a 1690, ano da morte de D. Luís Meneses; um esforço em­pre­en­dido sempre sob o governo de D. Pedro II, primeiro como re­gen­­te e depois como rei, desde o fa­le­cimento de D. Afonso VI, em 1683.

A OBRA MAGNA

Toda essa obra do 3.º conde da Ericeira pertence ao passado. Uma outra obra sua mantém, no en­tanto, grande importância nos dias de hoje e essa é do domínio da cultura. A cultura, será justo as­sinalar, é talvez a maior glória da casa condal da Ericeira: o 2.º conde, D. Fernando, irmão de D. Luís, e o filho deste, D. Francisco Xavier, o 4.º detentor do título, fo­ram homens com um nível cul­tu­ral fora do vulgar e como tal se dis­tinguiram na Europa e não so­men­te no seu país. D. Luís de Me­ne­ses não lhes ficou atrás – bem pe­lo contrário, já que nos dei­xou, além de ou­tras obras, a justa­mente cé­le­bre História de Portugal Res­taurado, em dois volumes, o pri­meiro publicado em 1679 e o se­gundo em 1698. A História de Portugal Res­t au­r a­d o cobre o período que vai de 1640 a 1668 – o ano, recorde-se, em que, pelo Tratado de Madrid, foi

Seaborne Em­pi­re, refere, sim­­plesmente, que o sui­cídio do con­de da Eri­ceira foi um muito du­ro golpe na economia portuguesa. O que, possivelmente, é mui­to exa­to. É um facto que a ação de D. Luís depa­rou com oposições in­ter­­nas e externas – es­tas, sobretu­do, por par­te da França e da In­gla­ terra. Porém, as ver­dadeiras razões da sua depressão e do seu sui­cí­dio ficam em aber­to.

declarada a paz com a Espa­nha, que reconheceu a dinastia de Bra­gança. É considerada, ainda ho­je, a obra mais importante sobre o período da Restauração, no que se refere aos acontecimentos po­líticos, militares e diplomáticos ocor­ridos durante aqueles vinte e se­te anos. Para os historiadores, é uma referência indispensável. Mui­tos dos factos relatados foram testemunhados pelo próprio au­t or, mas D. Luís de Meneses fez tam­bém uma investigação muito cui­dada, em nome do princípio, por ele adotado, de que “o histo­ria­dor deve ser fiel à verdade dos fac­tos”. A qualidade da História de Por­tu­gal Res­tau­ ra­do não foi reco­nhe­ci­da só em Portugal. Em França, o Journal des Savants, no seu nú­me­ro de janeiro de 1681, afirma­va (referindo-se, portanto, ao primeiro vo­lume, o único então publicado): “Tudo é grande nesta histó­ria, o assunto, a maneira de o es­cre­ver e o próprio autor.” Será interessante assinalar que, na introdução da obra, o conde da Ericeira se deu ao trabalho de pro­var algo que hoje está perfeita­ men­te claro e estabelecido mas que, espantosamente, ainda é ig­no­rado por algumas privilegiadas ca­beças: a legitimidade da Casa de Bragança como dinastia real e, consequentemente, a ilegitimi­da­de de Filipe II de Espanha e dos seus sucessores como reis de Por­tugal. De facto, há ainda quem pen­se que o 1.º de dezembro de 1640 se justifica somente como “ato revolucionário patriótico”, quan­do, na realidade, à luz do di­reito português, seria até mais le­gítimo o próprio D. António I, prior do Crato, do que Filipe II – mas a verdadeira legitimidade na su­cessão de D. Henrique, o car­deal-rei, repou­ sava em D. Catarina, duquesa de Bragança. Porém, este não é o tema em causa. Aqui, o que fazemos é evocar o triplo “super” que foi D. Luís de Me­neses – excelente militar, exce­ len­te político, excelente historiador. Daí que a nossa homenagem de­va ser, também ela, tripla. JOÃO AGUIAR Este artigo foi publicado originalmente na SUPER 119. João Aguiar faleceu em 2010.

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Histórias do Tejo

O peixe humano Batista Pereira cresceu a atravessar o Tejo a nado para surripiar fruta das quintas na outra margem. A força de braços que o rio lhe deu levou‑o a vencer a travessia do canal da Mancha, em 1954, e a colocar o seu nome no pedestal dos maiores desportistas portugueses de sempre.

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oeiro Pereira Gomes escreveu o romance Esteiros quando era empre‑ gado de escritório na cimenteira de Alhandra. Dali, da janela do primeiro andar virada para os canais pantanosos do Tejo, observava todos os dias os meninos pobres da vila a trabalharem nos telhais, apa‑ nhando a lama, transportando‑a em padiolas e moldando o barro em telhas e tijolos. A dura vida das crianças nos esteiros seria fielmente retratada na obra‑prima. Batista Pereira foi um desses meninos, imortalizado por uma das principais personagens do livro de Soeiro Pereira Gomes, pedindo‑lhe emprestado a rebeldia e a alcunha – o Gineto. Nascido a 7 de março de 1921 na vila ribeiri‑ nha de Alhandra (dentro de uma canoa a meio do Tejo, contam as lendas), Joaquim Batista Pereira cedo mostrou a fibra de que era feito: aos cinco anos, atirou‑se ao Tejo e, sozinho, aprendeu a nadar. A sua infância não seria de criança. Aos sete anos, já o pai, pescador, o arrastava para o telhal, para passar o dia enfiado na lama até aos joelhos, de pá na mão, com o sol a queimar‑lhe as costas, muitas vezes sem um pedaço de pão para comer. Outras vezes, Júlio Pereira levava o pequeno Gineto consigo, para o ajudar nas pescarias. Joaquim não era miúdo para aceitar os berros do capataz de sorriso na cara. Quando se fartava, lançava‑se ao rio e fugia para os mouchões, onde se escondia até a noite cair. Esperava‑o um ensaio de pancada à chegada a casa, mas sempre era melhor do que o rude labor nos telhais. O castigo incluía, claro, ir para a cama sem ceia. Pouco lhe importava,

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que o jejum há muito tinha sido quebrado: durante o dia, o miúdo dava aos braços até à outra margem, para atacar os pomares nas grandes fazendas do outro lado. Mesmo quando não escapava aos telhais, o Gineto lançava‑se à água na sua pausa para o almoço e atravessava o Tejo para saciar o apetite nas árvores de fruto das lezírias. Foi a natação que o salvou, diria mais tarde. Aos 12 anos, Soeiro Pereira Gomes arran‑ jou‑lhe trabalho na cimenteira, como varre‑ dor, libertando‑o das terríveis condições nos esteiros, mas o rapaz não se aguentou muito tempo de vassoura nas mãos. “Os outros chamam‑me maricas…”, desculpou‑se. Pouco depois, empregou‑se numa fábrica.

DE MARGEM A MARGEM

O Tejo nunca deixou de ser o seu compa‑ nheiro. Todos os dias mergulhava nas águas pardacentas e nadava de margem a margem. Era assim que se sentia livre. A paixão com que esbracejava no rio chamou a atenção de um olheiro do Alhandra Sporting Club, que aca‑ bara de transformar uma charca numa piscina. Ernesto Júlio Galamba fez de pai de Joaquim Batista Pereira: deu‑lhe comida, roupa lavada, sapatos e, a custo, amansou‑lhe o espírito selvagem. Aos 11 anos, entrou pela primeira vez numa competição; quando fez 14, já era imbatível, vencendo até os campeões do Sport Algés e Dafundo, o clube dominador à época. Entretanto, aos 18 anos, casou‑se com a namo‑ rada, Maria Antónia, que lhe daria três filhos. O jovem começou a bater todos os records nacionais: os 200 metros, os 400, os 800, os

1500. Porem, Batista Pereira não gostava dos limites apertados das piscinas. O seu palco eram as águas abertas, vastas, que se perdem no horizonte ou atrás de colinas. Na década de 40, passou a reinar nas provas de fundo, disputadas no Tejo. Pelo caminho, pulverizou o record nacional da travessia do rio, ligando a Trafaria a Pedrouços em 31 minutos e 22 segundos. Em agosto de 1953, bateu o record nacional de distância, nadando de Alhandra à Rocha de Conde de Óbidos e voltando à sua vila natal – 166 quilómetros percorridos em 26 horas e 12 minutos, segundo o próprio recor‑ dou numa entrevista ao Expresso. Foi aí que o Tejo lhe começou a parecer pequeno. No mês seguinte, Batista Pereira lançou‑se ao oceano, nadando os 16 quilóme‑ tros que separam Peniche das Berlengas para se preparar para a travessia do estreito de Gibraltar. Em outubro, o atleta ligou a Europa a África em cinco horas e quatro minutos, tomando para si o melhor tempo mundial. A carreira internacional quase terminou antes de arrancar a sério. Numa competição entre Portugal e Espanha, nas Canárias, em plena ditadura ibérica, Batista Pereira – comu‑ nista como o seu amigo Soeiro – recusou‑se a fazer a saudação fascista em frente à ima‑ gem de Francisco Franco. Enquanto todos os outros esticavam a mão, o Gineto cerrou o punho. O inspetor dos desportos viu e aboliu‑o de todas as competições. Só a força do povo, que exigiu o seu regresso em constantes requerimentos às entidades desportivas, per‑ mitiu que o nadador voltasse à água. Portugal seria recompensado pela deci‑


Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro (A Esfera dos Livros, 2013) http://bit.ly/1hrY8Zc

O canal da Mancha, que Batista Pereira atravessou em 1954.

são. Em agosto de 1954, com 33 anos, Batista Pereira aventurou‑se no Santo Graal das competições de longa distância: a travessia do canal da Mancha. Catorze dos melhores nadadores do planeta, de onze países diferen‑ tes, saltaram para as águas frias do Norte de França, com Inglaterra no horizonte. O favo‑ rito era o egípcio Hassan Ahmad, alcunhado de Crocodilo do Nilo, que até já vencera o alhan‑ drense noutra prova, mas Batista Pereira não estava ali só para se refrescar. A competição seria das mais entusiasmantes de sempre.

AO ASSALTO DA MANCHA

Apesar do começo atabalhoado, provocado pela imensidão de barcos de apoio que acom‑ panhavam os nadadores, o português ace‑ lerou e, à meia hora de prova, já ia à frente. Às cinco horas, metade do canal ficara para trás, e o seu rival egípcio levava duas milhas de atraso. O Crocodilo do Nilo estugou o braço. Aos três quartos de prova, a distância emagre‑ cera para uma milha; percorridas dez horas, 400 metros. Então, o pior aconteceu: caiu um espesso nevoeiro e o humilde bote da equipa portuguesa, sem meios de orientação, des‑ viou‑se da rota, levando Batista Pereira atrás. O próprio atleta acabou por se aperceber da asneira, ao levantar o queixo e ver, a um par de quilómetros para o lado, o faustoso barco de apoio egípcio. Indo buscar forças à sua famosa obstinação, o português acelerou. Ao meio-dia, com a costa de Dover logo ali, a minutos, os dois adversários iam praticamente lado a lado. Os amigos no barco não podiam fazer mais do que gritar, de angústia: “Força,

Batista! Força!” O nadador limitou‑se a ace‑ nar, aparentemente pouco preocupado. Doze horas, 25 minutos e um segundo depois da partida, o Gineto saiu da água, chamou o júri e olhou para trás. O egípcio ainda nadava, lá ao fundo, e só chegaria 15 minutos mais tarde. Era oficial: Batista Pereira acabara de pôr o des‑ porto português no topo do mundo, e com mais um record mundial. A vitória vinha acompanhada por bom dinheiro, lembraria muitos anos mais tarde, numa entrevista ao Expresso, em 1981. “Quando cheguei, entregaram‑me uma taça e 500 libras [equivalente a 12 mil euros atuais]; nos dias seguintes, estava a fazer anúncios para a televisão da BBC: eram óculos de mer‑ gulho, relógios à prova de água, calções de banho… Arrecadei 400 contos, que nessa altura valiam muito. À custa dessa maquia eduquei os meus filhos, e devo‑lhe dizer, com muito orgulho, que tenho um filho engenheiro químico. Ainda dei algum dinheiro aos meus irmãos. Nós éramos bastante pobres.” O dinheiro das provas deu‑lhe a oportunidade de viajar aos Estados Unidos, ao Brasil, a França, a Inglaterra, e ainda sobrou o suficiente para montar um modesto negócio de sucatas, que lhe daria o sustento para o resto da vida. No verão, entre competições, Batista Pereira ganhava uns trocos como nadador‑salvador nas praias de Sesimbra e Peniche. A 18 de setembro de 1959, Batista Pereira regressou ao seu Tejo. Partiu da Vala da Azam‑ buja, passou por Santa Iria, deu a volta ao Mouchão da Póvoa e voltou a pisar terra em Alhandra. Acabara de nadar 206 quilómetros

Causa maior

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o longo da sua carreira, Joaquim Batista Pereira colecionou 150 troféus, mas os prémios desportivos foram eclipsados pelas vitórias numa causa maior: como nadador‑salvador, resgatou 78 pessoas à morte certa. Numa das suas últimas entrevistas, ao Expresso, o herói de Alhandra recordou esses tempos a trabalhar nas praias com a simplicidade que sempre o definiu. “Uma atividade perigosa… Agarram‑se à gente e tentam levar‑nos para o fundo. Longe da praia, dava‑lhes um murro na testa para lhes tirar a força. Mais perto, não havia problema: eu sempre era um homem forte, que diabo!… Depois do enfarte do miocárdio, deixei‑me disso. Além do mais, estou cheio de reumático. Ah, claro, se vir alguém aflito, deito‑me ao mar. O facto de eu estar presente é bom para eles e mau para mim.” Entre todos os epi‑ sódios, Batista Pereira destacou um: “Em 1955, fui passar férias à Nazaré; num certo dia, a água estava perigosa, mandei retirar gente da rebentação, mas uma senhora meteu‑se ao mar. Quando deu por ela, estava a seis me‑ tros de profundidade. Fui lá buscá‑la e, à noite, a senhora, com ar abastado, veio devolver‑me os cobertores em que eu a embrulhara e deu‑me uma boa maquia. Em vez de um mês de férias, tive dois.”

seguidos, em 28 horas e 43 minutos, batendo o record europeu de distância e permanência na água. O feito voltou a espalhar o seu nome pelas páginas de jornais e revistas de todo o mundo. Seria a sua última glória. O corpo forte escon‑ dia um coração delicado. Dias depois, com apenas 38 anos, sofreu um enfarte do miocárdio e os médicos obrigaram‑no a abandonar, de vez, a natação. Passou o resto da vida na sua casita de Alhandra, a dedicar‑se à família e a jogar à sueca com os amigos, nas tascas, de movimentos cada vez mais toldados pelo reu‑ mático, provocado pelos milhares de horas passados na água gelada. No dia 22 de junho de 1984, outro ataque cardíaco derrotou o Gineto. Tinha 63 anos e morreu sem ler o livro que Soeiro Pereira Gomes lhe dedicara a ele e aos outros “homens que nunca foram meninos”: Joaquim Batista Pereira nunca aprendera a ler. A.R./L.R.

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Caçadores de Estrelas

Eclipse total da Lua

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erá ainda este mês que Portugal poderá ver o último dos quatro fenómenos mais interessantes determinados pelas circunstâncias físicas e dinâmicas dos três astros intervenientes (Sol, Terra e Lua) para este ano de 2015. Na madrugada de 28 de setembro (quinze dias depois de ter participado no eclipse parcial do Sol, não visível de Portugal, e, antes disso, nos de 4 de abril e 20 de março), a Lua vai esconder-se na sombra da Terra durante algumas horas, convidando amadores e curiosos a observar não só os momentos mais importantes do fenómeno (entrada na penumbra e na sombra, início e fim da fase de totalidade, saída da sombra e da penumbra) mas também as colorações diferentes que apresentará ao longo de todo o acontecimento. Atualmente, sabe-se por que só há eclipses de seis em seis meses e consegue-se, com notável rigor, determinar os momentos e os locais em que eles são observáveis, calcular os períodos de ocultação completa da Lua, nas latitudes em que determinado eclipse é visível, conhecem-se os diâmetros da Terra e da Lua, os comprimentos dos cones de sombra que projetam no espaço, a distância entre esses dois astros e quantos milhões de quilómetros os separam do Sol, fonte de luz essencial para

que o fenómeno ocorra. Tão empolgante como ver o nosso satélite natural mergulhar, aos poucos, na sombra que a Terra lança no espaço, é recordar as observações minuciosas, a dedicação e a persistência dos nossos antepassados que, ao longo de séculos, foram acumulando os conhecimentos que conduziram ao conforto que modernamente sentimos ao interpretar, sem hesitações, os fenómenos que observamos e as razões por que acontecem. Setenta e dois minutos depois de ter começado o próximo dia 28 de setembro, a Lua Cheia ver-se-á na direção de Sul e, bem alta no céu, começará a mostrar o seu bordo esquerdo ligeiramente atenuado, uma diminuição muito ligeira que se vai propagando para a direita, até que, sete minutos depois das duas da madrugada, o bordo esquerdo será mais apagado em virtude de, então, ter percorrido a zona de penumbra e iniciar a entrada no cone de sombra da Terra. Da nossa latitude – por a Lua ser “vista” passar abaixo do centro da sombra –, a duração da totalidade é de pouco mais de uma hora, entre as 3h10 e as 4h20. Entretanto, a Terra não pára de rodar e o céu parece mover-se, conjuntamente, para Oeste, levando consigo a Lua, que vai descendo para o horizonte. Depois, é a saída progressiva da sombra, que se completa pouco depois das 5h20, e, finalmente –

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embora de difícil observação –, a viagem pela penumbra até às 6h20. Às zero horas do dia 28, segunda-feira, o Centro Ciência Viva de Constância inicia a sessão pública de acompanhamento deste eclipse total da Lua com uma palestra dedicada ao fenómeno, seguindo-se a ocupação de locais onde estão colocados binóculos e telescópios (alguns deles com adaptadores para máquinas fotográficas), a serem utilizados pelos participantes. Depois de alguns cafés e chás quentes, a evolução do eclipse testará a resistência de quem encarar o desafio de passar a noite em claro. Os mais corajosos terão oportunidade de contemplar, com binóculos e telescópios, a vizinha galáxia de Andrómeda e a magnífica Nebulosa de Orionte, antes da saudação a Vénus, Marte e Júpiter, que aparecerão um pouco antes do nascer do Sol. No entanto, contemplar um eclipse deste género não exige qualquer instrumento, nem deslocações a locais onde a convivência com observadores experimentados será, certamente, agradável, mas … pode ser dispensada: um eclipse da Lua é facilmente observável à vista desarmada e este será visível de qualquer ponto do território nacional. MÁXIMO FERREIRA Diretor do Centro Ciência Viva de Constância

O céu de setembro

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om o aproximar do fim do verão, as constelações consideradas mais evidentes nesta estação do ano vão-se aproximando do horizonte – nos lados de Oeste –, ficando progressivamente menos tempo à vista, a seguir ao pôr do Sol. É o caso do Escorpião e do Sagitário, notáveis por se situarem em direções próximas da do centro da galáxia e, por isso, ser sobre elas que passa a mancha da Via Láctea, que, emergindo do horizonte praticamente a Sul, se eleva até ao zénite, “mergulhando” daí para o horizonte, a Norte, onde “chega” depois de “passar” sobre as estrelas da Cassiopeia e do Perseu. Com o passar das horas, o meio arco da Via Láctea vai tombando para Oeste, como que acompanhando as estrelas que, com ele, se “movem” solidariamente, levando umas a esconderem-se a poente, enquanto outras se tornam visíveis e ganham altura, no lado oposto. Aí, vemos subir o quadrado do Pégaso e, com ele, a Cassiopeia, Andrómeda e Perseu, três regiões interessantes da esfera celeste para onde podemos olhar e

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recordar as direções onde se encontra a estrela que mantém prisioneiro o recentemente descoberto planeta considerado como “primo” da Terra, onde se vê (com um simples binóculo) a galáxia mais próxima de todas as que se podem avistar a partir do hemisfério norte do nosso planeta, ou a posição do radiante das Perseidas, o ponto de onde pareciam “chover” as “estrelas cadentes” que nos mobilizaram em observações ao longo da noite de 12 para 13 do mês passado. Trata-se de regiões bem fora da faixa que, centrada na eclíptica (a linha imaginária que corresponde ao plano da órbita da Terra), se afasta dela cerca de oito graus, para Norte e para Sul, constituindo assim o zodíaco, onde se consideram doze constelações (e não as treze que, de facto, são), por onde o Sol parece passear-se ao longo dos doze meses do ano. Nas diferentes “casas” do zodíaco, encontraremos a Lua e todos os planetas, ou não fosse por isso que assim se definiu tal região, para que pudesse albergar todos, mesmo os que, tal como Mercúrio ou

Plutão, possuem órbitas consideravelmente inclinadas. Na verdade, embora nem todos possam ser observados – ao princípio das noites desta época, deste ano –, Mercúrio, Vénus, Marte e Júpiter estão em direções próximas da do Sol, distribuídos pelas constelações do Caranguejo, Leão e Virgem, Úrano situa-se nos Peixes (um pouco a norte da posição em que se encontrará a Lua durante o eclipse lunar do próximo dia 28), Neptuno vê-se no Aquário e apenas Saturno é observável às primeiras horas da noite, a passar lentamente da Balança para o Escorpião. Naturalmente, a Lua, no seu movimento mais rápido do que o de qualquer outro dos “astros errantes”, passa por todas as “casas” durante a volta que, em cada mês, completa por todo o céu. A permanente rotação da Terra e o consequente movimento aparente do céu farão com que, ainda antes da meia-noite, surjam, a Este, estrelas e constelações que fazem parte do grupo comummente designado por “constelações de outono”.



Mapa do Céu Como usar

Vire-se para sul e coloque a revista sobre a cabeça, de modo que a seta fique apon­ta­da para norte. Se se voltar em qual­quer das outras direções (norte, este, oeste), pode ro­dar a revista, de modo a facilitar a leitura, desde que mantenha a seta apontada para norte. Os planetas e a Lua estarão sempre perto da eclíptica. O céu representado no mapa (no que se refere às estrelas) corresponde às 21.30 horas do dia 5. A alteração que se verifica ao longo do mês, à mesma hora, não é muito importante. No entanto, com o decorrer da noite, as estrelas mais a oeste irão mergulhando no horizonte, enquanto do lado este vão surgindo outras, inicialmente não visíveis.

As fases da Lua

Quarto Minguante Lua Nova Quarto Crescente Lua Cheia

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Dia 5 às 10h54 Dia 13 às 07h41 Dia 21 às 09h59 Dia 28 às 03h51


NORTE

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Sociedade Digital

A Uberificação do mundo Não é só a Uber! Muitas outras empresas de vários setores estão a substituir os serviços tradicionais por novas plataformas de partilha e colaboração através da internet. Que implicações é que isso tem para o futuro do trabalho, do emprego e da economia?

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o início deste ano, Yochai Benkler, professor na Universidade de Harvard, esteve em Davos, na Suíça, durante o Fórum Económico Mundial, e surpreendeu muita gente com uma curta mas incisiva palestra em que alertava para os perigos da “Uberificação” dos serviços e da economia da partilha (o vídeo pode ser visto aqui: http://youtu.be/mBF-GFDaCpE). A palestra surpreendeu muita gente porque Yochai Benkler, justamente ele, era (e é) um dos grandes teóricos da economia da partilha como um modo de organização económica alternativo ao mercado e à propriedade privada. Pouco tempo depois, escrevendo no site de tecnologia Techcrunch, Tom Goodwin, responsável de estratégia e inovação na Havas Media, notava que a Uber, principal empresa de táxis do mundo, não possui veículos; que o Facebook, o mais importante canal de informação do planeta, não cria qualquer conteúdo; que o Alibaba, o maior distribuidor de produtos, não mantém qualquer stock; que o Airbnb, o mais popular fornecedor de alojamento, não é dono de qualquer edifício. “Algo de interessante está a acontecer”, concluía Goodwin. Afinal, o que há de comum entre o Facebook, a Uber, a Alibaba e a Airbnb? Comecemos pelo Facebook. Ao contrário dos meios de comunicação tradicionais, como os jornais ou as revistas, o Facebook, como todos os outros “novos media” da sociedade em rede, não existe para produzir informação, mas antes para proporcionar aos indivíduos as ferramentas para produzirem e partilharem a sua própria informação. Ou seja, desempenha uma função diferente da dos meios de comunicação social tradicionais, e está mais adaptado do que estes às características da sociedade em rede na era digital.

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EMPRESAS DE INFORMAÇÃO

Olhemos então para a Uber. Tal como o Facebook não produz os conteúdos que distribui e sobre os quais monta o seu modelo de negócio, a Uber também não é dona dos veículos que andam na estrada. Então, qual é a função da Uber? Tal como o Facebook, o que a Uber faz é explorar uma plataforma (uma ferramenta) que permite, através de fluxos de informação materializados numa aplicação, colocar em comunicação indivíduos que procuram transporte com outros indivíduos ou entidades que têm transporte para oferecer. Ou seja, o que isto significa, no fundo, é que, na realidade, a Uber não é uma empresa de transportes; a Uber é uma empresa de informação. O mesmo se aplica, obviamente, ao Alibaba, à Airbnb e a tantas outras novas empresas da era digital que fazem precisamente o mesmo. Há portanto aqui uma regularidade que a sociologia da sociedade em rede ajuda a explicar. No seu importante The Wealth of Networks, Yochai Benkler explicou como um dos mais notórios efeitos das modernas tecnologias de informação e comunicação é o facto de estas reduzirem os custos de transação nos relacionamentos sociais. Uma pessoa que precisa de transporte e outra que, estando nas proximidades, tem transporte para oferecer, talvez nunca se encontrem por puro acaso. Em vez disso, a primeira pessoa talvez telefone a um amigo que mora perto para lhe dar boleia. Este amigo talvez deixe o emprego, durante 15 minutos, para lhe dar boleia. Ou seja, existe aqui um “custo de transação” que até agora é apenas social e nada tem de económico. Seria diferente se, em vez de chamar o amigo, a primeira pessoa optasse por chamar um táxi. Nesse momento, o que aconteceria era que o táxi lhe ia cobrar uma tarifa pelos custos envol-

vidos no transporte, incluindo os custos de transação. Ora, não tendo táxis em seu nome, o que a Uber faz é proporcionar uma plataforma que permite a dois estranhos, profissionais ou não, coordenarem o seu relacionamento social reduzindo os respetivos custos de transação. O mesmo acontece no Alibaba, na Airbnb e em tantos outros serviços atuais.

INFORMAÇÃO POR TODO O LADO

A segunda coisa importante que a sociologia nos ensina sobre esta matéria é que, por um lado, como identificou Manuel Castells, a gestão da informação é o fator económico decisivo nas sociedades modernas, com implicações em todas as atividades económicas. Por outro, a emergência das tecnologias de informação e comunicação digitais tende a colocar as ferra-


Opinião

O futuro será o “pós-capitalismo”?

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mentas de controlo do processo informativo nas mãos dos utilizadores. São tecnologias “distribuídas”, como lhes chama Castells. Ora, isto deve tornar o silogismo claro: se a gestão da informação é uma parte importante da estrutura de custos de qualquer atividade económica e se a informação tende a estar “distribuída” na era digital, isso significa que uma parte dessas atividades económicas também tende a estar “distribuída”. Ou seja, é diretamente operada pelos utilizadores, usando plataformas que lhes são propostas para o efeito, como a Uber, o Facebook, o Alibaba ou a Airbnb. É por isso que qualquer destes quatro serviços (como outros) está a desregular os operadores tradicionais dos respetivos setores (os táxis, os media, os comerciantes e os fornecedores de

alojamento, respetivamente). Isso não acontece porque a Uber, o Facebook, o Alibaba ou a Airbnb sejam concorrentes diretos dos operadores tradicionais. Acontece porque eles têm uma função social diferente, mais adaptada ao funcionamento da sociedade em rede ligada por tecnologias digitais. O problema – identificado por Benkler na pequena palestra referida no início deste texto – é saber se essa desregulação está verdadeiramente a aproveitar o potencial da economia de partilha ou se, pelo contrário, está a permitir que esse “valor” social e económico seja “capturado” por empresas privadas que se comportam como silos fechados e que dessa forma limitam a inovação. Esse é verdadeiramente o problema que está sobre a mesa.

final, para onde nos leva a desregulação dos modelos de negócios de tantos e tão diferentes setores da economia? Bem, Paul Mason acha que a resposta é: ao “pós-capitalismo”. Num artigo publicado recentemente no jornal The Guardian e que antecipa um livro a publicar em setembro, o jornalista e editor de economia do Channel 4 britânico argumenta que essas várias manifestações da “economia de partilha” prefiguram uma organização económica profundamente diferente da atual. Mason atribui esse desenvolvimento a duas causas: por um lado, o facto de a tecnologia tornar o trabalho dispensável em cada vez mais setores de atividade; por outro, o facto de a abundância de informação e as tecnologias de comunicação digitais desregularem o mercado como mecanismo central de formação de preços. O resultado é que em muitos casos o valor social de uma atividade se sobrepõe ao seu valor económico, tornando-se possível coordenar a respetiva realização usando as ferramentas digitais disponíveis em vez de recorrer ao mercado. Claro que a Uber é uma empresa privada de índole capitalista cujo objetivo é colocar essas ferramentas digitais ao alcance das pessoas como forma de gerar lucro. É, portanto, uma atividade económica como qualquer outra. Porém, para Paul Mason, esse aproveitamento prefigura e antecipa outras utilizações que nada têm de “económico”, no sentido capitalista do termo. Em Israel, a Google, através da sua plataforma Waze, está a testar um sistema de partilha de boleias chamado RideWith, que não só não envolve troca económica entre os participantes como explicitamente a proíbe! Será isto realmente o fim do capitalismo? O problema com este tipo de conceitos (“capitalismo”, “pós-capitalismo”, “socialismo”) é que eles são demasiado conotados politicamente. Se pensarmos no capitalismo apenas como uma forma específica de organização económica e social (com as suas instituições, as suas regras, os seus costumes e valores) cujo objetivo é coordenar um conjunto abrangente de atividades sociais, então não podemos deixar de concluir que as tecnologias de informação e comunicação digitais, assim como a “economia de partilha” que elas possibilitam, não podem deixar de o afetar profundamente. Ou seja, pode não ser (ainda) o fim do capitalismo, mas é provavelmente o começo de algo novo! JOSÉ MORENO Mestre em Comunicação e Tecnologias de Informação

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Fotografia

Prémios Sony distinguem jovens portuguesas

O teatro do MUNDO Os Sony World Photography Awards pretendem premiar histórias, ideias e emoções expressas em fotos. Este ano, houve uma portuguesa e uma lusodescendente inglesa entre os premiados.

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Música no caos. Kiev (Ucrânia). Um manifestante toca piano numa barricada, frente à polícia. O improvisado pianista participava no movimento Euromaidan, uma série de protestos que exigiam maior integração do país na União Europeia e acabaram por derrubar, em fevereiro de 2014, o presidente pró-russo Viktor Yanukovich. Vladyslav Musiienko, Ucrânia. Secção: Atualidade.

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140 centímetros. Assim se chama a série de 17 fotos de grande formato que documenta a dificuldade de viver com a síndrome de Down e a integração social das vítimas. Sabine Lewandowski, Alemanha. Secção: Gente.

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Saltos ardentes. Que faz este homem maquilhado e estranhamente vestido a passar através de um aro de fogo? Interpreta o papel de Bujang Ganong, uma das personagens do Reog Ponorogo, uma manifestação cultural indonésia que combina acrabacia, dança e teatro. Aprison Aprison, Indonésia. Secção: Artes e Cultura.

À varanda. Ao raiar da manhã, estes batráquios indonésios parecem conversar sobre quem passa. A Indonésia é o maior exportador mundial de rãs, e também um grande consumidor da sua carne. Harfian Herdi, Indonésia. Secção: Natureza e Vida Selvagem.


Cantadores. O grupo Cantares de Évora no Teatro Garcia de Resende, naquela cidade alentejana, momentos antes de se saber que tinha sido aceite a inscrição do cante na lista do património cultural imaterial da Unesco. Beatriz Mota da Rocha (15 anos), Portugal. Secção: Cultura.

Houve 173 444 fotografias, de 171 países

Felicidade. “Ao visitar a terra dos meus pais, em Portugal, tirei esta foto de uma prima minha sorrindo enquanto atirava flores ao ar. Fiz várias imagens até conseguir esta. Gosto dela porque se vê bem a alegria nos seus olhos.” Stephanie Anjo (14 anos), Reino Unido. Secção: Retratos.

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Tecnologia Carrega, descarrega, carrega

As super BATERIAS

É o Santo Graal das tecnologias móveis: baterias mais duradouras e que, além disso, se carreguem num instante. Vem aí uma revolução energética.

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sentido, e apontam a incorporação do grafeno ou o desenvolvimento de pilhas de lítio-ar como hipóteses viáveis de multiplicar várias vezes a capacidade dos aparelhos atuais.

COMBINAÇÃO ENGENHOSA

Outros suspeitam que este tipo de avanços está, para já, fora do nosso alcance tecnológico. O protótipo criado pelo engenheiro Elton Cairns, do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, na Califórnia, estaria, por assim dizer, num ponto intermédio. A sua nova bateria, do tamanho de uma moeda, emprega materiais fáceis de obter, o que reduz o seu custo, e uma engenhosa combinação de lítio, enxofre e óxido de grafeno que lhe permite armazenar entre duas e cinco vezes mais energia do que as convencionais. Além disso, quando Cairns e a sua equipa a analisaram depois de 1500 ciclos de carga e descarga, verificaram que apenas tinha perdido metade da sua capacidade, algo que hoje só se consegue com as melhores baterias de iões de lítio. Há também investigadores, como Chengdu Liang, do Departamento de Energia do Laboratório Nacional Oak Ridge, no Tennessee, que lançaram mão do enxofre. No seu caso, substitui o eletrólito líquido que conduz os iões das baterias normais por outro de estado sólido, mais seguro e que não se degrada tão rapidamente. O resultado é uma pilha com uma densidade de energia quatro a cinco vezes superior à das atuais. O químico-físico Amador Menéndez Velázquez optou por outra estrategia: juntamente com os seus colegas do Departamento de Engenharia Eletrotécnica e Ciência Computacional do Instituto Tecnológico do Massachusetts

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nergia. Está em todo o lado: no navegador GPS do carro, no telemóvel, no computador portátil… A constelação de dispositivos móveis que alterou a nossa forma de nos relacionarmos e de viver a realidade depende da capacidade de armazená-la e distribuí-la eficazmente, mas não é tarefa fácil. As baterias são, de facto, o calcanhar de Aquiles desses dispositivos. A sua capacidade e autonomia melhorou sensivelmente nos últimos anos, mas não tanto como as prestações (e portanto os consumos) dos vorazes sistemas portáteis: o P780, da Lenovo, um dos telemóveis mais interessantes, neste sentido, pode ser utilizado durante 43 horas entre cargas, embora essa duração dependa do emprego que se dê ao aparelho: manter uma conversa telefónica consome menos do que ver vídeos ou navegar na internet, por exemplo. Mesmo assim, não é suficiente. Segundo um estudo realizado pelo Laboratório Nacional Argonne (Estados Unidos), as modernas baterias de iões de lítio armazenam mais do dobro da energia do que as que havia em 1991. O problema é que o seu rendimento está estreitamente relacionado com o seu tamanho. Em essência, com a tecnologia atual, mais capacidade exige um aparelho maior e mais pesado. Muitos investigadores julgam que estamos à beira de atingir o limite da densidade possível desta tecnologia. Estamos então condenados a ter de optar entre conveniência e durabilidade? Teremos de passar a vida a transportar carregadores ou baterias de reserva? Alguns especialistas da área das novas fontes de energia para os dispositivos portáteis creem que dentro de alguns anos se dará um salto importante neste

Próximo choque. Para melhorar o rendimento das atuais baterias de iões de lítio, os cientistas estão a estudar o resultado de combinar este metal relativamente raro com enxofre ou grafeno.


Outras fontes de energia

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maioria dos nossos aparelhos portáteis utiliza baterias de iões de lítio. Eis algumas das novas arquiteturas e combinações: Nanotubos de carbono – Um protótipo de bateria com um eletrólito deste material proporciona dez vezes mais energia.

Lítio-enxofre – Prováveis sucessoras das atuais, pelo seu baixo custo e pela capacidade de armazenamento (quatro vezes mais). Iões de sódio – Ainda em fase experimental, a sua capacidade é semelhante à das de iões de lítio, mas o seu custo é mais baixo.

Zinco-ar – Possuem o triplo da densidade das de iões de lítio e são baratas, mas não é fácil torná-las recarregáveis. Lítio-ar – Usam o oxigénio do ar para produzir a oxidação do lítio. Proporcionam uma elevadíssima densidade energética. Interessante

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Conselhos úteis para as suas baterias

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Tesouro branco. O salar de Uyuni (Bolívia), um dos maiores depósitos de lítio conhecidos no mundo, possui 5,5 milhões de toneladas do metal.

O funcionamento dos ecrãs consome quase toda a bateria (MIT), apresentou em 2012 uma tecnologia que utiliza umas moléculas fluorescentes orgânicas, depositadas nos ecrãs dos dispositivos eletrónicos, para captar a radiação luminosa e voltar a emiti-la. Segundo revelaram os cientistas na revista Energy & Environmental Science, graças a este fenómeno, pode aproveitar-se a luz ambiente para, por exemplo, proporcionar energia a um aparelho portátil. Menéndez Velázquez e o seu grupo calculam que o aparelho se autoabasteceria, se a iluminação fosse de origem solar, e multiplicaria a autonomia por 15, no caso de uma fonte artificial. Melhor: o invento também permite reciclar a radiação do próprio ecrã, o que aumentaria de forma notável a duração da bateria. Trata-se de algo muito relevante, já que o consumo do ecrã chega a ser 90 por cento do gasto total dos dispositivos.

SUPERCARREGADORES

Embora aumentar a capacidade das baterias (ou reduzir o consumo dos aparelhos) pareça uma boa estratégia, o problema da energia pode ser abordado de outra perspetiva: reduzir o tempo de carga. Aqui, desempenham um papel importante os nanotubos de carbono. Há anos que se estudam as possíveis aplicações destas diminutas redes hexagonais de átomos, que apresentam propriedades mecânicas e elétricas surpreendentes: não só são centenas de vezes mais resistentes e leves do que o melhor aço disponível, como podem ser utilizados para evitar esperar horas até que uma bateria esteja completamente carregada.

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Na realidade, uma equipa de investigadores da Universidade da Califórnia em Riverside construiu uns ânodos para as baterias de iões de lítio que utilizam estruturas cónicas de nanotubos de carbono e silício. Além de apresentar grande estabilidade eletroquímica, esta arquitetura torna possível a recarga de um aparelho portátil em apenas dez minutos. Não obstante, em matéria de poupança de tempo, a empresa israelita StoreDot leva a palma. Na conferência Think Next, da Microsoft, os responsáveis por esta firma, saída do Centro de Nanociência e Nanotecnologia da Universidade de Tel Aviv, apresentaram o protótipo de um carregador com o qual é possível fazer um Samsung Galaxy S4 passar de zero a 100% de carga em apenas trinta segundos. O dispositivo utiliza semicondutores biológicos formados por péptidos, moléculas formadas por vários aminoácidos que convenientemente manipuladas se convertem em pontos quânticos. Os técnicos da StoreDot incluíram estas nanoestruturas cristalinas, que possuem interessantes qualidades óticas e piezoelétricas, numa solução especial que usaram como eletrólito. Os testes realizados em laboratório parecem confirmar que com esta técnica também se poderia construir baterias mais potentes ou reduzir o seu tamanho. Doron Myersdorf, fundador da empresa, está convencido de que este avanço impulsionará uma autêntica revolução no setor dos dispositivos portáteis, que poderá estar ao virar da esquina: se tudo correr como previsto, a produção em massa

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ara que as suas baterias durem mais tempo, siga estas recomendações dos fabricantes, que por vezes parecem ir contra o senso comum: • Não as descarregue sempre por completo nem as carregue sempre até ao máximo: diminuirá a sua vida útil, que é de três a cinco anos. • Não use os aparelhos a temperaturas muito elevadas. A temperatura alta reduz a capacidade da bateria: a 25 graus, perde vinte por cento ao ano. • Se não vai utilizar o aparelho durante algum tempo, deixe-o com metade da carga. Se a bateria estiver completamente descarregada, pode deixar de funcionar.

dos supercarregadores iniciar-se-á já em 2016. O que parece claro é que, nos próximos anos, as baterias não se libertarão da ditadura do lítio: é deste material que se obtêm os sais que funcionam como eletrólitos na maioria delas. As reservas mundiais deste elemento rondam os 40 milhões de toneladas, mas, frequentemente, surge em concentrações muito baixas. Segundo as estimativas do Serviço Geológico dos Estados Unidos, apenas 13 a 18 milhões de toneladas poderão ter interesse comercial.

O FIM DA DITADURA DO LÍTIO

Os maiores depósitos conhecidos estão situados num triângulo formado pela Bolívia (existe em quantidade em algumas zonas pouco exploradas), a Argentina e o Chile, que é atualmente o maior produtor mundial. Porém, o lítio também pode ser encontrado em quantidades significativas na América do Norte, em África e na Ásia: em 2010, foi anunciada a descoberta de uma possível jazida gigantesca no Afeganistão. Provavelmente, todas estas fontes serão insuficientes. O auge dos veículos elétricos e híbridos e o uso maciço de dispositivos eletrónicos impulsionou a procura deste metal, que está a aumentar ao ritmo de 12% ao ano, segundo um relatório do Credit Suisse. Por isso, os especialistas indicam que começaremos a sentir escassez de lítio dentro de algumas décadas. Seja como for, de momento, a tendência é para que o mundo seja cada vez mais portátil e eletrónico, uma tendência confirmada por um estudo da consultora Lucintel: em 2018, o negócio das baterias moverá em todo o mundo uma verba na ordem dos 80 mil milhões de euros (o valor do terceiro resgate à Grécia...). A.A.


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GETTY / TRATAMENTO DIGITAL: JOSÉ ANTONIO PEÑAS

Ambiente

Vivemos rodeados por eles

A casa é dos MICRÓBIOS 28 SUPER


Cercados. Por muito asseados que sejamos, deixamos sempre um rasto microbiano atrás de nós. Se nos mudarmos, esta “pegada” desaparece em três dias, substituída pela dos novos moradores.

Uma vizinhança exclusiva de bactérias convive connosco nas nossas casas. Foi o que descobriu a chamada “ecologia dos ambientes construídos”, uma nova disciplina científica que estuda a microfauna doméstica para melhorar a nossa qualidade de vida. Interessante

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egundo o microbiólogo norte-americano Jack Gilbert, “tocamos em tudo com as mãos, que são veículos perfeitos para os agentes patogé­ nicos”. Durante uma investigação, a sua equipa detetou a presença de um género bacteriano potencialmente perigoso, o Enterobacter, numa das casas estudadas. Ao seguir o seu rasto, os investigadores chegaram à conclusão de que aparecera, primeiro, nas mãos de uma pessoa; depois, na bancada da cozinha e, passado pouco tempo, nas mãos de um segundo indivíduo. Por isso (e sem ficarmos obcecados, pois transportamos, na imensa maioria das vezes, micro-organismos inofensivos), é importante lavar bem essa parte do corpo tão exposta da nossa anatomia. Na imagem, indicamos as áreas a que geralmente se presta pouca ou nenhuma atenção durante a lavagem, que deve incluir uma fricção vigorosa e demorar, no mínimo, vinte segundos, de acordo com os especialistas.

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nquanto o professor desliga o projetor, os alunos precipitam-se para fora da sala. Aproxima-se o final do dia e a Universidade do Oregon despede-se dos seus habitantes macroscópicos. É o momento em que James Meadow, do Centro de Biologia e Ambiente Construído (BioBE, na sigla em inglês), inicia o seu meticuloso trabalho. Meadow dirige-se para uma sala de aulas previamente selecionada. Ali, passa uma espécie de cotonete de tamanho gigante por várias superfícies: chão, mesas, cadeiras, paredes... até cobrir toda a divisão. Uma paciente recolha de amostras que, depois de efetuados os testes genéticos adequados, servirá para desvendar os mistérios dos residentes invisíveis da sala de aulas: os micro-organismos. Estima-se que, nas sociedades desenvolvidas, a maior parte das pessoas passa 90 por cento da sua existência dentro de casa. Todavia, não conhecemos o ecossistema que nos rodeia. “De onde vêm todos esses micróbios?”, interroga-se Meadow. “Chegaram ali porque os levámos ou esperam que passemos perto para colonizar o nosso corpo?” Esta e outras interrogações no mesmo sentido deram origem a um inovador ramo científico: a ecologia dos ambientes construídos.

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Zonas frequentemente esquecidas na lavagem. Zonas um pouco menos negligenciadas. Zonas mais lavadas.

As paredes estão revestidas de minicriaturas aéreas “A transição para um meio artificial alterou o equilíbrio que mantínhamos com o microbioma [o conjunto de micro-organismos que se encontram habitualmente em diferentes partes do corpo], muito antes de se terem descoberto os antibióticos”, explica o especialista. “Hoje, vivemos em espaços que são limpos a fundo, quase isolados do exterior e com um perfil microbiológico único. É lógico pensar que esse ecossistema interage com as espécies microbianas que habitam o nosso organismo.”

USAM-NOS COMO VEÍCULOS

Três vezes mais abundantes do que as próprias células, os micro-organismos que vivem no interior do nosso corpo são essenciais para a sobrevivência: funções tão importantes como a digestão ou a imunidade dependem deles. Contudo, desde que se descobriu, no século XIX, o papel de determinados agentes patogénicos no aparecimento de infeções, aposta-se na higiene como método de prevenção. De sabonetes antibacterianos a geles com álcool, existe

uma infinidade de produtos para esse fim, mas trata-se de métodos pouco seletivos, que alguns especialistas consideram demasiado agressivos. As amostras reunidas na Universidade do Oregon permitiram retirar várias conclusões. Meadow verificou que a presença de espécies microscópicas em determinadas superfícies depende de um único fator: a zona do corpo que está mais frequentemente em contacto com os objetos. Assim, abundam nas cadeiras os Lactobacillus, habitantes do intestino e das zonas genitais. Os residentes da pele e da saliva povoam o tampo das mesas, assim como o chão, o local mais heterogéneo e com maior presença de micro-organismos exteriores, que chegam agarrados às solas dos sapatos. Por último, nas paredes, menos expostas ao contacto direto, apenas vivem as bactérias presentes na atmosfera. “Confirmámos que o corpo humano é o veículo da maioria dos micróbios. A forma como interagimos com cada lugar e objeto determina

J. A. PEÑAS

Sabe lavar as mãos?


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Em busca do superantibiótico

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resistência das bactérias aos antibióticos (causada, sobretudo, por tratamentos incorretos) está aumentar a tal velocidade que alguns especialistas receiam um retrocesso ao tempo em que eles não existiam. Por exemplo, a OMS estima que já haja 663 mil casos de tuberculose multirresistente no mundo. Trata-se de pessoas sem esperança de cura. Daí que tenha causado tanto alvoroço a descoberta de um composto bactericida no início do ano. Como explicava a revista Nature, cientistas da Northeastern University (Estados Unidos) e da Universidade de Bona (Alemanha) exploraram um novo método. O truque consistiu em cultivar bactérias fazendo-as crer que estavam no seu meio natural para que desenvolvessem todo o seu potencial biológico, o que é difícil de conseguir em laboratório. Analisaram, assim, dez mil substâncias de origem microbiana e depararam com a teixobactina, a qual, embora faltem testes clínicos, se mostrou implacável com agentes patogénicos como o Clostridium difficile e o Mycobacterium tuberculosis.

Estudo da sensibilidade aos antibióticos de vários patogénios.

as espécies que surgirão”, explica Meadow, acrescentando: “Seja como for, a diversidade nunca é grande; os materiais ou a arquitetura do edifício limitam a sobrevivência e a dispersão dos micróbios.” Maria Gloria Domínguez-Bello, do Centro Médico NYU Langone, em Nova Iorque, estudou estas formas de vida em lugares remotos da floresta venezuelana e comparou os resultados com os de outros habitats. Em concreto, fez um recenseamento dos micróbios de quatro populações distintas: um grupo tribal, uma aldeia rural, uma cidade pequena e uma moderna metrópole. Conseguiu, assim, perceber as consequências do progressivo afastamento urbano da natureza. “Tomamos antibióticos, comemos alimentos processados e nascemos de cesariana. Estas mudanças alteraram o microbioma humano, com consequências que começam agora a estudar-se, mas também contribuíram para modificar as comunidades que nos rodeiam. Há consequências internas e externas”, diz. Enquanto, na floresta tropical, as casas estão cheias de micróbios, à medida que nos aproximamos da grande cidade, a sua quantidade e diversidade diminuem, tanto dentro como fora do corpo humano. A especialista pensa que

isso se deve a várias razões. “O tamanho dos edifícios cresceu e as famílias começaram a dispor de mais espaço. Em consequência, diminuiu o contacto físico, desapareceram as zonas comuns e os espaços dedicados à higiene e à preparação de alimentos, focos importantes de bactérias, foram separados. Além disso, aumentou o uso de materiais sintéticos, que colocam novos desafios à comunidade microbiana, e o intercâmbio de ar com o exterior foi drasticamente reduzido”, assinala a especialista.

RICOS E POBRES

Nas cidades, também há diferenças entre as construções das zonas pobres, mais pequenas e favoráveis à proliferação de micro-organismos, e os lares de famílias abastadas. Apesar disso, o microbioma dos habitats urbanos é geralmente semelhante ao da pele humana, enquanto, nos povos primitivos, abundam as espécies das mucosas e das secreções corporais. É assim porque cada objeto que entra em contacto com uma pessoa fica revestido de uma patine única. Além de gordura, perdemos cerca de 1,5 milhões de células por hora, acompanhadas de cerca de quinze milhões de micróbios. Um artigo recente publicado na revista Science explica até que ponto tal perda afeta o

ambiente. Jack Gilbert, do Laboratório Nacional Argonne (Estados Unidos), e a sua equipa recrutaram sete famílias com perfis socioeconómicos e geográficos diferentes. Os voluntários cumpriram um estranho ritual durante seis semanas: todos os dias, deviam obter amostras das suas mãos, pés e narizes, assim como do chão, dos puxadores das portas, dos interruptores da luz e das bancadas da cozinha. Depois, foi tudo analisado com recurso a modernas técnicas de sequenciação genética. Como o ADN de cada espécie contém marcadores específicos, os investigadores dispunham do nome, apelido e endereço de cada bactéria, em cada zona da casa. Os dados voltaram a confirmá-lo: o microbioma dos nossos lares depende dos seus habitantes humanos, mais do que dos materiais de construção ou da localização. “Quando três das famílias se mudaram, o perfil microbiológico da nova casa tornou-se igual ao da anterior em menos de um dia”, explica Gilbert. O padrão repetiu-se mesmo num quarto de hotel. Se um inquilino humano abandona uma casa, a sua marca microbiana deixa de ser percetível passado 72 horas. “Em teoria, podemos deduzir se alguém esteve muito tempo num determinado lugar, e há quanto tempo, embora Interessante

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Calçado e telemóveis, pejados de germes

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á três anos, investigadores do Estudo do Microbioma Doméstico, no qual participam o Laboratório Argonne e a Fundação Alfred P. Sloan (ambos dos Estados Unidos), anunciaram os resultados da contagem microbiana em dois objetos muito usados no quotidiano: o calçado e os telemóveis. Da análise dos dados, retira-se a conclusão de que eles atraem bactérias muito diferentes. Assim, embora as mais abundantes fossem as do género Mycoplasma, havia grandes diferenças: embora constituam 52 por cento da população dos telemóveis, apenas representam 20% da dos sapatos. Algumas espécies deste género provocam doenças respiratórias, incluindo a pneumonia. Seja como for, a maior parte das espécies prefere o calçado, em especial as do géneros Moraxellaceae, responsável por uma conjuntivite bovina, e Sphingomonadaceae, que inclui a subespécie que causa a meningite. Porém, não devemos entrar em pânico: os investigadores recordam que a maioria destes okupas nos protege dos seus parentes mais perigosos.

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Ao puxar o autoclismo, lançamos milhões de micróbios para o ar com algumas limitações”, esclarece Gilbert. Isto poderia dar origem a novas ferramentas na ciência forense. De facto, o especialista revela que a sua equipa está a desenvolver um projeto para identificar a última pessoa que interagiu com um cadáver através das suas bactérias. Uma análise microbiológica permite mesmo conhecer as relações que se desenvolvem no interior de uma casa. Os casais partilham bichos, e o mesmo acontece entre pais e filhos pequenos. Contudo, estudos efetuados em habitações completamente isoladas revelaram que cada pessoa é mais semelhante a si própria do que a qualquer outro indivíduo, e o rasto que deixa à sua passagem permanece único. De todas as zonas corporais estudadas por Gilbert, o nariz parece ser o mais exclusivo. Precisamente o contrário acontece com as mãos, a área anatómica com mais espécies em comum com aqueles que nos rodeiam. Na opinião do cientista, uma pessoa com um microbioma robusto leva novos povoadores diminutos aos espaços por onde se movimenta. Também se verifica o oposto: alguém que não aloje uma comunidade bem estabelecida, ou que tenha o sistema imunitário debilitado, tenderá a deixar-se seduzir pelos micróbios presentes no ambiente. De modo semelhante, a colonização de edifícios por parte de espécies perigosas não dependeria exclusivamente da

limpeza, mas seria condicionada pela ausência de variedades amistosas. Os hospitais são, talvez, o expoente máximo da higiene. No entanto, apesar de todos os esforços, bactérias resistentes aos antibióticos acampam ali livremente. Segundo os Centros para o Controlo e a Prevenção de Doenças, nos Estados Unidos, as infeções nosocomiais (hospitalares) provocam 200 mortes por dia. “Quando um agente patogénico prolifera, não o faz de forma isolada, mas age no contexto de milhares de outras espécies”, afirma Gilbert. Compreender essas interações é o objetivo de um dos estudos em que o especialista participa: o Projeto Microbioma Hospitalar.

ASSINATURA PERIGOSA

Depois de analisar amostras obtidas num novo edifício do hospital da Universidade de Chicago (Estados Unidos), os cientistas chegaram à conclusão de que os seres humanos exercem um impacto decisivo nas comunidades microbianas dos centros médicos, à semelhança do que acontece nas casas. Os quartos que alojam doentes com hospitalizações prolongadas conservam a sua assinatura microbiana mesmo passado vários meses. O que fica para trás raras vezes é inofensivo. Na opinião de Meadow, a supressão sistemática de espécies do ecossistema hospitalar

AGE

SPL

Em risco. Bactérias como a Klebsiella pneumoniae continuam a causar graves infeções nas unidades de cuidados intensivos neonatais.


Escudo amigo. Os cães levam para casa espécies microbianas que apanharam na rua, mas os estudos mostram que as crianças que convivem com mascotes possuem um sistema imunitário mais robusto.

elimina a concorrência e abre as portas à possibilidade de as mais resistentes (e potencialmente perigosas) poderem expandir-se. Algo de semelhante ocorre no nosso corpo: se não tivermos suficientes espécies benéficas nos intestinos, tomamos probióticos para reduzir o risco de infeção. “Talvez devêssemos investigar a possibilidade de cultivar bactérias inócuas nos hospitais”, especula Gilbert. No BioBE, onde arquitetos e biólogos procuram formas de construir edifícios mais saudáveis, estão de acordo. Os estudos revelam que a estrutura das condutas de ventilação condiciona os padrões biogeográficos dos micróbios, de modo semelhante à presença ou ausência de pessoas. Por exemplo, ao analisar o micro-habitat do edifício Lillis Business Complex, da Universidade do Oregon, um exemplo de arquitetura sustentável, os cientistas observaram que os gabinetes contíguos tinham populações semelhantes, provenientes do microbioma dos ocupantes e dos seus vizinhos. Contudo, as condutas de ventilação ligavam pontos distantes do edifício, como ilhas. Os investigadores do BioBE também estudaram a biodiversidade da atmosfera no Hospital Providence, em Milwaukie (Oregon). Ali, não se podem abrir as janelas, pelo que tiveram de forçá-las para ventilar determinadas divisões. “Verificámos que os quartos com janelas abertas para o exterior tinham um ecossistema mais diversificado, com espécies características da terra e das plantas. Nos outros, embora existissem menos micróbios, estes eram mais parecidos com os que habitam o nosso corpo.

Se considerarmos que há muitas pessoas doentes nos hospitais e não deixarmos entrar outros micróbios, isso será um problema”, afirma Jessica Green, diretora do BioBE. Nas unidades de cuidados intensivos neonatais, não são raras as mortes causadas por infeções bacterianas. Um estudo publicado no início do ano revelou o que muitos já suspeitavam: os germes nocivos tornam-se resistentes apesar dos rígidos protocolos de higiene. “Os recém-nascidos são como uma folha em branco”, explica Brandon Brooks, microbiólogo da Universidade da Califórnia em Berkeley e principal autor do artigo. O microbioma do seu corpo é menos diversificado e mais débil do que o dos adultos, circunstância que se altera durante as primeiras semanas de vida. Na opinião de Brooks, “saber como os bebés adquirem esses micro-organismos pode contribuir para evitar a incidência de infeções neonatais”.

ELES E ELAS

Meadow opina que devemos estudar a fundo o que nos rodeia, e apresenta um exemplo. Num relatório publicado em junho do ano passado, sequenciou os microbiomas dos telemóveis de 17 estudantes. “Nada nem ninguém partilha tantas espécies com um ser humano como os telemóveis”, afirma o cientista. Segundo os dados obtidos, os aparelhos exibem um perfil microbiológico muito semelhante ao das proprietárias, com mais espécies em comum do que no caso dos homens. “Não sabemos por que é assim”, diz Meadow. “O habitat bacteriano da pele não apresenta,

geralmente, diferenças de género. Porém, se examinarmos as espécies nas casas de banho deles e delas, é provável que encontremos exemplos. Embora não tivéssemos perguntado aos participantes no estudo como usavam os seus telemóveis, sabemos que muitas pessoas os levam para o WC. Lavamos as mãos, mas não o telemóvel. De facto, de cada vez que carregamos no autoclismo, dispersa-se pelo ar uma nuvem de milhões de micróbios.” Além das óbvias aplicações forenses, Meadow acredita que esses dispositivos se podem transformar numa ferramenta indispensável para a monitorização dos nossos diminutos inquilinos. “Há mais pessoas com telemóvel do que com acesso a uma casa de banho”, refere. “Já se tornaram generalizadas aplicações para controlar a evolução do peso, a atividade física ou o ciclo mentrual. O potencial dos sensores do microbioma ainda está por explorar.” Em casos concretos, como o do pessoal hospitalar ou dos investigadores que trabalham com bactérias perigosas, uma rápida verificação através dos seus telemóveis poderia, teoricamente, detetar a presença de agentes patogénicos. Por sua vez, Jessica Green acredita que seremos capazes, dentro em breve, de conceber edifícios que condicionem, de forma autónoma, o desenvolvimento do ecossistema invisível. “Os micro-organismos possuem um enorme impacto nas nossas vida, pelo que, se pudéssemos escolher com quais conviver, teríamos uma capacidade sem precedentes de influir na nossa saúde”, conclui Green. J.B.

Interessante

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IAU / L. CALÇADA

Espaço As insólitas atmosferas de outros planetas

Nuvens para ALIENÍGENAS A combinação de gases que rodeia a Terra protege-nos e favorece o desenvolvimento da vida. Todavia, não somos o único planeta a possuir atmosfera. Veja como são as dos nossos vizinhos cósmicos.

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O

estudo das atmosferas de outros planetas é um campo de investigação que tem vindo a proporcionar, desde há muito tempo, resultados interessantes. Graças à descoberta do telescópio, no final do século XVI ou princípio do XVII, ao seu aperfeiçoamento e às modernas técnicas de observação astronómica, levadas a cabo tanto em instalações terrestres como pelas sondas espaciais, cada vez conhecemos mais pormenores sobre a cobertura de gás que rodeia outros mundos. Além de numerosos dados sobre a dinâmica atmosférica nos gigantes gasosos mais próximos (Júpiter, Saturno, Urano e Neptuno), foram descobertas, nos últimos anos, as primeiras atmosferas situadas fora do Sistema Solar. Esse facto permite, entre outras coisas, especular sobre a possibilidade de se verificarem, noutros corpos celestes, as condições de habitabilidade necessárias para surgir a vida. Enquanto aguardamos que isso possa, um dia, ser confirmado, o conhecimento científico que conseguirmos acumular sobre as atmosferas alienígenas também nos ajudará a compreender melhor o comportamento da nossa e a sua relação com as alterações climáticas. Mostramos-lhe, em seguida, algumas das coisas que sabemos sobre os céus extraterrestres. J.M.V.

Pôr do Sol ao longe. Muitos dos quase 2000 planetas extrassolares já descobertos são gigantes gasosos semelhantes a Júpiter. Alguns dos seus satélites, como o desta ilustração, poderão possuir atmosferas.

Interessante

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NASA

Sob as nuvens de ácido sulfúrico de Vénus, sobre as quais a NASA propôs construir uma cidade flutuante (na ilustração), a superfície encontra-se a 460 graus.

Vénus: um autêntico inferno

A

atmosfera do planeta mais próximo da Terra é muito diferente da nossa. Antes de as primeiras sondas espaciais norte-americanas e soviéticas terem começado a estudar Vénus, nos anos 60, pensava-se que poderia haver, sob o manto opaco de nuvens que cobre permanentemente aquele mundo, selvas, florestas tropicais e água em abundância. Essa perspetiva mudou por completo quando se

Marte: afogado em pó

É

de longe o corpo celeste mais estudado, depois da Lua e da própria Terra. Tal como a de Vénus, a atmosfera do Planeta Vermelho (assim denominado pela abundância de óxido de ferro que o caracteriza) é também maioritariamente composta por CO2 (95,3%), embora seja muito mais ténue, o que se traduz num efeito de estufa quase residual. Há grandes diferenças de

conheceram os primeiros dados enviados pelas naves. Uma densa e opressiva mistura de gases, composta em 96 por cento por dióxido de carbono, provoca um brutal efeito de estufa. Com uma temperatura quase invariável de cerca de 460 graus Celsius em praticamente qualquer ponto da sua superfície, e uma pressão atmosférica 90 vezes superior à terrestre, é difícil conceber um lugar mais hostil e incompatível com

temperatura entre a noite e o dia na superfície marciana, que podem ser de 100 ºC entre máximas e mínimas. Além disso, a pressão atmosférica é muito baixa: apenas sete hectopascais, face aos 1013 que se registam, em média, na Terra, ao nível do mar. Embora também haja vapor de água no planeta vizinho, a proporção é muito pequena e variável, o que não impede que

a vida, pelo menos tal como a conhecemos. Como se não fosse pouco, é possível encontrar a flutuar, na alta atmosfera de Vénus, gotinhas de ácidos sulfúrico e clorídrico. Além disso, embora o planeta gire muito lentamente, as camadas nebulosas superiores possuem uma espécie de super-rotação, de modo que se deslocam a altíssimas velocidades relativamente ao solo.

se formem nuvens com relativa facilidade, apesar de as mais abundantes serem de poeira, criadas por enormes tempestades. Por vezes, chegam a cobrir boa parte do planeta durante meses. A gravidade superficial de Marte permite que as partículas de pó arrastadas pelo vento permaneçam muito mais tempo a flutuar na atmosfera do que acontece na Terra.

Os futuros colonos de Marte terão de lidar com as grandes tempestades de pó que cobrem periodicamente, durante meses, grandes extensões do planeta.

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Júpiter com a sombra do seu satélite Ganimedes a projetar-se sobre a Grande Mancha Vermelha.

Júpiter: chuva de diamantes

O

principal motor da atmosfera deste gigante gasoso (o maior planeta do Sistema Solar) é o calor interno que escapa para o exterior, pois o Sol está demasiado longe para aquecê-lo. O limite inferior da amosfera de Júpiter apresenta normalmente um nível de pressão de 700 hectopascais, pois não está apoiado sobre solo firme ou água, como acontece na Terra. Quase toda a atmosfera é

constituída por hidrogénio e hélio, mas contém também vestígios de metano, amoníaco e vapor de água. Na camada baixa, as pressões e as temperaturas são tão elevadas que não se afasta a hipótese de as moléculas de metano se dissociarem e formaram carbono puro na forma alotrópica de diamante; nesse caso, produzir-se-iam precipitações de cristais. Em Júpiter, as nuvem estão distribuídas latitudi-

nalmente, como se fossem faixas paralelas ao equador, e as de cor esbranquiçada alternam com as de tons castanhos. No meio, surgem gigantescas tempestades em forma oval. A maior é a Grande Mancha Vermelha, um enorme vórtice anticiclónico estacionário que ali permanece, pelo menos, desde 1665, ano em que teria sido observada, pela primeira vez, pelo astrónomo Giovanni Cassini. Interessante

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ESA

Saturno: furacões sob os anéis

mbora os exóticos anéis que rodeiam este planeta sejam o elemento que mais chama a atenção, a atmosfera do gigante gasoso também exibe algumas particularidades dignas de estudo. A enorme cobertura gasosa, com cerca de 30 mil quilómetros de espessura, possui uma composição química semelhante à de Júpiter. É sobretudo constituída por hidrogénio (90%) e hélio (5%). Incorpora também, em pequenas proporções, outras substâncias, como metano, vapor de água e amoníaco. A principal característica que diferencia a atmosfera de Saturno da de Júpiter é a força do vento. Saturno possui

o record absoluto do Sistema Solar: a observação do movimento das nuvens amareladas do planeta dos anéis permitiu deduzir velocidades de até 1800 km/h. Ainda não se conhece a causa que provoca correntes tão fortes, pois o aquecimento solar não tem influência na dinâmica atmosférica daquele mundo. Além disso, existe, no polo norte de Saturno, um gigantesco sistema de furacões estacionário, confinado por uma intensa corrente em jato em forma hexagonal. A evolução do Hexágono, nome dado à estrutura, está a ser monitorizada pela nave espacial Cassini, em órbita em redor de Saturno.

NASA / SSI

E

Simulação do que poderia ser o planeta dos anéis visto a partir do seu satélite brumento.

Titã: nuvens de azoto e metano

E

ste satélite de Saturno é o único do Sistema Solar com atmosfera. De facto, o seu estudo interessa muito aos cientistas planetários, pois pensa-se que é muito semelhante à da Terra primitiva, antes de a atividade fotossintética ter dotado o ar do oxigénio necessário para a existência de vida. O primeiro investigador a suspeitar da sua existência foi o astrónomo espanhol José Comas y Solá (1868–1937). Em agosto

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de 1907, apontou o seu telescópio no Observatório Fabra, em Barcelona, na direção de Titã, e observou como se ocultavam e surgiam algumas estrelas da extremidade do pequeno disco formado pela lua. Desse modo, conseguiu comprovar que os pequenos pontos de luz estelares não apareciam e desapareciam de forma súbita, mas de maneira gradual. Assim, deduziu que o objeto tinha de possuir a sua própria atmosfera. Hoje, sa-

bemos, entre outras coisas, que a cobertura de gases que envolve Titã é muito densa e possui uma cor alaranjada. É composta, em 94%, por azoto, seguido de metano e de outros hidrocarbonetos em menor proporção. Na superfície do satélite, onde a temperatura média é de 180 ºC negativos, sopram ventos de até cem quilómetros por hora, embora a sua velocidade seja muito maior nas zonas altas da atmosfera.


A sonda Voyager 2 detetou em Neptuno uma supertempestade do tamanho da Terra.

O

atual conhecimento que temos das atmosferas deste par de gigantes gasosos deve-se, em grande medida, às observações feitas pela nave espacial Voyager 2 durante a sua aproximação a ambos os corpos, em 1986 e 1989, respetivamente. As atmosferas de Urano e Neptuno são maioritariamente compostas por três gases: hidrogénio (83% no primeiro, e

84% no segundo), hélio (15% e 12%), e metano (2% em ambas as atmosferas). São também semelhantes pela sua cor azulada, embora o tom seja mais intenso em Neptuno. Na tropopausa da atmosfera de Urano, os sensores da Voyager 2 detetaram uma temperatura de –224 ºC, a mais baixa observada numa atmosfera do Sistema Solar. Neptuno é também um planeta

muito frio, com temperaturas que rondam os –200 ºC. Têm ambos ventos fortes. Enquanto se estima que, em Urano, possam alcançar os 1000 km/h, em Neptuno, nomeadamente em redor da Grande Mancha Escura (uma tempestade ciclónica semelhante à Grande Mancha Vermelha de Júpiter), são ainda mais fortes, muito semelhantes aos de Saturno.­

O

composta em 90% por azoto, mas há também metano e um pouco de monóxido de carbono. Os vestígios deste último volatilizam ou congelam, precipitando-se sobre a fria superfície rochosa do planeta, onde a temperatura oscila entre –215 e –235 ºC, em função de estar mais ou menos perto do Sol (a órbita de Plutão é muito excêntrica; demora cerca de 248 anos a completá-la). Tudo parece indicar que o metano é o principal responsável por a temperatura da atmosfera do planeta ser cerca de 40 graus superior à do solo. ESO / L. CALÇADA

corpo celeste (reclassificado como planeta anão, em 2006, pela União Astronómica Internacional) recebeu, em julho, a visita da sonda espacial New Horizons, da NASA, a primeira a aproximar-se dele. Os cientistas estão agora a receber, muito lentamente, os terabytes de informação recolhidos, pelo que se aguardam grandes novidades nos próximos tempos, à medida que os dados comecem a poder ser analisados e correlacionados.Por enquanto, sabemos que Plutão tem uma atmosfera extremamente ténue,

NASA

Plutão: neblinas gélidas

NASA / JPL

Urano e Neptuno: irmãos de azul

Exomundos para todos os gostos

E

m 2001, o telescópio espacial Hubble foi responsável pela primeira deteção direta da existência de uma atmosfera planetária num objeto situado fora do Sistema Solar: o gigante gasoso HD 209458 b, a 150 anos-luz da Terra. Seis anos depois, o astrónomo Seth Redfield, da Universidade do Texas em Austin, estudou, a partir de um observatório terrestre (o que nunca se conseguira até então), a de um exoplaneta da constelação de Vulpécula, a 63 anos-luz, com uma massa

20% superior à de Júpiter. Nesse período de tempo, foram encontrados, de diversas formas, mais de cinquenta exoplanetas com atmosfera, sobretudo gigantes gasosos. A utilização das novas técnicas fotométricas e espectroscópicas permitiu mesmo que se conhecesse, em certos casos, a sua composição química. Nesse sentido, uma das moléculas que mais expectativas desperta é a da água, pelo papel que desempenha na existência de vida. Em 2014, foi detetado vapor de água

na atmosfera de HAT-P-11b, um planeta situado a 122 anos-luz e cujo raio é cinco vezes maior do que o da Terra. Trata-se da primeira vez que foi observado num mundo relativamente pequeno. Contudo, é duvidoso que existam organismos ali, pois a temperatura ultrapassa os 500 ºC. Por enquanto, não se confirmou a presença de atmosfera noutros mundos mais parecidos com o nosso, como o Gliese 667 Cc (imaginado na ilustração), que orbita uma anã vermelha a 23 anos-luz. Interessante

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Saúde Uma abordagem multidisciplinar

Prevenir TUMORES D

a série de televisão House, o que ficou na memória, além das extravagâncias do protagonista, o doutor Gregory House, foi a forma como a sua equipa médica se reunia e debatia os problemas dos pacientes que lhe chegavam às mãos. Cada caso era visto como único e obrigava a uma reflexão e uma abordagem diferente, recorrendo-se a uma equipa multidisciplinar: além de Gregory, um especialista em diagnóstico, existia também (pelo menos nas primeiras temporadas) um imunologista, um neurologista e um perito em medicina intensiva. Em Portugal, e como o cancro não merece tréguas, a Fundação Champalimaud também criou uma equipa multidisciplinar que se reúne e troca ideias sobre cada pessoa que recebe, com o objetivo de avaliar o seu risco oncológico, prevenir e fazer um diagnóstico precoce da doença, ao longo da sua vida. Acima de tudo, o que se procura é a saúde, não a doença. O método, apesar de não ser pioneiro a nível mundial, quer fazer a diferença no nosso país e incentivar outros a fazer igual. “Aqui, não fazemos os tradicionais check-ups, mas sim uma avaliação e gestão do risco oncológico, para depois fazer a prevenção. Isto é para ser feito ao longo da vida das pessoas.” O resumo é feito por Silveira Machado,

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especialista em medicina interna, o grande mentor deste programa que já leva um ano de funcionamento. “A Fundação Champalimaud assegura-lhes essa avaliação, e se surgir um cancro ajudará a colmatá-lo. Se estivermos perante uma doença florida [em fase de desenvolvimento] iremos tratá-la, e, se for necessário, forneceremos os cuidados paliativos.” Ou seja, “o que se pretende é fazer um contínuo” junto destas pessoas, diz Silveira Machado: quer-se segui-las e ajudá-las a prevenir o cancro, dando resposta caso ele surja. A equipa é constituída por sete especialistas de diferentes áreas da saúde: pulmão, tubo digestivo, mama, ginecologia, urologia, pele, oncogenética, nutrição e, ainda, diagnóstico complementar (laboratório, imagiologia e anatomia patológica). Na prática, funciona como uma espécie de quartel-general, com toda a informação sobre o indivíduo a ser canalizada e centralizada para aí. De início, a pessoa interessada só tem de responder a um questionário, seguindo-se um ou mais exames físicos. Caso já os tenha feito noutras clínicas ou hospitais, basta levá-los. “Compete-nos rever esses exames e estabelecer um plano. Depois, os resultados são apresentados aos responsáveis de cada especialidade, para que deem a sua opinião”, esclarece o coordenador do grupo.

FUNDAÇÃO CHAMPALIMAUD

Todos somos vulneráveis ao cancro, uns mais do que outros. Para garantir que a doença não nos apanha de surpresa, uma equipa de especialistas de diferentes áreas, da Fundação Champalimaud, vai seguir pacientes ao longo das suas vidas, através de um programa contínuo de avaliação e prevenção de risco oncológico. Se o pior bater à porta, estarão prontos para lhe fazer frente.

“Mais tarde, as informações obtidas são transmitidas às pessoas e respondemos a alguma dúvida que tenham.” Até ao momento, o Programa de Avaliação e Gestão de Risco Oncológico e Diagnóstico Precoce, como é conhecido, tem sob a sua lupa cerca de 150 pacientes. Desde empresários a advogados, passando por hospedeiras de bordo, preocupadas com os possíveis riscos provenientes dos raios cósmicos que chegam à Terra, há pessoas vindas dos mais variados contextos. Algumas, conscientes de que o cancro é uma das doenças com maior incidência em todo o mundo, estão somente a prevenir-se para o que o futuro lhes pode reservar. Outras, por sua vez, olham para o passado e, ao ver o historial de familiares que tiveram cancro, ficam apreensivas e tentam agir por antecipação. “Quando comecei o programa, estava à espera de pessoas idosas, mas temos recebido muitos jovens. São pessoas com uma literacia


Trabalho de equipa. Silveira Machado, especialista em medicina interna (terceiro a contar da esquerda) é o mentor do Programa de Avaliação e Gestão de Risco Oncológico e Diagnóstico Precoce da Fundação Champalimaud. Na fotografia, estão alguns dos sete membros da equipa: Rogério Matos (pneumologia), Henrique Nabais (ginecologia) e Paulo Fidalgo (gastroenterologia).

muito grande, que se informam através da internet e das redes sociais digitais.” A equipa não aceita crianças, e a pessoa mais jovem que atenderam tem 20 anos. Não é de admirar, pois a doença em causa parece não poupar ninguém.

ANTES DE MAIS, OS NÚMEROS

Tumor maligno ou neoplasia, eis outros dos nomes que usamos quando queremos falar de cancro, um termo genérico que engloba um vasto grupo de doenças que afetam diversas partes do nosso corpo. Os sinais de perigo surgem quando células anormais começam a crescer de forma rápida, desordenada e para além dos limites a que deveriam estar confinadas, levando ao surgimento de uma massa irregular e excessiva de tecido. O problema torna-se extremamente sério quando estas células invadem as zonas adjacentes e se espalham pelo resto do organismo, criando metástases,

a principal razão pela qual se morre de cancro. Basicamente, a metástase consiste na formação de uma nova lesão tumoral a partir de uma outra, provocada por células cancerígenas que migram do tumor inicial e circulam pelo organismo, até formarem uma colónia noutro local. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em 2012, tenham surgido mais de 14 milhões de novos casos de cancro a nível mundial. De acordo com as estimativas da instituição, surgem 205 novos casos de cancro por cada 100 mil homens no mundo, e 165 por cada 100 mil mulheres. No mesmo ano, terão morrido 8,2 milhões de seres humanos vítimas da doença, principalmente devido a cancros no pulmão (1,6 milhões de mortos), no fígado (745 mil), no estômago (723 mil), no cólon (694 mil) e na mama (521 mil). Em Portugal, os números apontam para cerca de 49 mil casos diagnosticados em 2012, com 246 novos casos por cada 100 mil adultos.

Segundo os dados da Direção-Geral de Saúde (DGS), o cancro com maior incidência entre nós é o do cólon (14,5% do total), seguido de perto pelo da próstata e pelo da mama (13,5% e 12,4%, respetivamente), a que se juntam os cancros do estômago (6,1%) e da bexiga (5,8%). A lista muda um pouco quando nos concentramos nos que têm maior taxa de mortalidade no nosso país: os tumores malignos na traqueia, brônquios e pulmão são os mais mortíferos: 34,5%. Seguem-se os que surgem na próstata (33%), na mama (32%) e no cólon e no estômago (ambos a rondar os 25%). Balanço final? Neste momento, cerca de 24 mil portugueses falecem anualmente devido ao cancro.

DEMASIADAS VARIÁVEIS

“Atualmente, sabemos que metade dos cancros são preveníveis, embora uns mais do que outros”, adianta Silveira Machado. “Claro que isto é pouco. Gostaríamos que a outra Interessante

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Armas imperfeitas

P

ara combater as doenças oncológicas, os três tratamentos mais recorrentes continuam a ser a cirurgia, a radioterapia e a quimioterapia. No primeiro caso, faz-se remoção do tecido tumoral, mas só isso pode não bastar. Para a radioterapia, recorre-se a uma radiação parecida com a que é usada nos raios X, mas com níveis de energia mais elevados. Para produzir esta radiação, costuma-se usar um acelerador linear de partículas, um aparelho dentro do qual as partículas são aceleradas graças a um campo eletromagnético ou a ondas de rádio (por vezes, uma mistura dos dois), sendo depois emitido um feixe de radiação sobre determinada parte do corpo do paciente, durante as sessões de tratamento. Por norma, estes equipamentos produzem dois tipos de partículas: fotões e eletrões. A radioterapia pode ser aplicada antes ou depois de uma cirurgia, e em algumas situações é mesmo o único tratamento a ser feito. Na prática, esta radiação consegue destruir as células tumorais de determinado órgão ou tecido do corpo. A dose emitida é meticulosamente planeada de modo a que as células sãs, existentes entre o feixe de partículas e as células afetadas (ou em redor destas), consigam recuperar das alterações que também vão sofrer. A quimioterapia, por sua vez, recorre a substâncias químicas que vão atacar e destruir as células que se dividem rapidamente,

Para a radioterapia, recorre-se a aceleradores lineares de partículas que emitem, por norma, um feixe de fotões e eletrões. Esta radiação envolve elevados níveis de energia.

como acontece com as cancerígenas. O problema destes fármacos é que também afetam uma série de outras células que, apesar de terem as mesmas características, são fulcrais para o organismo. É o caso das células do sangue, importantes para combater infeções e transportar o oxigénio por todo o corpo, entre muitas outras tarefas. Também são atingidas as células dos cabelos e dos pelos, levando à sua queda, em-

Os fatores hereditários não são determinantes metade também o fosse, mas temos de saber aproveitar estes 50%. Essa percentagem engloba os tipos de cancro com que lidamos na fundação, pois são os que fazem sofrer mais, os que têm um crescimento mais errático (imprevisível, por vezes) e podem ser tratados mais cedo.” Os cancros em causa são os que afetam os pulmões, o tubo digestivo, a mama, o aparelho reprodutor feminino, a próstata e a pele. Como é que se avalia o risco oncológico de alguém? O que é tido em conta e que fatores pesam mais? Cada pessoa é sujeita a uma avaliação diferente, que tem em conta a sua especificidade e o seu historial. “Basicamente, os fatores que temos em conta são a idade da pessoa, o risco prévio pessoal [se existem casos na família, por exemplo], a exposição a fatores ambientais e o estilo de vida,” salienta. “Tudo isto vai interferir de forma muito intensa na qualidade de vida das pessoas, mas há muitas variáveis que por vezes nem conhecemos, pelo que não há certezas.” O número de pessoas com um ou mais

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cancros tem vindo a subir, porque, essencialmente, vivemos cada vez mais tempo. Em Portugal, a esperança média de vida situa-se nos 80 anos, quando em 1970 era de 67 anos. Quanto ao número de incidências por 100 mil habitantes, basta olha para a atual pirâmide etária da população portuguesa (cada vez mais envelhecida) para perceber que tenderão a aumentar. Esta é uma variável que, decididamente, pesa cada vez mais. Muitas vezes, o medo de vir a ter um problema oncológico e a vontade de prevenir não advêm das ações de sensibilização que vemos nos maços de tabaco, nem dos dados estatísticos com que somos bombardeados, mas sim quando vemos o cancro ali ao lado, a atingir os familiares que nos são mais próximos. Será que ter um pai ou um avô com cancro significa, necessariamente, um risco acrescido? Para o médico da Fundação Champalimaud, é preciso ter cuidado com esta ideia, já que as coisas não são assim tão lineares: “Tudo isto é muito variável, depende dos tipos de cancro. Por

bora este efeito seja reversível. Também é preciso incluir, no rol de danos colaterais, as células do aparelho digestivo: é por isso que a quimioterapia costuma provocar falta de apetite, náuseas e vómitos. Apesar de tudo isto, existe medicação capaz de controlar e atenuar estes efeitos secundários. São armas imperfeitas, mas é o que há, e ainda bem que as temos.

exemplo, o cancro da mama inclui, na prática, dez doenças diferentes”, diz. Olhando para o bolo no seu todo, “o cancro devido à hereditariedade anda entre os cinco e os dez por cento, pelo que não é tão importante como poderíamos pensar”.

FAZER UM DIAGNÓSTICO PRECOCE

Uma das tarefas do grupo de especialistas da Fundação Champalimaud é o diagnóstico precoce. O cancro é como uma bola de neve: a determinada altura, o que era inicialmente um problema pequeno pode tornar-se um verdadeiro caso de vida ou morte. Presumivelmente, antes de serem avaliadas, as pessoas que se submetem a este programa de acompanhamento contínuo encontram-se sãs. Na verdade, podem não o estar. Há quem já tenha um cancro mas não apresente ainda os sintomas. Cabe aos especialistas detetar o que só eles são capazes de ver. Ao fazer um acompanhamento personalizado para cada pessoa, está-se, igualmente, a estabelecer para ela um programa temporal que deve cumprir. Uma colonoscopia, por exemplo, é um exame que pode ser válido por dez anos, não sendo necessário repeti-lo. Todavia, esse prazo pode variar dependendo dos


MARK GRROVER

Medo dos raios cósmicos?

É

possível encontrá-los em todos os recantos do universo, e a própria Terra é constantemente bombardeada por eles. Falamos dos raios cósmicos, compostos por partículas de elevada energia que viajam a uma velocidade próxima da da luz. Sabe-se que podem afetar as nossas células e, inclusivamente, causar mutações no ADN, levando ao cancro. Há motivos para nos preocuparmos? Os riscos são acrescidos para quem viaja muito de avião? Já lá vamos. Este tipo de radiação divide-se, principalmente, em dois grupos. Os raios cósmicos galácticos vêm do exterior do Sistema Solar, formados por núcleos atómicos que perderam os eletrões que os rodeavam durante a viagem a alta velocidade que empreenderam pela Via Láctea. Presume-se que estejam aprisionados dentro da nossa galáxia devido ao seu campo magnético, motivo pelo qual já terão atravessado várias vezes a galáxia, a uma velocidade cada vez maior: as ondas de choque das supernovas são consideradas as grandes responsáveis por acelerá-los até quase à velocidade da luz. O outro grupo é constituído por partículas energéticas que vêm do Sol. Basicamente, são núcleos atómicos ejetados para o espaço devido às tempestades solares, embora sejam menos energéticos do que os seus primos vindos de fora da Via Láctea. Felizmente, o campo magnético terrestre consegue desviar uma boa parte destes núcleos atómicos, essencialmente compostos por protões. Os que passam esta barreira acabam por colidir com os átomos da atmosfera, provocando uma chuva de partículas menos energéticas e dando origem a uma radiação secundária que é inofensiva para os humanos. Uma pessoa que esteja ao nível do mar poderá receber, a cada dez dias, uma dose desta radiação equivalente a um exame de raios X ao peito. Ao que parece, sempre assim foi, desde que o primeiro Homo sapiens imprimiu uma pegada no planeta, pelo que conviver com esta radiação faz parte da nossa natureza. Todavia, há quem levante sérias dúvidas sobre se podemos estar tão tranquilos quando se voa a grande altitude, a bordo de um avião. Quanto mais alto estamos, mais fina é a atmosfera, e a quantidade de radiação que recebemos, em relação a quem está no solo, pode multiplicar-se por dez ou mais. No entanto, não deixa de ser uma dose muito pequena, pelo que é improvável que possa aumentar o risco de cancro, mesmo que viajemos muito de avião. Será que o mesmo se aplica aos pilotos e à tripulação de bordo, tendo em conta que

As tripulações dos aviões devem temer mais a exposição solar e os raios ultravioleta, assim como as alterações no seu relógio biológico e nos níveis hormonais.

passam boa parte do seu tempo no ar? De acordo com os dados existentes, os níveis de radiação que recebem estão dentro dos níveis de segurança. Não obstante, em setembro do ano passado, foi publicado um estudo na revista JAMA Dermatology que fez arrepiar muitos pelos da nuca. De acordo com os investigadores envolvidos (dos Estados Unidos, de Itália e da Áustria), a tripulação dos aviões tem “uma incidência de melanoma [cancro da pele] aproximadamente duas vezes maior do que a população em geral”. Por detrás disto, concluem, podem estar diferenças no que respeita à exposição aos raios cósmicos e aos raios ultravioleta. Motivo para alarme? Nem por isso, explica a Cancer Research UK, uma instituição de investigação na área das doenças oncológicas, sediada no Reino Unido, que congrega alguns dos melhores cientistas britânicos e mundiais no campo da prevenção, do diagnóstico e do tratamento desta doença. Segundo as informações que até agora recolheram, é pouco provável que os riscos de ter um cancro, por parte dos pilotos e restante pessoal de bordo, se possa dever à radiação cósmica. Porquê? Primeiro, porque os tipos de cancro a que podem estar mais suscetíveis são diferentes dos que estão relacionados com a radiação. Além disso, a exposição ao Sol é a principal causa dos melanomas, sendo que os profissionais da avia-

ção podem passar mais tempo em climas soalheiros do que as restantes pessoas. Por fim, trabalhar a bordo de um avião pode causar anomalias no relógio biológico e alterar os níveis hormonais, o que, segundo a Cancer Research UK, pode explicar o possível aumento, junto das hospedeiras de bordo, do risco de terem cancro da mama. Apesar de tudo, os raios cósmicos merecem cautela por parte das empresas de aviação. A tendência, nos últimos anos, é para que haja mais rotas a passar pela zona dos polos, devido à poupança que se consegue com estes novos trajetos. Contudo, o barato pode sair caro, pois os níveis de exposição não aumentam apenas com altitude, acontecendo o mesmo quanto maior é a latitude, dado que o campo magnético da Terra é mais fraco sobre os polos. Além do mais, é preciso contar com os níveis de atividade do Sol: uma poderosa tempestade solar pode fazer aumentar a quantidade de raios cósmicos emitidos. Para lidar com todas estas variáveis, estão a ser desenvolvidas ferramentas (a exemplo do que está a fazer a NASA) capazes de prever em tempo real, para várias zonas do globo, os níveis deste tipo de radiação. Quanto estiverem finalmente prontas, as transportadoras já poderão evitar, em determinado momento, uma rota que considerem menos segura. Interessante

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NATIONAL INSTITUTES OF HEALTH

Praga imortal. A HeLa é um tipo de célula, dentro da linhagem de células imortais, comummente utilizada em investigações científicas. A sua origem remonta a células de cancro cervical retiradas de uma paciente, Henrietta Lacks, em 1951. Estas células revelaramse incrivelmente duradouras e prolíficas, tendo chegado a contaminar outras linhagens celulares usadas em pesquisas.

A quimioterapia pode gerar novos tumores?

E

m 2012, duas investigações publicadas na revista Nature e uma outra na Science davam conta da existência de células tronco (estaminais) cancerígenas para diferentes tipos de cancro, responsáveis por originar as células malignas e ajudar os tumores e as metástases a desenvolverem-se. Basicamente, são muito parecidas com as comuns células tronco existentes em embriões e em adultos: estas últimas, além de terem uma maior capacidade para se dividir e criar duas células semelhantes, conseguem transformar-se (através de um processo a que se dá o nome de “diferenciação celular”) em células de diferentes tecidos do corpo, como os ossos, os músculos, o sangue, a pele ou os órgãos. Assim sendo, as células tronco cancerígenas poderão ser responsáveis por criar as diferentes células que estão ligadas a determinado cancro. Já tinham sido identificadas na década de 1990, pelo que não se trata de uma novidade. A questão é que continua a existir um debate, na comunidade médica, sobre o papel que realmente desempenham nas doenças oncológicas. Nos últimos anos, avolumaram-se as evidências científicas de que elas estão por detrás de muitas dessas enfermidades, a exemplo do que fez o trio

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de estudos já referidos. Um deles apresentou provas de que as células tronco cancerígenas nos adenomas intestinais primários são os precursores do cancro intestinal; outra das investigações concluiu que elas deram início a um tipo de cancro da pele; o terceiro mostrou evidências de que estavam presentes num dos tumores malignos mais comuns no cérebro, o glioblastoma. Uma das suspeitas, em relação a este tipo de células nefastas, é a de que resistem aos tratamentos convencionais, como a radioterapia e a quimioterapia, podendo ser responsáveis pelos casos de reincidência, mas existem muitas outras questões em aberto. Por exemplo: como é que elas surgem? Uma equipa de investigadores do Departamento de Ciências da Vida da Universidade de Coimbra, liderado por Maria Carmen Alpoim, deu a conhecer em julho os resultados de um estudo que apontam para uma resposta a essa pergunta. As conclusões a que chegaram? “Ao contrário do que se pensava até agora, a origem das células estaminais cancerígenas é multifacetada. Algumas surgem mesmo por ação da quimioterapia”, refere a equipa de cientistas através de comunicado. A investigação “provou existir uma grande

plasticidade intratumoral, ou seja, dentro do tumor há um vasto conjunto de subpopulações celulares que, mediante determinados estímulos, se convertem em células estaminais cancerígenas, cujo potencial maligno acrescido assegura a sobrevivência, invasão e metastização dos tumores”. Dito de outra forma, as substâncias químicas usadas durante um tratamento de quimioterapia poderão desencadear o surgimento destas células e causar determinado tipo de cancro. De acordo com Maria Carmen Alpoim, tendo em conta o que outros estudos internacionais já revelaram e face ao que os investigadores de Coimbra descobriram, é preciso implementar um conjunto de “novas abordagens nos tratamentos oncológicos, para aumentar a sua eficácia”. Como é que isso pode ser feito? “O recurso a cocktails de medicamentos direcionados às várias subpopulações tumorais, inclusive em doentes submetidos a radioterapia, permitirá maximizar a sua eficiência. As estratégias terapêuticas têm de ser multifacetadas e não somente direcionadas à diminuição da massa do tumor, porque a interconversão entre as subpopulações celulares cancerígenas permite manter e, inclusivamente, aumentar o potencial maligno”, conclui.


Resposta múltipla. O cancro da mama inclui dez doenças oncológicas diferentes.

A equipa faz recomendações relativas ao estilo de vida casos e das condições técnicas em que o exame foi realizado: pode ter sido mal feito ou, então, são necessários outros, mais pormenorizados. “Nessas situações, marcamos um exame a cada três ou cinco anos, por exemplo, conforme for necessário. Isto é muito importante no caso do cólon, quando se faz uma colonoscopia. Muitas vezes, os pacientes não têm queixas e nada surge num exame, para mais tarde se detetar algo. Aqui, o maior risco é a idade”, volta a frisar Silveira Machado.

proximidade, e que conhecem bem parte do seu historial clínico? Uma mulher jovem, por exemplo, pode confiar mais no ginecologista que já lhe fez o teste de Papanicolau, ou que lhe receitou a pílula, do que no especialista que acabou de conhecer. “Não queremos desarticular as pessoas que aqui vêm dos seus médicos”, responde o líder da equipa. “Pelo contrário. Se elas os julgarem importantes, contactamos os médicos e trocamos impressões”, garante.

CENTRALIZAR OS DADOS DE CADA UM

ANTES PREVENIR DO QUE CURAR

A equipa multidisciplinar pretende fazer tudo isto de forma integrada, centralizando dados que, por norma, costumam estar dispersos, envolvendo médicos de diferentes áreas. “A maior parte das pessoas que aqui vêm diz que fez um exame ao intestino num hospital, e um outro, à próstata, noutro local. Às tantas, andam a percorrer toda a cidade de Lisboa para analisar cada órgão. Por não saberem para onde vão a seguir, ou o tempo que tudo vai levar, acabam por sofrer uma sobrecarga emocional e de stress, precisamente aquilo que queremos evitar.” Não existe o perigo de afastar os pacientes dos médicos com os quais já criaram laços de

Prevenir pode parecer algo fácil, mas não é. Neste caso, referimo-nos à mudança de hábitos que nos colocam em risco. De acordo com a OMS, um terço das mortes atribuídas ao cancro, em todo o mundo, devem-se a cinco riscos comportamentais e alimentares: elevada massa corporal (a obesidade); baixo consumo de frutas e vegetais; falta de atividade física; fumar e beber álcool em excesso. O consumo de tabaco é, de longe, o maior fator de risco, causando cerca de 20% das mortes totais por cancro e, mais especificamente, 70% do número de mortos por cancro do pulmão. Não admira, portanto, que estes fatores de risco, além do envelhecimento da população, contribuam

para que em 2022 o número estimado de incidências de cancro chegue aos 22 milhões, contra os 14 milhões registados em 2012. “É muito difícil mudar de hábitos. Em média, uma pessoa demora seis meses a mudá-los, existindo quem demore anos a fazê-lo e outros que mudam de um dia para o outro”, indica Silveira Machado. Apesar de ser sempre uma decisão pessoal, o corpo de clínicos da Fundação Champalimaud costuma aconselhar mudanças de hábitos, em prol de outros mais saudáveis, quando necessário. Contudo, se as pessoas mudam ou não, essa é outra história. “Tentamos ter uma atitude pedagógica, para levar as pessoas a refletirem sobre a sua saúde, de modo a que a tenham nas suas mãos. No fundo, há um conjunto de decisões partilhadas, entre nós e as pessoas que cá vêm.” Entretanto, e enquanto o tempo passa, os números continuam a avolumar-se. Em 2012, praticaram-se em Portugal cerca de 45 mil cirurgias a neoplasias malignas, informa a DGS: o maior número de que há registo. No mesmo ano, registaram-se 415 mil sessões de radioterapia (um record), a que se juntam 260 mil admissões para quimioterapia e imunoterapia. Neste último caso, verificou-se uma descida em relação a 2012, embora não corresponda a uma diminuição da quantidade de fármacos administrados, que aumentaram. Poderão estes números, assim como a multidão de incidências e mortes, baixar um dia? J.P.L.

Interessante

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Saúde Carlos Caldas, médico e cientista

O caçador de CANCROS

U

m estudo publicado na revista Nature no início de julho promete um alívio para muitas das mulheres que sofrem de cancro da mama, uma doença oncológica que mata anualmente meio milhão de pessoas em todo o mundo. A crer nos resultados obtidos, a progesterona, uma hormona natural segregada pelos ovários, poderá ser usada para diminuir o crescimento de alguns tipos de tumor, nomeadamente na mama. A possibilidade de se obter um fármaco barato para combater a doença ficou assim com a porta aberta, embora se trate de uma investigação que ainda está na sua fase inicial. Feita com células desenvolvidas em laboratório, a experiência esteve a cargo de uma equipa de cientistas das universidades de Cambridge (Reino Unido) e de Adelaide (Austrália). Entre os autores está o português Carlos Caldas, ligado à instituição britânica. Na prática, o que o grupo verificou foi que, quando a progesterona comunica com o estrogénio, uma outra hormona igualmente produzida nos ovários e que está presente nas células do cancro da mama, o comportamento destas

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células malignas muda, fazendo desacelerar o ritmo a que proliferam pelo tecido mamário. “O cancro da mama tem origem no epitélio [um tipo de tecido celular] da glândula mamária, que é controlado por estrogénios e progestagénios. Ambas as hormonas têm um papel central no cancro da mama, pois regulam a diferenciação [de células] no epitélio mamário”, esclarece Carlos Caldas. O grande problema é que “entre 75 e 80 por cento dos cancros da mama expressam o recetor do estrogénio, e nesses cancros o estrogénio estimula a proliferação das células malignas”.

ESTROGÉNIO VERSUS PROGESTERONA

Em que medida é que a progesterona pode dar uma ajuda? Ao que parece, a hormona em causa, que pertence à classe dos progestagénios, tem o poder de contrariar o papel do estrogénio. Já se sabia que os cancros que tinham recetores da progesterona eram menos letais, mas desconheciam-se as razões. “O nosso estudo mostra que em alguns cancros da mama, em que o estrogénio está expresso, a progesterona consegue inibir a proliferação

DICYT / UNIVERSIDADE DE SALAMANCA

Um fármaco barato, à base de hormonas produzidas no corpo da mulher, capaz de travar a expansão das células cancerígenas nos tecidos mamários. Jogos de telemóvel que permitem a qualquer pessoa procurar sinais de cancro. Usar os métodos dos astrónomos, na sua caça às estrelas, para estudar biópsias. Os contributos de Carlos Caldas, um dos nomes mais conceituados do mundo no estudo da genómica funcional do cancro, parecem não ter fim.

celular”, diz o oncologista. Face a esta “ofensiva”, e em jeito de resposta, “esses cancros tentam escapar a esta inibição perdendo os recetores da progesterona”. No laboratório, os cientistas das duas universidades descobriram que conseguiam intrometer-se nesta luta entre hormonas, bastando expor as células cancerígenas com estrogénio à progesterona, de modo a que proliferem menos. “Este resultado sugere que nestes tipos de cancros a progesterona poderá ter um efeito terapêutico”, conclui o português. Dito de outra forma: talvez seja possível criar um fármaco com esta hormona. Além do mais, ele teria todo o potencial para ser barato, dado que a progesterona é fabricada no próprio corpo da mulher.


Imparável. Carlos Caldas é um dos principais investigadores da Universidade de Cambridge (Reino Unido). A sua especialidade é a área oncológica, liderando neste momento uma equipa que procura identificar os genes relacionados com o surgimento e o desenvolvimento do cancro da mama. Integra igualmente a Cancer Research UK, a maior instituição do mundo sem fins lucrativos a fazer investigação na área do cancro, integrando, entre outros, projetos que procuram facilitar o tratamento de dados que se produzem nesta área.

Para se chegar a estas conclusões (disponíveis em http://ow.ly/Qy3Ub), compararam-se diferentes culturas de células mamárias malignas. Uma delas recebeu um tratamento à base de progesterona e de tamoxifen, um dos fármacos mais bem-sucedidos no combate ao cancro da mama e que funciona como uma espécie de ‘antiestrogéneo’. No fim, as células que levaram este cocktail cresceram até metade do tamanho que costuma ser normal. Isto significa que uma intervenção nos estágios iniciais deste cancro, usando um fármaco que tem progesterona, pode aumentar o número de pessoas curadas. As que não forem curadas poderão, pelo menos, ver a sua doença controlada durante mais tempo.

De momento, ainda se está a delinear como serão os ensaios clínicos, para verificar se tudo isto tem validade. Essencialmente, terão de ser capazes de responder a uma pergunta, revela Carlos Caldas: “Será que um tratamento que combina progesterona com antiestrogénios tem melhores resultados do que um tratamento só com antiestrogénios?”

TERABYTES DE CANCRO

A nova pesquisa é somente mais uma das várias investigações em que o cientista português está envolvido. Carlos Caldas lidera, na Universidade de Cambridge, uma equipa que procura identificar o que acontece para que o cancro da mama surja e se desenvolva. Não é

tarefa fácil, e por uma simples razão: “O cancro da mama não é uma doença, é uma constelação de dez doenças. Foi precisamente isso o que o meu grupo frisou em 2012, num artigo na Nature (em colaboração com outro português, o Samuel Aparício). Neste momento, a nossa investigação está toda focada em estudar estas dez doenças distintas a que chamamos ‘cancro da mama’.” Todavia, o seu contributo para compreender melhor o cancro está longe de ficar por aqui. Hoje em dia, os estudos científicos em torno da genómica das doenças oncológicas envolvem o tratamento de uma quantidade gigantesca de dados – “terabytes”, diz Carlos Caldas –, o que requer uma infraestrutura computacional Interessante

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Cancro no pâncreas tem mais um inimigo

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ma pequena descoberta que faz a diferença. Ao que parece, as células tumorais do pâncreas produzem exossomas (pequenas vesículas segregadas pelas células humanas) que contém a proteína glypican-1. Na prática, isto significa que é possível detetar no sangue a presença de exossomas com esta proteína, permitindo distinguir os pacientes sãos, ou com uma doença benigna, dos que verdadeiramente têm um cancro nesse órgão. Foi esta a conclusão a que chegou a investigadora Sónia Melo, do Instituto de Patologia e Imunologia Molecular da Universidade do Porto (Ipatimup), após experiências laboratoriais em ratos. O estudo, publicado em julho na revista Nature (http://ow.ly/Qyd9V), mostra o caminho para um novo método de deteção precoce do cancro do pâncreas, na medida em que lesões iniciais neste órgão, que geralmente passam despercebidas nas ressonâncias magnéticas, podem assim ser detetadas atempadamente.

Um problema dos cientistas é a quantidade de dados a analisar considerável. “Cambridge é um dos melhores centros do mundo para este tipo de pesquisa, com grandes volumes de dados”, indica. É precisamente aqui que entra em cena a tão importante interligação com outras áreas científicas: “Tenho vários físicos e matemáticos a trabalhar comigo, para ajudar a transformar informação em conhecimento.”

DO ESPAÇO PARA O TECIDO HUMANO

Há muito para aprender e “beber” junto de outros campos de investigação, como a astronomia. É um desafio de monta analisar as imagens do espaço profundo, como as que são capturadas pelo telescópio espacial Hubble, em busca de novas estrelas e galáxias. Curiosamente, acaba por ser uma tarefa muito similar ao estudo e à interpretação de microfotografias de tecidos humanos, nomeadamente os que têm tumores.

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A interdisciplinaridade é mesmo o futuro. Num primeiro relance, podemos pensar que estamos a olhar para o que parece ser um mapa de estrelas da Via Láctea, mas, na verdade, trata-se de uma imagem de células tiradas a um paciente com cancro da mama. É precisamente por existirem padrões de similaridade entre as imagens destas duas diferentes realidades que o grupo de Carlos Caldas participa no PathGrid, um projeto interdisciplinar que visa automatizar a análise de tecidos tumorais. Sejam milhares de milhões de estrelas ou milhares de milhões de células, a quantidade colossal de dados a processar é semelhante. Daí a questão: os algoritmos que os astrónomos usam para analisar as fotografias de certas zonas do espaço podem ser adaptados para os oncologistas fazerem o mesmo para as imagens

microscópicas, nomeadamente em biópsias? No fundo, quer-se poupar trabalho, tempo e diminuir os erros de análise, tendo em conta a enormidade de dados analisados. Um software que consiga detetar e classificar, automaticamente e com eficácia, determinados elementos de uma imagem a uma amostra de tecido, como os diferentes tipos de células que aí existem, irá sem dúvida fazer a diferença.

SOMOS TODOS CIENTISTAS

Uma outra forma de contornar o problema de analisar dados que parecem intermináveis passa por recorrer ao crowdsourcing. Basicamente, consiste em recorrer à ajuda voluntária de um largo grupo de pessoas, nomeadamente dentro da comunidade online, para prestar um serviço. É precisamente isso o que se faz


Aproveitar o que é nosso

B

iólogos, geneticistas, farmacêuticos, bioquímicos e muitos outros. Ao todo, foram 30 investigadores, ligados ao Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental da Universidade do Porto (CIIMAR), que descobriram uma lista de novos compostos químicos, produzidos por fungos, com um potencial anticancerígeno. O projeto, que se estendeu ao longo de dois anos, procurou identificar espécies marinhas, em território português, capazes de produzir novas substâncias bioativas, com potencial para serem usadas pelas indústrias biotecnológica e farmacêutica. O terpeno sartorypyrone C, o composto aromático similanpyrone C e o péptido similanamida foram alguns dos compostos, sintetizados por fungos marinhos, que encontraram, sendo que este último revelou propriedades anticancerígenas. Quem também revelou este atributo foi um grupo de glicolípidos raros, gerados por cianobactérias descobertas nas praias do Minho. O rastreio foi feito ao abrigo do programa MarBiotech, com o objetivo de valorizar economicamente os produtos do mar existentes em Portugal.

Atenção! Em Portugal, o cancro da mama é o terceiro com maior incidência, a seguir ao do cólon e ao da próstata. A mamografia continua a ser um dos exames mais úteis para o detetar em fases iniciais e curáveis.

através do projeto Cell Slider (http://www. cellslider.net), em que qualquer pessoa pode visualizar dados patológicos (imagens microscópicas) e assinalar as células cancerígenas que encontra, da mesma forma que os cientistas o fariam. A ideia, inspirada no que já se faz na astronomia, partiu da Cancer Research UK, uma instituição de investigação na área das doenças oncológicas, sediada no Reino Unido. Vários investigadores da Universidade de Cambridge integram o projeto, incluindo Carlos Caldas. Para tornar tudo mais fácil ao cidadão comum, é fornecido aos interessados um breve tutorial sobre o que devem procurar e assinalar nas imagens. Ao fim e ao cabo, está-se a confiar ao público uma tarefa que antes só era permitida aos especialistas, mas, perante a torrente de

dados a analisar e na falta de recursos próprios para lidar com eles, esta é mesmo a melhor solução, conseguindo-se acelerar os processos de investigação. O que poderia levar anos acaba por ser feito em meses. “Trata-se de uma contribuição que teve sucesso”, afiança Carlos Caldas, “e é para continuar.” Desde 2012, altura em que foi lançado, e até ao momento, já foram analisados mais de 2,5 milhões de imagens.

JOGAR PARA AJUDAR

Outro projeto semelhante da Cancer Research UK, e em que Carlos Caldas também participa, recorreu a um dos maiores fenómenos dos anos recentes: os jogos para telemóvel. Em 2014, saiu para os sistemas operativos Android e iOS o jogo Play to Cure: Genes in

Space. Para quem descarrega e joga, o desafio é guiar uma nave espacial ao longo de uma cintura de asteroides e recolher uma carga preciosa, o “Elemento Alfa”, essencial para fazer investigação médica: a aventura tem lugar no futuro, daqui a 800 anos. Tudo o que é preciso é seguir um mapa do universo, fornecido aos jogadores, no qual estão assinalados os locais onde se pode encontrar o tão precioso “Alfa”. Na realidade, o que se está a fazer é viajar pelos cromossomas de pessoas de carne e osso, analisando o seu ADN em busca de sinais de cancro. Um mês depois de o jogo ter ficado disponível, já havia milhares de pessoas a jogá-lo, perfazendo um total de 53 mil horas de jogo e cerca de 1,5 milhões de cromossomas classificados. Na prática, reduziu-se o que demoraria seis meses para apenas um. O olho humano, pelos vistos, continua a ser a melhor ferramenta para fazer análises mais precisas (os computadores não são cem por cento fiáveis nessa tarefa) e, quando se tem a possibilidade de juntar milhares ou milhões de olhos, de qualquer parte do globo e em simultâneo, é tempo de vida para alguém que se está a ganhar. Quando lhe disserem que jogar no telemóvel é uma perda de tempo, já sabe o que responder. Tudo por uma boa causa!” J.P.L.

Interessante

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Documento

RECONSTRUÇÃO: FABIO FOGLIAZZA / FOTOGRAFIA: GIORGIO BARDELLI

A outra humanidade

Decorados. A descoberta de penas de ave na gruta de Fumane (Itália), junto a ossos de neandertali, faz pensar que eles as usavam para adorno e inspirou esta reconstituição por especialistas italianos. À direita, outra reconstituição, a partir de fósseis da jazida francesa de La Chapelle-aux-Saints.

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NOVIDADES DOS NEANDERTAIS À medida que se fazem novas descobertas (fósseis, estudos de ADN...) sobre o Homo neanderthalensis, cada vez sabemos mais sobre as suas características, cultura e história evolutiva. Contudo, surgem simultaneamente outros mistérios sobre essa espécie tão diferente de nós e no entanto tão humana.

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obustos, de ancas largas e pernas curtas, com peito de touro e uma visão de lince. É assim que os paleoantropólogos descrevem os neandertais, cujo cérebro não ficava muito atrás do nosso. Fisicamente, eles eram diferentes de nós. Há suficientes razões morfológicas para os paleoantropólogos os terem classificado como uma espécie distinta: Homo neanderthalensis. Após 150 anos de estudos anatómicos, sabemos que possuíam uma entidade biológica especial, confirmada pelas coleções de restos encontrados em diversas jazidas e guardados em museus e instituições científicas. Para começar, destacam-se as singulares cabeças, com neurocrânios (a parte que aloja o encéfalo) mais achatados e largos, e uma testa mais curta do que a nossa. A zona central do rosto projeta-se para diante, e as mandíbulas exibem um queixo retraído. O orifício da abertura nasal é largo e aloja um nariz grande e carnudo. Além disso, possuem outras características menos conhecidas. Em 2005, o antropólogo Gary Sawyer, do Museu Americano de História Natural, e um especialista na reconstituição de hominídeos, Blaine Maley, recriaram pela primeira vez o esqueleto articulado completo de um neandertal. A maior parte dos ossos provinha de um macho encontrado em França, conhecido pela designação La Ferrassie 1, do local onde foi descoberto e cuja antiguidade foi estimada em 70 a 50 mil anos. As partes que faltavam foram retiradas de exemplares de tamanho semelhante encontrados noutras jazidas.

CONTORNOS NATURAIS

Com moldes sintéticos semelhantes aos ossos originais, Sawyer e Maley obtiveram um esqueleto que chama a atenção em vários aspetos em comparação com o nosso. Por um lado, a forma do tórax: enquanto a nossa caixa torácica é cilíndrica, a do neandertal é muito ampla e adquire a forma de sino à medida que desce ao encontro do ventre. “Ao reconstituí-la, procurei adaptar-me aos contornos naturais das costelas”, explica Maley. A constituição do neanInteressante

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Documento Bem abrigados Apesar de os seus corpos estarem mais bem adaptados ao frio do que os nossos, os neandertais necessitavam de se vestir, de usar o fogo e de se refugiar em grutas.

dertal exibe um grande torso projetado para a frente, sobretudo na região inferior. Outra diferença visível é a escassa distância entre as últimas costelas e a pélvis. O neandertal não tem praticamente cintura, embora “seja difícil fazer afirmações sobre esta espécie com base numa única recriação”, diz o especialista. O que mais se destaca no esqueleto é, sem dúvida, a estrutura da pélvis. Os ossos da anca do homem de La Ferrassie abrem-se para os lados de forma semelhante aos de uma mulher moderna. Como os ilíacos estão muito separados, o osso sacro, a par do resto da coluna vertebral, surge numa posição mais baixa dentro da cavidade pélvica em comparação com os atuais seres humanos. Por isso, os neandertais eram mais baixos do que nós, apesar de o comprimento da espinha dorsal ser semelhante.

UM GENE PARA A ALTURA

Em 1997, o paleoantropólogo Christopher B. Ruff calculou, através de equações matemáticas baseadas numa amostra de ossos atuais, que o indivíduo de La Ferrassie teria 1,71 metros de altura, o que permitia pensar que os neandertais teriam tido uma estatura semelhante à nossa. Todavia, o esqueleto montado por Sawyer e Maley tem 1,64 m, devido à peculiar configuração da bacia, que lhe retirou 7 cm. Dado que o hominídeo francês era considerado um dos neandertais mais altos, podemos supor que se tratava de um povo de gente robusta e relativamente baixa. Qual será, então, a causa de termos um esqueleto com-

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prido e estreito que nos torna mais esbeltos do que os restantes hominídeos? Investigadores do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, de Leipzig (Alemanha), descobriram que divergimos dos neandertais no gene RUNX2, cujas variações provocam uma doença, a disostose cleidocraneal, que causa graves deformações no esqueleto humano. As pessoas afetadas exibem uma caixa torácica em forma de sino e o osso frontal do crânio é proeminente. Estas alterações lembram a morfologia dos neandertais e sugerem que se produziram, ao longo do nosso percurso evolutivo, alterações no gene RUNX2 que modificaram o crânio e a parte superior do tronco. Deixemos os ossos de lado e imaginemos os órgãos que alojavam, a começar pelo cérebro. É sabido que o dos neandertais era grande; chegou-se a exagerar ao afirmar que era maior do que o nosso. Todavia, um estudo de 2013, dos paleoantropólogos britânicos Eiluned Pearce, Chris Stringer e Robin Dunbar, demonstrou que ambas as espécies possuem, regra geral, a mesma capacidade cerebral em termos de valor absoluto. Contudo, se se tomar em consideração a relação do tamanho do corpo relativamente ao volume de massa cinzenta, o encéfalo dos humanos modernos é proporcionalmente maior. Isso não significa, obviamente, que os Homo neanderthalensis não fossem inteligentes. Várias instituições científicas estão a desenvolver investigações para desvendar os mistérios da sua mente, através de novas tecnologias

que permitem reconstituir um cérebro que já não existe. Numa análise preliminar, observa-se que o dos neandertais era mais achatado, no género de outros hominídeos mais primitivos. Foi a nossa estirpe que desenvolveu um encéfalo mais arredondado e gobular. Nesse sentido, os bichos estranhos da evolução somos nós.

VANTAGENS OLFATIVAS

Markus Bastir e António Rosas, do Museu Nacional de Ciências Naturais, de Madrid, estudaram pormenorizadamente a forma dos lóbulos temporais e o bulbo olfatório dos neandertais, e descobriram que são mais pequenos. Isso significa que, apesar do seu enorme nariz, tinham um sentido do olfato mais limitado do que o do Homo sapiens moderno. Sabe-se que os lóbulos temporais estão envolvidos no processamento neuronal das emoções (medo, prazer, atração) e da memória, pelo que desempenham um papel de grande importância nas interações sociais. Além disso, recebem informação por via direta dos bulbos olfatórios. A estreita relação entre a perceção dos odores e as áreas do cérebro responsáveis pela memória e pelas emoções explica a intensidade e a capacidade evocativa que certos acontecimentos vitais nos produzem quando há aromas pelo meio. Segundo Bastir e Rosas, o aumento do tamanho dos bulbos e dos lóbulos temporais no Homo sapiens trouxe vantagens adaptativas. Entre os benefícios, podemos referir que con-


NOVIDADES DOS NEANDERTAIS REUTERS

Mais atarracados do que nós... A comparação anatómica entre as duas espécies humanas revela que os nossos primos neandertais eram mais baixos (1,60 metros seria a estatura média de um homem adulto) e de configuração mais robusta. NEANDERTAL Crânio achatado e largo

HUMANO MODERNO

Arco superciliar proeminente Orifício nasal muito amplio Clavícula larga e ombros fortes Caixa torácica grande e em forma de sino Articulação larga do cotovelo

GETTY

Ancas abertas para fora Antebraço curto

Rótula grossa

Tíbia curta e espalmada

HOMO NEANDERTHALENSIS 1

2 ROYAL SOCIETY

tribuiriam para o reconhecimento de parentes próximos, para melhores relações familiares, para a coesão grupal e para a aprendizagem social. No caso dos neandertais, o odor corporal dos seus semelhantes não seria uma questão socialmente relevante. Todavia, nem tudo no nosso cérebro iria ser melhor. Os neandertais vencem-nos em termos de capacidade de visão, segundo os estudos efetuados por Pearce, os quais demonstram que o seu córtex visual era maior: “Há provas, obtidas com base em dados retirados dos moldes internos cranianos, de que esses hominídeos tinham, em média, lóbulos occipitais maiores do que os dos homens contemporâneos”, afirma a especialista. Os olhos eram, também, maiores do que os nossos. Teriam provavelmente uma visão de águia, de extrema acuidade, que lhes permitia perscrutar grandes distâncias e ver melhor na escuridão. É possível que a razão para possuírem tal vantagem se deva ao facto de os neandertais terem evoluído em latitudes setentrionais da Europa e da Ásia, onde as noites invernais são longas e os dias, frequentemente, pouco luminosos. Por isso, boa parte do seu encéfalo trabalhou para potenciar a perceção visual. Por outro lado, o cérebro neandertal estava muito envolvido noutra tarefa fundamental: o controlo do sistema músculo-esquelético. O corpanzil robusto precisava de muita atenção por parte da massa cinzenta, o que deixava menos espaço para 4 o desenvolvimento dos lóbulos parietais, que, como vimos antes, estão

Mãos fortes com polegar muito comprido

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HOMO SAPIENS

1

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...mas igualmente espertos 1. O cérebro neandertal era achatado, como o de outros hominídeos mais antigos. Em contrapartida, o nosso tem forma globular, uma característica distintiva da nossa espécie que surge ao nascer. 2. O lóbulo parietal do Homo neanderthalensis era mais plano, enquanto o nosso exibe um alongamento uniforme. 3. Os lóbulos temporais do neandertal eram proporcionalmente mais reduzidos do que os dos humanos modernos, mais projetados para a frente. 4. Os bulbos olfatórios eram mais pequenos. 5. O córtex visual dos neandertais era muito grande, pelo que os especialistas consideram que tinham maior acuidade visual. Talvez usassem linguagem. Interessante

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Documento

NOVIDADES DOS NEANDERTAIS SPL

Quem foram os seus antepassados?

É

possível que os avós do neandertal estejam entre os diversos hominídeos da Sima de los Huesos, na serra de Atapuerca (Burgos, Espanha), com cerca de 400 mil anos de antiguidade. Há vestígios próprios da espécie, a nível dentário, mandibular e craniano, naquela jazida. As condições de Atapuerca, uma jazida isolada nas profundezas de um sistema cárstico, podem ter contribuído para preservar os restos. Svante Pääbo, do Instituto Max Planck de Antropologia Evolutiva, está a tentar sequenciar o seu ADN nuclear, mas ainda não obteve resultados satisfatórios. Em contrapartida, o paleogeneticista Matthias Meyer teve êxito com o ADN mitocondrial, transmitido por via materna. O estudo revelou uma inesperada relação dos indivíduos de Atapuerca com os denisovanos, o grupo arcaico dos montes Altai, na Sibéria. Não há informação morfológica sobre esse hominídeo ainda por classificar, pelo que não é possível estabelecer comparações anatómicas. A análise do ADN nuclear sugere que o denisovano seria primo direito do neandertal. A hipótese mais provável é que tanto os neandertais como os seres humanos modernos descendam do Homo heidelbergensis, a espécie que se extinguiu há 200 mil anos e da qual há abundantes vestígios em Atapuerca (na foto).

ligados às relações interpessoais. Definitivamente, o controlo da motricidade tinha maior primazia na sua estrutura encefálica do que as capacidades sociais. Poderíamos supor que eram um pouco atarracados por causa do mau tempo? É verdade que os neandertais viveram em épocas em que tiveram de enfrentar temperaturas glaciais, com períodos de frio intenso, como os de há 191 mil anos (conhecido na gíria geológica por MIS 6) ou os de há 71 mil anos (MIS 4). Muitos autores pensam que a sua constituição maciça era uma resposta adaptativa ao stress produzido por tais episódios climáticos. Teriam seguido a chamada “regra de Bergmann”, a qual estabelece que o corpo de um animal de sangue quente é muito mais largo em ambientes frios. A forma esférica limita a perda de calor, pois apresenta menos superfície por unidade de volume. Significa isso que estavam fisiologicamente adaptados ao frio? O certo é que não foram encontradas, nas jazidas, agulhas para indicar que confecionavam roupas, pelo que

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temos de admitir a possibilidade de que teriam vivido nus e suportado as baixas temperaturas com recurso a mecanismos como os arrepios.

RESPIRAÇÃO OFEGANTE

Contudo, os paleoantropólogos britânicos Leslie Aiello e Peter Wheeler estimaram a energia que um neandertal deveria produzir para manter o calor do corpo em função da temperatura exterior, e chegaram à conclusão de que deveria ser tão friorento como nós: segundo os seus cálculos, apenas resistiria menos um grau antes de começar a perder calor. Assim, necessitaria forçosamente, para poder suportar os rigores invernais, de vestimentas, de recorrer ao fogo e de se abrigar em cavernas e refúgios naturais. O antropólogo Steven Churchill, da Universidade Duke (Estados Unidos), estudou a causa para a amplitude da sua caixa torácica. Dado que é preciso um litro de oxigénio para queimar 4,8 quilocalorias, o especialista calculou que um neandertal adulto consumiria, em média, 4475 quilocalorias por dia no desempenho da sua

atividade quotidiana; um caçador-recoletor moderno gasta, em média, 2000. Por conseguinte, em termos metabólicos, os seus pulmões consumiriam cerca de novecentos litros de oxigénio por dia. É aqui que surgem as surpresas. Um ser humano moderno desloca meio litro de ar em cada respiração, e respira entre doze e dezoito vezes por minuto, em repouso. Para absorver esses novecentos litros diários, um neandertal teria de inalar muito mais depressa, entre 38 e 46 vezes por minuto, e isso em repouso. Escutar o rugido dos seus pulmões deveria ser uma experiência inquietante. Parece, pois, evidente que o grande tórax estava concebido para poder produzir calor. Os neandertais não são os seres humanos do frio. O seu corpo mal evitava a perda calórica e o metabolismo tinha de trabalhar arduamente para manter um mínimo de conforto. As peculiares proporções físicas e a sua robustez resultariam da herança evolutiva dos seus antepassados. M.G.B.


Interessante

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Documento

Tudo em famĂ­lia 56 SUPER

Estudos genÊticos recentes demonstraram que a consanguinidade era frequente entre os neandertais. Viviam em grupos pequenos e isolados de caçadores-recoletores, mas conseguiram desenvolver uma cultura mais sofisticada do que se pensava.


J. EMILIO TORO

NOVIDADES DOS NEANDERTAIS

Casa na gruta. Talvez fosse este o aspeto de um clã de neandertais: organizavam cuidadosamente o espaço doméstico, desfaziam as presas que caçavam, fabricavam ferramentas e juntavam-se à volta do fogo.

O

s neandertais ocuparam uma vastíssima extensão numa faixa da Eurásia que se estendia até ao atual território de Israel. Estiveram, pois, às portas de África, mas não foram encontrados indícios de que tivessem habitado nem sequer o Norte do continente. Na Europa e na Ásia, permaneceram sempre abaixo dos 55 graus de latitude norte, um dado essencial para compreendermos a sua adaptação biológica e territorial.

Segundo o paleoantropólogo francês Jean-Jacques Hublin, embora a sua resistência ao frio fosse ligeiramente melhor do que a nossa, como vimos no artigo anterior, evitaram as regiões subárticas, pois não dispunham de capacidade técnica para confecionar vestimentas eficazes contra as rigorosas temperaturas setentrionais. Assim, como não podiam avançar mais para norte, procuraram novas terras a leste. Assim, chegaram até à Ásia central e à remota Sibéria meridional. A caverna de Oklad-

nikov, no maçico de Altai, é a jazida neandertal mais a leste encontrada até agora. A sua localização sugere que continuaram a avançar ainda mais, até alcançarem a Mongólia e a China. Essa possibilidade, impensável há décadas, suscita mais expectativas no conhecimento destes hominídeos. O povoamento oriental prova que os neandertais foram um povo ávido por viajar e explorar territórios com melhores recursos. Nesse caso, por que não se aventuraram em África? Interessante

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Documento Reis da Eurásia até nós chegarmos

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s neandertais ocuparam vastas zonas da Europa e da Ásia durante mais de 200 mil anos, até os Homo sapiens provenientes de África terem invadido o seu espaço, há cerca de 45 mil anos. Depois, os Homo neanderthalensis extinguiram-se como por artes de magia. Alguns especialistas pensam que não tinham linguagem, capacidades sociais, engenho tec-

nológico e destreza para disputar alimento aos seres humanos modernos. Indícios da sua cultura encontrados nas jazidas neandertais mais recentes entrecruzam-se e misturam-se com restos posteriores dos Homo sapiens. Vários estudos indicam que os neandertais coexistiram com os nossos antepassados durante vários milhares de anos, e talvez tivessem aprendido

Há entre 250 e 45 mil anos

com eles. Contudo, achados recentes (objetos simbólicos, ferramentas avançadas, restos de comida) demonstram que o povo neandertal já era sofisticado antes do encontro com a nossa espécie. Os especialistas procuram, agora, esclarecer se foi a superioridade dos recém-chegados que acabou com eles ou se houve outro fator a precipitar o seu fim. L.O.

Jazidas representativas da cultura neandertal Zona de distribuição do Homo neanderthalensis

Período de maior extensão de ocupação neandertal. Indicação dos sítios com sinais de conduta avançada anteriores à chegada dos seres humanos modernos.

Zona de distribuição do Homo sapiens PAÍSES BAIXOS 1. Maastricht-Belvédère Pigmentos líquidos. 250 a 200 mil anos.

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EUROPA 9

8 ÁFRICA

FRANÇA ESPANHA 2. Abri du Maras 8. Cueva Cordas, vestígios de los Aviones de animais e plantas, Conchas marinhas projéteis para armas. tingidas com 90 mil anos. pigmentos. 3. Combe Grenal 50 mil anos. Garras de águia. 90 mil anos. ITÁLIA 4. Les Fieux 9. Grotta Garras de águia. di Fumane 60 a 40 mil anos. Conchas pintadas 5. La Chapelle-aux-Saints e penas de aves. Enterramentos. 47 600 anos. ÁSIA 60 mil anos. 6. Pech-de-l’Azé Ferramentas para trabalhar couro. 53 400 a 49 400 anos. 7. Abri Peyrony Ferramentas para trabalhar couro. 47 700 a 41 mil anos.

Há entre 45 e 39 mil anos Neandertal Em algumas zonas, neandertais e Homo sapiens coexistiram durante 6000 anos. O facto poderá indicar que alguns dos vestígios mais recentes da cultura neandertal surgiram sob a influência dos seres humanos modernos.

EUROPA

FRANÇA 10. Arcy-sur-Cure Ornamentos, ferramentas avançadas de osso e pedra. 44 500 a 40 mil anos. 11. Saint Césaire Ornamentos, ferramentas avançadas de osso e pedra. 42 mil a 40 500 anos. 12. La Quina Ornamentos, ferramentas avançadas de osso e pedra. 43 300 a 41 600 anos.

ESPANHA 13. Cueva Antón Conchas marinhas tingidas com pigmentos. 43 500 a 37 400 anos. GIBRALTAR 14. Gorham’s Cave Gravuras em rochas e penas de aves. 39 mil anos.

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Humanos modernos

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ÁSIA

ÁFRICA

AQUILE / FONTE: SCIENTIFIC AMERICAN

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Talvez tenham sido travados pela presença de seres humanos modernos, ali estabelecidos há dezenas de milhares de anos. Contudo, não se pode descartar a hipótese de se vir a localizar, no futuro, alguma jazida neandertal isolada, pelo menos na faixa costeira do Norte de África. Quanto ao seu regime alimentar, a maior parte dos estudos foca os abundantes ossos de animais encontrados nos lugares onde os neandertais se estabeleceram. Ficamos, assim, com uma imagem de eficientes caçadores de presas de grande e médio porte, com elevado teor de proteínas e gorduras, fundamentais para indivíduos robustos cujas necessidades calóricas eram o dobro das nossas. O arqueólogo britânico Michael P. Richards sugere mesmo que a carne dos mamíferos era o seu único alimento.

PATO, COELHO E COGUMELOS

Todavia, estudos recentes estão a acrescentar novas viandas à ementa. Uma análise isotópica a ossos provenientes de Kundaro 3, no Cáucaso, indica que os neandertais comiam salmão. Além disso, há indícios de que pescavam na jazida francesa de Abri du Maras, e uma análise aos vestígios encontrados nas suas ferramentas mostra que também consumiam pato, coelho e, possivelmente, cogumelos. Outros produtos do seu agrado, que obtinham nas zonas costeiras, eram os mariscos e os mamíferos marinhos. Restos ósseos encontrados nas grutas de Vanguard e Gorham, em Gibraltar, indicam que caçavam focas-monge e até os golfinhos que davam à costa, assim como mexilhões, que abriam ao lume. Por outro lado, análises aos coprólitos (fezes fossilizadas) efetuadas pela investigadora Ainara Sistiaga, da Universidade de La Laguna, na jazida de El Salt (Alicante, Espanha) revelaram que continham fitoesteróis, um composto orgânico semelhante ao colesterol que se encontra nas plantas. A sua alimentação pode ter incluído vegetais: tubérculos, frutas ou nozes. O estudo do sarro dos dentes encontrados na caverna de El Sidron prova que os neandertais asturianos ingeriam camomila, de desagradável sabor amargo e nenhum valor nutricional.

PLANTAS COMO CONDIMENTO

Além disso, análises genéticas indicam que os indivíduos da caverna das Astúrias podiam sentir o amargo das plantas, o que nos leva a perguntar por que motivo as comiam. Richard Wrangham, antropólogo da Universidade de Harvard (Estados Unidos) e especialista em alimentação paleolítica, sugere que as utilizavam como condimento. Porém, Karen Hardy, da Universidade Autónoma de Barcelona e especialista no estudo dos dentes, opina que o uso das herbáceas foi medicinal e que os neander-

GETTY

NOVIDADES DOS NEANDERTAIS Joias Pendentes feitos de garras de águia, há 130 mil anos (jazida de Krapina, Croácia).

tais disporiam da sua própria farmacopeia. De facto, são vendidas como anti-inflamatórios e antisséticos nas ervanárias. Por sua vez, Laura Buck e Chris Stringer, do Museu de História Natural de Londres, suspeitam que não as ingeriam diretamente, mas através do estômago dos herbívoros que as continham, como fazem muitos caçadores-recoletores modernos.

CONSANGUINIDADE ESTREITA

Em termos de relações sociais, vamos sabendo mais graças às jazidas siberianas, cujos solos frios preservam bem o material genético. A caverna de Denisova, nos montes Altai, não apenas é conhecida por ter sido aí que se encontrou um novo tipo de hominídeo ainda não classificado (os denisovanos) como, também, por albergar restos de neandertais. Em 2010, foi recuperado um osso do pé de uma mulher com cerca de 50 mil anos. Através do ADN extraído do fragmento, foi possível sequenciar, pela primeira vez, o genoma de um neandertal. A análise revelou que os pais eram parentes próximos. Podem ter sido meios-irmãos por parte da mãe, primos direitos, tio e sobrinha ou mesmo avô e neta (ou tia-sobrinho e avó-neto). O estudo genético sugere que a endogamia era muito mais frequente entre aqueles homídeos do que entre os seres humanos modernos, talvez devido ao condicionamento demográfico. Os neandertais viviam seguramente em grupos pequenos, e a escolha de parceiro era muito limitada. Para eles, por necessidade, as relações incestuosas não seriam tabu. Contudo, a leitura da sequência do ADN do indivíduo de Altai indica outros aspetos inquietantes. Primeiro, que a variabilidade genética neandertal (heterozigosidade, em termos científicos) era escassa, uma das mais pequenas entre os seres vivos. Uma espécie com essa característica tem mais tendência para transmitir doenças hereditárias e é mais vulnerável em alturas de stress ambiental. Os neandertais viveram num território que se estendia da

península Ibérica até à Sibéria, mas os genomas sequenciados eram muito mais parecidos do que os das pessoas que vivem, atualmente, nessas regiões. Trata-se de uma grande descoberta da paleogenética.

REDUÇÃO DEMOGRÁFICA

Outra questão fundamental é que tanto o ADN dos seres humanos modernos como o dos neandertais e denisovanos mostra que se produziu, a certa altura, uma importante redução demográfica, há pouco mais de um milhão de anos. Não é fácil determinar a data exata, segundo Fernando Racimo, da Universidade da Califórnia em Berkeley, que investiga a utilização de dados paleogenómicos para estudar a história evolutiva humana. O que pode ter causado essa descida? Ocorreu algum acontecimento catastrófico? “É difícil estabelecê-lo com certeza apenas com base em estudos do ADN. Talvez tivesse sido por razões climatológicas, como as glaciações cíclicas do Pleistoceno, ou mesmo ecológicas ou biológicas. Pode ter acontecido que populações já de si pequenas e isoladas tivessem caído na endogamia, com os consequentes problemas genéticos que teriam acabado por conduzir a uma drástica diminuição demográfica”, explica Racimo. Todavia, após esse momento de crise, há cerca de um milhão de anos, a população antecessora dos atuais seres humanos modernos começou a recuperar e, meio milhão de anos depois, já crescera consideravelmente. Em contrapartida, os antepassados de neandertais e denisovanos não o conseguiram. Esses humanos de espécies distintas da nossa mantiveram números de população estáveis, embora com baixa densidade demográfica. Em suma, os avós dos neandertais (entre os quais figuravam, provavelmente, os hominídeos da serra de Atapuerca) já viviam em grupos pequenos e, depois, os próprios neandertais nunca conseguiram crescer. M.G.B.

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Documento

Duas espécies face a face Durante anos, a ciência teve dúvidas de que os neandertais tivessem coexistido connosco. Hoje, sabemos que não só isso aconteceu como até se reproduziram em comum: até 4% dos nossos genes constituem uma herança direta daqueles hominídeos.

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ouve cruzamento sexual entre neandertais e seres humanos modernos? Durante décadas, a questão foi alvo de um debate aceso entre os paleoantropólogos europeus. Em 2010, uma equipa de investigação do Instituto Max Planck, da Alemanha, em colaboração com o Laboratório 454 Life Sciences, empresa biotecnológica com sede no Connecticut, obteve um primeiro retrato genético com base em restos ósseos de três mulheres encontrados na gruta de Vindiglia, na Croácia, as quais teriam vivido há mais de 38 mil anos. O resultado foi comparado com os genomas de cinco seres humanos atuais (um sul-africano do grupo san, um africano do povo yoruba, um chinês de etnia han, um francês e um nativo da Papuásia-Nova Guiné). A investigação demonstrou de forma inequívoca que houve hibridação entre as duas espécies. Os especialistas do Max Planck estimaram, então, que entre um e quatro por cento do genoma das atuais populações não-africanas contém ADN proveniente dos neandertais. Segundo os autores do estudo, a explicação mais óbvia para esse facto é que as relações sexuais teriam ocorrido quando um grupo de Homo sapiens migrava de África. Seria a razão pela qual os que permaneceram naquele continente (antepassados dos atuais subsaharianos) não tiveram oportunidade de se relacionar com neandertais, pois nunca estiveram na região. Os especialistas sugeriram que o espaço para o encontro teria sido o Médio Oriente, a rota natural de saída de África por terra. O estudo arqueológico apoia a hipótese, pois já havia registo da presença de Homo sapiens, há 120 mil

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anos, nas jazidas israelitas de Skhūl e Qafzeh, muito próximas de outras jazidas neandertais de idade similar, como a caverna de Tabun. À luz destes dados, os especialistas estimaram que a hibridação pode ter ocorrido há 80 a 100 mil anos: é a hipótese do cruzamento tardio.

ENCONTRO MAIS RECENTE

Contudo, novos estudos indicam uma mestiçagem bastante mais recente. Em 2012, investigadores da Harvard Medical School (Estados Unidos) e do Instituto Max Planck recorreram a técnicas genéticas e estatísticas para estabelecer um intervalo temporal entre 37 e 86 mil anos; muito provavelmente, entre 47 e 65 mil anos. Dois anos depois, um grupo interdisciplinar de paleogeneticistas, liderado pelo biólogo sueco Svante Pääbo, publicou a sequência do genoma de um homem anatomicamente moderno, com 45 mil anos de antiguidade, proveniente de Ust’-Ishim, na Sibéria ocidental. Só restava do indivíduo em questão um fémur partido em ambas as extremidades, mas muito bem preservado pelo solo gélido da região. As características do seu genoma fizeram as delícias dos especialistas. Com o passar das gerações, os segmentos de ADN fragmentam-se e tornam-se mais curtos através de um processo de recombinação genética. Quanto mais tempo passa, maior é a fragmentação. A parte de ADN neandertal do homem de Ust’-Ishim está concentrada em secções muito compridas e possui uma distribuição ligeiramente diferente da nossa, prova de que viveu numa época muito mais próxima do momento em que neandertais e seres humanos modernos se cruzaram.


NOVIDADES DOS NEANDERTAIS Ser ou não ser. O biólogo sueco Svante Pääbo, especialista em genética evolutiva, mostrou nos seus estudos que os homens modernos têm genes neandertais, o que significa que houve cruzamento entre as duas espécies. Na foto, com um crânio neandertal.

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O homem que veio do frio

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o contrário dos neandertais, os seres humanos modernos conseguiram estabelecer-se nas regiões boreais com rapidez. O homem de Ust’-Ishim, com cerca de 45 mil anos, é o Homo sapiens mais antigo da Eurásia. Ultrapassa em cerca de mil anos os fósseis de dentes infantis encontrados na italiana Grotta del Cavallo. O que surpreende é que tenha aparecido numa latitude equivalente à de Estocolmo, tão distante das jazidas meridionais da bacia mediterrânica. Por essa altura, os nossos antepassados já se tinham adaptado, sem dúvida, aos rigores subárticos. Foi o artista russo Nikolai Peristov quem o descobriu por acaso, em 2008, quando procurava dentes de marfim nas margens do rio Irtish, perto da povoação de Ust’-Ishim. Seria um indivíduo isolado, que chegou sozinho àquela região remota, ou era membro de um grupo de caçadores-recoletores? Por enquanto, não há respostas, mas existem motivos para pensar que houve povoamentos estáveis na zona. Por exemplo, na localidade de Byzovaya, próxima do círculo polar ártico, arqueólogos russos encontraram indústrias líticas musterienses de há 33 mil anos que poderiam ter sido criadas por seres humanos modernos, os quais também fabricavam utensílios com essa técnica, tal como os neandertais. Já foi iniciada uma etapa fundamental na exploração de jazidas no norte da Sibéria, que talvez possa revelar em breve novas surpresas.

Quando se deu tal encontro? O material genético de Ust’-Ishim indica que a hibridação se produziu há 45 a 60 mil anos. Um trabalho recente coordenado por Andaine Seguin-Orlando, da Universidade de Copenhaga, confirma essa datação e precisa mesmo que a hibridação entre as duas espécies ocorreu há, aproximadamente, 54 mil anos. O novo modelo defende a hipótese de um cruzamento precoce e acrescenta outros dados, mais pormenorizados, sobre a forma como o património neandertal se encontra repartido entre os seres humanos atuais. Assim, os asiáticos constituem o grupo de população com maior presença genética de Homo neanderthalensis no seu ADN: entre 1,7 e 2,1%. Os europeus possuem entre 1,6 e 1,8%, e os nativos americanos, entre 1,8 e 1,9%. Os especialistas pensaram, inicialmente, que, se o intercâmbio sexual se produziu há mil a 60 mil anos, não pode ter ocorrido no Médio Oriente, pois as jazidas com seres humanos modernos de Qafzeh e Skhul têm, aproximadamente, 90 a 120 mil anos. Porém, a perspetiva mudou com outra descoberta excecional. Em fevereiro deste ano, arqueólogos israelitas tornaram pública a descoberta de uma calote (a parte superior do crânio, sem o rosto)

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SHUTTERSTOCK

Documento

Grupos de caçadores-recoletores como este adaptaram-se ao clima subártico da Sibéria.

com 55 mil anos. Pertenceu a um homem anatomicamente moderno proveniente de uma nova jazida: a caverna de Manot, na zona ocidental da Galileia. O mais interessante é que essa caverna é contemporânea das jazidas neandertais vizinhas de Amud e Kebara. Trata-se, pois, de um cenário muito provável para a hibridação. O arqueólogo Israel Hershkovitz, responsável pelas escavações em Manot, afirma que o crânio pertenceu a um ser humano que viveu ao lado dos neandertais e que poderia ter sido membro de uma população que se misturou com aqueles hominídeos. A prova definitiva seria encontrar ascendência neandertal no ADN do crânio de Manot, embora, dadas as elevadas temperaturas registadas na região, seja pouco provável que se tenham conservado vestígios genéticos tão antigos.

ANTEPASSADOS DOS PALEOLÍTICOS

Contudo, a jazida adquiriu um enorme protagonismo na complexa história do relacionamento entre o Homo neanderthalensis e o Homo sapiens. Existe mesmo a possibilidade de os povoadores de Manot terem sido os antepassados das primeiras populações paleolíticas da Europa. É quase romanesco saber que sangue nean-

dertal corre pelas nossas veias e que uma antiga estirpe de corajosos povoadores do continente europeu deixou a sua marca no nosso material genético. Descendemos de dois grandes povos de caçadores que uniram a determinada altura as suas linhagens. Se se levar a questão um pouco mais longe, poder-se-ia dizer que os neandertais não desapareceram por completo, pois continuam a existir, de alguma maneira, dentro dos nossos corpos. Tudo isto parece muito novelesco. Por isso, é preciso estudar como essa herança funciona, e as notícias a esse respeito não são, em geral, muito animadoras. Dois trabalhos independentes, um da autoria de Joshua Akey e Ben Vernot, da Universidade de Seattle (Estados Unidos), e outro de Sriram Sankararaman e outros colaboradores da Harvard Medical School, descobriram que alguns dos nossos genes de origem neandertal estão envolvidos no controlo de células denominadas “queratinócitos”. Configuram a maior parte do tecido epitelial e produzem pelo. Por um lado, é tentador imaginar que esse ADN neandertal pode ter ajudado os nossos antepassados, habituados ao clima africano, a adaptarem-se melhor às baixas temperaturas europeias, ao proporcionar-lhes uma pele mais


CONTACTO

NOVIDADES DOS NEANDERTAIS

Surpresa! Na gruta de Manot (Israel), foi encontrado o crânio de Homo sapiens mais antigo que se conhece fora de África. É possível que tenha convivido com os nenadertais.

espessa, menos porosa e mais peluda. Porém, a hipótese é pura especulação, e os investigadores consideram que são necessários mais estudos para perceber se os genes dos queratinócitos nos beneficiaram Por outro lado, e para surpresa de Akey e Vernot, descobriram que o gene FOXP2 do homem moderno, fundamental para a linguagem, não recebeu contributo do Homo neanderthalensis. Além disso, a equipa de Sankararaman descobriu que a nossa herança neandertal inclui diversos genes que nos tornam suscetíveis de sofrer de doenças como a diabetes tipo 2, a doença de Crohn ou o lúpus eritematoso. Os investigadores também descobriram que os atuais Homo sapiens têm muito poucos genes neandertais ativos nos testículos ou no cromossoma X, precisamente os locais mais suscetíveis a genes que provoquem infertilidade e tornem impossível ter descendência. Parece, pois, que os neandertais estavam no limite da compatibilidade biológica com os nossos antepassados e que os híbridos machos teriam, provavelmente, apresentado elevados índices de esterilidade. O cruzamento das duas espécies introduziu alelos no património genético dos seres humanos modernos que se revelaram incompatíveis;

em consequência disso, foram sendo eliminados ao longo do tempo pela seleção natural. Sankararaman e os seus colaboradores estimaram que a proporção de ADN do Homo neanderthalensis após a hibridação rondaria os 3% do genoma, tendo-se reduzido para os atuais 2%. Esse importante efeito de seleção negativa poderia explicar a razão pela qual a herança neandertal é maior entre os atuais asiáticos do que nas populações europeias. Há provas de que a densidade demográfica na Ásia era menor do que na Europa quando ambos os grupos se separaram no passado. A seleção para eliminar alelos deletérios neandertais teria sido menos eficaz entre os primeiros ao longo das seguintes dezenas de milhares de anos.

SEGURAMENTE DIFERENTES

Se há algo que se pode dizer como síntese do estudo dos neandertais é que a sua natureza e a sua história são acentuadamente distintas da nossa. É positivo elogiar as suas qualidades humanas e procurar ver neles algo muito semelhante ao nosso próprio reflexo. Contudo, é possível, muito possível, que tal imagem seja mais um desejo que que uma realidade. Os Homo neanderthalensis tinham uma biologia e padrões sociais próprios, e viveram um

destino amargo. Por muito que se procurem explicações sofisticadas para a sua extinção, a verdade é que a estirpe desapareceu após a chegada dos nossos antepassados à Eurásia. Somos descendentes desses seres humanos modernos e sentimo-nos, em parte, responsáveis pela tragédia neandertal. Aflige-nos o seu desaparecimento e gostaríamos de imaginar algum cenário natural idílico onde um clã desses seres humanos de outra espécie pudessem viver em liberdade. Já foi mesmo sugerido utilizar os avanços em biologia molecular para obter neandertais por manipulação genética. É compreensível que se queira recuar no tempo e procurar a companhia de seres humanos distintos, com outra visão do mundo. Porém, estamos sozinhos, não há mais hominídeos a povoar as terras do nosso planeta, como acontecia no passado. A melhor homenagem que podemos prestar-lhes é refletir sobre a fragilidade do destino humano. Não podemos controlar tudo. A natureza ressente-se com o nosso aumento demográfico e a crescente procura energética. O nosso destino é vulnerável e a recordação dos neandertais deve manter-se na nossa consciência como um desejo realista de um futuro melhor e mais justo. M.G.B.

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Flash

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Música de verão Haverá alguém que não conheça a fábula infantil da cigarra e da formiga e que nunca tenha escutado o canto estridente de uma cigarra? Certamente que não. Já o mesmo não se poderá dizer de ter conseguido ver algum destes insetos barulhentos, tidos como símbolos da indolência. Curiosamente, embora o seu canto seja uma presença habitual, raramente lhe pomos a vista em cima. Apesar de as cigarras se encontrarem praticamente em todo o país, é em Trás-os-Montes, no Alentejo e no Algarve que se fazem ouvir com maior intensidade: os machos cantam ruidosamente durante todo o estio, desde junho até outubro. Porém, as cigarras não são todas iguais. Há cerca de duas dezenas de espécies para descobrir em Portugal, cada uma com a sua lengalenga específica. Foto: Jorge Nunes.

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Natureza Seremos as primeiras vítimas

À beira da EXTINÇÃO

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m março de 2011, milhares de alunos do nono ano de escolaridade foram chamados a fazer, pela primeira vez, um teste intermédio nacional de ciências naturais, que principiava com o seguinte texto: “As extinções em massa reduziram drasticamente a biodiversidade em diferentes períodos da história da Terra. O acontecimento mais catastrófico, desta natureza, de que temos conhecimento, ocorreu há aproximadamente 252 milhões de anos, quando cerca de 90% das espécies marinhas e 70% das terrestres se extinguiram. As extinções em massa podem ser o resultado de profundas alterações ambientais causadas por vários fatores, como, por exemplo, interações ao nível das mudanças climáticas, tectónica de placas, vulcanismo a nível mundial, subida (transgressão) ou descida (regressão) do nível do mar, alterações nos ciclos biogeoquímicos e impactos de grandes asteroides ou cometas.” Segundo dados oficiais, disponibilizados pelo Ministério da Educação, sensivelmente 70% dos examinandos demonstraram domínio do tema, uma vez que responderam acertadamente às questões formuladas. Vale a pena lembrar que o termo “extinções em massa” se refere a episódios da história da Terra em que ocorreu o desaparecimento rápido (por vezes, quase total) das formas de vida existentes à época. Como é que sabemos,

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então, da sua ocorrência? Através do registo fóssil, que, após esses acontecimentos, é marcado por uma súbita diminuição, em diversidade e abundância, dos fósseis até então reconhecidos. O que certamente aqueles jovens não sabiam é que, enquanto faziam o seu exame e respondiam a perguntas relativas ao passado geológico remoto, mais precisamente, aos últimos 600 milhões de anos (M.a.) da história da Terra, alguns cientistas, como Gerardo Ceballos, da Universidade Nacional Autónoma do México, estavam mais preocupados com o futuro, antevendo a aproximação, a passos largos, da sexta grande extinção. O mais preocupante é que, ao contrário das extinções anteriores, que tiveram múltiplas causas naturais, desde glaciações globais até à queda de meteoritos, esta parece ter um único responsável: o homem. Segundo o investigador mexicano, “as extinções causadas pelas atividades humanas estão a ocorrer a um ritmo milhares de vezes maior do que aquilo que seria de esperar”. O alerta, lançado em 2010, não se ficava por aqui: “O episódio de extinção que estamos a viver, a ‘sexta onda de extinção’, pode revelar-se o mais rápido e devastador.” Desde o tempo dos dinossauros, há cerca de 65 M.a., que não desapareciam tantas espécies em tão pouco tempo.

FOTOS: JORGE NUNES

Nos últimos tempos, têm vindo a público notícias preocupantes que dão conta da contagem decrescente para uma nova extinção em massa, ou seja, para o fim do mundo que conhecemos. Será mesmo assim? Que provas existem? Quais são as causas e as previsíveis consequências? Haverá forma de evitar a catástrofe?

CATÁSTROFES DO PASSADO

Antes de nos debruçarmos sobre a atualidade, ou seja, sobre a sexta grande extinção, que parece já ter começado, vale a pena olhar para trás, de modo a percebermos melhor quais foram as causas e as consequências das megaextinções pretéritas. Nesta viagem, usaremos os fósseis como máquinas do tempo: como disse, no século XVIII, o naturalista francês Georges Cuvier, considerado o pai da paleontologia, eles constituem extraordinárias portas de acesso ao passado. As camadas rochosas surgem, assim, como páginas petrificadas de gigantescos livros, onde é possível ler a história do surgimento e da evolução da vida na Terra, muito para além (para trás) do aparecimento da espécie humana. O estudo dos fósseis permitiu também descobrir a evolução do próprio homem, desde os primeiros hominídeos até à atualidade.


Quanto vale uma abelha? As abelhas são as principais polinizadoras agrícolas e florestais, pois polinizam cerca de 80% das culturas que comemos e um sem-número de espécies vegetais silvestres.

Para não nos perdermos nas datas, usaremos um calendário muito especial: a escala de tempo geológico. Esta não contabiliza o tempo em dias ou meses, mas em milhões de anos, uma amplitude temporal que é difícil de apreender à escala humana: recorde-se que a esperança de vida à nascença é, atualmente, de cerca de 80 anos, em Portugal, ou seja, prevê-se que cada português, nascido hoje, viva em média somente 0,000 08 M.a. A escala, publicada pela Comissão Internacional sobre Estratigrafia, estabelece a cronologia dos acontecimentos que marcaram a história da Terra, desde a sua formação, há cerca de 4600 M.a., até aos tempos atuais. Sem entrarmos em pormenores técnicos, podemos dizer, de forma simplificada, que esta se encontra dividida em subunidades de tempo, como eras, períodos e épocas, cada uma caracterizada por acontecimentos geoló-

gicos marcantes, pela existência de determinadas formações litológicas (rochas) e um certo património fossilífero (fósseis), entre outros. Se quisermos ter uma ténue ideia de como é grande a distância que separa os diversos acontecimentos da história do planeta, façamos um simples paralelismo entre a escala do tempo geológico e um relógio, isto é, condensemos os 4600 M.a. em apenas 24 horas. Assim, uma hora corresponde, aproximadamente, a 190 M.a., um minuto a 3,2 M.a. e um segundo a 53 mil anos. Ou, se preferirmos, um milhão de anos equivale a um pouco menos de 19 segundos. Por exemplo, na atualidade, estamos na Era Cenozoica (que começou há 66 M.a., ou seja, às 23h40 do nosso relógio geológico), conhecida igualmente como “era dos mamíferos e das aves”; estamos no período quaternário (iniciado há 2,58 M.a., isto é, às 23h59:12), também denominado

Antropozoico, uma vez que correspondeu ao surgimento do homem (género Homo); e na época Holocénica (também chamada Holoceno), que se iniciou há cerca de 11,7 mil anos, com o fim da última glaciação (Idade do Gelo), e se estende até ao presente. Isto é, no nosso relógio geológico, em que a idade da Terra equivale a um dia, a nossa época, desde o final da Idade do Gelo, que viu surgir a agricultura, as cidades, a escrita, etc., e que inclui toda a história, começou há pouco mais de dois segundos... A Era Cenozoica começou após a quinta grande extinção em massa, ocorrida há aproximadamente 65,5 M.a., que se tornou famosa por ter vitimado a maioria dos dinossauros (convém não esquecer que os crocodilos e as aves são descendentes diretos dos dinossauros, mais precisamente dos Arcossauros, que sobreviveram a esse cataclismo e permaneInteressante

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Relógio geológico. A abundância e a distribuição geográfica fazem das amonites excelentes fósseis estratigráficos para a Era Mesozoica.

As grandes catástrofes evolutivas estão registadas nos fósseis cem entre nós). Embora tenham sido aventadas várias teorias para explicar o fenómeno, também conhecido, na comunidade científica, como extinção do Cretácico-Paleogénico (K-Pg), a maioria dos cientistas acredita que se terá ficado a dever à queda de um asteroide ou meteorito, na região do golfo do México. Entre os vários argumentos a favor desta teoria, destaca-se o facto de o nível estratigráfico K-Pg ser rico em irídio, um elemento químico pouco abundante na Terra, mas geralmente associado a corpos extraterrestres ou a fenómenos vulcânicos. Não se pense, porém, que nesse evento catastrófico foram varridos da superfície terrestre apenas os dinossauros, os maiores carnívoros e herbívoros vertebrados terrestres que alguma vez existiram: na verdade, o acontecimento teve um enorme impacto na biodiversidade e vitimou boa parte dos seres vivos existentes à época. O Museu de História Natural de Londres (NHM) estima que terão desaparecido cerca de 16% de todas as famílias marinhas, 47% de todos os géneros e 71 a 81% de todas as espécies. Além dos dinossauros, outras criaturas associadas a esta extinção são, por exemplo, as amonites e os rudistas. As amonites ou amonoides, moluscos cefalópodes marinhos semelhantes aos náutilos

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(parentes próximos das atuais lulas, chocos e polvos), eram animais que viviam dentro de uma concha de natureza carbonatada e espiralada, que esteve na génese do nome “amonite”. Este surgiu no Antigo Egito, quando os egípcios associaram as conchas que encontravam ao deus Amon, amiúde retratado com chifres de carneiro, enrolados de forma idêntica. Estas criaturas foram abundantes em todos os mares e apresentavam uma grande variedade de formas: conhecem-se mais de dez mil espécies. Além disso, a sua abundância e a sua vasta distribuição geográfica fazem delas excelentes fósseis estratigráficos para a Era Mesozoica (252 a 66 M.a., ou seja, desde as 22h41 até às 23h40, aproximadamente), permitindo datar as rochas onde se encontram com um erro inferior a 1 M.a. Em terras lusas, podem encontrar-se nas rochas carbonatadas do Jurássico e do Cretácico do Baixo Mondego, mais precisamente na região do cabo Mondego, nas falésias de São Pedro de Moel ou na zona do cabo Carvoeiro, nas imediações de Peniche, entre outros locais. Os rudistas, que apareceram no período Jurássico superior, há 140 M.a. (pelas 23h16), possuíam conchas espessas e com aspeto rude (daí o seu nome, do latim rudis). Constituíam um grupo de moluscos bivalves marinhos de

morfologia variada, que viviam fixos ao substrato e atingiam 15 a 25 centímetros de comprimento, podendo, chegar, excecionalmente, a um metro. Pensa-se que seriam gregários, ou seja, formavam grandes aglomerados, que ocupavam vastas extensões dos fundos marinhos, originando recifes. O mais curioso, porém, é que os rudistas, apesar de estarem extintos há quase 66 M.a., ainda podem observar-se (ou melhor, os seus fósseis) com relativa facilidade, não só no seu contexto geológico original, os afloramentos rochosos, mas, imagine-se, nas rochas ornamentais usadas frequentemente na arquitetura da região de Lisboa, tanto para revestir o chão, como para enfeitar paredes e soleiras das portas de habitações domésticas, cafés ou centros comerciais. Surgem, principalmente, no interior de um calcário fossilífero, compacto e duro, conhecido por liós (ou lioz), proveniente de pedreiras da zona norte da capital, como Pero Pinheiro (Sintra). “Naqueles tempos, sobretudo no Cretácico inferior, as terras de toda a área de Lisboa estavam imersas por um mar quente e tropical. Por isso, era uma zona de recifes onde se depositavam lamas carbonatadas, que deram origem ao liós”, lembra o paleontólogo Carlos Marques da Silva, da Faculdade de Ciências de Lisboa. Segundo o sítio Fósseis na Cidade (http://bit. ly/1gNQfSp), desenvolvido por este paleontólogo, em Almada, estes bivalves extintos veem-se com facilidade nas fachadas de alguns prédios localizados nas ruas Capitão Leitão


Massacre histórico. As trilobites, parentes afastados dos crustáceos atuais, foram os invertebrados mais abundantes nos mares paleozoicos, mas extinguiram-se há 252 M.a, sem deixar qualquer descendente.

e Manuel de Sousa Coutinho. Também são comuns nos chãos do Convento de Mafra, uma das obras-primas do barroco português. Quer num lugar, quer noutro, os rudistas aparecem às fatias, cortados transversalmente. Surgem com padrões em espiral ou cónicos, em forma de rodelas de ananás, conforme pertencem a um ou a outro dos tipos básicos de rudistas: os caprinídeos ou os radiolitídeos.

CATACLISMOS PRECEDENTES

Há aproximadamente 201 M.a. (cerca das 22h58, segundo o relógio geológico), entre os períodos Triássico e Jurássico, ocorreu a quarta extinção maciça da história da Terra, cujas causas ainda são um mistério para a comunidade científica, havendo várias hipóteses sobre a mesa: alterações climáticas, erupções vulcânicas, descida do nível médio dos oceanos ou, ainda, o impacto de um corpo celeste. Segundo o NHM, estima-se que terão desaparecido cerca de 22% de todas as famílias marinhas, 53% de todos os géneros e 76 a 84% de todas as espécies. Extinguiram-se, entre muitos outros vertebrados, os grandes anfíbios e os terapsídeos (também conhecidos como “répteis mamaliformes”), que, assim, deixaram o caminho livre para os grandes répteis conquistarem o planeta e povoarem diversos ambientes: terrestre (dinossauros), aquático (plesiossauros, ictiossauros e mosassauros) e aéreo (pterossauros). Todavia, tal como dizia o texto do exame nacional do nono ano, a maior mortandade da

história ocorreu na terceira extinção em massa, há cerca de 252 M.a. (por volta das 22h41), quando, de acordo com o NHM, terão desaparecido cerca de 51% de todas as famílias marinhas, 82% de todos os géneros e 93 a 97% de todas as espécies. Este evento catastrófico marcou o início da Era Mesozoica e o fim da Paleozoica (compreendida entre 541 e 252 M.a., isto é, das 21h11 às 22h41), também conhecida como “era das trilobites”. A denominação deve-se ao facto de esses artrópodes (grupo a que também pertencem, por exemplo, os caranguejos e os insetos), parentes afastados dos crustáceos atuais, terem sido os invertebrados mais abundantes nos mares paleozoicos. Naquela altura, ocorreram as maiores erupções vulcânicas da história, na região da Sibéria: durante cerca de 600 mil anos, foram derramados milhares de toneladas de lava, cobrindo uma área cerca de sete vezes o tamanho da França, e emanadas enormes quantidades de gases tóxicos, como dióxidos de enxofre e de carbono e metano. Enquanto o primeiro causou chuvas ácidas duradouras, que provocaram a acidificação dos oceanos, os restantes contribuíram, sobretudo, para o aumento do efeito de estufa, ou seja, para o aquecimento global. Como só havia um supercontinente (Pangeia), essa enorme massa de terra sofreu secas severas, especialmente no seu interior. Todos estes fatores conjugados acabaram por devastar a maioria das plantas e dos animais, marinhos e terrestres, que existiam à época.

Entre os mais sonantes desaparecimentos, encontram-se as trilobites, os graptólitos, organismos marinhos coloniais, e os crinoides, pertencentes ao grupo dos equinodermes, que também inclui as estrelas do mar. Extinguiram-se ainda os escorpiões marinhos (Eurypterida), a que terá pertencido um dos maiores artrópodes de todos os tempos, o Jaekelopterus rhenaniae, com cerca de 2,5 metros de comprimento (aproximadamente o tamanho de um cavalo). Merece ainda destaque a extinção de muitos dos primeiros grupos de insetos, tendo sido esta a única extinção em massa que afetou este grupo taxonómico. Recorde-se que o inseto mais antigo que se conhece data de há 396 M.a. (21h56): é o Rhyniognatha hirsti, uma espécie que esteve entre os primeiros animais a conquistar o meio terrestre. Tinha um aspeto idêntico às traças-dos-livros ou peixinhos-de-prata (Lepisma saccharina), que surgem amiúde nas nossas casas, tendo por hábito sair de noite dos seus esconderijos para se alimentarem de materiais ricos em hidratos de carbono, como açúcar ou amido, comportamento a que alude o seu nome científico. A segunda extinção em massa, conhecida como extinção do Devónico superior, ocorreu há cerca de 375 M.a. (por volta das 22h03), tendo desaparecido, segundo o NHM, cerca de 22% de todas as famílias marinhas, 57% de todos os géneros e 79 a 87% de todas as espécies. O período Devónico é considerado a idade dos peixes, uma vez que estes vertebrados Interessante

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Para que serve a biodiversidade?

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Varridos do mapa. Entre os mais sonantes desaparecimentos há cerca de 252 M.a., encontram-se os crinoides, do grupo dos equinodermes, que inclui as estrelas-do-mar.

As grandes glaciações provocaram o caos nos oceanos aquáticos se espalharam pelas águas doces e salgadas de todo o planeta. Eram, no entanto, muito diferentes dos atuais, completamente couraçados (ostracodermos e placodermos), ou seja, com o corpo recoberto por placas dérmicas (pesadas couraças ou escudos ósseos) e, geralmente, sem mandíbulas. Além disso, podiam atingir grandes dimensões: por exemplo, os membros da espécie Dunkleosteus terrelli mediam cerca de seis metros de comprimento (embora alguns paleontólogos acreditem que podiam chegar aos 10 m) e mais de 30 toneladas de peso. Por estes motivos, julga-se que se moviam sobretudo pelo fundo, alimentando-se dos detritos que ali se depositavam ou predando outros organismos aquáticos. Os peixes couraçados, tal como muitos outros grupos marinhos, principalmente associados aos recifes de coral, desapareceram completamente. Curiosamente, as plantas e os insetos quase não foram afetados. Talvez isso possa explicar-se por esta devastação estar associada, principalmente, à falta de oxigénio no oceano (anoxia), combinada com a subida do nível do mar e o arrefecimento global. Alguns cientistas, porém, aventam ainda outras causas prováveis, como grandes erupções vulcânicas siberianas, geradoras de consideráveis mudanças climáticas, e impactos de corpos celestes. Se olharmos uma vez mais para o relógio geológico, descobriremos que, afinal, o início da história das grandes extinções começou sensi-

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velmente 22 minutos antes do período Devónico, ou seja, recuando quase 60 M.a. A primeira extinção em massa registada nos anais da paleontologia ocorreu há cerca de 445 M.a. (21h41), durante o período Ordovícico. Neste caso, a causa está bem identificada: ficou a dever-se a uma glaciação globalizada. No final do Ordovício, o mundo entrou numa intensa idade de gelo, possivelmente provocada pela localização do supercontinente Gondwana sobre o Polo Sul. A formação de gigantescas camadas de gelo provocou um decaimento drástico do nível do mar (70 a 100 m), afetando todo o ecossistema marinho, em especial os corais e os briozoários, que viviam em águas pouco profundas. Quando, passado cerca de um milhão de anos, a glaciação terminou repentinamente, o nível do mar subiu muito depressa (em termos geológicos), infligindo um segundo golpe nos organismos marinhos que tinham conseguido sobreviver. Portanto, não admira que a extinção do Ordovícico tenha sido a segunda mais grave de todos os eventos cataclísmicos do planeta. Segundo o NHM, foram varridos do mapa cerca de 26% de todas as famílias marinhas, 60% de todos os géneros e 82 a 88% de todas as espécies. Entre as vítimas, encontravam-se mais de 90% das espécies de trilobites, muitos nautiloides, que eram os principais predadores marinhos daquele tempo, bem como braquiópodes, corais, briozoários, equinodermes e graptólitos, entre outros.

biodiversidade, ou seja, a quantidade e a variedade de seres vivos que povoam o planeta, desde as profundezas oceânicas até às mais altas montanhas, é o sustentáculo de uma multiplicidade de recursos que o homem retira da natureza, ou seja, está na base dos chamados “serviços naturais”, “serviços ambientais” ou “serviços dos ecossistemas”. Estes estão dependentes de complexas interações biológicas, químicas e físicas (afetadas pelas atividades humanas) e são diferenciados relativamente ao tipo de benefícios que prestam, que podem ser de provisionamento, de regulação, culturais ou de suporte. Os serviços de provisionamento, também chamados “de produção”, são todos os produtos e bens de consumo obtidos a partir dos ecossistemas. São exemplos os alimentos, a água potável, a madeira, as fibras, os combustíveis, os medicamentos e os recursos genéticos. Consideram-se serviços de regulação os benefícios, geralmente sem valor de mercado, resultantes dos processos que ocorrem nos ecossistemas associados à gestão de riscos naturais. Incluem-se neste rol, por exemplo, a manutenção da qualidade do ar, a regulação da água e do clima, o controlo das pragas e da erosão, a purificação da água e a polinização. Entende-se por serviços culturais ou de informação os benefícios imateriais, ainda que, por vezes, com valor de mercado, resultantes do contacto com os ecossistemas. Enquadram-se neste âmbito o ecoturismo, o lazer e a recreação, os valores patrimoniais e culturais, os aspetos estéticos, espirituais e religiosos, a pesquisa científica e a educação. Por fim, temos os serviços de suporte, que, como o nome indica, estão na base de todos os outros serviços ambientais. Incluem-se aqui a formação do solo, os ciclos biogeoquímicos, a reciclagem da água e dos nutrientes, a produção primária (fotossíntese) e o fornecimento de habitat para a fauna e a flora, entre outros. Uma vez que o homem está completamente dependente da natureza e dos serviços ambientais, estes afetam o seu bem-estar de diversas formas, desde a segurança aos recursos materiais básicos para uma vida salutar, à saúde e às relações sociais e culturais. Assim, alterações nos ecossistemas (recorde-se que a biodiversidade é parte integrante e indissociável de qualquer sistema ecológico) podem pôr em causa a segurança pessoal, aumentar a vulnerabilidade a desastres e hipotecar o acesso a recursos básicos que permitem obter


No dia a dia, quem se lembra do facto de os insetos serem vitais para a alimentação e a economia? Na imagem, uma vespa.

rendimento, sustento ou abrigo. Além disso, no que diz respeito à saúde e às relações sociais, podem impedir uma alimentação adequada, a obtenção de água potável e a existência de ar puro, a capacidade de permanecer livre de doenças, a coesão social, o respeito mútuo e oportunidades para expressar valores estéticos, recreativos, culturais e espirituais. Por tudo isto, os ecossistemas devem ser geridos de forma eficaz, de modo a contribuírem para alcançar as metas de um desenvolvimento sustentável, isto é, que satisfaça as necessidades do presente sem comprometer a capacidade de as futuras gerações satisfazerem as suas próprias necessidades. É exatamente aqui que reside o busílis da questão: a procura de serviços ambientais tem vindo a aumentar de uma forma insustentável, ou seja, temos explorado muitos ecossistemas acima das suas reais capacidades, sem que estes tenham oportunidade de responder adequadamente ao aumento da procura. Como se não bastasse, ainda estão sujeitos a grandes catástrofes naturais, muitas vezes imprevisíveis, e outras provocadas pela ação do homem (antrópicas). Nas primeiras, incluem-se, por exemplo, sismos, tsunamis, vulcões, tempestades (como furacões), secas, incêndios naturais, inundações e movimentos de terrenos. O segundo tipo compreende a desflorestação, os incêndios antrópicos, as invasões biológicas por espécies exóticas e aquilo que já se denomina “catástrofes tecnológicas”, isto é, que resultam do desrespeito pelas normas de segurança que regem a produção, o transporte, o armazenamento e o manuseamento de certos produtos

ou o uso incorreto de determinada tecnologia. Neste âmbito, destacam-se, por exemplo, os acidentes com transportes de substâncias perigosas, as ameaças nucleares, radiológicas, biológicas e químicas e a poluição (da água, do ar e do solo). Portanto, exigem-se, com urgência, políticas apropriadas e intervenções de gestão dos ecossistemas, ao nível global, nacional, regional e local, que possam conter, mitigar ou reverter a degradação ambiental a que temos assistido nas últimas décadas. Saber quando e como intervir exige um profundo e abrangente conhecimento dos sistemas ecológicos e sociais envolvidos. Nesse sentido, uma avaliação de ecossistemas, conforme foi preconizada pelo Millennium Ecosystem Assessment (MEA), em junho de 2001, poderá ser muito útil, uma vez que permite aprofundar a compreensão da relação e das ligações entre os ecossistemas e o bem-estar humano, demonstrar o potencial dos ecossistemas para contribuir para a redução da pobreza e no aumento do bem-estar, avaliar a compatibilidade das políticas estabelecidas a diferentes escalas pelas diversas instituições, integrar aspirações económicas, ambientais, sociais e culturais, incorporar informações das ciências naturais e sociais, identificar e avaliar as opções políticas e de gestão para proteger os serviços dos ecossistemas e harmonizá-los com as necessidades humanas, e facilitar a gestão integrada dos ecossistemas. Há cerca de quinze anos, o MEA alertava para situações altamente preocupantes, como, por exemplo, o facto de os seres humanos estarem a causar alterações sem precedentes nos ecossis-

temas, para atender a crescentes demandas por alimentos, água, fibras e energia. “Estas alterações ajudaram a melhorar a vida de milhares de milhões de pessoas, mas, ao mesmo tempo, enfraqueceram a capacidade da natureza de prover outros serviços fundamentais, como a purificação do ar e da água, a proteção contra catástrofes e os remédios naturais”, salientava o documento. Acrescentava ainda que “as atividades humanas levaram o planeta à beira de uma onda maciça de extinção de várias espécies, ameaçando ainda mais o nosso bem-estar”. Face a isto, vaticinava que “as pressões sobre os ecossistemas aumentarão à escala global, nas próximas décadas, se a atitude e as ações humanas não mudarem”. “O conhecimento e a tecnologia de que dispomos hoje podem reduzir consideravelmente o impacto humano nos ecossistemas, mas a sua utilização em pleno permanecerá reduzida enquanto os serviços naturais continuarem a ser percebidos como gratuitos e ilimitados e não receberem o seu devido valor”, conclui o documento. Por exemplo, no dia a dia, quem se lembra do facto de os insetos serem vitais para a alimentação e a economia? Quem sabe quanto vale o trabalho das abelhas? As abelhas (existem mais de 20 mil espécies), tão odiadas pelas suas dolorosas picadas, são as principais polinizadoras agrícolas e florestais: polinizam cerca de 80 por cento das culturas que comemos e um sem-número de espécies vegetais silvestres. Se fossem recompensadas, em conjunto com os outros insetos polinizadores, pelo seu serviço de regulação, isto é, pelo seu trabalho na polinização dos pomares e dos vegetais cultivados, teríamos de lhes pagar, anualmente, mais de cento e cinquenta mil milhões de euros. A este valor, seria ainda necessário acrescentar várias centenas de milhões de euros pelos lucros adicionais que temos com os seus serviços de produção, ou seja, com o fabrico de mel. No entanto, todos sabemos que a sobrevivência das abelhas está ameaçada a nível global, devido ao uso de pesticidas, à destruição dos habitats, ao ataque de parasitas e, sobretudo, ao aumento das temperaturas. Se não começarmos a tomar medidas sérias para reduzir o ritmo das alterações climáticas, poderá verificar-se, efetivamente, a previsão do estudo científico coordenado por Gerardo Ceballos e publicado em junho de 2015: “Estima-se que as abelhas podem desaparecer dentro de apenas três gerações humanas.” E depois, como iremos sobreviver? Interessante

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Estufa seca. O Millennium Ecosystem Assessment alertou para situações preocupantes, como o facto de os seres humanos estarem a causar alterações sem precedentes nos ecossistemas, para atender a crescentes demandas de alimentos, água, fibras e energia.

Mais de 99% das espécies já não existem nos nossos dias Convém recordar que foi apenas há 600 milhões de anos, ou seja, nas derradeiras três horas do relógio geológico, que surgiram os primeiros organismos multicelulares com tecidos, como os celenterados, vermes, moluscos e equinodermes, muito bem representados na famosa Fauna de Ediacara, na Austrália. Por fim, feitas as contas às cinco grandes extinções em massa e às outras dez de menor dimensão, constata-se que mais de 99% de todas as espécies que já viveram na Terra estão agora extintas. A grande maioria (mais de 95%) desapareceu porque não podia competir com sucesso pela obtenção de alimentos ou outros recursos, ou ainda porque não conseguiu adaptar-se às mudanças ambientais e às transformações ocorridas nos seus habitats.

PELA SEXTA VEZ

A sexta extinção em massa, que está já em marcha, é conhecida pelos investigadores como “Extinção do Holoceno”, uma vez que, na escala de tempo geológico, o Holoceno (também chamado Holocénico) é a época do período Quaternário que se iniciou há cerca de 11,7 mil anos e se estende até o presente. Embora este intervalo temporal corresponda a um simples piscar de olhos em termos geológicos, tem muito interesse para nós, pois signi-

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ficou mudanças radicais na história da humanidade, que começaram com a sedentarização, passaram pela civilização e pela revolução industrial e culminaram na sociedade da informação e comunicação, dominada pela ciência e pela tecnologia, em que hoje vivemos. Apesar de este tema não ser novidade para os cientistas, tem sido notícia, nos últimos tempos. O alarido noticioso ficou a dever-se ao facto de ter sido publicado, em junho, na revista Science Advances, um novo estudo desenvolvido por investigadores mexicanos e norte-americanos, liderados por Gerardo Ceballos, o qual confirma que “são incontestáveis as provas de que as taxas de extinção recentes não têm precedentes na história do homem e são altamente incomuns na história da Terra”: “No último século, os vertebrados têm estado a desaparecer a um ritmo 114 vezes superior ao do passado”, concluem os autores. Todos gostaríamos que os dados científicos fossem outros. No entanto, a cada dia que passa, as notícias vindas a público, nos quatro cantos do mundo, parecem confirmar este cenário alarmante. Por exemplo, enquanto escrevo este artigo, chegam-me ecos de que o puma-norte-americano-do-leste foi declarado oficialmente extinto. Segundo o jornal britânico The Guardian, estima-se que grande parte

da sua população tenha desaparecido no início do século XIX, com a chegada dos imigrantes europeus, que os mataram para se protegerem e salvaguardar o seu gado. Os poucos que restaram foram sofrendo os efeitos da destruição do habitat e perseguidos pelos caçadores. Como se não bastasse, muitos dos seus parentes mais próximos estão em perigo e têm progressivamente desaparecido da costa leste dos Estados Unidos. Segundo a mesma fonte, que teve acesso exclusivo aos resultados do Programa de Observação dos Recifes de Coral da National Oceanic and Atmospheric Administration, dos Estados Unidos, está atualmente em curso um episódio de lixiviação em massa dos corais, que poderá fazer desaparecer 15 mil quilómetros quadrados de recifes em menos de dois anos. Este fenómeno corresponde a um branqueamento dos corais por expulsão das algas simbióticas (que lhes conferem a cor e lhes fornecem nutrientes), como resultado da subida da temperatura da água ou da poluição. A morte dos corais não é apenas um assunto estético, que afeta os mergulhadores amadores que se deleitam com a sua beleza: põe em causa a riqueza biológica dos oceanos, uma vez que os recifes de coral são os ecossistemas marinhos com maior biodiversidade. Diversos estudos têm demonstrado que a diminuição da sobrepesca e a redução da poluição costeira são algumas medidas de gestão que podem ajudar os recifes a recuperar e a tornarem-se mais resilientes às alterações climáticas.


Origem antrópica Ao contrário das extinções anteriores, que tiveram múltiplas causas naturais, desde glaciações globais até à queda de meteoritos, esta parece ter um único responsável: o homem.

Vistas bem as coisas, somos nós, os humanos, que estamos a provocar a sexta grande extinção. Desde o tempo dos dinossauros que não desapareciam tantos seres vivos: “A nossa sociedade global começou a destruir outras espécies a um ritmo acelerado, iniciando um episódio de extinção em massa nunca visto em 65 milhões de anos”, afirma Gerardo Ceballos, que não deixa de advertir: “Se o ritmo de extinção atualmente elevado se mantiver, os humanos irão brevemente (em menos de três gerações) ficar privados de muitos dos benefícios fornecidos pela biodiversidade.” O mais grave é que essa perda poderá ser permanente e irreversível ou com uma lenta recuperação, que não sabemos se ocorrerá antes de nós próprios desaparecermos, não como indivíduos, mas como espécie. Se olharmos para as outras extinções, verificaremos que, após cada evento cataclísmico, foram necessários vários milhares ou milhões de anos para os ecossistemas se reequilibrarem e os organismos sobreviventes recuperarem, tanto em número como em variedade. Por exemplo, após a extinção em massa mais devastadora, foi preciso esperar 10 a 20 M.a. até surgirem novas espécies para preencher os habitats e os níveis tróficos deixados vagos por aqueles que se extinguiram. A questão essencial é: conseguiremos nós sobreviver até isso acontecer? Recorde-se que os dinossauros, por exemplo, não se extinguiram com o impacto de um corpo celeste, mas devido às profundas modificações dos seus

ecossistemas que daí resultaram e que os impediram de obter alimentos e de se adaptar, em tempo útil, às mudanças ambientais e às transformações ocorridas nos seus habitats. Sabe-se que os animais maiores tendem a sofrer mais nas extinções em massa, porque costumam apresentar exigências superiores ao nível da dieta alimentar e do habitat. Em teoria, os mais pequenos, mais numerosos, com maior distribuição geográfica, maior taxa de reprodução e omnívoros (dieta variada), terão uma probabilidade de sobrevivência mais elevada.

RÉSTIA DE ESPERANÇA

Será a sexta extinção em massa uma inevitabilidade? Os cientistas mexicanos e norte-americanos deixam uma réstia de esperança: “Evitar a deterioração dramática da biodiversidade e a subsequente perda de serviços dos ecossistemas ainda é possível através de esforços de conservação intensificados.” No entanto, é preciso termos consciência de que “a janela de oportunidade está a fechar-se rapidamente”, concluem. O ditado popular “enquanto há vida, há esperança” não podia vir mais a propósito. Até porque os meios de comunicação social também nos brindam, embora muito esporadicamente, com boas-novas. Foi isso mesmo que aconteceu com o Público, recentemente, quando noticiou algo que nos deve encher de alento: “Depois de quase uma década e meia na ribalta como o felino mais ameaçado do mundo, o lince ibérico deixou de ser conside-

rado internacionalmente como um animal ‘criticamente em perigo’, segundo a mais recente revisão da Lista Vermelha das espécies ameaçadas da União Internacional para a Conservação da Natureza [UICN].” Como é que isto foi possível (recorde-se que, em Portugal, não se via um lince na natureza desde o início da década de 1990)? Seguindo o bom-senso e o que vem nos manuais: com o lince à beira da extinção, Portugal e Espanha uniram-se em projetos conjuntos para a sua conservação, criando cinco centros de reprodução em cativeiro na península Ibérica (quatro em Espanha e um Portugal, em Silves) e intensificando o programa de reintrodução de linces. Resultado: o número de linces triplicou de 52 para 156 em apenas dez anos (entre 2002 e 2012), nomeadamente em duas subpopulações distintas na Andaluzia: Serra Morena e Doñana. “Este é o mais promissor programa de conservação de uma espécie de felino no mundo”, diz Urs Breitenmoser, da Universidade de Berna, copresidente do Grupo de Especialistas em Felinos da UICN. Uma coisa é certa: todos nós somos responsáveis pelas nossas ações, ou seja, pelo nosso futuro e pelo dos nossos filhos. Já não basta “pensar globalmente e agir localmente”, é imperioso “pensar no amanhã, agindo hoje”. Isto porque o desastre não é para o ano 2500, nem sequer para o final do século, em que praticamente todos estaremos mortos, é já para as próximas gerações... J.N.

Interessante

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Evolução JOSÉ ANTONIO PEÑAS

Não os vemos, mas existiram

Os fantasmas de DARWIN Semente viajante. Porque é que o abacate tem um caroço tão grande? Só colossos já extintos como o megatério seriam capazes de ingerir e defecar praticamente intacta a semente deste fruto, que germinaria no lugar da deposição.

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Abacates, papaias e outras frutas suculentas parecem deslocadas nos atuais ecossistemas, mas a ciĂŞncia desvendou o sentido da sua existĂŞncia: serviam de alimento a gigantescos animais do Pleistoceno (os fantasmas), que dispersavam assim as suas sementes.

Interessante

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Espalhador de sementes Mais baixo e robusto do que o elefante africano, o Stegomastodon colhia frutos das árvores com a tromba.

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abacate é uma fruta encantada. Os fantasmas pululam em seu redor de cada vez que é acrescentado a uma salada ou esmagado para fazer uma máscara para o rosto. Trata-se de entes com mais de cinco metros de altura, de enormes garras e dentes. A sua presença não é física, mas também não é sobrenatural. Então, de que estamos a falar? Tal como o menino do filme O Sexto Sentido, a árvore do abacate vê mortos. São animais que estão extintos há milhares de anos, mas a planta não o sabe; por isso, continua a produzir frutos grandes e nutritivos, na esperança de que os devorem e dispersem, assim, as suas sementes. Evidentemente, isto é também uma metáfora: a árvore não pode ver nem prepara os seus abacates com um objetivo, mas a evolução adaptou-a a uma fauna que já não existe. Concedeu-lhe esse fruto gordo e verde, características que não fazem muito sentido no seu atual ambiente, mas que parecem pensadas para satisfazer um animal de grandes goelas e ávido de calorias. O abacate não está sozinho: os espectros poderiam rondar a papaia, a fruta-do-conde e diversos outros frutos de origem americana.Foi o geocientista Paul Martin (1928–2010) quem inventou a metáfora das frutas encantadas. Nos anos 80, ele e o seu brilhante colega Daniel Janzen, então professor de biologia na Universidade da Pensilvânia, provocaram uma

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A maior parte dos exemplares é oriunda da América do Sul pequena revolução na ecologia, ciência que não tomara em consideração os animais extintos para explicar o que acontece nas atuais florestas e selvas.

ANACRONISMOS EVOLUTIVOS

Embora a ideia de ligar ambos os mundos tivesse partido de Janzen, ele não achava muita graça a falar em “fantasmas”; preferia evocar essas plantas de frutos desmedidos que continuavam vivas depois de terem perdido os seus sócios disseminadores. Chamou-lhes “anacronismos”, pois a sua biologia não parece fazer muito sentido nesta época. Em concreto, “anacronismos evolutivos neotropicais”, pois a maior parte dos exemplares foi encontrada nos trópicos do Novo Mundo. Ao contrário de África, a América começou a ficar sem mamíferos de grande dimensão no fim da última era glacial, há cerca de 13 mil anos. Quando uma semente germina debaixo da mesma planta que deu origem, irá competir com a mais velha pelo solo e pela água. Se acabar por conseguir crescer, o novo vegetal arrisca-se a sofrer qualquer infeção, parasita ou praga que possam ter afetado a mãe. Por isso, a seleção natural favorece qualquer transforma-

ção fortuita que possa levar as sementes para um pouco mais longe. Com efeito, a seleção produziu, gradualmente, sementes-paraquedas, sementes-hélices, sementes-barco e mesmo sementes-bala, disparadas com grande estrondo. Contudo, uma das melhores estratégias é produzir frutos saborosos e nutritivos: os animais irão devorá-los e defecar o caroço ou as pevides noutro local, com a vantagem suplementar de vir a germinar no meio de uma porção de estrume. Pode parecer repugnante, mas foi por isso que surgiram as frutas que comemos. Foi o que aconteceu com o abacate (Persea americana), adaptado a um animal que podia engoli-lo sem mastigar e fazer passar o caroço por todo o tubo digestivo. Não estamos a falar precisamente de um ratinho. A semente é uma grande esfera dura, amarga e tóxica (utiliza-se como ingrediente de raticidas), o que evita que animais pequenos lhe ferrem o dente. A camada de untuosa polpa talvez não fosse tão espessa antigamente como nas variedades cultivadas, mas constituía, sem dúvida, um pitéu suculento. Para o truque poder funcionar, o comensal não deve mastigar o caroço, e ele tem de sobre-


A viver no passado e uma planta estiver enfeitiçada, os seus frutos apodrecem e as sementes não germinam ou fazem-no onde não devem; isto é, gasta uma quantidade de energia e material que só pode ser explicado no caso de ter evoluído como um apetitoso pitéu para um enorme herbívoro já desaparecido. Estes são alguns dos expoentes máximos. Árvore-da-cabaça (Crescentia alata) – Esta árvore (na foto) dá pequenas cabaças, tão duras que quase nenhum animal consegue parti-las. As exceções são os seres humanos e os cavalos. Estes esmagam-nas com os cascos. Que sentido fazem, então, estes frutos couraçados? Os todo-poderosos molares dos gonfotérios e os incisivos do toxodonte, ambos extintos, conseguiam aceder ao doce conteúdo. Orelha-de-elefante ou árvore-de-guanacaste (Enterolobium cyclocarpum) – O símbolo da Costa Rica produz enormes quantidades de sementes no interior de frutos que recordam uma orelha. Pevides que são também ignoradas pela fauna da região e se acumulam sob a árvore, sem se conseguir dispersar. Além disso, germinam muito mais depressa se forem suavemente limadas ou fervidas durante alguns segundos. Tudo

viver ao processo de digestão. Como é que o consegue? Por vezes, a fruta contém substâncias laxantes, o que evita que permaneça demasiado tempo a ser alvo dos ataques químicos das entranhas do animal. Assim, germinam antes e com maior facilidade do que as que não são defecadas. Mamíferos, aves e mesmo répteis colaboram, desta forma, com as plantas. No caso do abacate, os fantasmas foram, quase seguramente, preguiças gigantes. Imaginemos algo vagamente semelhante a um urso, mas extremamente desgracioso, deformado e... enorme: não existe, atualmente, nada de semelhante às preguiças terrestres gigantes do Pleistoceno, há 1,8 milhões de anos. Trata-se de monstros de patas curtas e formidáveis braços e garras, que podiam erguer-se sobre os pés e a cauda para alcançar comida nas árvores, com auxílio de uma língua preênsil como a das girafas. Os seus parentes vivos são as preguiças arborícolas, conhecidas por serem lentas e desajeitadas no chão. Mil vezes mais pesavam os representantes do género Megatherium, os mais famosos do grupo. Os megatérios mastigavam folhas e ervas, mas também deviam devorar, sem os saborear devidamente, os grandes frutos que alcançavam nas copas das árvores ou apanhavam do chão. Por serem de digestão muito mais fácil do que as folhas, não necessitam do trabalho prévio de potentes molares. Outras preguiças candidatas a fantasmas evolutivos do abacate

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encaixa: estão adaptadas de modo a sofrer um conveniente desgaste enquanto atravessam todo o trato digestivo de um animal grande. Conseguem assim brotar rapidamente ao voltar a ver a luz no fim do túnel. Cafeeiro do Kentucky (Gymnocladus dioica) – Tóxicas até serem torradas, as suas sementes foram utilizadas como um substituto pobre do café. Estão encerradas, junto de uma polpa doce, dentro de vagens demasiado pesadas e resistentes para serem abertas sem a ajuda de uma criatura volumosa. Os seus parentes africanos são árvores com frutos semelhantes, devorados pelos elefantes. Os fantasmas evolu-

são o grande Eremotherium, de até seis metros de comprimento e mais de três toneladas de peso, e o Mylodon, descoberto por Darwin nos arredores da Baía Branca (Argentina). Por sua vez, os gonfotérios eram grandes paquidermes. Um deles, o Stegomastodon, exibia uma cabeça mais achatada e saliente do que o atual elefante africano, o que lhe conferia um aspeto mais selvagem e ameaçador. Além disso, as suas presas tinham três metros e meio de comprimento. Esta família de animais evoluiu na América do Norte e conquistou, depois, o Sul, onde alguns exemplares sobreviveram até há apenas 6000 anos. Podiam alcançar todo o tipo de frutos com a tromba; possivelmente, os jovens necessitavam de aprendizagem para não esmagar com os molares o amargo caroço do abacate.

REENCARNADOS EM CAVALOS

Foram também, seguramente, bons disseminadores de sementes os couraçados gliptodontes, parentes do tatu. Incapazes de levantar demasiado a cabeça do chão, deixavam-no provavelmente esvaziado de frutos caídos. O Glyptodon, que dá nome ao grupo, tinha 3,3 m de comprimento e parecia um enorme ovo com patas. Mais estranho ainda era o Doedicurus, de 4 m, que brandia uma cauda com uma espécie de clava dotada de espinhos na extremidade. As grandes carapaças destas criaturas serviram de refúgio aos primeiros habitantes humanos

tivos de cafeeiro de Kentucky tinham, pois, uma tromba. Cássia rosa (Cassia grandis) – O ecologista Daniel Janzen apercebeu-se, na Costa Rica, de que os seus frutos não eram consumidos pela fauna local, mas sim por herbívoros recentemente introduzidos, como vacas e cavalos. Esta e outras quarenta árvores da região parecem estar adaptadas a uma fauna pré-histórica de grande tamanho. Acácia-de-três-espinhos (Gleditsia triacanthos) – Quando se passeia por um parque de uma cidade europeia, é possível deparar com esta árvore cheia de vagens negras. Lá dentro, as pevides estão rodeadas de uma polpa doce e comestível. Quando as vacas ou os cavalos as dispersam, as acácias podem propagar-se ao ponto de serem consideradas uma praga. Laranjeira-dos-osages ou da Luisiana (Maclura pomifera) – O sabor deste fruto enrugado não atrai os animais; limita-se a cair e a apodrecer. De acordo com os fósseis, ocupava um território muito mais extenso quando a megafauna americana estava presente. Os espectros de preguiças gigantes, gonfotérios ou cavalos primitivos rondam esta espécie.

do continente americano, que talvez tenham provocado a sua extinção por excesso de caça. Os europeus desembarcaram muito depois, e não vieram sozinhos. Quando os ameríndios viram, pela primeira vez, os recém-chegados montados nos seus cavalos, ficaram fascinados. Tinham-se esquecido desses herbívoros, embora os Equus (género a que pertencem cavalos, zebras e burros) tenham tido origem na América. Os antigos equinos reencarnaram, a partir do século XVI, nos cavalos introduzidos, magníficos dispersadores de plantas anacrónicas. Os fantasmas da evolução também podem adotar a forma de colossos chifrudos. O bisonte gigante, Bison latifrons, ultrapassava as duas toneladas de peso. Com os chifres, que atingiam mais de 2 m de envergadura, mantinha à distância o tigre de dentes-de-sabre. Talvez ingerisse frutos nos limites das florestas, contribuindo para a sua expansão. Terminemos com outro estranho gigante: o toxodonte. Era compacto, de aspeto a meio caminho entre um rinoceronte sem chifre e um hipopótamo, e dotado de uma dentição cómica. Foi Charles Darwin o primeiro cientista a reunir os seus fósseis, aos 23 anos, no Uruguai. O naturalista britânico ficou impressionado com os dentes, inclinados para a frente, que recordavam os de grandes roedores, como o carpincho ou a capivara. Sabemos que era caçado pelo homem, pois foram encontradas Interessante

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Troféus de caça. A pressão humana pode ter provocado a extinção da megafauna que se alimentava de espécies vegetais ainda existentes. Foi o caso das tartarugas gigantes semelhantes às das Galápagos (em cima) ou dos gliptodontes, parentes dos atuais tatus. GETTY

pontas de flecha pré-históricas nos seus esqueletos. Com a extinção, desapareceu o último representante de uma estirpe sem parentes próximos vivos. O próprio Darwin já o suspeitava: como demonstram os frutos tropicais e os seus fantasmas evolutivos, muitos seres vivos não estão adaptados ao seu ambiente, mas ao dos antepassados. Por que corre tanto o antilocapra, o mamífero mais rápido da América do Norte, se não tem praticamente predadores velozes dos quais fugir? A sua extraordinária celeridade (atinge quase 90 km/h) constitui uma herança da corrida belicista mantida pelos seus antepassados contra os grandes felinos já extintos. Os seres humanos também possuem esse tipo de vestígios. Entre os candidatos, surgem o pelo corporal, o apêndice, os dentes do siso, a capacidade de mexer as orelhas e a pele de galinha. Talvez os anacronismos também residam na nossa mente: foram sugeridas muitas explicações evolutivas para o nosso comportamento, atração sexual, fobias e até superstições. São difíceis de comprovar, mas há outros exemplos menos polémicos: os reflexos primitivos dos bebés, como o de agarrar, são provavelmente resquícios de instintos que ajudavam a cria a agarrar-se à mãe quando éramos símios. Ao produzir-se uma brusca alteração climática, como uma grande extinção, muitas espécies encontram-se num mundo diferente daquele onde evoluíram. Nestes escassos 13 mil anos, todos os frutos que caem da árvore e se desperdiçam nas florestas tropicais americanas não tiveram tempo para se adaptar à perda dos seus disseminadores. Talvez estejam a evoluir para tamanhos mais pequenos, polpas mais austeras e revestimentos menos rígidos.

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Algumas plantas anacrónicas recuperaram e acabaram por se tornar pragas

O HOMEM SUBSTITUI OS FANTASMAS

Por que razão não desapareceram tais plantas? Algumas, que não conhecemos, talvez já o tenham feito. Outras podem, simplesmente, continuar a existir: propagar eficazmente as sementes é conveniente, mas não imprescindível. Sabemos que os seus territórios se têm reduzido ao longo dos últimos milhares de anos. Em muitos casos, as vacas e os cavalos estão a executar o trabalho de dispersão, e as áreas originais destas plantas recuperaram a grande velocidade, pelo que chegam mesmo a converter-se em pragas.

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O abacate teve sorte: foi abandonado pelos mamíferos gigantes do Pleistoceno mas rapidamente adotado pelo Homo sapiens. Os seres humanos devoram-no há mais de oito milénios e, embora não engulamos o grande caroço para depois o expulsar (por razões óbvias), transportamos habitualmente os frutos de uns lados para outros. Cultivado no México desde há, pelo menos, 1500 anos, tem sido sempre uma fruta muito apreciada: arqueó-

logos encontraram as suas sementes junto de múmias incas. Criámos centenas de variedades domésticas por seleção artificial e hibridação; atualmente, produzimos mais de dois milhões de toneladas por ano, em todos os continentes. Nenhum outro animal dispersou tanto a sua semente. Talvez a árvore do abacate, tendo-nos a nós, já não sinta tanto a falta dos seus fantasmas evolutivos. E.C.


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História

Escritas ainda não decifradas

Histórias OCULTAS Os textos das antigas civilizações são essenciais para se poder penetrar na sua história. Algumas dessas culturas permanecem um livro fechado e cheio de incógnitas, pois historiadores e filólogos não conseguem encontrar as chaves para desvendar a sua escrita. Pictogramas, alfabetos e glifos ainda por decifrar escondem os mistérios de mundos perdidos como o minoico, o olmeca ou o ibero. 80 SUPER


A chave do passado. A hist贸ria da Antiguidade continua muito fragmentada. Cada vez que os arque贸logos encontram s铆mbolos ou textos n茫o decifrados, surge a possibilidade de preencher algumas das lacunas no nosso conhecimento.

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TABUINHAS PROTOELAMITAS DE SUSA

É tão antigo como o mais antigo dos sistemas de escrita utilizados pelo homem, o que equivale a dizer que o protoelamita conviveu, desde finais do IV milénio a.C., com o sumério, cujas tabuinhas cuneiformes são consideradas os primeiros textos da humanidade. O aparecimento da escrita na Mesopotâmia é considerado a linha divisória entre a pré-história e a história propriamente dita, a qual mergulha as suas raízes no Crescente Fértil, entre os rios Tigre e Eufrates. A escrita elamita, bem conhecida e documentada, surgiu no Sudoeste mesopotâmico por volta de 2500 a.C., mas, meio milénio antes, a necessidade de pôr por escrito inventários e registos contabilísticos incentivou o fugaz aparecimento do protoelamita na órbita política e territorial da cidade-estado de Susa. É provável que haja um parentesco entre as cerca de 1600 tabuinhas protoelamitas recuperadas pela arqueologia e os símbolos do protocuneiforme, antepassado direto da escrita suméria, pois alguns dos caracteres apresentam notáveis semelhanças. Ao contrário do sumério, o protoelamita teve, por razões que nos escapam, um período de vida muito curto, de apenas um par de séculos na melhor das hipóteses. É extremamente

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O alfabeto pode ter sido difundido por mineiros cananeus complexo determinar qual dos dois sistemas surgiu antes. Seja como for, o protoelamita é a escrita por decifrar mais antiga de que se tem conhecimento. A interpretação dos enigmáticos pictogramas e restantes signos abstratos continua a representar um quebra-cabeças. Não parece provável que os escribas das referidas tabuinhas fossem pessoas muito especializadas, a julgar pelos erros que deram e pela rusticidade dos caracteres, o que explicaria, em parte, a curta duração do protoelamita, um obstáculo acrescido para os que procuram decifrá-lo. Além disso, as tabuinhas são pouco conhecidas, e as reproduções à disposição dos peritos deixam muito a desejar. Atualmente, a Universidade de Oxford (Reino Unido) tem uma equipa a trabalhar no Museu do Louvre, em Paris, que conserva a maioria das tabuinhas, com um equipamento informático-fotográfico de última geração que consegue obter, através de uma tecnologia de iluminação denominada Reflectance Transformation Imaging (RTI),

imagens de altíssima qualidade dos textos. Estes serão colocados à disposição dos especialistas de todo o mundo, o que aumenta as esperanças de poderem ser decifrados.

O SISTEMA PROTOSSINAÍTICO

A origem do alfabeto no Médio Oriente, germe dos modelos cretense e grego, continua a ser debatida, mas as últimas descobertas vieram alterar a convicção de que o primeiro sistema de escrita alfabética surgiu por volta de 1600 a.C., na península do Sinai e na área sírio-palestiniana. A responsabilidade pela reviravolta foi uma descoberta feita, em 1999, em Wadi el-Hol, no coração do Egito. Foi ali que os egiptólogos norte-americanos John e Deborah Darnell encontraram inscrições em pedra calcária à beira de uma rota muito movimentada, perto de Tebas e do vale dos Reis. Os símbolos pertencem a um tipo de escrita semítica, e foram datados entre 1900 e 1800 a.C., quando muitos indivíduos semitas foram trabalhar para o abastado império egípcio. A escrita

MARILYN LUNDBERG / WEST SEMITIC RESEARCH

CDLI / UCLA

Tabuinhas protoelamitas do Louvre.


A chamada “Inscrição A” protossinaítica.

apresenta uma grande semelhança com outra, posterior, encontrada no início do século XX na península do Sinai: a protossinaítica. Entre 1904 e 1905, o egiptólogo britânico Flinders Petrie estudou a jazida de Serabit el-Khadim, no Sinai, onde mineiros de origem cananeia extraíam turquesas para os faraós. Ali, Petrie encontrou inscrições alfabéticas de cerca de 1600 a.C. feitas por aqueles trabalhadores. A descoberta de Wadi el-Hol proporcionou um conhecimento muito mais pormenorizado desta escrita, dada a sua semelhança. Trata-se de um sistema baseado em caracteres semíticos, mas já com influências dos complexos e elitistas hieróglifos egípcios. O alfabeto era um instrumento muito mais democrático, e antecedeu em quase seis séculos o aparecimento da escrita fenícia. Através das suas semelhanças com o protocananeu e os hieróglifos, foram decifrados alguns caracteres das inscrições de Wadi el-Hol, mas a maioria ainda resiste. Provavelmente, esses trabalhadores cananeus itinerantes das minas teriam expandido o primitivo alfabeto até à região sírio-palestiniana, onde se transformaria na raiz da escrita fenícia. Os humildes mineiros seriam, pois, os divulgadores de um dos inventos mais decisivos da história.

O LINEAR A E O HIERÓGLIFO CRETENSE

Em 1952, Michael Ventris e John Chadwick encontraram a chave para decifrar o Linear B e puderam, assim, desvendar o significado da confusão de tabuinhas de argila cozidas pelo fogo do Palácio de Cnossos, epicentro da civilização minoica no segundo milénio antes de Cristo. Creta foi, efetivamente, a ponte entre o mundo grego e o Médio Oriente, a porta de entrada da escrita fenícia como recurso para ordenar e estabelecer um registo das transações económicas e das atividades de culto. Contudo, o elo entre a escrita grega e os primeiros sistemas de signos de origem oriental continua a ocultar muitos mistérios. Hoje, temos a certeza de que o Linear B é o antepassado direto do grego e não, como se pensou inicialmente, uma escrita genuinamente cretense. Trata-se, muito provavelmente, da adaptação à língua grega de um sistema de signos ainda mais antigo e também de origem cretense, conhecido por Linear A. Foi entre os vestígios do palácio cretense de Hagia Triada que a primitiva escrita cretense foi descoberta. Constitui, na realidade, o antepassado direto do Linear B. A sua divulgação coincidiu com o período dos Segundos Palácios (1700–1350 a.C.) e foi, seguramente, o pri-

meiro silabário da área mediterrânica helénica. As semelhanças com o Linear B são evidentes, e isso permitiu intuir o conteúdo de algumas das tabuinhas, mas ainda não se conseguiu decifrar a escrita. Por sua vez, o Linear B constitui uma simplificação do primeiro sistema de escrita cretense, uma evolução dos pictogramas de uma forma primitiva de escrita hieroglífica de raiz oriental que coexistiu nos palácios, durante algum tempo, com o novo e revolucionário silabário. Os especialistas especulam que o célebre Disco de Festo, que ainda não sabemos ler, poderia ser a transcrição de um hino religioso. Estamos perante o testemunho mais espetacular deste primitivo sistema de escrita cretense, que, à semelhança do Linear A, continua a constituir um enigma para filólogos e historiadores, mesmo para os mais especializados. É nos hieroglifos do Disco de Festo e nas tabuinhas de Linear A que se encontram os alicerces da escrita helénica, a qual viajará de Creta para a Grécia através do Linear B, a partir do século XVI a. C.

A ESCRITA IBÉRICA

As culturas pré-romanas da península Ibérica continuam envoltas em mistério. As refeInteressante

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JUAN BANJO / GNU

Texto ibero inscrito numa peça de cerâmica e guardado no Museu Arqueológico de Valência (Espanha).

Sabemos ler os textos iberos, mas não o que eles significam rências ao mundo ibero e celtibero nos textos de autores clássicos são muito escassas e só aumentam a partir de finais do século III a.C., coincidindo com a invasão cartaginesa do território peninsular e com o desenrolar da segunda Guerra Púnica, que opôs, também em território ibérico, romanos e cartagineses pela hegemonia no Mediterrâneo. Os historiadores deparam com uma escuridão quase total relativamente a tudo o que antecede essas datas. Reconstituir a evolução histórica desses povos em períodos anteriores à traumática interação com as grandes potências da época torna-se extremamente complexo. Apenas a arqueologia poderá lançar alguma luz sobre os habitantes da península antes da chegada dos romanos. O grande paradoxo é que dispomos de mais de 2000 inscrições nas diferentes variantes da escrita ibérica (meridional, levantina e do Sudoeste), o que constitui o corpus epigráfico mais nutrido, a par daquele do mundo etrusco e do Mediterrâneo antigo, para além do âmbito greco-romano. Sabemos que o alfabeto ibérico deriva do fenício, devido à intensa interação dos nativos peninsulares com esses excecionais navegado-

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res e comerciantes levantinos a partir de finais do século IX a.C. Também sabemos que o seu desenvolvimento surge no século V a.C., penetrando no vale do Ebro em finais do século III a.C., onde entrará em contato com os povos celtiberos, cuja língua de origem indoeuropeia nada tem a ver com a ibérica. Estamos perante um alfabeto semissilábico de 28 signos, que poderiam proporcionar-nos a chave para interpretar a fascinante complexidade do mundo ibero e celtibero. Em 1922, o arqueólogo e historiador espanhol Manuel Gómez Moreno conseguiu, com base em bronzes como o de Ascoli e de moedas romanas cunhadas na península com inscrições bilingues, estabelecer uma equivalência entre o alfabeto da escrita ibérica e o atual. Isto é, estaríamos preparados, desde então, para ler os textos na variante ibérico-levantina, cujo suporte preferido eram finas placas de chumbo gravadas com cinzel. Contudo, não podemos, infelizmente, traduzi-las. Na localidade de El Campello (Valência), foram recuperadas cerâmicas com inscrições em alfabeto ibérico e em grego, mas trata-se de textos diferentes. No canto sudoeste da península, foi desco-

berta, em 1972, a chamada “Estela do Guerreiro”, que os estudiosos continuam a tentar desvendar, sem sucesso (pode ser vista uma réplica no Museu da Escrita do Sudoeste, em Almodôvar). É uma de perto de uma centena de inscrições em pedra atribuídas aos tartessos, o povo que habitava o Baixo Alentejo e o Algarve no período pré-romano. O advogado Augusto Ferreira do Amaral tem uma teoria controversa: para ele, a escrita preservada nas estelas é de origem indo-europeia anatólica. A confirmar-se a sua tese, diz em Neo-Hititas em Portugal, será necessário rever a história da Antiguidade mediterrânica pré-clássica e da origem do alfabeto. A arqueologia continua a procurar a chave, na esperança de encontrar um texto ibero traduzido para latim ou para grego que permita, de uma vez por todas, conhecer a fundo esses ilustres antepassados.

OS GLIFOS OLMECAS

Durante anos, os especialistas defenderam a existência de um tronco comum do qual teriam emergido as grandes civilizações mesoamericanas. A tese tem cada vez mais detratores, mas é geralmente aceite que a semente desse diversificado horizonte cultural se encontra nos olmecas, que prosperaram no Leste do México, no cenário do atual estado de Veracruz, entre meados do segundo milénio e


Ao vivo. Até 27 de setembro, a exposição de rua Quem Nos Escreve Desde a Serra, patente no Museu Nacional de Arqueologia, no Mosteiro dos Jerónimos, em Lisboa, mostra algumas das mais importantes estelas encontradas no Sudoeste peninsular.

o século V a.C. Os olmecas construíram, a partir do início do novo milénio, uma sociedade muito complexa, com uma estrutura estatal que teria servido de modelo a maias e astecas em séculos posteriores. Uma das características associadas ao aparecimento de um estado forte entre as sociedades primitivas é a adoção da linguagem escrita. Até há menos de uma década, os historiadores atribuíam a paternidade da escrita na região aos zapotecas. Todavia, existem múltiplos exemplos na cultura material olmeca do que poderia ser interpretado como um rudimentar sistema de escrita. Surgem nos temas iconográficos de algumas cerâmicas e estelas de La Venta (o grande centro de poder olmeca e a primeira cidade pré-hispânica com um planeamento urbano definido) e noutras jazidas associadas a essa civilização. Contudo, esses testemunhos de meados do primeiro milénio antes de Cristo são muito complexos de interpretar, dada a dificuldade em estabelecer uma clara distinção entre o que é escrita propriamente dita e o que é iconografia. Os presumíveis glifos olmecas apresentam semelhanças com os maias, o que reforçaria a ideia de que a escrita olmeca ilustra o tronco comum do qual teriam emanado todas as formas de escrita mesoamericana. No entanto, o feito mais notável neste campo da arqueologia ocorreu em 2007, com a descoberta da estela ou bloco de Cascajal: reúne um conjunto de

símbolos gravados que, pela sua disposição e pela repetição de alguns dos elementos, são quase seguramente componentes de um texto, testemunhos de uma gramática rudimentar. Seria, além disso, a mais antiga da Mesoamé­ rica, pois, apesar das dúvidas de alguns especialistas, os autores da descoberta atribuem-lhe uma data tão antiga como 900 a.C. Se isso se confirmar, demonstraria que foram os olmecas, e não os zapotecas, que introduziram o uso da escrita na Mesoamérica.

PICTOGRAMAS DA ILHA DA PÁSCOA

Quando o cartógrafo espanhol Felipe González Ahedo chegou à ilha da Páscoa, em 1770, reivindicou aquele território para a coroa de Espanha e impôs aos nativos a assinatura de um tratado. Os rapanuis ratificaram o documento com misteriosos signos, que talvez fossem indício de um primitivo sistema de escrita com origem na Oceânia, de onde provinham. Em meados do século XVIII, o religioso francês Eugène Eyraud (o primeiro ocidental a estabelecer-se na ilha) deu a conhecer ao mundo as misteriosas kotau rongo-rongo, uma coleção de 21 tabuinhas, provavelmente gravadas com dentes de tubarão, que continham os primeiros textos documentados da região. Em algum ponto da sua história, os habitantes da ilha desenvolveram pictogramas com figuras antropomorfas, objetos celestes ou animais,

que se liam num estranho sistema inverso: há uma primeira linha e a seguinte surge na direção inversa, sendo também necessário girar a tabuinha para poder lê-la. As tabuinhas (de madeira de toromiro) foram dadas a conhecer fora do seu contexto arqueológico original, o que dificulta a datação, pois o carbono-14 proporciona pistas acerca da antiguidade da madeira, mas não do texto que contém. Alguns especialistas defendem que essa forma de expressão surgiu depois dos primeiros contactos com os europeus, no século XVIII, mas a semelhança dos pictogramas com os não menos enigmáticos petroglifos das grutas da ilha, indiscutivelmente anteriores à chegada dos espanhóis, assim como a assinatura dos nativos no tratado de González Ahedo parecem sugerir um desenvolvimento autóctone. Outros acreditam, em virtude de certas semelhanças estilísticas, num parentesco com sistemas do vale do Indo, embora não haja elementos sólidos para sustentar tal hipótese. Seja como for, é possível que a leitura das tabuinhas se possa revelar decisiva para esclarecer os mistérios que envolvem a cultura rapanui, célebre pelos seus enigmáticos e colossais moais. O improvável aparecimento de um documento plurilingue (uma “pedra de Roseta” da ilha da Páscoa) facilitaria uma decifração que, por enquanto, se afigura impossível. R.P.

Interessante

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KAROLY ARVAI / CORDON

História Afinal, foi mais importante do que a guerra

O poder da PAZ

Os livros de história parecem não passar de uma sucessão de batalhas. Porém, segundo uma nova corrente de pensadores, as atitudes pacíficas e a cooperação tiveram maior influência no destino da sociedade humana do que a violência. 86 SUPER


Emblema antiatómico Manifestantes formam com tochas o símbolo da paz na Praça dos Heróis, em Budapeste. O sinal foi criado em 1958 pelo designer britânico Gerald Holtom, para uma campanha a favor do desarmamento nuclear.

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Momentos e símbolos Lisístrata – Nesta comédia (411 a.C.), Aristófanes apresenta a primeira greve sexual da história: as mulheres atenienses negam-se a fazer amor com os maridos até estes porem fim à guerra. Trégua olímpica – Na antiga Grécia, era o período em que as guerras eram provisoriamente suspensas para garantir que os atletas pudessem viajar até Olímpia (com estatuto de zona neutral), a fim de participarem nos jogos antes de regressarem às suas cidades. Pax Romana – Conhecida igualmente por Paz Augusta, foi um longo período (27 a.C.–180) sem guerras, imposto pelo Império Romano às tribos e aos povos subjugados. Estes submeteram-se, nem sempre de boa vontade, à administração e ao sistema jurídico de Roma. Pax Sinica – Foi um tempo de paz durante as dinastias Han, Tang, Yuan, Ming e início da Qing, com os chineses a imporem a sua civilização na Ásia Oriental através da hegemonia política, económica, militar e cultural. Neutralidade – Em termos de política internacional, este conceito implica que um estado se mantenha à margem de um conflito armado em que participam outros. Este ano, a Suíça perfaz 500 anos como país neutral, à frente de outros, como a Suécia (cuja neutralidade foi declarada em 1815), a Bélgica (1830), a Irlanda (1921), a Finlândia (1948) e a Áustria (1955). Bandeira branca – Pode significar rendição, pedido para falar com o inimigo, um cessar-fogo ou o fim das hostilidades. É também associada ao movimento pacifista. Pomba – Na antiga Grécia, a ave era a mascote de Afrodite, a deusa do amor. Por sua vez, na Bíblia, a pomba com um ramo de oliveira no bico assinalou o fim do Dilúvio. Hoje, é universalmente considerada um símbolo da paz. L.O.

Em 25 de março de 1969, John Lennon e Yoko Ono convocaram os media para o seu quarto do Hotel Hilton de Amesterdão. Anunciaram a intenção de passar uma semana em pijama diante da imprensa, para defender a paz.

A maior revolução do século XX não derramou gota de sangue

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rata-se de uma opinião muito divulgada: a história da humanidade não foi mais do que uma longa sucessão de guerras e massacres. Nos manuais escolares, sangrentas batalhas e lutas pelo poder adquirem um protagonismo desmesurado. Há mesmo algumas séries de animação, como a do guionista francês Albert Barrillé, Era uma Vez... o Homem, a ensinar às crianças que se travou uma luta constante, ao longo dos milénios, entre duas categorias muito bem definidas de pessoas, os bons e os maus, e que estes últimos predominaram. Esta visão pessimista do passado foi sendo adotada pelos historiadores devido ao peso que correntes de pensamento como o marxismo ou o darwinismo social exerceram no mundo intelectual. A doutrina filosófica marxista sugere que a história foi sempre dominada, desde os seus primórdios, por um eterno confronto entre opressores e oprimidos, a luta de classes. Por sua vez, o darwinismo social defendia a hipótese de que a existência de todos os seres vivos

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se reduz a uma luta perene pela sobrevivência entre fortes e fracos, com os primeiros destinados a dominar o mundo, e os segundos condenados a desaparecer da face da Terra. Esta visão maniqueísta das coisas também teve um papel considerável na maior parte das religiões, cujas autoridades argumentaram que o universo é consequência da luta constante (e dupla: uma terrena, outra sobrenatural) entre o bem e o mal.

NOVA TENDÊNCIA HISTORIOGRÁFICA

Contudo, nas últimas décadas, cada vez mais especialistas começaram a questionar seriamente esses velhos preconceitos, contribuindo assim para o aparecimento de uma inovadora tendência historiográfica: a história da paz. Os cronistas da paz não negam que houve violência ao longo dos séculos, nem deixam de reconhecer que o ser humano é conflituoso por natureza. No entanto, para os investigadores desta corrente, apenas uma ínfima parte dos conflitos que surgem entre as pessoas conduz a

atos violentos. A maior parte das divergências, afirmam, é resolvida através de algum tipo de compromisso ou de negociação. Na sua opinião, a atividade fundamental do ser humano não é a guerra, mas a mediação. Todos os grandes pensadores debateram a nossa verdadeira essência. Somos bons ou maus? Segundo o filósofo inglês Thomas Hobbes, o homem é um lobo para os seus semelhantes (homo homini lupus). Em contrapartida, o pensador suíço Jean-Jacques Rousseau acreditava que o ser humano é um bom selvagem, de alma nobre, que a sociedade corrompe. Os historiadores da paz rejeitam tais extremos. O homem, afirmam, é um ser complexo, capaz de comportamentos altruístas ou egoístas, e tanto de atitudes pacíficas como violentas. O certo é que os seres humanos, de um ponto de vista meramente anatómico, não são particularmente aptos para a violência. Dada a nossa frágil constituição, se vivêssemos isolados na natureza, ficaríamos à mercê de animais mais fortes e rápidos do que nós. Assim, teria sido a predisposição para colaborar (e não a capacidade de matar) a característica que se revelou fundamental, milénio após milénio, para a nossa sobrevivência como espécie.


Mesa de negociações. O quadro Assinatura do Tratado de Münster, do pintor flamengo Gerard ter Borch, evoca o acordo de 1648 entre as potências europeias que conduziu à Paz de Vestfália.

Além disso, os seres vivos tendem a realizar, de forma inata, atividades de baixa entropia, isto é, que lhes permitem poupar a maior quantidade possível de energia. A guerra implica um enorme esbanjamento de recursos, sobretudo se se considerar que é possível alcançar metas igualmente satisfatórias através da negociação. O nosso processo evolutivo levou-nos a ser cada vez mais propensos à cooperação e menos aptos para a violência. Com a passagem do tempo, o tamanho dos caninos dos hominídeos foi diminuindo, ao mesmo tempo que se desenvolvia o neocórtex (cérebro racional), cujo crescimento é associado ao facto de se dispor de mais tempo para as relações sociais (grupos mais numerosos), para a desparasitação coletiva e para a linguagem. Também se foi reduzindo o dimorfismo sexual (as diferenças físicas entre o macho e a fêmea não são tão acentuadas), e tornou-se menos frequente a convivência em haréns (um único macho com muitas fêmeas), o que dava geralmente origem a lutas no setor masculino. Os processos revolucionários que tiveram maior impacto e transformaram a sociedade de forma perdurável não foram os mais sangrentos. Durante a primeira parte da Revolução

Francesa (1789–1793), na qual houve relativamente pouco derramamento de sangue, foram alcançados mais avanços, em termos de liberdades e direitos, do que na fase do Terror (1793–1794), cujas reformas foram abolidas após a reação termidoriana de 1794. Recentemente, a escritora nicaraguense Gioconda Belli afirmou que “a revolução mais importante do século XX, a que mais alterou a forma de viver e a única que realmente triunfou, foi a feminina”. Em suma, se a violência não produz grandes alterações a longo prazo, o verdadeiro motor da história é antes a paz. Contudo, os livros continuam a dedicar mais páginas a Hitler do que a Gandhi, protagonista do quase pacífico processo de independência da Índia.

A PAZ NÃO DEIXA VESTÍGIOS?

Quando se trata de estudar os diferentes períodos da pré-história, como o Paleolítico, a tarefa dos estudiosos da paz torna-se ainda mais complicada. Se a violência deixa inúmeras marcas (traumatismos ósseos, armas...), não há geralmente registo dos atos pacíficos. De igual modo, os preconceitos sobre a natureza maligna do homem fazem tomar por prova de atitudes beligerantes ações que se prestam a interpretações alternativas. Por exemplo, se

os indícios arqueológicos e genéticos sugerem que uma população se deslocou de uma região para outra, é comum afirmar que tal se deveu a uma campanha de conquista, mas poderia tratar-se de uma das inúmeras migrações pacíficas que ocorreram ao longo da história. No entanto, é possível demonstrar que, em épocas pré-históricas, já havia atos filantrópicos. Numa jazida de Dmanisi (Geórgia), foram encontrados restos, datados de há cerca de 1,8 milhões de anos, de um dos nossos antepassados que se manteve vivo apesar da ausência quase total de dentes, o que significa que outros membros do grupo lhe mastigavam os alimentos ou lhe permitiam, pelo menos, ficar com os bocados de carne mais tenros das presas que caçavam. Outro caso comprovado é o de uma menina cujos restos foram encontrados na gruta dos Ossos, em Atapuerca (Espanha). Sofria de deficiências psíquicas e motoras desde a nascença e, contudo, conseguiu chegar aos onze anos, certamente graças aos cuidados de outros membros do seu grupo. Por sua vez, os nendertais também não abandonavam os indivíduos mais fracos, como mostram as jazidas de Bau de l’Aubesier e de La Chapelle-aux-Saints, em França, ou a de Interessante

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AGE

Entre os anos de 1815 e 1914, houve apenas 18 meses de guerra Shanidar, no Iraque, onde foram encontrados restos de indivíduos que sobreviveram apesar de terem sofrido ferimentos e lesões graves, assim como problemas sérios de dentição ou de mobilidade. As civilizações antigas (Egito, Mesopotâmia) são geralmente associadas à escravatura e ao imperialismo, mas as suas economias não se baseavam no trabalho escravo. Nas sociedades acentuadamente esclavagistas (Roma), as pessoas livres constituíam o grosso da população. Os grandes impérios da antiguidade não foram apenas erguidos com armas. O helenismo surgiu mais devido a uma sucessão de colonizações pacíficas de cidadãos gregos do que pelas conquistas (enormes, mas efémeras) do exército de Alexandre Magno. Segundo o historia-

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dor Pierre Grimal, muito antes da entrada em cena do grande general macedónio, algumas regiões da Ásia já estavam em vias de se helenizar e de criar uma civilização mista greco-bárbara, que seria acelerada pela aventura militar de Alexandre.

MENSAGENS PACIFISTAS

Por sua vez, os romanos ampliaram as suas fronteiras não apenas com recurso à força bruta como, também, integrando no império outros povos, aos quais ofereciam as vantagens da civilização e um vasto sincretismo cultural e religioso. Desse modo, quando se analisa as representações alegóricas que foram cunhadas pela Roma imperial, vê-se que não exibiam, geralmente, mensagens belicistas, mas um

História sem sangue. Nelson Mandela (aqui, com o capitão da seleção sul-africana de râguebi) conseguiu a conciliação entre brancos e negros no seu país e evitou uma guerra civil entre as duas comunidades.

grande número de termos pacíficos como Concordia, Felicitas, Libertas, Pietas e Pax. O povo, destinatário da propaganda, não ansiava por batalhas, mas por uma paz duradoura. Por outro lado, associar a Idade Média à violência e ao obscurantismo já é clássico. Não é por acaso que se trata de uma época principalmente recordada pelas violentas cruzadas e pela servidão da sociedade feudal. Todavia, o objetivo dos historiadores da paz é atribuir a sua verdadeira importância às ferramentas para a resolução de conflitos que foram inventadas e instituídas durante a época medieval. O império bizantino, por exemplo, foi capaz de construir uma eficaz rede diplomática, ao mesmo tempo que nasciam, no seio da Igreja, duas importantes figuras jurídicas consagra-


J. A. PEÑAS

MAIS PACÍFICO

MAIS VIOLENTO

Quais os países mais beligerantes?

O

Índice de Paz Global, elaborado pelo Institute for Economics and Peace (fundado pelo empresário australiano Steve Killelea, em 2007), avalia o nível de paz em cada país com base nos índices inter-

das às preservação da convivência: a Paz de Deus e a Trégua de Deus. Quanto à primeira, tratava-se de fazer senhores e vassalos jurarem sobre as relíquias dos santos que não perturbariam a união pacífica entre os povos. Com a Trégua de Deus, procurava-se proibir a violência, sob pena de excomunhão, durante a maior parte dos dias do ano: “Desde o pôr do sol de quarta-feira até segunda-feira à hora de prima, observem esta trégua, e que seja guardada sem interrupção desde o primeiro dia do Advento até às oitavas da Epifânia do Senhor (...), e igualmente nas três festividades de Santa Maria”, lê-se no documento do Concílio de Tulujas (1065). O desejo de não-violência por parte da população medieval também se viu refletido no desenvolvimento de uma corrente literária consagrada a enaltecer o pacifismo. Entre as obras mais importantes, destacam-se Defensor Pacis, de Marsílio de Pádua, Livro da Paz, de Cristina de Pisano, e Tratado de Exortação e Comendação da Paz, de Diego de Valera.

RAZÃO DE ESTADO

Com o Renascimento, surgiu em Itália a diplomacia moderna, enquanto a Escola de Salamanca, em Espanha, estabelecia as bases do direito internacional. Por essa altura, também se popularizou a doutrina da razão de estado, segundo a qual quem governava devia preocupar-se com a felicidade do povo e a res publica. O príncipe (numa alusão aos governantes em geral) devia poupar aos seus súbditos os males da guerra. O reinado de Filipe III de Espanha (II de Portugal, 1598–1621), por exem-

nos de violência e criminalidade e em parâmetros externos como os gastos militares e as guerras em que participa. Em cima, o IPG conforme foi apurado em 2014.

plo, ficaria conhecido como o período da Pax Hispanica, durante o qual o soberano procurou assinar acordos com França, Inglaterra e a Flandres. Durante a Idade Moderna, dois movimentos culturais que se consagraram à rejeição da violência adquiriram especial protagonismo: o irenismo e o iluminismo. O primeiro (o termo deriva da deusa grega Irene, Eirene, que, segundo a mitologia, era a personificação da paz e da riqueza) incluiu grandes pensadores como Erasmo de Roterdão e o inglês Thomas More. Entre os filósofos do Século das Luzes, destacam-se Voltaire, com a sua cruzada em nome da tolerância, e Rousseau, cuja batalha se centrou na defesa dos direitos humanos. A Idade Contemporânea é geralmente considerada como a mais violenta, pelo impacto na indústria bélica do aparecimento de novas tecnologias, dos aviões de combate e das bombas nucleares, que causaram milhões de mortos nas guerras mundiais. Contudo, a mesma época assistiu ao nascimento das primeiras instituições dedicadas à preservação da paz, como a Sociedade das Nações, em 1919, e a ONU, em 1945, à criação dos primeiros movimentos pacifistas de massas e ao triunfo de várias insurreições não-violentas (o gandhismo, na Índia; o 25 de Abril, a Revolução de Veludo, na Checoslováquia...). Registou-se também a expansão do liberalismo económico, que considera a guerra um obstáculo ao mercado livre, das democracias representativas, menos belicistas do que as monarquias absolutas, e do pacifismo, associado à ideia de uma irmandade entre os trabalhadores de todo o mundo.

A ERA MAIS PACÍFICA

Talvez por isso, na Europa, os grandes conflitos bélicos alternaram com longos períodos de prosperidade. O sociólogo Karl Polanyi designou o período entre 1815 e 1914 como a Paz dos Cem Anos, durante a qual as grandes potências “só se combateram durante um total de dezoito meses”. Algo de semelhante aconteceu depois da Segunda Guerra Mundial até aos nossos dias, dado que a maior parte dos países europeus não sofreu confrontos nos seus territórios. O psicólogo evolutivo Steven Pinker definiu a época contemporânea, em The Better Angels of Our Nature, como “a mais pacífica da existência da nossa espécie”. Podemos concluir que a crónica da humanidade tem sido conflituosa, mas não exclusivamente violenta. Anthony Adolf, professor da Universidade Cornell (Nova Iorque), afirma em Peace – A World History que, “sem as vitórias dos conciliadores e o engenho dos pacíficos, não só não haveria uma história para narrar como poderia nem sequer haver um mundo onde narrá-la”. Por detrás das teorias destinadas a realçar as páginas mais sangrentas do passado, escondem-se projetos políticos cuja finalidade é semear a discórdia e estimular perigosos desejos de vingança. Segundo os estudiosos da paz, a história tem de ser desarmada para que não possa ser utilizada como arma por um povo ou um grupo social contra outro. Estes investigadores apelam ao reforço do pacifismo, procurando-o no passado, enaltecendo-o e, sobretudo, resgatando-o do esquecimento da história. D.M.

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Arte

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6 2 As Tentações de Santo Antão Abade. Hieronimus Bosch (1450–1516). Monge egípcio do século III, fundador do movimento eremítico, santo Antão Abade aparece em primeiro plano, meditando ou rezando, alheio ao que se passa à sua volta. É identificado por dois símbolos: a letra grega tau (1), também chamada “cruz de santo Antão”, pintada em azul sobre o seu hábito, e o cabo do báculo sobre a pedra (2). O mal é representado pelos pequenos demónios (3) que revoluteiam sobre ele. A casa com o remate fantasioso da cabeça de uma anciã (4) é um prostíbulo, assinalado pela tabuleta com um cisne (5), ave que representa o prazer. A jovem nua na entrada (6) alude obviamente às tentações da carne. À esquerda, vê-se um mosteiro antoniano em chamas (7), que remete para a relaxação das regras em que tinha caído essa ordem religiosa. A obra, atualmente no Museu do Prado, em Madrid, é considerada uma cópia de um original feito na oficina de Bosch por volta de 1510.

Mensagens ocultas na pintura

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Segredos sobre TELA

arte do Renascimento rompeu com a morte e os temas macabros da Idade Média e propôs-se transmitir o humanismo e o neoplatonismo. O homem tornava-se o centro e a medida do

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mundo, e as obras pictóricas refletiam a harmonia e a beleza do corpo e da natureza, através da exaltação da antiguidade clássica grega e romana e de novas técnicas, como a perspetiva. Abundam os temas mitológicos e histó­

Os quadros renascentistas, como os seis que selecionámos, atraem pela sua beleza, e também pela quantidade de símbolos, alegorias e códigos cifrados que contêm. ricos, com símbolos e mensagens cifradas. Aparece o nu. Os grandes mestres são quase todos italianos: Leonardo da Vinci, Rafael, Miguel Ângelo, Giorgione, Bronzino..., mas incluímos aqui também o inqualificável Bosch.


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Alegoria do Triunfo de Vénus. Agnolo Bronzino (1503–1572). O tema deste óleo maneirista é o erotismo que, unido ao ciúme, produz consequências trágicas. A personagem central é Venus, identificada pela maçã de ouro (1). Beija nos lábios o seu filho Cupido, que pousa a mão no seu seio (2), aceitando o incesto. À esquerda, os Ciúmes: o homem que se lamenta, desesperado (3). Poderia encarnar também a sífilis, uma epidemia na Europa da época. Em cima, à direita, está o Pai Tempo, um homem calvo que puxa a cortina com a mão (4) para mostrar a cena e indicar que está na hora de acabar com os jogos amorosos. Por detrás do Prazer Louco (5), o menino que transporta uma mão-cheia de pétalas de rosa, aparece o Engano (6), com o rosto formoso de uma donzela e um corpo de serpente.

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O Sonho do Cavaleiro Rafael (1483–1520) Este óleo sobre madeira foi muito comentado. Os historiadores de arte pensam que se baseia num poema épico do poeta latino Sílio Itálico sobre a Segunda Guerra Púnica. O cavaleiro (1) seria o general romano Cipião, o Africano (236–183 a.C.). Enquanto dorme, sonha com duas mulheres, a Virtude (2) e o Prazer (3). A primeira segura uma espada e um livro (as armas e a sabedoria). A paisagem escarpada com um castelo no alto (4) revela como é difícil conquistá-la. A árvore da vida (5), que parte o quadro em dois, liga as coisas terrenas e as espirituais (o céu). Junto ao Prazer, uma bela mulher com uma flor na mão, símbolo do amor, aparece uma paisagem serena (6). As damas não são rivais desavindas, mas as duas faces da realidade que o cavaleiro tem de harmonizar para encontrar o caminho da perfeição.

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Mantêm-se os temas religiosos, mas dominados Cristo-Vide e Histórias da Vida dos Santos Lorenzo Lotto (1480–1556) Este artista veneziano pintou sobretudo retábulos religiosos. O fresco que aqui vemos decora a capela da villa do conde Suardi, em Trescore Balneario (Bérgamo). Mostra um Cristo de cujas mãos saem grandes ramos de vide (1) que vão formar frutos (2), cheios de retratos de santos e santas. Sobre Jesus, uma inscrição (3) diz, em latim: Ego sum vitis, vos palmites (“Eu sou a vide, vós os sarmentos”). Os cachos de uva simbolizam a Paixão de Cristo. No extremo direito, os padres e doutores da Igreja (a tradição católica) empurram a escada dos vindimadores (4), que representam os reformadores luteranos, com o objetivo de os fazer cair.

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A Tempestade Giorgione (1477–1510) É uma das obras mais enigmáticas e com mais leituras da história de arte. A presença dos quatro elementos (terra, fogo, água e ar) deu azo a interpretações alquímicas. Alguns críticos pensaram que se trata de uma alegoria do poder da natureza, simbolizada pelo raio (1), ao qual se submetem a Força (o soldado, 2) e a Caridade (a mulher, 3). Outros viram uma recriaçao do Éden, com Adão e Eva, que amamenta o filho Caim. O raio seria Deus expulsando-os do Paraíso, e as colunas partidas (4) aludiriam à mortalidade humana, como condenação pelo pecado original. Para outros ainda, trata-se simplesmente de um retrato do pintor e da sua família. Curiosamente, os raios X revelaram que, onde está o homem, Giorgione pintara antes uma mulher nua. Diz-se que Manet se inspirou neste quadro para o seu Almoço Sobre a Relva.

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pela harmonia da paisagem e da figura humana

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A perspetiva focava a atenção do espetador A Anunciação de Ascoli Carlo Crivelli (1435–1495) Depois de ser encarcerado por adultério em 1457 e cumprir seis meses de prisão, o veneziano Crivelli abandona a cidade para sempre. Em 1468, instalou-se em Ascoli, onde pintou esta Anunciação, a sua obra-prima, conservada hoje na National Gallery, em Londres. Os elementos de arquitetura e o efeito de perspetiva reforçado pelas linhas das lajes do pavimento são magníficos. O quadro está cheio de símbolos: o Espírito Santo (1) atravessa o céu e desce para a Virgem (2), que aguarda numa sala onde se veem a cama e uma prateleira. Por cima, há uma gaiola (3) e um pássaro, que simboliza a inocência. O pavão (4) reflete a omnisciência divina (pelos olhos das penas, que lhe permitem ver tudo). Na janela com grades, há um canteiro (5), o hortus conclusus ou jardim fechado, tema clássico da pintura religiosa. Santo Emídio (6), patrono da cidade, tem uma maqueta de Ascoli e surge junto a um anjo (7). As figuras sobre o arco e ao fundo da composição reforçam a sensação de profundidade. Os ornamentos arquitetónicos são uma homenagem ao mundo clássico. Em baixo, dois elementos parecem sair do quadro, para criar um efeito tridimensional: um pepino (8), legume pouco nutritivo, portanto enganoso, diabólico, e uma maçã (9), que alude ao pecado original.

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Coleção a negro

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Pull&Bear Black Label, direcionada ao público masculino mais adulto e cosmopolita da marca, lançou a sua campanha para a nova temporada, apostando na sofisticação mediante desenhos simples, vanguardistas e urbanos. O fotógrafo sueco Andreas Larsson, cujo o trabalho é muitas vezes visto em revistas como Acne Paper, Fantastic Man, Self Service e Dazed&Confused, volta como fotógrafo desta coleção. Através da sua câmara, imortaliza o modelo Isaac Carew numa série de fotografias a preto e branco de simplicidade gráfica, realizadas em Holborn, em pleno centro de Londres, conseguindo através do jogo de luz imagens modernas e naturais. Entre as peças-chave da Pull&Bear Black Label, destaca-se a qualidade especial, assim como os cortes e os acabamentos nos casacos de lã, parkas e bombers extra largos. A coleção também apresenta chinos baggy pelo tornozelo e jeans de corte regular e skinny. Entre as novidades, aparecem os oversize, os extralargos, os tecidos soltos e leves, lãs frias e peças duplas desmontáveis.

Cultura urbana

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Swatch foi estudar para o estrangeiro, mas a marca é demasiado cool para ficar fechada numa sala de aula: licenciou-se em cultura, arte, moda e alegria de viver. O ritmo e o estilo das cidades ouvem-se e sentem-se na coleção outono/inverno 2015, demonstrando que se podem criar peças maravilhosas quando as culturas do mundo se combinam. O tema Tech-Mode é inspirado em elementos mecânicos: moderno, com um sentido de moda cuidado e apurado. SUSM402 Sperulino Novo Chrono Plastic (€105): mostrador verde com índices brancos e bege, data às 3 horas, caixa de plástico cinzento mate, bisel de plástico preto mate com impressão a branco, bracelete de silicone verde texturizada.

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Foto do Mês

Os últimos gibões

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Um estudo conduzido pela Sociedade Zoológica de Londres permitiu compreender um pouco melhor o ritmo de declínio das populações de gibão de Hainan, o símio mais ameaçado do mundo: restam apenas 26 a 28 indivíduos, em quatro grupos separados, um dos quais só foi descoberto recentemente. Procurando referências ao primata nos registos históricos chineses, os investigadores

Conselho de Gerência Marta Ariño, Rolf Heinz, Carlos Franco Perez, João Ferreira Editor Executivo João Ferreira

assinalaram que elas começaram a ser cada vez menos frequentes há cerca de 150 anos, quando se deu uma grande explosão demográfica humana, e praticamente desapareceram nas décadas seguintes: os gibões tinham-se tornado tão raros que ninguém falava neles. Em breve, se não se conseguir definir um plano de conservação que garanta a sua sobrevivência, ficarão limitados ao registo histórico.

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Diretor Carlos Madeira (cmadeira@motorpress.pt) Coordenador Filipe Moreira (fmoreira@motorpress.pt) Colaboraram nesta edição Francisco Mota, Máximo Ferreira e Paulo A ­ fonso (colunistas), Abraham Alonso, Alfredo Redinha, Dario Migliucci, Ernesto Carmena, Isabel Joyce, Joana Branco, João Pedro Lobato, Jorge Nunes, José Miguel Viñas, Luis Otero, Mario García Bartual e Roberto Piorno. Assinaturas e edições atrasadas http://www.assinerevistas.com Sara Tomás (assinaturas@motorpress.pt) Tel.: 21 415 45 50 – Fax: 21 415 45 01

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