Super interessante portugal nº 206

Page 1

N.º 206

00206

Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

Mensal  Portugal € 3,50

www.superinteressante.pt

(Continente)

facebook.com/RevistaSuperInteressante

Vulcões Erupções que alteraram a história

Epigenética A nova arma da medicina Tecnologia Os 10 maiores fracassos

HUMANOS DO FUTURO Como vamos evoluir

5 601753 002096

Junho 2015


2

SUPER


Interessante

3


#HRISTIAN (ORNER $IRETOR DA EQUIPA )Nร NITI 2ED "ULL 2ACING

O TEMPO Sร MUDA QUANDO O DESAFIAS! ACERTO Fร CIL VIA SMARTPHONE ENERGIA SOLAR. EQB-500D-1AER Smartphone-Link Cronรณmetro Duplo Fuso Horรกrio Energia Solar Alarme Phone Finder

www.zagari.pt Procura-nos no facebook www.facebook.com/zagarimystyle

EDIร CE EQB EU PT


206

O triunfo da bacoquice

www.superinteressante.pt

N

ão sabemos o que nos reserva o futuro, em termos de evolução da humanidade, mas uma coisa parece certa: a bacoquice está a aumentar. Eu explico: no final do século XIX, Eça de Queirós insurgia-se contra os pedantes da altura, que não conseguiam dizer uma frase sem meterem pelo meio uma palavra em francês ou inglês. Considerava isso um sinal do provincianismo irremediável do povo português e das suas elites. Hoje, a prática generalizou-se. Já não é preciso ter o azar de tropeçar num pedante, basta andar por aí. A parolice é geral. Vai-se a uma reunião e temos estratégias top-down, ou all-around, ou whatever. Vai-se a um restaurante e da mesa ao lado sobram budgets, reports, targets, deadlines e delays. Vai-se a uma esplanada e brindam-nos com pendões a dizer: “Faz share das tuas rodadas”. Liga-se o rádio e o anúncio à Festa do Cinema Italiano termina com um sonoro “Italians do it better” (ideia genial, não é?). Infelizmente, a doença alastrou em todas as direções: não há projeto universitário que não seja um health-qualquer-coisa ou um blue-blablabla. Uma iniciativa social criada em Portugal por portugueses e para ajudar portugueses chama-se (como é que havia de chamar-se?) Let’s Help. Aqui na SUPER, por princípio, tento evitar assuntos com estes nomes ridículos, mas é cada vez mais difícil, para além de ser praticamente incontornável o uso de termos como smartphone, tablet, fuel cell e outros. Continuaremos a resistir: se querem empurrar-nos, vão ter de fazer muita força. Entretanto, gostaria de fazer uma pergunta aos tolinhos: para que se dão ao trabalho de intercalar palavras em português no meio das outras? Se a língua de Camões é assim tão incapaz para falar de prazos, partilhas ou solidariedade, deem-lhe um tiro na testa e não se pensa mais nisso! C.M.

FOTOGRAFIA

A arte do reflexo PSICOLOGIA

O poder da ilusão EVOLUÇÃO

Os humanos do futuro SAÚDE

A nova arma da medicina GENÉTICA

AGE

ALAN POWDRILL / GETTY

As lições dos gémeos EDUCAÇÃO

No chão das escolas DOCUMENTO

A cor dos oceanos GEOLOGIA

Erupções, os espirros da Terra AMBIENTE Um, dó, li, tá Nem tudo o que somos depende da lotaria genética: os gémeos mostram como o ambiente pode modular a expressão do ADN. Pág. 42

Ver a ria A ria de Aveiro é uma das quatro principais áreas húmidas portuguesas. Para conhecê-la melhor, podemos entrar pelo Baixo Vouga Lagunar. Pág. 70

Assi e c Saúde I Natureza

u c ique!

amento ia I Ambiente I Comport e I Ciência I Tecnolog I História I Sociedad N.º 206 00206

Catástrofe Ao longo da história, as erupções vulcânicas (alguma previsíveis) destruíram cidades, aniquilaram culturas e alteraram a geograia do planeta. Pág. 64

Junho 2015 Mensal  Portugal € 3,50

te.pt www.superinteressan

(Continente)

02096 5 601753 0

ETIENNE DE MALGLAIVE / GETTY

JORGE NUNES

Tons preocupantes Estudando através de satélites a cor dos oceanos, os cientistas são hoje capazes de deduzir o que se passa com o plâncton, base de todo o ecossistema marinho, um dos mais importantes do mundo. Pág. 50

SuperInteressante facebook.com/Revista

Vulcões Erupções que alteraram a história

Epigenética A nova arma da medicina Tecnologia Os 10 maiores fracassos

HUMANOS TURO DO oFU vamos evoluir Com

www.assinerevistas.com

A porta da ria TECNOLOGIA

Junho 2015

22 26 32 38 42 44 50 64 70 78

Os maiores flops ANIMAIS

O primata de juba TECNOLOGIA

Proteja o seu telemóvel TECNOLOGIA

Pânico nas ondas SECÇÕES Observatório O Lado Escuro do Universo Motor Super Portugueses Histórias do Tejo Caçadores de Estrelas Flash Marcas & Produtos Foto do Mês

84 88 92 4 5 8 10 14 18 62 97 98


DARPA / NREC / CMU

Observatório

O

encontro está marcado para 5 e 6 de junho, em Pomona, nos arredores de Los Angeles. Será nessas datas que 25 robôs provenientes da Alemanha, de Itália, do Japão, da China, da Coreia do Sul e dos Estados Unidos testarão as suas capacidades, na final do Robotics Challenge. Promovida pela DARPA, a Agência de Projetos de Investigação Avançada de Defesa, dos Estados Unidos, a competição repartirá 3,5 milhões de dólares em prémios às três equipas cujos engenhos consigam, da melhor forma e sem intervenção exterior humana, conduzir um veículo e sair dele, abrir uma porta, subir escadas, fazer um furo numa parede, manipular uma torneira/válvula de segurança e mover-se entre escombros. A ideia é que, no futuro, estas máquinas possam colaborar com os bombeiros ou as polícias, e que substituam os humanos em situações arriscadas.

4

SUPER

JPL / CALTECH

Duelo de robôs

O CHIMP representa a equipa Tartan Rescue, da Universidade Carnegie Mellon (Estados Unidos). Destaca-se pelos seus impressionantes braços articulados, com três metros de comprimento, e desloca-se sobre lagartas, como os tanques de guerra.

O RoboSimian, também conhecido como Clyde, é um quadrúpede que pode adotar a postura bípede. Os seus criadores, engenheiros do Jet Propulsion Laboratory, do Instituto de Tecnologia da Califórnia, inspiraram-se nos movimentos dos símios.


DARPA

O Lado Escuro do Universo

O telescópio do horizonte de acontecimentos

Q

Os concorrentes ao Robotics Challenge, da DARPA, terão de pôr à prova as suas habilidades como condutores. Em cima, o THOR (Tactical Hazardous Operations Robot), de uma equipa de engenheiros das universidades da Pensilvânia e da Califórnia em Los Angeles.

DARPA

A última versão do Atlas, um androide de 1,9 metros de altura concebido pela Boston Dynamics (depois comprada pela Google) pode deslocar-se em terreno irregular e resiste sem se desequilibrar ao impacto de objetos com até 9 quilos de peso.

uando um carro está próximo de nós, conseguimos ver distintamente os seus dois faróis, mas, à medida que se vai afastando, a tarefa torna-se mais difícil, até que apenas vemos uma única fonte de luz. A capacidade de resolução angular do olho humano é de cerca de um minuto de arco, isto é, 1/60 de um grau. Para se ter uma ideia do que significam estes números, a Lua tem um diâmetro angular de cerca de 30 minutos de arco, ou meio grau – por outras palavras, podíamos encher o céu, de horizonte a horizonte, com 360 luas coladas em linha, umas atrás das outras. Assim, apesar das suas limitações, o olho humano ainda consegue distinguir 1/30 do diâmetro angular da Lua, mas “fatias” mais pequenas começam a confundir-se, tal como os faróis de um carro distante. Obviamente, os telescópios óticos conseguem melhor, com uma resolução angular típica na casa dos 0,5 a 1 segundos de arco (1/3600 de um grau), ou seja, 60 a 120 vezes melhor do que o olho humano. A qualidade do céu e a turbulência na atmosfera levam a que o Telescópio Espacial Hubble seja praticamente imbatível, atingindo resoluções da ordem dos 0,04 a 0,05 segundos de arco, ou seja, cerca de 1500 vezes melhor do que o olho humano. A questão que hoje abordamos tem a ver com a capacidade de distinguir a “fronteira” de um buraco negro, para o que necessitamos de resoluções angulares mais de mil vezes melhores do que as do Hubble. O Telescópio do Horizonte de Acontecimentos (EHT, na sigla inglesa) conta atingir resoluções angulares melhores do que cerca de 40 a 50 microssegundos de arco (cerca de 1,5 milhões de vezes melhor do que o olho humano)! Uma resolução angular impressionante, que poderá, inalmente, permitir testar a Relatividade de Einstein tão próximo do horizonte de acontecimentos quanto alguma vez conseguiremos. O raio de Schwarszchild de um buraco negro obtém-se equacionando a energia cinética de um objeto de determinada massa e a energia potencial gravítica do buraco negro. Quanto a velocidade de escape é igual à velocidade da luz, deine-se o raio de Schwarszchild ou horizonte de acontecimentos: uma vez ultrapassada essa linha divisória, um observador externo não tem acesso a mais eventos, a mais informação que escape do buraco negro. Quanto mais maciço o buraco negro, maior o raio de Schwarszchild. Quanto mais próximo estiver o buraco negro de nós, menor será a resolução angular necessá-

ria para efetivamente conirmar a existência do horizonte de acontecimentos. Assim, o buraco negro supermaciço existente no centro da Via Láctea apresenta-se como o candidato ideal para o EHT. Com cerca de quatro milhões de massas solares concentradas numa região que cabe dentro da órbita de Mercúrio, sabemos que deve existir um buraco negro na região chamada Sagitário A*. Isto porque vemos múltiplas estrelas orbitando um objeto “invisível” misterioso nessa zona da galáxia, como aprendi com Reinhard Genzel, nas minhas aulas de astronomia de infravermelhos, no Instituto Max Planck de Física Extraterrestre. A equipa do prof. Genzel levou décadas a conirmar os resultados, sendo possível observar também gases em queda espiral na região de Sagitário A*, embora não formando um disco de acreção tão óbvio como os de galáxias com núcleos ativos, à medida que enormes quantidades de massa caem para o buraco negro. Nunca foi, porém, observado diretamente o horizonte de acontecimentos de um buraco negro, com toda a relevância que isso tem para entender campos gravíticos em condições tão extremas e, em última analise, para vislumbrar também a natureza da massa escura. Para conseguir tal feito, o EHT conta usar interferometria de base muito longa (VLBI, na sigla inglesa), recorrendo a radiotelescópios localizados por toda a Terra: do deserto do Atacama (com o telescópio APEX, por exemplo) até à Antártida (com o Telescópio do Pólo Sul). Trata-se do maior telescópio virtual alguma vez utilizado na Terra, detetando radiação milimétrica e submilimétrica: as ondas rádio de 1,3 mm escapam do centro galáctico mais facilmente do que as emissões de maiores comprimentos de onda. Os desaios tecnológicos são tremendos, para registar com a precisão do tempo atómico a chegada de fotões a uma antena no Hawai, outra no Novo México, outra ainda em França ou mesmo na base Amundsen-Scot. As imagens precisam depois de ser correlacionadas entre si através de soisticados computadores. Ao longo desta década, o EHT conta juntar progressivamente mais antenas à sua rede interferométrica, até inalmente se atingir o grande objetivo. PAULO AFONSO Astrofísico

N.R. – Paulo Afonso escreve segundo o novo acordo ortográico, embora sob protesto.

Interessante

5


Observatório

Azul sombrio

As redes de pesca capturam sem discriminação, como veriicou este tuburão-raposo, Alopias vulpinus, em águas do golfo da Califórnia.

U

ma investigação coordenada por Douglas J. McCauley, ecólogo da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara, publicada na revista Science, revela um diagnóstico trágico sobre o futuro a médio prazo da biodiversidade marinha: o que se avizinha, segundo as conclusões do estudo, é uma extinção em massa. Os recifes de coral, verdadeiras florestas tropicais submarinas que se encontram entre os mais ricos ecossistemas da Terra, estão a desaparecer a um ritmo vertiginoso. Os oceanos estão a ficar mais ácidos, a uma velocidade sem precedentes. Muitas espécies têm de percorrer longas distâncias para encontrar águas onde consigam sobreviver. A sobre-exploração e o aquecimento global formam uma combinação letal para a saúde oceânica, que se traduz numa ameaça muito concreta para a humanidade. Por outro lado, segundo um estudo divulgado na revista Nature, a subida do nível do mar, devido ao derretimento dos gelos polares, é 25 por cento mais elevada do que se pensava.

6

Aumento das temperaturas

Declínio dos corais

Destruição dos habitats

Uso de redes de arrasto

Migrações das espécies

Prospeção e mineração dos fundos

Segundo a Organização Meteorológica Mundial, 2014 foi o ano mais quente de sempre. A temperatura média global ultrapassou em 0,57 graus os 14 °C da média 1961–1990. A da superfície marinha subiu 0,4 °C.

A combinação de calor e acidiicação é fatal para os corais, que, em zonas como o Caribe, estão reduzidos a metade do que eram em 1970. A lentidão com que se reproduzem e crescem agrava o problema.

Tal como já izemos em terra, estamos a destruir todos os habitats da fauna marinha. Vastas regiões oceânicas correm o risco de se tornarem desertos carentes de vida.

As redes de arrasto varrem o fundo do mar, capturando tudo o que encontram, sejam espécies comerciais ou não. Calcula-se que já tenham causado danos em 52 milhões de quilómetros quadrados.

Os peixes são como as pessoas: quando não há condições no sítio onde vivem, emigram. Sardinhas, anchovas e cavalas estão a rumar a norte, devido ao aquecimento das águas.

A exploração dos recursos minerais junta-se à agressiva busca de petróleo. A Autoridade Internacional dos Fundos Marinhos já deu autorização para prospetar 1,2 milhões de quilómetros quadrados.

SUPER

JEFFREY ROTMAN - CORBIS / ÍCONES: ÓSCAR ÁLVAREZ

Problemas profundos


O que entende por Siri? um assistente pessoal da Apple um caranguejo brasileiro uma fonte tipogrรกfica sueca

te Brevebma en cn as ! n as


Motor

Raio X Toyota Mirai 2

3

Realidade aumentada

A

Mini apresentou o protótipo de um sistema de realidade aumentada que fornece ao condutor informação sobre condução, navegação, conectividade e entretenimento. Vários construtores já oferecem sistemas de head-up display (HUD) capazes de projetar no para-brisas, ou num pequeno ecrã transparente, toda esta informação. A ideia da Mini é fazer isso através de uns óculos para o condutor. Ligados ao carro por Bluetooth, os óculos têm na sua parte superior um processador, sensores de inércia e câmaras de vídeo, utilizados para localizar rigorosamente a sua posição no carro. Nas lentes, estão inseridos dois ecrãs HD estéreo em 3D, e os óculos podem ainda ligar-se à internet via um smartphone, a que se ligam por Bluetooth ou Wi-Fi, tudo isto compatível com eventuais necessidades óticas de cada utilizador, como lentes graduadas ou lentes de contacto. O estilo dos óculos foi feito pela Designworks, uma empresa do grupo BMW, de que a Mini faz parte. As vantagens dos óculos face aos HUD conhecidos é que abrangem a totalidade do campo de visão do condutor, garantindo que nenhuma informação se sobrepõe à visibilidade do trânsito. Há apps que correm nos óculos, dentro e fora do carro, para várias funções, que o utilizador comanda

CARRO DO MÊS

N

8

SUPER

E

através de três botões e de um touchpad incorporados na haste do lado direito. O movimento da cabeça, em algumas situações, pode ativar funções apropriadas, sendo a mais interessante a visão raio X: através de câmaras colocadas na parte exterior do carro, quando o condutor roda a cabeça durante uma manobra de estacionamento, vê nos óculos a zona circundante, incluindo outros carros e passeios. Olhando para a frente, pode ter a informação de condução, como a velocidade, e indicações de navegação, através de setas sobrepostas na estrada, para melhor compreensão. Pode também receber avisos de entrada de SMS, que depois o sistema lê em voz alta. Fora do carro, os óculos continuam a funcionar. Por exemplo, ao olhar para o poster de um evento, o sistema pode detetar a sua localização e descarregá-la na navegação do automóvel. Outro exemplo é a navegação a pé, para aquelas alturas em que é preciso estacionar longe do destino. A Mini não anunciou data de comercialização.

Kia Sorento 2.2 CRDI

unca o segmento dos SUV esteve tão efervescente como agora, razão pela qual nenhum construtor se pode dar ao luxo de deixar envelhecer as suas propostas. A Kia está presente desde 2002 e acaba de lançar a terceira geração do Sorento, um SUV de 4,8 metros. Integrando a grelha “boca de tigre”, que se tornou a imagem da marca sul-coreana, o Sorento não espanta pela estética, que é claramente conservadora. As dimensões exteriores dão-lhe um ar imponente e fazem adivinhar o que está por dentro. O habitáculo tem imenso espaço em largura e comprimento, sobretudo na fila central deslizante. Na mala, existem mais dois lugares desdobráveis, aumentando assim

1

a lotação máxima para sete, mas exigindo aos ocupantes da terceira fila uma certa ginástica. A Kia tem vindo a fazer um trabalho no sentido de aproximar o estilo exterior e interior dos padrões dos modelos europeus, e este Sorento é mais um passo. Os materiais utilizados têm boa qualidade apercebida e há pormenores de desenho no tablier que lhe dão um ar sofisticado, além de a lista de equipamento de série ser muito completa. A motorização disponível em Portugal é um quatro cilindros Diesel 2.2 de 200 cavalos, uma potência acima da média que dá acesso a prestações convincentes mas com uma resposta ao acelerador um pouco brusca. Isto leva a que o eixo dianteiro, o único

m setembro, a Toyota colocará à venda na Europa o Mirai (“futuro”, em japonês), um familiar de 4,9 metros de comprimento e quatro lugares, movido a pilha de combustível (fuel cell). A produção estimada para o primeiro ano é de 400 a 700 unidades, com o objetivo de atingir as 3000 unidades anuais em 2017. 1 – O estilo da frente apresenta duas enormes entradas de ar triangulares, que têm a função de alimentar de ar a pilha de combustível. 2 – A central de comando eletrónico do sistema está localizada no topo do compartimento dianteiro. 3 – O motor elétrico síncrono de corrente alternada está em posição dianteira transversal e transmite os seus 154 cavalos e 335 Newtons-metro de binário máximo às rodas da frente, através de uma caixa de velocidades automática. A velocidade máxima é de 180 quilómetros por hora. 4 – A pilha de combustível de 155 cv está sob os bancos da frente, num posicionamento que permite baixar o centro de gravidade, e tem uma densidade de energia


Opinião

6

Será desta? 7

4

5

superior à das melhores baterias para automóveis elétricos, sendo 50 por cento mais leve do que a pilha de combustível concebida pela Toyota em 2008. Logo à sua frente, está o booster que converte a energia elétrica produzida a bordo para 650 volts. 5 – O primeiro tanque de hidrogénio está localizado sob os bancos traseiros. É feito em três camadas de ibra de carbono e tem uma capacidade de 60 litros,

a uma pressão máxima de 700 bar. 6 – A bateria de hidreto metálico de níquel está posicionada sobre o segundo tanque de hidrogénio, de modo a não prejudicar a capacidade do porta-bagagens. 7 – O segundo tanque de hidrogénio está atrás dos bancos traseiros. Leva 62,4 litros e, em conjunto com o outro tanque, demora três minutos a encher, permitindo depois uma autonomia de 480 km.

motriz neste versão, tenha alguma dificuldade em colocar toda a força do motor no asfalto sem algumas perdas de tração, sobretudo em pisos mais escorregadios, obrigando o ESP a entrar em ação mais do que o esperado. Há uma versão 4x4, mas custa mais 13 300 euros. Com uma suspensão confortável em ruas esburacadas, direção leve e caixa manual fácil de manusear, o Sorento mostra bem a sua vocação familiar, até pela enorme capacidade da mala, que chega aos 605 litros. A Kia tem uma postura comercial muito agressiva, para compensar a falta de notoriedade da marca no nosso mercado, oferecendo uma garantia geral de sete anos e um preço final de 38 988 euros, além de ser classe 1 nas portagens, o que é sempre importante.

O

s automóveis movidos por uma fuel cell (ou “pilha de combustível”, que os engenheiros portugueses escolheram como a melhor tradução para português) têm sido apresentados pelas marcas que neles têm investido como os carros do futuro. Porém, isso já dura há quase vinte anos e a tecnologia ainda não foi além do que a realização de alguns programas-piloto locais. Mais do que o desenvolvimento das soluções técnicas necessárias a bordo, o que tem atrasado esta solução tem sido a produção e a distribuição de hidrogénio, o gás transportador de energia essencial para fazer funcionar uma pilha de combustível. Num mundo ideal, o hidrogénio seria extraído da água através de uma eletrólise alimentada por energia elétrica obtida exclusivamente de fontes renováveis, mas não é isso que se passa. Hoje, o hidrogénio usado para fins industriais provém sobretudo do gás natural, uma fonte fóssil. O ciclo virtuoso de um automóvel que abastece de hidrogénio “limpo” e expele pelo tubo de escape apenas vapor de água ainda é uma utopia, e não se espera que isso mude de um dia para o outro. Há até quem ponha em causa toda a ideia, como é o caso da Tesla, que aposta forte nos automóveis elétricos com bateria e afirma não fazer sentido usar energia elétrica para obter hidrogénio, que depois, na pilha de combustível, reage com o oxigénio atmosférico para libertar energia elétrica, usada para mover o motor elétrico do automóvel. “Porque não usar a energia elétrica diretamente para alimentar um motor elétrico?”, pergunta o líder da Tesla, Elon Musk. A verdade é que o reabastecimento de um tanque de hidrogénio demora apenas três minutos, enquanto as baterias dos automóveis elétricos continuam a precisar de sete a oito horas, numa tomada doméstica, e a autonomia dos fuel cell pode chegar perto dos 500 km. É por isso que os grandes fabricantes continuam a investir nesta tecnologia, como faz agora a Toyota com o Mirai, o primeiro modelo fuel cell a chegar ao mercado. FRANCISCO MOTA Diretor técnico do Auto Hoje

Interessante

9


SUPER Portugueses

O grande peregrino Fernão Mendes Pinto não foi herói nem santo, mas o retrato vivo do povo, nas suas grandezas e misérias. O seu livro, Peregrinação, é uma verdadeira confissão nacional.

V

inte e um anos no Orien te. Treze vezes aprisionado e dezassete vezes vendido como escravo; viajante nas “partes da Índia, Etió pia, Arábia Feliz, China, Tartária, Macáçar, Samatra e outras muitas províncias daquele orien tal ar quipélago”, para não falar do Japão, onde deixou uma recordação que ainda se mantém, já que

10 SUPER

poderá ter sido testemunha da introdução da espingarda naquele país, feita talvez pelo seu compa nhei ro Dio go Zeimoto. Além disso: mercador, espião, diplomata, ladrão e pirata; guerreiro e noviço jesuíta. Que mais lhe faltou? Numa só vida, condensou a aventura dos portugueses no seu império oriental. Não se pode, em curto espaço, fazer-lhe o retrato completo

– e aqui ficam já declaradas as muitas lacunas em que vamos incorrer –, mas podemos, pelo menos, recordá-lo. Antes de mais: é impossível não estabelecer uma comparação entre Fernão Mendes Pinto e Luís de Camões, naquilo que os aproxima e naquilo que os distingue. São contemporâneos, am bos aven tureiros, am bos an da ram pelo Oriente e ambos cantaram o império, mas de modo bem distinto, na forma e no conteúdo. Há, porém, um traço de continuidade: em Os Lusíadas, Camões canta os heróis, evoca a glória e a elevação espiritual da construção do império, ao mesmo tempo que aponta a “apagada e vil tristeza” que era já a sua época; na Peregrinação, Fernão Mendes Pinto aplica uma lupa à tal apagada e vil tristeza e dá-nos, em pormenor, um quadro espantoso desse império onde os ideais já só sobreviviam no espírito de uns poucos, como D. João de Castro, S. Francisco Xavier e, de certo modo, a própria coroa, enquanto o grande corpo nacional estava corroído pela ruim sede do ouro. Passara o tempo do Gama, dos Almeidas e de Albuquerque. Só isto não chega para classificar essa obra magnífica que é Peregrinação, sobre a qual, de resto, se multiplicaram teses e ensaios eruditos, atribuindo-lhe qualidades diferentes, por vezes contraditórias, tal como são diversas as teses sobre a própria personalidade do seu autor.


FERNÃO MENDES PINTO (1510?–1583) António de Faria

N

a Peregrinação, avulta a figura de um certo António de Faria de Sousa, sob cujas ordens Fernão Mendes Pinto terá andado durante algum tempo. Embora só esteja presente numa parte do livro relativamente curta (em relação à extensão da obra), quem ler a Peregrinação não esquecerá este aventureiro, misto de mercador, enviado oficial, corsário, capitão de salteadores, tão expressivo é o retrato que o autor faz desta personagem. Era um bom comandante de homens, velava pelo seu bem-estar; era “naturalmente curioso e não lhe faltava também cobiça”; era astuto, capaz de mentir e dissimular, mas capaz também de atos cavalheirescos de generosidade e piedade. Fernão Mendes Pinto tê-lo-á encontrado em Patane, cidade da península de Malaca (hoje em território tailandês), e, por infortúnios vários, ele, o “pobre de mim”, viu-se levado a integrar-se na companhia (ou no bando…) daquele chefe, que desaparece do livro após ter roubado os túmulos que julgava serem de vários imperadores chineses, mas que eram antes as sepulturas de santos, talvez budistas. Após

Digam o que disserem as teses: para nós, hoje, Fernão Mendes Pinto é indissociável da Peregrinação, que se apresenta como uma autobiografia. O livro, juntamente com três cartas escritas por Fernão Mendes, é ainda a principal fonte que temos sobre a sua vida, e pelo livro sabemos que nasceu em Montemor-o-Velho, “na miséria e estreiteza da pobre casa” de seu pai, e que um tio, querendo encaminhá-lo para melhor fortuna, o levou para Lisboa, teria ele dez ou doze anos, e o pôs ao serviço de uma dama “assaz nobre”. Ano e meio depois, fugiu, por um caso que lhe pôs a vida em risco. O autor não explica mais; segundo parece – veja-se, por exemplo, o comentário de Fernando António Almeida na edi ção de Fernando Ribeiro de Mello (Afrodite, 1989) –, a dama “assaz nobre” em questão era D. Joana da Silva e Castro, casada com Francisco de Faria, alcaide de Palmela; a referida dama teria um amante; o marido soube – e tudo acabou em sangue, incluindo o da adúltera, mas seguir-se-ia o inquérito sobre o pessoal da casa, para apurar cumplicidades; daí a fuga precipitada do jovem Fernão Mendes.

A GRANDE AVENTURA

Este é o prelúdio da grande aventura. Desorientado, o miúdo, na sua fuga, embarca numa caravela que vai largar de Lisboa para Setú-

esse ato, os portugueses, que navegam em várias embarcações, sofrem os efeitos destruidores de uma tempestade; Mendes Pinto e os companheiros veem o barco de António de Faria a afundar-se e, no dia seguinte, não há sinais dele. Este desaparecimento leva-nos, a nós leitores, a deduzir a morte de Faria, de quem não se fala mais. Talvez por isso, alguns estudiosos concluíram que “António de Faria” não é mais do que uma invenção, uma máscara de Fernão Mendes Pinto, mas, em 1971, Eugénio da Cunha e Freitas publicou, nos Anais da Academia Portuguesa de História, o testamento de António de Faria, informando que aquele documento está trasladado numa escritura de doação feita pela Misericórdia de Goa à Misericórdia do Porto. O testamento foi feito em Goa a 2 de junho de 1548 e está assinado por diversas testemunhas – entre as quais S. Francisco Xavier. Ora, Fernão Mendes Pinto data de agosto de 1542 o naufrágio em que Faria desapareceu – portanto, não morreu nele, certamente. Em todo o caso, é estranho que Pinto não mais volte a mencioná-lo; o mistério permanece.

bal, mas durante a viagem o navio é atacado por corsários franceses. Abreviando: Fernão Mendes e mais uns quantos desgraçados acabam por ser abandonados, depois de sofrerem vários maus tratos, na praia de Melides. São socorridos em Santiago do Cacém e Fernão Mendes (“o pobre de mim”, como ele se chama amiúde) consegue chegar a Setúbal. Acabará, quatro anos mais tarde, a servir o mestre de Santiago, que era D. Jorge, duque de Coimbra, filho bastardo de D. João II, mas, já com vinte e tal anos, ele decide que quer mais, quer outra vida, mais próspera. Assim, embarca para a Índia, em março de 1537, na mira de fazer fortuna, como tantos outros. A partir desta data, começa a sua grande aventura por terras do Oriente, narrada na famosa Peregrinação, que ele só viria a escrever muito mais tarde, no princípio da velhice. Antes de mais, falemos do deslumbramento da escrita: o homem era, de facto, um grande escritor, um maravilhoso contador de histórias, com um estilo vivo e fresco, com sentido de humor e penetração psicológica, uma apurada capacidade crítica (incluindo a autocrítica) e a noção exata do suspense. Como se referiu atrás, o que ele nos traça é, antes de mais, o perfil do português do império – não o herói e grande senhor, mas o povo (pequeno fidalgo, mercador, plebeu) que veio

S. Francisco Xavier foi testemunha do testamento de António de Faria.

nas mesmas naus dos heróis: povo fervorosamente cristão, pois claro, mas ansioso de riquezas: “sair eu […] muito rico em pouco tempo, que era o que eu então mais pretendia que tudo”, confessa o próprio Fernão, com desarmante sinceridade. Para isto, valia tudo, ou quase, mas sempre dando graças a Deus. É célebre a cena em que, estando o autor a servir o capitão aventureiro António de Faria, o grupo de portugueses se prepara para atacar e roubar uma embarcação de pacíficos chineses, e Faria dá as suas ordens: atacarão logo que ele disser três vezes “Jesus, nome de Jesus”… Aliás, um dos traços mais fascinantes da Peregrinação é a sua (aparente?) falta de coerência: Fernão Mendes Pinto invoca sempre Deus e a Virgem, ful mi na contra os cultos idolátricos dos brutais gentios e sobretudo contra os “mouros”, como os portugueses de então chamavam aos muçulmanos; ao mesmo tempo, não oculta a sabedoria contida em muitas frases que ouve a esses gentios nem a admiração que sente pelas suas leis e organização; e quanto aos péssimos “mouros”, não deixa de aparecer, de vez em quando, na sua narrativa, um ou outro – seja corsário, seja mercador – que revela ser de bom siso e mostrar grande bondade. Também sobressai no livro a crueldade de costumes, as atrocidades que naquelas partes Interessante

11


SUPER Portugueses

Mentiu ou não?

É

Evocação de Fernão Mendes Pinto no Festival da Espingarda, em Tanegashima.

faziam reis e príncipes, corsários e generais – e os portugueses não escapam à regra, vemo-los a fazer como os outros. Neste aspeto, o livro é uma sucessão de horrores, mas também de atos generosos, de atos de piedade, por vezes de feitos heroicos, tudo isto aplicado, uma vez mais, a portugueses e a gentios. De notar, a propósito, que Fernão Mendes Pinto jamais se gaba de atos de coragem, apesar de ter entrado em combate inúmeras vezes. Há nele orgulho nacional, louva muitas vezes a valentia dos portugueses, mas nunca a sua, individual. E, se há orgulho, há também crítica. Por exemplo, em dois episódios, pelo menos, o grupo de portugueses em que ele estava então integrado dividiu-se em discórdias e lutas – da primeira vez, porque um tal Fonseca se travou de razões com um tal Madureira sobre qual das respetivas famílias tinha mais valimento em Portugal; daí a pouco, estavam todos à bulha por tão importante motivo, o que lhes trouxe graves prejuízos, entre os quais serem muitas vezes açoitados pelas autoridades chinesas. Fernão Mendes Pinto atribui episódios como este ao (mau) génio nacional, e sempre, omnipresente, a cobiça, a sede de riqueza rápida, que levou tantos companheiros seus a perderem a vida.

12 SUPER

conhecida a piada: “Fernão, mentes? Minto!”, que o autor da Peregrinação teve de ouvir dos seus contemporâneos. Aliás, essa fama de mentiroso que lhe deram terá talvez prejudicado ainda a sorte que o livro teve em Portugal. Porém, tal como sucedeu com Marco Polo, provou-se que, afinal, Fernão Mendes Pinto não terá mentido por aí além. É evidente que nem todas as informações que dá são exatas. Não se sabe, aliás, se ele tomou notas enquanto andava pelo Oriente ou se escreveu inteiramente de memória. É certo que baralhou datas e que não pode ter visto pessoalmente tudo aquilo que descreve – ele mesmo, por vezes, no correr do

Enfim, o nosso homem fez fortuna e preparou-se para regressar ao reino. Foi nessa altura que lhe sobreveio a crise espiritual. Conheceu S. Francisco Xavier e colaborou com ele. Depois da morte do santo, deu a sua fortuna aos pobres e à Companhia de Jesus e fez-se noviço. Como noviço, visitou Macau, mas a vocação não duraria muito tempo.

BEST-SELLER TARDIO

Não se sabe por que razão abandonou a Companhia de Jesus. Talvez porque a disciplina não lhe caía bem. Não há pistas sobre um conflito com os jesuítas, embora hoje se ponha essa hipótese. O que é certo é que Fernão Mendes Pinto voltou à vida secular em 1557 e que no ano seguinte embarcou para o reino, após vinte e um anos de ausência. Trazia cartas atestando bons serviços, cartas que, julgava ele, lhe valeriam uma recompensa da coroa; a regente, D. Catarina, não lha negou, mas (então como hoje) a burocracia sabotou-o. Desconsolado, cansado de esperar, Fernão Mendes desistiu. Ainda tinha algo de seu, pois comprou uma quinta no Pragal, perto de Almada. Casou, teve filhas e foi figura importante e respeitada na terra a que se acolheu: por duas vezes o elegeram juiz e desempenhou funções adminis-

Frontispícios de edições alemã, inglesa, holandesa e francesa da Peregrinação.

livro, menciona que lhe contaram isto ou aquilo, mas muito do que ele conta revelou-se exato, tanto no que se refere a acontecimentos como a personagens. Terá, por vezes, exagerado em certas descrições, mas é possível que o tenha feito por deformação da memória e não deliberadamente. É sintomática a sua modéstia em relação à sua própria pessoa e o receio, várias vezes expresso, de que os leitores não acreditem no que ele escreve. Seja como for, o que importa, hoje, é o valor literário do texto e o seu retrato dos portugueses de Quinhentos no Oriente, que, esse, é fiel. Ainda hoje, mesmo que o leitor salte umas páginas, a Peregrinação é um livro a não perder.

trativas (remuneradas) em hospitais ligados à Misericórdia. Veio a falecer em 1583, poucos meses depois de lhe ser atribuída, finalmente, uma tença de dois moios de trigo. A sua Peregrinação, que ele começou a escrever em 1569 e que terminou em 1578, só foi publicada em 1614, possivelmente com algumas alterações – ou do editor, ou da censura, ou dos jesuítas. Em Portugal, o público não se mostrou propriamente entusiasta, embora houvesse edições posteriores, bastante espaçadas, mas, no estrangeiro, as edições multiplicaram-se: o livro foi traduzido para castelhano, francês, holandês, inglês e alemão: um verdadeiro êxito internacional. Para o leitor contemporâneo, não terão grande interesse as descrições fantásticas das terras orientais, hoje conhecidas, nem a história político-militar de reinos e principados, que nem sempre cor responde ao que outras fontes registam, mas interessa, e muito, a vivacidade do estilo e, mais do que tudo, o retrato do português-do-império, que é um pouco, ainda, o nosso retrato, apesar do tempo decorrido e das vicissitudes históricas. JOÃO AGUIAR Este artigo foi publicado originalmente na SUPER 116. João Aguiar faleceu em 2010.


Interessante

13


Histórias do Tejo

Que linda falua

Fragatas do Tejo, nas décadas de 1950 ou 1960 (foto de Artur Pastor).

A canção infantil refere-se a um dos mais típicos barcos do Tejo e ao imposto devido a quem entrava nos portos de Lisboa, para vender verduras, peixe e tudo o mais. No entanto, a falua estava longe de ser o único barco do Tejo.

Q

ue linda falua/ que lá vem, lá vem/ é uma falua/ que vem de Belém/ Eu peço ao senhor barqueiro/ que me deixe passar/ tenho filhos pequeninos/ não os posso sustentar/ Passará, não passará/ mas algum ficará/ se não for a mãe à frente/ é o filho lá de trás.” Ouvida com atenção, esta famosa e aparentemente inocente canção infantil é, na verdade, crudelíssima. Tem origem num antigo costume do Tejo, ainda de contornos bem menos perversos – o tragamalho. Assim se chamava a taxa municipal determinada em 1802, obrigatória para cada barco que arribava a Lisboa, vindo de fora (incluindo freguesias que se encontravam para lá dos limites citadinos e que foram, entretanto, abocanhadas pela capital, como Belém). Claro que o pagamento era feito em dinheiro ou, em alguns casos, em peixe, e não era preciso oferecer um filho. A génese de “tragamalho”, a estranha palavra que definia o imposto, perdeu-se no tempo, mas chegaram a nós algumas tabelas de pagamento do século XIX: segundo uma resolução régia de 1852, os barcos que vinham da zona de Abrantes, Chamusca, Santarém e Benavente desembolsavam 150 reis cada vez que aportavam em Lisboa; os de Vila Franca de Xira, Alhandra, Alverca e Sacavém pagavam 100 reis; as embarcações de localidades mais próximas da capital (Alcochete, Barreiro, Almada, Paço de Arcos e Cascais) ficavam-se por uma avença anual entre os 800 e os quatro mil reis, dependendo do seu tamanho. Até ao fim do século XIX, o Tejo era a grande autoestrada portuguesa, que ligava a metrópole à mais recôndita província, e os barcos

14 SUPER

eram os camiões de antigamente. Em 1877, por exemplo, saíram do cais de Vila Velha de Ródão, junto à fronteira, 632 barcos rumo a Lisboa, carregados de madeira, azeite, trigo, vinho e cereais. No regresso, voltavam com sal, bacalhau e máquinas para as indústrias locais. Havia barcos bem granditos – os que faziam a carreira da Beira Baixa atingiam as 40 toneladas (pouco menos do que as caravelas dos Descobrimentos). Tudo isto, claro, antes da construção das barragens, que espetaram um ponto final na navegabilidade do rio.

DESTRONADAS PELOS VAPORES

Voltando à estrela da canção infantil, a falua era provavelmente o mais típico de todos os barcos do Tejo. Com 15 metros de comprimento e as suas duas velas latinas, ajudadas aqui e ali por dois pares de remos, pertencia à estirpe das fragatas e servia para transportar gente e mercadoria entre as duas margens. Esguias e muito rápidas, chegaram a ter o monopólio da travessia do Cais das Colunas para Cacilhas, até sofrerem a concorrência dos cacilheiros da Companhia dos Vapores, fundada em 1847. A sua utilidade desvaneceu-se com o passar dos anos e viram-se obsoletas no século XX. Este era apenas um dos inúmeros tipos de embarcação que abarrotavam o Tejo na sua época áurea. Ele era catraios, varinos e botes cacilheiros, fragatas, barcos de água acima e galeões a vapor, muletas, bergantins e saveiros, chatas, buques e canoas, bateiras, caravelões e batéis. Isto após o século XVI, porque até aí a tudo se dava o nome de “barca”. Apesar do tráfego pesado do rio moderno, não se vislumbra atualmente mais do que uma

centelha da vida atarefada que borbulhava nestas águas, a toda a hora repletas de barcos e barquinhos. Por volta de 1550, os registos reais contavam 1500 barcos a laborar em Lisboa. A estes somavam-se ainda outras tantas caravelas e naus que atracavam no porto da cidade. Entre tantas embarcações trabalhadoras, os catraios destacavam-se, pode dizer-se, pela sua rebeldia. Mais pequenos do que as faluas, com apenas uma vela, surgiram por alturas do terramoto de 1755 e faziam serviço


Este artigo é uma adaptação de um dos capítulos do livro Histórias do Tejo, de Luís Ribeiro (A Esfera dos Livros, 2013) http://bit.ly/1hrY8Zc

Descalçar a bota

ARQUIVO FOTOGRÁFICO DA CML

O

entre a margem sul e Lisboa, sem regras nem respeito pelos limites de passageiros que o bom senso ditava. Havia sempre lugar para mais um. A cobiça dos catraieiros deu mau resultado demasiadas vezes – botes que não suportavam mais de meia dúzia de pessoas atravessavam o Tejo com o dobro ou o triplo dos passageiros, acabando em várias ocasiões no fundo do rio. A selva que grassava no Tejo obrigou o marquês de Pombal a tentar impor alguma

ordem. Em 1765, o primeiro-ministro do reino preparou um alvará para regulamentar a atividade dos catraios, assinado por D. José. “Eu, El-Rei, faço saber aos que este alvará virem que, sendo-me presentes em consulta do Senado da Câmara os graves inconvenientes que resultam do uso das pequenas embarcações chamadas botes, ou catraios, que de tempos a esta parte se têm introduzido para os transportes que se fazem no Tejo; tendo causado por uma parte frequentes perigos às

Tejo também teve uma embarcação imaginária: a bota flutuante. Conta-se que, há muitos, muitos anos, uma paróquia ribatejana emprestou a estátua de um santo a uma igreja de Lisboa, para ser usada nas festas da cidade. No final, no entanto, para desespero do padre da província, os lisboetas não devolveram a imagem, e não havia maneira de resgatar a peça, porque havia sempre alguém de guarda. Então, alguém teve um plano brilhante: anunciar pela capital fora a invenção de umas botas em cortiça, que supostamente flutuavam e permitiam que qualquer pessoa atravessasse o rio de uma margem à outra, caminhando sobre as águas, tal qual como Jesus Cristo havia feito. Para que os mais céticos dissipassem as suas dúvidas, ia ser feita uma demonstração daí a uns dias. Chegada a data, toda a cidade acorreu ao Tejo, para ver a maravilhosa e estranhamente credível criação – afinal, a ideia era tão simples que até custava a crer que o calçado flutuante só então tivesse sido inventado. Claro está que a igreja do santo alheio ficou vazia de gente, circunstância muito bem aproveitada pelos legítimos donos da imagem. À chegada, o padre lisboeta encontrou, no lugar da estátua, um singelo bilhete: “Descalcem agora esta bota.” E aí nasceu a expressão.

vidas das pessoas que nelas se transportam, não só pela segurança das mesmas embarcações mas também pela ignorância das pessoas que as governam; e pela outra parte destinando-se como mais próprias para as clandestinas conduções, e descaminhos das fazendas de contrabandos. Para cessarem de uma vez os referidos inconvenientes, sou servido proibir, da publicação deste em diante, o uso das referidas embarcações pequenas, permitindo somente o daquelas que são necesInteressante

15


ARQUIVO FOTOGRÁFICO DA CML

Histórias do Tejo sárias para o serviço dos navios. E mando que todas as que ficam excetuadas, em transgressão do disposto neste alvará, sejam logo apreendidas e queimadas por ordem do Senado da Câmara da cidade de Lisboa nas praias a ela adjacentes; e que os proprietários das mesmas embarcações incorram, além da pena do perdimento delas, na de seis mil reis aplicados nas despesas do mesmo Senado, e na de prisão por espaço de vinte dias pela primeira vez, agravando-se-lhes em dobro, tresdobro e mais as referidas penas nos casos de reincidência. […] Que as embarcações que se ocuparem nos transportes que se fazem de Lisboa para Belém, e mais portos da sua vizinhança, sejam construídas na conformidade das formas e medidas que vão declaradas no papel que baixa com este, assinado por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ministro e secretário de Estado dos Negócios da Marinha e Domínios Ultramarinos.”

FRANCESES ENGANADOS

O documento em apenso fornecia as dimensões mínimas para um catraio poder operar legalmente no rio: “Devem as mais pequenas embarcações destes transportes ter de boca [largura] ao menos sete pés [um pouco mais de dois metros]. De comprimento de roda a roda, ao menos 28 pés [8,5 metros]. A popa será larga como a da falua. O rodo da forma será bem redondo à proporção da boca, para poder aguentar.” Depois disto, o Senado ordenou que todos os catraios que não cumprissem estes requisitos fossem ter à praia de Santos, e aí se mandou queimar todos quantos tiveram a ingenuidade de aparecer. A ameaça de apreensão e queima do bote e de uma pena de prisão automática não acabou com os maus hábitos – só aumentou a habilidade dos catraieiros a fintar as autoridades. Mesmo assim, aos poucos, começaram a surgir catraios maiores, com capacidade para 12 a 15 pessoas, rebatizados de “botes cacilheiros”, e os acidentes lá diminuíram. Os catraieiros não tinham grande fama e, justiça lhes seja feita, esforçavam-se por mantê-la rasteira. Um dos momentos que definiram o caráter destes taxistas fluviais foi a retirada do exército francês de Junot, em setembro de 1808, depois de assinada a Convenção de Sintra com os britânicos. A saída de Lisboa fez-se pelo rio, em navios emprestados pelos próprios ingleses, e as tropas napoleónicas estavam autorizadas a abandonar Portugal com as suas armas e bagagens (daí a expressão), mas nem todos se ficaram a rir. Muitos gauleses, incluindo vários oficiais, tiveram o azar de recorrer aos préstimos dos catraios, para poderem embarcar nas fragatas ancoradas no meio do Tejo. O destino destes soldados estrangeiros dependia da obesidade das suas malas: se os

16 SUPER

Varinos do Tejo (foto de Helena Corrêa de Barros).

catraieiros suspeitassem que alguma coisa de valor engordava as bagagens, desviavam-se da rota, desculpando-se com uma qualquer corrente teimosa, matavam os passageiros à traição, atavam os corpos a pesos que houvesse a bordo e atiravam-nos ao rio. Depois, continuavam a viagem rumo à outra margem, escondendo-se durante algum tempo nas florestas a sul de Almada, um pouco mais ricos do que quando haviam zarpado de Lisboa. De certa forma, descontando a barbaridade, estes incidentes não deixavam de exalar uma ligeira fragrância a ironia – é que as malas dos franceses iam, invariavelmente, recheadas de riquezas saqueadas em Portugal. Em certa medida, os marujos do Tejo não faziam mais do que reaver para o país o que ao país pertencia. Embora não conste que acabassem por entregar o produto das pilhagens ao estado, ou mesmo que o distribuíssem pela comunidade…

VARINOS E AVIEIROS

Todavia, o Tejo era povoado sobretudo por gente honesta, e atraía muita gente de outras zonas de Portugal. Como os pescadores de Aveiro e de Ovar, que deram origem ao nascimento de outro tipo de embarcação que se tornou um ícone do rio: os varinos. O nome do barco explica-se da mesma forma que o nome popular das vendedoras de peixe – ovarina era uma mulher natural de Ovar; a primeira letra

perdeu-se pelo caminho, talvez na aglutinação de “ó ovarina!”, que passou a “ó varina!”; lentamente, os termos “varina” e “varino” passaram a designar todas as mulheres e todos os homens ligadas ao mar no litoral norte e, mais tarde, no país. Muitos destes marinheiros da costa migraram para o grande estuário. No início, apenas durante uma temporada por ano, para apanhar sável, aproveitando para fugir ao duro e perigoso inverno no mar. Mais tarde, em princípios do século XX, as famílias começaram a viver definitivamente nas margens do rio. Entre eles, encontrava-se gente de Vieira de Leiria (os célebres avieiros) e de Ovar. Estes últimos popularizaram o tal varino, uma bela fragata originária do Tejo, com cerca de 20 metros de comprimento, de fundo chato (para poder navegar nas águas pantanosas das lezírias) e com a sua característica proa alta e curva. Nos anos 50, construíram-se os últimos varinos e as derradeiras faluas e fragatas. As vistosas embarcações de madeira, à vela, deram lugar aos modernos – e bem mais feios – barcos de fibra, com motor. Os emblemáticos barcos do Tejo foram definhando e apodrecendo, ingloriamente, nas suas margens. A evolução da tecnologia tem destes efeitos secundários. A.R./L.R.


HISTÓRIA | DEZ PERSONAGENS LETAIS |

• Adolf Hitler [1899-1945] • Joseph Goebbels [1897-1945] • Heinrich Himmler [1900-1945] • Hermann Göring [1893-1946] • Reinhard Heydrich [1904-1942] • Martin Bormann [1900-1945] • Albert Speer [1905-1981] • Alfred Rosenberg [1893-1946] • Baldur von Schirach [1907-1974] • Fritz Todt [1891-1942]

PROCURE NUMA BANCA PERTO DE SI (se quiser recebê-la pelo correio, fale com a Sara Tomás: assinaturas@motorpress.pt ou ligue para 214 154 550)

Interessante

17


Caçadores de Estrelas máxima elongação

elongação oeste

elongação este

28o

48o

SOL

Mercúrio

Vénus Terra

SOL horizonte

Oeste

À esquerda, diagrama do que poderemos ver no dia 6 de junho, quando Vénus alcançar a máxima elongação este. As máximas elongações são os ângulos máximos que é possível estabelecer entre o Sol e as órbitas de Mercúrio e Vénus, vistos da Terra. Mercúrio terá uma máxima elongação oeste no próximo 24 de junho.

Elongações e visibilidades

D

as relações que mais frequentemente se estabelecem entre a terra e o céu – como, por exemplo, as coordenadas que utilizamos para marcar posições de pontos na superfície terrestre ou na esfera celeste –, talvez a mais subtil seja a que nos leva a relacionar uma hora com 15 graus, sem nos lembrarmos porquê. É até muito provável que, se acaso pensarmos no assunto, logo se decida desistir por se achar que deve ser “qualquer coisa complexa e, logo, sem interesse para o cidadão comum”. Na verdade, o conhecimento de um facto ocorrido em determinado momento é referido a certa hora que não é igual para todos os lugares da terra, sendo mais tarde do que no local em que nos encontramos se tal lugar se situar para este e, pelo contrário, mais cedo se se tratar de um ponto mais para oeste. Poderíamos pensar simplesmente que os métodos de contar as horas estão de algum modo relacionados com o Sol e que, se ao meio-dia, por exemplo, o Sol está “mesmo em frente a nós” (avista-se na direção de Sul), então já terá passado “em frente” de quem está mais para este, e só passará a sul de quem se encontre mais para oeste uma, duas ou mais horas depois. Com efeito, o que está estabelecido – e que, em geral, todos sabemos mas raramente lembramos – é que, se medíssemos o tempo que decorre entre o momento em que o Sol passa a sul do lugar em que nos encontramos, até voltar a passar, encontraríamos o tempo a que chamamos “dia”, ou seja, cerca de 24 horas. Como não é difícil imaginar uma circunferência a toda a volta da Terra, paralela ao equador, “em frente” da qual o Sol vai “passando”, dir-se-á que é evidente a relação entre as 24 horas do dia e os 360 graus correspondentes à cir-

18 SUPER

cunferência. “Partindo” cada um desses valores em 24 partes, tornar-se-á óbvio que a uma hora correspondem 15 graus e que este valor é a diferença de longitude entre dois lugares que têm – em determinado momento – uma hora de diferença! Assim, num lugar da Terra com 30 graus de longitude inferior à do local onde nos encontramos, são duas horas mais tarde, ao passo que, num outro situado 45 graus a oeste, serão três horas mais cedo. Tal relação (1 h = 15º) é, em alguns casos, utilizada de modo que uma hora não significa “tempo” mas … 15 graus! É o caso de uma coordenada utilizada em astronomia (correspondente à longitude terrestre) a que se dá o nome de “ascensão reta” e numa outra circunstância, talvez menos clara, em que os graus se relacionam com “tempo de visibilidade”. No seu movimento em volta do Sol, os planetas descrevem uma trajetória que, embora seja elíptica em todos os casos, ao ser reduzida para o tamanho de um desenho, não pode ser outra coisa se não “uma circunferência extraordinariamente perfeita”. Tomando os dois planetas com órbitas interiores à da Terra (Mercúrio e Vénus) e conhecidas que são as distâncias entre eles e o Sol, é fácil deduzir que, vistos da Terra, eles não se poderão deslocar – para a direita e para a esquerda da linha segundo a qual avistamos o Sol – mais do que um certo valor: 28 graus para Mercúrio e 48 graus para Vénus. Significa isso que, se em certa data, a seguir ao pôr do Sol, virmos que Vénus está a, aproximadamente, 45 graus para a esquerda, diremos que está “o mais afastado possível” – chamamos a isso a “elongação máxima” – e esperaremos que, passada uma hora, o planeta se encontre a apenas 30 graus do horizonte,

outra hora passada se veja a apenas 15 graus e, outra hora depois, tenha o seu ocaso. Feitas as contas, os 48 graus de elongação corresponderam a um “tempo de visibilidade” de três horas e mais uns poucos minutos. De igual modo, se o planeta se avistar à direita do Sol (elongação oeste), ele não será avistado à noite mas sim de manhã, antes do nascer do Sol, durante um tempo que estará relacionado com o valor da elongação: três horas antes do nascer do Sol se a elongação for de 45 graus, duas horas se for de 30 graus, uma hora para 15 graus e tempos intermédios se os valores das elongações se situarem entre estes. Ora, neste dia 6 de junho, Vénus alcançará a sua “elongação máxima este”, o que significará que o ângulo entre a direção em que avistamos o Sol e aquela em que vemos o planeta é de 45 graus, do que resulta um período de visibilidade de três horas após o ocaso do Sol. É sabido que nunca poderá ser mais e que, daqui a uns meses, quando a elongação for “oeste”, Vénus estará à direita do Sol, ver-se-á de manhã, e nunca mais do que três horas antes de “nascer o dia”. No dia 24, será a vez de Mercúrio alcançar a “elongação máxima oeste”, daí resultando a sua visibilidade de madrugada, e durante um tempo que nunca chegará a duas horas. Desta vez, o mais pequeno planeta que podemos observar à vista desarmada avistar-se-á ao lado da estrela Aldebarã, do Touro, ligeiramente “abaixo” do enxame das Plêiades, uma bela parte do céu que se vai tornando progressivamente mais visível nas madrugadas de verão. MÁXIMO FERREIRA Diretor do Centro Ciência Viva de Constância


NASA/JPL-CALTECH/SSI

O SENSOR COMANDA A VIDA?

Saturno já é agora visível, logo que o Sol se esconde. Aqui, o planeta dos anéis fotografado pela sonda Cassini, com o seu maior satélite, Titã, em primeiro plano.

O céu de junho

P

raticamente a entrar no verão, são as constelações dessa estação do ano que constituem o “pano de fundo” sobre o qual se projetam os astros errantes, que – embora com posições bem diferentes de ano para ano – vão proporcionando circunstâncias interessantes que podem chamar a atenção de quem se habituar a, de vez em quando, olhar a esfera celeste e perceber que um ou outro ponto luminoso se coloca ao lado de alguma estrela que, noutra ocasião, não tinha tal companhia. Júpiter – quase estático – continua na direção da constelação do Caranguejo e, muito lentamente, prepara-se para passar os limites desta constelação e entrar na do Leão. Muito mais veloz no seu passeio, Vénus deixará, em poucos dias, a região dos Gémeos para fazer companhia a Júpiter e ultrapassá-lo mesmo, no inal do mês. Então, o astro mais brilhante de todo o céu – exceção feita ao Sol e à Lua – colocar-se-á à esquerda de Júpiter, até que, passado pouco mais de um mês, parecerá arrepender-se e inverterá o sentido do seu deslocamento. No dia 20 de junho – deste ano –, Vénus, Júpiter e a Lua constituirão (no princípio da que será a última noite de primavera), uma espécie de triângulo, de tamanho aparente tão pequeno que os três caberão no campo de um binóculo vulgar. Signiica isso que, apontando um binóculo na sua direção, será possível ver os três simultaneamente. É verdade que dos planetas não se verá mais do que os pontos de brilho intenso, ao contrário do que sucede com a Lua, que mostrará detalhes interessantes, quer das zonas claras e escuras, quer de montanhas e crateras. Saturno – agora já visível acima do horizonte mal o Sol se esconde – vai receber a visita da Lua quando esta se apresentar com o aspeto de “primeira giba”, o que sempre acontece em data intermédia entre o Quarto Crescente (24/6) e a Lua Cheia (2/7). Naturalmente, o decorrer da noite fará todo o céu parecer rodar de este para oeste, razão por que os Gémeos e o Caranguejo mergulharão no horizonte, “levando” consigo os planetas (e a Lua, quando ela se projetar naquela região da esfera celeste), enquanto no lado oposto Saturno se eleva, “trazendo” consigo o Escorpião, constelação que os observadores poderão ver, nos próximos meses, durante toda a noite, primeiro mais perto do horizonte, e depois com alturas que serão progressivamente maiores. No lado norte, é agora difícil ver a Cassiopeia, constelação que, ao princípio das noites, se encontra a rasar o horizonte, circunstância que os astrónomos designam “culminação inferior”, em oposição à “culminação superior”, que, sensivelmente no mesmo momento, está a acontecer com a Ursa Maior.

QUATRO GRANDES TEMAS EM DEBATE:

12 JUNHO CASA DA MÚSICA PORTO

EU DIGITAL VIDA INTELIGENTE ECONOMIA 2.0 REPÚBLICA DIGITAL

VIDA INTELIGENTE ELLEN JORGENSEN ANA PAIVA DIOGO QUEIROZ DE ANDRADE 20€ PREÇO GERAL 3€ PREÇO ESTUDANTE À VENDA EM:

FFMS.PT | WORTEN | CASA DA MÚSICA PARCEIRO

APOIOS INSTITUCIONAIS

MEDIA PARTNER

APOIOS


Mapa do Céu Como usar Vire-se para sul e coloque a revista sobre a cabeça, de modo que a seta ique apontada para norte. Se se voltar em qualquer das outras direções (norte, este, oeste), pode rodar a revista, de modo a facilitar a leitura, desde que mantenha a seta apontada para norte. Os planetas e a Lua estarão sempre perto da eclíptica. O céu representado no mapa (no que se refere às estrelas) corresponde às 21.30 horas do dia 5. A alteração que se veriica ao longo do mês, à mesma hora, não é muito importante. No entanto, com o decorrer da noite, as estrelas mais a oeste irão mergulhando no horizonte, enquanto do lado este vão surgindo outras, inicialmente não visíveis.

As fases da Lua

Lua Cheia Quarto Minguante Lua Nova Quarto Crescente

20 SUPER

Dia 2 às 17h19 Dia 09 às 16h42 Dia 16 às 15h05 Dia 24 às 12h13


NORTE

Interessante

21


Fotografia

Imagens surpreendentes do eco visual

A arte do REFLEXO Usar a água ou outras superfícies refletoras para conseguir composições e efeitos curiosos ou inesperados é um clássico entre os fotógrafos. Reunimos uma pequena galeria de algumas das melhores fotografias à base de reflexos. 22 SUPER


BENCE MATE / NATURE PL

PAUL HOBSON / NATURE PL

Espanto. Rã-verde-de-olhos-vermelhos (Agalychnis callidryas), em Santa Rita (Costa Rica). O habitat deste anfíbio abarca toda a América Central, do sul do México até à Colômbia. FRANK KRAHMER / MASTERFILE

Almas gémeas Dois ursos-pardos (Ursus arctos) comem relva e bebem placidamente junto a um lago da Finlândia. Estes grandes mamíferos vivem nas lorestas setentrionais da Europa, da Ásia e da América do Norte.

De tiritar O monte Grinnell (2699 metros de altura) relete-se nas águas do lago Swiftcurrent, um dos 130 existentes no Parque Nacional dos Glaciares (Montana). Este vasto ecossistema situado no noroeste dos Estados Unidos, na fronteira com o Canadá, foi moldado pelos glaciares da última idade do gelo.

Interessante

23


F. LUKASSECK / MASTERFILE

Escala humana. As águas de um rio da Baviera espelham esta casa-moinho com o característico entramado de madeira das casas típicas alemãs.

ANDY ROUSE / NATURE PL

A simetria é fulcral numa boa composição

Felino nadador Um jaguar (Panthera onca) no Belize. Embora semelhante ao leopardo, pela sua aparência física, os hábitos deste felino são mais parecidos com os do tigre, pelo seu caráter solitário e por gostar de água.

24 SUPER


AGORA MAIS FÁCIL

ASSINE A

www.assinerevistas.com LINHA DIRETA ASSINANTES

✆ 21 415 45 50 PEÇA A SUA REFERÊNCIA

2ª A 6ª FEIRA, 9H30-13H00 E 14H30-18H00 [Fax] 21 415 45 01 [E-mail] assinaturas@motorpress.pt

* Valor por exemplar na assinatura por 2 anos. Promoção válida até à publicação da próxima edição.

Sim, quero assinar a Super Interessante durante:

1 ano 25% desconto por 31,50€ (ex. 2,63€) 2 anos 35% desconto por 54,60€ (ex. 2,28€) (oferta e preços válidos apenas para Portugal)

Favor preencher com MAIÚSCULAS Nome

Morada Localidade

Telefone Data de Nascimento

Código Postal

e-mail -

-

-

Profissão

Já foi assinante desta revista?

Sim

Não

Se sim, indique o nº

NIF

(OBRIGATÓRIO)

MODO DE PAGAMENTO válido até

Cartão de Crédito nº

-

CVV

Indique aqui os 3 algarismos à direita da assinatura no verso do seu cartão NÃO ACEITAMOS CARTÕES VISA ELECTRON

Cheque nº

no valor de

,

€, do Banco

à ordem de G+J Portugal

Remessa Livre 501 - E.C. Algés - 1496-901 Algés Para autorização de Débito Direto SEPA entre em contacto através do email assinaturas@motorpress.pt ou através do telefone 214 154 550

Valor das assinaturas para residentes fora de Portugal (inclui 20% desconto) 1 Ano 12 Edições - Europa - 54,66€ - Resto do Mundo 67,74€ Ao aderir a esta promoção compromete-se a manter em vigor a assinatura até ao final da mesma. A assinatura não inclui as ofertas de capa ou produtos vendidos juntamente com a edição da revista. Os dados recolhidos são objeto de tratamento informatizado e destinam-se à gestão do seu pedido. Ao seu titular é garantido o direito de acesso, retificação, alteração ou eliminação sempre que para isso contacte por escrito o responsável pelo ficheiro da MPL. Caso se oponha à cedência dos seus dados a entidades parceiras da Motorpress Lisboa, por favor assinale aqui Caso não pretenda receber outras propostas comerciais assinale aqui

Interessante

87

SI 206


Psicologia

Somos o que pensamos ser?

O poder da ILUSÃO O

“vírus” da selfie, o autorretrato digital muito associado às redes sociales, já fez as primeiras vítimas, como o casal polaco que morreu diante dos filhos quando se preparava para se fotografar à beira de uma ravina de 80 metros, no cabo da Roca, em Sintra. Mesmo sem chegar a tais extremos, a febre do fenómeno infetou tamanha quantidade de pessoas que até já foram criadas regras para as selfies. Num artigo recente publicado na revista Popular Science, o jornalista Mark McKenzie oferecia conselhos sobre se era ou não conveniente introduzir determinada foto em certos sites da internet.

26 SUPER

Qual o segredo do êxito desta moda? Terá a ver com uma maior necessidade de nos conhecermos física e psicologicamente? De modo algum. Trata-se, sobretudo, de uma demonstração do poder de nos acharmos mais bonitos do que somos. É o mesmo fenómeno que explica que adotemos determinada pose (que sabemos favorecer-nos mais) quando nos olhamos ao espelho. Não procuramos ver-nos tal como somos, mas como gostaríamos de ser. A introdução de novos elementos tecnológicos (agora, todos os telemóveis oferecem a opção “autorretrato”) só serve para nos ajudar nessa “maquilhagem mental”. Vivemos numa sociedade cada vez mais indi-

MAKI GALIMBERTI

Somos marionetas do nosso cérebro, que filtra a realidade para nos podermos ver não como somos, mas como desejaríamos ser. Essa velha característica humana vive a sua época dourada na era das selfies e das redes sociais.


Interessante

27


A maior parte das pessoas pensa ser melhor do que as outras

Vigoréxicos desesperados Ao chegarmos à adolescência, começa a importar-nos o aspeto físico como caminho para sermos aceites e admirados. Essa necessidade pode chegar ao ponto de desenvolvermos uma obsessão com o físico que nos acompanhará toda a vida.

vidualista. Neste tipo de culturas, que o psicólogo Geert Hofstede descreveu como ideocêntricas, vê-se com bons olhos a autopromoção e fazer de cada momento da nossa vida algo muito importante para os outros. Autorretratar-se da forma mais atraente possível e na situação mais favorável, e introduzir depois a foto nas redes sociais, é muito adaptativo para o indivíduo. Contudo, para os que observam, não é geralmente assim, como assinalou o estudo Envy on Facebook – A Hidden Threat to Users’ Life Satisfaction (“A inveja no Facebook: uma ameaça oculta à satisfação dos utilizadores com a sua vida”). Esta investigação de duas universidades alemãs concluiu que uma em cada três pessoas se sente mais insatisfeita com a sua existência depois de visitar este site na internet, pois vê a inveja aumentar.

CORRIDA AO EGO

Algo de semelhante acontece com a selfie: torna-nos competitivos. Se me achar mais bonito, considero-me mais atraente do que sou, o que tem como consequência fazer-me sentir melhor. Esta corrida infinita rumo ao ego fomenta uma sociedade em que cada vez nos fotografamos mais e nos conhecemos menos. Desde que Sócrates criou a máxima “Conhece-te a ti mesmo”, muitos defenderam a hipótese de que, se conseguirmos ver-nos com objetividade, seremos mais felizes. No entanto, outros afirmam que “a vida é a arte de se saber enganar”, como escreveu, com cruel ironia, o ensaísta inglês William Hazlitt, no final do século XVIII. Estudos modernos parecem dar-lhe razão: Hazel Rose Markus, psicóloga da Universidade de Stanford (Estados Unidos), afirma que existem na nossa mente dois “eus” que nos proporcionam energia e nos guiam para os nossos objetivos. O primeiro é o Eu Desejado, aquele que ansiamos ser (cada um tem o seu, com as suas características: bonito, rico, bem-sucedido, boa pessoa, popular...). O segundo seria o Eu Indesejado, composto pelos traços que queremos evitar a todo o custo (derrotado, feio, mau, marginalizado...). Numa das suas experiências, Markus comprovou o poder dessas imagens para nos guiar: os estudantes de medicina que tinham uma imagem clara de si próprios como grandes profissionais de saúde (o seu Eu Desejado) obtinham melhores notas. Para conseguir que a sua autoimagem idealizada lhe sirva de guia, o homem do século XXI

28 SUPER

necessita de criar um duplo imaginário quase perfeito. Os cientistas Nicholas Epley, da Universidade de Chicago, e David Dunning, da Universidade de Cornell (ambas dos Estados Unidos), reuniram estatísticas que refletem essa inflação do ego. Os dados revelam que quase todos os executivos acreditam ser mais éticos do que a generalidade dos colegas, que 90 por cento dos professores universitários qualificam o seu desempenho como superior ao dos outros, e que 96% dos condutores se sentem mais capazes na estrada do que os restantes. Emily Pronin, professora da Universidade de Princeton (Estados Unidos), incidiu nessa característica humana ao descobrir que a imensa maioria das pessoas pensa que é mais imune do que os outros relativamente à tendência para sobrevalorizar as suas qualidades. Nem nesse ponto conseguimos ver-nos com objetividade!

NO CENTRO DO MUNDO

Por que será que se produzem estes desvios na perceção de si próprio? Para começar, achamos que os outros estão dependentes do que fazemos. O psicólogoThomas Gilovich, da Universidade de Cornell, é um estudioso do que poderíamos denominar “Efeito Foco”, a inclinação para crer que quem nos rodeia nos avalia incessantemente. A fim de analisá-lo, propôs a estudantes voluntários vestirem uma

T-shirt do cantor Barry Manilow (em voga, na altura) antes de entrarem numa sala onde estavam presentes colegas. A perceção do “Efeito Foco” foi nítida: mais de metade dos que vestiam a T-shirt pensaram que todos tinham reparado na peça de roupa, embora, na realidade, apenas 23% a tivessem notado. Em todas as experiências de Gilovich, observa-se o mesmo exagero da pressão social. A realidade é que as pessoas dão muito menos atenção do que pensamos ao nosso aspeto físico, aos nossos erros, às nossas mudanças e à nossa forma de fazer as coisas. Contudo, o sentimento subjetivo de pressão é suficiente para influenciar a imagem que temos de nós próprios. Numa experiência recente, foi colocada esta pergunta a 50 pessoas: “Se pudesse mudar uma parte do seu corpo, qual seria?” As respostas dos adultos revelaram a pressão que acreditam sentir: “Apenas uma?”; “Os meus olhos rasgados, porque toda a gente gosta de raparigas de olhos grandes”; “As estrias com que fiquei depois de ter dado à luz”; “As minhas orelhas grandes, que fazem os outros troçarem de mim e chamarem-me Dumbo”... Todavia, as crianças respondem com base em parâmetros completamente pessoais, não ditados pelas opiniões alheias: “Queria ter uma cauda de sereia”; “Queria uma boca de tubarão, para poder comer muitas coisas”; “Queria


SHUTTERSTOCK

Conhece-se a si mesmo? COREY JENKINS / GETTY

A

orelhas pontiagudas”; “Gostaria de ter asas para poder voar”… Algumas chegaram a responder que nada queriam mudar. Esta diferença confirma que, com o passar dos anos, a tirania da opinião alheia quebra a harmonia e altera a nossa visão. Nas consultas de psicologia clínica, não se registam problemas com o corpo quando se é criança. Até chegar a adolescência (a idade complicada em que os outros começam a exercer maior influência sobre nós), aceitamos os nossos traços físicos sem problemas; cuidamo-nos sem ficarmos obcecados e sem maltratar o corpo. É durante a juventude que surgem os problemas. A maior parte dos fenómenos negativos produzidos por uma autoimagem negativa afeta essa etapa vital. Aparecem distúrbios graves, como a anorexia, a bulimia, a vigorexia ou a obsessão pela estética. Os “óculos de aumentar” que nos obrigam a usar distorcem a forma como nos olhamos. Além disso, a adolescência é a etapa em que a opinião do resto das pessoas sobre o nosso físico começa a preocupar-nos, e fá-lo de modo intimidante. Esta fase caracteriza-se por ser gregária. Dependemos, em quase todas as questões, da opinião dos amigos, do grupo, da tribo urbana ou do coletivo com o qual nos identificamos. Num estudo recente, chegou-se à conclusão de que a reputação social do jovem explica, em grande parte, o seu maior ou menor senti-

capacidade de nos enganarmos a nós próprios pode levar-nos a forjar uma imagem distorcida mas que fomenta a nossa autoestima. A sua ausência conduz-nos ao realismo, à consciência dos nossos defeitos e à capacidade de transformação, mas também à insegurança. Propomos-lhe este teste para que possa averiguar o seu grau de autoconhecimento. Responda com a maior sinceridade às 20 perguntas e escolha uma opção entre 0 e 5. 0 signiica que a frase não se aplica em absoluto neste momento da sua vida; 1, que se identiica em raras ocasiões; 2, que a pode aplicar a si próprio em determinadas circunstâncias mais ou menos habituais; 3, que deine a sua forma de ser em muitas ocasiões; 4, que se identiica quase sempre com a frase; 5, que está totalmente de acordo com a airmação. 1. Quando ico a saber o que os outros dizem de mim em segredo, entendo geralmente a razão das suas airmações. 2. Quando é necessário, exagero propositadamente as minhas virtudes para alcançar certos objetivos. 3. Tenho consciência de uma grande quantidade de coisas que não me agradam em mim próprio. 4. Aprendo coisas sobre mim que me surpreendem. 5. Sei melhor o que quero ser do que o que não quero ser. 6. Gosto de ouvir opiniões sobre mim e conselhos dos outros. 7. As pessoas próximas dizem coisas de mim que não me agradam. 8. Aceito partes do meu modo de ser que não me agradam porque estão associadas a algumas das minhas virtudes.

9. Creio que há poucas coisas em que o meu desempenho é superior à média. 10. Dou-me bem com pessoas que me fazem críticas. 11. Estou longe de me assemelhar ao meu “Eu ideal”, isto é, a como gostaria de ser. 12. Não gosto de perder o controlo, pois sei que há partes de mim próprio que sei não agradarem aos outros. 13. Não costumo comparar-me com as pessoas: entendo que cada um evolui dentro da sua própria forma de ser. 14. Poderia citar dez aspetos de mim próprio de que não gosto. 15. Sei que partes da minha forma de ser me levaram a afastar-me de relacionamentos e amigos. 16. Sinto-me responsável por uma grande quantidade de erros. 17. Por vezes, tenho reações de tristeza ou ansiedade. 18. Não acho geralmente estimulantes as pessoas que me admiram. 19. Penso que os outros não me costumam julgar, que têm coisas mais importantes em que pensar. 20. Há coisas de mim próprio que me fazem sentir inseguro. RESULTADOS Some as pontuações. O resultado reletirá a sua percentagem de autoconhecimento. Por exemplo, se somar 20 pontos, isso signiica que apenas conhece 20 por cento de si mesmo. Se a soma for de 80, “conhece” com objetividade 80% dos seus problemas, defeitos e virtudes. O segredo reside em saber utilizar esse cocktail para melhorar o que pretende mudar e tirar partido daquilo de que gosta em si próprio, sem se castigar nem icar deprimido pelo que faz mal.

Interessante

29


PAUL SCHUTZER / GETTY

A soberba do líder

J

ohn Fitzgerald Kennedy foi, talvez, o político mais carismático na história do mundo moderno. Como personagem de ficção, é o governante que mais filmes e séries de televisão motivou. É quase inevitável uma referência ao presidente em qualquer argumento que decorra no início da década de 60. Como objeto de culto, poderia gabar-se de haver dezenas de museus que lhe são dedicados, mesmo num local tão distante dos Estados Unidos como Berlim, e de ser o único governante que também conhecemos pelas suas iniciais, como se fosse um rapper de êxito. Deve ter sido uma dessas pessoas a quem a pressão social acabou por dar uma visão distorcida e superior de si própria. É esta a razão esgrimida por um dos seus assessores, o historiador Arthur M. Schlesinger, no livro Os Mil Dias de Kennedy, para explicar o fracasso da invasão da baía dos Porcos, em Cuba, em abril de 1961. Nas reuniões prévias dos seus conselheiros, todos os dados apontavam para o fracasso da operação. Porém, Kennedy estava rodeado de amigos lisonjeiros, pois tinha afastado os mais críticos dos seus colaboradores, e não extraiu as conclusões adequadas dessas informações. Como recorda Schlesinger, “os que rodeavam o presidente acreditavam que ele era uma espécie de rei Midas que transformava em ouro tudo aquilo em que tocava”. Allen Dulles e Richard Bissell, altos funcionários da CIA que tinham prosperado adulando políticos, disseram a Kennedy que haveria uma insurreição armada contra Fidel Castro após o desembarque na baía dos Porcos, pois todo o povo cubano estava rendido ao encanto da sua igura presidencial. Ninguém se atreveu a negar essas airmações, pois venceu a tendência para bajular o mito. A ilusão de unanimidade conduziu a uma decisão descabida que não era, na realidade, partilhada pela maioria dos assessores quando interrogados individualmente, como fez Schlesinger.

30 SUPER

Anti-selfie. Rembrandt van Rijn (1606–1669) deixou mais de 80 autorretratos, entre óleos, gravuras e desenhos. O seu objetivo era muito diferente do das selies de hoje: o pintor holandês deixou um testemunho em carne viva da sua personalidade e reletiu os seus defeitos físicos e a deterioração da idade naquelas obras, que lhe serviam como meio de conhecimento.

A autoilusão funciona como forma de adaptação ao grupo mento de solidão, a sua autoestima e o grau de satisfação com a vida. Essa reputação depende em grande medida, como vimos, da forma como ele se vê a si próprio. Sentir-se melhor do que se é verdadeiramente ajuda a satisfazer as expectativas do grupo de referência, o que transforma a autoilusão num fator positivo para determinados indivíduos. Porém, também pode promover muitos dos seus conflitos com o corpo. As anoréxicas, para não irmos mais longe, colocam em perigo a própria saúde e mesmo a vida pelo seu excessivo perfecionismo, por sentirem que a sua beleza depende de estarem cada vez mais magras.

SUPERIOR POR DESVALORIZAÇÃO

Outro dos problemas da autoimagem narcisista é que os seres humanos funcionam por comparação. Nesse sentido, há uma forma simples de nos acharmos superiores: desvalorizar os outros. Essa visão deturpada está subjacente em múltiplos conflitos, desde a violência conjugal ao racismo e ao sexismo. Por último, o grande risco da falta de objetividade é a dificuldade em aceitar as opiniões alheias. As pessoas com uma elevada opinião de si próprias reagem muito mal às críticas. Para demonstrá-lo, os psicólogos sociais Brad Bushman, da Universidade do Michigan, e Roy

Baumeister, da Universidade da Flórida, pediram aos voluntários da experiência que respondessem a pessoas que elogiavam um texto escrito por eles, e também a outras que o criticavam. Antes disso, um dos grupos de voluntários vencera um jogo, o que lhes permitia sentirem-se superiores ao adversário, enquanto o outro tinha perdido. Os primeiros, aqueles que tinham visto sair reforçada a imagem de si próprios por terem ganho, responderam com grande agressividade às críticas, com o triplo da violência dos vencidos. Algo de semelhante ocorre com muitas personalidades famosas, desde políticos a banqueiros, que passam pelos tribunais acusados de corrupção. A ausência de sentido de culpa pode parecer surpreendente, como se continuassem a manter uma imagem positiva de si próprios. A sua incapacidade para se verem como mais um elemento da sociedade e para aceitar as críticas levou-os a considerarem-se uma espécie de super-homens invulneráveis e acima das leis, algo também promovido pelos seus bajuladores. Assim, embora acharmo-nos melhores do que somos possa parece uma boa tática vital, trata-se, no fundo, de um suicídio social. O peso do ego pode derrubar-nos para sempre. L.M.


Interessante

37


Evolução Como vamos mudar nos próximos séculos

Os humanos do FUTURO N

os últimos 150 anos, desde que o naturalista inglês Charles Darwin desbravou os caminhos da evolução com as suas extraordinárias intuições, os cientistas conseguiram compreender cada vez melhor a nossa própria espécie. O processo, como com qualquer outro ser vivo, desenrolou-se ao longo de milhões de anos e remonta a um misterioso e longínquo antepassado que partilhamos com outros primatas. Foi apenas nas últimas décadas que os biólogos evolutivos desvendaram alguns dos complexos mecanismos que nos configuraram tal como somos atualmente. No entanto, é ainda mais complicado tentar adivinhar como será o nosso futuro. Continuaremos a evoluir? Teremos alguma intervenção no processo? Como serão os seres humanos depois de passarem umas quantas gerações de mutações naturais, ajustamentos genéticos e alterações biotecnológicas? Haverá algum consenso científico para além da especulação?

MUNDO GLOBALIZADO?

Durante séculos, persistiu uma acentuada corrente antropocentrista tanto no mundo religioso como no científico. Conduzia à conclusão de que a humanidade representava o apogeu da evolução. Esse facto significava, essencialmente, que não podia suceder qualquer novo progresso; o homem, concebido como máquina e criatura perfeitas, alcançara o seu estádio ideal. Como afirmou o naturalista britânico Alfred Russel Wallace (1823–1913), “a evo-

32 SUPER

lução trabalhou durante milhões de anos no desenvolvimento de numerosas formas de vida e de beleza, para culminar finalmente em nós”. Embora, nos nossos dias, este tipo de pensamento baseado em preconceitos tenha sido totalmente desconstruído, numerosos estudiosos partilham a ideia de que os seres humanos de amanhã não serão assim tão diferentes dos de hoje, embora partam de raciocínios muito diferentes dos do passado. O antropólogo britânico Ian Tattersall, conservador emérito do Museu de História Natural dos Estados Unidos, assegura que a evolução apenas se desenrola quando as espécies vivem em pequenos grupos, precisamente o oposto do que acontece num mundo cada vez mais globalizado como o da humanidade atual. Em suma, atualmente, já não se verificariam as condições fundamentais para a natureza humana continuar a modificar-se. Steve Jones, especialista em genética e meio ambiente do University College London, vai ainda mais longe: na sua opinião, a medicina avançada de que dispomos no nosso tempo permite que sobrevivam e se reproduzam mesmo os indivíduos mais fracos, de modo que a seleção natural, elemento fundamental para se produzirem os processos evolutivos tal como os entendemos, teria perdido toda a sua força. Além disso, Jones recorda que as mutações ocorrem habitualmente quando os homens concebem filhos numa idade muito avançada, o que acontece com cada vez menos frequência atualmente. Pelo menos no Ocidente, os

homens têm geralmente filhos por volta dos 30 anos, o que implica que transmitem três vezes menos mutações à sua descendência relativamente a um pai de cinquenta anos. “Antigamente, era muito mais fácil encontrar homens já idosos com muitos filhos”, assinala Jones. A agricultura também interveio negativamente no processo, afirma o especialista em genética, que sublinha: “É graças a ela que os seres humanos são cerca de dez mil vezes mais numerosos do que deveriam ser, segundo as regras do reino animal. As populações estão a crescer enormemente e a ficar interligadas, o que reduz a diversidade genética.”

ESTAMOS EM INVOLUÇÃO?

No entanto, há propostas ainda mais radicais no mesmo sentido. Nas palavras do geneticista Giorgio Morpurgo, da Universidade de Perugia (Itália), “na espécie humana, a evolução não só se deteve como se iniciou um processo de rápida involução; a maior parte das mutações que encontramos atualmente são nocivas e conduzem a uma diminuição das capacidades físicas e cerebrais”. Uma investigação promovida pelo patologista e biólogo Gerald Crabtree, da Universidade de Stanford (Estados Unidos), parece confirmar que, efetivamente, estamos a perder, geração após geração, boa parte das aptidões intelectuais e emocionais das quais sentimos tanto orgulho. Para alguns investigadores, a nossa espécie não tem futuro. O virologista australiano Frank Fenner, cujo trabalho foi decisivo no processo de erradicação da varíola, não tinha grandes esperanças: “O Homo sapiens poderá extinguir-se nos próximos cem anos, devido a um processo, já irreversível, provocado pela explosão demográfica e pelo consumo descontrolado”, chegou a afirmar. Na obra A Sexta Extinção, o paleoantropólogo queniano Richard Leakey também vaticina um destino sombrio para os nossos descendentes. Na sua opinião, o nosso fim como espécie já começou,

IGOR MORSKI / TRATAMENTO DIGITAL: JOSÉ A. PEÑAS

Não somos alheios à evolução. Vamos continuar a sofrer alterações que nos permitam adaptarmo-nos ao meio? A nossa espécie é a única que potencia o processo com implantes e correções genéticas.


Amanhã hipotético. Talvez continuemos a habitar a Terra dentro de milhares de anos, mas a nossa aparência, alterada por séculos de evolução, fusão com a tecnologia e alterações no ADN, será muito diferente.

Interessante

33


CORBIS

Uma sociedade exclusivamente feminina

E

mbora, durante séculos, as diferenças de género se tenham acentuado, os avanços tecnológicos e as mudanças sociais que se produziram nas últimas décadas contribuiram para modificar os papéis de homens e mulheres. De facto, é provável que esse processo prossiga e venha a cristalizar noutro tipo de transformações. O oncologista italiano Umberto Veronesi, especialista em prospetiva biotecnológica, assegura que, no futuro, os homens serão menos viris e as mulheres mais masculinas, algo com consideráveis implicações não só culturais como, também, biológicas. Segundo Veronesi, “a humanidade dirige-se para um modelo único, pois o homem produz cada vez menos androgénios (hormonas sexuais masculinas) e a mulher menos estrogénios (principalmente femininas)”. Tudo isso irá afetar as nossas preferências sexuais: dentro de poucas gerações, a grande maioria das pessoas será bissexual, e só se fará sexo por prazer, pois a reprodução será sobretudo efetuada através de meios artificiais. De qualquer modo, a longo prazo, o homem não sobreviverá. O geneticista Bryan Sykes, do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Oxford (Reino Unido), adverte que o cromossoma Y, que determina o sexo masculino, está em declínio e desaparecerá dentro de alguns milhões de anos.

34 SUPER

Perderemos estruturas inúteis, como as amígdalas e o apêndice embora não tenhamos consciência disso: “A humanidade não é mais do que um breve momento, e não o ponto de chegada, no constante fluxo da vida”, assegura.

ALTERAÇÕES CADA VEZ MAIS RÁPIDAS

Até aqui, só falámos das más notícias, por assim dizer. Muitos outros investigadores estão convencidos de que os seres humanos continuarão a habitar este planeta dentro de milhares de anos, se bem que deverão ser muito diferentes do que são atualmente. Em maio de 2014, na conferência The Future Is Here, organizada pela revista do Museu Nacional de História do Instituto Smithsoniano (Estados Unidos), a antropóloga Briana Pobiner recordou que as mutações genéticas também se multiplicam com o aumento da população humana; daí que seja provável, num mundo que passou de mil para 7000 milhões de habitantes nos últimos dois séculos, que se produza uma evolução acelerada. A seleção natural parece constituir um fenómeno quase irrelevante entre os seres humanos, devido sobretudo aos espetaculares progressos ocorridos no mundo da medicina.

Contudo, um facto que poderá ter influência no nosso destino e que até recentemente foi praticamente ignorado pelos especialistas é o enorme reforço de outro tipo de seleção, a que se cimenta no livre arbítrio. Como afirma o psicólogo evolutivo Geoffrey F. Miller, professor da Universidade do Novo México, a capacidade para escolher uma parceira e ser bem-sucedido na conquista revelou-se fundamental para o nosso desenvolvimento. A tal ponto que poderia mesmo determinar a evolução da arte ou da criatividade. Por isso, Miller defende que esse fenómeno, que hoje inclui homens e mulheres, faz os indivíduos mais inteligentes terem muito mais possibilidades de se reproduzirem e transmitirem os seus genes às novas gerações. Em suma, o futuro acolheria uma realidade em que os seres humanos seriam cada vez mais perspicazes, característica que também teria consequências no nosso aspeto físico.

ESPERTOS E CABEÇUDOS

No seu trabalho O Homem Mutante, o divulgador científico Robert Clarke assegura que, no futuro, todos seremos macrocéfalos. O


Divididos. Os teóricos da inteligência artiicial preveem dois cenários antagónicos: num, ela poderia mostrar-se colaborativa com os seres humanos; no outro, poderia considerar-nos uma ameaça para si própria e optar por destruir-nos.

A era das máquinas

tamanho da cabeça será maior porque, afirma, “teremos um cérebro maior, com uma parte frontal e camadas do córtex mais amplas”. A questão é que o desenvolvimento do nosso encéfalo tem sido fortemente condicionado pelas dimensões limitadas do canal do parto. Daí que alguns especialistas, incluindo Briana Pobiner, se tenham interrogado sobre as consequências no futuro da evolução do recurso cada vez maior, à escala mundial, da prática de cesarianas. Seja como for, os especialistas em prospetiva estão divididos quanto ao tamanho médio que os seres humanos terão dentro de algumas centenas de anos. Alguns indicam que a nossa estatura continuará a aumentar moderadamente, como tem vindo a acontecer nas últimas décadas. Num exercício especulativo sobre o assunto, Oliver Curry, do Instituto de Antropologia Evolutiva e Cognitiva da Universidade de Oxford (Reino Unido), afirmou há alguns anos que, dentro de dez séculos, a altura média da nossa espécie poderá rondar os dois metros. Curry não baseou a sua previsão num ensaio científico e, de facto, há trabalhos que indicam o contrário. Depois de estudar o historial clínico e diversos parâmetros de mais de 2000 voluntárias norte-americanas, uma equipa de investigadores coordenada por Stephen Stearns, professor de ecologia e biologia evolutiva da

Universidade de Yale (Estados Unidos), concluiu que as mulheres mais baixas e mais cheiínhas costumam ter mais filhos. Isso também se verificava com as suas filhas, pelo que, na opinião de Stearns, em apenas dez gerações (por volta do ano 2400), as mulheres terão menos dois centímetros e pesarão mais um quilo: “Descobrimos que, regra geral, as que possuem menos gordura e são mais altas ovulam menos”, explica o cientista. “Isso significa que têm menos probabilidades de transmitir os seus genes às próximas gerações.”

NOVAS TENDÊNCIAS ALIMENTARES

Não será a única alteração anatómica que se poderá observar em, pelo menos, uma parte dos nossos descendentes. Muitos investigadores consideram que os seres humanos do futuro não terão, provavelmente, determinadas estruturas do corpo que tenham perdido a sua função, ou que causem, atualmente, mais problemas do que os que resolvem. Poderá ser o caso das amígdalas, que, segundo Clarke, terão o mesmo destino das outras estruturas vestigiais do nosso organismo: os dentes do siso, o cóccix (o último vestígio de uma cauda primitiva), e o apêndice, mais próprio dos herbívoros, irão à sua vida. De igual modo, o pelo humano começará a desaparecer com a passagem dos séculos. Trata-se, todavia, de um assunto controverso.

m algum momento de meados deste século, receberemos a notícia do nascimento da inteligência artificial (IA). É inútil especular como acontecerá, e ninguém tem a certeza do que irá passar-se em seguida, nem das implicações que terá para o futuro da nossa espécie. Será, como indica o ensaísta Nassim Nicholas Taleb, um cisne negro, um acontecimento tão esmagador, tão diferente de tudo o que conhecemos, que irá mesmo alterar a nossa perceção da existência, como aconteceu, por exemplo, com o desenvolvimento da agricultura ou com a Primeira Guerra Mundial. Segundo Raymond Kurzweil, diretor de Engenharia da Google, o acontecimento marcará o início da denominada “singularidade tecnológica”, um ponto de não retorno em que o avanço técnico favorecerá o aparecimento de inteligências sobre-humanas. Porém, nem Kurzweil nem a legião de cientistas convencidos de que a singularidade será um facto histórico, e não uma quimera emanada da ficção científica, sabem ao certo quais serão as suas consequências. Alguns futurólogos, que se dedicam a previsões sobre o provável desenvolvimento da ciência com base nos atuais conhecimentos, asseguram que a IA será benéfica para os seres humanos. O escritor norte-americano Eliezer Shlomo Yudkowsky, conhecido teórico deste tema, defende que a tendência amistosa fará parte da sua essência. Os próprios programadores e engenheiros que lhe darão origem se encarregarão disso. Contudo, em teoria, a IA será caracterizada pela sua capacidade de evolução e de adaptação, e é isso que preocupa os seus críticos. O que acontecerá se os novos sistemas inteligentes, mais rápidos e perspicazes do que nós, nos considerarem uma ameaça? Teremos dado à luz os nossos próprios terminators? O cosmólogo Stephen Hawking e o físico Elon Musk, fundador da empresa SpaceX, advertem, efetivamente, que a IA vai acelerar o fim da humanidade. A.A.

Interessante

35

MIKE POWELL / CORBIS

E


COLIN ANDERSON / CORBIS

Ciborgues. Os avanços nas próteses inteligentes e o estudo do funcionamento das células estaminais, a partir das quais se poderiam desenvolver tecidos funcionais, talvez permitam em breve construir peças sobressalentes que combinem partes mecânicas e biológicas.

Corpos em transformação

E

stas são algumas das alterações mais importantes que o nosso organismo poderá sofrer nos próximos milhares de anos, devido à evolução. Vértebras – Quase toda a população possui doze pares, mas oito por cento das pessoas têm treze, como os chimpanzés. Com costelas suplementares, teríamos uma caixa torácica maior e os órgãos icariam mais protegidos, adaptação que poderia favorecer a evolução. Apêndice – Alguns estudos indicam que se trata de um repositório para bactérias benéicas, mas o desaparecimento dessa estrutura, que os nossos antepassados talvez utilizassem na digestão de folhas, não representa um problema. Músculo plantar – Nove em cada cem seres humanos já não o têm. Ao que parece, é útil para alguns dos nossos parentes primatas poderem apanhar coisas com os pés. Na nossa espécie, a sua importância é duvidosa. Dentes do siso – Apenas 5% dos seres humanos ainda os têm em bom estado. Podem ter sido importantes quando os nossos antepassados mastigavam uma grande quantidade de alimento vegetal, mas perderam essa função e é possível que desapareçam. Pelo corporal – É provável que enfraqueça, exceto talvez nas sobrancelhas, que contribuem para o suor não chegar aos olhos, e, entre os homens, no rosto, pois desempenha um certo papel na seleção sexual.

36 SUPER

Acabaremos por nos fundir com a inteligência artificial Por que se encarregaria o tempo de eliminar elementos que, apesar de poderem tornar-se incómodos, também não representam uma desvantagem evolutiva? As dúvidas estendem-se à alimentação. Uma alteração dos nossos hábitos poderia desencadear importantes mutações no organismo. Se ingerirmos nutrientes mais moles, por exemplo, os maxilares trabalharão menos e tornar-se-ão progressivamente mais fracos. Por sua vez, Curry especulava com a possibilidade de o tamanho do pescoço e do queixo se reduzir. Simultaneamente, a laringe mudaria de posição, tornando mais grave o nosso tom de voz.

FRANZINOS, MAS MUITO LONGEVOS

O relógio biológico do Homo sapiens também não é imune às adaptações e irá provavelmente sofrer, dentro de algumas décadas, transformações radicais. O antropólogo evolutivo Cadell Last, do Global Brain Institute (Bélgica), não tem dúvidas. Num estudo publicado na revista Current Aging Science, o investigador defende que, por volta do ano 2050, os seres humanos poderão viver mais cerca de 40 anos do que acontece atualmente; terão menos filhos e numa idade muito mais avançada, um

processo que se produzirá em simultâneo com um aumento da capacidade cerebral. Contudo, até que ponto tudo isso nos será benéfico? Na sua obra A Origem das Espécies (1859), Darwin afirmou que a evolução “viaja rumo à perfeição”, o que nos levaria a concluir que o ser humano se torna melhor à medida que o tempo passa. Contudo, é preciso recordar que tal perfeição não é senão a capacidade que possuímos de nos adaptarmos ao meio em cada momento histórico. Por conseguinte, alguns dos presumíveis progressos que descrevemos talvez acabem por não sê-lo tanto. Podemos estudar o caso do nosso aspeto físico, por exemplo, que se tornou aparentemente mais poderoso nos últimos séculos. Todavia, a verdade é que somos bastante menos vigorosos do que os nossos antepassados. Estima-se que os seres humanos primitivos possuíam mais 15 por cento de volume corporal. Nas palavras do antropólogo australiano Peter McAllister, “a evolução levou-nos a transformarmo-nos na mais lamentável forma de Homo sapiens que jamais pisou o planeta”: “Qualquer mulher neandertal poderia ter esmagado sem grande esforço Arnold Schwarzenegger nos seus melhores tempos.”


Alguns especialistas já não ligam a esse processo evolutivo natural. Segundo creem, ele será consideravelmente influenciado pela tecnologia, a qual permitirá criar super-homens fabricados em laboratório. Seremos senhores da nossa própria evolução. O facto é que há já muito tempo que temos vindo a manipulá-la. Somos diferentes dos nossos antepassados. Erik Trinkaus, paleoantropólogo da Universidade de Washington em San Luis (Estados Unidos), desenvolveu um estudo no qual se conclui que, nos últimos 30 mil anos, os nossos dedos dos pés se tornaram mais pequenos e frágeis devido ao hábito de usarmos calçado. O mesmo se aplicaria às unhas, armas ineficazes desde a época em que os nossos antepassados dominaram a arte do lançamento de pedras. O tamanho dos dentes também se reduziu em consequência da utilização de utensílios para comer e das alterações nos hábitos alimentares que ocorreram desde a pré-história. No fundo, tudo contribui para apoiar o que afirmou, há décadas, o biólogo Julian Huxley (1887–1975): “É como se o homem tivesse sido de repente nomeado diretor-geral da maior de todas as empresas, a evolução.” Se tomarmos tudo isto em consideração, a possibilidade de a Terra se povoar, num futuro não muito longínquo, de homens biónicos não parece ser uma ideia assim tão quimérica. De

facto, pacemakers, próteses de diversos tipos e mesmo implantes oculares e cerebrais já fazem parte da vida de muitas pessoas. O filósofo Nick Bostrom, diretor do Instituto para o Futuro da Humanidade, da Universidade de Oxford, não tem dúvidas: o trans-humanismo, um fenómeno que prevê o aumento das nossas capacidades físicas e intelectuais, já está em marcha. A seleção artificial ultrapassou a natural. O processo culminará, em teoria, nos pós-humanos, manifestamente superiores a qualquer génio atual. Desse ponto de vista, o futuro do homem será caracterizado por técnicas como a clonagem, a manipulação genética e a implantação no nosso organismo de engenhos eletrónicos. Kevin Warwick, professor de cibernética na Universidade de Reading (Reino Unido), passou das palavras aos atos e fez implantar um dispositivo subcutâneo que lhe permite relacionar-se com computadores. Por sua vez, há alguns meses, a companhia sueca Epicenter começou a implantar chips nos seus trabalhadores, de modo a que eles possam abrir uma porta ou utilizar uma fotocopiadora aproximando, simplesmente, a mão de um sensor. Como disse o escritor mexicano Naief Yehya em O Corpo Transformado, está a ocorrer uma inevitável transição para uma sociedade pós-humana, na qual nos transformaremos através da tecnologia.

A caminho da cibereternidade

A

Iniciativa 2045, promovida pelo multimilionário russo Dmitry Itskov, tem por objetivo alcançar a imortalidade tecnológica. A ideia é inserir a nossa personalidade num suporte mais duradouro do que o nosso corpo. Esta seria a forma de lá chegar. 2015–2020 –Antes do inal da década, poderemos controlar humanoides artiiciais, ou avatares, com o nosso cérebro. Já se concluiu 85 por cento deste objetivo, segundo a Iniciativa 2045. 2020–2025 – O desaio seguinte consiste em transplantar para um avatar avançado o cérebro de uma pessoa no inal da sua vida, a im de se poder prolongá-la. Já existem estudos e ensaios em laboratório. 2025–2035 – Nesta altura, os avatares já terão cérebros sintéticos, nos quais poderemos inserir a nossa personalidade e a nossa consciência antes de morrermos. Tecnicamente, seremos imortais. 2045 – Através do recurso a nanorrobôs, os avatares poderão adotar qualquer forma. Poderiam mesmo funcionar como hologramas. Os seres humanos serão, sobretudo, um processo mental.

D.M.

Interessante

37

SERGEY NIVENS / SHUTTERSTOCK

CORBIS

IMPLANTES E COMPUTADORES


Saúde

Sexualidade nos dedos Baseando-se em centenas de fotos de mãos de mulheres hetero e homossexuais, o neurocientista Marc Breedlove encontrou uma relação entre a orientação sexual e o comprimentos dos dedos (indicador maior do que o anelar). A sua análise sugere que este parâmetro anatómico poderia ser, pelo menos em parte, condicionado por variações na produção de testosterona durante a vida fetal, que ocorrem por via epigenética.

38 SUPER


Vem aí o mapa do epigenoma

THIERRY BERROD/ SCIENCE PHOTO LIBRARY

A nova arma da MEDICINA Depois do genoma, é a vez deste projeto, destinado a localizar os fatores externos que ativam certos genes ao longo da vida. O mapa permitirá entender melhor as doenças e descobrir novos fármacos e tratamentos.

H

á catorze anos, quando foi publicada a primeira versão da sequência do genoma humano, a comunidade científica sabia que ainda havia muito por fazer para tirar o máximo partido do avanço. O genoma é como um livro. Herda-se no momento da fecundação, é copiado em todas as células do corpo e, nas suas páginas, armazena-se a informação necessária para o ADN poder funcionar. Contudo, é preciso interpretá-lo. “Cada indivíduo lê diferentes capítulos e sublinha parágrafos e palavras distintos”, afirma Manolis Kellis, cientista do Grupo de Biologia Computacional do MIT e coordenador do Roadmap Epigenomics Project (Projeto do Mapa Epigenómico). Trata-se do primeiro macroestudo sobre epigenética, o ramo da biologia que se ocupa, precisamente, do que não está escrito nos genes, isto é, do conjunto de reações químicas e processos (ambientais, alimentares...) que modificam a atividade do ADN sem alterar a sua sequência. Após uma década de investigação financiada pelos Institutos Nacionais de Saúde norte-americanos (NIH), os responsáveis pelo ambicioso projeto acabam de publicar os seus resultados em várias revistas do grupo Nature. É preciso recordar que os mapas epigenómicos explicam como se ativam e desativam os genes que intervêm nos processos do organismo. Por isso, proporcionam uma nova ferramenta para estudar as doenças e um padrão para comparar os epigenomas dos pacientes. Descobrir os elementos que se modificaram e identificar essas alterações em doenças como

o cancro ou a esclerose múltipla permitirá desenvolver fármacos capazes de modular a sua atividade. Como indica o prefixo grego epi, o epigenoma está acima dos genes. Reúne uma variedade de marcas que, acopladas ao ADN, agem diretamente sobre as suas unidades básicas. Não alteram a sequência genética, mas podem modificar o acesso a certas zonas do genoma. Algo de semelhante ocorre com as histonas, proteínas que facilitam a compactação do ADN para poder caber no núcleo, algo que dificulta a sua expressão.

MENOS LIXO DO QUE SE DIZIA

Para a maquinaria celular poder ler a informação genética, a cromatina (conjunto de ADN, ARN, histonas e outras proteínas) deve desenvolver-se e expor-se aos genes. Contudo, isso nem sempre acontece. O primeiro avanço na compreensão desse complexo sistema surgiu em 2012, com a publicação do projeto Encode, que deitou por terra algumas ideias preconcebidas, como a existência de grandes zonas de “ADN lixo”. O estudo revelou que, na realidade, 80 por cento do genoma é composto por sequências reguladoras, cuja função é controlar o comportamento de tudo o resto, e contém pistas que permitem associar a genética ao desenvolvimento de certas doenças. Contudo, como a investigação se baseou em linhas celulares criadas in vitro em laboratório, a sua aplicação era limitada. Para poder ser útil a nível clínico, a informação deve ser proveniente de células humanas, como

Interessante

39


Poderemos perceber melhor o papel das células estaminais acontece no Projeto do Mapa Epigenómico. De acesso público e gratuito, os seus dados provêm de amostras extraídas do organismo. Além de incluir todos os tipos celulares importantes, os cientistas do consórcio mapearam os epigenomas de células estaminais fetais e de 58 doenças complexas. Segundo Francis Collins, diretor dos NIH, este projeto implica “um grande avanço para a compreensão dos 3000 milhões de ‘letras’ do ADN que formam o livro de instruções de uma pessoa, e da sua capacidade para promover atividades moleculares distintas, consoante o contexto celular”. Graças a este novo recurso, será possível estudar três aspetos básicos do epigenoma: como afeta a expressão génica, como se altera nas células estaminais à medida que se desenvolvem funções específicas em diferentes grupos celulares e qual o papel que desempenha nas doenças. “O desenvolvimento é, por definição, pura epigenética”, afirma Wolf Reik, especialista da Universidade de Cambridge (Reino Unido). Durante o crescimento

40 SUPER

do embrião e, em menor medida, na infância, o epigenoma sofre alterações constantes; todavia, na idade adulta, torna-se estável. Do ponto de vista do desenvolvimento, cumpriu o seu papel, mas isso não significa que se tenha transformado num código inalterável. Estudos recentes indicam que certos fatores (poluição, alimentação, exercício, maus tratos na infância...) podem alterar a expressão génica e induzir alterações no epigenoma. Significa que é o ambiente que modifica os genes? Não necessariamente.

ALTERAR A QUÍMICA DO ADN

Enquanto os danos causados pela exposição à radiação ou a outro agente mutagénico alteram a sequência genética, as alterações epigenéticas são mais subtis: afetam a forma da molécula de ADN sem modificar as suas bases (as “letras”). A informação fica oculta mas não desaparece. Por isso, se uma alteração epigenética decorrente de uma doença for reversível, conseguir a sua correção seria uma

Iguais? O astronauta Scott Kelly (à direita) passará um ano na ISS, enquanto o seu irmão gémeo Mark, também astronauta da NASA, icará em terra. Os cientistas tentarão encontrar neles diferenças epigenéticas.

importante ferramenta terapêutica. A herança genética não é um destino irrevogável. A saúde e a doença derivam, em parte, da forma como se regula o genoma ao longo da vida. A adição de grupos metilo ao ADN é progressiva. Começa a aumentar na infância e chega ao máximo na adolescência. Por volta dos 25 anos, o processo estabiliza e não volta a sofrer alterações até aos 50, quando as etiquetas químicas começam a desaparecer. Porém, esta pauta não é uniforme. Fatores como o stress ou o consumo de drogas alteram a metilação do ADN, sobretudo nas primeiras duas décadas de vida. Estudos com gémeos do Centro Nacional espanhol de Investigação Oncológica demonstram que, embora nasçam com padrões de metilação semelhantes, quanto mais tempo passarem afastados um do outro, em ambientes distintos, mais se irão diferenciar. Na opinião de muitos especialistas, certos padrões de perda de metilação estão relacionados com o aparecimento de problemas neurodegenerativos, como as doenças de Alzhei-


O

mapa epigenómico procura reunir a maior base de dados sobre as reações químicas que alteram a forma como cada célula utiliza a informação genética. Os cientistas basearam-se em amostras

celulares obtidas de tecidos humanos adultos (saudáveis e doentes) e de células embrionárias cultivadas em laboratório. Identificaram marcadores epigenéticos associadas a 58 doenças (diabetes 1, artrite Córtice pré-frontal

Amostras de tecidos, como o cerebral

reumatoide, Alzheimer...) e detetaram alterações nas histonas que fazem parte da cromatina. O trabalho estabelece as bases para estudar os mecanismos genéticos ou adquiridos de muitas doenças.

Amostra de tecido

Estudos em marcha

Hipocampo Amostras de sangue

Suspensão celular

Eritrócitos, linfócitos

Metilação do ADN Acessibilidade do ADN Potenciadores do ADN

Blastocistos (embriões de 5 a 8 dias)

Modificações das histonas Cultura celular in vitro

Organização da cromatina Sequenciação de genomas

Células estaminais Células estaminais embrionárias

mer e de Parkinson. Contudo, estabelecer uma ligação entre doenças e variações na regulação genética não é fácil, em parte porque muitas alterações epigenéticas ocorrem em zonas pouco conhecidas do ADN, denominadas “não-codificantes”, que, por não darem origem a proteínas, eram consideradas “ADN lixo”. Com os avanços revelados na Nature,será possível estudar essas zonas e descobrir marcadores epigenéticos relacionados com doenças como o cancro, caracterizado por padrões anormais de metilação do ADN cujos efeitos se desconheciam. O epigenoma do cancro contém informação que permite detetar o tipo e a proveniência da primeira célula doente. Um dos autores, John Stamatoyannopoulos, oncologista da Universidade de Washington, afirma: “Nos cancros metastásicos de origem desconhecida, é muito difícil acertar na escolha do tratamento. Agora, porém, contamos com um preditor mais preciso sobre a origem celular do tumor, o que ajudará a ajustar a terapia.” O epigenoma condiciona a expressão de variantes associadas a inúmeras doenças. Agora, é possível investigar em que células se ativam as mutações que decidem uma doença, e onde é mais provável que alterem a regulação genética. No futuro, outros trabalhos poderão

JOSÉ ANTONIO PEÑAS / FONTE: NATURE

MARK SOWA

Pistas epigenéticas

Células diferenciadas

indicar se os marcadores epigenéticos desempenham um papel relevante no desenvolvimento e na progressão de uma doença, ou se apenas exercem influência no seu início. Por enquanto, vários dos estudos recém-publicados proporcionam dados sobre as condições que favorecem o seu aparecimento. Por exemplo, descobriu-se que as variantes genéticas associadas à diabetes de tipo 1, à artrite reumatoide e à esclerose múltipla (todas doenças autoimunes) estão ativas nas células do sistema imunitário. De igual modo, a pressão arterial está relacionada com variantes ativas no coração, e a hipercolesterolemia com as células do fígado.

VIVÊNCIAS DOS ANTEPASSADOS

O que mais surpreendeu os cientistas foi a descoberta de uma relação entre as defesas e a doença de Alzheimer. Segundo Anshul Kundaje, geneticista da Universidade de Stanford (Estados Unidos), “esse mal tem uma forte componente imunológica que contribui para a neurodegeneração”. Caracteriza-se pela acumulação de depósitos de proteínas em redor dos neurónios, que acabam por matar. Seria de esperar que os genes envolvidos na doença de Alzheimer estivessem ativos nas células do

sistema nervoso, mas não é isso que acontece: “Agem nas células do sistema imunitário e afetam os monócitos CD14, responsáveis por eliminar as placas potencialmente perigosas”, indica Kundaje. A descoberta mudará radicalmente a investigação de tratamentos contra a essa forma de demência. De qualquer maneira, o Projeto do Mapa Epigenómico é apenas o início de um promissor ramo de investigação, pois falta mapear várias centenas de tipos celulares. É a isso que já se dedica o Consórcio Internacional do Epigenoma Humano, que pretende decifrar um milhar de epigenomas até 2020. Além disso, vários estudos recentes em ratos indicam que o epigenoma é, até certo ponto, hereditário. Ou seja, tal como acontece com as crenças ou a cultura, as experiências de vida dos nossos antepassados têm um impacto direto na nossa existência. A herança de características adquiridas, teoria proposta, no século XIX, por Jean-Baptiste Lamarck, há muito que foi descartada. Porém, tudo indica que as alterações epigenéticas fruto de experiências traumáticas passam de geração em geração. Um motivo de peso para continuar a explorar o funcionamento deste spin-off do genoma humano. J.B.

Interessante

41


ALAN POWDRILL / GETTY

Genética Dez descobertas recentes

As lições dos GÉMEOS Os irmãos idênticos proporcionam um valioso campo de experimentação para a ciência. Como partilham o ADN, é mais fácil perceber, observando-os, até que ponto genética e ambiente nos influenciam. Assim, estudos recentes com gémeos demonstram, por exemplo, que os genes não são determinantes quando se trata de escolher um parceiro, ou que fumar nos faz parecer mais velhos.

D

iz-se habitualmente que os homens procuram namoradas ou mulheres parecidas com as suas mães. Todavia, um estudo com gémeos da Universidade de Queensland (Austrália) indica que essa afirmação está completamente errada. De facto, se se analisarem características como o tamanho corporal, a idade, a personalidade ou os hábitos sociais, observa-se que os irmãos idênticos costumam casar com mulheres completamente diferentes e que também não são necessariamente parecidas com as sogras.

LER AUMENTA A INTELIGÊNCIA

Segundo um estudo da Universidade de Edimburgo (Escócia) baseado em 1890 irmãos gémeos, aprender a ler cedo favorece o desenvolvimento tanto da inteligência como do pensamento abstrato. “A descoberta indica que promover a leitura e ajudar os miúdos a resolver problemas que lhes possam surgir nessa atividade não só contribui para a sua alfabetização como potencia outras faculdades cognitivas que serão importantes ao longo de toda a vida”, diz Stuart Ritchie, coautor do trabalho.

42 SUPER

SONO E DEPRESSÃO

Um estudo com 1788 gémeos demonstrou que o descanso noturno não deve durar menos de sete horas nem mais de nove. Segundo o seu autor, o neurologista Nathaniel Watson, dormir menos do que isso aumenta em 12 por cento o risco de morte prematura. Além disso, quem dorme menos de cinco horas ou mais de dez todas as noites ativa genes diretamente relacionados com síndromes depressivas.

APTIDÕES SOCIAIS HERDADAS

Um estudo com mil pares de gémeos permitiu a Timothy Bates, da Universidade de Edimburgo, comprovar que a lealdade pessoal ao grupo social depende, em grande medida, dos genes, e não tanto do ambiente. Por outro lado, cientistas holandeses revelaram na revista Behavior Genetics uma experiência com irmãos idênticos que demonstrava que a solidão e o isolamento dependem em cerca de metade da genética de cada indivíduo.

CIGARROS NO ROSTO

Como seria o rosto de um fumador de 50 anos se nunca tivesse tido esse vício? Bahman Guyu-


ron, do Hospital Case Western Reserve (Estados Unidos), procurou descobri-lo comparando a deterioração facial de um par de gémeos, um fumador e o outro não. O primeiro parecia cinco anos mais velho do que o irmão. Os estragos no rosto dos fumadores são visíveis nas bolsas por baixo dos olhos, no facto de terem mais rugas em redor dos lábios e nas pregas nasolabiais acentuadas.

AS DOENÇAS DE ALZHEIMER

A doença de Alzheimer não é uma, mas várias. Foi o que concluíram cientistas suecos e californianos após as autópsias a sete pares de gémeos que tinham sido vítimas do mal. As análises do tecido cerebral mostraram que, além de partilharem sintomas de demência semelhantes em vida, havia lesões neuropatológicas nas mesmas regiões do cérebro, e que a propensão para os diversos fatores que podem desencadear a doença dependem, em grande medida, do ADN.

IDEOLOGIA CODIFICADA NAS BASES

Depois de comparar as ideias e atitudes políticas de verdadeiros e falsos gémeos, Kevin Smith, investigador da Universidade do Nebraska em Lincoln, estabeleceu que a biologia tem maior influência nas ideologias do que o ambiente. De acordo com os seus estudos, a tendência para ser conservador ou progressista dependeria em 60% da genética; a inclinação para adotar atitudes autoritárias, em 55%; a participação em eleições, em 50%.

ALIMENTAÇÃO CARDIOVASCULAR

A dieta mediterrânica, baseada em peixe, fruta, verduras, leguminosas e azeite, com poucas gorduras saturadas, reduz o stress oxidativo e o risco de vir a sofrer problemas cardíacos. É o que se deduz de um estudo com verdadeiros e falsos gémeos que associa a dieta a uma elevada variabilidade da frequência cardíaca (VFC), a qual indica a capacidade do coração para se adaptar às mudanças (fazer mais ou menos exercício, alterações emocionais). Quando maior a VFC, melhor o estado de saúde.

ANSIEDADE MATEMÁTICA

Por que será que algumas pessoas, quando deparam com um problema numérico, sentem tal pavor que ficam bloqueadas e são incapazes de resolvê-lo? Resulta da chamada “ansiedade matemática” e, segundo demonstrou Zhe Wang, da Universidade do Ohio, num estudo com gémeos, deve-se em 40% a fatores genéticos hereditários, e em 60% a fatores ambientais, como a escola em que se estuda, o grupo de amigos ou o ambiente familiar.

DEPENDÊNCIA PROGRAMADA

Um estudo com irmãos gémeos sobre o abuso de substâncias, dirigido por cientistas da Universidade de Harvard (Estados Unidos), revelou que a tendência para consumir estupefacientes recai, em grande medida, no genoma. Em concreto, o consumo de marijuana tem uma relação direta com os efeitos subjetivos da droga, que dependem, por sua vez, dos genes. De igual modo, o nível de dependência de substâncias como a nicotina e o álcool também parece estar escrito no ADN. E.S.

Interessante

43


Educação Deixe-me ver se eu percebi... No Colégio Um-Dó-Li-Tá, em Vale Fetal, José Pacheco escutou os anseios dos mais novos e contou-lhes como é possível ter uma escola sem salas de aula ou exames.

“Nova educação” em Portugal

No chão das ESCOLAS E

m janeiro deste ano, um extenso grupo de professores, pedagogos e especialistas em educação de todo o mundo emitiu um conjunto de orientações, o Manifesto 15, com o objetivo de criar um novo modelo de educação. O Manifesto 15, datado de 1 de janeiro, passou praticamente despercebido em Portugal, apesar de o setor da educação ter sido, nos últimos anos, um dos mais agitados e controversos: greves, exames polémicos, despedimentos, falta de condições nas escolas, alta taxa de reprovação e abandono por parte dos alunos, tudo isto tem feito da educação um mundo de discussão permanente. Porém, poucas vezes se faz a reflexão proposta no Manifesto 15: que tal mudar os paradigmas da educação e acabar com um modelo obsoleto e que nada tem a ver com os tempos atuais? O texto propõe doze princípios de mudança, muitos deles convergentes com os da Escola da Ponte e do pedagogo José Pacheco, personagem fulcral neste movimento, que no início de 2015 realizou um périplo pelo nosso país, dando conta da sua experiência no Projeto Âncora, no Brasil. Do Manifesto 15 a José Pacheco, que agora se propõe “trabalhar com professores no chão das escolas”, algo se passa de diferente, este ano, na educação. É essa viagem, que vai do Brasil à Finlândia, que aqui lhe propomos. Em Portugal, o movimento de repensar a

44 SUPER

educação teve início em 1976, com a Escola da Ponte, uma unidade de ensino do concelho de Santo Tirso (Vila das Aves/São Tomé de Negrelos), até aí igual a todas as outras, quando o pedagogo José Pacheco decidiu promover a mudança: “Cada professor ficava na sua sala, isolado com a sua turma e os seus métodos. Não havia comunicação ou projeto comum. O trabalho escolar era baseado na repetição de lições, na passividade. Naquele ano, havia três educadores e 90 estudantes. Em vez de cada docente adotar uma turma de 30, juntámos todos. O nosso objetivo era promover a autonomia e a solidariedade. Antes disso, porém, chamámos os pais, explicámos o nosso projeto e perguntámos o que pensavam sobre o assunto. Eles apoiaram-nos e defendem o modelo até hoje”, explicou Pacheco, numa entrevista ao site Nova Escola. O processo de aceitação por parte do Ministério da Educação não foi fácil. Como encarar um ensino sem turmas, sem salas de aulas no sentido tradicional, apenas com espaços de trabalho, que dava liberdade e autonomia aos alunos, trabalhando segundo uma lógica de projeto e de equipa? Em 2001, o brasileiro Rubem Alves escreveu um livro sobre este fenómeno: “A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir.” Finalmente, em fevereiro de 2005, foi assinado um contrato de autonomia com o Minis-

PAULA VIEGAS

Há 39 anos, um projeto ousado fez da Escola da Ponte um exemplo de como a educação pode ser diferente. Este ano, o seu ideólogo, o professor José Pacheco, radicado no Brasil, voltou a Portugal para relançar a semente. De repente, tudo se questiona na educação, com a Finlândia na frente.

tério da Educação, o primeiro do país para uma escola do ensino público não superior. Os bons resultados chamaram a atenção da comunidade internacional, mas, apesar das boas recomendações de uma Comissão de Avaliação Externa, no sentido de serem feitas obras de ampliação para dar continuidade ao projeto, o ministério rejeitou o alargamento da experiência ao terceiro ciclo. Assim, a Escola da Ponte, uma referência internacional no âmbito do Movimento da Escola Moderna, proporciona hoje educação a alunos dos cinco aos 13 anos, no primeiro e no segundo ciclos. Funcionando numa área aberta, a escola está organizada em três


núcleos: Iniciação, Consolidação e Aprofundamento. Dentro destes núcleos, os alunos dividem-se em grupos, conforme as suas preferências, e escolhem um tutor. Estes estão organizados por dimensões: Artística, Identitária, Linguística, Lógico-matemática, Naturalista e Pessoal e Social. Quando os resultados de um grupo são positivos, desfaz-se e forma-se um novo para estudar outra matéria.

O PROJETO ÂNCORA

O exemplo da Escola da Ponte relançou uma velha questão, a da renovação do modelo educacional, algo durante muito tempo questionado por pensadores como Agostinho da Silva

ou Paulo Freire, ambos com ligações ao Brasil. O filósofo português propunha um olhar diferente sobre o ensino: “Ninguém fugirá da escola e a olhará como um horror no dia em que a deixemos de conceber como o lugar a que se vai para receber uma lição, para a considerarmos como o ponto de condições ótimas para que uma criança efetivamente dê a sua ajuda a todos os que estão procurando libertar a condição humana do que nela há de primitivo.” Muitos destes ensinamentos foram divulgados no Brasil, onde Agostinho da Silva passou grande parte da vida. Também no Brasil, Paulo Freire, educador, pedagogo e filósofo, contestou sempre a por ele denominada “educação bancária,

tecnicista e alienante”, propondo que o próprio educando fizesse o seu caminho. Percebe-se, pois, o entusiasmo com que as ideias de José Pacheco e a experiência da Escola da Ponte foram acolhidas no Brasil, de tal forma que o Projeto Âncora, fundado pelo empresário Walter Steurer em 1995, para melhorar a realidade das crianças e adolescentes da região de Cotia (São Paulo), absorveu os ensinamentos de Pacheco e se tornou um ícone da nova educação a partir de 2012. O pedagogo português partiu para o Brasil quando considerou que a Escola da Ponte tinha pernas para andar por si própria, e colabora com o Projeto Âncora desde 2011. Interessante

45


Os defensores da “nova educação” falam de uma nova visão da sociedade Em fevereiro deste ano, José Pacheco regressou a Portugal para um périplo impressionante por vários locais do país: entre 20 de fevereiro e 25 de março, o pedagogo português, de 64 anos, protagonizou 40 eventos, incluindo a participação no Fórum da Inovação em Educação, em Idanha-a-Nova, a 21 e 22 de março. O périplo começou com uma palestra e apoio ao projeto no Agrupamento de Escolas de Alvide, em Cascais, e terminou na Ericeira, a 25 de março, com o apoio ao projeto Enraizar. Pelo meio, lançou a semente em muitas iniciativas privadas, mas também em unidades públicas, desde a EB 2-3 de Rabo de Peixe, nos Açores, à Câmara Municipal de Oliveira de Azeméis, passando por instituições como a Casa Pia ou o Conservatório de Música da Covilhã. Assistimos a dois desses eventos, no mesmo dia, no concelho de Almada: primeiro, na Biblioteca da Trafaria, onde José Pacheco trocou opiniões com pais e professores; depois, no Colégio Um-Dó-Li-Tá, em Vale Fetal, junto à Charneca da Caparica, onde o pedagogo se viu rodeado de crianças curiosas de saberem como funciona uma escola sem salas de aula nem exames. “Os apelos vieram de educadores que não desistem de fazer dos jovens seres sábios e pessoas felizes. Confesso que já tinha desistido de Portugal. Tinha optado por um exílio voluntário, mas creio ter recuperado a esperança...”, admite o educador. De facto, Pacheco confrontou-se com novas sensibilidades sobre o rumo da educação no país e, embora na Biblioteca da Trafaria tenham faltado representantes das entidades oficiais, desde a Junta de Freguesia à Câmara Municipal, o pedagogo considera ter feito contactos importantes: “Falei com representantes do poder público, que já tomaram consciência da necessidade de colocar coerência nas iniciativas de política educativa. Creio que este périplo contribuiu para a articulação entre os projetos emergentes e o poder público, bem como com a universidade.” O que lhe dá esperança, sublinha, é a crescente mobilização de pais e educadores para questionar a educação, provocando o aparecimento de um cada vez maior número de iniciativas em todo o país: “O que caracteriza esses projetos é uma referência explícita a valores, que apontam para uma nova visão de

46 SUPER

PROJETO ÂNCORA

MOBILIZAÇÃO CRESCENTE

sociedade e de pessoa. São projetos de escola pública, se concebermos a escola pública como aquela que a todos acolhe e a cada qual dá condições de educação integral, independentemente de ser de iniciativa estatal ou particular.” São mais de trinta os projetos em que está envolvido este professor e pedagogo, que alguns olham como uma espécie de sucessor de Agostinho da Silva: “É provável que regresse a Portugal ainda este ano, para trabalhar com professores no chão das escolas, onde a mudança acontece. Depois, disponibilizarei um acompanhamento através da internet, pois não poderei prescindir de apoiar projetos iniciados na América do Sul.”

EMOÇÕES

Os eventos que presenciámos são bons exemplos da mensagem divulgada pelo pedagogo. Além do interesse permanente de todos

(tanto a biblioteca como o colégio estavam cheios, e as perguntas nunca faltaram), percebeu-se como a educação suscita emoções. Houve lágrimas de professores. “Professores preocupados com a sobrevivência e sujeitos a um exercício precário da profissão dificilmente questionarão uma cultura pessoal e profissional que os transforma em instrumentos de reprodução de um modelo escolar obsoleto”, diz Pacheco, certo de que também os professores estão infelizes dentro deste modelo. Houve entusiasmo inequívoco dos alunos: “Professor, pode trazer a sua escola para cá?” Emoções, pois, muitas emoções. José Pacheco recordou os tempos da Escola da Ponte, a forma como convenceu os pais a aderirem, a forma como o sistema levantou obstáculos e como eles foram superados, conseguindo a Ponte um contrato de autonomia que ainda hoje é único em escolas públicas, e lançou


Uma rede com muitos nós

O

Sem rede O Projeto Âncora, junto a São Paulo, no Brasil, está sediado numa tenda de circo, onde a liberdade de aprender e criar se revela um extraordinário meio de intervenção social.

frases fortes, capazes de suscitarem um verdadeiro debate: “Um teste nada avalia! Um TPC é horroroso!” O pedagogo nunca escondeu o carinho pelo Projeto Âncora, em que trabalha, no Brasil, motivo de muitas perguntas por parte das crianças: “Na minha escola há sempre vagas. Livros, manuais? Não temos isso. Não há salas de aula, não perdemos tempo com testes... Eu não ensino, eu aprendo, pois os mais novos sabem mais do que os mais velhos... Quando alguém não quer aprender, nós ajudamos... Porque é que todos têm de entrar à mesma hora?” Ideias cativantes, que não dispensam uma explicação mais pormenorizada sobre o método de aprendizagem, a partir da apetência do aluno e da conceção de um projeto, que o poderá levar a adquirir os conhecimentos necessários para a sua execução, sejam eles de português, matemática ou ciências. “Espero

fazer a minha parte, e desassossegar os espíritos”, esclarece o pedagogo, que tem 32 livros publicados no Brasil, mas nem um em Portugal.

MANIFESTOS

Desassossegar espíritos poderia ser também, inicialmente, o objetivo do Manifesto 15, assinado por vários pedagogos, educadores e intelectuais de todo o mundo. Aparentemente, o manifesto não desassossegou ninguém, nem sequer os próprios subscritores. Apenas um português, António Teixeira, professor na Universidade Aberta, assinou esta declaração de intenções e princípios. José Pacheco não se encontra entre os signatários: “Não tive contacto com esse manifesto, mas participei na redação de um documento do mesmo tipo, lançado no Brasil, que suscitou amplo debate. Lamento que os manifestos passem despercebidos, quando deveriam ser objeto de

exemplo da Escola da Ponte, e não só, motivou um aumento gradual das unidades de ensino alternativo no nosso país, quase todas privadas e ligadas a uma corrente que defende modos diferentes de existir em comunidade e novas relações com o consumo, a natureza, as artes, a espiritualidade, etc. A Rede Educação Viva (REV), criada em 2013, junta os interesses e as sensibilidades de um grupo de pais e especialistas de várias áreas, como professores, educadores, cientistas, terapeutas, consultores, gestores, engenheiros, sociólogos, filósofos e escritores. Tem hoje dez núcleos, espalhados por todo o país: Porto/Braga, Aveiro, Cova da Beira, Idanha-a-Nova, Mafra, Cascais, Lisboa/Oeiras, Almada/ Palmela, Alentejo Litoral e Madeira. A página online da REV (htp://www. educacaoviva.pt) regista uma trintena de projetos, que decorrem, de forma mais ou menos experimental, em escolas de todo o país, incluindo algumas públicas. A rede estende-se ainda às denominadas “comunidades de aprendizagem” e às experiências de ensino doméstico, uma opção já legal em Portugal, na qual se permite que as crianças sejam educadas em casa, indo à escola pública apenas para realizarem os exames obrigatórios. Na verdade, este é um mundo que, como se vê, já movimenta muita gente: a Reevo (http://reevo.org), uma rede de educação alternativa da América Latina, tem na sua página online um atlas com o registo de 587 projetos espalhados pelos cinco continentes.

atenção e provocar reações dos educadores.” O manifesto de que fala Pacheco data de 2013 e o documento intitulou-se Mudar a Escola, Melhorar a Educação – Transformar um País. O terceiro manifesto do género, na história do Brasil, depois dos de 1932 e 1959, foi preparado durante dois anos, com ampla participação do movimento Românticos Conspiradores, e propõe princípios muito similares aos adotados, por exemplo, no Projeto Âncora; José Pacheco foi um dos autores. Em Portugal, as preocupações nunca chegaram a este nível: em 2013, enquanto no Brasil se discutia a renovação, foi lançado no nosso país um manifesto sobre política educativa, preocupado com o aumento do número de alunos por turma, a redução dos currículos e a diminuição das verbas para a investigação. Assinado por personalidades como José Barata Moura, Fausto, Rita Blanco ou Lídia Interessante

47


Jorge, não era muito diferente de outro, de 1982, então assinado por Nuno Crato, atual ministro da Educação, no qual se pedia atenção para “problemas concretos”, como “os objetivos e a articulação dos vários graus de ensino, a avaliação do desempenho dos estudantes, dos professores e das escolas, o apoio aos estudantes, os currículos e a acreditação dos cursos e das instituições”.

OS CRÍTICOS

A discussão à volta da renovação do método de ensino tem muitos anos e mantém-se bem viva. Se há defensores da nova educação, também há críticos. Um deles é, precisamente, Nuno Crato. Em 2006, o professor universitário e divulgador científico criticou, no livro O Eduquês em Discurso Directo — Uma Crítica da Pedagogia Romântica (Gradiva), as propostas desta linha de ensino, dizendo que ela demonstra “desprezo pelos conteúdos científicos e processos cognitivos, a par da arrogância construtivista, que imagina a construção, os alunos capazes de construir conhecimento a partir do nada”. Nas conclusões, Crato não admite grandes mudanças em relação ao modelo em vigor: “Julgamos que o ensino não precisa de reformulações drásticas nem de reviravoltas pedagógicas revolucionárias. É possível que o século XXI venha a produzir uma escola nova e métodos de ensino radicalmente diferentes. Mas nada leva a crer que isso aconteça de imediato.” Além disso, o futuro ministro da Educação fazia a apologia do exame: “A avaliação é fundamental, mesmo para a entrada na profissão de professor. Para os estudantes, tem-se revelado indispensável. É preciso manter os exames nos 9.º e 12.º anos de escolaridade.” Efetivamente, a educação em Portugal tem seguido num sentido oposto ao defendido pelos teóricos da nova escola. A reforma empreendida pelo ministério de Nuno Crato incide em programas curriculares cada vez mais extensos, com metas bem definidas, e de grande exigência para professores e alunos, tudo muito compartimentado e centrado nos conteúdos que devem ser ensinados. Um pouco na mesma linha situa-se o pensamento de David Justino, ex-ministro da Educação e atual presidente do Conselho Nacional da Educação. Num artigo sobre o assunto, publicado em abril último no Diário de Notícias, o presidente do CNE mostrou dúvidas sobre o

48 SUPER

Sonho em Vale Fetal

U

m dos mais recentes projetos na área da nova educação nasceu, há menos de um ano, na margem sul do Tejo, em Vale Fetal, próximo da Charneca da Caparica. Autodenominado Comunidade de Partilha e Aprendizagem, o Kinoa está ainda a dar os primeiros passos, com um reduzido número de crianças, mas com um entusiasmo indisfarçável, nas instalações do Colégio Um-Dó-Li-Tá. Foi a falta de opções satisfatórias para a educação dos seus dois ilhos que levou Sophie a pensar em meter, ela própria, mãos à obra, em conjunto com Helena Rodrigues, professora e mestre em psicopedagogia percetiva, e mais algumas pessoas interessadas nestas escolhas. O Colégio Um-Dó-Li-Tá, com diiculdades de sobrevivência, abriu-lhes as portas para criar ali a base do projeto: “Acordámos em fazer a experiência do projeto Kinoa durante um ano letivo, para ver se resultava, se a comunidade estava recetiva a esta forma de estarmos em espaços de aprendizagem. O Kinoa nasceu com a designação de Comunidade de Partilha e Aprendizagem, e começámos com os ilhos da Sophie e com o Gabriel...”, conta Helena Rodrigues, numa das salas reservadas pelo colégio para as atividades do projeto. O processo teve início em junho de 2014, e contou de imediato com a colaboração de alguns pais que já tinham os seus ilhos em ensino doméstico. Desta forma, o grupo de crianças aumentava em determinadas ocasiões, proporcionando passeios, visitas a instituições do concelho e uma série de atividades de convívio e aprendizagem. “Quando li o livro do Rubem Alves, sobre a Escola da Ponte, encontrei escrito tudo aquilo que sentia sobre a educação, e decidi: tenho de fazer alguma coisa. Acho que a educação tradicional não responde às necessidades da maioria das crianças. Não

exemplo da Finlândia e de alguns outros países: “É melhor esperar para ver.”

FINLÂNDIA E NÃO SÓ

Contudo, o tempo não pára. O exemplo supremo chega da Finlândia, um dos países mais desenvolvidos do mundo, nesta matéria: depois de ter, há algum tempo, abolido os exames, prepara-se agora para mudar o sistema de ensino, aplicando novas formas de trabalho nas salas de aula, no que já se designou por “tópicos”. Os alunos passarão a aprender por temas, e não terão de seguir um rigoroso programa curricular; para estudar esse tópico, contribuirão vários professores, e os alunos participarão no planeamento dos módulos. A revolução empreendida pela Finlândia

PROJETO ÂNCORA

Para os críticos, a “nova educação” é arrogante

estou contra o sistema, mas percebe-se que, para um número muito amplo de crianças (e de professores), esta estrutura de ensino gera sofrimento e desinteresse profundo. É a própria vontade de aprender que está em causa, pois as crianças não querem ir à escola... A perspetiva que aqui temos é de que é necessário criar um campo de alternativas diversiicado, que existam espaços reconhecidos pelo estado, com pessoas capazes, para que os diferentes tipos de crianças e de professores possam ser verdadeiramente felizes no seu papel.” O projeto Kinoa integrou, assim, uma rede de novas propostas educacionais que tem vindo gradualmente a crescer em todo o país, e que

terá, inevitavelmente, consequências a nível europeu, e muitos intelectuais portugueses admitem que o modelo de educação deve ser alvo de discussão e reflexão: “A escola, como a sociedade, encontra-se em permanente mudança. A Escola da Ponte pode ser fonte de rica experimentação e amplo e fecundo debate democrático!”, comentou Marcelo Rebelo de Sousa à SUPER. Outro catedrático, António Sampaio da Nóvoa, ex-reitor da Universidade de Lisboa e candidato à Presidência da República, criticou publicamente “esta escola que se construiu de uma forma uniforme e serviu para um tempo que já não é o nosso”. O seu discurso, no debate Educação, Democracia e Desigualdades, promovido pela candidatura Livre/Tempo de Avançar, em


PAULA VIEGAS

No Projeto Âncora (à esquerda), a aprendizagem pode ser feita numa mesa de trabalho e de partilha, algo que serviu de inspiração a Helena Rodrigues (em cima), uma das mentoras do Kinoa.

está unida através da Rede Educação Viva. De norte a sul, há princípios comuns entre estes projetos, embora cada um mantenha a sua própria identidade. Na unidade de Vale Fetal, o tempo para brincadeiras é precioso: “As crianças chegam e têm um tempo para brincarem entre elas. Depois, juntam-se os adultos e fazemos um movimento de corpo, uma canção de roda, uma partilha... A aprendizagem emerge a partir daquilo para que eles, em cada dia, têm mais apetência: ‘Hoje, apetece-me fazer isto ou aquilo.’ Quando é feito assim, a partir da motivação interna, as crianças icam muito implicadas naquilo que estão a fazer, mesmo as mais pequeninas.”

março último, em Lisboa, não deixou dúvidas: “O ponto central da revolução que está em curso é conseguir que cada criança tenha o seu próprio percurso educativo.” O mesmo tipo de reflexão é feito por Maria Emília Brederode dos Santos. Com vasta atividade no campo do ensino, desde o Conselho Nacional da Educação ao Instituto de Inovação Educacional, passando pela direção pedagógica do programa televisivo Rua Sésamo e por vários livros sobre esta área, a professora confessa ter ficado maravilhada nas visitas que fez à Escola da Ponte, considerando que o “modelo fundado por José Pacheco e desenvolvido a partir de alguns princípios da ‘escola ativa’ e do ‘movimento da escola moderna’ conseguiu estilhaçar certas formas organi-

Neste contexto, o peso do currículo é quase nulo: “A aprendizagem feita pelo currículo não nos interessa muito. Quando a criança quer, por exemplo, aprender a ler, manifesta essa vontade, e as letras são trazidas nesse contexto... Não forçamos. O Kinoa existe no enquadramento do ensino individual previsto na lei. No quarto ano, a criança tem de fazer um exame, mas não temos qualquer preocupação sobre se pode haver reprovação ou não. Essa não é a medida. Estamos preocupados com a felicidade e o bem-estar da criança, sabendo que a aprendizagem acontece naturalmente... Se eu tiver um sonho, um projeto, vou querer aprender tudo aquilo de que preciso para

zacionais da escola (como a organização por anos e por disciplinas) e inventar outras formas em que o aluno tem um papel muito mais ativo”. A pedagoga entende que está na altura de o modelo educacional se adaptar a uma nova era: “A transmissão da informação já não é tão necessária como o foi como missão da escola durante séculos. Um clique na internet e temos acessível quase toda a informação do mundo! O que é fundamental é desenvolver o espírito crítico face a essa informação, a capacidade de questionamento e de formular perguntas, de ‘pensar pela própria cabeça’ e de ter em conta o bem-estar e os sentimentos dos outros, de ser capaz de colaborar com outros para levar a cabo uma tarefa, ou de fazer

realizar esse sonho. Tenho de saber escrever sobre o projeto... Se preciso de calcular o número de pessoas, tenho de saber matemática e vou querer aprender. Se preciso de saber as condições climatéricas ou dados geográicos, tenho de saber geograia... Para aprender, há um conjunto de estruturas, em vários sítios da comunidade, onde estão adultos que vão facilitar a aquisição do conhecimento.” Helena Rodrigues acredita que a amplitude e a riqueza da aprendizagem que a criança ganha numa estrutura destas lhe permitirá, no futuro, integrar facilmente o ensino dito tradicional, algo, aliás, já demonstrado pelo exemplo da Escola da Ponte.

perguntas relevantes e de organizar as suas aprendizagens para lhes responder.” A mudança parece, pois, estar à porta, embora a passo lento. No próximo ano letivo, três escolas do agrupamento de Carcavelos (Cascais) experimentarão um modelo semelhante ao finlandês, ou antes, ao que acontece em Raimat (Lleida, Espanha). Num colégio jesuíta, os alunos saltam entre os regimes do século XX e do século XXI: no primeiro, têm exames, faltas e horários; no segundo, fazem trabalho interdisciplinar, com horários flexíveis, organizado em torno de projetos. Veremos em que século se encontrarão os melhores modelos para a educação do terceiro milénio. J.S.

Interessante

49


Documento TOP PHOTO

Um mar de cores Derrames poluentes, aumento das temperaturas, alterações nas correntes... Os tons do oceano dependem de muitos fatores, e as mudanças que ocorrem revelam-nos tanto o seu estado de saúde como o dos seus muitos habitantes.

50 SUPER


OCEANOS Brilho salgado. As águas que banham Dongying, no nordeste da China, apresentavam este aspeto no passado dia 7 de janeiro. Causa: micro-organismos bioluminescentes que produzem luz a partir de reações químicas. A proliferação de certas criaturas pode alertar para alterações signiicativas nas águas oceânicas.

Interessante

51


Documento

D

e que cor é o mar? Esta pergunta obtém uma resposta maioritária: azul. Porém, também é verde, quase negro, cinzento ou exibe pinceladas de violeta: alterações fascinantes cujo significado não se reduz à estética. “Do ponto de vista científico, o relevante não é saber por que é azul”, indicam os investigadores do Grupo Internacional de Coordenação de Atividades Sobre Cromatografia Oceânica (IOCCG). O importante é perceber por que motivo, por vezes, não é assim. Junto das costas, os sedimentos marinhos levantados pelas ondas, a matéria orgânica que escorre da terra, a poluição ou a tipologia dos fundos alteram a cor da água. E no alto mar? Os especialistas do IOCCG afirmam que “essas zonas não sofrem alterações tão evidentes, mas também mudam de cor, por vezes repentinamente”. Quando a luz alcança um objeto, a superfície deste absorve parte do espectro luminoso e reflete o resto, o que lhe confere a sua cor única. Neste caso, os fotões interagem com as moléculas da água, que refletem maioritariamente os de tom azul. Porém, nos oceanos, não há unicamente água e, por isso, a superfície exibe tons variados.

52 SUPER

O pioneiro na explicação do fenómeno foi John Young Buchanan, um químico embarcado no HMS Challenger, o navio britânico que efetuou a primeira campanha oceanográfica global da história, entre 1872 e 1876. Após as observações que fez em todo o mundo, Buchanan concluiu que a cor dos oceanos se devia ao plâncton, os micro-organismos que povoam a água. Nessa época, pensava-se que o mar era azul porque refletia a cor do céu, e a sua teoria foi ignorada. Até que, em meados do século XX, Charles Yentsch, considerado o pai da oceanografia interdisciplinar, foi buscá-la.

A NASA ENTRA EM CENA

“Sabemos que Buchanan tinha razão graças aos trabalhos de Yentsch”, afirma John Cullen, oceanógrafo da Universidade Dalhousie (Canadá): “A clorofila, o pigmento do fitoplâncton, vegetal, é o fator-chave da coloração marinha, embora se registe a intervenção de partículas inorgânicas ou de matéria orgânica dissolvida. Yentsch revolucionou o estudo do oceano ao estabelecer uma ponte entre a ótica e a ecologia.” Os seus trabalhos explicam minuciosamente as relações entre a luz e a vida marinha, e foram tão surpreendentes que atraíram o interesse da NASA.

Registar a cor da água a partir do espaço permite estudar o fitoplâncton como um todo e analisar os processos que condicionam os fluxos de nutrientes e energia no oceano, isto é, a sua produtividade. Uma colher de água do mar pode conter mais de um milhão de minúsculas plantas, mais pequenas do que a cabeça de um alfinete. Não vemos habitualmente o fitoplâncton, mas, observando da órbita terrestre, é possível captar a sua abundância ao medir a luz refletida pelo oceano. Com a ajuda de Yentsch e de outros cientistas, a NASA criou o sensor Coastal Zone Color Scanner (CZCS), colocado em órbita, em 1978, a bordo do satélite Nimbus-7. Integrado numa missão de estudo do clima, da atmosfera, dos mares e da relação entre todos, o CZCS foi o primeiro aparelho espacial capaz de determinar a cor das águas, e deu origem a um novo ramo da oceanografia. Até então, os dados provinham de observações em pequenas zonas, efetuadas ao longo da costa ou em embarcações, mas este instrumento conseguia abarcar áreas enormes em muito pouco tempo e registava a cor aquática para se poder conhecer a quantidade de fitoplâncton e a sua distribuição. “As imagens obtidas são compostas de amostras individuais, que denominamos ‘píxeis’,

AGE

GETTY

Excêntricos a bordo. A corveta HMS Challenger partiu de Inglaterra em 1872 e percorreu os oceanos Atlântico, Antártico, Índico e Pacíico durante quatro anos em que os cientistas a bordo puderam estudar os mares com um pormenor inédito. Os investigadores tinham como mascote um papagaio, Robert.


OCEANOS Deter o veneno. Um investigador recolhe algas do género Halimeda nas ilhas Gloriosas, no oceano Índico, para averiguar se há na sua superfície microalgas venenosas que possam afetar a cadeia alimentar e chegar aos humanos.

separadas por perto de mil metros”, explica Cullen. “A maior parte representa áreas demasiado vastas para uma única embarcação, e permite estudar zonas de difícil acesso, como as costas da Antártida.” O que acontece depois de se ter registado a cor? Nas palavras de Cullen, “se houver mais clorofila, será verde; se houver menos, predominarão os azuis”: “Através da tonalidade, é possível conhecer a concentração de clorofila e calcular, com base em algoritmos seguros, a biomassa do fitoplâncton.”

PIGMENTO VITAL

Porque é importante saber isso? Porque a vida depende dos organismos clorofílicos, que podem usar a energia solar para sintetizar as substâncias orgânicas necessárias para a constituição de seres vivos a partir de outras substâncias inorgânicas. O fitoplâncton é responsável por grande parte desse processo global, que liberta enormes quantidades de oxigénio na atmosfera. Por outro lado, ao consumir o dióxido de carbono dissolvido na água, permite que o mar continue a absorver esse gás de efeito de estufa. Além disso, estes organismos constituem a base da alimentação de muitos animais,

incluindo espécies comercializadas. Alterações no seu número e na sua distribuição são tão significativas que há empresas de pesca no alto mar que utilizam dados de deteção remota para prever onde fazer as capturas. “As variações do clima condicionam a quantidade de fitoplâncton”, afirma Nicholas Dulvy, um dos autores do relatório do IOCCG sobre pesca e aquicultura. “As larvas de peixes e invertebrados vivem perto da superfície durante um ou dois meses. As suas reservas de nutrientes são escassas, e precisam de águas muito produtivas. Muitas espécies ajustam a época de reprodução de forma que a eclosão dos ovos ocorra mesmo antes do florescimento anual do fitoplâncton.” Uma das primeiras observações sistemáticas da relação entre o clima e o oceano foi o estudo, nos anos 80, do fenómeno meteorológico El Niño. A América do Sul sofre, em ciclos irregulares de três a sete anos, chuvas torrenciais, por vezes devastadoras, causadas por uma alteração nos padrões dos movimentos das correntes marinhas que, noutras zonas do continente, produz secas. Há também consequências graves para os oceanos. Graças às imagens registadas pelo CZCS, Gene Feldman, oceanógrafo da NASA, concluiu que “o El Niño reduz de forma drástica o

fitoplâncton e altera a dinâmica biológica do Pacífico”. Michael Behrenfeld, biólogo da Universidade do Estado do Oregon, vai mais longe e defende que os seus efeitos constituem “o principal fator condicionante das diferenças anuais na abundância de fitoplâncton”, não só na zona onde se registam alterações no clima, mas a nível global: “Durante esse fenómeno, a produtividade diminui muito, com consequências na cadeia alimentar marinha.”

MAIS CALOR, MENOS ALIMENTOS

Os micro-organismos vegetais marinhos precisam de quatro coisas: água, dióxido de carbono, luz e nutrientes. As três primeiras abundam no mar. Quanto aos nutrientes, porém, os oceanos são um deserto. Azoto, fósforo e silicatos são os nutrientes inorgânicos essenciais para o fitoplâncton. Pouco abundantes, a sua concentração nas camadas superficiais da água é mínima, e encontram-se a maior profundidade, pois a diferença de temperatura entre a superfície e o fundo pode alterar a densidade das camadas de água e impedir que se misturem, num processo denominado “estratificação”. Mesmo se a densidade ao longo da coluna de água for igual, é necessária uma força (vento, correntes, tempestades...) que promova Interessante

53


OSWALDO RIVAS / REUTERS

Documento

Nem uma gota. Na América Central, o fenómeno meteorológico El Niño reduz as chuvas ao mínimo. Noutros locais da América do Sul, chove torrencialmente.

a mistura de estratos. Assim, nos oceanos de águas temperadas (de forma semelhante ao que acontece em terra, passado o inverno), o mar floresce e tinge-se de verde, à medida que o fitoplâncton aproveita o aumento de horas de luz e se multiplica exponencialmente, duplicando em cada dia a sua população. Uma das características do El Niño é a singular subida de temperatura da superfície oceânica. “Muitos modelos preveem que, em mares mais quentes, o fitoplâncton não poderá prosperar”, explica Behrenfeld, “porque, à medida que o calor à superfície aumenta, a coluna de água fica cada vez mais estratificada, o que impede a subida dos nutrientes. É o que acontece durante o El Niño. Nos anos em que é mais intenso, há uma considerável diminuição da produtividade, o que nos proporciona pistas sobre as futuras consequências das alterações climáticas.”

ALTERAÇÕES ESTERILIZANTES

Essas transformações começam a ser visíveis nos giros oceânicos, zonas conhecidas por “desertos oceânicos”: “Apesar das suas águas oligotróficas, com pouca biomassa e produção, essas áreas ocupam vastas extensões, o que torna muito importante o seu contributo para o ciclo global do carbono”, afirma Sergio Signorini, oceanógrafo da NASA. Com os dados obtidos durante treze anos

54 SUPER

pela missão SeaWiFS, da NASA, Signorini publicou, em 2011, uma análise das alterações de cor nas águas dos giros, a qual indica que a quantidade de clorofila detetada depende da temperatura superficial. No verão, as camadas de água não se misturam e há menos nutrientes e clorofila. No inverno, acontece o contrário. Assim, alterações a longo prazo na temperatura do planeta afetarão a variabilidade interanual do fitoplâncton. Segundo Signorini, os giros do Pacífico Norte, do Índico e do Atlântico Norte perderam cerca de dez por cento da concentração de clorofila devido a um aumento da temperatura superficial da água de menos de meio grau. Para o oceanógrafo Jeffrey Polovina, “as alterações na cor do mar indicam que as águas menos produtivas se expandem”: “Em 2050, as alterações climáticas terão aumentado em 4% a área ocupada pelos giros do hemisfério norte, e em 9,4% a do hemisfério sul. São milhões de quilómetros quadrados sem vida.” Isso irá condicionar a quantidade de carbono absorvido pelo oceano e, talvez, a trajetória dos ciclones tropicais. Essas gigantescas tempestades tendem a formar-se perto do equador, onde as águas são quentes, e dirigem-se depois para o Atlântico Norte ou para o noroeste do Pacífico. O especialista Anand Gnanadesikan explica: “Para criar modelos climáticos mais

realistas, observámos a relação da cor do mar com a evolução das tempestades. Com a retirada do fitoplâncton dos giros do Pacífico Norte, a temperatura da água descia, o percurso dos ciclones alterava-se e o seu número diminuía, pois alimentam-se de águas quentes.”

ANCHOVAS OU SARDINHAS?

Os cientistas preveem alterações nas populações destes micro-organismos que afetarão a cadeia alimentar e o clima. É preciso não esquecer que nem todo o fitoplâncton é igual, e que os grandes agrupamentos destes seres são dominados por certas espécies, agregações de organismos que partilham características que lhes atribuem um certo papel no ecossistema. Observados do espaço, alguns dos principais grupos são diferenciáveis através da análise de dados e do recurso a complexos algoritmos. Pensa-se que as águas mais quentes irão favorecer a proliferação das espécies de menor tamanho, em detrimento das grandes, que necessitam de mais recursos. “Em 2005, publicámos um modelo que sugeria que as alterações climáticas criavam condições favoráveis às espécies mais pequenas de fitoplâncton à custa das diatomáceas. Embora todos esses organismos sejam fotossintéticos, o destino do carbono que captam depende, em grande medida, do seu tipo. As diatomáceas


WILLIAM WEST / AFP PHOTO

OCEANOS

Ameaça vermelha. Em novembro de 2012, um lorescimento da alga Noctiluca scintillans obligou a fechar as praias de Clovelly e Bondi, em Sydney (Austrália). Não é tóxica, mas contém amoníaco, que pode irritar a pele.

são algas unicelulares com paredes silicosas e predominam no fitoplâncton quando se registam condições ótimas”, explica Laurent Bopp, climatólogo do Instituto Pierre-Simon Laplace (França): “Quando se acabam os nutrientes e as algas morrem, o seu tamanho e o peso da carapaça afundam-nas, levando para o fundo o carbono capturado à superfície.” O mesmo não acontece com o fitoplâncton mais pequeno, que absorve carbono de forma menos eficiente. “Do mesmo modo que há grupos cuja deteção é essencial devido à sua toxicidade, a presença ou ausência de outros pode modificar a dinâmica do ecossistema”, precisa Bopp. Por exemplo, vários estudos indicam que, na corrente de Benguela (que circula para o norte, na costa sudoeste de África), a abundância de diatomáceas favorece o aumento de anchovas, enquanto, se houver mais flagelados, cresce a quantidade de sardinhas. “O estudo destas variáveis permite prever como será a temporada de pesca”, indica o especialista francês. A cor do mar também ajuda a detetar espécies nocivas. A Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA) dos Estados Unidos vigia as marés vermelhas do golfo do México e controla a abundância do ser que as causa: o dinoflagelado Karenia brevis, produtor de potentes neurotoxinas. Segundo o IOCCG,

também se poderia prever dessa forma a chegada à costa de alforrecas perigosas, pois os seus movimentos correspondem, em parte, a zonas de convergência e frentes oceânicas visíveis de satélite.

INDICADOR DE POLUIÇÃO

O biólogo Assaf Vardi, do Instituto Weizmann de Ciência (Israel), defende que “a ausência de fitoplâncton onde deveria existir indica que pode haver elevados níveis de poluição ou outros fatores perniciosos”. Vardi publicou, em conjunto com Ilan Koren, especialista em nuvens, um estudo que indica que vírus poderiam acabar repentinamente com enormes florescimentos de fitoplâncton. “Não é possível detetar vírus do espaço, mas as amostras que recolhemos in situ confirmaram a sua presença. As alterações climáticas poderiam aumentar esses ataques e debilitar ainda mais a produtividade marinha”, explica Vardi. Métodos semelhantes ajudariam a estimar a probabilidade dos surtos de cólera. A ligação entre a bactéria Vibrio cholerae e a água é conhecida, mas esquece-se a sua relação com o zooplâncton. Na fase latente, a bactéria sobrevive nos copépodes, uma das espécies mais abundantes de zooplâncton, cujas populações flutuam em sintonia com as do seu alimento, o fitoplâncton.

Monitorizar o fitoplâncton é também importante para a sobrevivência dos animais das regiões polares, onde o aquecimento global é mais percetível. Uma das espécies mais afetadas é a ameaçada baleia da Gronelândia, Balaena mysticetus, que se alimenta de zooplâncton. Nas palavras do biólogo marinho Daniel Pendleton, “qualquer alteração no gelo terá efeitos diretos na quantidade de fitoplâncton, o alimento do zooplâncton; para podermos entender a distribuição das baleias e prever futuros cenários, devemos estudar como a abundância de plâncton condiciona os cetáceos”. Em termos de observação dos mares, os dados mais precisos continuam a ser os obtidos pela missão SeaWiFS, da NASA, entre 1997 e 2010. Os instrumentos no ativo têm menos capacidade e os estudos correm o risco de não avançar. No entanto, há boas notícias: está previsto o lançamento pela Agência Espacial Europeia (ESA), ainda este ano, do satélite Sentinel-3, com instrumentos que irão captar a temperatura e a cor do mar, entre outros parâmetros. Por sua vez, a NASA está a planear a missão PACE, que deverá colocar em órbita, em 2022 ou 2023, um sensor muito mais eficiente do que o do SeaWiFS. Ambas as iniciativas irão proporcionar-nos uma maior compreensão dos ecossistemas oceânicos. J.B.

Interessante

55


Documento

Fitoplâncton salvador A oceanógrafa Shubha Sathyendranath é uma das especialistas mais reputadas no estudo da cor dos mares, essencial para poder compreender e combater as alterações climáticas.

56 SUPER

trata-se de uma massa enorme, no seu conjunto. Se pensarmos que 70 por cento do nosso planeta está coberto de água, podemos fazer uma ideia de quanto fitoplâncton existe, assim como do papel que um grupo tão grande de criaturas desempenha. O seu estudo permite-nos investigar como os mares absorvem carbono, um processo que ainda não compreendemos. Já se disse que o oceano é o principal sumidouro de CO2 do planeta, mas existem muitas incógnitas, como a de que quantidade de carbono podem os oceanos realmente absorver e como se processa esse fenómeno. O que sabemos a esse respeito atualmente? Sabemos que o dióxido de carbono se dissolve na água, que o fitoplâncton o absorve através da fotossíntese e que, quando morre, se afunda, arrastando-o para as profundezas. Esse mecanismo contribuiu para retirar da atmosfera enormes quantidades de CO 2, ao longo de milhões de anos. Sabemos também que o processo tem um limite, a partir do qual afeta a química da água e provoca acidificação.

PERTURBAÇÕES REGIONAIS Esses mecanismos vão sofrer modificações devido às alterações climáticas? Não temos a certeza. Pessoalmente, creio que haverá perturbações, embora não a nível global. Há muitos fatores em jogo, e o mais provável é que as alterações, considerando que o aquecimento global não é um fenómeno homogéneo em todo o planeta, sejam regionais. Faz sentido que a produtividade marinha se altere em muitas zonas, mas algumas beneficiarão com isso e outras ficarão a perder. Os dados de que dispomos não nos permitem saber onde está o equilíbrio dos fatores. Temos de possuir informação, obtida durante muito tempo, para poder estudar como se comportam

SHUBHA SATHYENDRANATH

S

hubha Sathyendranath, nascida na Índia, em 1952, aplica conceitos de ótica ao estudo de fenómenos biológicos. Foi pioneira na deteção remota da composição das comunidades de fitoplâncton e dedicou-se, nos últimos anos, a investigar o papel desses organismos no aquecimento dos oceanos. Coordena, no Laboratório Marinho de Plymouth (Reino Unido), o projeto Ocean Colour, que faz parte da Iniciativa Sobre as Alterações Climáticas da Agência Espacial Europeia (ESA). Porque são tão importantes os estudos sobre a cor das águas dos mares? Podem ajudar-nos a entender como funciona o ecossistema na sua totalidade. A cor que observamos depende da luz e, no oceano, é uma fonte de energia. Os organismos que ali vivem dependem dela. Assim, estes estudos podem revelar-nos muito sobre a abundância desses seres e sobre a forma como estão a consumir carbono. Em geral, o fitoplâncton é responsável pela cor do mar, que se situa normalmente dentro de uma variada gama de verdes. Cada grupo de fitoplâncton possui o seu tom específico, e podemos apreciar essas diferenças através dos satélites. Além disso, o próprio processo de fotossíntese, a absorção de carbono, altera a cor. Uma diferença mínima mas mensurável permite-nos inclusivamente saber o que estão a fazer os organismos e que impacto exercem em determinado momento, ao longo do tempo ou à escala global. O que nos revelam os dados no contexto do aquecimento global? O ciclo do carbono tem um papel fundamental nas alterações climáticas, pois continuamos a libertar dióxido de carbono na atmosfera. Embora o fitoplâncton seja formado por plantas muito pequenas, apenas visíveis ao microscópio,


OCEANOS É melhor não mexer. A investigadora é contra a manipulação do oceano para estimular a produção de itoplâncton e absorver CO2.

os oceanos, e só depois poderemos entender o que está a mudar, Todavia, já temos algumas pistas. O que dizem esses indícios? A acidificação da água, por exemplo, terá seguramente consequências. Um dos grupos mais abundantes no plâncton é o dos cocolitóforos, algas marinhas unicelulares que protegem os corpos com conchas arredondadas de escamas de calcite. Se o pH da água baixar, não conseguem formar a carapaça e, em algumas zonas, já estão a experimentar dificuldades. Trata-se de um problema semelhante ao que afeta os recifes de coral. É também provável que alterações no clima provoquem mudanças fenológicas em grande escala, isto é, que alterem a forma e o momento em que os animais se reproduzem e a velocidade a que se desenvolvem. Que consequências terão essas alterações na saúde do planeta? Ainda não sabemos, mas algumas serão relevantes. O fitoplâncton constitui a base da cadeia trófica, pelo que tudo o que vive no oceano depende dele, direta ou indiretamente. Além disso, absorve, no seu conjunto, mais CO2 do que todas as plantas terrestres. Se dissermos às pessoas que vão abater árvores na Amazónia, muitas ficarão zangadas. Porém, no ciclo global do carbono, o fitoplâncton é muito mais importante do que as florestas, pelo que deveria preocupar-nos mais. As microalgas vão reagir às alterações, e fá-lo-ão muito depressa, porque têm ciclos de vida curtos. Aconteça o que acontecer, será um processo veloz. Nessa altura, seremos nós a ter um problema, pois fomos incapazes de reagir a tempo.

PIOR A EMENDA Já se sugeriu a fertilização das águas para estimular o crescimento do fitoplâncton e combater as alterações climáticas. O que lhe parece? Não estou de acordo com essa ideia. O aumento da biomassa de fitoplâncton em consequência de fertilizações com ferro ou azoto (ou através de qualquer outro sistema, como misturar mecanicamente diferentes camadas de água) só contribuiria para aumentar ainda mais a estratificação. Ocorreria porque uma grande quantidade de microalgas captaria a luz solar na camada superior do oceano, dissipando calor e fazendo subir a temperatura da água. O resultado seria piorar a estratificação e, além disso, um maior volume de calor seria transferido do oceano para a atmosfera. A situação seria pior em todos os sentidos. Nesse caso, não há solução? Não tenho a certeza. Há décadas que ouvimos falar de alterações climáticas, mas não

se tomou decisões nem se agiu. As emissões aumentam sem cessar e ninguém se preocupa verdadeiramente, pelo que não tenho grandes expectativas positivas. Neste momento, talvez a única esperança resida na tecnologia. Talvez possamos desenvolver máquinas fotossintéticas, que possam consumir CO2 e libertar oxigénio no processo, ou recorrer à bioengenharia para aumentar a capacidade fotossintética de alguns micro-organismos. No entanto, estas hipóteses estão longe de ser objetivas, são apenas fruto da minha imaginação. A poluição também pode ser detetada do espaço. Que papel desempenha neste panorama? Alguns tipos de poluição são detetados pela sua cor. Por exemplo, foram usadas imagens obtidas por satélite para controlar se as plataformas petrolíferas cumprem ou não as normativas, ou se os navios fazem lavagens ilegais de tanques no mar alto. Essas atividades dão origem a manchas que são perfeitamente visíveis. Por vezes, também descobrimos florescimentos maciços de fitoplâncton junto das costas em momentos pouco habituais. Podem ocorrer quando o crescimento é estimulado por uma abundância excessiva de nutrientes, normalmente desencadeada pela contaminação de águas residuais ou pela infiltração de fertilizantes usados na agricultura.

DE BENGUELA AO ÁRTICO Esses episódios têm consequências? Claro! Quando a quantidade de fitoplâncton costeiro é mais elevada do que seria normal, pode bloquear a passagem da luz e prejudicar o crescimento da vegetação aquática. A situação torna-se problemática, pois as pradarias marinhas são os viveiros de muitas espécies. Além disso, quando o fitoplâncton começa a morrer, afunda-se. As bactérias que decompõem toda essa matéria orgânica consomem oxigénio, o que causa eutrofização e pode conduzir à morte de grande número de animais e plantas da zona. A abundância de fitoplâncton costuma significar vida e alimento, mas, nestes casos, pode ser um presságio do oposto. Há zonas de especial importância para o estudo da cor do mar? Não creio que existam zonas mais relevantes. Porém, não há dúvida de que há áreas que gostaria de estudar, como a corrente de Benguela, na costa sudoeste africana. Além disso, as leituras revelam números enormes de clorofila, pelo que deve estar a passar-se ali algo de interessante. No Ártico também, pois é um ponto quente para a ciência do clima. Curiosamente, a fusão do gelo é boa para o fitoplâncton. Muitos desses organismos prosperam debaixo do gelo e, se ele derreter, será mais fácil reproduzirem-se. Para o fitoplâncton, o colapso do Ártico significa vida e abundância. J.B.

Interessante

57


Documento FOTOS: ESA

Janelas indiscretas A observação dos oceanos em grande escala responde a um princípio inexorável: quanto mais nos afastamos, melhor vemos. As fotos tiradas em órbita revelam o estado real dos nossos mares.

58 SUPER


OCEANOS Explosão vital. Uma grande mancha estende-se pelo mar de Barents, a norte da Noruega e da Rússia. É a cloroila, empregue pelo itoplâncton para realizar a fotossíntese. A imagem foi obtida pelo espectrómetro MERIS, do satélite europeu Envisat.

Interessante

59


Documento

Lago sem saída. As alterações climáticas ameaçam o mar Cáspio, o maior lago do mundo (371 mil quilómetros quadrados). Na foto, vemos a sua parte norte, que banha as costas do Cazaquistão e da Rússia.

60 SUPER

Barómetro. A Grande Barreira de Coral (a linha azul entrecortada) estende-se por 2300 quilómetros sob a superfície, junto à costa nordeste australiana. O seu estado indica a saúde das águas.


OCEANOS

Maré vermelha. Algas microscópicas penetram no golfo Pérsico (à esquerda). Os satélites rastreiam este fenómeno, que daniica as centrais dessalinizadoras dos Emirados Árabes Unidos.

Onda viva. O satélite Aqua, da NASA, testemunhou a mistura de nutrientes e plantas unicelulares ao largo da costa da Argentina, um fenómeno causado pela conluência de duas correntes marinhas.

Interessante

61


Flash

Manchas antibacterianas Após alguns dias esquecida no frigoríico, esta gelatina foi colonizada por bolores, e acabou no caixote do lixo. Há cerca de 87 anos, num pequeno laboratório londrino, aconteceu algo parecido, mas o desfecho foi bem diferente, culminando numa grandiosa descoberta que revolucionou a medicina. Alexandre Fleming, médico microbiologista, reparou que as bactérias patogénicas não se conseguiam desenvolver em redor de manchas de bolor. Após aturadas investigações, constatou que o bolor Penicillium notatum produzia uma substância bactericida, a que chamou “penicilina”. Foi o primeiro antibiótico usado com sucesso e valeu ao cientista a atribuição do Prémio Nobel da Fisiologia e da Medicina, em 1945. Os bolores do género Penicillium (azuis e verdes) são relativamente comuns nas nossas casas, atacando, frequentemente, as frutas cítricas, os queijos e outros alimentos. Constituem fungos sapróbios, que se alimentam de matéria orgânica em decomposição: libertam enzimas que digerem o alimento no meio extracelular e absorvem os nutrientes que resultam dessa digestão. A margem branca das manchas evidencia o crescimento do micélio (os ilamentos que constituem o “corpo” do fungo). Foto: Jorge Nunes.

62 SUPER


Interessante

63


Geologia Erupções que mudaram a história

Os espirros da TERRA Desde a erupção de Santorini, que pôs fim à cultura minoica, e da torrente de lava do Vesúvio, que arrasou Pompeia, temos receio dos vulcões. Como se viu em abril e maio com o Calbuco, no Chile, eles podem transformar paisagens, criar ilhas, extinguir espécies e destruir cidades. Estas foram as erupções mais brutais.

64 SUPER

hemisfério sul, pois o vulcão Hudson, no Chile, também entrou em erupção a 8 de agosto. A nuvem de partículas em suspensão que o Pinatubo projetou para a estratosfera reduziu em dez por cento a quantidade de luz solar que alcançou, nesse ano, a superfície do planeta, e baixou a temperatura mundial em cerca de 0,4 graus (um pouco mais no hemisfério norte: 0,6 ºC). Como efeito positivo, podemos referir que o aquecimento global provocado pela atividade humana diminuiu, o que deteve temporariamente a subida do nível dos mares, que chegou a descer cinco milímetros. * O índice de explosividade vulcânica (IEV) é uma escala de 1 a 8 graus que mede a magnitude de uma erupção. Tem em conta, entre outros fatores, o volume de produtos expulsos (lava, piroclastos, cinza...), a altura da nuvem provocada e o número de vítimas.

SANTORINI

Grécia, 1600 a.C. IEV: 7 A grande civilização minoica, que se desenvolveu na ilha de Creta entre os anos 3000 e 1400 a.C., sofreu um ocaso tão rápido que deixou os arqueólogos surpreendidos quando desenterraram os seus palácios, no início do século XX. Tudo indicava que aquela grande cultura sofrera uma destruição repentina, talvez causada pela tremenda erupção do

ALBERTO GARCÍA / CORBIS

PINATUBO

Filipinas, 1991. IEV: 6 * Os aetas, um povo que vive nas encostas do monte Pinatubo, na ilha de Luzon, a maior das Filipinas, foram as primeiras testemunhas dos avisos lançados pelo vulcão. Este permanecera mais de cinco séculos inativo mas, em abril de 1991, começou a produzir explosões e colunas de fumo que antecipavam a terrível erupção que ocorreria dois meses depois, a 15 de junho. Nessa data, milhões de toneladas de magma e dióxido de enxofre saíram pela cratera do Pinatubo. A violência do fenómeno acentuou-se com a chegada do tufão Yunya, que transportou as cinzas húmidas, depositando-as nos telhados das casas dos aetas. Muitas sofreram derrocadas, o que causaria a morte da maior parte das 847 vítimas da catástrofe. Contudo, apesar da tragédia, a campanha de prevenção, ativada pelo alerta lançado por membros da comunidade aeta, evitou um desastre ainda maior, dado que se trata de uma zona densamente povoada. As autoridades filipinas estabeleceram com suficiente antecedência três zonas de evacuação (a 10, 20 e 40 quilómetros do cume), pelas quais foram deslocando os habitantes depois de conseguirem convencê-los do perigo que corriam. A explosão teve um impacto global sobre o clima, percetível em vários aspetos. O buraco da camada de ozono aumentou, sobretudo no


Saiam do caminho! Habitantes fogem do fumo lançado pelo Pinatubo em 15 de junho de 1991. Antes da erupção, o vulcão media 1745 metros; atualmente, tem apenas 1486.

Interessante

65


Congelados pelo calor. Vítimas de Pompeia tal como icaram marcadas nas cinzas, depois de terem sido sufocadas por gases a temperaturas infernais.

AGE

Cadeia vulcânica. As Montanhas do Fogo revelam a magnitude das erupções ocorridas em Lanzarote (Canárias) entre 1730 e 1736.

As ilhas da Indonésia sofreram três das dez mais mortíferas vulcão de Tera, noutra ilha grega próxima, a de Santorini, ou por algum fenómeno sísmico relacionado. Os dados de pesquisas marinhas obtidos nos últimos anos aumentaram a magnitude da que poderá ter sido uma das três erupções mais brutais da história. O vulcão de Santorini (hoje, um belo destino turístico) projetou em todas as direções 60 quilómetros cúbicos de rocha, uma chuva de escombros que viajou centenas de quilómetros e alcançou o interior da Anatólia, onde os geólogos localizaram estratos de cinzas com 20 centímetros de altura. Em lugares mais próximos da cratera, como a vizinha ilha de Anafi, acumularam-se montanhas de lava e cinza de até três metros de altura. Um grande tsunami atingiu a costa setentrional de Creta e houve terramotos, antes e depois da erupção, que podem ter causado a derrocada dos seus palácios e, seguramente, milhares de mortos. Dada a antiguidade da catástrofe, faltam testemunhos científicos, pelo que os historiadores recorrem a relatos literários ou mitológicos: entre outros, a narrativa de Platão sobre a civilização perdida da Atlântida, supostamente sepultada por um maremoto. Quando se localizaram, em 1967,

66 SUPER

em Santorini, os restos da avançada cidade minoica de Akrotiri, equacionou-se que talvez aquele desastre tenha servido de inspiração ao filósofo.

TIMANFAYA

Lanzarote, 1730. IEV: 3 “Entre as nove e as dez da noite, a terra abriu-se subitamente perto de Timanfaya, a dois quilómetros de Yaiza. Na primeira noite, uma enorme montanha elevou-se do seio da Terra, e do cume saíam chamas que continuaram a arder durante dezanove dias.” Foi assim que o cura Andrés Lorenzo Curbelo descreveu o início do fenómeno que, a partir de 1 de setembro de 1730 e até 1736 (com réplicas em 1824), mudaria para sempre a geografia de Lanzarote. O longo processo eruptivo, um dos mais relevantes e espetaculares da história do vulcanismo do planeta, sepultou um quarto daquela ilha das Canárias sob um espesso manto de lava e cinza. Os vinte e cinco vulcões que surgiram formaram o maciço das Montanhas do Fogo. Durante os seis anos que duraram as explosões e emissões de lava, os habitantes de Yaiza (localidade cujo pároco era Curbelo) e de outras

povoações próximas tiveram de fugir em diversas ocasiões, assustados com a escuridão produzida pela massa de cinzas e pelo fumo que cobria a ilha. Perderam-se as colheitas e o fenómeno eruptivo arruinou as que eram consideradas as melhores terras de cultivo, ricas em cereais. Com o tempo, os agricultores desenvolveram sistemas alternativos; escavaram de forma que as raízes das plantas (sobretudo videiras) pudessem captar a água existente sob as camadas de lava e cinzas, e reconverteram as culturas da ilha. Por sua vez, a nova paisagem vulcânica, de grande beleza, deu origem ao Parque Nacional de Timanfaya, principal atração turística de Lanzarote. O facto é que as Canárias são um arquipélago vulcânico apoiado sobre a placa atlântica na zona de contato com a placa continental africana, o que produz frequentes movimentos geológicos. As crateras de La Palma (Montanha Queimada, Teneguia) e de Tenerife (Garachico, Arafo, Teide) provocaram vários sustos no passado. Mais recentemente, as erupções marinhas de 2011 e 2012 em El Hierro demonstraram que a sua população vive sobre uma caldeira. Um vulcão situado 88 metros abaixo do nível do mar de Las Calmas tornou necessário evacuar os habitantes de La Restinga. Segundo um estudo recente, acumulou-se sob a ilha, entre os 12 e os 25 km de profundidade, um grande volume de magma do manto terrestre que constitui uma ameaça latente.


Proporções bíblicas. Esta representação da explosão do Tambora, em 1815, parece exagerada, mas a verdade é que a coluna de fumo chegou aos 43 km de altura.

VESÚVIO

Itália, 79. IEV: 5 Dez vasos de argila prontos para serem introduzidos num forno de oleiro, recentemente descobertos pelos arqueólogos, mostram novamente como Pompeia estava ativa na altura em que o Vesúvio arrasou a cidade. A súbita erupção provocou a morte não apenas dos seus residentes como da maior parte dos habitantes de Herculano e Estábia, localidades vizinhas no golfo de Nápoles. Estima-se que morreram, no total, cerca de 25 mil pessoas. Não é de estranhar a ausência de qualquer previsão, pois o Vesúvio mantinha-se silencioso há dois séculos e meio e, embora tivesse havido sismos, ninguém os relacionava com a atividade vulcânica. Por isso, os habitantes de Pompeia não se afligiram na manhã de 24 de agosto do ano 79 ao ver uma coluna de fumo subir no céu. Todavia, tudo mudou quando uma chuva de lodo e, depois, de cinzas e pedras-pomes com vários quilos de peso caiu logo de seguida. Contudo, o pior foram os fluxos piroclásticos: nuvens compostas de gás quente que, depois de serem projetadas no ar pela erupção, desceram em vagas sucessivas pela encosta abaixo até à cidade, arrastando tudo o que encontravam pelo caminho. Embora se pensasse que as vítimas tinham morrido asfixiadas pelos gases, um estudo recente revelou que a principal causa foi a onda de calor transportada pelo quarto desses seis fluxos pirocásticos, que atingiu

os 300 ºC, um aumento de temperatura que provocava morte instantânea. Daí as posições agónicas e tensas causadas pelos espasmos musculares nos corpos que foram preservados.

LOMA CALDERA

El Salvador, 640. IEV: 3 A civilização maia, que habitava uma zona de grande atividade vulcânica da Mesoamérica, também sofreu uma erupção catastrófica, embora, neste caso, nunca se tenha encontrado vítimas humanas. A Pompeia dos Maias estava situada num território que pertence hoje a El Salvador, e chamava-se Jóia de Cerén, Tratava-se de uma povoação agrícola próspera que ficaria sepultada sob catorze camadas de cinza que foram caindo sucessivamente. Os arqueólogos pensam que Jóia de Cerén foi fundada por volta do ano 400. Século e meio antes, a erupção do vulcão Ilopango, que depositou diversos materiais na zona, deu origem a um solo muito fértil que atraiu a ocupação humana. Infelizmente, o povoamento só durou duzentos anos: em 640, outro vulcão, o Loma Caldera, registou uma erupção violenta que tornou a vida impraticável. Parece que os habitantes conseguiram fugir a tempo e, depois, as cinzas conservaram quase intacta a povoação, descoberta, em 1976, por um camponês cujo trator colidiu com as ruínas. Surgiram casas, edifícios políticos e religiosos e campos de cultivo de iúca, uma importante descoberta.

TAMBORA

Indonésia, 1815. IEV: 7 A maior erupção jamais registada pelo homem ocorreu há precisamente dois séculos, no mês de abril. A montanha de Tambora, em Sumbawa (uma pequena ilha do arquipélago indonésio), transformou-se numa imensa caldeira natural, com mais de 6 km de diâmetro e 700 m de profundidade. A explosão teve uma potência equivalente a 800 megatoneladas de TNT (a bomba atómica mais potente detonada até agora alcançou 50 megatoneladas). A 2000 km de distância, na ilha de Sumatra, ouviu-se a descarga. A coluna surgida da erupção subiu até aos 43 km de altitude, e esteve quase a ultrapassar os limites da estratosfera. O primeiro efeito da devastadora catástrofe foi uma chuva letal de mais de 160 quilómetros cúbicos de rocha vulcânica, a qual, juntamente com os restantes fluxos piroclásticos, matou diretamente, pelo menos, dez mil pessoas. Depois, produziram-se vários tsunamis em cadeia, com ondas de mais de quatro metros de altura, noutras ilhas da Indonésia, como Java ou as Molucas. Resultado: mais 4000 mortos. Contudo, não tardou que todos esses números se tornassem pouco importantes perante os efeitos devastadores da fome, da sede e das doenças que alastraram por um território completamente arrasado. Os peritos estimam que o número total de vítimas do vulcão Interessante

67


JOHN VIZCAINO / REUTERS

Gelo fatal. O Nevado del Ruiz explodiu em novembro de 1985. A súbita liquefação dos glaciares causou 24 mil vítimas.

Estima-se que haja atualmente 2000 vulcões ativos latentes Tambora se tenha elevado a cerca de 82 mil. O clima em todo o planeta foi alterado pelo acontecimento, pois o enxofre lançado para a estratosfera atenuou o impacto da luz solar nos cinco continentes. Os efeitos foram particularmente graves no hemisfério norte, onde se registaram neblinas persistentes no verão de 1815. Contudo, o pior viria meses depois, quando uma frente fria fez descer as temperaturas entre 0,4 e 0,7 ºC, o que modificou a agricultura a nível mundial e provocou fenómenos tão estranhos como ter nevado em Nova Iorque no mês de junho. Por essa razão, 1816 ficaria conhecido como “o ano sem verão”.

PELÉE

Martinica, 1902. IEV: 4 Saint-Pierre foi descrita como a “cidade de ossos” depois de ter sido arrasada, a 8 de maio de 1902, pela explosão do vizinho monte Pelée. Os 30 mil habitantes da capital da ilha francesa da Martinica, nas Caraíbas, morre-

68 SUPER

ram numa questão de minutos. A catástrofe foi um caso clássico de cegueira política, dada a ausência de medidas preventivas: a cidade não fora evacuada apesar dos numerosos sinais prévios de perigo. O processo era visível desde 1899, quando a erupção se iniciou com fumarolas intermitentes e a formação de uma cratera. Em fevereiro de 1902, surgiram novas fumarolas de ácido sulfídrico. No final de abril, os avisos não podiam ser mais claros: uma nuvem de cinzas cobriu Saint-Pierre, cheirava intensamente a enxofre, os animais fugiam da montanha… Como havia eleições legislativas marcadas para 11 de maio e o governador da Martinica, Louis Mouttet, queria assegurar o máximo de participação, desvalorizou os riscos. Porém, neste tipo de erupção, hoje denominada “peleana”, a lava é muito viscosa, consolida muito depressa e tapa por completo a cratera. A 8 de maio, a enorme pressão dos gases enclausurados rebentou uma das paredes do

vulcão: por ali saíram as emanações a 500 km/h, na forma de uma nuvem escaldante que percorreu num ápice os 6 km que a separavam de Saint-Pierre.

NEVADO DEL RUIZ

Colômbia, 1985. IEV: 3 Em dezembro do ano passado, as autoridades do Serviço Geológico colombiano alertavam para “alterações na atividade” do Nevado del Ruiz, o que fez recordar, inevitavelmente, a erupção de 1985. Com 24 mil mortos e 5000 feridos, tratou-se do maior desastre natural na história daquele país latino-americano. O vulcão, ativo de forma recorrente desde há 8000 anos, emitira avisos alguns meses antes, com diversos movimentos sísmicos. A diminuição da atividade, em outubro de 1985, deu uma impressão de falsa tranquilidade: no interior do Nevado del Ruiz, havia novamente magma a subir para a superfície. Quando os líquidos magmáticos começaram a libertar gases, a reação conduziu ao aumento da pressão e à explosão. Vulcanólogos italianos tinham alertado, a 22 de outubro, para o elevado risco. Os piores prejuízos foram causados pelos


ETIENNE DE MALGLAIVE / GETTY

Aviação encerrada. O Eyjafjallajökull lançou para a atmosfera uma coluna de fumo que se elevou a 20 km de altura, em 2010.

lahares, grandes fluxos líquidos de materiais arrastados pela liquefação dos glaciares no topo da montanha. A 13 de novembro, quando ocorreu a erupção, os lahares fluíram a 60 km/h, canalizados pelos rios que iam surgindo. O mais mortífero desses fluxos arrasou a cidade de Amero e matou milhares de habitantes, incluindo a pequena Omayra Sanchez, cuja agonia de três dias ao ficar presa na lama sob os escombros da sua casa foi transmitida em direto pelas televisões de todo o mundo.

KRAKATOA

Indonésia, 1883. IEV: 6 Krakatoa foi uma ilha formada por três cones vulcânicos, situada no estreito de Sonda, entre Java e Sumatra. Em maio de 1883, houve várias erupções que culminaram com uma explosão cataclísmica a 17 de agosto. Terríveis tsunamis, com ondas de mais de 30 metros, varreram o oceano Índico e provocaram 36 mil mortos, segundo as autoridades coloniais holandesas da época. Cerca de 150 vilas e aldeias de Java e Sumatra foram destruídas pela força das águas. Foram encontrados corpos a flutuar sobre blocos de pedra-pomes até um ano depois da erupção, em sítios tão

remotos como a costa oriental africana. O movimento do mar notou-se inclusivamente no canal da Mancha, e a detonação foi ouvida nas ilhas Maurícias, a 5000 km de distância. O mais surpreendente é que se tratou de uma erupção autodestrutiva, pois a ilha desapareceu sob as águas. Contudo, a atividade vulcânica prosseguiu no fundo marinho e, 45 anos depois, em 1928, fez surgir do oceano uma nova ilha, denominada Anak Krakatau (Filho do Krakatoa) pelos indonésios, que tem vindo a crescer cerca de cinco metros por ano. O novo vulcão, que entrou pela última vez em erupção em 2010, já tem 300 metros de altura, e os geólogos acreditam que também irá, um dia, explodir violentamente.

EYJAFJALLAJÖKULL

Islândia, 2010. IEV: 4 Muitos viajantes aéreos de todo o mundo, em particular da Europa, deram de caras com um nome escandinavo impronunciável, de dezasseis letras, que obrigou ao cancelamento inesperado dos seus voos, em 15 de abril de 2010. Na véspera, o vulcão Eyjafjallajökull, na remota Islândia, entrara em erupção e projetara cinzas a vários quilómetros de altura na

atmosfera. A dispersão desses materiais a semelhante altitude e a formação de cristais (um risco para os motores) criaram um problema irresolúvel para o tráfego aéreo no noroeste do continente europeu, uma das regiões mundiais com maior densidade de circulação de aviões, e obrigou ao cancelamento de cerca de 17 mil voos só no primeiro dia, devido ao encerramento de vários aeroportos, incluindo os de Frankfurt e de Amesterdão. Durante os cinco dias que durou a crise, o número de voos cancelados subiu para 95 mil. Situado no sul da ilha, o Eyjafjallajökull está completamente coberto por um glaciar. O cume fica a 1651 m de altitude e faz parte da cadeia de acidentes geológicos provocados pelo facto de a Islândia ser atravessada pela dorsal mesoatlântica, o ponto de colisão entre as placas euroasiática e norte-americana. O alarme considerável que a erupção suscitou deveu-se ao receio de que o Katla, outro vulcão subglaciar do país, situado a apenas 2 km de distância, pudesse entrar em atividade. Isso porque, em três ocasiões anteriores, a explosão do Eyjafjallajökull foi seguida por outra do Katla. Felizmente, desta vez, não aconteceu. J.A.M.

Interessante

69


Ambiente Segredos do Baixo Vouga Lagunar

A porta da RIA A

minha primeira visita ao Baixo Vouga Lagunar foi há muito, muito tempo, quando o professor Paulo Santos, da Faculdade de Ciências do Porto, me falou das riquezas naturais da região, principalmente da exuberante avifauna que por lá havia. Na década de 90 do século passado, a zona era conhecida quase exclusivamente pela comunidade científica, em especial pelos biólogos, que a usavam como “laboratório vivo” para os seus estudos. Amiúde, também lá pousavam alguns ornitólogos amadores, à cata da passarada, em especial das aves aquáticas, que usam a ria de Aveiro como lar permanente, refúgio de nidificação ou “posto de abastecimento”, durante as suas extenuantes viagens migratórias. O Baixo Vouga Lagunar abrange uma área com 46 quilómetros quadrados (4600 hectares, ou seja, cerca de 4600 campos de futebol da primeira divisão), constituída, sobretudo, por terrenos alagados de difícil acesso. Assim, a primeira dificuldade com que me deparei, quando decidi explorar a região, foi exatamente a escolha dos locais a visitar e dos trajetos a realizar. Talvez seja oportuno lembrar que, na época, não havia computadores pessoais, internet ou telemóveis (para muitos jovens leitores, isto parece inconcebível, mas era mesmo assim, há pouco mais de vinte anos!). Após auscultar vários especialistas, compreendi que todas as sugestões apontavam num único sentido: Salreu, no concelho de Estarreja.

70 SUPER

Escolhido o destino, coligi todas as informações úteis e esbocei um mapa, no qual constavam rabiscos de possíveis itinerários (alertando para os perigos dos caminhos sem saída e para os cuidados a ter na transposição dos inúmeros terrenos pantanosos, valas e esteiros) e alguns pontos marcados a vermelho que, supostamente, assinalavam os melhores locais para observar determinadas espécies, tanto faunísticas como florísticas. Com esse pedaço de papel a servir-me de bússola, parti num domingo de manhã, de mochila às costas e binóculos ao pescoço.

PRIMEIROS PASSOS

Cerca de uma hora depois de ter deixado a estação de Campanhã, no Porto, apeei-me em Salreu, um isolado apeadeiro ferroviário, sem vivalma. O mais curioso, porém, é que a visita começou logo ali, à saída do comboio. Sem ter dado um único passo, já contemplava, embevecido, as verdejantes zonas alagadas a perder de vista, onde esvoaçavam bandos de aves, que enchiam o céu de grasnados e chilreios. De binóculos em punho e caderno de campo na mão, comecei de imediato, no apeadeiro do comboio, a observar e a registar a passarada. Porém, rapidamente percebi que, afinal, aquele lugar não acolhia apenas seres alados, mas era também o lar de muitos outros organismos, igualmente interessantes, que, no seu conjunto, contribuíam para uma abastada biodiversidade.

FOTOS: JORGE NUNES

A Ria de Aveiro é uma área natural de grande importância para a alimentação e reprodução de diversas espécies de aves e peixes, nomeadamente migradoras, estuarinas e costeiras. O biólogo Jorge Nunes percorreu o Baixo Vouga Lagunar e descobriu o projeto ecológico BioRia.

Antecâmara. No sistema do Baixo Vouga Lagunar, coexistem zonas emersas e imersas, um singular e sublime mosaico de ambientes aquáticos e terrestres que se vai alterando ao ritmo das marés. Em baixo, vista aérea da ria de Aveiro na zona da ponte da Varela (Murtosa).

À medida que me fui embrenhando pelas margens dos esteiros, em direção ao coração da ria de Aveiro, deparei-me com recantos cada vez mais recatados e selvagens, onde se escondiam aves discretas, como a garça-vermelha, e mamíferos fugidios, como o rato-de-água ou a lontra. Também abundavam os anfíbios, desde rãs-verdes a relas-comuns, e os insetos, sobretudo libélulas e borboletas, que deliciavam os olhos com os seus bailados caleidoscópicos. A cobra-de-água-viperina, tipicamente aquática, era o representante mais abundante dos répteis. Também havia muitos peixes, como a enguia ou o robalo. Contudo, esses não se deixavam avistar com facilidade, ocultando-se por detrás dos espelhos de água, que refletiam, principalmente, o azul do céu e o verde dos salgueiros e amieiros. Embora olhasse constantemente para o mapa que tinha delineado com tanto cuidado, enganei-me diversas vezes no caminho e andei perdido a maior parte do tempo. Apesar disso,


foi um dia muito prazenteiro e inesquecível, recheado de inusitadas descobertas e muitos registos no caderno de campo. Regressei a casa cansado, mas feliz. Conto nas páginas da SUPER esta pequena vivência pessoal, com mais de vinte e cinco anos, porque quem visitar hoje o Baixo Vouga Lagunar, em especial a região de Estarreja, já não precisará de se aventurar no desconhecido, nem de ser perito em zoologia ou botânica. Desde 2005, existe o BioRia (http://www.bioria.com), um projeto de conservação e divulgação da natureza e da biodiversidade, no concelho de Estarreja, que pretende dar a conhecer o rico património natural da região. Das múltiplas valências do BioRia, destaca-se o Centro de Interpretação Ambiental, localizado no início do Percurso de Salreu, que constitui a melhor porta de entrada para o Baixo Vouga Lagunar e para a extensa e maravilhosa ria de Aveiro. É, sem dúvida, um ponto privilegiado de receção dos visitantes (o comInteressante

71


Passeio imperdível. O Percurso de Salreu pode ser percorrido a pé, de bicicleta, num carro elétrico e até em veículos de tração animal.

Uma aplicação gratuita permite fazer uma visita guiada autónoma boio ainda é a forma mais ecológica de chegar a Salreu, e o apeadeiro fica apenas a meia dúzia de passos do centro de interpretação), e um espaço muito adequado para a dinamização de atividades de sensibilização ambiental, destinadas a diferentes públicos, desde os grupos escolares aos cidadãos singulares. O Percurso de Salreu, tal como todos os outros que fazem parte da Rede de Percursos Pedestres do BioRia (oito no total, perfazendo cerca de 50 quilómetros) podem ser percorridos a pé ou de bicicleta (não possuem desníveis acentuados, pelo que se adequam a pessoas com reduzida mobilidade ou necessidades especiais), de forma totalmente grátis. Desde abril, mais precisamente da ObservaRia’15, existe, além dos folhetos interpretativos de cada trilho, uma aplicação gratuita para telemóvel (Trekking BioRia), que conduz os visitantes autónomos e disponibiliza um completo guia de campo, de flora e fauna locais, que pode ser consultado no terreno durante a visita. O BioRia, no entanto, também organiza visitas guiadas, mediante marcação, e providencia equipamentos que permitem explorar a zona em segurança e com todo o conforto. O visitante pode alugar binóculos (1,5 euros por dia), bicicletas (gratuitas nas visitas guiadas,

72 SUPER

3 euros/dia nos passeios autónomos) e caiaques (2 euros/ hora), se quiser explorar a zona usando os caminhos de água em vez de calcorrear os trilhos de terra batida. Através de um guia áudio mp4 (disponível em português, inglês e espanhol, por 2 euros), qualquer pessoa pode aventurar-se livremente, de forma autónoma e ao seu ritmo, interpretando o meio ambiente a seu bel-prazer, mas usufruindo de conteúdos idênticos aos que seriam fornecidos numa visita guiada. As faixas explicativas têm como referência espacial os dez painéis informativos, distribuídos ao longo do Percurso de Salreu, que descrevem os diversos ecossistemas e o património natural que lhes está associado, e alertam o visitante para a necessidade de conhecer e conservar a natureza. Se não tiver pernas para palmilhar o trilho pedestre, de cerca de oito quilómetros, pode sempre recorrer ao carro elétrico, um veículo ecológico que, por não ser poluente e não emitir ruído, respeita o equilíbrio ambiental e permite visitar, de forma cómoda e divertida, os diversos habitats do Percurso de Salreu.

BAIXO VOUGA LAGUNAR

O rio Vouga nasce na serra da Lapa (distrito de Viseu), a cerca de 930 metros de altitude,

e percorre aproximadamente 148 quilómetros antes de despejar as suas águas no Atlântico, na barra de Aveiro. A sua bacia hidrográfica ocupa uma área de 3635 km² e inclui outros cursos de água de menores dimensões, como o Águeda, que banha os pés da cidade homónima, e o Cértima, que origina a pateira de Fermentelos, a maior lagoa natural da península Ibérica. Outros rios que dão corpo à ria de Aveiro, embora hidrograficamente independentes do Vouga, são, por exemplo, o Caster e o Antuã, na parte norte, e o Boco e a ribeira da Corujeira, a sul. O chamado “Baixo Vouga Lagunar” é apenas uma pequena parte da ria de Aveiro, correspondente à sua margem nordeste, mais precisamente ao território compreendido entre a foz do Vouga e a do Antuã, abrangendo os concelhos de Estarreja, Aveiro e Albergaria-a-Velha. Como o nome indica, trata-se de um sistema lagunar, no qual coexistem zonas emersas e imersas, ou seja, um singular e sublime mosaico de ambientes aquáticos e terrestres. Embora, à primeira vista, o Baixo Vouga pareça um ambiente natural pristino, rapidamente se percebe que se trata de uma paisagem seminatural, moldada pela mão humana, ao longo de muitos séculos. Na verdade, foram mulheres e homens anónimos, geração após geração, que ajudaram a dar forma ao delta do Vouga, abrindo canais para os barcos, conhecidos por “valas” e “esteiros”, construindo tabuleiros para o sal, denominados localmente


O homem e a ria

A

ria de Aveiro não é feita apenas de paisagens e pássaros, também é constituída por pessoas, com os seus hábitos e tradições. Na verdade, a fisionomia atual da região resultou tanto das condições oferecidas pela natureza como da mão modeladora do homem. Afinal, foram os humanos que amanharam e enriqueceram os solos, misturando areia com moliço, que fabricaram embarcações específicas para a navegação lagunar, que abriram canais para os barcos vogarem pelos recantos mais recônditos e que construíram reticulados geométricos, autênticos “jardins de sal”, destinados à recolha do chamado “ouro branco”. Num passado não muito distante, as principais atividades desenvolvidas neste complexo lagunar, para além da pesca, eram a produção de sal e de moliço. O sal obtém-se da água salgada, desde tempos imemoriais, por um processo simples de evaporação, altamente dependente do calor solar (daí ser uma atividade sazonal, que apenas se realiza no período estival). Porém, esta arte milenar tem os seus segredos, que ainda se preservam em algumas explorações artesanais existentes na ria de Aveiro, e se fazem anunciar pelos seus alvos montes cónicos, fazendo lembrar um largo acampamento de tendas imaculadamente brancas. O moliço correspondia a uma miscelânea de plantas submersas (conhecidas localmente por nomes populares como “ita”, “sirgo”, “folha”, “folhado”, “limo”, “rabos”, “carqueja”, “gorga”, “morno”, “trapa”, “papeira” e “pojo”, entre outras), extraídas do fundo da ria e usadas para adubar os terrenos. Na verdade, este fertilizante natural constituiu outrora o segredo para transformar as areias estéreis das margens da ria em úberes campos de cultivo, isto, obviamente, antes de terem sido inventados os fertilizantes artiiciais com que hoje se adubam os terrenos de forma intensiva. A sua extração fazia-se arrastando ancinhos pelos canais e esteiros, geralmente a bordo de uma embarcação desenhada especiicamente para o efeito: o moliceiro. O barco moliceiro tinha cerca de quinze metros de comprimento e dois e meio de largura, com os bordos (costados) muito baixos, mal se destacando da superfície da água, para facilitar a apanha das plantas aquáticas, que tinham de ser alçadas para bordo à força de braços. O mastro atingia geralmente oito metros de altura e nele era içada uma vela trapezoidal de recorte inconfundível. Todavia, uma das características mais distintivas destas embarcações era, sem dúvida, a proa imponente e recurvada, mais alta do que a popa, onde se destacava um leme de grandes proporções.

Os painéis dos moliceiros aludiam aos afazeres proissionais da região e a devoções religiosas e patrióticas, ou continham mensagens amorosas, pícaras e satíricas.

Em ambas as extremidades, exibiam-se coloridas decorações, associando iguras geométricas a motivos igurativos, como lores, utilizando tons vivos e contrastantes. Estes ladeavam geralmente os painéis onde se revelavam sugestivos desenhos, relativos a temáticas diversas, como os afazeres proissionais da região, as devoções religiosas e patrióticas e as mensagens amorosas, pícaras e satíricas, habitualmente reforçados com legendas redigidas num linguajar popular. Cada embarcação podia carregar até cerca de cinco toneladas de moliço, que era, posteriormente, descarregado com padiolas (uma espécie de escada utilizada para transporte do moliço), formando montes característicos, que pontilhavam as margens da ria. Antes da chegada dos adubos artiiciais, a ria enchia-se de moliceiros e o moliço era o sustento dos barqueiros-lavradores. Em 1883, por exemplo, estavam registados 1342 moliceiros; volvidos cem anos, em 1983, restavam apenas 24. Hoje, infelizmente, já não sobra um. Ou melhor, existem alguns, mas já não cumprem a sua missão primordial de singrar a ria à cata das algas, servindo apenas para gáudio dos turistas. Os habitantes ribeirinhos, além de viverem da agricultura, altamente dependente do moliço, também viviam da pecuária e dos recursos da ria. Assim, não é de estranhar que o emblemático moliceiro tivesse sido apenas um dos vários barcos que foram concebidos nos estaleiros aveirenses (especialmente, nos existentes na aldeia de Pardilhó) e que esquadrinhavam regularmente os caminhos labirínticos do

delta do Vouga. Falamos, por exemplo, dos mercantéis ou saleiros, que transportavam o sal produzido nas marinhas existentes no interior da ria; das bateiras e patachas que serviam, sobretudo, para a pesca luvial, para a caça de aves aquáticas ou para o transporte de mercadorias, gado (como o marinhôa, a raça autóctone de bovinos), cereais e forragem nos canais pouco profundos da ria. De um modo geral, as diversas embarcações lagunares tinham um fundo chato e possuíam, habitualmente, as proas e as popas sobrelevadas, embora os magníicos painéis decorativos fossem um exclusivo dos majestosos moliceiros. Quase todas possuíam vela, podendo mover-se ao sabor do vento. Em diversas situações, quando navegavam contra a corrente, contra o vento ou em canais mais estreitos, podiam seguir à sirga, isto é: através de cabos puxados de terra à força de braços ou de gado. Porém, o mais comum era usarem varas, que os tripulantes irmavam no fundo lodoso da ria e empurravam, realizando sucessivos percursos da proa até à ré, numa extenuante correria. Atualmente, na ria de Aveiro, são cada vez mais raros os navios mercantis, os moliceiros e algumas bateiras, como as erveiras. Aliás, desta última já só resta um único exemplar, no esteiro de Canelas, mandado construir pela Câmara Municipal de Estarreja e pelo Painel Consultivo Comunitário do Programa Atuação Responsável, com o intuito de revitalizar uma embarcação já extinta.

Interessante

73


Portugal recente. Os geólogos acreditam que a atual restinga, que separa a ria do oceano, deve ter-se formado apenas nos últimos mil anos, devido à acumulação de sedimentos.

A ria de Aveiro é uma das quatro zonas húmidas mais importantes “marinhas”, utilizando os terrenos pantanosos para amanhar arroz ou emparcelando-os para cultivar milho e pastorear o gado bovino (registe-se que existe, na região, uma raça autóctone, a marinhôa), numa manta de retalhos em que a tradição agrícola e a natureza se casam harmoniosamente na paisagem. O emparcelamento do território, especialmente de prados, pastagens e terrenos agrícolas, faz-se, desde tempos imemoriais, recorrendo a sebes vivas, arbustivas e arbóreas, nas quais predominam o amieiro (Alnus glutinosa), o salgueiro-negro (Salix atrocinerea) e o carvalho-alvarinho (Quercus robur). Esta prática, característica da região aveirense, é conhecida por “bocage” e cria uma singular paisagem em mosaico, que se completa com uma rede de estradas de terra batida e linhas de água (rios, esteiros e valas), também elas delimitadas por bosques ripícolas. As sebes plantadas servem assim para delimitar as parcelas com ocupação permanente (prados naturais e/ou melhorados) e as culturas anuais (milho e/ou forragem), abrigando o gado e as lavouras. Além disso, permitem limitar os espaços de pastoreio, proteger e fixar as margens das valas e dos taludes e produzir biomassa, nomeadamente lenha.

74 SUPER

Curiosamente, segundo os especialistas, a exploração do bocage, tal como tem sido realizada ao longo dos anos (culturas em regime extensivo, em sucessão e/ou rotação cultural, e áreas de pastoreio extensivo em parcelas geralmente de reduzida dimensão), permite a ocorrência de uma elevada diversidade vegetal (estão registadas mais de 168 espécies botânicas), visível com particular pujança na primavera. O mesmo acontece com a avifauna, sobretudo com os passeriformes, que exibem um número elevado de indivíduos e uma grande riqueza específica: contam-se 44 espécies, das quais 26 são residentes, quatro residentes invernantes (são residentes, mas a sua população local aumenta durante o inverno, quando alguns efetivos oriundos do norte do continente europeu chegam à área para invernar), três invernantes, oito estivais e três migradores de passagem. Muito mais haveria para dizer acerca da riqueza biológica do Baixo Vouga Lagunar, uma região onde se sobrepõem atividades humanas e ecossistemas de elevado interesse ambiental, exemplo perfeito de coabitação do homem em sintonia com a natureza. Porém, aberta a porta, é chegada a hora de alargar

horizontes e explorar o resto da ria de Aveiro. Afinal, juntamente com os estuários do Tejo e do Sado e a ria Formosa, esta é uma das quatro zonas húmidas mais importantes de Portugal.

RICA RIA

Estarreja é, sem dúvida, uma das portas privilegiadas de entrada no Baixo Vouga Lagunar, nomeadamente através do Centro Interpretativo de Salreu. Contudo, convém recordar que este constitui apenas uma pequena parte da ampla e admirável ria de Aveiro. Esta é uma laguna de águas salobras pouco profundas, com um tamanho aproximado de 45 km de comprimento por dez de largura, separada do mar por um cordão de areia, a restinga. Estudos geomorfológicos do litoral mostram que não foi sempre assim: há quatro mil anos, por exemplo, Vouga desaguava diretamente no mar e não existia qualquer ria. No seu lugar, encontrava-se uma enorme reentrância que se estendia de Espinho ao cabo Mondego, levando o Atlântico a banhar localidades como Ovar, Estarreja, Aveiro ou Ílhavo, que hoje estão afastadas vários quilómetros da costa. Os geólogos acreditam que a atual restinga deve ter-se formado apenas nos últimos mil anos, devido à acumulação de sedimentos, tanto de origem marinha, depositados por correntes marítimas de sentidos opostos, como de origem fluvial, transportados pelo Vouga e


Grito ambiental

À

s primeiras horas de uma soalheira manhã de abril, um sexagenário andarilhava pelo relvado do Parque Municipal do Antuã, em Estarreja, com o neto pela mão. Avançavam lentamente, pé ante pé, ao ritmo da curiosidade da criança. Paravam, amiúde, para lobrigar os bichinhos e examinar as flores amarelas das serralhas, mais conhecidas por “dentes-de-leão”, que faziam lembrar os raios de sol e surgiam espontaneamente, interrompendo o monótono tapete verde da relva. As lavandiscas também tinham acordado cedo e saltitavam atrás dos insetos, enquanto os melros remexiam a terra húmida à cata de minhocas. De repente, um desses pássaros pretos levantou voo, levando consigo um verme vermelho e comprido a contorcer-se no bico amarelo. Pousou, poucos metros adiante, sobre uma pequena palmeira. À primeira vista, a árvore parecia igual a todas as outras, mas era especial: guardava um segredo que estava prestes a revelar-se. Perante a incredulidade do idoso e o deslumbramento do jovem, do meio da folhagem ergueram-se três pequenas cabecitas cobertas de penugem, com enormes bicos esfomeados, que reclamavam comida numa ruidosa chilreada. Tudo se passou num instante, pouco mais longo do que um piscar de olhos: um dos bicos mais afoito sorveu a minhoca com sofreguidão, uma sombra negra esvoaçou de volta ao chão, os bicos fecharam-se em silêncio e as cabeças recolheram-se, voltando a camular-se no ninho. Igualmente silenciosos, o avô e o neto afastaram-se com os olhos a brilhar de contentamento, na esperança de que aquele segredo fosse só seu. Entretanto, repararam que, a escassos centímetros da árvore, havia outro pássaro, muito estranho, esculpido numa parede. Chamou-lhes a atenção porque nunca tinham dado conta da sua existência. O que não é de estranhar, pois fora construído na véspera. A curiosa escultura mostrava um colorido guarda-rios, também conhecido por “pica-peixe”, uma ave inconfundível, que exibe um longo bico preto e cores intensas, como azuis e laranjas iridescentes. Tratava-se de uma obra nascida das mãos do artista plástico Artur Silva, mais conhecido por Bordalo II (pseudónimo com que dá continuidade ao trabalho do avô, Real Bordalo), que precisou de três dias e muitos desperdícios para dar corpo a uma das mais belas aves da avifauna portuguesa. A escultura não surgiu naquele local por mero acaso, nem foi motivada pela beleza intrínseca do animal, que é uma presença habitual nas imediações, mais precisamente no rio Antuã. A majestosa instalação de

O artista plástico Bordalo II precisou de três dias e muitos desperdícios para dar corpo à sua versão de um guarda-rios, uma das mais belas aves da avifauna portuguesa.

arte urbana, em alto-relevo, apensa ao muro da antiga piscina municipal, entretanto convertida em pavilhão multiusos, estava ali para dar as boas vindas aos visitantes da ObservaRia’15 – Estarreja Birdwatching Fair. Todavia, antes de falarmos com mais pormenor deste singular evento, dedicado ao turismo de natureza, à ornitologia e à divulgação do património natural da região, olhemos com mais pormenor para a singular obra de arte, que constitui um autêntico grito ambiental e não deixa ninguém indiferente. O guarda-rios construído em Estarreja é uma peça original e enquadra-se numa série de trabalhos que o artista lisboeta, de 27 anos, tem vindo a semear por Portugal e por outros países europeus, intitulada Big Trash Animals. Trata-se de um projeto artístico que “consiste na criação de imagens de animais a partir do lixo, ou seja, a construção da vítima com tudo aquilo que a mata”: “Neste caso, usei diversos desperdícios do nosso quotidiano, arremessados para os cursos de água onde vive esta maravilhosa criatura”, explicou Bordalo II, que usa a pegada ambiental deixada pelo homem como inspiração para as suas pinturas igurativas cheias de vivacidade. “O nosso consumismo exacerbado, de que resulta uma gigantesca quantidade de desperdícios, é um dos maiores inimigos da natureza”, acrescenta o artista. Esta é a razão pela qual as suas criações não são apenas uma maneira de

reutilizar resíduos, mas também, e sobretudo, uma crítica ao mundo em que vivemos e ao desenvolvimento insustentável. “Uma das vantagens de pintar na rua é poder comunicar com as pessoas, passar uma mensagem, uma ideia que mais gente pode ver, absorver, concordar, discordar ou ignorar”, conclui Bordalo II. No que respeita à ObservaRia, que se realizou pelo segundo ano consecutivo no município de Estarreja, nos dias 11 e 12 de abril, atraiu mais de 5000 visitantes, provando que o turismo de natureza, como o pedestrianismo e a observação de aves, seduz cada vez mais pessoas. Foram dois dias intensos, com um programa recheado de atividades, desde exposições de fotograia e de ilustração cientíica até palestras, workshops e inúmeras atividades de ar livre, como passeios pedestres, de charrete, de caiaque, moliceiro e bateira erveira, digressões ornitológicas, voos cativos em balão de ar quente, etc. Enquanto os amantes da natureza esperam ansiosamente pela próxima edição da ObservaRia, convém não esquecer que o Baixo Vouga Lagunar continua de portas abertas para receber visitantes, tanto os alados, que chegam pelo ar de terras distantes, como os ápteros e bípedes, que vêm à cata da vida selvagem e da beleza natural que faz brilhar os olhos curiosos.

Interessante

75


Durante séculos, as zonas húmidas e alagadas foram vistas como perigosas pelos restantes rios e ribeiros. Desse modo, a reentrância original foi-se enchendo com sedimentos, formando uma grande língua arenosa de Espinho para sul, e uma outra, que foi crescendo desde o cabo Mondego em direção a norte. Calcula-se que por volta do século XII o cordão dunar a medrar de norte já chegasse à Torreira, e trezentos anos mais tarde já alcançasse São Jacinto. De sul para norte, o outro cordão arenoso formava as dunas de Mira, Vagueira e Costa Nova. No final do século XVI, as duas línguas de areia estavam já totalmente formadas, fazendo a barra (contacto da laguna com o mar) saltitar desde Mira até à sua localização atual (aberta e fixada artificialmente, em 1808, permitindo o acesso de embarcações de grande calado ao porto de Aveiro), na confluência das freguesias de São Jacinto (Aveiro) e Gafanha da Nazaré (Ílhavo). Embora não pareça, este é o pedaço mais recente de Portugal continental e, segundo muitos autores, um dos mais importantes e belos acidentes hidrográficos da costa portuguesa. Sendo a barra de Aveiro a única zona de contacto permanente entre o sistema estuarino-lagunar e o oceano, estabelece-se a partir desse ponto um importante gradiente salino, que é induzido pelo efeito das marés ao longo da ria. Junto à embocadura, a salinidade da água é semelhante à do mar, decrescendo progressivamente à medida que nos afastamos para o interior, até se tornar completamente doce nos rios e ribeiros, que já não sofrem a influência das marés. Uma perspetiva aérea permite perceber que a ria é formada por uma intricada rede de canais de águas pouco profundas, que vão enchendo e esvaziando ao ritmo das marés. Os quatro principais são os de Ovar e de São Jacinto, a norte, e os de Mira e de Ílhavo, a sul, onde surgem diversas ilhas e ilhotas constituídas pela acumulação de materiais sedimentares. Destes partem muitas outras ramificações, sobretudo canais estreitos e de baixa profundidade, que no seu conjunto parecem formar um “gigantesco pólipo fluvial que por todos os lados estende os seus fluidos tentáculos, entre a rede confusa dos esteiros e canais, bordados de tamargueiras e de caniços”, como notou Luís de Magalhães, autor de A Arte e a Natureza em Portugal. Apesar de algumas ilhas serem entidades efémeras e anónimas, que duram apenas o tempo de uma maré, outras há mais duradouras e, por isso, com direito a deno-

76 SUPER

minação, como as das Gaivotas, dos Ovos, do Amoroso ou da Testada. Há cerca de cem anos, Raul Brandão, obreiro de Os Pescadores, “uma das obras-primas da prosa portuguesa de todos os tempos”, segundo Vasco Graça Moura, também considerou a ria de Aveiro como “um enorme pólipo com braços estendidos pelo interior, desde Ovar até Mira”. Nela se despejam todas as águas do Vouga, do Águeda e de outros veios aquosos que, ao correrem para o mar, encharcam “as terras baixas, retidas pela duna de quarenta e tantos quilómetros de comprido, formando uma série de poças, de canais, de lagos e uma vasta bacia salgada”. Curiosamente, naquele tempo, lugares alagados e pantanosos, como a ria de Aveiro, eram tidos como sítios incómodos, insalubres e perigosos. Porém, desde 2 de fevereiro de 1971, começaram a ser vistos com outros olhos. Foi exatamente nesse dia que se ratificou a Convenção Sobre Zonas Húmidas de Importância Internacional, Especialmente como Habitat de Aves Aquáticas, mais conhecida como “Convenção de Ramsar”. A convenção colocou preto no branco, finalmente, aquilo que já muita gente sabia, mas tardava em generalizar-se: as zonas húmidas

desempenham “funções ecológicas fundamentais enquanto reguladoras dos regimes de água e enquanto habitats de flora e fauna características, especialmente de aves aquáticas”. Não se pense, porém, que era apenas um documento com uma forte mensagem ecológica, que visava proteger unicamente a água, os pássaros ou as plantas. Ficou bem claro nesse acordo internacional que “as zonas húmidas constituem um recurso de grande valor económico, cultural, científico e recreativo, cuja perda seria irreparável”.

VALORES NATURAIS A PRESERVAR

A Convenção de Ramsar entrou em vigor em 1975 e foi transposta para a legislação nacional em 1980. Assim, desde a década de 80 do século passado, as zonas húmidas portuguesas, até aí completamente amaldiçoadas pelas populações e desprezadas pelo estado, passaram a ser respeitadas e valorizadas (pelo menos no papel, uma vez que as mentalidades, como sabemos, não se mudam por decreto). Para se ter uma ideia da importância da Convenção de Ramsar, recorde-se que agrupa, atualmente, 168 países dos cinco continentes, e abrange mais de 2186 sítios de importância internacional, cobrindo cerca de 2,08 milhões


Trabalho duro. A ria de Aveiro é “um sítio para contemplativos e poetas”, escreveu Raul Brandão, mas ali também se ganha o pão.

de quilómetros quadrados de zonas húmidas (mais de vinte vezes a área de Portugal). Em território luso, estão referenciados 31 sítios Ramsar (19 no continente e 12 nos Açores), totalizando aproximadamente 1320 km2. A pergunta que se impõe é a seguinte: a ria de Aveiro consta da listagem Ramsar? A resposta, à primeira vista, parece desalentadora: não está abrangida, apenas foram incluídas na listagem nacional algumas zonas húmidas das suas imediações, como a lagoa da pateira de Fermentelos e os vales dos rios Águeda e Cértima. Quer isto dizer que a ria não apresenta funções ecológicas importantes, tanto ao nível da regulação dos regimes de água como da manutenção de habitats e espécies fauno-florísticas características, como as aves aquáticas? Ou significará que não se trata de um recurso de grande valor económico, cultural, científico e recreativo? Nada disso. Embora a ria de Aveiro não ostente a marca “Ramsar”, possui todas as características dos sítios dignos desse nome, sendo considerada, pelas entidades competentes, como o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), “a zona húmida mais importante do Norte do país”. Aqui chegados, o leitor poderá ser levado a pensar que, apesar da sua importância, a ria de

Aveiro tem sido desconsiderada, o que, diga-se em abono da verdade, não é totalmente correto. Além de ter motivado o aparecimento do BioRia, um singular projeto de conservação e divulgação da natureza e da biodiversidade, aplaudido entre portas e além-fronteiras, encontra-se devidamente valorizada no âmbito da Rede Natura 2000, a rede ecológica europeia que se estende por todos os estados-membros (desde o extremo mais ocidental, em Portugal, até ao limite sueste, no Chipre), e visa proteger os habitats naturais mais vulneráveis e os das espécies de fauna e flora mais ameaçadas, com especial destaque para as aves que vivem no estado selvagem. Pode parecer exagero, mas, na verdade, a ria de Aveiro está duplamente protegida pela Natura 2000: é considerada uma Zona de Proteção Especial, destinada a garantir a conservação das espécies de aves e dos seus habitats, e simultaneamente uma Zona Especial de Conservação, que visa contribuir para a preservação dos habitats naturais e das espécies ameaçadas da flora e da fauna selvagens. Lendo os documentos oficiais da Natura 2000, percebe-se que a ria de Aveiro constitui um verdadeiro santuário de vida selvagem, incluído entre os mais ricos e produtivos ecossistemas

do país. Nos cerca de 33 mil hectares (dos quais aproximadamente 31 mil terrestres e 2000 de área marinha), encontram-se 25 habitats naturais e seminaturais. Falamos, por exemplo, de estuários, lodaçais e areais a descoberto na maré baixa, prados salgados atlânticos, lagos eutróficos naturais, florestas mistas ripícolas e matos ribeirinhos, entre muitos outros. Vale a pena referir que seis dos habitats da ria estão classificados como prioritários, ou seja, pela sua raridade e/ou importância, exigem aos estados signatários da Rede Natura 2000 medidas especiais de conservação. Constam da lista, entre outros, as lagunas costeiras, que constituem superfícies de água livre salgada ou salobra, de volume e salinidade variável, total ou parcialmente separadas do mar por bancos de areia; diversos tipos de dunas: fixas com vegetação herbácea, também conhecidas como “dunas cinzentas”, e fixas descalcificadas atlânticas, cobertas por tojais, urzais e estevais; as charnecas húmidas atlânticas temperadas, onde surgem plantas como a Erica ciliaris, que o povo conhece, consoante a região do país, como “lameirinha”, “cordão-de-freira”, “carapaça” ou “urze-carapaça”, ou a E. tetralix, mais conhecida como “margariça” ou “urze-peluda”; e as florestas aluviais de amieiros (Alnus glutinosa) e freixos (Fraxinus excelsior), que, como o nome indica, ocupam as orlas de cursos de água permanentes, realizando importantes funções de regulação, depuração, ensombramento, habitat, lazer e económicas. Com tanta diversidade paisagística, não é de admirar que se contem às dezenas ou centenas as espécies animais e vegetais. Por exemplo, a fauna piscícola inclui mais de 64 espécies. A ria de Aveiro é uma área fundamental para muitos peixes, tanto para os que estão em vias de extinção como para os que apresentam enorme valor económico. Além disso, as extensas áreas de sapais, salinas, caniços e bocage albergam regularmente mais de 20 mil aves aquáticas, e um total de cerca de 173 espécies, com particular destaque para o elevado número de aves limícolas (assim denominadas porque vivem no limo, lodo ou lama). A ria de Aveiro não é apenas um destino imperdível para ornitólogos e naturalistas: é também “um sítio para contemplativos e poetas […] e para os que amam a luz acima de todas as coisas”, escreveu Raul Brandão, há quase um século. O mais novo pedaço de Portugal continental é igualmente “um sítio para sonhadores e para os que gostam de se aventurar, descobrindo motivos imprevistos”, acrescentou o escritor. Evidentemente, por mais belas e apelativas que sejam as palavras, não há nada como pôr pés ao caminho e ir apreciar a região com os seus próprios olhos. Boa viagem! J.N.

Interessante

77


Tecnologia Dez fracassos retumbantes

Os maiores FLOPS

FIRE PHONE Eis os ingredientes básicos: a maior companhia de comércio eletrónico, célebre por praticar preços baixos; uma trajetória sólida na venda de tablets e leitores com tecnologia de tinta eletrónica; um mercado em expansão e ávido de inovação tecnológica. Poder-se-ia pensar que era impossível não juntá-los e alcançar um êxito rotundo, mas foi precisamente o que aconteceu à companhia norte-americana Amazon. O seu primeiro telemóvel, o Fire Phone, transformou-se num estrondoso fracasso, com um prejuízo aproximado de 500 milhões de dólares. O vistoso smartphone foi apresentado em junho do ano passado como constituindo um grande avanço em termos de inovação. Em primeiro lugar, consegue criar um efeito tridimensional convincente graças às quatro câmaras que detetam o rosto do utilizador e ajustam a imagem. Pode também reconhecer objetos através da câmara posterior e proporcionar ao utilizador informação suplementar ou a opção de adquiri-los na internet. Efetivamente, quando se aponta a câmara para uma garrafa de vinho, por exemplo, obtêm-se todos os dados: ano, origem, preço...

78 SUPER

A reação do mercado a tanta inovação não podia ter sido mais fria. A Amazon não revela números, mas vários analistas acreditam que, nos primeiros vinte dias após o lançamento, foram vendidas 35 mil unidades. Em comparação, o último iPhone da Apple vendeu dez milhões só no primeiro fim de semana. Agora, centenas de milhares de aparelhos Fire Phone acumulam pó nos armazéns da companhia. Mesmo a súbita descida de preço passados poucos meses de ter sido colocado à venda foi insuficiente para despertar o interesse do consumidor. Segundo Jeff Bezos, fundador da Amazon e um executivo habituado a colher êxitos, tratou-se de um golpe inesperado: “Cometi erros que custaram milhares de milhões de dólares. O meu trabalho é encorajar os funcionários a assumir riscos”, defende-se. Na sua opinião, as companhias que não toleram o fracasso acabam, a longo prazo, em pior situação. Porém, o que é ainda mais surpreendente é que Bezos não atirou a toalha ao chão e continua a considerar que o seu telemóvel representa uma grande oportunidade para a sua empresa. Muitos engenheiros da Amazon admitiram que não viram grande futuro em algumas das

DAVID RYDER / GETTY

Os dez produtos que descrevemos nestas páginas foram lançados como representando uma autêntica revolução na eletrónica de consumo, mas não corresponderam às expectativas, talvez devido a estimativas erradas ou ao facto de se terem antecipado demasiado ao seu tempo. Todavia, alguns desses fracassos semearam o germe de posteriores êxitos, como os tablets, o iPhone ou os relógios inteligentes.


Fogo lento. 18 de junho de 2014. Jeff Bezos, fundador e presidente da Amazon, revela o novo projeto-estrela da sua empresa: o Fire Phone. Infelizmente, os consumidores n達o se mostraram interessados.

Interessante

79


Muitas das ideias falhadas estão apenas adiantadas alguns anos funções do Fire Phone, como o 3D, mas incorporaram-nas por insistência de Jeff Bezos. “O Fire Phone é um fracasso ou um êxito? Perguntem-me daqui a cinco anos”, responde este.

SPOT

Todos os analistas afirmam que 2015 será o ano dos smartwatches. Os primeiros modelos da plataforma Android Wear estão há meses no mercado, e a Apple lançou o seu Watch. Segundo a consultora Morgan Stanley, as vendas deste tipo de dispositivos poderão ultrapassar os 60 milhões de unidades em todo o mundo durante os próximos doze meses. Para a Microsoft, foi uma oportunidade perdida. A companhia conseguiu convencer, em 2004, as marcas Fossil, Swatch e Suunto a lançar o SPOT, sigla em inglês para “pequenos objetos pessoais inteligentes”. Tratava-se de relógios que podiam mostrar pequenas quantidades de informação, como o tempo, as notícias, as cotações da bolsa ou resultados desportivos. Os dados eram recebidos através de uma emisssão de rádio em FM, disponível em grande parte do território norte-americano. Rudimentar, sim, mas um precursor dos atuais

80 SUPER

modelos. O preço do serviço, quase 60 dólares por ano, arrefeceria a sua aceitação. Em 2008, a empresa de Bill Gates deixou de vender produtos SPOT. Até 2012, porém, os utilizadores puderam manter as respetivas assinaturas. O SPOT foi também aplicado numa máquina de café e num navegador GPS. A Microsoft esperava que os seus ecrãs enfeitassem frigoríficos e outros eletrodomésticos, mas não aconteceu. Ainda...

descomunal problema de inventário. Tinham sido previstas vendas de quase cinco milhões de exemplares e apenas 1,5 milhões foram adquiridos, o que era manifestamente insuficiente para justificar os 125 milhões de dólares investidos no projeto. O fracasso acabou por contribuir, de forma significativa, para a crise do setor dos videojogos, em 1983. Incapaz de se desfazer dos excedentes, a Atari acabou por enterrá-los no deserto do Novo México. Alguns dos cartuchos enterrados foram recuperados em 2014, e um dos exemplares faz agora parte da coleção permanente do Instituto Smithsoniano.

ROKR O VIDEOJOGO DO EXTRATERRESTRE

Nem o pior videojogo da história pode gabar-se de ter sido um desastre com a dimensão de E.T., o Extraterrestre, um cartucho criado para a consola Atari 2600, em 1982. Era o único título com direitos oficiais do filme de Steven Spielberg, um enorme êxito de bilheteira, e foi lançado precisamente durante a campanha natalícia. As vendas iniciais foram elevadas e encorajaram a Atari a produzir milhões de cópias, mas, passado o fervor inaugural, o balão começou a esvaziar-se. O programa estava cheio de erros, era difícil de jogar e tinha uma mecânica muito repetitiva. A empresa japonesa ficou a braços com um

O primeiro telemóvel com ligação ao iTunes chegou ao mercado no final de 2005, pela mão da Motorola. Era o Rokr, criado em colaboração com a Apple, e que o próprio Steve Jobs se encarregou de apresentar juntamente com as grandes novidades musicais da companhia para esse ano: o iPod Nano e a quinta versão da aplicação iTunes. Jobs definiu-o como um telemóvel capaz de colocar um iPod Shuffle no bolso. “É genial”, disse ao público. Lançado anos antes do boom dos smartphones, o Rokr era muito limitado em termos de funções e design. Apenas conseguia armazenar cem temas musicais, enquanto o iPod Nano, vendido ao mesmo preço, tinha capacidade para

SPL

REUTERS

Em ponto. Nick Hayek Jr., diretor executivo da Swatch, a atriz Mischa Barton e Bill Gates apresentam a linha Paparazzi do smartwatch SPOT, em 2004.


mil e era mais leve. Lento e difícil de sincronizar, o Rokr chegou ao mercado precisamente ao mesmo tempo do Motorola Razr, um aparelho extraordinariamente fino que se transformou num campeão de vendas. A companhia norte-americana teve de admitir o erro passados poucos meses: “Lançámos a mensagem errada. As pessoas pensam que estão a comprar um iPod e isso não é verdade”, afirmou o então presidente da companhia, Ed Zander. O Rokr permaneceu no catálogo da empresa até 2007, quando o lançamento do iPhone pôs fim ao acordo de colaboração entre a Apple e a Motorola. A verdade é que Steve Jobs odiava o Rokr. “Estou farto de companhias estúpidas como a Motorola”, confessou aos seus colaboradores.

MARK WILSON / REUTERS

Mascote O robô Aibo, da Sony, foi lançado em 1999. Só a última versão é que era, oicialmente, um cão. A produção foi abandonada em 2006.

AIBO Qualquer história do futuro inclui, pelo menos, um robô doméstico. Quem não gostaria de ter em casa uma máquina exclusivamente consagrada a facilitar-nos a vida? Porém, as primeiras tentativas para integrá-los no lar não tiveram o resultado esperado. O Aibo é o melhor exemplo disso. O simpático cãozinho da Sony chegou às lojas em 1999, a par de milhares de previsões sobre um futuro em que as crianças brincariam com engenhos mecânicos. Enquanto as primeiras versões andavam atrás de uma bola ou reagiam a instruções de voz,

Arqueologia industrial. No ano passado, uma expedição cientíica deu com o local do Novo México onde a Atari enterrou centenas de milhares de cópias do seu malogrado jogo.

Interessante

81


ARCHIVO UNIVERSAL

As grandes empresas arriscam ideias que não foram testadas os modelos posteriores foram enriquecidos com câmaras de videovigilância e ligação à internet. Como brinquedo, todavia, era caro: custava cerca de 2000 euros. O Aibo era uma mistura de vários animais; apenas a última versão foi oficialmente declarada um cão. O seu êxito nos media e o impacto na cultura popular não foram suficientes para o transformar num produto rentável. A Sony suspendeu o seu desenvolvimento em janeiro de 2006. Durante os mais de cinco anos em que esteve disponível, foram vendidos cerca de 200 mil exemplares.

SISTEMA OPERATIVO BOB

Celebra-se este ano o vigésimo aniversário de um dos maiores fracassos da Microsoft: o BOB. Lançado em março, alguns meses antes do Windows 95, foi a primeira tentativa da companhia para criar um sistema operativo visual acessível. Em vez de ícones e janelas, o utilizador movia-se pela réplica de uma casa, na qual os objetos funcionavam como acessos diretos aos diferentes programas. Se quiséssemos, por exem-

82 SUPER

plo, escrever uma carta, íamos ao escritório e fazíamos um clique sobre o papel na mesa; ao tocar no relógio da sala, abria-se a aplicação da agenda, e assim sucessivamente. O BOB apoiava-se em estudos de vários professores da Universidade de Stanford (Estados Unidos), os quais consideravam que as interfaces gráficas dos computadores da época eram demasiado complexas para o grande público. Foi um autêntico desastre: nenhum utilizador de computador parecia disposto a instalar o produto. O êxito do Windows 95 condenou definitivamente a experiência e, um ano depois do seu lançamento, a Microsoft desfez-se do BOB. Em 2006, Steve Ballmer, que era ainda presidente da companhia, admitiu que fora um desses casos em que se reconhecera um erro e se soubera parar a tempo. Deixou algum legado? A ideia do assistente virtual Clippy do Office surgiu do Rover, o cão virtual do sistema BOB, que dava sugestões ao utilizador. Por outro lado, a fonte tipográfica Comic Sans foi criada para o BOB, embora tenha sido eliminada da versão final.

TABLET-PC

Quase uma década antes de Jobs escolher o cenário do centro Yerba Buena de San Francisco para apresentar o iPad, Bill Gates antecipou o futuro tátil da informática na Feira Comdex, em Las Vegas. Corria o ano de 2001 e a Microsoft ocupava uma posição invejável no mercado. O Windows XP acabava de estrear com boas críticas, e a companhia de Redmond decidiu marcar mais alguns pontos com uma ideia arriscada: um computador do tamanho de um caderno com um ecrã em que o utilizador pudesse escrever ou desenhar com ajuda de uma caneta magnética especial. Foram desenvolvidos dois formatos diferentes: um era semelhante ao de um portátil convencional, enquanto o outro eliminava o teclado, aproximando-se dos tablets atuais. “Combina a potência de um PC com a flexibilidade do papel”, definiu Gates. A Microsoft esperava que, no prazo de alguns anos, dois em cada dez computadores portáteis vendidos fossem tablets, mas o preço e a ergonomia do dispositivo não lhe foram favoráveis. Mais pesados e lentos do que os equipamentos convencionais, ocuparam um pequeno nicho de mercado até à chegada do Windows 8, que incorporava as funções táteis no sistema operativo. Curiosamente, os planos da Apple


REUTERS

Janela sim, janela não. Executivos da Fujitsu e da HP mostram os seus modelos de Tablet-PC, uma ideia da Microsoft que não foi muito longe. Um pouco antes, a companhia tentara lançar um novo sistema operativo (página oposta), mas a metáfora da casa não seduziu o público.

para o iPad surgiram após um encontro em que Steve Jobs teve aturar um executivo da Microsoft a gabar os seus tablets.

IRIDIUM

O último plano de Elon Musk, fundador da companhia aeroespacial SpaceX e da empresa da indústria automobilística Tesla, é criar uma rede de satélites em órbita baixa que proporcionem a todo o planeta acesso à internet. Conta com o apoio da Google, que investiu no projeto mil milhões de dólares. Contudo, a rede não será a primeira tentativa para oferecer uma ligação permanente a partir do espaço. Nos anos 90, o Iridium procurou conseguir algo de semelhante com a sua constelação de satélites, desenvolvida pela Motorola. O serviço comercial, lançado em 1998, era proibitivamente caro: os telemóveis compatíveis custavam milhares de dólares e, durante uma chamada de voz, chegava-se a pagar cinco dólares por minuto. O Iridium, que exigiu um investimento de 5000 milhões de dólares, colapsou um ano depois, tendo atraído apenas dez mil clientes, em vez do meio milhão previsto. Apesar da bancarrota, o sistema conseguiu sobreviver e continua a operar: possui 66 satélites que oferecem serviços de comunicação, fundamentalmente, a empresas.

NEWTON O iPhone não foi o primeiro computador de bolso produzido pela Apple. Nos anos 90, a companhia lançou no mercado o Newton, o primeiro asistente pessoal digital ou PDA. Tratava-se de um dispositivo bastante grande, mas com uma característica surpreendente para a época: conseguia reconhecer a escrita do utilizador no ecrã. Ou, pelo menos, tentava fazê-lo. As críticas ao produto pela falta de precisão no reconhecimento de caracteres não tardaram a acumular-se. A companhia da maçã desenvolveu sete dispositivos diferentes ao longo de cinco anos, mas sem conseguir uma presença importante no mercado. Modelos mais económicos de PDA, como os fabricados pela Palm, não tardaram a ultrapassá-lo. Embora o Newton fosse um dos primeiros produtos suspensos por Steve Jobs ao regressar à Apple em 1998 (o fundador via-o como uma herança da era do seu predecessor, John Sculley), o que se aprendera no desenvolvimento do dispositivo seria essencial para poderem lançar, passado uma década, o iPhone. Por outro lado, o Newton esteve na origem da arquitetura ARM de processadores, hoje presentes na imensa maioria de tablets e smartphones, e sem a qual estes talvez não existissem.

HD-DVD

Atualmente, associamos a sigla HD à alta definição e aos discos Blu-ray, embora estes já não sejam a única forma de ter acesso a conteúdo: o download direto e o streaming ultrapassaram o formato ótico em termos de popularidade. Contudo, nesta batalha, que recorda a que opôs o VHS e o Beta nos tempos do vídeo, o Blu-ray era apenas um dos candidatos, e nem sequer o primeiro. A Toshiba adiantou-se à concorrência, em 2002, com o HD-DVD, um disco com capacidade para armazenar até 15 GB por camada, em vez dos 4,7 GB do DVD. Esta tecnologia, semelhante à do Blu-ray, permitia produzir os suportes a um custo muito menor. Além disso, a Toshiba conseguiu obter o apoio de muitas produtoras cinematográficas. Não foi suficiente. Seis anos depois, a guerra de desgaste conduzida pela Sony e pela Philips custou caro à Toshiba. A incorporação do suporte de Blu-ray na consola PlayStation inclinou definitivamente a balança. Curiosamente, parte da tecnologia desenvolvida para o formato HD-DVD ainda está presente no chamado CBHD, um padrão utilizado exclusivamente na China para a distribuição em grande escala de conteúdos diversos em alta definição. A.J.L.

Interessante

83


Animais Reis da montanha. A espessa melena é o sinal de identidade dos machos da espécie Theropithecus gelada, uns cercopitecos (macacos do Velho Mundo) que podem alcançar os 20 quilos de peso. Costumam viver em grupos reduzidos, formados por entre um e quatro machos, uma dúzia de fêmeas e as suas crias, embora também se juntem às centenas, para se alimentarem.

84 SUPER


O primata de JUBA O Parque Nacional de Simien, na Etiópia, é o último reduto do gelada, um dos nossos primos próximos mais espetaculares e enigmáticos.

Interessante

85

FOTOS: FRANCISCO MINGORANCE

O gelada ou babuíno-gelada é o símio mais peludo


Acrobatas carinhosos. Os geladas movimentam-se com grande agilidade entre as árvores e as altas rochas da loresta em que vivem. Inclusivamente, escolhem esses pontos inacessíveis para dormir. No entanto, as suas populações estão a decair. Segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza, já não haverá mais de 200 mil destes nossos parentes próximos. Os sons que eles emitem quando comunicam, roncam ou gemem, são supreendentemente parecidos com os humanos. Além disso, possuem polegares oponíveis, o que lhes permite manipular as ervas de que se alimentam ou catar-se. Em baixo, uma fêmea desparasita um macho, embora o mais normal seja o contrário: em vez de disputarem com os outros o acesso às fêmeas, os machos retêm-nas na sua companhia mantendo-as felizes.

É a característica mancha vermelha no peito que permite distingui-los dos babuínos

86 SUPER


Interessante

87


JEFFREY COOLIDGE / GETTY

Tecnologia Como evitar spam e malware

Proteja o seu TELEMÓVEL Os smartphones são mais um computador do que um telefone. Por isso, os ataques e aplicações com vírus e software malicioso para telemóveis estão a multiplicar-se. A ameaça cresce, mas temos armas potentes para nos defendermos.

C

hamamos-lhe “telemóvel”, mas telefonar é, provavelmente, a menor das utilizações que lhe damos. Esse sofisticado e reluzente dispositivo que anda sempre connosco tem muito mais em comum com um computador do que com os velhos telefones. É, para todos os efeitos, um computador de bolso. Isso significa que a sua versatilidade é enorme. O número de usos que permite é tão variado quanto as aplicações que instalamos e utilizamos. Contudo, também significa que é vulnerável aos ataques que perseguem a informática: vírus e troianos podem viver e reproduzir-se à vontade no telemóvel.

88 SUPER

Fazem-no, e cada vez com maior frequência. No ano passado, a empresa de segurança informática Kaspersky neutralizou 1,3 milhões de ataques a telemóveis da plataforma Android (usada em 84 por cento dos smartphones), quatro vezes mais do que em 2013. Quase metade das ameaças é dessa categoria. São inimigos silenciosos que se escondem em aplicações comuns (frequentemente funcionais e aparentemente inofensivas), que o utilizador transfere e abre: um jogo, por exemplo, ou uma aplicação de lanterna. Uma vez instaladas, o telemóvel afetado pode, por exemplo, enviar, a intervalos regulares e sem qualquer inter-


Aplicações gratuitas para blindar o seu smartphone Avast (Android) Uma das ferramentas de segurança mais completas para a plataforma da Google. Esquadrinha as aplicações instaladas em busca de malware e protege o utilizador durante a navegação. Dispõe também de capacidade para bloquear mensagens, chamadas ou aplicações especíicas, inclusivamente de forma remota. 360 Mobile Security (Android) Faz um check-up completo ao telemóvel e elimina icheiros não utilizados, como restos de instalações, históricos de uso e outro tipo de informação que podem estar a afetar o rendimento do aparelho. Lookout (Android e iOS) Oferece diferentes funções, consoante a plataforma. Em Android, identiica aplicações e atualizações não seguras, mas também funciona como sistema de cópia de segurança e de localização e bloqueio do telemóvel em caso de roubo. Em iOS, funciona apenas como ferramenta para esta última função. Kaspersky Internet Security (Android) A análise das aplicações defende smartphones e tablets de vírus, troianos, spam, spyware e outras ameaças, incluindo downloads de lojas não oiciais. A sua base de dados sobre riscos é atualizada diariamente.

Interessante

89


Conselhos para andar seguro Aplicações, só em lojas oiciais A Google Play, a AppStore, a Windows Phone Store e a Amazon AppStore examinam periodicamente as aplicações e eliminam as que representam uma ameaça à segurança. Isso não signiica uma garantia absoluta: houve casos de aplicações provenientes dessas fontes que estavam infetadas por malware. Mesmo assim, é a medida mais simples para evitar problemas. Cuidado com o jailbreak A plataforma iOS é bastante segura, mas suprimir as limitações impostas aos seus dispositivos pela Apple (fazer o chamado jailbreak) para instalar aplicações de outras fontes ou modiicar o aspeto do sistema operativo pode comprometer a segurança do iPhone ou do iPad.

Não se limite a instalar um antivírus A sua capacidade é muito mais limitada do que nos computadores (é uma desvantagem da compartimentação das aplicações) e, em certas plataformas, apenas pode proteger em casos muito especíicos. Melhor do que recorrer a um antivírus é usar o senso comum ao navegar e instalar programas. Vigie qualquer atividade invulgar Uma descida repentina do nível da bateria ou um aumento inesperado do tráfego de dados ou da fatura do telemóvel podem indicar que se passa algo de anormal. Permaneça atualizado É importante ter sempre instaladas as últimas versões disponíveis dos sistemas operativos (e veriicar que vêm de fonte oicial), e dispor das versões mais recentes das diferentes aplicações que utilizamos, sobretudo para navegar. Atenção aos links! As páginas da internet para telemóveis começam a ser cada vez mais parecidas com as que vemos num computador convencional, tanto nos aspetos bons como nos maus. É preciso ter cuidado com as hiperligações

90 SUPER

automáticas que surgem por vezes durante a navegação, sobretudo se nos conduzirem a páginas de downloads gratuitos de aplicações ou conteúdo. Faça cópias de segurança Atualmente, é simples ter cópias de segurança dos nossos telemóveis na nuvem ou, isicamente, no nosso computador ou num disco rígido. É importante efetuar essas cópias periodicamente, para o caso de ser necessário restaurar o sistema. Ative a autenticação dupla A maioria das plataformas solicita dois fatores no acesso aos serviços em nuvem para garantir a segurança. Em que consistem? Para entrar no serviço, é necessário saber tanto a palavra-passe como um código recebido pelo telemóvel ou a autorização de uma segunda máquina considerada segura. Trata-se de uma função muito aconselhável para evitar ataques às contas pessoais em serviços online. Use senhas seguras Uma das vulnerabilidades mais comuns é o recurso a palavras-passe demasiado simples em serviços online como o iTunes, o iCloud ou o Gmail. É fundamental criar palavras-passe difíceis de descobrir, combinando letras, números e sinais de pontuação. No entanto, o erro mais frequente é usar a mesma senha para o correio eletrónico e para serviços em que se indica o endereço como identiicação. Nesse caso, os responsáveis pelo serviço icam com acesso automático à sua caixa de correio e a toda a ionformação que lá tem.

CORDON

Veriique as autorizações Ao instalar aplicações Android, é possível ver a lista de autorizações que a aplicação solicita. Deve desconiar das aplicações que pedem acesso à agenda ou a dados pessoais sem que, aparentemente, isso seja necessário. No iOS e no Windows Phone, cuidado com as que solicitem conhecer a localização em segundo plano.

O bom-senso continua a ser o melhor antivírus venção do proprietário, mensagens SMS para números de valor acrescentado. Se o utilizador não prestar atenção à faturação detalhada, poderá ter uma desagradável surpresa. Este é, porém, um exemplo atípico. O mais frequente é os atacantes estarem interessados em informação. Algumas aplicações deste tipo reúnem dados bancários do utilizador (fundamentalmente, os números dos cartões de crédito utilizados nas compras online) ou informações pessoais. A grande maioria dos intrusos concentra-se na plataforma Android. De facto, perto de 90% do malware (software malicioso) criado para telemóveis tem por alvo


KASPERSKY LAB

0 a 1% 1 a 3% 3 a 5% 5 a 10% Mais de 10% Atlas do perigo. Detetaram-se ataques de software móvel malicioso em mais de 200 países. Do total mundial, mais de um décimo ocorreram na Rússia, e entre 5 e 10 por cento na Índia. Em Portugal, é praticamente zero. Este mapa mostra onde é maior o risco de ser atacado por malware. A oscarizada atriz Jennifer Lawrence (à esquerda) colocou no iCloud fotos íntimas, protegidas com uma senha fraca. Resultado: viu a sua anatomia espalhada na internet.

oficiais e do próprio computador do utilizador. A Google é, também, mais permissiva com os processos de revisão das aplicações que coloca na sua loja oficial, a Google Play, e passam, frequentemente, vários dias até se descobrir que alguma oculta um código malicioso. Por último, o Android é de longe a plataforma mais popular do mundo (o iOS tem 11% da quota do mercado) e, por conseguinte, oferece aos atacantes um número potencial de vítimas muito maior: compensa mais desenvolver software malicioso para Android do que para Windows Phone ou iOS.

CUIDADO COM AS NUVENS!

o sistema operativo da Google, e dois em cada dez dos seus utilizadores foram afetados por alguma ameaça deste género durante 2014.

A PLATAFORMA MAIS ATACADA

Os sistemas operativos dos dispositivos móveis (iOS, Android, Windows Phone, BlackBerry…) são muito mais seguros do que os destinados aos computadores convencionais. Possuem, entre outras coisas, uma separação mas rígida entre aplicações. Os programas são executados num espaço seguro da memória e não podem interagir com partes críticas do sistema operativo. À medida que os telemóveis se foram abrindo ao multitasking e às aplicações em segundo plano, alguns desses limites foram flexibilizados, mas continuam a ser muito mais rígidos do que nos computadores. Por que razão tem a Google um problema maior do que os seus concorrentes, se o sistema foi concebido com as mesmas barreiras? Ao contrário do iOS ou do Windows Phone, por exemplo, os telemóveis que funcionam com Android podem receber aplicações de lojas não

Contudo, seria um erro pensar que as restantes plataformas vivem sem problemas. Já foram registados casos de aplicações maliciosas para iOS e Windows Phone. Seria também errado (e isto é importante) supor que o rápido aumento deste tipo de ataques nos coloca em perigo de imediato. Apesar do referido predomínio do Android (segundo um estudo da IDC, mais de 80% dos smartphones vendidos em Portugal correm Android, à semelhança do que acontece no resto do mundo), até agora, o número de pessoas afetadas não é alarmante. “É preciso situar os dados num contexto geográfico. O que podemos ver é que a maior parte dos ataques se produz na Rússia e nos países asiáticos”, diz a empresa de segurança Lookout. As probabilidades de um utilizador possuir um telemóvel infetado em Portugal são baixas, desde que use normalmente o smartphone e não instale aplicações duvidosas. Se a Rússia e a Ásia constituem territórios vulneráveis é por possuírem, frequentemente, lojas de aplicações de grande êxito e com menores medidas de controlo do que as aplicadas na Google Play.

As aplicações maliciosas constituem o principal vetor de risco no mundo dos telemóveis, mas não são o único. O smartphone, constantemente ligado à internet, promoveu o uso dos chamados “serviços em nuvem”, o armazenamento remoto de fotos, vídeos e informação pessoal. Agora, é possível recuperar os dados em caso de perda ou roubo do telemóvel, ou aceder, no computador do utilizador, às fotos e aos vídeos captados. Porém, como acontece sempre, toda a moeda tem um reverso. Essa ferramenta tão útil criou um novo ponto vulnerável nas nossas vidas: foi possível comprová-lo, no ano passado, após o ataque maciço à intimidade de atores e atrizes de Hollywood. Mais de quinhentas fotos pessoais (algumas comprometedoras) de muitos rostos conhecidos acabaram espalhadas pela rede digital. Ainda estão por esclarecer pormenores do caso, mas boa parte do conteúdo provinha do serviço de armazenamento iCloud da Apple. Os atacantes não precisaram de um conhecimento aprofundado da vulnerabilidade da plataforma. Foi suficiente averiguarem as diferentes palavras-passe através do recurso a técnicas de engenharia social. Muitos serviços permitem-nos recordar senhas esquecidas perguntando pormenores da nossa vida, como a cor preferida ou o nome do nosso animal de estimação, dados simples de descobrir no caso de celebridades. Noutros casos, as contas dos famosos estavam protegidas por palavras-passe pouco seguras e fáceis de averiguar, um erro infelizmente muito comum. Estima-se que quase 99% das senhas que utilizamos é passível de ser descoberta com recurso a uma lista dos dez mil códigos mais frequentemente escolhidos, uma tarefa trivial para qualquer computador atual. A.J.L.

Interessante

91


Tecnologia Os telemóveis são nocivos?

Pânico nas ONDAS A

ngela Jaen suicidou-se na sua casa, no dia 28 de novembro de 2012. Tinha 65 anos. Não conseguia suportar mais o sofrimento infligido, segundo dizia, pelas ondas de radiofrequência. Ia à rua protegida por uma espécie de burka, um pano com fios de prata que a cobria da cabeça aos pés e que, segundo os seus vendedores, funcionava como uma espécie de gaiola de Faraday: bloqueava as radiações que, presumivelmente, a afetavam. Angela sofria de hipersensibilidade eletromagnética, uma doença que não é oficialmente reconhecida. As pessoas afetadas manifestam uma grande variedade de sintomas (dores de cabeça, enjoos, falta de memória, insónias, erupções...), que atribuem à exposição às ondas do telemóvel e das redes sem fios, assim como às linhas de alta tensão. Em Espanha, outra mulher com hipersensibilidade ao eletromagnetismo, Minerva Palomar, conseguiu que lhe fosse atribuída uma pensão mensal de 1600 euros, depois de lhe ter sido reconhecida uma incapacidade total e permanente aos 42 anos. Na altura, foi noticiado que haveria naquele país cerca de 300 mil pessoas afetadas pelo problema (maioritariamente mulheres), embora apenas alguns fossem casos extremos como os que referimos. Haverá motivos para alarme? Vivemos cercados de ondas eletromagnéticas desde que nascemos até à morte. É isso que são a luz solar e a das lâmpadas, as ondas

92 SUPER

de rádio e televisão... Algumas, como os raios X e gama (as radiações ionizantes), podem romper as ligações moleculares e provocar, por conseguinte, mutações no ADN. Estamos constantemente expostos a doses inócuas de raios X; quando ultrapassam determinado limiar, podem produzir queimaduras ou mesmo cancro. É por isso que o técnico de saúde sai da sala quando fazemos uma radiografia. Uma emissão isolada não acarreta riscos, mas receber dezenas por dia tornar-se-ia fatal. Por sua vez, os raios gama são produzidos por reações nucleares naturais e artificiais, assim como por violentas explosões de estrelas. A atmosfera terrestre protege-nos dos que provêm do espaço. Seja como for, se uma supernova explodisse na nossa vizinhança cósmica, nada restaria: o nosso planeta tornar-se-ia estéril. Felizmente, não há nas imediações do Sol astros candidatos a morrer dessa forma abrupta. As radiações gama e X são, por essa ordem, as mais potentes do espectro eletromagnético, as únicas ionizantes e as mais perigosas. Seguem-se a luz ultravioleta, a visível e a infravermelha, as micro-ondas do forno e do telemóvel, as ondas de rádio e televisão e as disseminadas pela corrente elétrica. Embora a radiação ultravioleta seja um fator de risco para o cancro da pele (é por isso que é importante usar um protetor quando se apanha sol), o mais que nos pode acontecer quando nos expomos à luz visível, natural ou artificial, é sentir um

AGE

Dezenas de estudos não conseguiram demonstrar que as ondas eletromagnéticas emitidas pelos dispositivos e instalações que nos rodeiam prejudicam a saúde humana. Todavia, o receio existe, estimulado por alegados casos de pessoas afetadas. Há algum motivo para preocupação?


Escutar a ciência. Experiência na École Supérieure d’Électricité (França) para medir como a radiação eletromagnética procedente dos telemóveis penetra no crânio humano.

Interessante

93


Foi uma entrevista na CNN que desencadeou a preocupação Cancerígenos como o café

E

m 2011, a Agência Internacional para a Investigação do Cancro (IARC), dependente da Organização Mundial de Saúde (OMS), tornou público um comunicado em que se afirmava que a utilização do telemóvel “poderia implicar algum risco” de desenvolver um glioma (tumor cerebral maligno) ou um neuroma acústico (tumor benigno do ouvido), e que os indícios eram suficientemente sólidos para incluir o aparelho no grupo 2B da classificação de carcinogénicos da OMS, que também inclui o café. Surpreendentemente, lia-se no comunicado que “os indícios dos riscos foram submetidos a uma revisão crítica e avaliados, em geral, como reduzidos para o glioma e o neuroma acústico entre os utilizadores de telemóveis, e

94 SUPER

aumento da temperatura. Um fotão de raios X possui, aproximadamente, dez mil vezes mais energia do que um de luz, e ultrapassa cerca de mil milhões de vezes os produzidos por um telemóvel ou uma antena. Contudo, pessoas como Angela e Minerva alegam sofrer uma tortura quando se expõem às ondas dos telemóveis e do Wi-Fi. Será possível?

O EFEITO CNN

como inadequados para se poder retirar conclusões sobre outros tipos de cancro”. As palavras entre aspas pertencem ao documento original. Muitos especialistas mostraram-se céticos. Quando o comunicado foi publicado, o que dizia na realidade era que os cientistas tinham detetado em alguns estudos resultados incertos, mas nenhuma prova de uma relação causa-efeito. Semanas depois, John D. Boice e Robert E. Tarone destacavam no Journal of the National Cancer Institute que vários elementos do grupo de trabalho da IARC tinham considerado os indícios insuficientes para incluir a radiação dos telemóveis no grupo de carcinogenicidade 2B. Ou seja, a opinião dos alarmistas tinha prevalecido sobre as provas científicas.

Tudo começou há mais de vinte anos, num estúdio de televisão. No dia 21 de janeiro de 1993, o jornalista norte-americano Larry King convidou David Reynard, um viúvo da Flórida, para o seu programa na CNN. O homem processara o fabricante de telemóveis NEC e a operadora GTE Mobilnet por estar convencido de que um telemóvel fora responsável pela morte da sua mulher, Susan, aos 33 anos. O tumor cerebral que provocou a fatalidade desenvolvera-se do lado esquerdo da cabeça, onde ela “falava ao telemóvel”, e “tinha exatamente a forma da antena”. Na queixa, argumentava que a morte “foi consequência da radiação emitida pelo telemóvel ou o desenvolvimento do tumor foi acelerado e agravado pelas emissões do aparelho”. No dia seguinte ao da entrevista na CNN, o valor das ações das grandes companhias do setor desceu, e muitos clientes cancelaram os seus contratos. Os porta-vozes da indústria


Negócios sem escrúpulos

SPL

BRUNO VIGNERON / GAMMA-RAPHO / GETTY

H

Refúgio. Vários ativistas (na página oposta, com trajes supostamente protetores) criaram uma zona livre de “radiações maléicas” em Valence (França). Na mira da sua contestação encontram-se as antenas dos operadores de telefonia móvel.

procuravam suster o pânico, argumentando que vivemos rodeados de radiação eletromagnética, natural e artificial, e que a dos telemóveis não é nociva. De nada serviu. “Os jornalistas agarraram na história: o programa 20/20 da cadeia ABC apresentou o seu próprio estudo, aterrador, e começaram-se a desligar telemóveis por toda a América”, escreveu o advogado e jornalista Michael Fumento no diário económico Investor’s Business Daily. Fumento recordava que os tumores cerebrais não são, infelizmente, algo raro. A Sociedade Americana Contra o Cancro previa que seriam diagnosticados, nesse ano, 17 500, dos quais dois terços se revelariam fatais. Dado que dez milhões de norte-americanos possuíam, na altura, telemóvel, registar-se-iam, em termos estatísticos, cerca de 180 casos e 120 mortes por essa causa. Os meios de comunicação, escreveu o advogado, tinham apresentado a notícia “como uma questão de terrível importância, sublinhando que, além da mulher de Reynard, dois presidentes de empresas que utilizavam o aparelho também tinham falecido recentemente de cancro cerebral”, quando todos esses números seriam de esperar numa casuística normal. A queixa de Reynard foi arquivada, em 1995, por falta de provas, e o mesmo aconteceu com todas as que foram apresentadas desde então, incluindo a do neurologista Chris Newman,

que pedia uma indemnização de 800 milhões de dólares à Motorola e à Verizon, companhias que responsabilizava pelo tumor cerebral que desenvolvera e que acabaria por se revelar fatal. Newman também mereceu a atenção de Larry King, que o levou ao seu programa no dia 9 de agosto do ano 2000. Na ocasião, um especialista em radiobiologia, John Moulder, do Medical College do Wisconsin, introduziu um dado fundamental ao defender a inocuidade dos aparelhos: “Provavelmente, se não provocarem cancro, nunca seremos capazes de prová-lo, pois não há forma de demonstrar que algo não provoca uma doença.” Tal como não há forma de provar que a fada dos dentes não existe, que o nosso vizinho é um extraterrestre disfarçado de ser humano ou que as ondas de rádio e da televisão comercial nos estão a estupidificar.

RISCOS PARA AS CRIANÇAS

Mais de duas décadas depois do caso Reynard, um relatório de uma comissão científica, tornado público em 2013, afirmava: “Estudos realizados em países nórdicos, na Suíça, em Inglaterra, nos Estados Unidos, em Taiwan e na China, ao longo de períodos de diferente extensão, não encontraram qualquer relação causal entre a utilização de telemóveis e os tumores cerebrais, dado que não foi detetado um aumento nas taxas de incidência das referidas

á empresas que transformaram o pânico eletromagnético numa fonte de rendimentos. Fomentam o medo (e, também, a quimiofobia) para tirarem partido disso: vendem engenhos inúteis para bloquear as ondas de rádio, oferecem aconselhamento jurídico e informação ecológica, e chegam mesmo a apresentar a colaboração de um médico para diagnosticar a síndrome, tudo em troca de generosas faturas. Inventar uma doença, convencer as pessoas de que estão afetadas e vender-lhes falsas soluções parece ser um ótimo negócio. Se se despir a burka da hipersensibilidade eletromagnética, restam apenas as declarações dos afetados: possivelmente impressionantes, mas não provam que o sofrimento tenha uma causa orgânica e, muito menos, que possa ser provocado pelas ondas de radiofrequência. Deixá-los nas mãos de presumíveis especialistas que apenas pretendem vender produtos e serviços milagrosos é como abandonar alguém que acredita estar possuído pelo diabo na frente do crucifixo de um exorcista.

doenças.” Isso apesar de já existirem, na altura, mais de 6500 milhões de linhas em todo o mundo, contra apenas 91 milhões em 1995. Apesar da preocupação social suscitada pelos eventuais riscos da utilização do telemóvel por crianças, não surgiram estudos sobre o assunto até muito mais tarde. Foi apenas em 2011 que o Journal of the National Cancer Institute, a revista de investigação oncológica mais importante do mundo, publicou os resultados de um estudo, segundo o qual as crianças e adolescentes que usam habitualmente o aparelho não correm maior risco de desenvolver um tumor cerebral do que aqueles que não o utilizam. O trabalho, dirigido por Martin Röösli, epidemiologista do Instituto Suíço de Saúde Pública e Tropical, foi realizado entre 2004 e 2008. Especialistas da Dinamarca, da Noruega, da Suécia e da Suíça entrevistaram 352 vítimas da doença com idades compreendidas entre os 7 e os 19 anos, assim como 646 jovens saudáveis. Destes, 194 doentes (55 por cento) e 329 indivíduos do grupo de controlo (51 %) disseram utilizar regularmente o telemóvel. Os cientistas não encontraram provas de que uma maior utilização correspondesse a um aumento da incidência da doença, nem que tivesse subido o número de tumores localizados em áreas cerebrais mais expostas à radiação. “De acordo com praticamente todos os estudos feitos com indivíduos expostos a ondas Interessante

95


JENS WOLF 7 EFE

Caso encerrado. Dois engenheiros registam os níveis de radiação gerados por antenas de telefonia móvel na cidade alemã de Magdeburgo. O estudo demonstrou que os níveis a que as pessoas estão sujeitas são perfeitamente inócuos.

Terror na escola

E

m Espanha, houve um caso relacionado com este tema que causou grande inquietação na opinião pública nacional e internacional. Aconteceu numa escola pública de Valladolid, onde foram detetados cinco casos de cancro em crianças, e dois em adultos, entre 2000 e 2003. Os pais atribuíram o fenómeno à floresta de antenas (de todos os tipos) que havia no telhado de um edifício vizinho. Contudo, um grupo de oncologistas, pediatras, biólogos moleculares, peritos em proteção radiológica, especialistas em saúde pública e epidemiologistas concluiu, em dois relatórios, que os dados não sustentavam a hipótese de uma relação causal entre as referidas antenas e o aparecimento dos tumores. A que se deveu, nesse caso, o drama da escola espanhola? Ao acaso. Entre 2000 e 2003, Valladolid registou mais casos do que era previsível, mas não foi detetada qualquer anormalidade no conjunto da cidade, da província ou da comunidade autónoma. O acaso situou os tumores naquele lugar, como poderia tê-los acumulado noutro sítio qualquer.

96 SUPER

A hipersensibilidade às ondas pode ser uma reação ao stress de rádio, não existem provas convincentes de que as crianças que usam telemóveis apresentem maior risco de desenvolver um tumor cerebral do que aquelas que não o fazem”, indicavam, por sua vez, num editorial, John D. Boice e Robert E. Tarone, do Instituto Internacional de Epidemiologia de Rockville, uma organização criada por investigadores do Instituto Nacional do Cancro dos Estados Unidos. Os dois especialistas chamavam a atenção para o facto de, passados mais de 20 anos, não haver qualquer prova para sustentar a ondafobia. Mais recentemente, em fevereiro de 2014, foram publicados no Reino Unido os resultados do programa de Investigação sobre Telecomunicações Móveis e Saúde (MTHR), um estudo de onze anos coordenado pelo Departamento de Saúde britânico. O MTHR custou mais de quinze milhões de euros, suportados pelo governo britânico e pela indústria de telecomunicações. A fim de garantir, nas palavras dos seus organizadores, que nenhum dos organismos responsáveis pelo financiamento pudesse influenciar o resultado, os projetos foram selecionados e supervisionados por uma comissão de gestão independente, formada por especialistas na matéria. Os estudos deram como fruto 60 artigos publicados em revistas científicas: em nenhum foi detetada qualquer ligação entre telemóveis e cancro. A hipersensibilidade eletromagnética tam-

bém não resistiu ao escrutínio científico. Em 2005, James Rubin, Jayati Das-Munshi e Simon Wessely, do King’s College London, publicaram uma meta-análise, uma investigação que examina estudos anteriores para comprovar a fiabilidade das suas conclusões. Analisaram 31 estudos que tinham envolvido 725 pessoas afetadas pelo presumível problema. Os especialistas descobriram que 24 desses estudos não tinham encontrado qualquer indício da sua existência. Dos sete favoráveis, as conclusões de três deviam-se a erros estatísticos; as de outros dois eram incompatíveis, e as dos restantes dois não podiam ser replicadas pelos seus autores, algo de básico em termos científicos. A OMS também proclamou, em dezembro desse ano, que “não existe base científica para vincular os sintomas da hipersensibilidade com a exposição a campos eletromagnéticos; além disso, não constitui um diagnóstico, nem se conseguiu estabelecer que represente um único problema médico”. Segundo a organização, os sintomas “poderiam dever-se a condições psiquiátricas pré-existentes e a reações de stress, resultantes da ansiedade quanto aos efeitos dos campos eletromagnéticos”. Portanto, nada há a recear das antenas de telemóveis e das ondas de rádio em geral, mas continua por explicar o que aconteceu a pessoas como Angela Jaen e Minerva Palomar. P.C.


Marcas & Produtos

Todos ao Tejo!

E

ntre 25 de maio e 7 de junho, o Tejo vai encher-se de cor, animação e atividades. A Volvo Ocean Race, a maior regata à volta do mundo e um dos três maiores eventos náuticos mundiais, chega a Lisboa e transformará a capital numa verdadeira “Cidade do Mar”, com inúmeras atrações e atividades gratuitas: aulas de vela e de paddle surf, workshops para aprender as mais diferentes modalidades náuticas, espaços lounge, restaurantes e food trucks, concertos de dia e de noite, zona exclusiva de entretenimento para crianças, exposições sobre o mar, jogos e passatempos. “As condições e a localização do evento são únicas: 14 dias de evento, atividades dia e noite, dos 8 aos 80, em terra e no rio, com a possibilidade única de conhecer e falar com os velejadores que estão a dar a volta ao mundo. Tudo com entrada gratuita e em plena cidade de Lisboa”, refere José Pedro Amaral, diretor da escala da Volvo Ocean Race em Lisboa. “Estamos a montar um recinto com mais de 50 mil metros quadrados, com as melhores

condições para que as famílias possam desfrutar em pleno”, acrescenta. Os barcos da Volvo Ocean Race percorrem 38 739 milhas náuticas à volta do mundo, superando nove etapas e passando por dez portos diferentes: partiram de Alicante (Espanha) para a Cidade do Cabo

(África do Sul), a que se seguiram Abu Dhabi (Emirados Árabes Unidos), Sanya (China), Auckland (Nova Zelândia), Itajaí (Brasil) e Newport (Rhode Island, Estados Unidos). De Lisboa, seguirão para Lorient (França), e terminarão a prova em Haia (Países Baixos).

Gelado de gin

O

novo gelado Santini não reproduz somente um sabor, reproduz a autenticidade de uma bebida: o gin tónico. Por isso, calorias à parte, este é o gelado que requer verdadeiros cuidados na hora do consumo, sob pena de o deixar inebriado. Tudo começou há cerca de um ano, quando a Gin Lovers convidou a Santini a desenvolver gelados da bebida para uma ação promocional da marca. A Santini aceitou de imediato e, apesar de se tratar de um produto exclusivo, o sucesso foi confirmado com a procura nas lojas. Em resposta, a mais prestigiada casa de gelados portuguesa aliou-se, efetiva e oficialmente, à mais prestigiada comunidade de apreciadores de gin, para a criação de uma série de gelados de gin tónico. A concretização do produto levou à seleção de 16 marcas premium de gin, e a marca de água tónica Schweppes, que abraçaram a ideia com igual entusiasmo e disponibilidade. Cada marca representa um sabor diferente de gelado, dadas as distintas combinações de botânicos que permitem retirar o melhor de cada gin. Como não existe adição de gelo, que fornece uma quantidade extra de água à bebida, o gelado revela o sabor mais genuíno de um golo de gin tónico, e a Santini dá-lhe a possibilidade de experimentar os sabores de G’vine, Gin Mare, Seagram’s, Blackwood’s 60, Tanqueray 10, Tanqueray Rangpur, Bulldog, Opihr, N3 London Dry Gin, Brockman’s, Monkey 47, Martin Miller’s, Hendrick’s, Wild Snow Dog, Sylvius e Beefeater 24.

Novas agências

A

Carglass, líder nacional na reparação e substituição de vidros em viaturas, inaugurou duas novas agências em abril, em Torres Vedras e em Mirandela. Este é o resultado do forte projeto de expansão da marca para o ano de 2015, tendo previstas ainda mais aberturas. Estes investimentos permitiram a criação de mais postos de trabalho diretos e uma maior efetividade em termos de serviço aos clientes, até então assegurado pelo serviço

móvel. Ambas as localidades têm assim ao seu dispor o espaço Carglass, onde poderá confortavelmente levar a sua viatura e aguardar enquanto realizam o serviço ou, então, recorrer ao serviço móvel, que permite que a reparação ou a substituição do vidro danificado sejam efetuadas no local da preferência do cliente, sem qualquer custo adicional. Com as novas aberturas, a Carglass passou a ter um total de 34 agências no continente. Interessante

97


EMÍLIO BIEL

Foto do Mês

Vencer o vazio

Edições, Publicidade e Distribuição, Lda.

Nesta foto de 1883, vê-se bem que técnica usaram os engenheiros para vencer o vão de 172 metros que separa as duas margens do Douro entre Gaia e o Porto. Com efeito, as 3045 toneladas de aço que constituem a ponte foram sendo postas no seu sítio a partir de cada uma das margens, suspensas por tirantes ancorados de cada um dos lados. A obra iniciou-se em 1881. Cinco anos depois, abria ao trânsito o tabuleiro superior. O inferior abriria dois anos depois. A empresa belga que ganhou o concurso público para desenhar e construir a

Conselho de Gerência Marta Ariño, Rolf Heinz, Carlos Franco Perez, João Ferreira Editor Executivo João Ferreira

Ponte D. Luís icou com o direito a cobrar portagem aos veículos que a atravessavam, o que fez até 1944, data em que foi abolida essa cobrança. Gustave Eiffel concorreu à construção da travessia do Douro, mas o seu projeto (um único tabuleiro à cota baixa, com um troço levadiço no centro) não convenceu o júri, que preferiu a solução dos belgas da Société de Willebroeck, com projeto do alemão Théophile Seyrig, ex-sócio de Eiffel na construção da Ponte D. Maria, um pouco mais acima no rio

Rua Policarpo Anjos, 4 1495-742 Cruz Quebrada-Dafundo

Diretora de Publicidade Joana Pimenta Araújo (jaraujo@gjportugal.pt) Gestora de contas Susana Mariano (smariano@gjportugal.pt) Assistente Comercial Elisabete Anacleto (eanacleto@gjportugal.pt)

Diretor Carlos Madeira (cmadeira@motorpress.pt) Coordenador Filipe Moreira (fmoreira@motorpress.pt) Colaboraram nesta edição Francisco Mota, Máximo Ferreira e Paulo Afonso (colunistas), Alfredo Redinha, Ángel Jiménez de Luis, Dario Migliucci, Elena Sanz, Isabel Joyce, Joana Branco, Joaquim Semeano, Jorge Nunes, José Ángel Martos, Luis Muiño e Pablo Colado. Assinaturas e edições atrasadas http://www.assinerevistas.com Sara Tomás (assinaturas@motorpress.pt) Tel.: 21 415 45 50 – Fax: 21 415 45 01

98 SUPER

Edição, Redação e Administração G+J Portugal – Edições, Publicidade e Distribuição, Lda. Rua Policarpo Anjos, 4 – 1495-742 Cruz Quebrada-Dafundo Capital social: 133.318,02 euros. Contribuinte n.º 506 480 909 Registada no Registo Comercial de Lisboa com o n.º 11 754 Publicação registada na Entidade Reguladora para a Comunicação Social com o n.º 118 348 Depósito legal n.º 122 152/98 Propriedade do título e licença de publicação Gruner + Jahr Ag & Co./G+J España Ediciones, SL Calle Albasanz, 15 – 28037 Madrid – NIPC D-28481877

Redação: tel.: 21 415 97 12, fax: 21 415 45 01 Comercial: tel.: 21 130 90 67, fax: 21 415 45 01

Impressão Sogapal – Rua Mário Castelhano Queluz de Baixo – 2730-120 Barcarena Distribuição Urbanos Press – Rua 1.º de Maio Centro Empresarial da Granja – 2525-572 Vialonga Todos os direitos reservados Em virtude do disposto no artigo 68º n.º 2, i) e j), artigo 75.º n.º 2, m) do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos artigos 10.º e 10.º Bis da Convenção de Berna, são expressamente proibidas a reprodução, a distribuição, a comunicação pública ou colocação à disposição, da totalidade ou de parte dos conteúdos desta publicação, com fins comerciais diretos ou indiretos, em qualquer suporte e por quaisquer meios técnicos, sem a autorização da G+J Portugal - Edições, Publicidade e Distribuição, Lda., da Gruner+Jahr Ag & Co., da GyJ España Ediciones, S.L.S en C. ou da VISAPRESS, Gestão de Conteúdos dos Média, CRL. Edição escrita ao abrigo do novo acordo ortográfico


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.