Revista Cruviana 3

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Ana PĂŠrola Pacheco


Ana PĂŠrola Pacheco











Nina Rizzi


















Ă boca pequena 1


Ă boca pequena 2


que se lixe a língua 1


que se lixe a língua 2


que se lixe a língua 3

























colagem de Roberta Fernandes





































Não há dúvida: a pior praga no mundo é leitor metido a besta. Eis minha condição existencial: estar diante do papel em branco e, a partir dele, escrever algo que rompa o silêncio. Mas de onde tirei a ideia fixa que poderia, na altura dos mal completados cinquenta anos, ser escritor? Renunciei viagens, evitei afetos concretos e demasiadamente próximos que obliterassem minha relação com o imaginado, freqüentei, envergonhado, todos os cursos de escrita que estiveram a meu alcance. No entanto, a folha continuou, durante todo este tempo, sendo rasurada a lápis, retirada da máquina, amassada e triturada com a fúria da minha total incapacidade de escrever algo que soasse minimamente digno de vida. Toda essa lamúria começou nos tempos do primário. Sou leitor metido a besta de longa data. Creio que toda criança tímida tem propensão a cair na armadilha da literatura. É reconfortante enfurnar-se no universo fantástico e transcender vilas sem brilho ou famílias destituídas de sensibilidade [e de vida]. Para este tipo específico de criança, a diversão consiste mais em ler as aventuras de um homem perdido numa ilha acompanhado de um índio do que ser forçado a brincar com a própria sombra nos pátios do colégio burguês. Ou é mais interessante acompanhar as aventuras de uma adúltera francesa do que ouvir as maledicências cotidianas das tias acerca da vizinhança. Definitivamente, a literatura fisga qualquer criança nestas pobres condições de espírito, mas cobra um alto preço, pois a transforma, mesmo que de forma germinal, num leitor metido a besta. Para ser um leitor metido a besta, a pessoa precisa chegar às turbulências da adolescência. E qual o melhor caminho para perder a inocência, destruir e construir referências numa rapidez descomunal? Os mais experientes na dura arte do viver, poderão dizer, sem pestanejar: a vida, ora! Sim, a vida, mas se tratando de um leitor metido a besta, a literatura será, mais uma vez, a fiel escudeira e responsável por apresentar e envolver com seu canto agridoce o revoltado, o viajante, o sem deus ou com altas doses de ideologia (o que dá no mesmo). A literatura torna-se mãe, pátria, visão beatífica, revolução! O jovem metido a besta passa a se comportar com arrogância, a flanear por novos caminhos, a experimentar um novo modus vivendi e operandi trancado no quarto, esquecido do mundo e de si. A adolescência vertiginosa é substituída pela tão esperada vida adulta. O


leitor metido a besta, sem perceber, já tem a literatura como uma segunda pele. Não há mais possibilidade de discutir uma ideia, ouvir uma música, ver um quadro, uma folha (que seja!) sem fazer referência a uma obra, personagem, escritor. Ele sente que, neste estágio, é dado seu momento. Agora o legado será perpetuado por suas mãos ágeis e mente rica em cultura. Mas aí, o leitor metido a besta, diante do papel e da vida, percebe que ele não sabe escrever. Neste instante, tudo que é dito vira caricatura, rascunho, mímesis maldita e mal feita daqueles com os quais ele partilhou o existir. O leitor metido a besta descobre-se, ao escrever, mero fantoche e, em pânico, abandona o fracassado caminho das letras. Não que a literatura deva se tornar algo desprezível em sua vida [é a única vida que ele se deu ao luxo de conhecer]. Contudo, seu destino é de mero [ou privilegiado] expectador, famigerado e silencioso leitor. E agora, o que resta? Nada, ora. Rasgar a folha, levantar, olhar o céu. Pensar que eu não sou o último dos moicanos e que a humanidade, felizmente, contará com grandes contadores de história. Ultimamente, sonho a mesma coisa, obsessivamente, todas as noites: sonho com o velho Borges, bem cegueta, impedindo minha entrada na grande biblioteca e dizendo com forte sotaque: acostume-se, meu menino, acostume-se. Na vida, talento mesmo é para poucos.




palhaรงo


urso bĂŞbado







Na infância de Madalena, as férias de verão costumavam ser passadas na terra dos avôs paternos. Viviam num sítio sem nome, cinquenta e poucos habitantes, quase todos eles idosos. No final, à esquerda da última curva, encontrava-se a praça, onde reuniam-se inúmeras vezes os escassos habitantes. Os Piqueniques em família e romarias até tarde eram a maior distracção daquele santo lugar. Em todas as casas eram deixadas à porta as várias cadeiras, usadas na coscuvelhice do dia a dia, e em todas as janelas um terço balouçava em sintonia com as cortinas. O caminho até ao sítio era longo. Madalena não sentia muita emoção com a viagem, enquanto fechada no carro, quase de 7 horas . A excepção de Rita, o sítio não tinha crianças com quem se entreter. Rita sentia-se incrivelmente extasiada com a chegada de Madalena, e o seu coração disparava numa emoção quase descontrolada, esquecendo a longa espera. Numa loucura total, as raparigas corriam campos a dentro sem termo nem preocupação de maior interesse. As suas descobertas eram fantásticas, todos os dias a exploração era anotada num bloco. Rita, com o seu jeito para o desenho, passava muito tempo sentada a desenhar algo que achava digno de ficar gravado. Mal o sol espreitava por entre o monte, já se encontravam prontas de mochila às costas e mãos no volante, pedalavam por entre caminhos estreitos e varedas que pareciam não ter fim. E num desses dias calorosos, com pouca água na garrafa e bolachas desfeitas no fundo da mochila, pararam debaixo do enorme pinheiro, como era hábito, Rita tirou o bloco de desenho, e com o apoio de costas, o grosso tronco, desenhava. Madalena simplesmente esperava, deitada na erva já seca. “O que desenhas?”- espreitou Madalena por entre o cotovelo e anca de Rita. “Já vês.”- respondeu-lhe prontamente, encolhendo os ombros, voltou a aconchegar a cabeça na mochila e contou os insectos que esvoaçavam. Num salto rápido e de uma expressão de espanto no rosto, Rita deixa cair o bloco de desenho e aponta para o horizonte. “ O que se passa!?”- Madalena segue o dedo da amiga e avista uma enorme mansão. “Não estava ali antes, pois não?” Madalena não nega, tentou convencer a amiga e a ela própria que a mansão já estaria lá, elas é que nunca deram por ela, seria possível?


“Vamos até lá?”- propôs Madalena já montada na bicicleta. Rita, desconfiada, encolheu os ombros, e seguiu atrás da amiga. Com algum receio, as amigas seguiram o caminho da esquerda e deparamse com um enorme portão enferrujado. Ambas lingrinhas, sem esforço algum, entraram por entre as grades. O balouço no velho castanheiro fez com que o medo que sentiam do lugar desaparecesse. Balouçaram ao sabor do vento, tocaram num esquilo distraido e riram até doer a barriga. Limparam um pequeno canto da fonte seca e petiscaram o que traziam nas mochilas. Rita aproveitou e desenhou o castanheiro, a fonte, o esquilo que voltara com o cheiro das bolachas. Escurecia e Rita não queria regressar. “Com o escuro não vamos ver o caminho.”- avisava Madalena. “Quero ver a casa por dentro.”- deixou o caderno em cima da pedra gasta da fonte e percorreu o que antes fora um jardim vistoso, ao entrar na casa reparou que Madalena não a seguira. Mas ela não se importou. Olhou em redor e tudo estava coberto por panos cobertos de pó. Ao fundo do lado direito, uma teia de aranha gigante tapava o acesso a uma das divisões. Caminhou até à escadaria, apesar da cor pálida da carpete, conseguiu ver por momentos como antes era de um vermelho vivo. Pé ante pé subiu os degraus, tentou não agarrar no corrimão, a visão das pequenas aranhas não era muito agradável e não as queria sentir subir-lhe pelo braço. Chegou ao topo, suspirou fundo, virou à direita, entrou num quarto colorido, nele uma cama de dorsel chamva por ela, sentou-se, era macia, deitou-se nela Adormeceu. Madalena pedalara monte a baixo, chamara por Rita várias vezes e nunca obteve resposta. Como detestava o escuro e decidiu regressar sozinha. A amiga conhecia o caminho de regresso. Ainda a junto ao pinheiro. Escureceu, não houve regresso. O tempo passou para Madalena, não voltara ao sítio desde que o avô falecera e a avó mudara-se para a casa da tia. Mas, a recordação de Rita não desvanecera. Podia ter voltado. Fez-se à estrada no seu velho Renault Clio 5. Demorou menos tempo, a estrada estava alcatroada fazia anos.


O sítio ganhou nome, a placa “Monte” indicava o início. Perguntou por Rita, mas ninguém sabia dela. A Casa do Monte. Embrenhou-se pelos caminhos estreitos, metade cobertos por espinhos. Lá estava ela, no cimo do Monte, envolta pelo muro verde. O portão aberto mostrava-lhe um jardim cuidado, rosas a florir nos canteiros redondos. A fonte a brotar água. Deparou-se com um pequeno pomar, encaminhou-se pelo caminho entre as árvores. Umas estranhas pedras amontoadas chamaram-lhe a atenção. Uma pequena lápide. “Doce botão de rosa, descansa em paz” Olha em seu redor. O pomar que vira carregado de fruta, parecia abandonado há séculos. A lápide continuava lá, rachada pela raiz da árvore, uma foto gasta que mostrava o jovem rosto de Rita. Madalena de passos rápidos passou a fonte seca já a correr, as roseiras tinham-se apoderado do caminho. O baloiço enferrujado rangia ao ritmo do vento. Ao chegar ao portão, não conseguiu evitar olhar para trás. Uma menina sorridente acena para ela.






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