Gildo Bento
Ano 3. ed. 4. jan - jun, 2013 - Mossor贸 - RN - Brasil
Gildo Bento
Selo independete Cruviana Apoio Editorial Ed. Sarau das Letras Editor-Chefe José de Paiva Rebouças
PAINEL [Ana Pérola Pacheco] FORD ESCORT [José de Paiva Rebouças] VIDA DE ARTISTA [Sidney Fortes Summers] DIÁRIO EM DEVANEIO NOTURNO VIII [Karinne Santiago] ( ) [Carla Duarte] CASA 44 [Antonio Francisco de Morais Neto] INTERVENÇÃO 1 [Nina Rizzi] O AJUDANTE E O AJUDADOR [Elilson José Batista] O CRESPO [Julia Godoy] A COSTUREIRA, O MOTOR E A ALMA [Arlete Mendes] HELENA [Sancha Walessa] MARIANINHA [Thiago Jefferson] INTERVENÇÃO 2 [Fabiana Tessia]
Editoração, Designer e Diagramação Editora Cruviana Capa Fotos: Gildo Bento Revisão Regiane Santos Cabral de Paiva Ilustrações: Anchieta Rolim Nina Rizzi Fabiana Tessia Fotografia Ana Pérola Pacheco Gildo Bento Conselho Editorial Clauder Arcanjo (Escritor, Poeta e editor) David de Medeiros Leite (Escritor, Editor, Advogado e Professor da UERN) Regiane Santos Cabral de Paiva (Professor de Literatura da UERN) Carlos Gildemar Pontes (Escritor, Poeta, Editor e Professor da UFCG) Raimundo Leontino Filho (Poeta, Escritor, Ensaísta e Professor da UERN)
O homem pensa ser imortal e capaz de enganar a aflição, mas ele é apenas um pedaço de nada vagando na boca de um precipício (in: Ford Escort José de Paiva Rebouças)
Constelação [ANCHIETA ROLIM]
Nesta edição entrego aos leitores virtuais o meu primeiro conto. Ford Escort foi a primeira incursão que fiz pela prosa. Nele está contido todo o meu despreparo e desrespeito. Toda a minha angústia e usura. Esta revista tem um pouco disso, de ser inaugural, imperfeita e despretensiosa. É um espaço para palavras, boas ou ruins, novas ou velhas. Foi feita para embrulhar pão ou para cuspir, só não para os igarapés, as fórmulas, as regras e os anéis. Nesta edição de poucos contos, as imagens nos invadem e se proliferam como uma benção. As imagens das fotos e das palavras se misturam e se liquefazem. A quarta edição surge atrasada, mas surge como o cupim na cumeeira que já roeu todas as nossas esperanças. José de Paiva Rebouças Editor
[Ana PĂŠrola Pacheco]
colorido ĂŠ o seu sentir <kitoshirox@gmail.com>>>
Eu habito a rua do mundo
Toda nascente a lua crescente
AusĂŞncia de coragem
Sem fĂŠ, nada aconteceria
A espera O vazio cheio de fim
ford escort Deixe de ser tão cruel Escreva ao menos uma palavra Num pedaço de papel (Bartô Galeno)
O botão do play foi acionado e os arranjos de um violão em lá maior quebraram-lhe a maldição dos pensamentos. Uma composição triste sobre amor e saudade fez o motorista apertar as pálpebras. Um rio molhou sua camisa. O Ford Escort alcançou a 304 no rumo de Natal. A estrada que se estende quase como uma reta, talhando cidades e pontilhões, ficou vazia e sem cor, enquanto o carro em movimento fazia lembrar uma silhueta vermelha numa fotografia preto-e-branco. No volante, um jovem visivelmente abatido parecia esperar que a morte o alcançasse antes de chegar a seu destino. Ele recordava toda a sua vida que agora se resumia ao ano corrente. Tudo antes fora ilusão, perda de tempo e estágios. Os últimos meses transcorreram lentos e deixaram marcas profundas daquelas que não se deve esquecer. Mas agora, o que lhe restava era uma dor aguda e desmedida, uma dor latente e incoerente, assim como sua vida e seus olhos vermelhos de reclamar. A visão turva e a fala engasgada forçando a letra da música o transportaram para o começo do ano, quando viajar era, para ele, um grito de salvação. A liberdade é um pássaro voando em alta velocidade, dizia erguendo o copo nas bebedeiras. Quando ganhou do pai seu primeiro carro, o lendário Ford Escort XR3 conversível de segunda mão que sonhava desde antes de poder dirigir, decidiu, naquele instante, que aproveitaria dos mundo todas as promessas avulsas. ** Numa dessas viagens sem rumo, foi engolido pelos entrecruzamentos de Natal e acabou na praia de Ponta Negra.
Subiu a capota do Ford, deixou as sandálias na esteira do assoalho do carro, verificou se a bagagem, uma bolsa de mão com duas mudas de roupas, estava segura no banco de trás e bateu a porta com cuidado. Desceu o calçadão afundando os pés na areia fina. Sentiu imediatamente que o mundo era um lugar exótico e agradável. Um sorriso inconsciente lhe cortou os lábios finos e os braços caíram como se fossem abandonar o corpo. Havia uma música perfeita para aquela praia, tocando em algum aparelho digital. Reconheceu a voz de Khrystal, uma de suas cantoras preferidas. Podia imaginá-la articulando os pés pequenos no palco. Mulata, baixinha de cabelos rebeldes e um agudo estridente que lhe arrancava a postura. Perdeu-se no pensamento e esbarrou, sem querer, numa moça que dançava o coco potiguar. Pediu desculpas e saiu atrapalhado tentando se desviar do restante do grupo que estava com ela. Mas aí se deu conta de tudo. Voltou-se e viu novamente a mocinha rodando despretensiosamente um vestido azul que deixava marcas na areia. Viu pelas cavas do rostinho redondo que se formavam pelo sorriso que se tratava de uma menina, mas ele estava desmedidamente atordoado. Por um instante a vida parou, mas a pulsação dele era um rio perene. Tocava o “Coco da mãe do mar” e a moça rodopiava na areia fazendo lembrar a imagem de Iemanjá da Praia do Meio. Riscava em círculos misturando o azul do vestido à imensidão topázio do atlântico que também se perdera no céu vazio de nuvens. Ele a amou eternamente. Apaixonou-se ainda mais por si mesmo e depois pelos outros e por todos os elementos daquela praia. O mundo apagou-se. Era ele e ela que agora também sorria em sua direção. Os outros se afastaram para os dois que agora rodopiavam juntos feito um carrossel. Ela deu um giro completo fazendo a barra de seu vestido açoitar-lhe as pernas. Quando se voltou, parou um instante, olhou fixamente para ele e depois continuou a dançar, fazendo movimentos com os ombros enquanto efetuava outro giro - dessa vez segurando a saia do vestido e a jogando para os lados. A música nem havia terminado quando ela, sem ao menos dizer-lhe o nome, anunciou que precisava ir. Deu-lhe as costas. Ele agarrou-a pelo braço e a levou ao seu encontro. Seus corpos se uniram numa amálgama sincrética e estranha. Espaço e tempo
em suspensão. Os perfumes, a transpiração. Os hálitos transmutaram-se e eles se derramaram. Os corpos reagiram sonolentamente até que ela, parecendo assustada, afastou-se bruscamente e tentou correr. Ele voltou a segurá-la. – Seu telefone, pediu ele soltando-a levemente. Ela abriu uma pequena bolsa, tirou uma caneta colorida com um enfeite colado na parte superior, arrancou um guardanapo do porta-guardanapos que estava sobre a mesa e escreveu-lhe um endereço. – Escreva-me, ninguém nunca me escreveu uma carta. Entregou a ele o papel saiu correndo enquanto ele tentava decifrar o que estava escrito. Ele ficou vendo-a correr e sumir no calçadão. Só então resolveu ir atrás. Deixou a praia, voltou para o carro, deu uma moeda ao flanelinha e seguiu no sentido contrário ao Morro do Careca na tentativa de cruzar com ela novamente. Medida desesperava. Lá na frente quando a rua acabou-se, ele subiu com o carro à esquerda, retornou pela Avenida Engenheiro Roberto Freire, pegou outra vez o acesso à praia e margeou o calçadão. Nenhum sinal da bailarina. Tentou refazer o caminho, mas dessa vez foi impedido de passar pela fiscalização do trânsito que isolava uma área grande do asfalto. Uma multidão circulava os carros e todo esse tumulto o impedia de retomar o caminho da praia. Um guarda fez sinal para que desobstruísse a passagem e ele teve de voltar. Não via mais nada e a música de Krystal fora substituída pelos sons ensurdecedores das sirenes e das buzinas do trânsito da grande cidade. ** Na noite que se abateu sobre a cidade, a treva combatida pela iluminação da capital espacial buscou esconderijo em seu peito. O remédio para aquela dor deveria estar nos bares do Beco da Salsa, no Beco da Lama ou no Buraco da Catita. Acordou no dia seguinte perto das 11 horas da manhã, sem poder com a cabeça. Não sabia como chegara ao apartamento da república que dividia esporadicamente com amigos e primos. Imaginou, pela situação dos colegas, que tivessem vindo juntos de algum lugar e de alguma maneira. O Ford Escort estava intacto no pátio e ele
respirou aliviado. Tomou um banho, comeu o que achou na geladeira, engoliu um analgésico sem reparar a data de validade, retirou as latas vazias de cerveja do piso do carro, ligou o motor e voltou para Mossoró. A estrada longa, quente e cansativa obrigouo a ouvir todas as fitas do porta-luvas. Saboreava o som pesado do k7 com o mesmo amor que os nostálgicos empregam aos vinis. Gostava de voltar a fita só para ouvir o ruído das engrenagens. A cabeça doía muito, mas uma das músicas o levou novamente para aquela praia. As lembranças eram tão recentes que ele se afogou nelas e só acordou quando estava entrando em casa. ** Escreveu a primeira carta naquele mesmo final de tarde. Tentou ser poético, mas tudo que conseguiu foi ser adolescente. Depois que postou a carta arrependeu-se de não ter lido novamente o que escrevera e de ter suprimido palavras e partes inteiras. Dizem que não se deve morrer por amor, mas não há como afastar a morte das preocupações: o amor faz-nos morrer como éramos para nascermos com outras sensações e propósitos. A dele era esperar, mas a ausência de resposta lançada à juventude é um punhal envenenado. Fora assim para ele que, afogado na ansiedade, entregou-se ao purgatório do álcool, amedrontando seus pais e irmãos. Ameaçaram tomar-lhe o carro até que ele se recompôs. Escreveu a segunda carta, mas escondeu o sofrimento. Apoiou-se nas palavras doces e falou de como age a saudade. Citou um poeta que não conhecia e voltou a esperar resposta. Sonhava com a menina dançando em sua praia. Um dia ela despencou do céu num salto letífero e mergulhou em seu peito com violência acordando-o em desespero. ** Numa terça-feira de manhã, o carteiro gritou no portão com as correspondências como fazia sempre, mas ele já não tinha ânimo. A falta de esperança habitava seus olhos e fazia-o movimentar-se feito um desvalido. Tomou as cartas por obrigação e seguiu passando-as uma a uma. Entre os papéis, um envelope pequeno e magro tinha seu nome. A ansiedade poderia ter-lhe provocado arritmia, mas estava seco e não se abalou. Leu ali mesmo, pela
primeira vez, entre o portão e a porta da frente, um nome que deveria ser o dela. Pareceu-lhe tão lindo que achou impraticável pronunciá-lo em voz alta. Dentro do envelope branco, um bilhete escrito no pedaço de uma folha dizia pouco: - “Suas cartas são como poesias que matam a sede da minha dor, choro com você toda a saudade”. Ponto. Não importava a quantidade de letras, a intencionalidade das palavras bastava. Ela tinha respondido e o amava tanto quanto ele a amava. Precisava revê-la. Talvez abandonasse a faculdade no final do semestre e fosse viver em Natal. Arrumaria um emprego, juntaria o salário com a mesada e encontraria com ela todas as noites. O amor era real e havia batido à sua porta para abraçá-lo e convidá-lo para a noitada. ** Escreveu outras cartas, escreveu sem parar. Uma por dia. Contou-lhe tudo o que sabia sobre si próprio. Disse o que pretendia e não fez cerimônia ao falar de futuro. Mas a angústia é um vício que não tarda e, logo, ele voltou a adoecer pela ausência dela. Três meses e nenhuma resposta. Num ato de desesperança, escreveu-lhe a última mensagem, um telegrama, ameaçando sufocá-la com o seu ardor. Partiria na mesma semana à sua procura, enfrentaria quem fosse e ficaria plantado no portão de seu condomínio até que ela o recebesse. A ameaça surtiu efeito e a resposta veio em outro telegrama. Ao abri-lo e ler a primeira das duas linhas escritas, ele sentiu o peso de Deus em sua garganta. Seu corpo desobedecera à bússola da cabeça, as mãos tremeram e os olhos encharcaram-se vertiginosamente. Jogou o papel no chão, catou a chave do Ford Escort, baixou a capota, acionou o portão e riscou o piso da garagem com os pneus. Pegou a 304 em linha reta e sumiu no horizonte. No tocafitas, a música triste foi repetida até que o carro alcançasse a Avenida Hermes da Fonseca, no centro de Natal. Cruzou a Alexandrino de Alencar e seguiu até chegar à portaria de um edifício solitário. Identificou-se, ouviu o porteiro interfonar para um nome. Encostou-se ao muro para não desabar das pernas e esperou algum tempo. A dor, às vezes, parece engraçada e faznos sorrir enquanto choramos. O homem pensa ser imortal e
capaz de enganar a aflição, mas ele é apenas um pedaço de nada vagando na boca de um precipício. Ele agora sabia disso com uma certeza lancinante e, de repente, não entendia mais nada. Uma voz doce pousou-lhe os ouvidos. O sol abriu-se entre as nuvens e apresentou-lhe um céu aberto e infinito. Uma moça de olhar sereno aproximou-se e o olhou com uma intimidade desconhecida. Seus cabelos pintavam de ouro as alças do vestido e seu rosto parecia um espelho refletindo a luz. Ele a olhou profundamente e depois não viu mais nada. Recobrou a memória, mas não se encontrou. A mesma voz voltou a soar trazendo consigo lampejos. Percebeu que acordava em outro lugar. Ao seu lado, a jovem sorria pacientemente. Ele havia desmaiado e o porteiro o levara até o apartamento dela. Estava deitado no sofá da sala com ela sentada ao seu lado segurando um maço de cartas. – Por que você recebia minhas cartas? Perguntou. - Ela lhe deu meu endereço, éramos melhores amigas, respondeu. Ele a olhou densamente em silêncio, tomou mais um gole de água, respirou devagar e sentiu-se mais seguro. – E como aconteceu? – Um carro invadiu a contramão, não houve como desviar. Eu fui a única que sobrevivi. A imagem do guarda mandando-o seguir rasgou-lhe a memória. Lembrou-se das sirenes, da multidão e de ter visto ambulâncias. Jamais poderia imaginar. Neste momento o mundo se encheu de nuvens escuras e ele morreu como era, para nascer novamente: – E por que você não me contou logo na primeira carta? Perguntou ele. – Não tive coragem, disse ela. Suas cartas foram as mais lindas poesias que já recebi...
vida de artista Sidney Fortes Summers [sidsummers@hotmail.com]
Eu estava deitado na cama olhando as manchas de mofo do teto, buscando uma iluminação espiritual ou algum insight místico quando ouvi três batidas na porta. Toc! Toc! Toc! Três batidas precisas e firmes. Não dei ouvidos e continuei me concentrando nas manchas de mofo do teto que cobria minha cabeça. Uma barata correu para fora do saco de lixo e saiu do quarto. O lixo do lado de fora era maior e lá, além quarto, ela encontraria maiores diversões. Até que alguém a acertasse em cheio com uma boa chinelada ou com um jato mortífero de inseticida. Comigo não seria diferente. Respeitei sua escolha por respeitar a vida. E as regras ardilosas desse complexo jogo. As batidas na porta recomeçaram insistentes. Ninguém respeita o silêncio alheio nesses dias conturbados de início de século. Século XXI. O que será que realmente nos espera? Até agora, tudo igual. E antes as coisas já não eram maravilhosas. O rumo nefasto para o qual guiamos o planeta. Peidei. Baixinho, um daqueles silenciosos e fatais. Pedi que esperassem. Eu poderia ter vestido alguma roupa, mas apenas esperei que o fedor passasse enquanto eu fitava as manchas de mofo do teto. As manchas de mofo do teto que me escondiam alguma coisa maravilhosa. Peidei novamente enquanto caminhava. Dessa vez foi bem barulhento. Mas desses que não fedem muito. Ao menos, não tanto quanto o anterior. O fruto pestilento da ultima porção de feijão guardada da semana. Essas coisas costumam demorar mais para se acabarem quando se mora só ou quando as pessoas com quem voce divide a geladeira não estão acostumadas com o seu tempero. Melhor, sua ausência de condimentos. Abri a porta nu. Fiquei mudo. Cogitei alguma viagem astral estranha. Uma viagem no tempo. Uma volta ao passado distante e desconhecido. A santíssima inquisição no meu encalço. A caça as bruxas. Mas
como adivinharam que sempre simpatizei com os pagãos? Eu estava pronto a negar qualquer envolvimento. Mas eles adivinharam meu nome. Meu nome completo. - Senhor Will, sabemos de tudo o que o senhor fez! – disse o homúnculo que parecia ser o chefe da corja. Ele carregava uma tocha acesa na mão direita e uma lata onde fumegava um incenso de aroma nauseante na outra. - Nós sabemos, nós sabemos de tudo seu canalha. – me gritou em coro a multidão que lhe seguia. - Voce é um porco, um imundo, um criminoso! Eu sempre soube! – gritou algum imbecil que eu nunca havia visto. Fechei a porta. Aquilo não devia passar de algum pesadelo esdrúxulo. Um efeito imprevisto do mofo alucinógeno. Peidei novamente me livrando de algumas cargas de metano e me sentindo um homem melhor, mais leve. Vesti a primeira cueca que encontrei na gaveta. Estava furada, mas era bem confortável. Coloquei a calça jeans. Calcei as havaianas. Respirei fundo. Olhei pela janela. O mesmo caos de sempre. Novas batidas na porta. Acendi um cigarro, dei duas tragadas e fui abri-la, com a certeza que nenhuma daquelas pessoas estaria por lá. Ledo engano. Todas estavam prostradas em filas diante da minha porta, descendo as escadas do prédio de apartamentos. Eu não queria saber que merda era aquela. Só queria que aquilo acabasse de uma vez e que eu escapasse com vida. Mais uma vez escapasse vivo desse ardil improvável do destino. Eu estava com o isqueiro ainda na mão direita. Com a esquerda me estiquei e peguei o inseticida. Acendi o isqueiro que estava posicionado em sua frente, pouco antes de apertar o botão superior que dispara em spray o veneno matador de insetos. A realidade é bem diferente dos filmes. Queimei os cílios e sobrancelhas do líder. Seus cabelos. E joguei tudo para o alto quando minhas mãos aqueceram. Rosrhark venceu um exercito de militares treinados usando a mesma técnica. Essa é a diferença de estar numa revista em quadrinhos ou estar na crua realidade. - Ele tem um pacto com algum demônio, vejam! – eu não percebia essa relação, que parecia obvia pela adesão coletiva comprovada através do conjunto de vozes em uníssono. As massas apreciam afirmações disparatas. Sempre.
Reconheci minha ex-mulher em uma das fileiras. Ela chorava e gritava comigo. Vi em seus olhos a expressão clara de decepção e dor. Eu não fizera nada para magoá-la. Nem a ninguém ali. Eu era um pacifista, ex-vegetariano, um homem que divide seu tempo entre livros e trabalho. Por amor também se minha namorada não me tivesse abandonado há algumas horas e viajado para outro continente em busca do amor da sua vida, um monge indiano que dividia leite com ratos. - Voce me enganou por todos esses anos. Como voce pôde? Monstro! Se fosse um conto do Kafka. Essa história poderia acabar por aqui sem maiores problemas. Um bom final que não esclarecesse coisa alguma. Mas alguém. Um desconhecido ou pessoa insignificante e esquecida gritou que era por conta da descoberta dos meus escritos. A incompreensão era o preço do estrelato, do mesmo modo que a fome se justificava com o anonimato. Escritores, poetas, atores, dramaturgos e artistas são todos uns fodidos. Foi então que percebi alguns parentes. Minha mãe. Alguns ex-amigos. Todos com suas tochas acesas na mão. Meu cigarro estava no fim. Eu tinha perdido meu isqueiro. Dei de costas e fui em direção ao maço, acender o próximo enquanto o toco de cigarro me permitiria. Foram baforadas longas.
Sidney Fortes Summers é escritor, tem dois livros publicados por demanda (“Ratos com Asas” e “Prazer,Sid!”) e um terceiro inédito (“Para Além do Que Não Há). Tem contos, poesias e ensaios publicados em diversas revistas nacionais e internacionais. Trabalhou como roteirista em alguns curtas. Estudante do bacharelado interdisciplinar em artes da UFBA.
diário em devaneio noturno viii Karinne Santiago [karinne.santiago@gmail.com]
Sacrilégio é negligenciar o desejo. Cada pelo eriçado é uma oração silenciosa da libido. Amedronta-me não ousar a carne ao milagre subversivo do instinto. E ardo em penitência quando isolada dos prazeres desfiguro o que há de mais divino no humano. Obedeço aos mandamentos da minha feminilidade julgando-me santa quando oferto o corpo ao seu templo preciso. Todos os meus redutos são oferendas em exposição sem pecados. Meus demônios reverencio entre tecidos castos. Catequizando um por um com cartilhas táteis. Pressinto os suores. Adivinhações de sua volúpia. Oro baixo sem piedade de mim e esquecendo-me das culpas. Clamo. Rogo. Paladares atentos desvendam dogmas e lhe absorvo ao reverso do puritanismo. Deslizando nossos sabores em preces desconexas. Lóbulo. Clavículas. Colo. E em transe sinto em êxtase o preço da entrega. Alucino em línguas diferentes. Latim ou puro balbuciar desgovernado. Listando o nome de todos os santos e comprometendo toda a vida em pagamentos de promessas avulsas. Via-sacra dos prazeres. Braços ávidos estendidos em clamor. Muitas imagens repercutem pelas paredes do quarto. Um oratório de vozes sôfregas em coro repetem meu nome. Tremores. Sinto o corpo em chagas por suas mordidas. Seus dentes cravando a dor por devoção. Agarro sua nuca como quem procura as contas de um rosário. Remexo as pontas dos dedos. Contraio o quadril e arqueio. Busco vazios e respiro fundo. Retomo meus ares e continuo em audácia essa doce penitência. Os mandamentos repercutem. Variações distorcidas e um eco perpetua a cobiça e a luxúria. Ajoelho-me em súplica agarrandome à você. Exorcizo comovida nossas vergonhas em seu membro. Um confessionário em deleite. O ar impregnado do cio instiga fantasias sobre o paraíso. Dou-lhe os mamilos em comunhão. Redondos e frágeis. Alvos fáceis anunciam todos orifícios restantes em purgatório. Esperançosos de serem correspondidos
sem piedade e por sua graça e reverência pulsam lacrimejando ao escorrer quente e vagarosamente. Seu hálito inunda-os. Sinto a elevação de nossas almas. Penso no Gênese. Falo o nome de Eva. Quero a maçã. Quero entre os meus lábios o fruto da desobediência. E ouço dizer-me sobre o prazer derradeiro. Os castigos que acarretam aos amantes. Impiedosa fúria divina que pelo amor demasiado corrompe paixões. Imploro pela expulsão do seu corpo diante do meu ventre desnudo. Liberto-nos dos males. Encho-me de glória e bendigo seu nome num grito. A minha voz anuncia nossa salvação.
( ) Carla Duarte* [carladuarte803@hotmail.com]
Acordou cedo, antes do sol raiar, procurou apoio na sua bengala - que ele próprio esculpira -, com passos arrastados dirigiu-se ao cadeirão na varanda. Viu o sol romper no horizonte, o céu mudar de negro para laranja e o azul preencheu tudo. Ao longe o sino suou, doze badaladas ele contou. Maria estranhou a ausência do seu marido, chamou por ele, obteve uma resposta breve. Ainda no cadeirão, pediu ajuda à Maria para levantar-se, com algum custo lá levantou-se, sentia o corpo pesado. Maria ligou ao médico. Madalena tinha carro e ajudou o avô a deslocar-se. Com os olhos cheios de emoção, concentra-se na música que toca no televisor, num daqueles programas que passam durante a tarde. De pé ligeiro, bate no chão ao ritmo da melodia. As mãos nos joelhos: olha-os com alguma incerteza. Doíam-lhe, hoje, mais do que nunca. Ele observou as pessoas na sala de espera, alheios à música que continuava a tocar no televisor. Talvez só a ele a música fazia vibrar. Outra hora, dançara noites a dentro. Correra pelos campos, perdera a conta das vezes que mergulhou no rio e nadou até estafar. Dos tempos que… Por um segundo, entre um suspiro, e a alma pesada. Sentiu-se cansado e inútil, desejou desistir. Um calor subiu-lhe ao rosto, a mão quente da sua esposa pousou na sua, fez-lhe o coração bater. Nem tudo estava perdido, enquanto ela ali estivesse.
*Colaboradora internacional - Portugal
casa 44 Antonio Francisco de Morais Neto [prmorais@live.com]
1Machado de Assis, romancista brasileiro, autor de obras como Contos Fluminenses.
É fato que todos temos ao menos um amigo que vive na solidão, seja por escolha própria ou porque a vida o obrigou a viver assim. E nessa solidão na qual ele vive, segue-a como fosse sua religião. Mas, por inúmeras vezes, este amigo mostra-se uma companhia animadora nos momentos em que estamos restaurando o império da natureza corrigindo a obra da sociedade.1 1 - Prometo que esta foi a última vez que errei. Foi com esta promessa que os lábios do Sr. Albuquerque cerraram-se antes de ir para a cama naquela noite de lua nova. Suas mãos estavam sujas com o mais ínfimo dos pecados e seu único desejo era de que o sono nunca mais fugisse dele, afinal, a mais célebre anestesia para uma alma angustiada são os devaneios produzidos numa madrugada. Refugiar-se nos braços de uma prostituta, quarenta anos mais nova que ele, parecia ser sua fonte de juventude, como poderia culpar-se por tal meio de esquecer as mazelas da vida? Que outra maneira o tinha para apagar as muitas marcas trazidas em seu corpo? Marcas acumuladas pelos desprezos por parte da família e dos amigos. Ele acreditava que o maior crime deveria ser o assassinato das ideias. O assassino mental não permite que as pessoas cheguem ao paraíso em palavras quando omite seus pensamentos. Omitir os pensamentos seria a arma desse tipo de crime. Para cada vez que se omitem pensamentos, existe dez ou mais pedidos de perdão pelos negativos registros celestiais. O Sr. Albuquerque estava certo de que no verão próximo, deixaríamos de ser meros vasos de barro e passaríamos a ter personalidades distintas. - Terei uma personalidade distinta. Homens voltarão a ser homens, mulheres assumirão seu gênero, e crianças... continuarão a ser crianças, dizia.
Nesse dia, o sol brilhará como o sorriso de uma bela mulher para um poeta enamorado, as nuvens, casadas com o céu azul, serão a maior obra prima de um artista com pinceis, e a natureza entoará com excelência uma canção na harmonia do vai e vem de seus galhos balançados pelo vento. Por vezes, incontáveis era visto em uma esquina e outra, clareando as taciturnas vidas das pessoas que o cercavam, com suas ideias nada convencionais. Por seus pensamentos ele era conhecido na pequena província na qual morava, e por isso não poderia ser um assassino mental. Quando passo em frente a sua casa, me parece ainda ouvir a sua voz ou serão gritos? - ensinado que vivemos para servir e, se não soubermos ser servos, não servimos para viver. O Sr. Albuquerque afirmava que a melhor maneira de ser esquecido é tornar-se escritor. Para ele, o conhecimento deveria ser cultivado em solo fértil: coração e cérebro. - Ter minhas ideias escritas é sepultar minha essência, porque nada é pior do que talhar em um papel frio e vazio a vida em pensamentos, afirmava. Por que muitos não o compreendiam? Talvez ele estivesse mil anos à frente de sua época. Hoje é o primeiro pôr do sol de maio de dois mil e doze, terça-feira. É enterrado no Parque da Saudade, um corpo. O corpo de uma figura ímpar, uma pessoa de caráter e personalidade sem precedentes. Lágrimas vertem-se pelos rostos dos presentes, afinal, todos ali sabiam que o mundo perdeu por não ter aproveitado mais a companhia do Sr. Albuquerque. Os que mais foram influenciados por ele, pensavam: como não se emocionar ao ver em uma “caixa de madeira”, aquele que várias vezes te ensinou a pensar com a própria mente? “O símbolo da inteligência” era o que estava escrito em sua lápide. Nada melhor que este epitáfio para descrever o Sr. Albuquerque. Por fim, digo: queria falar tudo, e muito, mas não consigo, talvez seja o medo de alguém tomar conhecimento das minhas inquietações.
Antonio Francisco de Morais Neto, ou, Morais Scott, como assina seus trabalhos, patrício de Apodi/RN. Escreve contos, crônicas, poesia, compõe. Chora com bons filmes, hipnotiza-se com belas pinturas e viaja com ótimos livros.
Francinaldo Rafael [francinaldorafael@gmail.com]
intervenção 1
as imagens tem como tĂtulo "canto de um povo de um lugar" a tĂŠcnica ĂŠ mista de desenho e colagem e tem essa ordem
[Nina Rizzi] <ninarizzi@gmail.com>>>
gato 1 [nina rizzi]
gato 2 [nina rizzi]
gato 3 [nina rizzi]
o ajudante e o ajudador Elilson José Batista [elilsonbatista@yahoo.com.br]
Aconteceu que Luís Freijó se encontrou com Manuelzão de Terto, do Juazeiro-de-Dentro, na estrada que dava acesso à fazenda Panati. Esse Manuelzão, homem espadaúdo, enorme, mas desinteligente, vinha em um reles cavalinho minguado, cadavérico até. Na lua da cela, trazia um volumoso saco de feijão, que dificultava ainda mais a andadura do debilitado animal. Ambos pararam os seus cavalos e se cumprimentaram: - Olá, Manuelzão, tudo bem? E a família como vai? - A família vai bem. E a mulher e os meninos? - Tão tudo bem também. Luís, observando o repuxo de ar sôfrego do cavalinho, e aproveitando o mote e a ocasião, argumentou: - Mas Manuelzão, esse cavalinho não está muito fraco para seu peso e o saco não? - É, Luís, mas da cidade para casa é quase duas léguas... - Então, homem, ajude o pobre do animal! - De que jeito, criatura? - Você é um homem forte e pode muito bem levar o saco na cabeça para aliviar essa carga do cavalo. Manuelzão ainda titubeou, quis fazer uma reflexão, mas, num átimo, voltou a ser ele mesmo, o Manuelzão de sempre. E concordou com a sugestão: - É mesmo, não é, Luís? – colocando o saco na cabeça e se despedindo. De vez em quando, Manuelzão se contorcia com esforço para ainda agradecer, com acenos, ao Luís Freijó. Este, por sua vez, volteava-se, folgazão, a confirmar a marcha vacilante do infeliz animal. Lá se iam distanciando os dois cavaleiros: um, deliciando-se do dever de ajudar ao próximo; outro, degustando o prazer de ter sido ajudado. E o sol tórrido por testemunha.
o crespo Julia Godoy [juliagodoy@yahoo.com.br]
O Crespo andava ensimesmado. Percorreu a torre de vigia com suas botas de veludo, reservadas para aquelas semanas em que era escalado para o plantão noturno. Com seus binóculos de longo alcance, observava a total ausência de acontecimentos relevantes através das fendas entre os velhos tijolos da torre. A torre de vigia havia sido construída há exatos 809 anos por um herói audacioso de quem o Crespo não recordava o nome. Associava-o a uma antiga gravura que vira em seu livro de história na única ocasião em que o abrira: um homem hirsuto, dotado de um imponente bigode que encobria, como um vegetal parasita de rara beleza, mais da metade do seu rosto. No momento em que percebeu que o pesado livro de história era composto em sua maior porção por palavras, notadamente de difícil compreensão, e não por figuras de heróis destemidos e seus bigodes pomposamente enegrecidos, o Crespo perdeu o pouco que lhe restava de interesse pelos estudos. Manteve-se no Instituto Educacional Ribeirinho devido unicamente à sua paixão pelos saborosos grumilhos preparados pela quituteira Moréia, uma receita passada de mãe para filha, da qual, apesar de insistentes apelos, ninguém fora da família detinha qualquer conhecimento. O Crespo salivou ao lembrar-se dos grumilhos: crocantes na superfície e deliciosamente macios e suculentos em seu interior. Derretiam na boca em segundos, deixando qualquer mortal ansioso por mais um pedaço. Moedas acumuladas no decorrer de longos anos tilintavam ruidosas nos bolsos pesados do Crespo. Ele hesitou por um instante. Estaria disposto a exercitar o desapego por um fragmento momentâneo da deliciosa recordação de sua infância? Naquele exato momento, Carmelita Doceira passava mancando com seu carrinho de mão pela Rua dos Turcos, vendendo os preciosos quitutes que aprendera a preparar com sua falecida
mãe. Era só descer a escada em espiral no centro da torre, correr em direção àquela jovem e depositar em suas pequeninas mãos uma brilhante moeda. Apenas uma. O Crespo tremia. Um arrepio em forma de espiral nasceu em seu umbigo (o centro do seu universo) e percorreu em ondas circulares toda a extensão do seu corpo. A torre de vigia, normalmente uma amiga acolhedora e desprovida do sopro vital, parecia se voltar contra ele e engoli-lo em uma fração de segundo. A sensação era de afogamento. Não. Era como se o deus do rio, em pessoa, torcesse sua espinha como uma lavadeira faria com um trapo encharcado. Sua mão ossuda enfiou-se involuntariamente em seu bolso esquerdo e seus dedos fechavam-se, contra a sua vontade, ao redor das moedas. O Crespo não compreendia aquele estranho fenômeno, em que forças invisíveis se apropriavam dos seus membros, forçando-os a executarem movimentos indesejáveis. Ele não acreditava em espíritos vingativos e todas aquelas bobagens. Nem mesmo quando surrupiava as moedas deixadas pelas viúvas nos túmulos de seus maridos. Ou quando, nas noites frias, os guardas se reuniam ao redor da chama sinuosa de uma fogueira e disparavam a contar histórias de assombração, e o Gago soprava em seu ouvido fazendo estranhos ruídos com a boca. Não mesmo. O Crespo, cético que era, não se deixava engambelar por essas baboseiras místicas envoltas em uma aura de magia e mistério. Ele pisoteava fadinhas e degolaria um elfo sem nenhuma culpa, se acaso encontrasse um. Magia e mistério são para os fracos! Homens como ele preferem pão duro com calabresa! Então, em vez de descer as escadas com seus bolsos balouçantes, o Crespo arremessou uma grande pedra que atingiu em cheio a Carmelita, pondo fim a uma longa tradição culinária.
a costureira, o motor e a alma Arlete Mendes [magistramea@gmail.com]
Passara a vida inteira a imendar tecidos, entremeá-los, zigzagueá-los. Provava assim sua retidão de caráter por mais torta que fosse a costura do mundo. O barulho do motor rezumbizava à noite em seu ouvido. Sentia seu tremor debaixo dos pés, fosse em pé, fosse deitada. Isto era para que seu corpo nunca se acostumasse com o descanso. Afinal, a ele não caberia nenhum luxo. Descanso há muito é capricho que poucos podem pagar para ter. Além disso, tudo ali dependia da força daquele pequeno corpo para se mover. Sem ele, o vaso de planta verdoso não beberia sua água vivaz, a cama caprichosa não teria seu lençol branco estirado. Sem ele, a janela límpida não veria seu chão varrido, as roupas alvas não teriam nenhum varal ensolarado, nenhum resto de comida para a faminta lixeira... Graças ao esforço contínuo e incansável, tudo ali podia se pertencer, menos a costureira a si própria. A verdade era que em meio a tanto esforço sua delicada alma já não lhe cabia mais. Desprendeu-se, pairava a sua sombra, não se reconhecia, se recusava a pertencer aquele corpo servil, costurado naquela estampa de vida, que, sem nunca poder mudar nenhum traço, apenas cosia. Era melhor que assim fosse, porque um servil, pequeno, decidido e rijo corpo, entregue a tudo que o cercava, menos a si mesmo, já não precisa de alma, o barulho do motor já lhe bastava para saber que estava viva. Continuria a costureira a costurar linearmente sua virtuosa existência. -Cose! Remenda! Alinha a dura sina, isto basta e o resto é fita! – o motor assim lhe comandava - Alma indolente, luxurienta, vergonhosa e mole não merece se prender à vida!
helena Sancha Wallessa [sanchawallessa@hotmail.com]
Quase como um ritual, todos os dias a menina penteava com suavidade os longos fios loiros de sua nova boneca de porcelana. Filha única de um casal simples, Helena enchera os olhinhos de lágrimas quando sua tia lhe dera de presente após voltar de uma viagem recente a Portugal. Tímida e de poucos amigos, a menina sentava-se no canto da sala e contemplava fascinada a presença de sua jovem amiga, a qual batizara carinhosamente de Aninha. Inebriada, esquecia-se do tempo e passava horas ali no chão frio, admirando suas bochechas rosadas e imaginando se talvez a mãe costuraria para ela um vestido rendado tão bonito igual aquele que a boneca usava. Perdia-se em pensamentos recortados. Ali perto, sua mãe estava debruçada na máquina de costura e sorria ao observar a cena diária da filha com sua boneca. Nostálgica, lembrava-se da aflição em que passara no dia do nascimento de sua pequena. Estava chuvoso e difícil aquele 15 de julho, dia que prematuramente a menina resolveu chegar ao mundo. Sem muitas condições financeiras, o marido tivera que pedir emprestado o carro do vizinho e lá se foram para o hospital mais próximo. Durante aqueles minutos infindáveis de dor entre sua casa e a maternidade, pedira aos céus uma graça para aquela situação. Prometera que se sua menina nascesse com saúde colocaria seu nome de Helena, em homenagem à santa de devoção de sua falecida mãe. Sete anos depois, ali estava o milagre da vida, tão meiga, inteligente e saudável brincando de mãe e filha com sua boneca. Helena herdara os cabelos de seda da mãe e olhos expressivos do pai. O tempo passava e sua beleza se tornava mais evidente, chamando a atenção de seus colegas da faculdade de advocacia. Passar no primeiro vestibular em uma universidade pública deixara seu pai tão emocionado, que foi a primeira vez em que ela o viu chorar depois de tantos anos. Situação como essa só
tinha acontecido uma vez, quando a mãe de Helena, já fragilizada pelo câncer, partira para sempre deixando a menina-moça órfã aos 13 anos. Quando estava no segundo ano da faculdade, a jovem apaixonara-se por Daniel, um calouro introvertido de Engenharia que passava grande parte de sua vida acadêmica pesquisando novos títulos na biblioteca. Aliás, fora na biblioteca em que eles se conheceram. Inexplicavelmente, ele despertava nela uma curiosidade sobrenatural. Não sabia se pelo mistério de nunca ter escutado o timbre de sua voz nem ver a cor de seu sorriso ou se porque ele era o único ali que não lançava um olhar discreto quando ela passava. A verdade é que ele a admirava secretamente e disfarçava seus sentimentos para não parecer bobo diante dela. Casaram-se três anos depois em uma cerimônia simples, mas ao mesmo tempo emocionante. Apenas alguns amigos e parentes puderam compartilhar aquele sim com a certeza de que os dois se completavam e a felicidade seria plena na vida do jovem casal. De fato, a gravidez anunciada seis meses depois na tarde daquela terça-feira, era o marco que Helena precisava para confirmar que o final feliz dos contos não era utopia de menina, mas a certeza de que qualquer mulher pode ter ao seu lado uma fada madrinha para realizar seus mais belos sonhos. O que ela não esperava é que essa mesma fada madrinha pudesse abandoná-la três meses depois quando, impotente, vira escorrer de seu ventre seu tesouro ainda embrião. As lágrimas desesperadas que banhavam seu rosto era o reflexo da tristeza e escuridão que habitavam o seu interior. Nem mesmo o consolo vindo dos mais próximos acalentava aquele choro maternal. Ela sentia como se sua alma tivesse falecido junto com aquele bebê. O marido insistia com ela que eles teriam uma nova criança e foram as suas palavras de confiança e contentamento que restituíram parte das forças de Helena, que decidiu esperar novas manhãs de boas notícias. Porém, o tempo tomou anos da vida daquela mulher, que assistira como espectadora os meses passar em migalhas enquanto suas esperanças eram afogadas pelo sangue de morte que teimava em aparecer todos os meses. Sem
forças e já exausta, desistiu de tentar. E assim, sem saber, desistiu de viver. Ela sentira que falhara em seu papel mulher, e por isso não regaria mais aquela flor que há tempos não tinha mais pétalas. Murcha por fora, sem vida de nenhuma forma por dentro. Foi numa noite sem estrelas que Daniel sentiu falta de Helena na cama. Ainda sentia-se apaixonado por aquela mulher, mas se esquecera da última vez em que fizeram amor. Já não tentava mais sequer fazer algum carinho, temeroso com os ataques de rejeição dela a qualquer toque seu. Sentou-se na cama, meio zonzo do sono, chamou pelo nome da esposa e como não obteve resposta, calçou os chinelos e resolveu ir à procura dela pela casa. Enquanto percorria a casa tateando pelas paredes, pensamentos tristes vagueavam sua mente. Reconhecia que Helena não se encontrava emocionalmente equilibrada. Há alguns meses abandonara o emprego no escritório e já não agia e nem falava coisa com coisa. Era fato: ela estava doente, mas bloqueava aqueles devaneios por confiar que o olhar que um dia o conquistara voltaria a brilhar a qualquer momento e por isso tardava a acreditar que ela precisava de uma ajuda especializada. Sentindo-se um pouco cansado de andar, parou no corredor e respirou fundo. Mirou com receio aquele último cômodo da casa que ainda faltava. Evitava aquele quarto desde o dia do incidente que marcara a vida de Helena. Chamou baixinho novamente o nome dela e mais uma vez só conseguiu o silêncio como resposta. Tomou novamente o fôlego, dessa vez de encorajamento, e caminhou em direção à porta de madeira que estava semiaberta. Com a mão trêmula, lentamente foi abrindo a passagem até conseguir enxergar todo o cenário. As latas de tinta que serviriam para pintar o quarto do bebê ainda estavam empilhadas no canto, próximas às caixas de papelão que guardavam as mobílias nunca montadas. Daniel estendeu os olhos e a encontrou ali, no chão, embalando com uma canção de ninar uma boneca de porcelana de infância. Ao perceber o marido na porta, Helena sorriu e estendeu o brinquedo para ele segurar. “Olha como nosso bebê é lindo, amor!”. As palavras da mulher amada derrubaram o homem que ainda restava naquele corpo. Sua luta para tentar ser forte e
inabalável caiu por terra naquele momento em que ele não conseguiu segurar as lágrimas teimosas que escorreram timidamente pelo seu rosto. Não sabia o que pensar ou como agir. Se a abraçaria e falaria palavras de conforto aos seus ouvidos ou se daria asas às fantasias da esposa e pegaria a boneca no colo como ela pedira. Perdera o sentido do tempo ali parado enquanto as vozes entrelaçavam na sua cabeça. Ainda confuso, deu um passo de volta e fechou a porta atrás de si. Foi até a sala e discou alguns números no telefone. Eles chegaram 20 minutos depois. Preferiu não ter que verem a levando dali, mas ao olhar pela janela, seus olhares se cruzaram. O dela de questionamento e alheio ao que estava acontecendo. O dele de profunda tristeza e impotência diante do caso. O fato é que quem quer que fosse visitá-la no Hospital psiquiátrico encontrava sempre aquela mesma fotografia congelada de personagens no canto do quarto: Helena, a boneca e seu novo mundo encantado.
Wallessa César, vinte e poucos anos, mossoroense, publicitária por formação e curiosa sobre os fatores que regem o comportamento humano. Observadora, analítica e sensível, escreve para sair de si e para afugentar os fantasmas que vagueiam sua mente. No momento possui um envolvimento instável com as palavras, mas seu desejo maior é oficializar essa união.
marianinha Thiago Jefferson [thiago.jefferson@hotmail.com]
O cheiro de cachaça barata invadiu o barraco após o barulho. Já havia apanhado por erros bem menores antes, e com certeza o padrasto não perdoaria uma garrafa de cana quebrada. Os olhos penetrantes do homem a ameaçavam, e ela já se preparava para o que estava por vir. Queria pedir desculpas, dizer que não fora sua intenção, estava apenas “inaugurando” a bola rosa que ganhara da associação do bairro, - o presente que todas as garotas queriam receber. Mas era tarde demais! A primeira lambada de corda molhada acertou de surpresa sua coxa. Quis esquivar-se da segunda, mas foi novamente atingida e caiu. Sentiu ainda mais uma meia dúzia de pancadas em seu corpo, e então percebeu que a mãe havia chegado para lhe defender, nem que para isso fosse necessário apanhar também. E sempre apanhava. Marianinha tinha apenas onze anos, mas aqueles olhinhos infantis já refletiam a vida sofrida que sempre levou. Nunca entendeu por que a mãe, depois da morte do marido drogado, foi parar nas mãos de um sujeito embriagado. Ela sempre lhe dizia que era ruim com ele, mas que seria bem pior sem ele, pois apesar de toda a sua violência, fazia uns “bicos” vez ou outra para ajudar no sustento. Marianinha entendia que ela se referia ao sustento do álcool, pois bem sabia que se não fosse a mãe fazendo faxina nas casas dos ricos todos os dias, eles já teriam morrido de fome. O barraco em que moravam não tinha energia e era cheio de ratos, que saiam do chão de terra batida e mordiam os seus dedos, mas Marianinha não se importava com essas coisas. Nem mesmo a fome lhe afetava, ou os piolhos que infestavam a sua cabeça. Era o lado pobre da sociedade. A parcela que ninguém vê. Um ninho de cobras multifárias que se constringem asfixiadoramente
sobre o lixo e o horror, botes precisos entre espécies escandalizadas. Ela olhava pro céu, procurava Deus; queria quebrar a casca e se sentir águia, rapinar a liberdade no horizonte infinito. Vivia com medo da morte. O fim chegou primeiro à sua mãe, num câncer de estômago, contraído pela comida estragada que os alimentou praticamente por toda a vida. Mulher forte, destemida e guerreira, era assim que Marianinha queria se lembrar dela, e por isso não chorou, nem no enterro, nem dias depois... Não por fora. Também não queria nem pensar em como as coisas ficariam sem sua protetora por perto. O padrasto logo a obrigou a trabalhar nas casas, exercendo a antiga atividade de sua mãe, e quando retornava ao barraco, tinha que continuar os afazeres do lar, pois agora era uma “dona de casa”. Com a puberdade chegando, seu corpo já tomava formas e curvas, e enquanto varria a terra, o homem a comia com os olhos, observando por baixo da saia a cada descuido da enteada. Não tinha o que fazer, a necessidade a obrigava a usar peças de roupas cada vez menores, até quando recebesse alguma doação compatível com a sua mudança repentina. Um dia, enquanto se lavava com a água do tonel nos fundos do barraco, sentiu o padrasto abraçá-la por trás. Ela quis gritar, mas ele tapou a sua boca e segurou forte os seus braços. Marianinha sentia muita dor, enojava aquelas mãos imundas percorrendo o seu corpo, apertando os seus peitos de adolescente indefesa. Perdeu a virgindade desta forma. Parecia que a vida fazia questão de dar-lhe, a todo instante, uma dose mais forte de amargura, que era consumida aos poucos, e viceversa. Ela não denunciou o abuso, nem os outros que se sucederam; não tinha ninguém para lhe dar apoio e sabia que os fracos não tinham vez, não tinham voz. Teve que continuar convivendo com o padrasto, pois também não tinha para onde ir, com quem morar, e sabia que nas ruas as coisas poderiam ser piores. Era o lado podre da sociedade. A parcela que ninguém quer enxergar. Um ninho de cobras multifárias que se constringem asfixiadoramente sobre a pobreza e a aflição, botes precisos entre espécies inferiorizadas. Ela olhava pro céu, não via Deus; quebrava a casca e se notava serpente, rastejante sobre o ventre na podridão do mundo. Morria de medo da vida.
Everton Maia [evertonmaia_rn@hotmail.com]
intervenção 2
12 trabalhos 7 xilos, 1 cologravura, 1 tinta relevo, 1 pirografo, 1 misto e 1 lino
[Fabiana Tessia] <ftessiams@yahoo.com.br>>>
Rosto Feminino
Caricatura
Lavadeira
Mandala
Golfinhos
Pรกssaros
MistĂŠrios
Flor
Senhora
CĂrculos
Movimentos
Mulher
Ano 3. ed. 4. jan - jun, 2013 - Mossor贸 - RN - Brasil