Revista
Cruviana caderno virtual de contos
PacĂfico Medeiros
Anchieta Rolim
Cruviana Revista virtual de contos Primeira edição - Jul. - dez. 2011 Edições semestrais Mossoró - RN - Brasil revistacruviana@gmail.com
Selo: Cruviana Editor-chefe: José de Paiva Rebouças Editoração, diagramação: José de Paiva Rebouças Capa, contracapa e designer: José de Paiva Rebouças Revisão: Regiane Santos Cabral de Paiva Apoio editorial Sarau das Letras Fotografia: Pacífico Medeiros Ilustração: Anchieta Rolim Colaboração de arte e foto: Ricardo Lopes, Eduardo Guimarães dos Santos, Carla Duarte e Rubem Grilo
Conselho Editorial: Clauder Arcanjo - poeta, escritor e editor. David de Medeiros Leite - advogado, escritor e professor da UERN. Regiane Santos Cabral de Paiva - professora da UERN e cronista. Carlos Gildemar Pontes - escritor, editor e professor da UFCG. Cleudene Aragão - professora da UECE e contista. Raimundo Leontino Filho - poeta e professor da UERN.
Homenagens Anchieta Rolim Olga Savary Colaboração (por ordem de apresentação) 1ª parte José de Paiva Rebouças Olga Savary Carlos Gildemar Pontes Alexandre Cunha dos Santos Pedro García Lavin Clauder Arcanjo Minicontos Regiane Santos Cabral de Paiva Nadja Claudino Kydelmir Dantas 2ª parte Joaquim Dantas Pedro Fernandes de O. Neto Aluísio Barros Eliana Klas de Carvalho Arlete Mendes Raoni Goulão Henrique Interferência Maria Luíza Assunção Chacon Carlos Augusto Pitombeira Viana 3ª parte Carla Duarte Marcus Venicius Filgueira de Medeiros Fabio Aresi Gustavo Nishida Alexandre Alves Bônus Clarissa Mattos Iuska Freire Ivanúcia Lopes
Distribuição eletrônica e gratuita. É expressamente proibida a sua comercialização. Os textos aqui publicados podem ser reproduzidos em quaisquer mídias, desde que seja preservada a face de seus respectivos autores bem como o seu lugar de publicação. As imagens que integram esta edição estão referendadas com seus respectivos autores.
O autor é único responsável pelo texto enviado. Portanto, a Revista Cruviana não se responsabiliza em caso de plágio ou cópia das obras enviadas.
APRESENTAÇÃO
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HOMENAGENS Anchieta Rolim
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Olga Savary
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1ª PARTE O barco de Oxum José de Paiva Rebouças Segunda Pele Olga Savary Diário de um cego Carlos Gildemar Pontes O devoto Juvêncio Alexandre Cunha dos Santos Hombre papafrita Pedro García Lavin Cruviana Clauder Arcanjo MINICONTOS A camisa de listras Regiane Santos Cabral de Paiva Quando eles vêm à noite Nadja Claudino Ah, danada! Kydelmir Dantas
18 22 27 30 33 36 42 43 45 46
2ª PARTE “Deus está em toda nota de dinheiro sujo” Joaquim Dantas Amoré Negro Pedro Fernandes de O. Neto Quatro estórias de amor e nenhum funeral Aluísio Barros No chão da cidade Eliana Klas de Carvalho A menina que tinha medo da... Arlete Mendes Sangue nas mãos e um bom uísque no copo Raoni Goulão Henrique
49 52 55 58 60 62
INTERFERÊNCIA Crisálida Maria Luíza Assunção Chacon Terminal Carlos Augusto Pitombeira Viana
68 72
3ª PARTE Aeternus Carla Duarte Alma coruja no caritó Marcus Venicius Filgueira de Medeiros O dinheiro do café Fabio Aresi Discussão amorosa acerca da identidade secreta de Dalton Trevisan Gustavo Nishida “O jardim invisível” Alexandre Alves
77 84 90 93 95
BÔNUS Na relojoaria o tempo passa mais devagar Clarissa Mattos Offline Iuska Freire Como se fosse afundar Ivanúcia Lopes
101 103 104
Não é o escritor o seu próprio espelho? Olga Savary
O mundo virtual foi criado com muitos propósitos, mas talvez o principal deles seja o de diminuir as distâncias, assim como a literatura que, até hoje, é o meio mais instigante e verdadeiro para se passear pelos vários universos, reais, ou não, da realidade que conhecemos. A união desses dois mundos vem deslumbrando os mais entusiastas, sobretudo porque encurta caminhos que, até bem pouco, eram inalcançáveis. E é dentro desse contexto que nasce a Revista Cruviana, espaço que pretende não só explorar os novos meios de publicação ou de divulgação, mas, principalmente, utilizar o veículo mais democrático da atualidade para aproximar pessoas. O que queremos é valorizar as relações humanas entre escritores e demais artistas, não só do Brasil, aproximando os novos literatos de nomes já consagrados e/ou em ascensão, além de servir de vitrine para o tão concorrido mercado editorial. A Revista Cruviana é uma produção semestral independente que conta com o apoio da editora Sarau das Letras e está aberta para todos aqueles que se propõem a dedicar qualquer tempo que seja para fazer brotar a vida no infinito branco da folha. O nome O título da Revista surgiu de uma expressão muito conhecida no
Nordeste brasileiro. A palavra “Cruviana”, no dicionário, quer dizer “frio intenso”. Não se trata de um frio comum, mas de uma sensação de frio que chega de madrugada, provocando calafrios como se fossem provocados por uma ação mística e metafísica. De acordo com o dicionário Aurélio Buarque de Holanda, o termo "cruviana" é uma variação de "corrupiana" ou "corrubiana" e consiste na queda de uma neblina frígida que, no verão ou no inverno, vem acompanhada do vento que sopra do sudoeste. No Norte, Cruviana é a Deusa do vento, a mulher do alvorecer. Chega em tornado, acordam os trabalhadores das fazendas e os envia fora para o trabalho. Sobre o assunto, Guy Furtado de Andrade diz em seu blog: citando José Vieira, em Vida e Aventura de Pedro Malasarte, "a cruviana não se vê, se sente". Tarde da noite, pela segunda cantada dos galos, ela vai chegando e quem dorme da banda de fora das casas começa a ter aquele friozinho. No nosso Ceará, o termo cruviana também foi conhecido, mas pronunciado com uma corruptela "curviana". Em Quixeramobim, nós pronunciávamos como de costume, ou seja, cruviana. Veja mais: http://www.guyfandrade.com/noitedecruviana.html A ideia do nome surgiu, inicialmente, do conto “Tramontana”, do escritor colombiano Gabriel Garcia Márquez, no livro “12 contos peregrinos”. Tramontana, segundo o dicionário, é “o vento do norte; a estrela polar”. No sentido figurado: o rumo do norte. Perder a tramontana é perder o rumo, desorientar-se; e, figuradamente, ficar sem autodomínio, exceder-se em violência, não saber o que faz nem o que diz. O sentido místico presente no termo é como uma metáfora para aquilo que se materializa a partir do processo de criação, de escrita. Como uma mensagem do subconsciente que mantém viva a linha tênue entre o real e o imaginário José de Paiva Rebouças Organizador
Um dos mais brilhantes artistas plásticos contemporâneo do Brasil, ANCHIETA ROLIM, de Areia Branca–RN, empresta-nos uma coleção de artes geométricas, tão inéditas, que nem título receberam ainda. Do alh men ino eia ex s n p a p que inc õe n e eri os om fer scul pi ia ci ple tud rcuit do l a em ito os e. ba ra na cio l nor rro d na t is, e, pa e co nã r n o h a o m stru çõ á d e es ife stre ren qu e ça , s ó ria omet e g a a d cabad a n i ão. e reens p A fac m o c ta da infini
>>>>>Olga Savary
A literatura cruviânica de Olga Savary Olga Savary. Por completo, Olga Augusta Maria Savary. Nascida em Belém, do Pará, aos 21 de maio de 1933, e criada no mundo. Autora das mais brasileiras e, por conseguinte, das mais universais de nossa literatura. “Brasileiríssima e amazônida”; ela faz sempre questão de frisar. Olga é polifônica; sua criação, em plena maturidade e saudada por uma miríade de prêmios, mantém o cheiro e o gosto de coisa sempre nova. Up-to-date! Novidadeira e virtualíssima, ela detém engenho e arte cruviânicos. Cruviânicos?!... Sim, caro leitor. Pois como poderíamos definir uma arte que arrepia os cabelos da mesmice, põe Eros no balcão da sensaboria dos dias, e dispõe do amálgama dos mitos e dos ritos universais na floresta imbricada, fechada e, quase sempre, apinhada de espertalhões — pretensos e falsos ícones — da nossa ficção contemporânea? Filha única do engenheiro russo de ascendência francesa, Bruno Savary, e da desenhista e violonista, Célia Nobre de Almeida Savary, Olga labora no campo do fantasticamente real, para inserir-nos nos céus líricos e lúdicos do realmente fantástico. No mais, é um prazer (re)ler e se reconhecer em Olga. Um aviso final: quando o vento cruviânico de Olga exibir-se no layout da sua tela, cuide de abrir todas as janelas e portas dos seus arquivos e se deixar invadir-contaminar pelo bendito vírus que vem do Norte. Ao final, você será computado, e selvagemente salvo, por uma medusa-criadora: poeta, contista, romancista, crítica literária e de artes, ensaísta, tradutora e jornalista. Natureza viva, travestida de amazônida guerreira, humana e transbordante de tesão criadora. Blogueira de paixão e desvario, a flanar na campina esplêndida e verdejante da sublime literatura. Hélas! Hélas!... Clauder Arcanjo Escritor
Anchieta Rolim
Pacífico Medeiros
O café amargo, as coisas no ombro, a mulher fechando a porta de boca calada e a escuridão em frente se abrindo aos passos. O vaso-ruim do cachorro sempre some quando precisamos dele. Cachorro é bom para acuar as almas cavilosas que querem matar a gente. Nunca gostei do café da mulher em dia de pescaria. Do que adianta casar se mais tarde enjoam-se as fuças? Não dá para falar de sonho em casa. Mulher vem logo com coisa de igreja e enche a gente de dolo como se tivéssemos culpa de ter nascido. Nasce-se sem querer e morre-se do mesmo jeito: deixar a vida é o caminho mais certo para cada homem, seja tomando café ou andando no mar. Homem do mar conhece a maré pelo cheiro. Entranhado cheiro que nos lembra a meninice nos tempos da iniciação. É uma gênese. No encontro com o mar é que o homem se descobre e nasce de verdade. Todos têm suas histórias de mar, mesmo quem não é pescador. Nós, sim, entendemos disso, não é brincadeira: oceano é vida e é morte. O fim do meu pai, de meus tios e dos conhecidos do meu pai. Engraçado falar de gente que viveu a vida toda dentro d'água e hoje está enterrada na terra seca. Parece castigo de Iemanjá. Mas no meu caso é diferente, é coisa de vingança de santo de terreiro. O pai Omar é quem deveria ser castigado por
me dar retrato nu de mulher de orixá. Para proteger do perigo das águas, me disse quando estirou a mão para entregar a minha sentença. Preto Velho não conhece a solidão do mar, por isso, me deu imagem dengosa. Quem é pai Omar? É Oxum, a senhora do ouro. Enganou-se, era a senhora de minha desgraça. Desejei seu corpo com afã de desesperado e passei a procurá-la à noite na praia entre as garrafas vazias, mas ninguém tinha tanta safadeza nos olhos. Foi nessa procura desenfreada que cometi o meu crime derradeiro. Sob a ressaca da lua, caí no enlaço de suas voltas e me enrosquei nos cabelos como arapuá zangada. Domei-a na marra. Subi em suas ancas e me fiz abastado, depois fui cavalgado e afundado na areia enquanto gritávamos como animais enraivecidos. Empós disso, meu caboclo, o mundo não passou de uma ilusão vagabunda e dolorida. Demorei a me recuperar do acesso. Fui encontrado ao sair do sol, esmolambado e sendo engolido pela espuma das ondas que pulavam sobre mim. Só me lembro do cheiro dos lírios. Misturar álcool e maresia é como tomar veneno. Às noites, tresvaliava na cama. Foi preciso, por muitas vezes, dar esbregue na mulher para que me deixasse em paz. Tanta pergunta. Demorei muito sono na rede da latada até que o fogo mulato fosse diminuído. Adquire-se muito arranque puxando peixe pro barco, mas nunca fôlego suficiente para negra de terreiro. Quando o abebé deixou de abanar, senti que a malandragem estava no fim. A adivinhação veio pelo sonho. Águas turvas. Xangô apontou despique e mandou Iansã pintar de vermelho o meu descanso. Trouxe-me serpentes de olhos de fogo e sangue nas presas e se não se vingar pelos homens o fará pelo céu. Acordei cansado. Precisava marchar. Dali a pouco, o dia se abriria estendendo no horizonte uma liga de latão. Seria um dengo? A madrugada era turva como as águas do sonho passado e a abóboda embaçada. Um cheiro de doença passeava pela cidade. As ruas desertas, o esgoto correndo e os passos marcando o futuro. Os gatos sempre assustam a gente correndo sobre os muros. Nessas horas, o silêncio é um zumbido ensurdecedor. Na praia fria, outros pescadores e, lá na frente, os três marujos carregados, prontos para embarcar. Rotina. Um deles deu o último trago e jogou a brejeira na areia. Olhou-me atravessado. Seria o sinal? Corrigi a cintura no rumo da peixeira. Esqueceu alguma coisa capitão? Perguntou. Fiz sinal negativo com a cabeça. Estava subentendido. O que se passava nas ideias daqueles três era impossível saber. Se ao menos o corpo negasse a discrição e entregasse um segredo. Precisava ficar de olhos bem abertos e confiar na agilidade das mãos. O baixinho olhava com desconfiança. Estava com cara de ressaca e bafo de cana. Os outros dois não levantaram a cabeça nem para subir na jangada que nos levou até o barco. O jangadeiro também estava calado, parecia o Caronte carregando as almas ao redor do inferno. No primeiro dia, não trocamos uma única palavra que não coubesse dentro de um barco. A noite era das estrelas, mas ninguém tinha sono. O dia seguinte foi ainda mais comprido. Afadigados e sem peixes, víamos no mar desacordo. Parece coisa de Xangô, disse um marujo. Seria o sinal? Por que Xangô se irritaria com ele? Teria o infeliz caído também na mímica da ataviada? Parecíamos vencidos pela ansiedade como se, num descuido, a foice iluminada viesse-nos percorrer os calafrios. Nos cintos, as peixeiras tilintantes amolaram-se para desaparecer nas carnes feito presas venenosas. Já não pegávamos mais retas, cosendo em círculo o tecido do barco. Então veio a notícia mais dura, aumentando ainda mais a confusão: O tempo vai fechar!
Num instante, me lembrei, causticamente, da mensagem do sonho e pensei na turvação das águas como prenúncio do mal. Iansã gargalhou nas nuvens e riscou a espada no céu. O clarão revelou o olhar de morte dos desgraçados que expunham nas mãos os corações palpitantes. Oxum reagiu e antecipou a noite para dentro do barco. O negror desabou e as ondas invadiram o convés. Os lampejos de fogo revelavam uma luta sangrenta. Dobrei o retrato, pus no bolso e lancei-me ao infinitivo: verificar, ancorar, estabilizar... Os corpos reagem ao imperativo inconscientemente. Num instante, pintou-se uma batalha escura em vertical. Aquela era a premonição. Estava escrito. As horas eram um labirinto e o mar uma cordilheira. Os braços ficaram enfastiados. As vozes rouquejaram. Entregamo-nos à dita-cuja por falta de escolha. Amarfanhados, desfalecemos sobre os vômitos do medo. Acordamos com o sol queimando as caras famélicas de embriaguês. O desespero havia passado e, agora, soava como uma herança bestial. Havíamos perdido o fim do prélio no limbo, mas pela cor do dia, Oxum era triunfante ou tinha havido acordo. As águas estavam calmas, mas o barco mantinha tração. Movia-se em várias direções puxado por algumas correntes. Apoiei-me na borda, olhei a água e voltei gritando: Peixe! Puxem as redes, puxem! Os cardumes pularam na embarcação enchendo os porões. Tanto peixe pedia um trago e, vendo que a sorte tinha mudado, por que não oferecer aos marujos um pouco de cana? Vamos nadar e voltar para casa! Ri de mim mesmo e das crendices que cultivava sobre os sonhos. Preciso ir mais vezes ao terreiro do Pai Omar tomar banho de descarrego. Pulei como estava e deixei Oxum cair do meu bolso. Quando dei por mim era tarde. Subi apressado, tentei manobrar, mas não tinha mais jeito. A deusa lançara-se no infinito das ondas e me abandonara para sempre. Fechei-me novamente. Os marujos me olharam desconfiados e se afastaram. Algo acontecia ali. Aumentei a velocidade e apontei a proa no caminho de casa. Alegria de condenado é rasteira e o medo arrefece os ânimos do verdugo. No rumo da terra, Iansã riscava serpentes de fogo no céu e afastava as nuvens como o vento faz com as embarcações.
JOSÉ DE PAIVA REBOUÇAS - nascido em Mossoró-RN, 1982, e criado em Apodi-RN, é jornalista e articulista do Jornal de Fato/Mossoró (www.defato.com), onde escreve reportagens para o caderno “Estado” e crônicas semanais no caderno “Sua Vida Mulher”. Também indica livros no caderno “Comida, Diversão e Arte”. É organizador do blog Aspirinas & Urubus (www.aspirinasurubus.blogspot.com) e desta REVISTA CRUVIANA.
Rubem Grilo
Passado aquele Natal, George despia a pele antiga e inaugurava uma segunda pele, deixando para trás pai, mãe e os costumes da pátria que já não lhe bastavam. Perambulou muito, nos intervalos da botânica, chamado que fora a trabalhar no Jardim. Sonhos o atormentavam – e ele se vira em um sonho, começado na Lapa, à altura da grande catedral, aquela a parecer um copo emborcado, indo depois parar no porto, no cais do porto da Mauá, cheio de engrenagens negras, beges e cor-de-laranja-suja, castigados ferros descascados, gastas e escalavradas correntes, carcomidas de ferrugem, no meio de paredes sufocantes e pedaços de escadas em caracol dando para nada – sem saída, sem a mais remota possibilidade de escapar dali. Uma metáfora do seu amor pelo Brasil? Mas por que o terror?
Acordava suando, encharcado nas águas do próprio corpo. E na mais completa solidão. Esse sonho voltava sempre, recorrente, até que viu uma mulher no umbral de uma porta – uma porta, enfim –, só a silhueta, tão solitária que nem ele. Foi se achegando, chegando perto, contornando-a, rodeando, até ver-lhe o rosto. Tinha estado no Extremo Oriente, onde dizia ter visto as mulheres mais interessantes e belas, para seu gosto. George, além de catalogar plantas, escrevia poemas (bons) e contos (nem tanto). Mas sentia que palavras o separavam de seu corpo. Fútil tédio acreditava não precisar de espelho. Não é o escritor o seu próprio espelho? Voyeurista, não exigia mais do que a vida pudesse lhe dar. “Cresci, não tenho mais espinhas, vou ao banheiro sozinho, estou seco como um Martini, então podia dar-me ao luxo de mudar de cenário, isto é, trocar de país até, ir embora”, dizia ele para seus botões, olhando tudo em volta, os operários que acordavam e os boêmios, mais as prostitutas e gays pelas ruelas da cidade, até o louco enjaulado em sua loucura na esquina, praguejando que nem um doido. Adernava sutilmente qual um navio, nave lentamente a deslocar-se entre um fantástico jardim de corais, hidrocórias e gorgônias. Numa floresta de cartazes anunciando tudo, não era de admirar que o mundo sofresse de infantilismo. A publicidade só vê o jovem ou talvez um bebê sugador de peito, ganhador do concurso de robustez infantil. E a solidão ali, irredutível. __ Vamos dançar? __ Tudo bem, vá em frente. Quem está impedindo? __ Mas é com você. Não estou a fim de dançar comigo mesmo. __ Odeio homens. __ Ainda bem que não sou um deles. Nessa arenga ficaram George e a mulher, igualzinha àquela que ele vira em sonhos. Custou para dizer-lhe o nome: Liene. Logo de saída, dançando com ele, na festa da turma do Jardim Botânico, implicou: __ Bem que eu imaginava. Bicho com mais pernas que eu, não dá pé. __ Preciso lhe dizer uma coisa... __ Pois então, vamos lá, pode confessar o crime. __ Há outra pessoa em sua vida? __ Como assim, “outra”? Além de quem? __ De mim, ora. __ É, há. __ Então quem? __ Eu. Acabo de aprender a me gostar. Sou ótima companhia. Antes só que mal acompanhada. George mordeu a boca, entre desapontado e divertido. Êta mulher insolente. Mas era do jeito que ele gostava, amante dos desafios. Facilidade, moleza, não era com ele. Mal maior da luta para George era ignorar, ficar
fora do jogo da vida. E apreciava os avanços e recuadas da audácia e da ironia. Mas o mal maior, a solidão, o obrigava a pensar: “Somos ilha? Somos é grupais. Liene tem alguma coisa minha, e eu alguma coisa dela. Só não sei o que é.” __ E quem está amando você... além de você mesma? __ Engraçadinho... o quê? __ Você está feliz? __ Estou viva. Soou-lhe pungente. Não que ele a quisesse anódina, insípida, inodora e incolor. Tampouco andróide. Longe dele, não era isso. Nem que ela não pudesse brilhar, ainda que um brilho de pedra falsa, nada, nada disso, porque sabia que ela era da raça dos que têm luz própria, dos que parecem fazer amor consigo mesmos, com o próprio trabalho, o que é a mesma coisa, tipo Antônio Michelangelo Antonioni ou Keith Jarret, que fazem do piano e do jazz o ar que respiram, puro êxtase. “Coloque uma mulher e um homem diante da vida, da morte, do sofrer”, pensava ele: “o que tiver mais medo é o homem, nem que seja a mulher.” Liene estava mais para instituição do que para pessoa física, pensava ele. Parecia-lhe estranha, alheia, alheiada dos homens, embora uma paixão surda pulsasse sob as camadas de gelo. Diversos como o Pacífico e o Atlântico, eram oceanos a interferir no clima. Enquanto ela, puro magma represado e endurecido, fagulhava risco sob a camada seca e escalavrada pelo tempo, aí, no mesmo local onde a forma da onda que avança outrora formou penhascos, ele era água a viajar com as ondas. Enquanto ela, costa do Pacífico a avançar cortando terra, ele exclamava entre as ondas, trespassando-as: “Vida.” Como tudo que se move, indômita, intrépida, embora sujeita a chuvas e trovoadas, mulher é um bicho que carrega tanta suspeita... não só mulher, seres humanos em geral. Mas aquela... Aquela mulher – Pacífico dava as costas para ele – Atlântico, cuja rochosa costa formava praias de areia. De quem a maré baixa, barcos repousando em um leito de pedra e lama? Tanta suspeita, olhos de olhar, ouvidos de ouvir, ele a falar em algaravia até ficar rouco, ele – ser – vivo para as pessoas vivas, tentando vencer uma mulher cujo único desejo era somente ser semente que quer ser árvore para ser livre. __ Sabe, Liene, vou lhe dizer uma coisa... Mas você nem olha para mim. __ Tudo bem, estou séria, estou olhando para você, nos olhos, pode falar. Diga. __ Aves na gaiola cantam? Acho mais é que choram. __ A natureza usa o mínimo de tudo – foi só a resposta dela. __ Dizem que as mulheres só são românticas na adolescência e que
na maturidade tornam-se realistas, especialmente quando têm filhos. Com os homens é o contrário: só ficam mais românticos ao envelhecer. Concorda? __ Como seres tão díspares vão se entender? __ Algum dia... __ Nunca. Categórica, Liene iria ter vocação para o romantismo a vida inteira. Duradoura nesta alma inquieta, sofrida e vital, era a sua pessoal e melancólica alegria. Todos nasciam reis, mas a maior parte morre no exílio. Gente – homem, mulher – é que nem tempo: muda com a aragem. “E presta?”, ela perguntou, dando em seguida a resposta: “Fazer o quê, não é? É o que se tem.” Havia sim diferença entre eles: George adorava George. Liene, não. Ela tinha a seu próprio respeito todas as dúvidas do mundo. Quanto a Deus, Esse era uma desculpa para se driblar impotências, a impotência dos fracos. Melhor acreditar no homem? Mas que homens? Ainda haveria homens em quem acreditar? Mas afinal se abria. __ Sabe, minha mãe Joana foi sempre o homem da casa. A mãe eu chamava de “você” mas respeitava qual senhora, chocando-me quando a chamavam de “velha”, “tia”, “coroa”, esses maus gostos do povo tomando liberdade que a gente não dá. Lá em casa eu era considerada a fortaleza entre todos, à beira da insensibilidade. Eu era superdotada em tudo, menos em felicidade. Tinha do amor uma visão meio mórbida, como se ele só viesse para me tomar a liberdade tão amada. Não conseguia dizer “te amo”, isto me queimaria a língua, como fogo ou uma obscenidade. Amava temendo amar. Afinal a solidão do homem comoveu a dureza da mulher. Sabendo-o só no Brasil, sem ninguém, sem família nem amigos, convidou-o para o natal em sua casa, uma casa simples, modesta, adornada de móveis de segunda mão, os que pudera comprar, alguns caixotes mas com paninhos de renda de bilro, gamelas de frutas e legumes da estação, tudo pobre, porém único e de extremo bom gosto. Mas não perdendo o hábito, avisou: “Visitas sempre dão prazer. Se não na chegada, na saída.” George chocou-se com a franqueza, diria até que com a insolência. Mas já tinha aceito o convite para o jantar de Natal, e esse Natal seria o desafio de sua vida. Liene viu-o chegar pontual, bem arrumado, alegre e com o maior humor. O tempo era igual a um rio e o corpo um barco de papel que vai se desfazendo no rio que flui. No barco, o passageiro, “teu próprio convidado”, pensou ela, “tão agradável, tão gentil, tão sem julgamento, uma nova maravilha que você não vê a hora de estar junto, não há limite, e eu quero conhecer o convidado. Inferno é a ignorância, a inconsciência. Paraíso é conhecer.” Tudo isso pensou Liene ao vê-lo na porta, com as mãos pra trás, escondendo alguma coisa. O que seria, um presente? Como, se era tão paupérrimo quanto ela? Nada poderia comprar.
Intrépida agora, ela passara a arriscar-se. Arriscavam-se ambos, tendo o risco como leme e bússola. Arriscavam-se a amar. Triunfante, George apresentou-lhe um pimentão verde de bom tamanho. Mudava ela com a inesperada surpresa na metáfora vegetal da esperança e da vida? Seria diferente se fosse um rabanete? Tedioso havia de ser o Natal, a vida, se soubéssemos de um tudo, pensou ela. “Que peça esse homem”, e soltou uma gostosa gargalhada. “Quero ele pra mim”, arrematou para seus botões. Assim, apaixonou-se pela idéia de viver através de um pimentão. Solidão não era mais a pele primitiva ou a bola da vez. Era tarde: a segunda pele era o apaixonar-se pela vida.
OLGA SAVARY tem 20 livros pessoais e mais de 980 coletivos publicados no Brasil e exterior, como organizadora e integrante. Mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de literatura reconhecem sua obra. (alguns “Jabuti da Câmara Brasileira do Livro”, “APCA”, Vários da “UBE” – RJ” e “UBE – SP”, inúmeros da “Academia Brasileira de Letras”, inclusive a indicação ao “prêmio Machado de Assis para Conjunto de Obra da ABL”, o “Prêmio Internacional da Poesia Brasil – América Hispânica”, entre outros). Convidada, é a única escritora a constar da apologia Poesia da América Latina (entre apenas dezoito poetas e dois prêmios Nobel: Neruda e Octavio Paz, editada na Holanda, em 1994), de Os Cem Melhores Poemas do Século e de Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século (Rio de Janeiro, Objetiva, 2000). Pioneira em escrever haicai, pioneira em publicar primeiro livro todo em tema erótico no Brasil e em utilizar palavras em tupi na poesia e ficção.
Segunda-feira Ele assobiava uma canção antiga... fôofîfôofôo... fôofôofî... fôofîfôofôo... lembrava da mala de brinquedos... do cheiro dos doces na cozinha... da água da chuva que caía no telhado e dos respingos que sobravam na rede... ele alisava a cabaça e imaginava a mulher... Terça-feira ... pegava a bengala e ia comprar pães... o cheiro no ar... a fumaça chamando. A feira e a horda dispersando os sentidos. Fala seu Manuel, olha o buraco! Ele ria e levantava a bengala, depois voltava a bater de um lado para outro adivinhando o caminho. As formigas eram como Manuel. Iam pelo mesmo caminho e cumprimentavam outros Manuéis... Quarta-feira ... Manuel fazia o café e sonhava com o transplante de córnea... O rosto de Dona Carmina. O tamanho do Sobrado do português. As flores da beira do açude. O beija-flor. O filho do português disse que o beija-flor era azul e verde e amarelo e vermelho e lilás e... Saiu de casa e seguiu seu caminho de formiga até a clínica. Olá Manuel, como vai a Dona Carmina? Fazia que não ouvia e parava na esquina para sentir o barulho que vinha com o vento. Atravessava com a bengala para um lado e outro... toc toc toc toc... A primeira vez que sentiu o perfume de Dona Carmina ela ia para missa. Ele a seguiu até a porta da igreja, parou no jardim e ficou ouvindo o sermão do padre. Meus irmãos, hoje é um dia muito especial para nossa igreja. O prefeito está aqui para anunciar a ajuda para as obras de reforma da sacristia. Uma boa alma é aquela que não precisa de um sinal para vir a Deus. Ela vem porque Deus está no seu coração. E o nosso prefeito é um homem de Deus... Ele contou pelo menos umas quinze vezes o nome de Deus associado
ao nome do prefeito. Quando criança, sua tia o levou à missa e o padre disse que Jesus curou um lazarento e salvou um cego da escuridão. Ao fim da missa ele pediu para ir falar com o padre, saber onde mora esse Jesus, esse abridor de olhos... E o padre continuava a exaltar o prefeito. E a pedir aos fiéis que compareçam ao ofertório, que Jesus estava vendo o coração dos homens pela bondade da esmola. Ele sabia que era mentira. Que Jesus morava num lugar muito distante. E o escuro era o seu conforto. E que seus olhos só se abririam com uma córnea nova. Mas havia o cheiro de dona Carmina. O cheiro misturado de jasmim em cio. Quando voltava da missa, se masturbava pensando nos peitos de cabaça e no vulcão entre as pernas quentes de Dona Carmina. Quinta-feira Seu Manuel, seu Manuel, acorda. Saiu no rádio que hoje vem os médicos da capital pra atender a todo mundo. Acorda, seu Manuel. Ele fazia que não ouvia e continuava imaginando os peitos de cabaça da Dona Carmina. Só mais tarde, ia às compras na feira. Quero uma dúzia de laranjas e dez bananas. Quanto tem aqui. Ele passava a mão na moeda e, sabendo que o troco estava certo, fingia que não ouvia. Voltava para casa e fazia seu almoço de sempre. Arroz, um ovo mole e um pouco de macarrão com muita margarina. Comia e engolia como uma formiga. Lavava os pratos e sentava de frente para a porta do quintal, onde tinha um pé de goiabeira e um coqueiro anão. Pensava mais e mais em Dona Carmina. Como seria ela no banho. A água escorrendo em seus peitos de cabaça. Suas mãos lavando o sexo e o cheiro de jasmim em cio vinha lhe atormentar. Imaginariamente tomava banho com ela. Seus corpos espumados de sabonete de jasmim e ele de pênis ereto, procurando penetrá-la em pé, enquanto a água escorria em suas costas. Excitou-se mais ainda e se masturbou escorando a mão esquerda na porta do quintal. Sexta-feira Dia de exames de sangue para se habilitar ao transplante de córnea. A luz rondava-lhe a face calma de uma formiga. Banhou-se sozinho e se vestiu para refazer o mesmo caminho. Saiu como sempre, a bengala para lá e para cá, toc, toc, toc... e a luz cada vez mais perto. Na esquina parou e sentiu o vento. Ergueu a bengala e andou para o outro lado da rua. Ouviu gritos e barulho de freio forte bem próximo. Caminhou devagar, as pessoas estavam mais perto e um cheiro de sangue infestou o ar. Seguiu, a luz está mais próxima. A luz poderia abrir o banheiro de
Dona Carmina e ele iria ver aqueles peitos de cabaça. Está chegando hein, seu Manuel! A equipe de médicos trouxe duas córneas e já implantou em dois deficientes visuais. Quem sabe aparecem mais duas. Ele quis responder, mas preferiu pensar em Dona Carmina. Uma ambulância corta a rua em alta velocidade e ele pensou que ali poderiam estar as suas córneas. Quis ter uma crise de consciência, pois o moribundo da ambulância poderia sobreviver... Mas lhe veio à mente o padre, falando do prefeito, do cego curado e de Jesus, que para ele morava longe... O médico veio sorridente. Seu Manuel, hoje é seu dia de sorte. Vai enxergar e poder aposentar essa bengala. Ele sorriu por dentro e nada falou. Sentou e esperou. Uma, duas, três horas... até que a família do atropelado liberou os órgãos para doação. Sábado A luz estava próxima. O tampão deixou seus olhos coçando. Ele agarrava com força o colchão para não correr o risco de querer coçar. A enfermeira era conhecida e cuidou dele com esmero. Domingo O dia raiou com um beija-flor na varanda. De longe vinha um cheiro de jasmim. A enfermeira trouxe o café e antes de sentá-lo para a refeição, comentou: O Senhor conhecia a Dona Carmina, seu Manuel? Foi atropelada, a coitadinha, que Deus a tenha... Ele lembrou do banho, do cheiro de jasmim em cio, das cabaças e do vulcão quente... O tampão ficou umedecido de lágrimas e ele esfregou os olhos com toda força, voltando para sua vida e formiga.
CARLOS GILDEMAR PONTES é escritor, ensaísta, editor da Revista Acauã. Professor de Literatura da UFCG. Mestre em Letras UERN. É autor de Metafísica das partes, poesia, 1991; O olhar de Narciso, poesia, 1995; A miragem do espelho, contos, 1998; Super dicionário de cearensês, expressões regionais, 2000; Diálogo com a arte: vanguarda, história e imagens, ensaios, 2005; Da arte de fazer aeroplanos, conto, 2007; Melhor seria ser pardal, 2008, dentre outros. Recebeu alguns prêmios, dentre os quais se destacam: Prêmio Literário Cidade de Fortaleza – Conto, 1990; Vencedor do Prêmio Ceará de Literatura – Poesia, 1993; Vencedor do Prêmio Novos Autores Paraibanos – Conto, 1998; Vencedor do Prêmio Audifax Amorim de Poesia - 2005, promovido pela Prefeitura Municipal de Colatina – ES. Faixa preta de Karate Shotokan – Presidente da FKMIPB.
Eduardo Guimarães dos Santos
Por várias vezes, desviei a atenção apesar da gravidade do assunto. Enquanto o delegado iniciava o interrogatório com a habitual truculência inerente ao cargo, perdia-me em parvos devaneios. Não conseguia resistir, carregava comigo uma incontrolável mania de me fixar em algo que me parecesse um tanto desproporcional. O problema em questão era o bigode do indivíduo, uma penugem que roubava a cena, relegando ao segundo plano suas mal desenhadas feições. O timbre de sua voz penetrava pelos meus tímpanos, mas pareciam fenecer antes de chegar ao córtex, que estava com a capacidade máxima de neurônios ocupada em atinar se aquele apinhamento de pelos espessos e longos era mais à feição de Belchior – o rapaz latino-americano sem dinheiro no banco – ou de Zenon – um dos artífices da democracia corintiana dos anos
1980. Acabei não chegando à conclusão alguma. Antes, o agente da lei, talvez percebendo minha ligeira distração em meio aquela arenga toda, resolveu abreviar sua peroração e partir para a primeira pergunta. Respondi que sim, conhecia de longa data o infortunado. Éramos vizinhos há cerca de 20 anos e, por mais que não tivéssemos o hábito de frequentarmos um a casa do outro, nutríamos uma simpatia mútua. O fato de ambos torcermos pelo Flamengo deve ter contribuído consideravelmente. O futebol aproxima as pessoas – “o senhor sabe como é...” – tentei quebrar o gelo, mas o delegado não esboçou qualquer reação às minhas palavras, demonstrava estar mais preocupado em observar meu gestual, meu olhar. Permanecia descrevendo, com alguma riqueza de minúcias, minha relação com o pobre Juvêncio quando o sujeito passou a cofiar o bigode de forma mais efusiva. Esforçava-me, ao máximo, para não dar importância àquele ato repetitivo, concentrando-me estritamente na triste ocorrência que dera cabo à vida do meu amigo. Porém não me sentia nada à vontade no ambiente de delegacia, onde cada funcionário transpirava malandragem e as paredes pareciam pesadas, carregas, provavelmente, por serem testemunhas involuntárias de uma sorte de negociatas, favorecimentos, propinas. O que fazia na noite anterior ao sinistro? Estava no bar do Arnaldo, a propósito, o Juvêncio chegou por volta das sete da noite, e ficamos bebendo até altas horas. Ele estava especialmente feliz naquele dia, sua filha havia passado para uma universidade pública. “Imagine...”, dizia, “Não vou ter que me matar de trabalhar para pagar a faculdade da minha menina! São Jorge tem poder!” Sim, era devoto de São Jorge, daqueles de estampar, de ponta a ponta, no vidro traseiro do carro, o clássico adesivo do cavaleiro da Capadócia enfiando a lança pela garganta do dragão adentro. Dia 23 de abril era um acontecimento. O homem levantava bem cedo e seguia com mulher e filha até a paróquia de Quintino a fim de ser um dos primeiros a reverenciar o seu santo de fé. A devoção era tamanha que decidiu tatuar as marcas de nascença do guerreiro: o dragão no peito e a cruz no braço esquerdo. Cuidava com impressionante desvelo da imagem de mais ou menos 30 centímetros de altura que ficava num pequeno altar no quartinho dos fundos de sua casa... Pensando bem, eu nunca poderia imaginar que a história de Juvêncio pudesse terminar de forma trágica, melancólica... A que horas o vi pela última vez? Devia ser em torno de onze. Estávamos completamente embriagados e nos escorávamos um no outro numa patética simbiose etílica para que chegássemos às nossas respectivas casas como responsáveis pais de família devem chegar: andando, de pé – embora cambaleando –, mas de pé. A sorte é que esposa e filha tinham ido
visitar uma tia em Campo Grande e resolveram ficar por lá mesmo – não convinha se despencar de tão longe tarde da noite, ainda mais de ônibus. Como aconteceu exatamente, eu não sei. Tenho pra mim que foi a tal da promessa. O Juvêncio queria muito ver a filha em uma faculdade bacana. Há duas semanas, ele me contou que, todo santo dia, acendia uma vela pra São Jorge lá no quartinho dos fundos... Mas, de cara cheia, creio ter sido a primeira vez – e última. Quando cheguei, as labaredas já haviam consumido a casa quase por completo. Pobre Juvêncio!... “Muito bem, o senhor está liberado.” O delegado interrompeu com aquela falta de sensibilidade, claro, também inerente ao cargo e me despachou de forma peremptória. Antes de sair, fiz questão de fixar o olhar novamente naquele bigode descomunal – não consegui me decidir se ele lembrava mais o Belchior ou o Zenon.
ALEXANDRE CUNHA DOS SANTOS é jornalista, contista, 39 anos, casado, três filhos. Gerente responsável pela Programação e Aquisição de Conteúdo do Canal Brasil. Em 2011, completa 20 anos de Globosat, 13 anos de Canal Brasil. Em 2004, foi premiado no 1º Concurso Contos do Rio, organizado pelo Jornal O Globo e pela Academia Brasileira de Letras. No mesmo ano, publicou seu 1º trabalho: "Pracinha Xavier", parte integrante do livro "Contos do Rio", da Editora Bom Texto.
Jueves. Fabián se levantó por la mañana con una resaca que le partía la cabeza. La noche anterior había tomado demasiado. Se mira al espejo y sonríe; está feliz, había salido con Roxana. Al principio, Roxana no quería salir con él; él insistió. A veces, no sabemos si es que se alinean los planetas, estamos más lindos, ellas menos pretenciosas o, sin que se ofendan, no se dejan llevar por ese primer impulso de histeria que las bloquea. La cosa es que ella aceptó una tarde de miércoles, con alguna condiciones de por medio, como es natural. Él dijo a todo que sí y fijaron lugar y horario. Fabián la esperó a la diez de la noche, según ella lo pidió, en esa esquina. Fueron a comer, luego la invitó a tomar algo y después la noche siguió creciendo y terminaron, medio borrachos, bailando salsa en un boliche del Once. Más tarde, hicieron el amor.
Fabián, mientras se desperezaba, notó algo extraño. En la calle, mirando desde su balcón, el mundo se veía mucho mas despierto que lo que ayer, antes de ayer y antes de antes de ayer a esa misma hora. Era como si se hubiera despertado más tarde de lo normal. Miró el reloj de pared, las 8; luego el de pulsera, las 8. Encendió la tele en canal de las noticias era las 9. Ese día Fabián no llegaría a trabajar. La noche anterior, luego de la hora cero, había que adelantar una hora los relojes, por el ajuste horario debido al cambio de estación. Su trabajo es, además de pensar –y hoy más que nunca- en Roxana, repartir bolsas de papas congeladas en los locales de la cadena Fritpap´s, que hoy no tendría materia prima para acompañar a las grasientas hamburguesas. Javier salió de su trabajo a las doce. Como cada mediodía fue a almorzar esas papas fritas que no podía dejar de comer. Le decían el místico de la papa frita. Otros lo consideraban un papafrita por su devoción a la ingesta del tubérculo fritado. Ya varios le habían perdido el respeto por esta razón. A él nada de esto le importaba, mientras hubiese papas fritas, las cosas funcionaban de maravilla. Se sentó en el taburete que ya tenía la forma de sus nalgas. Karina, la chica pecosa que atiende en el local le preguntó: -¿Qué va a almorzar? -Lo de siempre, respondió Javier. - Señor, no tenemos ese menú, dijo la aparentemente ingenua muchacha. -Le puedo ofrecer hamburguesas simples, dobles, triples, con jamón, con queso, con jamón y queso, con tomate y sin lechuga, con lechuga y sin tomate, con tomate y cebolla, con cebolla y queso, con queso y salsa golf, con salsa golf y pepino. Si quiere el combo dos, le damos un cuarto más de Poca Cola y Spirits, si quiere agrandar el combo tres, le podemos dar gratis el postre, si quiere un postre más grande, debe abonar un peso con cincuenta más…. y así la chica siguió hablando durante dos o tres minutos, él la escuchaba atentamente - o eso parecía - hasta que la miró y, con tono ansioso, le dijo: -¡Nena, quiero papas fritas! ¡Nada más que eso! ¡Vengo todos los días y todos los días me preguntás lo mismo! -Disculpe señor, pero hoy no hay papas. El repartidor no fue a trabajar y hasta mañana no va a haber. ¿¡Quién sigue!?
Javier, hundido en una incontenible depresión se hizo a un lado, bajó la cabeza mientra se apoyaba en una de las columnas del local, cayó a los pies del mundo. Pensó que todo lucha por vedar su felicidad, su alegría,
sus cotidianas costumbres. Esas costumbres que no joden, que no lastiman, que no invaden, que no matan. Hoy no podría ver esos pequeños destellos de oro sobre los bastones amarillos. Hoy la luz no rebotaría en el aceite humeante como en un trigal. Esos bastones que se nievan con la sal y se deslizan uno a uno como un snowboard sobre su lengua, paladar y garganta estarían lejos, incalculable, incomprensiblemente lejos de él. Sintió que moriría sin sus papas fritas y que todo es tan, tan injusto que ese día su estancia en la tierra habrá sido inútil, desesperada y nula. Al fin y al cabo, la felicidad de los hombres siempre está dictada por un sí o por un no, de una mujer que ni siquiera conocemos.
PEDRO GARCÍA LAVIN, nació hace 31 años en la ciudad de Azul (Pcia. de Buenos Aires), vivió toda su vida en Saladillo (Pcia. de Buenos Aires), excepto cuando fue por estudios a la ciudad de Buenos Aires, donde recibió el título de Administrador Agropecuario. Actualmente vive en Saladillo, donde trabaja y desempeña actividades en relación a sus intereses artísticos que van desde la escritura y la fotografía, hasta la música y la pintura. Publicó en el año 2006, un libro de poemas al que tituló "otra vez donde otras veces". Hoy por hoy está escribiendo, pintando y con varios proyectos más, como, por ejemplo componer canciones.
Ricardo Lopes
Do caderno de Netarino: “Onde houver um aglomerado humano, haverá uma fábrica de mitos”. (François Silvestre de Alencar, em Esmeralda: Crime no Santuário do Lima)
Primeira estação A noite mal pousara suas garras na mataria, quando se ouviu um frêmito por entre os marmeleiros. Os bichos correram desembestados. Aqueles que tinham locas cuidaram de se afundar chão abaixo, os que dispunham de outros esconderijos meteram a cara adentro. A pequena casa de taipa, aparentemente vazia, viu-se sacudida, seguidas vezes, pela ventania maluca. “Cruz-credo! Cruz-credo!” As panelas de barro foram estilhaçadas, a moringa explodiu, os cabelos do telhado de palha foram assanhados... No catre ao fundo, numa espécie de leito de morte, Zefinha, em cima do couro e dos ossos, ladeada por Jesus, Maria e José, sorriu e deu os braços
para o invasor. Segunda estação Meses depois, numa rede fétida da pequena casa de taipa, um menino dividia os infortúnios da vida com Zefinha. Ele viera ao mundo numa noite de muita ventania, daquelas que as tramelas não conseguiam segurar as bandas das portas e das janelas. A partir de então, um uivo de bicho vento em cio cortava as oiças da pobre mulher. Ela se levantava, reforçava o calço das portas e janelas com estacas de sabiá, cobria o pequeno com nacos de pano, e assoviava, desajeitadamente, uma nesga de canção e reza. — Vai, vai, vento dos diabos. Procura outra freguesia, e não me plante seu cruel destino... Terceira estação Quinze anos se passaram. O que fora menino revelou-se um forte caboclo: Bastião. Disposto e determinado, rasgara o leito do rio seco em novas vazantes. Remendara as cercas de pau a pique, cuidara das criações e, todas elas, respondiam-lhe com balidos e crias sucessivas. Nos fins d'água, todo ano, a casinha ganhava um regalo. Rádio de pilha, novo candeeiro, guardaroupa de três portas, jogo de cadeiras de palhinha, um oratório para a Virgem Maria, Sant'Anna, São Francisco e São Pedro... E nem sinal daquele vento de outrora. Quarta estação Numa certa noite de sábado, o forró comia solto na casa de Dona Matilde. Meia légua à frente. Chão batido, sanfona, zabumba e triângulo. A cachaça fora servida sem tomar chegança. Os goles desciam goela abaixo num desespero só. Com pouco, estavam todos zonzos; bêbados, mas firmes no forró. Bastião, indisposto, fingira beber. Bicava cada dose, e despejava o restante para o santo aos pés do juazeiro da frente da casa, a cabeça meio avoada. À meia-noite, um estalido na mata calou sanfona, triângulo e zabumba. De repente, um vento fino e cortante, de arrepiar os cabelos da nuca, varria o alpendre da festa. Todos quedaram-se. De início, Bastião imaginara-os embriagados, efeito da branquinha. O vento foi ganhando força e levantando a saia das caboclas, que, de olhos
fechados, continuavam a dançar sem seus parceiros. Com as faces em brasa, passaram, então, a uivar como cachorras no cio. Com mais alguns minutos, candeeiros apagados, Bastião só ouvia o rasgar do vento e os gritos de gozo das cunhãs. Com medo, Bastião enfiou-se na mata, desembestado no rumo das ventas. ... Semanas depois, as caboclas, ubradas, foram todas conduzidas ao pé do altar para a comunhão do matrimônio. ... Hoje, Bastião, como um pé de vento, corre as lonjuras do sertão a versejar histórias de alerta acerca de uma “ventania perigosa, a malsinada cruviana”. — Vai, vai, vento dos diabos. Procura outra freguesia, e não me plante seu cruel destino... Dão-lhe, ao máximo, os ouvidos da curiosidade e da troça e, como prêmio maior, a alcunha de poeta avoado e louco. ... ... Um frêmito na mata... “Cruz-credo! Cruz-credo!”
CLAUDER ARCANJO é natural de Santana do Acaraú (CE), mas tem Mossoró como sua terra por adoção. Engenheiro, escritor, poeta, cronista, gosta mesmo de ser apresentado, e saudado, como professor. Um dos idealizadores do Projeto Pedagogia da Gestão, com várias realizações voltadas para gestão, educação e cultura. Cronista semanal dos jornais Gazeta do Oeste e O Mossoroense (Mossoró-RN), recebeu menção honrosa do Prêmio de Poesia Luiz Carlos Guimarães 2003, promovido pela Fundação José Augusto – Natal/RN. A reunião de contos, intitulada Licânia, marcou a sua estreia em livro em 2007. Lápis nas Veias (2009), que reúne minicontos foi o seu segundo trabalho publicado. Em 2011 publicou o seu primeiro livro de poesia: Novenário de Espinhos.
Anchieta Rolim
Pacífico Medeiros
A camisa de listras ainda sobre a cama. O cheiro do suor era o cheiro que ela sentia há mais de 50 anos. Vestígios de pele na gola que ela esfregava delicadamente. Ele ainda respirava ali. Chorosa, sentou-se na ponta do leito, abraçou com saudade a camisa e a comprimiu no seu peito. Estreitou-a contra si, vasculhando cada pedaço, como se pudesse encontrálo. O pranto varreu a noite e tangeu a madrugada. Debruçada, contou cada uma das listras e o amou como em todas as luas. Quando o sol caiu em sua solidão, arrancou-se de coragem. Pôs o vestido que ele lhe dera e foi-se arrastando pelas ruas de sempre. No caminho, rasgou o chão com raiva do destino. Estava oca. Não havia fruto, só saudade. Recortou o primeiro encontro, o primeiro toque das mãos, o beijo roubado na praça, o pedido inesperado... Refez todo o trajeto de uma vida sob o fardo daquele dia. Olhou as mãos enrugadas, tocou a pele murcha, sentiu o cansaço em cada passo e o peso dos anos que lhe seguiam.
Instintivamente foi levada ao mar. O vento era a voz que ela queria ouvir e, quando se calava, era ela quem gritava a Deus para que escutasse... A maresia partia-lhe a vida em dois. O beijo do mar arredio tocava-lhe os pés e voltava. Com dificuldade, agachou-se sobre a areia e começou a escrever o nome dele com o seu indicador. Fez um buraco na terra. Esperava que algo se erguesse de dentro daquela abertura ou, quem sabe, escolheria dormir ali mesmo, todo dia. Balbuciava lembranças e enchia de lágrimas a cova que ia abrindo na beira da praia. As imagens lhe preenchiam. Uma fotografia recente mostrava os dois como antes, como se ainda fosse o presente. A última festa. Ele com a velha camisa de listras e ela com o rosa nos lábios. Um bolo confeitado de ouro. A troca de alianças. As mesmas juras de amor eterno. Agora, nem ombros nem abraços lhe socorriam, apenas as ondas que iam e vinham a seus pés. Pensou na camisa que ele deixara sobre a cama antes de partir. Partiu como nascera e talvez sentisse frio. A camisa podia ser o seu último desejo. A camisa era como aquele mar que vestia a terra, cobrindo os pedaços que lhe cabiam e tocando o céu. E, por um instante, ela serenouse de lembranças. Cobriu-se de mar sob as nuvens escuras. Dormiu no azul e levou consigo a camisa de listras puída de infinita saudade...
REGIANE SANTOS CABRAL DE PAIVA é professora de língua espanhola e literatura hispano-americana da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN). Cearense de Fortaleza, reside em Mossoró/RN, desde 2005. Escreve para o blog Aspirinas & Urubus: www.aspirinasurubus.blogspot.com.
Desde que meus filhos se casaram e meu marido morreu, vivo só nesta casa, digo que estou sozinha, mas na verdade são muitas as pessoas que reencontro nesta solidão. Quantos rostos, quantas conversas e histórias uma pessoa na minha idade tem para lembrar? São muitos lugares, muitas vidas que se cruzaram com a minha. Hoje passo os dias e as noites a guardar as saudades, penso que mais minha que dos outros. Sinto falta das ilusões, da juventude e de como tudo parecia ser bom, e os sorrisos eram fáceis, e a solidão era apenas uma palavra. Quando era jovem sabia que iria ser velha e antevia isso antes de tudo com alegria, nunca tive medo da velhice e tinha certeza que seria uma velha melancólica, por isso, quando conhecia uma pessoa que gostava, via logo que um dia iria sentir saudade dela. Vivi tanto que quase todas as pessoas amigas já morreram. E para os lugares que conheci não posso mais ir, pois não posso mais andar. Ainda bem que toda noite essas pessoas que desapareceram me visitam, chegam todas jovens e alegres, falam e riem muito, lembram do passado e nós ficamos assim a noite inteira. Quando amanhece, elas vão embora e eu fico novamente sozinha, esperando que a noite chegue para elas me levarem.
Nadja Claudino - Contista e cronista, às vezes poeta. Escreve para jornais e sites. Cursa História na Universidade Federal de Campina Grande (UFCG).
E foi assim. Ela foi chegando de mansinho, como quem não quer nada, mas querendo. De repente... Zás! Deu o bote. Seus olhos agateados fixaram e prenderam a presa como uma hipnose. E ela foi se 'aprochegando'... Mansa, felina, misteriosa. Assim, que nem só as felinas sabem ser e agir. Na calada da noite, no 'quilaro' da lua, ela se tomou de elasticidade e 'abufelou' o coitado. Mas, botou abaixo mesmo! Sem dó nem piedade. E o coitado, danou-se pra amolecer, fraquejar, e ficar assuntando. E assuntando, chegou à conclusão de que fora abarcado pela danada... Ah! Danada! E a danada, com jeito, deixou o cabra 'abestaiadozinho' pela moça bonita, puxada à onça Suçuarana. Dizer que foi paixão... É brincadeira! Daí ele passou a chamar a danada de 'Meuzamô'. E foi assim que tudo se deu, até hoje.
KYDELMIR DANTAS é poeta e pesquisador, autor de várias obras nestes gêneros. Filho de Nova Floresta-PB, mora em Mossoró-RN.
Anchieta Rolim
Deus está em toda nota de dinheiro sujo, amarrotado, sacana. A gavetinha do cobrador estava repleta delas. A gravata arregaçada de calor, a camisa suada de raivas. Tanto verde e branco na pele... haja inferno pra tanto mundo! Só mais um coadjuvante em sua própria vida. Hoje ele sabe que as crianças mais sujas, mais vivas, são como ratos salivando um naco de merda. Como ele. Todo mundo é um pouco assim. São como crianças apalpando seu próprio vômito. Roberto deduziu, depois de anos como cobrador, que toda a história do mundo cabe num gole de merda, como a gravidez precoce de uma sociedade demasiadamente limpa. Nada o abala desde que aprendeu isso, desde que adotou essa bravata como ideal de vida. Nada, até hoje. Dava pra ver todos os filhos do mundo nos olhos daquele vagabundo que vinha entrando no ônibus. Cada criança barriguda de lombriga. E não eram de um doce rançoso, como se espera, mas sim de um amarelo cansado, insosso, sem carne, sem gengivas. Bye bye, Chaplin. Um sorriso banguela. Somente um amontoado de certezas corruptíveis, um pouco de música velha batendo nos ouvidos. Anedota do capeta. Uísque da mais baixa qualidade. Ressacoso. Perdido em seus passos trôpegos, tentava entregar os dois reais a Roberto. A passagem do ônibus. O caminho das pernas mortas. Atrás, calada e sorridente, mais uma cadela do Brasil. Ovelha sem Deus. Com idade suficiente pra ser mãe de muitos que estavam ali, mas ainda acesa entre as coxas magrelas... de tanto cigarro fumado. A vovó rabuda. A saia que não cobria mais que um palmo do corpo. Uma verdadeira mariposa, um encontro de lábios impudico. Baba branca na emenda. Carne de tempos sofridos no abatedouro. Era feriado. O dinheiro de uma passagem pagava as duas. Uma caninha a mais! Roberto observou enquanto os dois corpos cambaleavam dentro do veículo lotado. Destilados, embebidos, secos. O rosto do apocalipse, dos
demônios do fim, carapintados em cada um. O casal tinha o olhar perdido de um boi no matadouro, de um pedinte, de um moribundo de vida em fibras coloridas. Lágrimas em tecnicolor. Eles iam serpenteando os espaços do corredor central do ônibus. Eles não sabiam ser mais que essa podre sucata enferrujada. A escória dos perdidos, tristonhos e vermelhos. Roberto se abaixou para apanhar sua garrafinha de água. Talvez um gole dessa droga quente o fizesse engolir o pão de cada dia. O corpo das crises. O rosto do mundo. *** O inferno é e está a um palmo da alma. Coçava sua barbicha imunda enquanto perambulava no ônibus. Seu hálito corrosivo castrando as idéias de cada um dos passageiros. Incenso forte nas fuças. As mães mandavam os filhos olharem pra frente, evitando assim tocar a vista naquele monte de ossos e bucho. “Pra que uma certidão? Não tenho nome, não!” E as crianças crescem vendo a realidade síndrome de Down, daltônica, das novelas. O mundo é um lugar vazio. Secou. E ele ali, vértebras destruídas. A única poltrona dupla vazia estava esperando. Escritos de ódio, sexo, amor. Paixão. O cobertor das coxas, o apoio das costas, a poltrona dos solitários. Cada um num ônibus é uma cédula de solidão, paupérrima. Ele se sentou desajeitado, escorregadio, flácido, e esperou dentro de sua camisa azulada e rota. Ela já estava vindo, o cigarro apoiado nos dentes sujos e nos lábios. À surdina os sonhos se tornam caixas e mais caixas de anestésico vencido. As certezas são como duras pedras de gelo em meio a litros de um gole de cana de cabeça. E assim ele leva a vida, negociando almas no mercado das tristezas, vendendo bebida, bebendo o lucro e a diferença. Nos olhos de todos os passageiros, o nojo, o asco, a escara. Ferida aberta nas ventas limpas: O real. Sentado ali, no meio do mar de concreto, totalmente alterado, é como se ele pudesse de repente chutar a cadeira que sustenta seus pés na forca. Deixar de lado a grosseria faceira da cidade. Selvageria. Deus nasce e morre todos os dias! *** Misericórdia: o ato final da tragédia. Como um bolo de nicotina, como uma arma apontada para o útero, como um câncer familiar, como um filho perdido. Dois, três... A comédia dos porcos se desenlaça. Suicídio é uma
palavra satanicamente doce. Podre cadela do mundo, desplumada, ardida, rota de paixão. No largo das ancas, no arco dos seios murchos, incrustado na sujeira das unhas, tempero das cáries... fumando cada segundo de uma vida cagada. Ela se sentia a puta dele, o demônio encourado. Amava-o, a despeito do câncer que era esse amor. Alastrando-se. Sentia até algum asco, no fim inerte de seu sangue, pela luxúria de seus próprios dias. Sentia, mas a luz da noite faz a escara se aquecer, transcortar, esquecer o digno, o vivo. Seja só o que se há de ser! Sonho é coisa de gente com baboseira na cachola! Bobagens... A velha se sentou ao lado do senhor hiena muda e sarnenta. Carniceiros de seu próprio cadáver. Passou o braço, num toque desconcertantemente sutil, carinhoso, por trás da cabeça do risco amado. Tocou de leve o pêlo de três dias sem banho. A moribunda só se lembrava do queijinho e se ria de sua própria desgraça. Cachorra desvairada... triste... morta de amor. E o azul turquesa da dor vinha tatuando-a de dentro pra fora. Sensual como um grito de dor, lamber um dedão grudado de areia e suor... sensual como o tempo dos condenados. Como algo de amar. *** O carinho derramado nessa cena grotesca, esse ensaio do mau gosto, fez de força a ânsia de vômito em Roberto. O calor, a injúria dos volantes do mundo se fez presente, e ele pôde ver, pela primeira vez: a ruína é ainda um membro arrancado, dilacerado do amor. O carinho de um demônio por uma diaba. A vermelhidão pungente da carne viva. O choro irritadiço dos escalpelados. Voltar pra casa foi mais que um carma...
JOAQUIM DANTAS nasceu no dia 08 de setembro de 1989. Filho de pai e mãe dedicados, foi criado em Mossoró-RN, sua terra de coração, carne e sangue. É ainda vivo. Continua escrevendo contos.
Cena 1 À surdina da noite um disparo seco na escuridão. O aquário reluzente à sombra das luzes desfez-se em cacos e a água límpida se esparramou pelo chão. Os peixes sucumbiram, sem fôlego. Cena 2 Não conseguia escolher a roupa com a qual iria para a festa. Revirou todos os vestidos de noite, nada. “Cuida, Ricardo, vem me ajudar com a escolha da roupa pra festa de hoje à noite!” Gritava. Mas Ricardo não aparecera. No quarto, cansada de vestir-se e admirar-se no espelho, adormeceu por entre os vestidos jogados na cama. Acordou entre beijos e abraços. Ricardo finalmente voltara, mas a festa havia passado. Não importava. O sexo compensava todas as festas e bailes. Cena 3 Acordou. Procurou por Ricardo, mas não o encontrou. Ouviu passos na escada. “Ricardo?” Cena 4 O dia passava tranquilamente. Na tarde mansa, a paisagem da janela principal parecia mudar. Cena 5 Semanas se passariam. As árvores estavam perdendo as folhas. E os minutos que já se encolhiam pela manhã, pareciam se dilatar à tarde. Pela estradinha perdida entre as árvores ouvia-se o ronco de um motor. Talvez fosse o carteiro. Não passara hoje pela manhã. Apesar de envolta no gozo que a acometera hoje novamente, jamais deixaria de ter ouvido a buzina do carteiro. Morava pouco distante da cidade e sempre recebia encomendas da mãe. “Amor, vá lá fora ver se tem alguma coisa pra nós.” O carteiro sequer
parou ou buzinou para dar satisfações. “Estranho, Ricardo, o carteiro sequer parou para falar conosco...” Queixara-se, fitando o horizonte vermelhosangue que se fundia à noite que se aproximava. Cena 6 A noite caíra. O silêncio noturno era rompido apenas pelo cri-cri dos grilos. E o luar fazia-se e desfazia-se à sombra de voejantes aves negras que rasgavam a noite. As janelas que davam para o poente permaneciam abertas. As cortinas de seda tremulavam. Ricardo dormia. Entrou no quarto sem acender as luzes para não incomodá-lo. Despiu-se à sombra dos abajures. Nua, deitou ao seu lado. Sentiu o corpo frio de Ricardo. Parecia que sua pele estava mais pálida que o normal. Dormia profundamente. Sequer respirava. Cena 7 O vento frio da madrugada a obrigara fechar as janelas. Ergueu Ricardo. Tomaram banho juntos. Ervas aromáticas povoavam o quarto. Cheiro forte. Inebriante. Logo cedo rachara a lenha, fizera o café. Mais tarde alimentava o fogo, que em labaredas cozia o feijão numa panela preta de barro. Cena 8 “Ricardo, desce pra almoçar! Vai passar o dia todo dormindo?” Gritou ao pé da escada. “As crianças já estão esperando, venha logo!” Ricardo não descera. Cena 9 À noite, antes de deitar, o ritual se repetia. Despia-se e deitava-se nua ao lado do marido. Acordou subitamente. Tivera mais um daqueles pesadelos: Ricardo, ela, sexo, imagens de outro homem, sangue. Pôs a camisola e desceu para a cozinha. No silêncio noturno ouviu passos perambulantes pela casa. “Ricardo?” Não. Não era Ricardo. Ninguém respondeu. Na gaveta do armário pegou a maior faca e de lâmpada em punho saiu. “Tem alguém aí?” Era o primo Pablo que já entrava na sala de jantar. Voltara. Havia três anos que fora morar em Londres. “Desculpe-me, mas meu voo atrasou e, tive que chegar tarde. Também não deu pra te avisar. Eu ligava, ligava, mas ninguém atendia o telefone...” Sem problemas. “Já jantou?” Era o que iria procurar. “Vocês parece que não comem nada! Falar nisso, cadê o Ricardo, ele está bem?” Estava. Apenas dormia. Cena 10 No decorrer dos dias, Pablo percebera que o quarto do casal era
constantemente fechado. Diariamente quando se levantava ia direto ao quarto saber se estava aberto. Ricardo viajara, segundo a prima. Mas, nem notícia mandava à esposa? Apenas vira quando recebera um cartão postal de Frankfurt, talvez fosse dele. Cena 11 Numa manhã, ela se esqueceu de fechar o quarto. Pablo não resistiu quando Ângela, nua, agarrou-se ao seu corpo ainda molhado do banho. Cena 12 Sob o céu nublado, uma maca com o cadáver de Pablo era levada em direção a uma ambulância. O repórter entrevistava o carteiro. “Quando cheguei hoje pela manhã à Fazenda Amoré que ia deixar as cartas e as encomendas na porta da casa de seu Ricardo, ouvi um disparo. Aí liguei imediatamente pra polícia.” À porta do quarto, Ângela banhada em sangue marcando a camisola branca que vestia. “Não encostem perto de mim. E deixem meu marido em paz!” Numa cadeira de balanço um cadáver envolto em panos olhava fixamente o horizonte.
PEDRO FERNANDES DE O. NETO é de 1985. Nascido em Lajes, Rio Grande do Norte. Atualmente divide sua geografia pessoal entre Natal e Mossoró. Tem mestrado em Letras pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, onde defendeu Retratos para a construção da identidade feminina na prosa de José Saramago (ainda inédito). Em 2008, graduou-se em Letras com habilitação em Língua Portuguesa pela Faculdade de Letras e Artes na mesma universidade em que fez mestrado, defendendo o ensaio O ser em O conto da ilha desconhecida diante do ser sartriano (também inédito). Foi editor do jornaleco Trabuco. É autor de Sertanices – livro de poemas (inédito) – e do e-book Palavras de pedra e cal – poesia. Escreve seu novo livro, Bardos. É editor da revista eletrônica de poesia 7faces. Escreve para o blog Letras in.verso e re.verso. Coordena o projeto Um caderno para Saramago. E escreve constantemente para os jornais do estado, tendo publicações no jornal De Fato, O Mossoroense, Correio da Tarde e Tribuna do Norte.
Primeira: Sofrida. Esta seria a palavra que usaria para descrever A. quando encontrou E., que também já havia sofrido todas nos seus 33 anos. Mesma idade de A. Foi amor à primeira vista. Bem nos moldes da canção de Chico César. Não é necessário dizer que A. e E. passaram a andar por aí abraçados, tomavam café todas as tardes na livraria ao som das sinfonias de Bach, liam poesias de Florbela, Pessoa, Bandeira, Cecília, Vinícius. Não gostavam muito de Drummond, nem de Cabral, nem de Gullar, pois eram reflexivos demais. Terminavam as noites ao som de Chico César, regado a vinho branco. Uma história dessas merece uma noite de chuva bem fininha, uma cama branca com lençóis bem limpinhos. Que não precisam ser, os lençóis, de cetim porque esquentam muito. Em Mossoró, um amor como o de A. e E. acontece sob lençóis de algodão. Uma história linda! Quase nel mezzo del camin. Um dia, outro dia, depois mais outro e o amor continuava fluindo. Quase se eternizando. Ontem, encontrei E. na esquina do Mercado Central. Perguntei-lhe por A. Rapaz, eu não lhe conto. Encontrei uma mina linda. Gata. De vero. Quando eu botei os olhos nela... supimba! Tá morando lá em casa. E A.? Insisti, mas já com vontade de ficar por aí na conversa. Ah, conheceu um rapaz que vendia enciclopédias e assinaturas de revistas e foi morar com ele. Em Natal. No próximo feriado talvez eu vá com minha gata passar o final de semana com eles. Segunda E. andava cabisbaixo e tristonho nos últimos dias, quando o encontrei saindo do Shooping Liberdade. Quase não me via. Pensei até que não quisesse falar comigo. Mas, se penso que sou amigo, insisto. Oi, E., tudo bem? Terminou a pós-graduação em Campinas?
Defendeu a tese? Que nada, rapaz! Não deu. Ia tudo muito bem, mas caí na besteira de me apaixonar pelos olhos verdes de minha orientadora e aí, você sabe como é. Tava certo que ela estava na minha. Uma mulher muito fina, educada, inteligente. Demais. PhD nos States! Vontade de trazê-la para conhecer as praias do Nordeste etc. e tal. Declarei meu amor. Assim, assado. No ato. Rapaz, deu uma dispensa geral! Vixe, que arranha! Tranquei o curso e agora estou procurando uma universidade nordestina que aceite os créditos pagos, para que possa terminar o curso antes do prazo final dado a mim pela empresa. E com você, tudo bem? Tudo bem. Vamos tocar um cafezinho no Bagdá? Terceira A. é uma amiga virtual. Chateio com ela num chat na internet. Faz tempo. No início, teclávamos quase todas as noites. Evitávamos os papos sobre idade, características físicas... enfim, essas coisas que muitos perguntam logo na primeira vez. O chat reúne pessoas com mais de 30 anos. Procurávamos companhia para a noite insone. As afinidades virtuais entre mim e A. foram crescendo e, tanto ela quanto eu, agora, falamos sobre nossas experiências emocionais. A minha amiga virtual contou-me que andara se apaixonando por um aluno. Ela o conhecera num curso. Ficara muito perturbada quando ele confessara que estava gostando dela. Naquele momento, nada pudera fazer, pois estava morando, fazia tempo, com um colega que conhecera nos Estados Unidos durante o seu doutorado. Era preciso primeiro definir a situação. Conversaram e sentiram que a relação já não se justificava. Cada um partiu para o seu lado. Mas quando apareceu no mestrado, soubera que sua paixão tinha vindo embora para o Nordeste. A. fala reservadamente para Anjo 45: As praias daí são lindas, né. Anjo 45 fala reservadamente para A: Sim. É um mar que não acaba mais. E quando os golfinhos resolvem se exibir... rsrs A. fala reservadamente para Anjo 45: Qualquer dia apareço. Vc vai me conhecer. Anjo 45 fala reservadamente para A.: Será um prazer. Mas tenho que dormir porque amanhã trabalho cedo. Bjsss. Fui. A. fala reservadamente para Anjo 45: Há braços. Tô indo, também. A. sai da sala. Anjo 45 sai da sala. Última Canoa quebrada, quem é daqui de Mossoró, sabe como é. Também
sei, apesar do tempo que por lá não ando. Mas lembro que na última vez encontrei, durante o café da manhã, na pousada do francês, uma mulher que me parecia familiar. Puxei conversa, pois conversador, sou. Oi... Pensei que não ia falar comigo. Esse pessoal de Mossoró se faz difícil demais. Tudo bem? Sorriu-me com gosto de lembranças. Ah, tô lembrado, sim. Como vai? Agora tô indo. Tava morando em Natal. Sabe, aquele cara que vendia livros? Era meu namorado. Passamos um tempo legal juntos. Tava amando, cara! Mas um dia, ele foi ao Recife para acertar as contas com o distribuidor e acabou ficando por lá. Ligou depois e falou que não dava mais. Tinha resolvido ficar. Tá morando em Olinda. Com uma amiga minha. Eu havia dado o endereço e tudo para ela aparecer por lá. Sacou?! Fazer o quê? Vim prá Canoa e daqui não saio até arranjar um gringo que me leve prá Suíça. Fazer o quê?! Pois é. Acontece. Valeu, mas tô indo. Mossoró me aguarda. Dê lembranças ao seu amigo E..
ALUÍSIO BARROS DE OLIVEIRA – (Apodi-RN, 1959). É poeta e professor de literatura brasileira. Já publicou os seguintes livros de poesia: Pássaro Oculto, Canção fora de tom & outros poemas, Anjo Torto e Não Toque, Alice. Participação em obras coletivas: Folhas avulsas – Antologia do Primeiro Concurso Universitário de Poesia Livre Brasil - Portuga l (1992), da PUC-SP, e Antologia Nacional de Poesia 1998, da Universidade Santa Úrsula, do Rio de Janeiro. Inédito: Dos Amores que Beiram os Meus Caminhos (poesia). Atualmente, é mestrando no Programa de Pós-graduação em Estudos da Linguagem, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).
Ela sempre soube que a cidade era feita de milhares de histórias e estórias. Sempre soube que fazia parte disto também. Que todos os dias pessoas se encontravam e se perdiam. Ela sempre soube disto... Era véspera do aniversário dela. 32 anos. Voltava do trabalho com presa de chegar em casa. No meio da multidão de perdidos que vem e que vão, ele se virou e olhou para ela. Olhar assustado. 24 anos, talvez. Ela sorri. Pensa que o conhece. Não conhece. Mas iria conhecer... São Paulo, 18 horas, coletivo. A proximidade é obrigatória. A conversa não. Mas conversam. E riem. E contam de si mais que o normal. E ficam perto demais, por tempo demais. Ela sente o coração dele batendo. Hoje ela pensa que era o dela mesmo. Tenta se afastar, mas não o faz. Livres da multidão devem seguir rumos diferentes, mas não o fazem. Ele a acompanha. Ela deixa. Tarde demais pergunta o que já devia ter visto desde o começo, mas não viu. Agora ela já sabe, mas precisa conversar mais. Os dois precisavam conversar mais.
E no dia seguinte. E no outro também. E precisavam se beijar. E falar. E se ver. E voltaram a se falar. E voltaram a se ver. E voltaram a se beijar. Ela se perdeu e se encontrou na boca dele. Na boca dele, ela se sentia mulher, encontrava-se mesmo sabendo se perder. Pouco importava o que viesse, já não podiam voltar atrás. Desde o primeiro minuto não podiam mais. Na hora certa, o fim viria do jeito que foi o começo: alheio as suas vontades. Mais forte do que eles. Como que fazendo parte do cotidiano da cidade que acontece sem que possamos intervir. Mas eles iriam ficar, doces, na lembrança um do outro. Ficariam nas estações dos coletivos. Ficariam nas manhãs em que são lavadas as escadas da Ladeira da Memória. Ficariam nas tardes do Largo do Arouche. Ficariam na noite chuvosa do guarda-chuva de bolinhas. Ficariam nas canções quase feitas para os dois. Ficariam nas luzes da Avenida Ipiranga, no começo da noite. Ficariam no cheiro de chuva que sobe do Asfalto da Avenida São João. Ela agora tinha certeza: Ela era parte daquele chão cinza. Desde então, ela amou a cidade. Amou seus prédios escuros e suas ruas sujas. Amou aquela gente que não se olha nos olhos e não se conhece. Desde aquele dia, ela amou aquela cidade, pois a cidade escondia sua história também.
ELIANA KLAS é Secretária Graduada na Universidade Nove de Julho. Sempre quis ser secretária, nunca pensou em ser escritora. Não sabe se é contista ou cronista. Sabe apenas que escrever é algo libertador. Por isto escreve.
À Sueli Justino, a quem desejo a imortalidade...
Para cada criança, parece existir um tipo de medo. Medo muda muito de maneira, pode assumir qualquer forma. Luzia, como todas as crianças, tinha seu medo e, por ser como todas as meninas, só não tinha medo de ter medo. Assumia-o com toda coragem. O problema era que seu medo particular era um tanto quanto singular para uma criança. Tinha medo de morrer antes de virar gente grande. Por isso, nunca falava de morte... Nunca! Nunca assistia a filmes de terror, nunca ouvia histórias de assombração, nunca abria os olhos no escuro. Ir a velórios ou a cemitérios, então, nem se fale. Nem passava perto de funerária ou IML. A menina evitava mesmo a morte. Aliás, ninguém falava sobre esse assunto. Pronto, não está mais aqui quem falou. Para se garantir, sempre que podia conferia o pulso, conferia o coração. Sabia se o coração parasse de bater, era sinal de que a “indesejada das gentes” havia chegado. Cruzes! Também, partir assim tão novinha era uma baita de uma injustiça. Não seria mocinha, nem teria uma juventude, muito menos uma velhice. Sem filhos, sem netos, sem bisnetos. Nada. Seria nada. Que triste não existir. Para quem nunca existiu isso é fácil, mas para quem pegou gosto em existir é muito duro. E ela era viva. Era muito viva. Tão viva, que fazia mesmo pena em não vê-la viver. Quando pensava em não existir, chorava. Chorava. Chorava que se indignava. Afinal, que falta do que fazer, tanta gente por aí praticando a crueldade, porque que a visitante inconveniente não carregava esses que aparecem na TV: os procurados, os bandidos, os malvados... Ela era uma menina tão boa, obedecia aos pais, fazia as tarefas de casa, não respondia à professora, cuidava das irmãs, rezava antes de dormir, não dizia palavrões, ia à missa, recebia a comunhão. Não, não merecia, não! Todos os dias, ao deitar, agradecia a Deus, pois ainda estava viva. Todos os dias, também pedia a Ele que aquele anjo ceifador nunca aparecesse na sua frente. Já que isto seria o fim. Credo! Embora não gostasse de ouvir sobre ... hum...hum... Vez ou outra acontecia de um, sabe? Hora ou outra ela chega e se torna um assunto inevitável. As pessoas sentem certa necessidade de dizer alguma coisa a respeito, para amansar a braveza do silêncio que as invade... “Pobre coitado, era um bom moço!”... “Quem sofre é quem fica!” ... “Está em paz agora!”...
Acontece que uma tia da sua mãe, de bem velhinha, dormindo, passou desta para melhor. Dizem que esta é a melhor maneira, dizem, mas para aquela menina não existia a melhor maneira. Ficou mesmo muito apavorada com a ideia, já pensou assim, dormindo? Como será? A pessoa pode ficar aprisionada num sonho, paralisada para sempre numa mesma cena, numa mesma imagem... Um pesadelo! Desde, então, pegou a mania de dormir com as mãos cruzadas por sobre o peito. Bem do lado direito. Assim, cada vez que acordasse poderia conferir se o coração ainda batia. Sorte que sempre batia. Ufa! Graças a Deus... Estava viva! Certa noite, a garota despertou muito lentamente, aos poucos foi dando conta de que estava se acordando, e, como de costume, foi conferir o coraçãozinho. O que? Não! Não achava... Ele... Não batia! Num único pulo saltou do alto do beliche onde dormia e voou até o quarto dos pais: “Eu fui, eu fui, tá me levando... Pai! Não tá batendo... meu coração... Pai...” Quem quase teve um troço foi o pai, tamanho tinha sido o susto. Mas logo entendeu o apavoro da filha, se recompôs e tentando acalmá-la... “Pensa, filha, se você tivesse ido de vez teria se levantado lá do alto do beliche? Teria vindo até aqui no meu quarto? Teria me dito tudo isso?”. Verdade. A menina riu e voltou ao seu quarto, mas a ideia a perseguia... Agora mais do que nunca tinha de arranjar uma saída e descobrir outra técnica para saber quando se fosse de fato. Luzia pensou... Pensou por muitos dias, muitos meses, até anos. Tanto que pensou que começou a achar tudo aquilo uma bobagem, uma irrelevância, pois sendo isso um mistério, não haveria ela, uma menina tão medrosa, de solucioná-lo assim... Mas de uma coisa ela não abria mão. Sempre dormiria coberta dos pés a cabeça, não importava se frio ou se calor... Ali bem presinho, forrado junto ao corpo, pois assim se sentia segura. Certa vez, faltou luz e todos foram dormir mais cedo. No escuro. Tudo escuro. Luzia foi logo se enrolar todinha com o cobertor, mas não tinha sono. De tanto que cerrou os olhos, ficou com dor e resolveu abri-los e foi assim que ela viu. Luzia, pasmem, luzia! Parecia um anjo do céu. Sentira-se reconfortada, em paz. Tinha sido acometida por uma coragem soberana, não temia absolutamente nada.
ARLETE MENDES COSTA mora em São Paulo. É mestre em Letras. Professora de Língua Portuguesa na rede municipal de ensino. Tem participado de alguns concursos literários e, atualmente, está engajada num projeto de escrita coletiva de crônicas, que são veiculadas no blog “aspiniras e urubus”: www.aspirinasurubus.blogspot.com.
Uma forte dor fez com que abrisse os olhos. O sol, que atravessava a janela, ofendeu a vista fragilizada pela longa noite de sono. Logo percebeu que o desconforto o qual o fizera despertar vinha do seu braço esquerdo; devia ter dormido por algum tempo sobre ele ou algo que o valha. Sua cabeça pesava fácil uns quinhentos quilos naquela manhã. Sofreu e se esforçou para conseguir levantá-la. Depois de três tentativas fracassadas, atingiu seu objetivo. Sentou-se na cama. Alongou-se brevemente e, por sentir um gosto escroto em sua boca, lançou a mão direita em busca da velha garrafa d'água que mantinha por ali em algum lugar. Tateou o vazio por instantes, mas logo a encontrou. Retirou a tampa, deu uma única – porém longa – golada. O líquido saciou a sede, deu fim ao gosto maldito, mas também serviu para lembrá-lo que já era hora de comprar uma nova garrafa; aquela, originalmente usada para comportar a Vodka que um amigo o dera, já estava velha e fedida. João decidiu então se levantar, mas antes que a ordem transmitida por seu cérebro chegasse às pernas e braços para que ambos pudessem alavancá-lo em direção ao mundo exterior à sua velha cama, uma breve, mas pertinente, dúvida surgiu em sua cabeça: o que aconteceu ontem à noite após as várias doses de cowboy e, claro, a maldita discussão que tivera com aquela cortesã? Podia ser obra do uísque, ou mesmo mais uma prova de que sua memória não valia se quer uma casca de ferida, mas aquele espaço de tempo entre a última imagem da noite passada que recordava bem e o momento em que seu braço latejante fez com que ele acordasse era simplesmente nulo. Resolveu, por hora, ficar ali mesmo. Talvez o silêncio de seu apartamento fosse útil para ajudá-lo a recordar. Acendeu um cigarro, pois aquilo faria dele uma pessoa mais concentrada. A fumaça subia em direção à sua testa e, depois, dissipava-se ao teto. Seus olhos começaram a arder; decidiu então lançar a fumaça por meio de um turbilhão horizontal na direção da TV que se mantinha desligada à sua frente. Assim, resolveu o problema das vistas lacrimejantes. Mas os detalhes os quais buscava lembrar não tornaram à luz das suas lembranças. Pendeu seu corpo para trás até que suas costas tocaram no colchão. E assim
ficou. Olhou vagamente para o teto e percebeu que o mofo dava um ar asqueroso àquele ambiente. Só de observar, podia sentir a umidade contida naquele pedaço de concreto. Logo se lembrou da casa da vó Inês; aquele mausoléu fedia a mofo como sua velha e moribunda dona. Mas aqueles pensamentos não o ajudariam a encontrar a resposta que buscava. O que foi que aconteceu? Perguntava-se seguidamente se ele teria sido assim tão idiota ao ponto de matar uma vagaba como aquela. Levou as mãos ao rosto sujo que emanava um odor próximo a uma mistura de cigarro, bafo e uísque amanhecido. Quando abaixou o braço esquerdo de volta à sua posição de origem, reparou três feridas abertas nas costas de sua mão. Ao vislumbrálas, uma breve imagem veio como um flash: Ele, João, acertara uma sequência de 4 socos que alternaram entre a maçã do rosto, as costelas, o estômago e a boca da cortesã. Este último levou a esquerda dele de encontro aos dentes da maldita, o que ocasionou aqueles cortes. Colocou sobre a cabeça as duas mãos em um movimento que expressava muito bem sua crescente agonia. Recordar, momento a momento, da noite passada serviria para ajudá-lo a compreender aquela incógnita, no entanto, lembrar de que ele havia massacrado – com diretos e cruzados – uma prostituta, não era algo realmente confortador. Passou a ficar inquieto, lamurioso, desolado. Teria a sua vida sido condenada por uma noite de sexo, álcool e imbecilidades? Não era possível! Rolou para o lado esquerdo da cama, depois para o direito. Descobriu que a melhor posição naquele colchão, que fedia como uma poça fresca de vômito, era a de bruços, pois assim sua respiração tornava-se quase impossível e tal aflição conseguia sobrepor-se àquela que o acompanhava agora. Após alguns instantes, girou seu corpo novamente para a direita. Algo estranho despertou sua atenção: sentiu que havia um objeto duro logo abaixo da coberta que se mantinha perfeitamente desarrumada. No primeiro momento, desconfiou que pudesse ser o controle da TV – um conjunto de botões arrebentados por mordiscadas de baratas e pilhas imprestáveis. Sofreu um pouco para conseguir chegar até o suposto controle, por conta do emaranhado de pano que o envolvia. Quando seus dedos tocaram o objeto, logo percebeu que o mesmo era de metal. Como assim? Arrastou a massa metálica, que era consideravelmente pesada, para fora da coberta. Aquela imagem serviu como um novo prego para ser cravado em seu caixão, ou melhor, uma nova década para ser acumulada à sua pena na prisão. Era a sua maldita 765! Buscou se lembrar de ter usado aquela arma na noite passada, mas isso não foi possível. Mesmo assim, estava muito claro para ele: havia, sim, despachado aquela biscate, a qual atendia pela graça de Valda. E se já tiverem encontrado o corpo? Mesmo com uma vontade desesperadora de juntar seus trapos e meter o pé dali, concluiu que o melhor a se fazer seria ficar onde estava até botar as ideias no eixo. A rua poderia trazer-lhe o benefício da liberdade temporária: se tudo
corresse bem em sua fuga daria para começar uma nova vida em outro estado. Mas seria arriscado demais botar sua feia e conhecida cara na cidade. Um impulso o fez sentar-se novamente na cama. Lá ficou, estático, por mais um ou dois minutos. Por que havia cometido aquele vacilo? Logo ele que nunca fora pego por qualquer um dos seus “desvios de conduta”. Inconformado com seu destino iminente, colou na têmpora a ponta fria de sua arma. Mas não disparou. A coragem que em outros momentos era vista como uma de suas principais virtudes, devia ter ido até a esquina para buscar alguns cigarros. Ali, naquele momento, era apenas ele e o fedor podre da cadeia que já podia até sentir. Seu estado, por conta de tudo aquilo, era de total alerta. Esperava, a qualquer instante, ser surpreendido por algum investigador que, acompanhado por mais uns três tiras, arrombaria sua porta e daria voz de prisão com armas enferrujadas apontadas para sua cabeça. Mas contrariando suas expectativas de que essa indesejada visita viria pela porta da sala, um breve e estridente som veio surpreendentemente do seu banheiro. Como? João, com a 765 rapidamente direcionada para lá, calculou apressadamente que não seria possível uma pessoa normal entrar em seu apartamento justo pela pequena e inoperante janela do banheiro. Contudo, já que o som se repetira e revelara-se bem real, e não apenas uma obra de sua imaginação, ele então aceitou a hipótese do invasor ter aproveitado seu sono pesado pela bebedeira e, durante a madrugada, adentrado ali. Como e quando já não eram mais importantes àquela hora. Assim, João fixou sua mira na porta à espera daquele que poderia bem ser um tira, ou mesmo um cretino amigo da finada que viera então cobrar a dívida sobre sua “inestimável” perda. Passaram-se exatos quarenta e cinco eternos segundos até o momento em que a porta foi aberta. Pensou em disparar antes mesmo que pudesse entender o que estava acontecendo ali, mas logo tirou a ideia de sua cabeça, pois ela poderia complicar ainda mais seu atual status de criminoso. Porém, como uma obra maldita do destino, a imagem que veio a seguir foi capaz de neutralizar todo e qualquer vestígio de ação do seu dedo indicador que se mantinha junto ao gatilho. Enrolada em uma toalha com algumas manchas amareladas e outras vermelhas, do que mais parecia ser sangue que qualquer outra coisa, estava ela, Valda, mais viva e asquerosa do que nunca. Toda molhada e com um ar de quem acabara de sair do banho – coisa que realmente fizera -, ela olhou para João, primeiro, com um leve espanto e, depois, acompanhada por um grande sorriso o qual mostrava que, daquela boca grande e carnuda, alguns dentes haviam sumido. - Oh, meu gostosão! Então resolveu tirar essa sua máquina de prazer daquela cama fedida? Já era hora, disse ela. -Ah, antes que eu me esqueça... Nossa noite foi ótima, regada a
muito amor e brigas dignas de um Oscar, mas você pegou um pouco pesado. Eu até curto esse lance mais selvagem, sabe? Mas é que essas manchas roxas horrorosas levarão um bom tempo pra sumir; sem contar os três dentes que perdi. Mas estes, ainda bem, eu consegui recuperar pra caso o dentista consiga colar de volta. A questão é que, por conta de tudo isso, terei que dar algum desconto para meus futuros clientes. Mas tá de boa! Não tenho do que reclamar e você sabe do que estou falando, não sabe? Meu cavalão! João, atônito, deu as costas à Valda e caminhou até sua cozinha. Abriu o armário sobre a pia. Uísque era o que procurava, e logo encontrou. Aquela garrafa custava uma nota: ganhara de presente de um velho companheiro. Prometeu, e se fez cumprir, que ela seria aberta apenas em um momento que valesse todo o esforço do mundo. Preparou, após abri-la, logo duas doses de um belo cowboy. Secou o copo, sussurrou algo do tipo “merda Valda” e disparou quatro vezes na direção do banheiro.
RAONI GOULÃO HENRIQUE é natural de Pirenópolis, Goiás. Atualmente, mora em Anápolis, Goiás. É graduado em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda – e atua em uma agência de publicidade como redator. Há dois anos, escreve contos que são postados em seu blog.
[Universo] - Anchieta Rolim
Busco por meio da palavra isto de inventividade, de prosa nas pontas dos dedos, do pior da saudade – o difícil é saber que, amanhã, ontem será anteontem. Não conheço o mundo. Hoje olhei ponte, esse artifício estranho no jeito em que termina. O fim é sempre mais um começo. Vertigem: amor é arrebentação. Inventividade e distorções nas formas que amo: gravação direta em metal feita com instrumento cortante de ponta, o buril. Amor impessoal auto-explicativo: gravura, para mim, auto-explicativa do século XVIII: gravura em metal retratando ferramentas para gravura em metal. Prosa nas pontas dos dedos, sim. Tudo se insinua. Encostei o queixo no mármore e era frio. Sou distraída, falo muito, sou melhor do que metal. Sero te amavi. Haverá um dia em que eu cavarei, farei força, riscarei, irei às investidas, persistindo na gravação da minha memória de um tempo – haverá um dia que não hoje. Espero bem. Sinto fome melhor ainda – o mundo me conheceu voraz. Agora é de memória não precisada que penso: o meu filho chamará Cristóvão, por causa do São Cristóvão que nunca vi, por causa de 1423. Dispersão da ingenuidade atemporal – tenho me permitido aprender com os bichos porque bichos não fazem livros. No século XVII corri atrás de uma vespa, veja bem, corri atrás do que voa. Espiei a vespa parar sobre uma folha de árvore e ficar quieta, dada como morta. Mas a experiência precisa ser continuada: depois de um século seguindo vespas, formigas e abelhas, consegui algo que não fosse perder o bicho de vista: espiei a morte. E isso é de uma intimidade tão grande que é bonito e só serve para ser esplendor. Sobre dor: a gente esquece como é doer. Sobre intimidade: intimidade, para mim, é de uma grande coragem porque eu tenho medo de romper o peito das coisas. Encontraria muito mais coragem no século XVIII, no entanto. E apenas ainda mais tarde eu voaria do que corre. Em minutos – entrevejo docilidade que é mais como uma saudade que, coração em riste, promove aceitação e meio-olhar: se atendo sempre a uma das metades de um rosto, na dúvida de qual metade atar primeiro em si. Dom bonito este de ficar em dúvida. Queda pouca a de não amar a completude de um rosto. Que vulnerabilidade é a do rosto? A materialidade é milagre de repente. O rosto é repleto de impensável, de recortes – rosto escandaliza, olha, lambe, cheira. Eu gosto da matéria devido à minha capacidade de amar, com amor febril, a espessura dela. E olhar rostos me espanta porque é – assustadoramente – olhar o próprio reflexo um pouco distorcido. Domingo à tarde vou ao supermercado comprar maçãs. Prefiro as
nacionais às estrangeiras. Os estrangeiros fazem maçãs mais bonitas, nós fazemos maçãs mais gostosas. Um menino, ao lado da mãe que empurra um carrinho de compras, tenta ler um panfleto que fala de palhaços. Primeiramente um panfleto, chego perto dele e então é um panfleto de palhaços. O esforço é grande e o menino cria dicionário próprio. A mãe anda depressa extrato de tomate milho enlatado palmito depois as pizzas congeladas as malditas pizzas que o Ricardo come e mais leite feijão arroz farinha de trigo manteiga sal e ovos e frutas que a garotada precisa comer para crescer saudável. O menino, lendo enquanto anda, aplaca o desespero gradativo – diz cada vez mais forte “Le”, abana a cabeça, bate o pé cada vez com mais força no chão, aproxima o panfleto do rosto como se fosse um míope, diz mais uma vez “Le”, grita um “Ca” desgovernado, sente que venceu a palavra e fala miudinho levantando seu porta-estandarte de guerra – “Leleca”. O menino anda, sem tirar os olhos do papel, cada vez mais depressa para acompanhar a mãe. Adio as maçãs pelos próximos oito minutos. O menino lê “Leleca e Peteca”, a mãe não ouve. Mas o preço do feijão subiu daqui a pouco ninguém mais vai poder ter feijão em casa isso é um absurdo é um abuso depois eles reclamam quando um pai de família rouba saco de feijão para poder dar de comer aos filhos. O panfleto, além de ser de palhaços, anuncia um circo. Empalideço. É como se em mim um espelho oculto estivesse a ser descoberto – sei o minuto exato em que empalideço ou fico corada e sei como fico pálida: toda persona camuflada de breu. A vida no circo é viver boquiaberta, sempre invejei engolidores de espada. O instante torna-se atonal e eu não o compreendo, eu que sou toda clássica – o instante rompe comigo. As melhores maçãs ainda não foram feitas, as melhores maçãs estão heróicas neste instante por ainda não terem sido inventadas, por ainda não terem entrado em contato e se dado conta de sua própria adstringência. É tão natural e é tão sem medo. Choro diante das belezas que não são íntimas, que me visitam de vez em quando, que me utilizam de questão. E não sei se as utilizo de resposta, mas acho que não: eu choro é diante da coisa exposta de tão secreta. Chegamos ao grau extremo e indomável de aceitabilidade: aceito o menino a ponto de me espantar com a sua existência. Eu e o menino. Ele se espanta com as palavras, é um designado, tem desejo rente ao corpo – o menino é intransponível e eu o vivo no aqui e agora. Só a desarmonia do aqui e agora me acolhe. Que fazer da lucidez, deste medo de ter um nome? Que fazer de ser gente? Ser gente é ser esta angústia? Como escrever um lince? No sentido de forma, o ovo ou a galinha? Borboleta chora quando sai da crisálida? Quantos mistérios há numa tarde? Quando o nome anula? Como apreender a completude das coisas? Não ser dói? Como empreender a espera livre? Quando a espera não é cobrança silenciosa? O coreto é anunciação ou iminência de vazio? E a rudeza, que fazer desse sentimento
desnudo? Quando sair à rua? Como – livre de entonações – explicar a entonação de uma pergunta? Que entonação usou o Deus para criar o mundo? Qual a entonação mais terna para se dizer “faça-se a luz”? Qual dos dias da criação anoiteceu primeiro? – questionamentos urgentes de pecados capitais. De repente pensei em escritos abordando perguntas, outros escritos abordando a primeira abordagem das perguntas, um ciclo perfeito e eterno, mas escrever é de uma exigência sem nome. Escrever é irreconhecível, a própria escrita é fagulha que não cabe, guizos do que transborda, tautologia dos últimos oito minutos aglutinados em instante. Necessito da salvação e ela precisa vir depressa. Que me entendam bem: sou alegre, saio à revelia. Liberdade eu aprendo, nasci com a alma irrefreável, minha garantia de que, sim, talvez esteja viva, caída na vida que corre solta. A minha liberdade versus a liberdade da vida entram em conflito e trata-se de um conflito que me deixa órfã. A orfandade é geradora dos meus contatos com as estridências e de meus extravios desesperados, porque é por meio de meu contato com as estridências que experimento ruínas – já eu disse isso a um homem. Sobre o homem: algumas peles são convidativas à gravura em relevo. Outras peles são boas de sopro. As peles boas de sopro ardem fácil. As boas de gravura em relevo erguem sinuosos castelos como quem ergue a voz. O meu estado de permanente iminência tem me tirado o gosto doce da boca para guardar – a sete chaves – o gosto na memória, e é aí que, para não esquecer, escrevo numa das mãos: ter um relicário é completude, amabilidade de vazio, existência toda sendo. (E, como nunca, me parece que escrever na pele é vaidade de mulher-relicário, graça de mulher que desmorona pesada). Em contato com o homem – há mistério nas visitações e há o inesperado. Quando chegaste com o intuito único de te esvaziar, contemplei teu desapego, te reparei minúcias e te esculpi em mármore. Não fiz os teus olhos de grandes oportunidades, de espessuras delgadas. Expliquei falando baixinho e em tom alegre que não há cegueira em ti, mas que tens o olhar desabitado. Disseste que preferias ser sombra ou a “Mulher com gravata preta”. Eu disse que não poderias ser a pintura de Modigliani porque a tua expressão era mais nebulosa e tua boca era menos pesada – uma boca que quase flutua em um rosto. E disse que não poderias ser sombra porque a sombra é uma ausência sempre menor do que a tua – independente de a sombra ser de uma planta rala ou de um arranha-céu, o importante é que o tamanho da sombra não mensura a ausência da sombra. Aí eu esqueci as retenções e soltei os cabelos. E tu me disseste que, para certas visitações, não há alento. O homem compreende bem quando fuma cigarros com força. Posso
falar com o homem quando quiser, ele parece ouvir. Em pleno cansaço de ser gente ele me deu um caderninho de desenhos. (Para mim tanto faz dizer que ele me deu ou que tu me deste). Gosto tanto da idéia de ter um caderninho de desenhos que não desenho no caderninho, ele serve para olhar – meu amor impessoal pelo vazio. O homem é Babel desmoronando. Se eu soubesse desenhar estaria suprida e talvez não precisasse escrever. Queria poder desenhar e dizer depois, enfeitiçada: “Só sei falar assim”. Quando menina gostava de desenhar no escuro, fazia disso liberdade para ser. Mas não, desenhar no escuro é mistério duas vezes: dos traços incomunicados – sim, tenho consciência de que escrevi “incomunicados”, sim, é isso mesmo, quer que eu grite? Vou gritar: INCOMUNICADOS – e do escuro. Eu vivenciara o ilegível superior a uma mulher dizendo que viu Nossa Senhora. Não desenho mais por causa da mania de enfeites, por causa da mania de não me conformar com a obra concluída, de não acreditar na conclusão da obra, de buscar transpor a obra ao inviolável de ser uma obra. O homem inspira: tu deverias colecionar desimportâncias, diz. Expira: faço poemas por pura expiração. Em nome do desafio, não termino. Não tenho o intermédio para despedir palavra. Que intermédio é preciso para despedir ocultismo? Só paro quando estiver árida, que esse estado eu conheço e não é de grandeza difícil. Só uma terra devastada por uma bomba nuclear está livre dos acréscimos: terra fadada, século XXX. É disto tudo que estou perto: da beleza como risco. Não falo de estética. (Coisas de peixes, palavras diminuindo em tom de segredo, algo de ficar perto do chão, uma maçã em algum lugar, é que não lembro). No silêncio atravancado intervimos sendo. Não termino, escamoteio.
Eu sou a MARIA LUÍZA ASSUNÇÃO CHACON. Nasci no dia 11 de janeiro de 1991. Invento desde antes de ter sido alfabetizada. Minha mãe diz que eu usava palavras que não sabia significado. A alfabetização só muda no quesito registro. Sou estudante do curso de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Norte desde 2009. Cursar Letras tem os seus entraves – a gente fica chato demais, no mau sentido. No mais, não quero falar sobre escrita porque acho desimportante.
03:08 Estive um pouco ocupado estes tempos. Muitas angústias acabaram que por tornar meu cotidiano intragável. O ranger do tempo escravizou minha visão. Diversão e amores tornaram-se paradoxo. Castigo. Injúrias involuntárias tornaram-se compulsivas. Xingamentos e traições. Bem vindo ao meu pesadelo. Um pouco de catástrofe no café da manhã te faz são. Sangue e uma xícara de café. Combinação extravagante. Alimenta a úlcera. Comer, cagar e xingar... cuspir em alguém, às vezes. Sei lá?! Deve ser o café sem açúcar. Ele deve estar me deixando amargo. Mentira! Minhas virtudes não se diluíram em algum vasilhame de água quente e escura. Devo ter deixado meu humor, o bom, em alguma de minhas aventuras noturnas e cheias de mentiras. Sempre me imagino diferente e esculpo em minutos uma personalidade descartável para noite de caça. Às vezes roubo algum traço marcante e desenvolvo o resto. Tenho vivido tantas vidas que nem sei se ando vivendo a minha. Há um calabouço em cada personalidade. Acabamos deixando parte de nós em cada uma dessas novas identidades. Por isso nunca fui ator. Quero dizer, ator profissional. Todos nós somos atores nessa desgraça. Somos fantoches, marionetes e ventríloquos. Enganamos e somos enganados a cada tragada. Odeio o cheiro de cigarro. Fui fumante, mas sempre odiei o cheiro da fumaça de cigarro. Nos últimos dias se tornou mais insuportável. Deve ser por causa da úlcera. Acordar tem sido um sacrifício a todo amanhecer. Ultimamente tenho vivido na merda. Acho que esta frase não poderia ser melhor para simplificar todo meu mau humor contra minha ininterrupta estadia neste plano de lixo aglomerado. Sonhei demais. Construí demais à base de idealizações. Acho que fiquei velho demais para sonhos. Devo ter enfraquecido com o tempo. Com o asco. Com a depravação do que antes achava coerente. As coisas andam sem gosto. Sem sal. Tudo anda tão descartável e apressado. Coma-Consumo. Cuspa-Consumo. Consuma-Consumo. Com sumo? Com fel, talvez?!?! Amargo como dever ser. Detestável e traiçoeiro com deve ser. Como tanta coisa que foi produzida para trazer a felicidade pode gerar o efeito inverso? Como tudo pode ser tirado de uma forma bruta e pura e depois ser atirado fora? Devíamos deixar tudo em sua devida estrutura inicial, em seu estado natural. Mas para quê? Fazer isso não gera lixo, então não gera dinheiro. Tarde demais para voltar atrás. Tarde demais para tantas coisas. Um sábio uma vez me disse que existe um sentido para a vida, isso me fez rir na sua cara. Um sábio, sujo e sem dentes, me disse que um dia tudo pode mudar... Continuei a rir de sua cara. Uma vez eu tive vontade de esmurrar este que se
disse ser sábio. Mas ele não se disse sábio, eu que o nomeei assim. Eu atribuí qualidade de sábio àquela figura decrépita e mal cheirosa. Tenho me mantido bêbado. Tem sido interessante. Mas acho que estou esperando um sábio me convencer do contrário. A lucidez é uma virtude? Acho que não... o torpor do álcool tem fantasiado este vale vazio, tem tornado meus dias menos cinzas. Mas não sei se quero um lugar melhor, tenho quase certeza disso. Um lugar melhor não me faria esquecer a úlcera. 00:52 Estes dias andei enfrentando alguns demônios. Uns interiores, outros a minha frente. Travei lutas severas. Devo ter perdido algum dente ou alguma outra parte. Algum sentimento ou verdade, talvez. Mas, se ficou para trás, que fique onde caiu e seja esmagado e desintegrado. Tenho vontade de cuspir na eternidade. Conceito malévolo. Mesquinho. Aprisionador. Tantas inverdades para buscar um descanso límpido. Tantos estupros. Basta dinheiro para um descanso regado a orgias celestes. Cada passo em direção ao horizonte parece te levar a algo destilado e sem pureza. Devo estar ficando velho. Deve ser isso. Talvez seja isso o porquê de não enxergar tantas cores. Um dégradé de cinza, talvez... apenas cinza, sem variações de tom! cinza e sem formas complexas. Sem variáveis! Sem Incógnitas! Tudo passou. Veloz como o vento de mil furacões unos e maculado pela praga de existências malditas e malcheirosas. Tudo passou depressa demais. Rápido demais. Esquisito demais. Ainda não me acostumei com as mudanças. Ainda vivo com fantasmas de dez anos atrás. Talvez de vinte. Não sei. Apenas me conforto com tantas palavras gastas em um dicionário escasso e que ainda me surpreende quando acho algum significado novo para um sentimento velho. Anacrônico. Apático. Decrépito! As melhores palavras que já encontrei no dicionário. Nunca tinha encontrado uma trindade tão perfeita na qual pudesse me segurar ao seu significado. Minha trindade santa não me levará a nenhum paraíso cheio de anjos nus e pederastas, mas ela me trás um alívio dos que procuram a verdade. Interessante... encontrei conforto, também, em um livro. Em um único livro. Grosso, sujo e devorado por traças. Mas este não está imerso em simbolismos, metáforas e promessas de salvação e doutrina. Este meu livro me diz apenas características de como me sinto agora. Uma única palavra pode te colocar em estados diferentes de consciência. Não sei se algum dia a palavra “podre” vai servir para me traduzir. Mas um dia a palavra “merda” traduziu perfeitamente a úlcera. 02:21 Alguém pode me dizer como se mede a dor? Passei horas pensando sobre se dar à graduação de dor. Um teste empírico geraria certa
controvérsia, pois teria que ser gerado de algo experimental. Acho que eu não seria um ótimo sensor para medição de dor. Às vezes me pego lendo sobre assuntos aleatórios e acabo na sessão de torturas medievais. Minha cabeça por vezes apaga, e quando acordo estou lendo sobre guided cradle, forcas, mutilações, misericórdia, besta católica, KKKristo... acho que seria um bom carrasco. Não bom no sentido de generoso, filantropo. Filantropo nem tem como se encaixar com uma alcunha de carrasco. Mas se um dia for preciso... caso algum dia precise ser, serei um bom carrasco. Noites naquele limbo mal cheiroso e mofado me rendeu um conhecimento razoável sobre por fim de forma pouco dolorosa. Confesso que a decapitação me parece ser a mais misericordiosa. É rápida. Mas a visão de desmembramento choca demais. Mas qual o porquê das execuções públicas? Okay! Pode ser para provar que o executor cumpriu seu papel. Mas para isso não basta um aval médico dizendo que o sortudo partiu?! Não! Isso não basta! O problema é que todo mundo é sádico e mesquinho. Assistir a decadência de um, alimenta a ganância do outro. O desejo do controle. A eliminação da concorrência. Apropriar-se de tudo. Consumir tudo. O todo. Ambição demais. Sangue demais. Lucro demais. Andei vendo uns filmes de tortura. Eu sei até onde o vírus é capaz de chegar. Todos merecem uma morte justa. Pelo menos o último suspiro deve ser de alívio. Deve ser honrando. Honroso. Ninguém pode interferir nisso. É o último ato. O ápice do fim. É quando as cortinas se fecham. Ninguém deve roubar a cena nessa hora. Eu seria um bom carrasco. Respeitaria, como bom coadjuvante, o último brilho de uma estrela anônima que se extingue. 04:17 Desisti demais. Deve ser por isso que há tantas coisas inacabadas. Devo ter adormecido por tempo demais. Hoje, uma pilha de cobranças, que nem sei como adquiri, cai como avalanche sobre minhas costas. Sinto-me como Atlas que sustenta o céu por castigo. Não vou adequar minha condição a algo divino e colocar culpa num constructo. Foi o grande que quis. Estou azedo demais por dentro. Às vezes meio amargo. Mas agora azedo. Sinto isso quando respiro. É constante. Um azedume cortante. Vem do fundo e chega à garganta. Traz a azia. Me faz lembrar da úlcera e de quanto tudo é nojento. Acordar e dormir nesta condição. Uma acidez que corroí os ossos. Posso sentir. Um buraco de incertezas, aberto pelo ácido indigerível. Isso tudo por conta de muitas coisas inacabadas e arruinadas. Ando precisando cuidar melhor das víboras. As que crio em meu ventre estão despejando peçonha demais. Isso tem me tornado azedo. Ácido. Amargo, às vezes. Infértil demais para criar prisões instransponíveis. Existe um pântano de recordações enlameadas. Nele nada floresce. Nenhuma luz entra. Uma escuridão que rouba o brilho. Uma cegueira eternizada em um manancial
destrutivo. As víboras são as belas arquitetas do meu âmago. Preciso conter o avanço. Não quero ser consumido de dentro pra fora. Tenho a úlcera que me consome quase por completo. Devo conter as víboras. Fazer com que as noites eternas se iluminem com o brilho de um sol que ascende. Preciso eliminar a peçonha de mim. Tenho ficado tempo demais com meu basilísco, a mãe de todas as víboras. Amigo. Maldito e traiçoeiro amigo. Grã maior da decadência interior. O senhor das ruínas. O deus interior ao qual tenho que matar. Destruir a divindade caótica. O diabo interior. Reconstruir minha alma a partir de cacos, escamas e presas. Cuspir cada gota do veneno. Celebrar a libertação da parte que me torna aceitável. Terei que ser meu próprio Caim! Vamos lá pequenas vontades adormecidas, acordem, me suguem! Necessito do consumo de noites insalubres e hostis. Quero incinerar um mundo em reposta aos sonhos atropelados por um trator que semeou ilusões. Quero abandonar o passado nefasto, quero acordar em braços quentes e inomináveis... uma boca amarga de café e cigarro... um gole de cerveja a meia temperatura em um copo gasto, tanta poeira sobre lembranças e tanta vontade...vontades e desejos desgarrados: maldições que atormentam uma mente embriagada. Queria bem mais do que uma palavra de conforto. Quero bem mais do que promessas condicionadas a este estado terminal. Não preciso esperar amanhecer pra saber que tudo agora acaba.
CARLOS AUGUSTO PITOMBEIRA VIANA. Quase tudo o que escrevi deve ter surgido de alguma conversa de bar ou de monólogos que criei solitário tendo meu reflexo como espectador. Nada mais do que isso deve ser esperado. São sentimentos e vivências. Alguns meus, outros são invenções de noites insones, ou um ou outro que me apropriei por tanto se repetirem, por tanto machucarem. Nada espero, só escrevo, exponho o que sinto e o que me consome. Nem mais nem menos. Se não fossem em palavras, seria em forma de pornografia cinematográfica.
Carla Duarte
Eles chegaram armados até os dentes, vestidos com enormes vestes escuras, capuchos nas cabeças, as armas embainhadas. Pairava no ar uma leve nébula: aquela chuva miúda que molha sem nos darmos conta. Eu não tinha permissão para sair do quarto, mas isso não me impedia de olhar pela janela e observar tudo. Caminhavam a passos lentos pisando as folhas secas já amareladas levadas pelo vento e traziam um prisioneiro, amarrado e arrastado que não dava sinais de vida, provavelmente, devido à luta que travara para se libertar ou, simplesmente, já estava morto. Meu pai correu ao encontro dos seus homens, e o meu coração alarmou-se, senti um palpitar descontrolado. Sem fazer barulho, para não acordar Marie, uma dama de companhia em quem podia confiar em muitas situações, talvez não naquela, saí pé ante pé, usando apenas a fina camisa de dormir sobre a pele para a madrugada fria. O meu corpo arrepiado caminhava lentamente por entre ramos e pedras molhadas. Tropecei em algo, soltei um pequeno grito, agarrei o pé magoado – não era nada de grave. Percorri o longo caminho até o barracão avermelhado, iluminado, pelos archotes que ainda ardiam e onde se encontrava a presa recentemente capturada. À medida que avançava, o compasso do meu coração acelerava.
Por mais estranho que pareça, a porta do barracão encontrava-se entreaberta. Empurrei-a, não sem algum esforço. Os guardas, naquela noite, não me viram passar. Pareciam enfeitiçados. No fundo do barracão, uma luz trêmula mantinha-o na obscuridade. A palha espalhada pelo chão picava como agulhas meus pés descalços. Um rato enorme correu à minha frente, arrepiando-me; um cavalo relinchou algures no barracão, e uma sombra bailava ao ritmo trêmulo da chama do pequeno archote aceso no seu interior. Uma figura de braços atados a um poste de cabeça descaída sobre o peito, moveu-se. Recuei um pouco, mas um som, vindo daquela figura, fezme recuar ainda mais. Havia como que um gemido dentro da minha cabeça, um sussuro sem voz “Ajuda-me”... Uns olhos verdes procuraram os meus... Despertei, esfreguei os olhos – ainda era noite – e avistei, lá bem no alto, a lua quase redonda. Estremeci, tão real o sonho me parecera. Nunca esqueceria o momento que vi meu irmão amarrado e espacando pelos seus. Marie permanecia enroscada no cadeirão, adormecida e agarrada ao vestido que bordara. A linha rosa que correra para debaixo da minha cama ainda lá estava. Não consegui voltar a adormecer. Fixei o tecto ilumidado pelo luar. Movia-me na cama... Os primeiros raios do sol entraram pela janela e incidiram na face rosada de Marie, que franzira o nariz ao sentir o calor queimar-lhe a pele clara. Com um movimento ligeiro, tentou afastar o abrasar. Enquanto bocejava, dirigia-se à cama. Senti a sua mão procurar apoio no colchão de palha para apanhar a linha fugitiva. Mantive-me de olhos fechados. Pelo canto do olho, observei-a a arrumar a caixa de costura e a transportá-la debaixo do braço. Cantarolava baixinho. Ouvi os passos no assoalho de madeira a afastar-se e, ali estava, em cima do baú, o vestido rosa pálido que Marie levara as noites a bordar. De um salto, saí da cama, corri ao baú, deparei-me com as lindas flores e borboletas bordadas pela borda da saia. Uns folhos penderam das mangas, quando o peguei. Não resisti e provei-o. O chá encheu o quarto com um doce e fresco aroma a menta. Marie regressara com um tabuleiro de comida. Encheu uma chavena e passou-me um pedaço de pão quente. Com duas tranças, prendeu-me o cabelo no topo da cabeça, ajudoume a calçar as botas grosseiras e a trocar de vestido. Dirigimo-nos ao andar de baixo onde o Conde Castas, meu pai, aguardava pela minha chegada. Cumprimentou-me com um piscar de olhos e, com o braço em gancho, conduziu-me até a entrada principal onde aguardava a carruagem. Os homens carregavam ainda alguns caixotes para o seu interior. Era a minha 13ª primavera, seria motivo para festejar, mas, devido
aos acontecimentos recentes, não seria possível e a minha segurança estava destinada com aquela viagem para o castelo de Lorde George. A herdade estava a ser invadida por um inimigo sem face. Marie sentou-se na carruagem e estendeu-me a mão para ajudar a subir. Sentei-me no meio de duas almofadas. Algumas penas brancas esvoaçaram e caíram de leve a meus pés. Não eram confortáveis os bancos de madeira. A jornada ia ser longa, por entre vales e valetas estreitas, o mau tempo aproximava-se. Marie, estranhamente calada, olhava por entre a cortina. Não quis perturbar o seu silêncio. Fechei os olhos por momentos, o balanço da carruagem deixava-me agoniada. Começou a chover com intensidade, a chuva parecia querer invadir o abrigo e encharcar a quem estava no seu interior. Apesar da chuva, estava um dia abafado. O vestido que trazia de lã colava-me o corpo. O ritmo dos cascos dos cavalos que embatiam no solo acelerou. A noite chegou depressa. Dormitei desconfortável por entre as almofadas. Sonhei qualquer coisa como o vento que fustigava mais o fogo de uma fogueira. Quando acordei, estávamos bem perto das terras do Lorde George. Um dia de viagem e chegamos ao nosso destino, mais cedo de que o previsto. Tínhamos viajado sem descanso, doía-me as costas e mal conseguia mexer as pernas. Quando Marie ajudou-me a sair da carruagem, cambaleei até encontrar o equilíbrio. O castelo estava escondido na penumbra, numa pequena ilha rochosa no leito do rio. Na margem, pequenos botes estavam ancorados. A travessia foi lenta...
Uma lua passara desde a minha estadia. Estava mais frio de que o habitual. Envolta no xale, todas as noites caminhava em redor das enormes muralhas que rodeavam o pequeno e tosco castelo. A cada dia que permanecia naquele lugar, mais ele assemelhava-se a uma masmorra. Quando as tempestades romperam no céu, poucas eram as minhas distrações, fazia bordados e ajudava os poucos servos que o castelo tinha. •
As mulheres falavam de mim, sussurravam o meu nome e de cabeça baixa lamentavam a minha sorte. Não tinha conseguido fazer nenhuma amizade. Marie não pode ficar comigo, regressara a herdade dias depois. Havia uma rapariga que sempre que podia, fazia-me companhia enquanto bordava. Falava-me das pessoas daquele castelo e de como todos se tinham ido embora quando o Lorde David, pai de Lorde George, morrera numa batalha. Nunca vira o Lorde George no castelo, interroguei-me sobre tal, mas
Lucy
não
quis
aprofundar
pormenores,
dizendo-me
que
estaria,
possivelmente, em negociações. Passaram as chuvas, e o sol espreitava com mais intensidade por entre as nuvens brancas. Nesses dias, corria para fora das paredes cinzentas e procurava por um lugar onde pudesse me refugiar sem que ninguém tivesse pena de mim. Uma pequena torre inacabada do lado este do castelo, tornou-se o sítio ideal. Levava os bordados com a desculpa de querer aproveitar o sol, mas nunca tocava neles. A paisagem em volta daquele lugar fascinava-me. Ao longe, as árvores cobriam todo o monte, o rio serpenteava feroz, a planície, por onde antes passara, estava agora coberta por lindas cores. Quatro caravanas ocultas nos carvalhos chamaram-me a atenção; pessoas movimentavam-se de um lado para o outro como se estivessem a instalarse. As luas que passaram, trouxeram com elas mais caravanas. Contei onze. Em conjunto, formavam uma roda em volta de uma fogueira que era acessa durante a noite. Tocavam e dançavam em volta dela. Os sons mal chegavam até mim. Todos os anos pela mesma altura, as caravanas voltavam aos carvalhos e as pessoas cantavam e dançavam, tornando as minhas noites escuras em cores brilhantes. Durante algum tempo, sentia-me segura dentro daquelas paredes, ao saber que estava protegida das mãos inimigas que matara meu irmão. Mas devido meu pai não ter aceite o acordo da partilhas de terras, Lorde George tornou-me certa como refém. Chorei durante noites sem fim, desejando que tudo acabasse. A visita de Lorde George trouxe-me ansiedade. Apareceu escoltado por cavaleiros armados e rostos duros. Era um homem maduro de feições bonitas, alto. Cumprimentou-me com cortesia, ofereceu-me um vestido e pediu que o usasse ao jantar. Enquanto o vestia, tremia-me as mãos. O decote mostrava mais do que pensaria mostrar, vira como ele olhara para mim, quando entrei no salão. Foi cortez. Puxou-me a cadeira para sentar, falou com palavras doces, deixou cair a mão na minha e sorriu. Senti meu corpo tremer. “Tens uma pele suave e seios bonitos”. O jantar foi silencioso, apenas seus olhos não saíam do meu corpo. Senti medo. Quando se despediu de mim e deixou-me entrar no meu quarto, senti um alívio profundo. Vesti a camisa de dormir, tapei a cabeça, encolhi os joelhos até o peito, fechei os olhos com muita força e desejei adormecer. Só queria acordar e ele ter partido. Fui acordada por Judy. A banheira estava cheia e o cheiro a lavanda animou-me. Estendeu um vestido idêntico ao da noite anterior em cima da
cama e pediu-me para o vestir e dirigir-me ao salão, mal terminasse o banho. O Lorde esperava por mim. No salão, Judy segurava um cesto de piquenique e Lorde George usava uma roupa mais casual. Parecia que ia casar. Seus homens aguardavam por nós no exterior. Judy sussurava-me que íamos fazer um piquenique enquanto os homens caçavam. Não nos afastamos muito do castelo, mas aproximamonos das caravanas. Enquanto os homens planeavam para onde ir, Judy estendia a toalha no chão e dispunha pão e compota de amora, alguma fruta e água. Comecei a planear a minha fuga e tentar chegar às caravanas e pedir ajuda, quando lá chegasse. Judy estava constantemente distraída, olhava para um dos homens de George e vira como eles se agarravam quando pensavam que ninguém estava a ver. A oportunidade de fugir surgiu ao fim da tarde, quando Judy desapareceu atrás do seu amado. Peguei na saia e corri o mais que pude na direcção dos carvalhos. Pareciam afastar-se a cada passo que dava. Não conseguia olhar para trás com receio que alguém perseguisse. As caravanas estavam juntas umas das outras. A única maneira de ir para o centro seria passar por baixo de uma delas. Procurei a que seria mais facíl gatinhar. Com algum esforço, rastejei por baixo de uma das caravanas e deparei com um silêncioso estranho. As cinzas no centro do círculo indicavam o local da fogueira. Encostei-me à roda da caravana, encolhida aguardei que alguém aparecesse. Uma criança de cabelos negros apareceu, brincava com um pequeno cão castanho. O cão ladrou na minha direcção. O rapaz falou algo que não entendi e num piscar de olhos todos os ausentes apareceram do nada. Um alarido formou-se naquele círculo. Falavam todos ao mesmo tempo, e eu não conseguia entender o que eles diziam. Tinham um dialecto que nunca ouvira antes. Fui puxada para o centro pelas crianças que, com curiosidade, puxavam-me no cabelo, no vestido e na face. Todas elas tinham cabelos e olhos muito negros. Alguém gritou, e todos afastaram-se de mim. “Como entraste aqui?” Um jovem rapaz alto, bem constituído aproximou-se de mim. Disse-lhe que vira as caravanas e a fogueira durante a noite e expliquei que tinha sido feita refém do homem que matara meu irmão. Fiquei dentro de uma caravana como pediram e aguardei que aquele jovem de cabelos negros decidisse o que fazer comigo. A caravana era espaçosa, uma pequena casa ambulante. Estava tudo organizado, nos locais certos. Pouco depois de sentar no pequeno banco de madeira, a mesma
criança que brincava com o cão sentou-se a meu lado e assim ficou durante um longo tempo. Tive a ideia de que era o meu guarda. Tentei falar com ele sem a certeza de que iria entender, pois não conseguia entender nenhum dos outros que ali estavam, excepto o jovem rapaz. Nem sabia o seu nome. “Aidan”, ele disse e isso eu entendi. “Basta acreditares para conseguires entender”, atirou-me. Aidan entrara, entregou uma tigela de sopa quente a uma criança e outra a mim. “Não sei como foi possível teres visto a nossa fogueira e teres conseguido entrar aqui.” “ Há luas que vos vejo chegar e partir.” “Nunca partimos, tu é que acreditas que sim.” Contou-me que o seu povo era os Aeternus, que viviam das pessoas que acreditavam neles e que havia séculos que ninguém entrava no seu círculo. Quando isso acontecia, havia mudanças a fazer no mundo dos humanos. Podia ficar com eles durante uma lua, depois teria que partir, porque ali não era o meu lugar. Aidan foi o nome que escolhi para ele, acreditei que esse era o seu nome, tal como dei o nome a todos eles. De noite, dançava e cantava em volta da fogueira. Comia sem fartar, ria até doer-me a barriga, corria a pé descanso. Quando o dia chegava, cansada da euforia da noite, dormia enroscada na manta a um canto de qualquer caravana. Aidan mantinha-se afastado. Evitava passar perto de mim e receava que chegasse perto dele. Conseguia ouvir da mente dos outros, sabia que era ele que cantava, todas as noites, mas desde que ali estava não o fez. Deitada em cima da caravana azul, observava as estrelas no céu, cada uma mais brilhante que a outra. Senti Aidan passar por perto. O seu cheiro era o mesmo que malmequeres. Saíra do círculo e dirigia-se ao rio. Esqueci que podia ser novamente capturada por Lorde George e segui-o. Despiu-se e mergulhou nas águas do rio. Despida de preconceitos, mergulhei sem roupa e nadei até ele. “Não te aproximes!” Nadou até a margem, saiu da água. O luar iluminava a água que escorria do seu corpo nu. Saí atrás dele e abraçei-o. Não sabia o que se passava comigo. Sentia-me atraída por ele e, quanto mais ele negava a minha aproximação, mais eu queria a dele. Nossos lábios tocaram-se, as suas mãos agarram a minha cintura, senti descerem até as nádegas e apertá-las. Um calor apoderou-se de mim. Deitamo-nos no chão molhado, juntamos nossos corpos como uma serenata. Por fim ele disse. “Hoje é o último dia.”
Acordei na margem do rio sem roupa e cheia de frio. Sentia fome. Um cão preto farejava-me os pés, rosnou e ladrou alto. Momentos depois, outros cães maiores chegaram até ele e rodearam-me para não deixar em fugir. Onde estava Aidan? Procurei-o, mas não o vi em lado nenhum. Só os cães as rosnar e homens armados a chegar apressadamente. Cobriram-me com uma capa e arrastaram-me para dentro do castelo. Lorde George gritou comigo, esbofeteou-me e atirou-me ao chão. “Confia-se numa mulher e o que ela nos dá em troca? Vergonha!” Trancou-me no quarto, jogou-me na cama e fez de mim o que queria. Chorei noites sem fim. Chamei por Aidan da torre inacabada. Tentei encontrar as caravanas nos carvalhos, mas tudo o que encontrava era um vazio. Dentro de mim, algo mudara. Sentia-o mexer, só queria que fosse dele. Lorde George deixou de me procurar, quando viu que meu ventre crescia. Apontava-me o dedo dizendo que não seria bem-vindo. Na noite que ele nasceu, dei-lhe o nome de Aidan. Mesmo com pouca força levei-o até a torre e mostrei-lhe o sítio onde o pai estava. “Ali por entre os carvalhos, se olhares com atenção, estão onze caravanas, a azul é a do teu pai.” Durante anos fiquei esquecida naquele castelo, como uma donzela à espera de ser salva. Já não importava a solidão. O meu filho corria ao vento com os seus cabelos ruivos. De noite, cantava uma canção de embalar num dialecto que não entendia, mas que conhecia muito bem. Tocava-me o cabelo e, com os seus grandes olhos negros, dizia que me amava.
CARLA DO NASCIMENTO DUARTE. Nasceu no dia 4 de Março de 1982 na cidade de Faro, a capital do Algarve, em Portugal. De momento, vive em Lagos, numa bonita cidade costeira. Sempre que a disposição aparece, escreve contos, desenha e pinta quadros a óleo.
A velha Maroca rezadeira tinha olhos claros e esbugalhados, pele branca e encarquilhada, o pescoço atolado e a coluna corcunda. Era magra, seca, improlífica de fazer qualquer manifestação de carinho, afeto ou caridade. Andar firme, áspero e inseguro. Estava a todo tempo a desconfiar de tudo e de todos, até do vento que circulava ao seu redor, a mais antiga moradora viva na cidade de Cruz das Almas Descalças. Moradora do casarão da rua da frente, esquina com a capela de Santa Rita dos Impossíveis, mulher de muitas primaveras e mais disposta que boi de puxar carroça. Era a beata mais devota e cogitada por todos os moradores que necessitavam de algum auxílio, embora fosse tida como bruxa, assombrosa, atroz. Moça velha, nunca quis casar. Primogênita, no alvorecer da vida, dedicou-se a cuidar da casa, dos filhos nascidos e das coisas da igreja. Viu alguns de seus irmãos fazerem família e ajudarem as parteiras na fervura da água na hora dos partos. Foi a única que ficou para o caritó, das primeiras seis Marias nascidas da união forçada de Maria Cesária e Calixto Onofre. Cada uma se arranjando de forma correta ou pelo avesso. Cada Maria irmã borboleteando pela vida e alcançando pouso. Nunca tivera gosto de bordar o enxoval de nenhuma porque eram defloradas antes do tempo e já era tempo de providenciar enxoval dos bebês. O sétimo filho vindo à luz fora homem, um menino que nascera numa sexta-feira treze da paixão, aparado por ela mesma quando a mãe já sofria e não havia tempo de chamar a parteira, enquanto o pai saíra para caçar em dia proibido e ao mesmo tempo em que acertava os pássaros era parido do ventre daquela mulher uma criatura estranha. Daí surgir seu ofício de parteira e depois de presenciar tantas mortes, preferiu o ofício da oração e passou a rezar e a curar. Maria das Almas, carinhosamente chamada por Maroca rezadeira. Morava numa casa de taipa de muitos quartos. Casa baixa, cada quarto com janela, rodeada de alpendre. Na parte de traz, o velho fogão a carvão, de lá saiam os maravilhosos doces que gostava de fazer. Na sala de entrada da casa, um antigo e imenso oratório todo esculpido na madeira.
Imagens de santos e santas, todas com oferendas: velas acesas, rosas e fitas de promessas trazidas das romarias que costumava ir. Um corredor largo feito de galeria de fotos, todos os familiares, pais, irmãos e irmãs, cunhados e cunhadas, sobrinhos, sobrinhas em vários graus. Era respeitada e temida por todos, tinha mais voz que o padre e nunca previa nada que não acontecesse. Morava só. Por tempo havia tentado abrigar uma ou outra pessoa, mas não se adaptava. Ninguém sabia fazer as coisas do seu jeito e resolveu assim ficar sozinha mesmo. Apesar de tantos doces feitos e tantas orações, era uma pessoa amarga. O irmão que havia nascido pelas suas mãos, o sétimo da dinastia de seus pais, era feio de dar dó. Todos o apelidavam de lobisomem pela aparência estranha que tinha. Os olhos esbugalhados e a cabeça grande e redonda, além de um cabelo que não deixava ninguém cortar. Era peludo, baixo e os pés largos e achatados, que sandália só por encomenda. Não aprendera a falar e era o xodó da Maroca. Para os mais linguarudos, nos ciclos da lua cheia, era escondido e amarrado e quando aparecia qualquer animal morto, logo o culpavam por achar ser ação de um bicho carnívoro. Certo dia, Maroca fora chamada a se fazer presente numa casa mais distante para rezar numa criança em estado terminal. Na ânsia de cumprir missão foi e deixou o irmão e a casa aos cuidados das irmãs, porque a mãe nessa época já não respondia por nada. As irmãs não tinham o mesmo zelo e cuidado pelo ente e enquanto caminhava um aperto no coração a faz pensar nos lados opostos de sua caminhada. Não sabia se ia ou se voltava. Na última dobra, a sua frente, uma catacumba demarcando a morte de outro pobre coitado, morador de rua que havia caído morto ali sem que ninguém desse conta de nada. Que seria aquilo, um sinal? Um alento para rezar pela alma daquele pobre indigente e coitado? Parou por instantes, acendeu vela que logo se apagou, tentou outra vez e nada. Ouviu os apelos de pressa para chegar ao destino quando ouviu um ranger, um choro ou coisa parecida... Um arrepio dos pelos dos pés, uma frieza nas mãos e uma leve olhada para trás. O irmão ficou na sala sozinho. Tinha vinte anos de idade e pensamento e ações de criança menor. Muitas velas acesas e a curiosidade de vê-las queimando. Fixou o olhar na imagem de São Lázaro e quis, por instantes, pegar para si a imagem. Esta alta e os braços cotós o impedia de chegar até lá. Estava de camisa de manga e as irmãs trancadas no quarto a pentearem e fazer trança nos cabelos, aproveitavam a ausência da irmã carola e dominadora, maquiavam os rostos, subiam as saias e ficavam nas janelas dos quartos a espiarem os homens sem camisas a trabalhar nas roças e entre uma olhada e outra, um mais afoito coçava o saco, enchia o peito e punha um pequeno galho de mato na boca. Elas abriam um botão da
blusa e ficavam a flertar até que percebessem o cheiro do feijão queimado. Nesse tempo, duas já haviam embuchado e estavam a morar com seus homens em terras distantes; uma tinha se desviado e morava na zona, sofrendo e comendo do pão que o diabo amassara; duas em casa nessa formicação e três irmãos já varões casados e entregues à caça, como o pai. Neste dia, o cheiro foi diferente, estranho. O irmão pegou a cadeira debaixo da mesa, pesada cadeira de madeira antiga, arrastou até o oratório e encantado pela imagem resolveu subir e tirá-la. Naquele instante, um descuido e não viu que a manga da camisa encostara na vela de São Bartolomeu. Só sentiu depois que passara a queimar a pele do braço e espalhar por toda roupa. No desespero caiu por sobre o oratório e por não saber falar, apenas emitia sons ouvidos desesperados. As irmãs nada fizeram, acharam costumeiros por saudade da Maroca, até que a fumaça espalhou-se e empestou por toda sala. Os homens, trabalhadores da terra, logo correram em direção ao ocorrido, enquanto as beldades de nada davam conta. Fecharam a janela em algazarra e só depois que abriram a porta do quarto, perceberam que algo não ia bem. Na encruzilhada, uma graúna pousou na cerca de arame farpado e olhou profundamente nos olhos da Maroca, ao mesmo instante que ela olhava para trás e percebia no céu uma nuvem de fumaça a apagar toda a beleza do horizonte. Uma lágrima rola do seu olho e uma dor no peito implode o grito de horror. As pernas trêmulas, o corpo petrificado e dali mesmo as contas do rosário a rolarem no chão daquela terra. A vela da catacumba acende sozinha e em disparada Maroca se põe a correr muda, séria, com o olhar mirado na fumaça que não cessava. A graúna ficou parada e passou a balbuciar alguma mensagem em graunês. Os homens cercam a casa a tempo de salvar a mãe e socorrer as irmãs que no desespero não se lembraram da brincadeira de se maquiar, de subir as saias e de abrir botões das blusas a deixar à mostra a silhueta dos seios. Um mutirão formado para apagar o fogo e a água restante para os afazeres domésticos é usado para apagar o fogo já tarde. O irmão havia sido esturricado, ficado irreconhecível e com a mesma carreira que vinha, ao atravessar o portão que dividia a rua da casa, em um único grito liberto, Maroca corre ao encontro do irmão ainda quente, com a imagem de São Lázaro e, diante da dor, diz ao irmão que se ela estivesse ali nada daquilo teria acontecido, ele não haveria de morrer. No mesmo instante visualiza as irmãs e tomada de fúria, vai à cozinha, arma-se com o chicote feito da pimba do boi e avança sobre elas sem pena, sem dor nem piedade. O pai havia saído para caçar com os outros filhos há dois dias. Chegou a tempo para o enterro. Para ele um alívio, achava aquela cria uma aberração, assim como achava que a Maroca não era sua filha. Tinha em si que fora enganado e casara-se com uma mulher para livrá-la da língua dos
outros. Era um homem rude e analfabeto, mas gostava de contar histórias vivenciadas nas matas em suas caçadas. Gostava de ver os olhos dos filhos atentos e ele como centro, pintado de herói e guerreiro. A filha distante, próxima da mãe a bordar e cantar benditos. Nutria no seu âmago um sentimento de ódio pelo pai. Era uma relação estranha daqueles dois. O pai não acompanhara o enterro e só deixou sair o corpo, chamou os filhos machos para, em sete dias, erguer o casarão da rua da frente, esquina com a matriz de Santa Rita de Cássia da cidade de Cruz das Almas Descalças. E assim foi feito. Trocaram madeira, puseram telhas novas, puxaram o piso e ele se encarregou de colocar para fora o que havia sobrado do grande oratório de devoção da filha mal vista. Daquele momento em diante, nada de oratório, nada de velas naquela casa. Da sua decisão a revolta de Maroca e sua expulsão de casa e todos aqueles que não aceitassem a sua decisão poderiam ir junto com ela. Neste mesmo termo, alguns dos irmãos já eram casados e se ofereceram para levar a irmã Maroca para morar com eles. Mas por aqueles tempos a sorte não estava de bom grado com aquela família. Na hora da saída, os olhos da filha se encontram com os do pai e como passe de mágica, magia ou assombração, a velha mãe levantara-se da cadeira de balanço e armada de faca, caíra sobre o velho sentado no tamborete próximo à porta de saída da casa, a fumar em sossego seu velho cigarro de palha de cheiro forte e aborrecido, e lhe tirara a vida acertando um golpe no coração. Sagra o homem contador de história de caça, repousa sobre ele o corpo da senhora guerreira que do ventre fez nascer tantos filhos. O ato de desespero custoulhe a vida e um enfarto a fez cair tesa, pronta. No dia do último terço para a alma do irmão, o velório dos pais e por decisão dos irmãos machos, Maroca fica na casa como matriarca e passa a dar as ordens, a impor respeito, a querer conduzir a família e doutrinar as irmãs tornando-as devotadas. Abraçava a causa e dela fazia a missão de destino de sua existência. Queria todos debaixo de suas asas. Passara a vestir preto e querer sempre, na hora da ave Maria, todos em sua casa para rezar devotamente pela alma daqueles entes queridos que haviam partido tão cedo. Rezava para o irmão e a este prestava culto como se fosse um bem aventurado, um ser de luz. As orações não baixavam o fogo das irmãs e a cada luz escura era um desassossego, porque era tempo de uma a uma que inventava de fugir, nas noites escuras, montadas nas garupas de aventureiros das cidades vizinhas ou forasteiros de passagem pela cidade a trabalho de empreitada. Maria dos Anjos, a mais nova, a mais afoita das histórias da janela, a sorte não bateu direito em sua janela. Entregou-se aos desejos da carne a um jovem espadaúdo, corpulento, dado ao trabalho e exibicionista dos músculos definidos. Gostava de tomar umas pingas e tocar viola, modinhas
tristes, de saudades de amor. Chegara ali há poucos e pelo papo bem vistoso logo pegou a simpatia de todos. Badaró era o seu nome e devia ter uns trinta e oito anos. Nada disse de si e também ninguém perguntou. A moça jogava todo o charme para cima do caboclo e ele passou a ficar na cola. Presenteou-a com um colar, depois com um vidro de água de cheiro, depois lhe mandou uma rosa e um cartão escrito com letra bem caligráfica, marcando um encontro logo mais à noite por trás da igreja, na hora da missa. O coração disparado tratou de inventar dor de dente para ficar em casa. Vestiu vestido solto e se embrenhou pelo escuro até chegar ao canto marcado. Lá chegando já estava o brutamonte a espera. Entregou outro presente e pediu que abrisse somente em casa. Tocou-lhe a mão e o corpo da manceba logo respondeu. Ele conduziu a mão da jovem menina inexperiente ao seu peito de camisa já aberta. Ela recuou e ele a acalmou com um leve beijo fazendo com que sua barba a tocasse suavemente. Foi conduzindo-a a parede da igreja e comprimindo seu corpo contra o seu, foi roçando-lhe o corpo e estonteada foi deixando-se conduzir. Os lábios se encontraram, as mãos do macho lhe acariciavam o corpo por inteiro até que chegou entre as pernas quentes, pulsantes, lascivas, concupiscentes, enquanto o membro ereto roçava-lhe as partes frontais. Não conseguiu mais falar. Era calada por beijos de língua e o vestido já não mais se comportava a cobrir-lhe o corpo. A mão foi conduzida as partes dele e de calça já de braguilha aberta, a coisa desconhecida crescia pelas carícias da mão sutil da manceba virginal. Apalpava com timidez e conduzida pelo maduro violeiro, não percebeu quando ele lhe baixou as roupas de baixo e ali mesmo, encostada a parede da igreja, na hora da elevação do cálice, era calada em soluços de dor. Aquela coisa tesa, nunca vista antes, agora pulsava dentro de si. A barba do macho descontrolado roçava-lhe o pescoço e, vez por outra, ele lambia os bicos dos mamilos tesos, não sabendo ao certo se era de tesão ou se frio. O homem rosnava, apertava seu corpo e uma dor latente crescia a cada solavanco. Ouvia de longe a voz do padre a dizer o corpo de Cristo e na hora em que a plateia respondia o graças a Deus, o homem despejava dentro de si um líquido quente e bruscamente afastava-se dela e logo fechava a braguilha. Ela mais que depressa passou a correr, a correr que nem o vento conseguia segui-la e o homem acendia um cigarro de palha, montava em seu cavalo de malas prontas e partia em sentido oposto. Na igreja, Maroca visualizava a cena na elevação da hóstia e tentava fechar os olhos com a maior força que tinha e nada adiantava. Achava que era tentação do coisa ruim e tentava se apegar a oração da salve rainha, quando percebeu o sangue escorrer por entre as pernas, pelo nariz e na mão que apertava o crucifixo ferozmente. Saiu da igreja em desespero, atravessou a rua sem perceber a direção do vento, embora o vento soprasse em seus ouvidos e, por detrás da igreja, a imagem de um homem sorrindo e
cavalgando enquanto o cavalo relinchava. Chegando a casa e gritando pela irmã, percebeu que era chamado em vão. Não havia voz para responder. Não havia lamparina acesa, nem rede armada no lugar de sempre. Se tivesse ido, no seu íntimo, já ia tarde. Agora restava apenas ela em casa e mais ninguém. Acende a lamparina, arma a rede, pega o penico, verifica se há lenha e bebe um gole de café mesmo frio no bule sobre o fogão a lenha. A borra ficada no fundo do caneco e provoca-lhe arrepios. Fecha a janela, acende o cachimbo e resolve fazer a oração de final do dia. Naquele momento chora, chora copiosamente e passa a lembrar de tudo e de todos. Chora de saudade, de compaixão de si. Chora como nunca e percebe o quanto é bom sentir aquelas lágrimas a escorrer rosto abaixo. No momento do rosário, não se reconhece e no canto da imagem dos santos vê corpos de homens a chamá-la. Olha de lado e pela janela percebe que é noite de lua cheia e nessas noites, mesmo que não queira, vai à missa e comunga. O que está escrito pela língua do povo acontece. Maroca se vai debruçada em prece e um calor tórrido lhe abrasa o corpo. A necessidade de abrir os botões da blusa e tocar o corpo nunca antes acontecido. Um cheiro de enxofre e um descontrole na língua a balbuciar palavras ininteligíveis. Percebe uma transformação em si e não se reconhece, somente quando vê que ao invés de braços agora tem asas e, na luz da lamparina acesa, percebe-se mais enrugada pelos reflexos da sua imagem no chão da casa. Já não é mais humana. E no formato de coruja vai voado janela a fora em busca de vultos e espaços e lugares desconhecidos, vai ao encontro daquele que dela nunca deixou de depender.
MARCUS VENICIUS FILGUEIRA DE MEDEIROS, nascido em 1973, sob a forte influência dos astros e do signo de Leão. Formado em Letras – Língua portuguesa - pela Universidade do Estado do rio Grande do Norte (UERN) e especialista em Docência no Ensino Superior pela Univerdidade Potiguar (UnP). Atualmente é professor universitário da UnP - Mossoró e professor da rede pública estadual de ensino. Autor do livro “Palavras Ditas”, pela Coleção Mossoroense. Escreve desde o tempo que percebeu que as palavras soavam forte e, através delas, é que se percebeu capaz de materializar o mundo ao seu redor
Era quarta-feira e o dinheiro para o café da tarde havia sumido. A mãe olhou por cima da geladeira, procurou e não viu um centavo sequer. Caminhou então com passos pesados até a sala. - Quem pegou o dinheiro que estava em cima da geladeira? – perguntou ela com a voz séria e as mãos na cintura. Na sala, a avó materna brincava de dar chineladas com a pantufa de lã em Chiquinho, o neto mais novo. Do lado oposto, sentado em uma poltrona, Paulo, o irmão mais velho de Chiquinho, lia um jornal, na coluna de economia. Ao ouvirem a mãe perguntar pelo dinheiro, Chiquinho e a avó pararam de sorrir e voltaram-se para vê-la. Ela estava bufando, o rosto fechado, o olhar ameaçador perscrutando cada um dos presentes. Paulo não desviou os olhos de seu jornal. - E então? Quem foi? Ninguém respondeu. A mãe ficou ainda mais irritada e deu um passo adiante. - Aquele dinheiro que estava em cima da geladeira foi o único dinheiro que o pai de vocês deixou pra comprar o café da tarde – continuou ela, com a voz mais firme. - Eu preciso daquele dinheiro, se não ninguém come mais nada por hoje! Foi você Paulo? Paulo não tinha nem prestado atenção na mãe até aquele momento. Ao ter seu nome mencionado, ele vagarosamente tirou os olhos do jornal e olhou para a mãe, curioso. - Desculpe, mãe, eu não ouvi – disse ele, frouxamente. – Pode repetir, por favor? A mãe respirou profundamente, contendo a raiva, e olhou para o chão. – Foi você que pegou o dinheiro que o seu pai deixou sobre a geladeira pro café da tarde? – perguntou ela, tentando, forçosamente, parecer calma.
- Não, mãe. Não fui eu – respondeu Paulo, serenamente, enquanto voltava a ler seu jornal como se nada tivesse acontecido. - Como que o dinheiro foi sumir, minha filha? – perguntou a avó, levantando-se e indo até a cozinha para checar com seus próprios olhos. – Ué, sumiu mesmo. Mas como é que pode? - Alguém pegou – respondeu a mãe. – E eu quero saber quem foi. Foi você, Chiquinho? Não mente pra mim. Chiquinho arregalou os olhos, apavorado, e correu para o lado da avó. – Não fui eu não, mãe. Eu nem sabia que tinha dinheiro ali - gaguejou ele, olhando para a mãe e para a avó com olhos intimidados. – E... Eu comprei uma barra de chocolate... Mas... Mas foi com o meu d... – continuou ele, mas antes que terminasse de falar, a mãe já lhe pegava por uma das orelhas. Ele gritou de dor e começou a chorar. A avó no mesmo instante enfiou-se entre os dois e fez a mãe soltar o menino. - Não bate nele! – esbravejou ela para a filha. – Fui eu que dei o meu dinheiro pra ele comprar chocolate. Não foi ele quem pegou o dinheiro da geladeira. - Não defende ele, mãe – respondeu a filha. Eu sei que você está mentido pra encobrir ele. Não vê que é só isso que a gente tem pra comprar comida? Olha aqui, guri – continuou ela, voltando-se para o filho. – Não mente pra sua mãe. Vai ser pior pra você. Chiquinho começou a chorar novamente, e a avó ficou ruborizada de raiva e vergonha ao ser chamada de mentirosa pela própria filha. - Não foi ele, Márcia – gritou a avó, com a voz quase sumida. – Não acredita em mim? Não foi ele. A mãe, com os olhos cobertos de lágrimas, agarrou o menino pelo braço, olhou-o bem de perto, o rosto em chamas. - Me responde sem mentir! – berrou ela, deixando Chiquinho ainda mais amedrontado. – Foi você? Foi? - N... Não, mãe. Eu não alcanço na geladeira – respondeu o menino entre as lágrimas, de olhos fechados por não conseguir ver o rosto desfigurado da mãe. - Então por que a cadeira está posta ao lado dela? – perguntou então Paulo, de sua poltrona, olhando friamente para a cena por cima de seu jornal. Todos na cozinha viraram os olhos para a geladeira e puderam ver que, realmente, havia ali uma cadeira bem encostada ao lado. Chiquinho desfez-se em lágrimas, impotente, enquanto a mãe lhe dava tapas e chineladas e o arrastava de castigo para o seu quarto. A avó ia atrás dos dois, quase chorando de comoção. - Que feio, meu filho! – disse ela ao passar por Paulo, que voltava a ler seu jornal.
A mãe abriu a porta do quarto de Chiquinho, deu-lhe mais umas duas palmadas e o fechou lá dentro. Depois, foi soluçando até seu próprio quarto, onde também se trancou. A avó andou com dificuldade até o quarto de Chiquinho e ficou ali, cabisbaixa, ouvindo tristemente o choro do menino pela porta. E Paulo fechou seu jornal, levantou-se e foi até o armazém comprar uma carteira de cigarros para fumar escondido.
FÁBIO ARESI é formado em Letras pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e estudante de mestrado em Linguística pela mesma instituição. Residente de Porto Alegre, onde nasceu, mantém o hábito de leitura e escrita de textos literários como forma de lazer, sendo o conto e a poesia os seus gêneros de maior interesse.
O casal entra no restaurante. Cuidando os passos, o rapaz desvia sua mochila das cabeças. A moça, com cheiro de champagne e morango, coloria o ar entre as cadeiras que, a cada duas, eram chutadas sem querer. Ajeitaram-se em quatro cadeiras. Ele de frente com ela. Uma mochila de frente pra outra. Ele se levanta e pega um prato e talheres para os dois. Guardanapos de papel também. Ela não come sem eles. Rapidinho, ele, de prato feito, começa a comer. Enquanto ela trava uma briga entre o saleiro e sua mão esquerda, ele se segura para esperá-la. Nesse meio tempo, imagina um bife acebolado. Acorda assim que a moça se senta dando um chutinho na mesa. Após algumas bocadas, percebe que a moça não para de olhar para alguém atrás dele. Disfarçadamente, se vira para conseguir mais espaço. A moça faz um sinal com o queixo. Ele finge uma boca cheia e faz um sinal com a mão sem virar o corpo para moça. Olha e só vê um velho solitário. Sem entender, olha para a moça e diz: - Só tava pondo minha cadeira mais pra trás. A moça faz um jóia enquanto se delicia com um pedaço de tomate com rúcula. Talvez agrião. Seu olhar volta ao vazio. Talvez fosse para o nada mesmo que ela olhava. Só para provocar, perguntou: - Que que você tá olhando? Achou um conhecido mais uma vez? Ela pede tempo para engolir a última garfada. Empurra com um gole de suco de caju e diz: - Olha devagar pra... Ele se vira bruscamente. Disfarçando, ela fala sem mexer os lábios: - O Vampiro tá ali! Entortando a sobrancelha, ele se vira lentamente e olha bem para o velho. Não sabia a razão. Mas olhava para cara dele. Nunca o tinha visto. Talvez o jovem o reconhecesse se ele estivesse de costas. As ilustrações do Poty, ele conhecia. Mas não! Nunca encontrei o cara ali perto da universidade. E olha que ele mora ali na Ubaldino. Será que o meu destino seria encontrá-lo aqui num restaurante? Vegetariano? Só o que me falta: ela também conhece esse miserável! Por que não me contaria? E olha que lemos juntos na faculdade um livro dele. Capitu sou eu. E não ela. Pensando bem, estou mais pra Bentinho.
Nesse momento, ele se volta para ela e, com olhos de canalha dissimulado, diz como quem toma uma todos os dias com o Velho Vampiro ali na venda do Seu Zé: - Tá loca? Por que seria ele? - Oras, me disseram que ele anda almoçando nestes lugares. Parece que estava engordando e tava precisando perder peso. - Mas esse daí pode ser só um velhinho qualquer? - Pode. Mas também pode ser ele. Não é legal? Pode até ser. Mas ele queria um encontro diferente. Sei lá, numa livraria. Sem querer derrubar o livro no pé do cara. - Meu jovem, sem problema. Não aconteceu nada com o livro. Nem comigo. Mas vai acontecer se você ler essa porcaria. Eu esboçaria um sorriso envergonhado. Ele recolocaria o livro na prateleira. Estenderia a mão com um livro cinza e letras amarelas. Salinger. Nesse momento meus olhos brilhariam e eu não diria nada. Tomaria um tapinha nas costas antes do Vampiro se esconder na escuridão das prateleiras dando um passo para trás como fazia Nosferatu. E ela queria que o cara encontrasse com o velho ali atrás de um prato de alface? Levantou-se para pegar um café. Assim que se sentou, ela se levanta na direção da sobremesa. O rapaz se perde no encontro vampiresco da livraria. Enquanto isso, ao tentar descobrir qual era a sobremesa, uma mão a toma pelo braço. - Não se lembra mais de mim? - Ah... É você. - Aqui não tem licor, não é? - De uva, suponho. Saiu deixando o velho pra trás. Do balcão chamou o moço para ir, indicando as horas. Enquanto ele paga, ela fala sorrindo: - É o Vampiro, sim.
GUSTAVO NISHIDA (1983), nasceu em Votorantim-SP, mas foi criado em Capão Bonito-SP. Iniciou seus estudos acadêmicos no curso de Letras da Universidade Federal do Paraná, onde estudou Fonética Acústica e Fonologia. Defendeu seu mestrado em Estudos Linguísticos em 2009 na UFPR. Ultimamente, entre as poucas pausas que o doutorado lhe proporciona, arrisca-se em escrever breves contos que têm por influência a “brincadeira” comum na literatura portuguesa, que acaba por “criar” situações inusitadas com personalidades históricas ou da própria literatura.
Ele cumprimenta a todos que passam pela porta em frente a sua pequena casa. Sorri para cada um, restritamente todos, com seus olhos de cor de argila ainda bem vivos, apesar de um pouco desbotados. As pessoas passam tão rápidas, mas tão rápidas, que nem têm tempo de retribuir o sorriso. Verões ou chuvas, estas bem raras, a pressa é a mesma. Os olhares não respiram, se multiplicam. Erasmo observa elegantemente, como sempre. Olha curioso. Quem seria aquela multidão? Quem são elas e eles, onde moram? Por que não lhes dão mais um mero bom dia? Por que não possuem a coragem do olhar? Talvez seja timidez. Talvez, pensa ele, lembrando que já conhecera pessoas calmas que se escondiam na mudez dos dias, tentando capturar alguma reminiscência. Mas isso foi há muito tempo. Normal, lucidamente pensou Erasmo, enquanto acenava para um ou outro transeunte. Em uma pausa, ri de si próprio, de sua existência, que nem sempre foi tão tumultuada como agora, com aquelas centenas (milhares?) de pares de olhos e pernas que formigam pela passarela do americanizado shopping center sem ter perdido um segundo sequer olhando para a pequena moradia de Erasmo e seu jardim invisível, que fica de frente para todos. Há uma pequena planta em um vaso comum que fica ao lado da porta. Olhando de perto, parece que ela mal consegue viver em paz. O vaso cinzento, na verdade quase negro agora, e que era branco, explica tudo sozinho. Em frente aos olhos e cadeira de balanço menos velha que ele, Erasmo força o tempo para trazer à tona o nome de seus doze filhos, a maioria vivos, alguns já muito distantes. Enquanto isto, o turbilhão chamado humanidade passa, repassa, se ultrapassa, gastando suas escassas horas na luz diurna e correria desenfreada. Gritos pelo coletivo, transportes ensimesmados, sorvetes de frutas tropicais, freios individuais, motocicletas entre vírgulas de asfalto. Embaixo, em cima, passarela, rua, desculpe, avenida. Quase um incidente. A memória tenta lembrar como aquela esquina já foi tranquila em
alguma tarde de abril, quando ainda existiam árvores belas, longas e finas se abraçando, não fazendo mal algum ao mundo, tornando um pouco mais ameno os verões equatoriais. Hoje, aparecem números alarmantes de motores a centímetros da calçada de Erasmo. De vez em quando, um bate no outro. Meio sem querer, meio imperícia. Às vezes, mais de uma vez por manhã. Outras vezes, sirenes surgem e Erasmo desperta, meio atordoado pelo calor que o fez dormir e sonhar com um passeio por algum bosque paradisíaco, entre belas, finas e longas árvores que outrora habitavam o outro lado da rua, hoje avenida. Sem graça, colorida demais com propagandas gigantes tão comuns que não incitam a curiosidade de quem já viveu muito, feito Erasmo. O silêncio de antes, cortado que era apenas pelas rajadas do outono, agora se tornara barulho, vozes e buzinas que se atropelam invadindo a sala quase escura. O vento matinal agora corre entre pneus e rouquidões maquinais, enquanto Erasmo se prepara para almoçar na mesma cadeira, companhia para os instantes. A comida se interrompe subitamente. Ele vê homens chorando. Meninas sorrindo. Um senhor de terno tentando tirá-lo. Um jovem passando correndo muito, carregando um objeto na mão enquanto pessoas atrás aceleravam mais ainda (seriam amigos resolvendo alguma aposta, Erasmo criando hipóteses. Triste ele ficou ao saber depois que era um furto). Uma criança levando a primeira queda no dia – talvez na vida, de tão pequena que ela parecia ser – enquanto o picolé de chocolate, outrora em sua mão direita, atinge o solo em velocidade vertiginosa. Aliás, tão vertiginosa quanto o grito agudo daquele menino ao ver a desejada guloseima se encontrando docemente com o chão. A mãe do menino insistiu em caminhar mais à frente, talvez tivesse problemas de audição, ou fizesse parte do clube de mães com teste de controle emotivo, ou fosse muito calma, quem sabe. Esse mundo parece tão resoluto, pensa Erasmo nos segundos em que degusta aquela refeição providencial. Ao terminá-la, vê o sol do meio do dia testemunhando dois amantes discutindo, se beijando, às vezes as duas ações ao mesmo tempo, se perguntando como tal cena ocorria. No seu tempo de juventude, chegar perto de uma senhorita era tarefa árdua, havia o pai, a mãe, os irmãos, o resto da família e, com pouca sorte, os vizinhos também. Sua amada Luiza foi conseguida assim, seguindo e segundo toda a burocracia sentimental de dias que não voltam mais. E que Erasmo também não sente muita falta. Só não se acostumou com a intimidade exterior dos enamorados, abraços e ósculos tão pegajosos que uma agulha teria dificuldades de sobrevivência
entre eles. Difícil mesmo parece ser lembrar os exatos instantes de quando um grupo armado de machados em punho (a moto-serra não quis acordar, talvez com pena) derrubou as inofensivas árvores do outro lado da rua em uma década que Erasmo não lembra mais qual foi exatamente. Era o começo de uma indústria, um longo prédio de dois andares. Coloração opaca, muitas janelas, a maioria de vidro, onde seu provável dono passava tardes e noites, provavelmente, contabilizando as finanças da empresa e mudando a cor dos próprios cabelos de modo involuntário. Vida difícil, imagina Erasmo. Muito trabalho, lâmpadas acesas até tarde. Um dia, de repente, cansado da eterna missão de enumerar zeros e outros números, o proprietário quis tirar merecidas férias e vendeu o seu exquarteirão de árvores, agora operários. Saiu por alguma porta – ou teria sido por uma daquelas janelas de vidro? – e o novo chefe tratou de subir ainda mais as paredes, colocando enormes fotografias de sua numerosa família nas laterais. E como tem parentes este homem, mudados a cada estação sem repetir os rostos, sempre sorridentes, retratos de pessoas contentes (com o quê, meu bom Deus? Pergunta Erasmo). Enfim, a humanidade alcança sua utopia de felicidade, pelo menos aquela superficial estampada na frente do jardim de Erasmo. Além das imagens, a avenida ficou brilhante demais. Luzes tão extremas que os olhos cansados do velho homem confundem com aqueles pequenos objetos cintilantes no espaço sideral. Distantes, mas que ele podia até ver e contar no meio do horizonte escuro de antes, agora trocado por estrelas artificiais e um cinza de concreto armado. Até o aroma daqueles dias parecia mais humano, diferente de hoje. Até a equipe que derrubava árvores tinha direito a cafezinho. O inimigo ainda era educado, oferecia o líquido a Erasmo – que nunca gostou de café –, e ele era elegante ao responder que já havia tomado a sua dose diária daquela substância agridoce. Entre as horas de hoje, Erasmo continua a observar em sua mesinha a mesma revista pousada há dias, quem sabe semanas, repleta de notícias que fazem girar o eixo do mundo em manchetes de artilharia pesada. A televisão, amiga de longa data, está quebrada. Também, nem faz falta. Suas novidades parecem antigas, o ser humano mantendo a mesma desumanidade de sempre. Lembra de sua própria família e esposa, agradecendo aos céus e ao destino, o mesmo que faz com que aqueles passos na calçada se mantenham nas estações repetidas. E na rua também. Ruído repentino e bifurcado. Pista molhada em raríssimo dia pluviométrico. Erasmo escuta máquinas batendo. Todos olham quando vêem um encontro de automóveis. Menos Erasmo, cujos olhos fogem da monotonia e de outros olhos obcecados por pequenos desastres.
Na sua sala, somente o barulho do bisneto deitado na rede rangendo, que nem se abala mais com as colisões do lado de fora. Desce cedo, o pequeno Lucas vai aprendendo que dois corpos não podem ocupar o mesmo lugar no espaço. Isto inclui igualmente o seu irmão menor, que insiste em pular e fazer parte da mesma rede em que Lucas se encontra. O bisavô nem se abala com as colisões do lado de dentro, dos olhos seus e dos descendentes de seu DNA. Erasmo quase não fala nada, balbucia algo e acena para aqueles estranhos passageiros da calçada, como se ele quisesse causar dúvidas em quem o visse. Estaria ele intoxicado de emoções e sensações daquele século de vida que o impediriam de falar, tamanha a densidade dos fatos passados e presentes? Ou seria apenas o incansável cansaço do mesmo relógio que todos temos? Não sabemos, nunca saberemos, pois a vida continua diante de Erasmo, naquele shopping center e naquela multidão que não pôde ceder uma pequena parte de si mesmo para o jardim invisível daquele esquecido homem. Que se perde no olhar, no cumprimento discreto e feliz para quem quer que passe em sua calçada, seja amigo ou inimigo, pálidos ou escuros, Adão e Eva. Erasmo tem cem anos. Continua vaidoso, passa um pente escuro em seus cabelos brancos enquanto ainda (des)obedece as leis do dia no que puder. A porta aberta e o jardim de memórias o deixam bem vivo, Erasmo. Mortos são os outros, que do mundo nada percebem.
ALEXANDRE ALVES é professor da UERN (campus Mosssoró), atual aluno do Doutorado em Estudos da Linguagem (Literatura Comparada) na UFRN, autor do livro Silêncio, mar: a poesia de Zila Mamede nos anos 50 (Sebo Vermelho, 2006) e dos quatro volumes do Guia Literatura UFRN 2011 (Editora Sol).
Anchieta Rolim
Certa manhã, estava a caminho do trabalho e decidi passar em uma relojoaria aqui em Ibiúna, pois meu despertador havia quebrado. Chegando lá, sentei em uma das cadeiras que estavam do lado do balcão... Nem um sinal de vida atrás daquele balcão. Aflita, olhei para meu relógio de pulso, iria me atrasar se ninguém viesse me atender logo. Já havia tocado a campainha que estava do lado do balcão umas duas vezes. Toquei uma terceira. Só então, uma mulher apareceu. Muito educada, educada demais, me cumprimentou: - Olá, jovem, como vai? Posso ajudar em algo? - Meu relógio quebrou! – falei com pressa - Só um minuto, vou chamar o dono da loja. Esse um minuto não foi realmente um minuto, como eu esperava. Foram cinco! Já estava desesperada, era para eu estar pegando a rodovia para ir trabalhar, em São Paulo, mas eu ainda estava aqui. Depois de muito esperar, um homem aparentemente de idade encosta no balcão. - Então, qual é o problema? - Meu relógio não quer despertar, ele sempre desperta uns 15 minutos mais cedo. - Vamos ver... Ele estava abrindo meu despertador e eu não conseguia parar de olhar para os grandes relógios na parede, me senti como se eles estivessem me encarando. Os minutos passavam rapidamente e eu nem estava no carro ainda. Cheguei até a me desesperar e sai por alguns minutos da loja. O homem continuava examinando o relógio intrigado. Já tinham se passado uns 10 minutos e aquele homem não tinha parado de mexer no relógio desde que ele o pegara, há exatos 16 minutos agora. Me atrevi a perguntar: - Com licença, eu estou com um pouco de pressa, pode me dar uma noção de quanto fica o valor e eu venho pegar o meu relógio depois? Dessa vez, o olhar simpático dele virou algo obscuro. Ele me olhou indignado e enfim disse: - Você não me pediu para consertar o relógio? Estou examinando, se não está à vontade vá a outra loja! O problema é que nessa “cidade” não temos muitas opções. Eu fiquei quieta. A situação acabara de ficar pior ainda.
Pensei em deixar o relógio lá e sair sem dar nenhuma explicação. Voltei a sentar na cadeira onde eu havia sentado quando tudo começou, olhei em um dos relógios. Já estava atrasada demais. Desencanei, perderia o horário hoje mesmo. Não conseguiria chegar mais ao trabalho e as avenidas devem estar lotadas a essa hora. Mais meia hora se passou. Finalmente, o homem se levantou e disse: - Ótimo! Descobri o problema. Que dia você pode buscá-lo? Marquei em uma sexta-feira e fiz questão de que fosse o mais cedo possível, às 7 da manhã. O homem me questionou sobre minha escolha do horário para buscar o relógio. Eu sorri de canto, agradeci e parti. No dia seguinte, meu chefe perguntou por que eu havia faltado. Então respondi somente com a frase: - Na relojoaria o tempo passa mais devagar. Aliás, tudo fica mais devagar...
CLARISSA MATTOS tem 14 anos, estuda na Escola da Vila (São Paulo) e quer ser jornalista... Escreve periodicamente contos e estórias diversas... Está apenas iniciando suas atividades como escritora.
Muitas pessoas se revelam em frases de MSN, dão indiretas, fazem declarações de ódio ou amor, citam pensadores famosos, letras de música, ficam entrando e saindo do MSN de propósito só para serem notadas... Há ainda aqueles que transformam o perfil em anúncio, um verdadeiro balcão de negócios: "Vendo HD Externo, notebook, armário, cama, faço trabalhos de revisão...". Classificados surgindo na barra de rolagem. Assumo a face da mulher invisível. Estou lá, mas ninguém nota porque fico escondida. Uma offline fajuta e sempre presente. Não é por mal, as conversas de MSN, às vezes, atrapalham o trabalho. Tudo bem, essa é a desculpa mais usual e, em muitos casos, reflete a realidade. Diacho de conversar o tempo inteiro pela Internet... O som da risada é melhor que o rsrsrsrsrs (quem sorri assim, afinal?). Confesso que na maioria das vezes eu só não tô a fim de papo mesmo. Mas, dentre muitos, há os que estão offline de forma tão verdadeira. Embora você espere que a janela fique verde, ela está lá cinza, sempre cinza, para sempre assim... Desbotada. A morte é uma janela cinza de MSN. Não tenho emoticons que expressem a saudade que sinto quando vejo a janela sem cor. Não há chamadas de alerta, aquele barulhinho de alguém chamando a atenção, não há chamada de voz. É tudo cinza e silencioso. Foi assim que eu te senti e toquei seu nome ao passar displicentemente pela letra 'I' do meu grupo de amigos. Acessava o MSN do celular. Cliquei sem notar no J de Jos Ferreira (joferfilho), veio o cinza anunciando o vazio de sua ausência, o silêncio de sua voz, hoje calada. Tive vontade de chorar sabendo que nunca mais vai responder pelo MSN, que nunca mais vai mandar os artigos de jornal, nem me fazer sorrir com seu carinho. Ele está offline. Um status irreversível. Em homenagem a Ferreira da Gazeta
IUSKA FREIRE é jornalista formada em 2003 pela Universidade Estadual da Paraíba (UEPB/Campina Grande). Tem vínculo com o jornal Gazeta do Oeste desde 2003. Já passou pela editoria de cultura, sendo uma das responsáveis pela criação do caderno 'Expressão', antigo caderno 'Tudo'. Atualmente é editora e pauteira do caderno Mossoró e escreve uma coluna semanal sobre Cinema no caderno Expressão. Também é diretora da Agência de Comunicação da UERN. Informalmente escreve em blogs desde 2003. Desde 2008, mantém o blog www.ancoradanoespaco.blogspot.com - nome inspirado numa poesia de Ana Cristina César - Ana C.
Ela era cheia de coisa. Mas se deixava esvaziar todas as manhãs, pra poder se encher durante o resto do dia. Já levantava contando os passos, para não passar dos limites. Parecia no limite. No contorno que ela criara para não exceder. Cheia de medo. Medo de desvendar-se. E, por isso, não parava. Receio de que qualquer demora lhe fizesse descobrir-se. Por isso corria. Para um lado e para o outro. Só não queria parar. Na verdade, ela já havia pensado nisso, mas nunca tivera coragem. O medo de desnudar-se às vistas alheias era bem maior. Preferia, então, continuar com os planos traçados. Num dia isso, noutro, aquilo. Mas não parecia satisfeita e, por mais que estivesse correndo, sempre achava que estava se arrastando, dando tempo de alguém vê-la mais demoradamente como ela era. E se estropiava para chegar ao fim do dia completa. Sempre chegava achando que não dera conta. A mania de achar que o tempo nunca era o suficiente para as coisas que precisava fazer. Julgava-se incapaz de caminhar como os outros, porque nunca conseguira chegar ao fim do dia com aquele sentimento leve do qual tanto falavam. Culpava-se. Por ser pesada demais. Medo de cair e não conseguir se reerguer. A sensação de que sua fraqueza lhe condenaria a qualquer hora. Fingia que seus ombros estavam leves, porém todo mundo reparava. O peso em seus ombros era tanto, que dava para ver no olhar. Um jeito cansado, angustiado. Para falar a verdade, não dava para ver direito por que ela não permitia ser olhada com minúcia. Ela mesma já nem olhava ao redor. Não olhava para não ser vista. Olhava o todo, para não se perder em nada. Parecia mesmo coisa de gente perdida. De alguém que, de tanto se procurar, optou por não se cruzar por aí com seus reflexos nos outros. Alguma coisa devia ter acontecido para que ela desandasse daquele jeito. Só podia ser isso. Talvez estivesse destinada a não parar. Aprendera a dizer que gostava de zum-zum-zum, de tique-taque e de todo aquele auê. Não dava para saber ao certo. Mistério. Mistério cultivado por trás de um muro que não se permitia bisbilhotar. Vez por outra, ela esbarrava no próprio muro que erguera para evitar esbarrões alheios. Pequenina e bela. Contudo não se permitia ser vista como era. Como ela era se nem mesmo ela sabia? Se sabia, não deixava ninguém se dar conta. Beirava o precipício vez por outra, impulsionada pela loucura de ser ela mesma. Ela devia ser bonita também por dentro. Achava que ninguém precisava saber. Havia sim um riso largo que usava oportunamente, acompanhado de um olhar sutil, realçado pelo rímel que trazia na bolsa. Ela se culpava por isso. Não queria ser fútil, nem sabia ser. Confusa. Ora, de cara
limpa. Ora com medo de sair na chuva para não se desmontar. Precisava se aceitar. Conviver bem consigo mesma para, depois, se dar aos outros, por inteiro. Se culpava por isso. Vítima de um cativeiro que ela havia escolhido para se prender. Medo de cair na vida de alguém. Medo de amparar alguém em sua vida e não ter nada para prometer. Não era presente para ninguém porque, das experiências que tivera, ela se tornara passado, apenas. Já sentira cócegas no estômago antes. Algumas vezes, até. Parecia sempre a mesma coisa: as cócegas de borboleta e o vazio insaciável depois do fim. Ela, decididamente, preferiu caminhar, sem descanso. Para não pedir repouso nos ombros de alguém e ter que experimentar a despedida antes do fim. Vive num cruzamento. Para lá e pra cá. Indo e vindo. Vendo os buracos do tempo nas calçadas que caminha. Observando gente ávida em tapar os buracos. E gente que não cuida das calçadas. Por vezes, tem que mudar o trajeto. Mudar é sempre um baque na sua via. Antes dessa correria de agora, o hábito de caminhar jogando os pés para frente. Chutando pedrinhas. Contando paralelepípedos. A enfeitar os passos. Continuava se esvaziando e se enchendo todos os dias. O mundo. O mundo era aquele. Do tamanho que cabia nos pés. Isso bastava. Até que o tempo foi passando e fora obrigada a aumentar o passo para acompanhar a correria. Ela não cabia mais em si. Foi ver o mar, que é infinito. Queria um porto aonde chegar e navegar pelo puro prazer de entrar na água. Mas isso lhe faltava naquele momento. O seu barquinho parecia afundar, mesmo remando o tempo todo. Culpava-se por não ter quem remasse com ela, ao mesmo tempo em que sentia alívio por não trazer ninguém para se afundar junto. Foi aí que resolveu fazer um barco só para ela. No entanto não podia ir tão longe. Era de papel. Estava amassado. Furado. E iria afundar. Além do peso nos ombros, guardava caixas antigas, cheias de lembranças. Sabia que uma hora dessas ia afundar. Aquele barquinho não suportaria. Não tinha o que fazer. Não se desfazia de suas coisas tão fácil. Começou, então, a medir distâncias e a calcular o espaço que dispunha dentro de si. Receava a falta de concretude das coisas que guardava. Temia por à prova sua sensatez. Queria lógica e não mais improvisos. Imaginar-se sem controle tirava-lhe do chão. Suspendia seus pés dos passos contados. E a última coisa que queria, naquele momento era sentir que flutuava, como no tempo que só havia amor na bagagem. E se envolvia de mistério. Complicações. Às vezes, endurecia. Outras vezes, abobalhava-se. Era menina, era mulher. Doce, amarga e azeda. Sempre negara a ela mesma a possibilidade de ser ponto. Ela tinha tudo para 'reticenciar' aquele mundo fechado. Permitia-se transpor. Estar aqui e acolá
num barquinho de papel prestes a afundar. Recorria a isso para ser aquilo, sem deixar de ser o que era: metáfora. Guardava uma culpa no peito que, talvez, fosse a mais pesada na bagagem. Não queria embrutecer o coração dos pequenos, que nem ela, com essas coisas pesadas demais que ela cultivava agora. O amor era mesmo uma coisa que lhe fugia. Não que não quisesse. É que nunca havia experimentado a plenitude, um 'felizes para sempre'. Continuava com um amontoado de coisas espatifadas pelos cantos. Cacos (re)partidos. Às vezes, mosaico colorido. Ela tinha encanto. Mas não queria viver com medo do barco afundar. Ela queria um pedaço de chão firme para se aprofundar. Ela sabia. Se pudesse, teria deixado essas coisas no meio do caminho, no fundo do mar. Mas não dava. Acreditava que tudo havia de ser levado para onde ela fosse. Como parte dela. Até que se resolvessem, ou dissolvessem. Quando vinham lhe falar de sonhos coloridos, ela não queria saber. Não queria lápis de cor. Queria ver a manhã sem o sol que ela pintara de amarelo-queimado no azul do céu refletido naquele mar tão grande. Queria ver o dia, mesmo sem sol, cinza. E ela nunca admitia que isso fosse amargura. Dizia, para ela mesma, que era vontade de ver a vida sem os contornos de canetinhas ou de cola glitter. Urgência de ver a vida sem acabamento, assim como ela. Morria de medo de desenhar a vida e misturar aos rascunhos jogados no lixo sem ao menos pintar. Se ouvia: “Olha menina, não se pode viver o tempo todo com esse ponto aí. Essa interrogação na sua cabeça não faz bem, você sabe disso. Faz mal. Chega a hora em que o medo já não faz sentido. Ou você se convence do que quer de verdade, ou, então, você nunca vai sair do lugar. Porque se continuar desse jeito, todas as vezes que quiser muito uma coisa, muito mesmo, esse muito vai ser tão pouco a ponto de fazer você guardar todas as fichas e sair frustrada com mais medo ainda. Tudo bem que o medo faz parte, que as 'polaridades' se entrecruzam 'vezenquando', mas isso não é desculpa pra levar uma vida inteira num barco de papel, à deriva. Não pense que você vai ter uma bola de cristal pra te mostrar como vai ser depois. Nem pense que vai ter todas as chances de novo. Você sabe muito bem que nenhuma dessas chances que você já teve apareceu duas vezes. Você pode ter encarado da mesma forma, mas elas não eram as mesmas. O seu álbum não corre perigo de ter figurinhas repetidas. Tudo aqui é único, até mesmo essas voltas que você dá no mesmo lugar. Sabe muito bem que, a cada volta, você já não é a mesma. E mais uma coisa é essencial que você saiba, porque não é possível que, com tantas lições, você não tenha aprendido que nada em sua vida vai fazer sentido se você ficar esperando isso de alguém. A verdade é que você precisa sentir-se primeiro. Não tenha medo de sair do barco. Criaturas como você não precisam ter medo de
recomeçar, nem de afundar. Tenha propósitos em sua vida. Ajuda a caminhar com passos mais precisos, ou sentir-se com mais leveza. Cadê seu foco? Hein? Cadê o seu discurso de menina 'grande'? Era bonito aquele discurso... mas eu sei que não vai te servir agora. Você não tem mais o 'q' daquela. Você está diferente. E, talvez por isso, não lhe sirva mais esses 'tipos' de medo que você guarda aí... Eles não lhe servem mais.” Descabelava-se, quando se ouvia daquele jeito. Era o que tinha dentro dela. Aquilo não era drama. Era dor que lhe empurrava para fora de si. Ela se doía. Parece incrível, aquela linda menina se doía. Tentou não se importar com nada. Mudar os pensamentos sempre que julgava não suportar. Era mais frágil de que todo mundo pensava. Alternava entre o suspiro e o lamento. Suportava o peso das consequências com peito de aço, mas desmoronava naqueles ombros como quem perdera o chão, e revestia-se de inocência como quem não tem medo de deixar uma fileira de formigas como pista de sua doçura. Não queria parecer uma menina mole. Também não conseguia juntar forças para ser ferro. Na verdade, precisava de colo, de mimo, de música, e pó de pirlimpimpim! Acordava pensando nessas coisas. Dormia pesando-as. Precisava de lugares de certeza. Não podia passar a vida toda com tantas dúvidas e tanto medo. Não ia passar muito tempo remando um barquinho de papel. Precisava deixar o medo e deixar que fosse encontrada. Feito flor que se permite despetalar pelo vento e exalar perfume no ar. Ela não deixava ninguém saber, mas tinha a alma cheia de trevos de quatro folhas. No fundo, acreditava que, um dia, tudo ficaria bem. E decidiu mudar. Continuava cheia de coisa e não podia mais se arriscar num barco furado. Empenhou o que restava para ser garantia dela mesma. Não dá para saber ainda se ela fez muita coisa. Afinal, continua se esvaziando e se enchendo. Mas a correria é resultado de uma decisão importante: Ela deixou o barco... e sobrevive.
MARIA IVANÚCIA LOPES DA COSTA é jornalista. Nasceu em 1987 na cidade de Marcelino Vieira–RN. Freelancer por opção. Blogueira por consequência. Estudante por vocação. Acredita na transpiração. Na criação. E na respiração ofegante da paixão. Suspira pra contar um tanto disso, com um tiquinho daquilo. Para revestir-se de nada e despir-se de tudo. Às coisas reversas, ela chamou de poesia. Às avessas, de inspiração.
PacĂfico Medeiros
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Um produto independente, organizado e diagramado por José de Paiva Rebouças - jottapaiva@gmail.com com o apoio da editora Sarau das Letras Esta obra foi composta em Verdana, títulos em Bulky Refuse Type, e publicada com tecnologia Issuu e blogger. Todos os direitos reservados a José de Paiva Rebouças.