Cidade, Cultura e Urbanidade CONSELHO EDITORIAL DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA Maria de Fátima Agra (Ciências da Saúde) Jan Edson Rodrigues Leite (Lingüística, Letras e Artes) Maria Regina V. Barbosa (Ciências Biológicas) Valdiney Veloso Gouveia (Ciências Humanas) José Humberto Vilar da Silva (Ciências Agrárias) Gustavo Henrique de Araújo Freire (Ciências Sociais e Aplicadas) Ricardo de Sousa Rosa (Interdisciplinar) João Marcos Bezerra do Ó (Ciências Exatas e da Terra) Celso Augusto G. Santos (Ciências Agrárias)
Jovanka
Baracuhy Cavalcanti (Org.)
Scocuglia
Cidade, Cultura e Urbanidade
Editora Universitรกria da UFPB Joรฃo Pessoa 2012
UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA Reitor RÔMULO SOARES POLARI Vice-reitora MARIA YARA CAMPOS MATOS
EDITORA UNIVERSITÁRIA Diretor JOSÉ LUIZ DA SILVA Vice-diretor JOSÉ AUGUSTO DOS SANTOS FILHO Supervisor de editoração ALMIR CORREIA DE VASCONCELLOS JUNIOR Capa MARCELA DIMENSTEIN
C568 Cidade, cultura e urbanidade / Jovanka Baracuhy C. Scocuglia (Org.).João Pessoa: Editora Universitária da UFPB, 2012. 416p.
UFPB/BC
ISBN: 978-85-7745-683-3 1. Arquitetura e Urbanismo. 2. Espaços públicos. 3. Políticas urbanas e culturais. 4. Cultura contemporânea. 5. Urbanidade. I. Scocuglia, Jovanka Baracuhy C. CDU: 72+711
Direitos desta edição reservados à: EDITORA UNIVERSITÁRIA/UFPB Caixa Postal 5081 – Cidade Universitária – João Pessoa – Paraíba – Brasil CEP 58.051-970 Impresso no Brasil Printed in Brazil Foi feito o depósito legal
SUMÁRIO Introdução .................................................................... .............9 Jovanka Baracuhy C. Scocuglia
I Ambiências urbanas e espaços públicos POR UMA GRAMÁTICA GERADORA DAS AMBIÊNCIAS ........................................................................27 Jean-Paul Thibaud ESPAÇO PÚBLICO, SER-AÇÃO E URBANIDADE - por uma arquitetura humanista e um planejamento sensível ............71 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia ESPAÇOS PÚBLICOS, CORPOS E PRÁTICAS: novos elementos conceituais para a interpretação da urbanidade. O caso das Malvinas, em Campina Grande .............................121 Iale Luiz Moraes Camboim Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia Marcele Trigueiro de Araújo Morais BAIRROS DE
JOÃO PESSOA E
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SUAS PRAÇAS:
encontros e desencontros requalificação ..165 Mónica Lourdes Franch Gutiérrez Tereza Correia da Nóbrega Queiroz
nos
processos
de
A REVITALIZAÇÃO DO PONTO DE CEM RÉIS NA CIDADE DE JOÃO PESSOA: os novos usos e significados segundo seus frequentadores ..............................................183 Edmilson Esequiel Cantalice A CIDADE E SUAS PRAÇAS: estratégias de requalificação e usos contemporâneos ...........................................................215 Jovanka Baracuhy C. Scocuglia Marcela Dimenstein
II Dinâmicas de exclusão e segregação socioespacial CONDOMÍNIOS HORIZONTAIS FECHADOS EM JOÃO PESSOA - comparação entre expectativas e a dinâmica cotidiana a partir dos casos do Cabo Branco Residence Privê e Vila Real ........243 Christiane Nicolau Marcela Dimenstein Patrícia Alonso Wylnna Vidal 6
ENTRE MUROS: as áreas de uso coletivo dos condomínios residenciais fechados .............................................................263 Christiane Nicolau Rosendo Ferreira Jovanka Baracuhy C. Scocuglia
VIOLÊNCIA E MEDO NA CIDADE: formas de exclusão do Outro na cidade contemporânea ..........................................295 Camila Coelho Emmanuel Szylagi Jovanka Baracuhy C. Scocuglia
III Patrimônio cultural e imagens urbanas VIZINHANÇA, AMBIÊNCIA, ENTORNO E PAISAGEM... Limites conceituais e operacionais para a proteção do patrimônio .............................................................................329 Rafaela Mabel Silva Guedes DA DINÂMICA URBANA À PRODUÇÃO DOS VAZIOS URBANOS NO CENTRO HISTÓRICO DE JOÃO PESSOA ...353 Tadeu de Brito Melo
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A INDISSOCIABILIDADE ENTRE PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL NO ESTUDO DAS CULTURAS E IDENTIDADE: A Festa do Rosário e a cidade de Pombal ...................................................................379 Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia Taise Costa de Farias DA DO
CIDADE DO TRABALHO À CIDADE ESPETÁCULO: discursos e imagens sobre Campina Grande ...................................................................395 Jovanka Baracuhy C. Scocuglia Maria Jackeline Feitosa Carvalho Sobre autores .....................................................................411
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os
INTRODUÇÃO Este livro marca o início das atividades do Laboratório de Estudos sobre Cidade, Cultura Contemporânea e Urbanidade – LECCUR, criado em 2010 e vinculado ao Departamento de Arquitetura – DA e ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU – UFPB e, em especial, representa o esforço conjunto de uma equipe interdisciplinar de pesquisadores, professores e alunos de Arquitetura e Urbanismo, Sociologia, Geografia e Antropologia, bem como nossas parcerias com professores-pesquisadores franceses ligados ao laboratório CRESSON, Ambiances architecturales et urbaine da Ecole Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble, ao Centre Max Weber – Université Lumière Lyon2 e ao ITUS do INSA de Lyon com os quais trocamos experiências e reflexões teóricas e metodológicas em torno de questões como culturalização e segregação socioespacial das cidades contemporâneas, transformações nos espaços públicos, políticas urbanas e culturais e possibilidades de renovação epistêmica e metodológica no campo da arquitetura e urbanismo.
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Tudo indica que a hipótese levantada por H. Lefebvre (1970) de uma urbanização total do planeta se realiza a cada ano. Em 2009, pela primeira vez na história, a população mundial se tornou majoritariamente urbana, com cerca de 3,4 bilhões de pessoas vivendo em cidades, ou seja, mais de 50% da população mundial. As previsões são de crescimento contínuo, chegando em 2030 a cerca de 5 bilhões de citadinos. Este fenômeno, sem precedente na história da humanidade, se concentra, sobretudo, nas médias e grandes cidades, bem como nas periferias contemporâneas que atraem cada vez mais uma diversidade de população, de atividades e de dinâmicas sociais, econômicas, culturais e políticas. Enquanto formas agregadoras e transformadoras das ambiências e das relações sociais, espaços da produção e da reprodução humana por excelência, bem como da centralidade dos poderes macro e micro e das resistências socioculturais, as cidades e as culturas ganham destaque exigindo dos pesquisadores novos métodos para enfrentar questões complexas próprias às novas articulações que se tecem entre os novos tempos e espaços. Levando em consideração a complexidade e a diversidade expressas em tipos, formas, conteúdos, atores e figuras que assumem as cidades contemporâneas, precisemos o modo como entendemos as cidades: simultaneamente território e população, materialidade e unidade de vida coletiva, configuração de objetos físicos e da articulação das relações entre os sujeitos sociais.
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Introdução
Neste sentido, lembremos novamente H. Lefebvre quando opera a distinção entre habitat e habitar enfatizando o caráter duplo das dimensões material e relacional, estática e dinâmica das cidades. De um lado, a cidade se cristaliza na morfologia do habitat e, de outro, indica movimento nos diferentes usos e apropriações dos espaços. A cidade é também mediação entre uma ordem estrutural que se expressa em suas instituições (Estado, Igreja etc.), em códigos jurídicos e princípios morais e uma ordem da proximidade, das relações diretas na vida cotidiana. Essas dimensões do instituído e do informal, do conhecido e do vivido apontam a relação estreita existente entre espaço e sociedade, arquitetura e ação/criação social. Dessa forma, a cidade aqui tratada não é apenas aquela instituída pelos urbanistas, mas, sobretudo, aquela modelada e vivida, cotidianamente apropriada e culturalmente recriada pelos citadinos. Nos trabalhos aqui apresentados, reconhecemos uma diversificação e ampliação da agenda política para o espaço público bem como a dimensão da cultura urbana em destaque nas políticas públicas e nas intervenções fundamentadas nas parcerias público-privadas, generalizando-se nos diversos discursos de variados matizes, em escala local e mundial, e nas estratégias urbanísticas. Todos os artigos que compõem este livro possuem em comum uma critica aos processos de privatização dos espaços públicos, homogeneização, espetacularização e mercantilização das estratégias de 11
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intervenção e das políticas urbanas. Procuram mostrar usos e apropriações de áreas requalificadas por seus frequentadores, visitantes, novos e antigos moradores. Discutem ainda os processos de ampliação e diversificação das formas de segregação socioespacial e de “pacificação” ou apaziguamento das paisagens urbanas e da vida cotidiana com perdas crescentes nas possibilidades de encontro e convivência de grupos diversificados em espaços potencialmente de uso coletivo, ampliação do medo e da violência urbana e dificuldades de partilha das experiências sensíveis em público. Entretanto, procuramos identificar também as formas e espaços de resistência a tais processos dilapidadores e a persistência das trocas sociais nos espaços potencialmente públicos com destaque para ruas e praças recriando os vínculos e as próprias ideias de cidade, cultura e urbanidade. O objetivo deste livro é, portanto, apresentar um conjunto de artigos produzidos a partir das pesquisas desenvolvidas pelos membros do LECCUR, discutidas em nossas reuniões periódicas ao longo de todo o ano de 2011 socializando nossa produção e as reflexões desenvolvidas em sessões específicas sobre questões teórico-conceituais, metodológicas e de troca de experiências centradas em temas relativos às cidades contemporâneas, às culturas urbanas e às urbanidades. Os textos estão divididos em três secções intituladas, respectivamente: ambiências urbanas e espaços públicos, 12
Introdução
dinâmicas
de exclusão e
segregação socioespacial
e
patrimônio cultural e imagens urbanas. Abrimos a secção I - ambiências urbanas e espaços públicos – com o artigo de um convidado especial, Jean-Paul Thibaud, no qual apresentamos uma “gramática geradora de ambiências” com destaque para os espaços públicos contemporâneos. O autor nos propõe pensar a cidade a partir do contexto sensorial-motor. O objetivo é compreender as dinâmicas, valorizar a heterogeneidade do ambiente urbano, reafirmar o caráter e a importância da percepção e da relação entre corpo e cidade, buscando compreender onde e como o sensível faz contexto. A noção de ambiência permite pensar a determinação mútua do ambiente construído e das práticas sociais, porém, antes de denotar “ambientação”, as ambiências urbanas não podem ser reduzidas a uma simples decoração que envolve a atividade dos citadinos. Veremos que o ambiente urbano não pode ser definido como um conteúdo neutro e homogêneo dentro do qual se inscrevem as práticas, mas, ao contrário, provém de um meio ecológico heterogêneo formador de práticas que o afetam em retorno. Além disto, se os citadinos se apoiam nos recursos do lugar para desenvolver suas atividades, estes não são apenas puros receptáculos. Os modos de agir em público são em si produtores de ambiências na medida em que ampliam ou neutralizam certos fenômenos sensíveis, exacerbam ou alteram propriedades do ambiente construído. 13
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A partir deste ponto, ampliamos o espectro das questões teóricas intercalando com resultados de pesquisas empíricas procurando enriquecer este diálogo sobre espaço público, cultura e urbanidade. Na linha de questionamentos sobre a dimensão pública dos espaços urbanos e sobre formas de abordagem da arquitetura da cidade, o artigo “Espaço público, ser-ação e urbanidade - por uma arquitetura humanista e um planejamento sensível” apresenta reflexões preliminares que fundamentam uma pesquisa de caráter interdisciplinar sobre práticas urbanas e políticas culturais nos espaços públicos contemporâneos. Exploramos as relações entre território e espaço público, corpo e cidade propondo a mobilização dos instrumentos de análise do urbano e da vida pública para refletir sobre a cidade contemporânea, seus problemas e suas potencialidades, buscando novas metodologias de análise e planejamento dos espaços urbanos. Destacamos os ritmos e as formas como os praticantes da cidade percebem e reagem aos dispositivos e imagens fabricados para os espaços de cidades como Recife (cidade grande) e João Pessoa (cidade de porte médio). São ruas e praças, espaços urbanos de permanência, circulação e passagens, dando ênfase à dimensão sociocultural e arquitetônico-urbanística da noção de espaço público procurando discutir como estão sendo inseridas nas políticas urbanas, e problematizando-as por meio da noção de urbanidade.
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Introdução
No artigo seguinte: “Espaços públicos, corpos e práticas: novos elementos conceituais para a interpretação da urbanidade”, a cidade de Campina Grande é analisada a partir de um de seus bairros dando destaque aos efeitos negativos do crescimento espraiado sobre o espaço urbano, verificados em conjuntos habitacionais, situados em locais sem infraestrutura, notadamente na zona oeste desta cidade. Nestes setores, a fragmentação socioespacial representa uma ameaça à unidade urbana, podendo contribuir para a emergência de padrões indesejados de urbanidade. Malgrado tais constatações, bem como a de que os territórios urbanos planejados parecem cada vez mais desprovidos de corporalidade, obedecendo a parâmetros econômicos e técnico-instrumentais mais do que aos usos e às possibilidades de encontros e trocas que são os fundamentos de um conceito forte de urbanidade, demonstramos como a análise da experiência cotidiana e dos corpos em movimento e ação, ao se apropriarem dos espaços potencialmente públicos, alteram por meio das práticas tais espaços super planejados ou carentes de dispositivos adequados à vida pública cotidiana. O “corpo” é apontado, assim, como o substrato comum da possibilidade de renovação epistêmica no campo da arquitetura e do urbanismo e ganha força aqui a noção de “práticas urbanas”, bem como a distinção entre usuários e praticantes dos espaços, fundamentada na valorização dos atos cotidianos e inventivos. Os espaços públicos do Conjunto Habitacional Malvinas aparecem nesta problemática como 15
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objeto de estudo privilegiado. Técnicas específicas de investigação foram aplicadas, tais como: análises morfológica, sintática e visual de determinados setores, observações de comportamento ambiental, entrevistas e tratamento iconográfico de cenas cotidianas. A partir de análise interdisciplinar, foram confrontados os dados produzidos sobre configuração espacial e as principais práticas sociais, como forma de apreender e interpretar os padrões existentes de urbanidade. O paralelo entre os aspectos técnico-espaciais e as práticas sociocorporais confirma o lugar de importância dos espaços públicos no cotidiano dos moradores das Malvinas, mas também revela a ausência de locais apropriados à atividade social urbana. A pesquisa sinaliza para um profundo equívoco em matéria de premissas urbanísticas e, mais gravemente ainda, para uma negação completa das condições elementares à urbanidade. Nestas condições, a população desenvolve uma série de atividades sociais urbanas, interpretadas como “táticas” ou “ruses” urbanas no intuito de suprir as lacunas em questão. Em “Bairros de João Pessoa e suas praças: encontros e desencontros nos processos de requalificação” procuramos evidenciar, com base em métodos etnográficos, os processos de usos e contra-usos dos espaços renovados, as relações dos moradores com o bairro e com a cidade. Nesse sentido, as autoras apresentam uma análise sobre os efeitos dos processos de revitalização em duas praças da cidade de João Pessoa, situadas nos bairros de Manaíra e Torre. Discutem esses 16
Introdução
processos no confronto com estudos contemporâneos sobre a cidade e o urbano, que ora ressaltam a importância da estrutura física e da estética dos equipamentos urbanos na revitalização dos espaços públicos, ora afirmam o peso dos processos de individualização e da cultura do medo nas práticas cotidianas que retém os moradores da cidade entre as paredes do mundo privado. Os resultados apontam possibilidades e limites dessas intervenções públicas urbanas, uma vez que as peculiaridades de cada localidade relacionadas à cultura de bairro, ao nível socioeconômico, à história local, aos estilos de moradia, entre outros fatores, exerceram uma influência sobre a utilização dos espaços, sobre as relações entre os moradores, sobre suas identidades e as urbanidades. Numa das praças estudadas, no Bairro de Manaíra, ficou patente a força dos mecanismos de segregação social e espacial, repercutindo de forma negativa na configuração da praça como um espaço que permanece segmentado, utilizado de forma fragmentária e marcado por práticas de evitação. No Bairro da Torre, as raízes históricas do bairro presentes na memória dos moradores e a forte presença de grupos culturais tradicionais e modernos repercutiram na intensa apropriação dos espaços, no reforço de laços de vizinhança, das práticas de urbanidade e no envolvimento afetivo com o bairro e com a cidade. A seguir, desdobramos as questões anteriores no artigo “A revitalização do Ponto de Cem Réis na cidade de João Pessoa: os novos usos e significados segundo seus 17
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frequentadores” ao apresentar a experiência de “revitalização urbana” do ponto de vista de quem a vivencia cotidianamente. O processo de requalificação da Praça Vidal de Negreiros, foi desenvolvido pela Prefeitura Municipal de João Pessoa, entre os anos 2008 e 2009, representando uma intervenção polêmica no Centro histórico da cidade. Este trabalho enfatiza que as mudanças recentes no espaço físico e simbólico desta Praça não só alteraram a imagem do lugar, mas também os usos e as formas de apropriação. Nesta mesma linha de raciocínio, fechamos esse primeiro bloco de questões com o trabalho “Tal praça, tal cidade: estratégias de requalificação e táticas dos usuários”,analisando outras três praças da cidade de João Pessoa, com destaque para os usos e apropriações cotidianos: a Praça Alcides Carneiro no Bairro de Manaíra, a Praça da Paz no Castelo Branco e a Praça Vidal de Negreiros no Centro –áreas requalificadas nos últimos cinco anos como parte da política de revalorização dos espaços públicos da cidade, em especial, o Projeto de Revitalização das Praças de João Pessoa, levado a efeito pela Prefeitura Municipal. Na sequência, introduzimos a segunda parte deste livro, dinâmicas de exclusão e segregação socioespacial, discutindo o fenômeno das gated comunities ou condomínios fechados, de âmbito mundial, cujas consequências afetam as sociabilidades e indicam formas contraditórias de moradia. Além disso, representam parte das estratégias apaziguadoras, 18
Introdução
homogeneizadoras e autossegregadoras na gestão dos conflitos urbanos. Nesse sentido, trazemos o artigo intitulado “Condomínios Horizontais Fechados em João Pessoa – comparação entre expectativas e a dinâmica cotidiana a partir dos casos do Cabo Branco Residence Privê e Vila Real”que discute o fenômeno do condomínio horizontal fechado, suas características e implicações na cidade e na vida de seus moradores. O artigo aborda os resultados obtidos a partir da análise morfológica e de estudos de comportamento ambiental nas áreas de uso comum, análise visual da paisagem intramuros e aplicação de questionários junto aos moradores em dois condomínios horizontais fechados da cidade de João Pessoa: o Condomínio Cabo Branco Residence Privê e o Condomínio Vila Real. Ampliamos esta discussão com o texto: “Entre muros: as áreas de uso coletivo dos condomínios residenciais fechados” que se detém na análise das áreas de uso coletivo de três condomínios horizontais fechados: Cabo Branco Residence Privê, Porta do Sol e Bosque das Orquídeas na cidade de João Pessoa, procurando dar destaque a morfologia e a organização socioespacial, bem como as regras de planejamento e padrões urbanísticos que fundamentam estas formas de moradia. Enfatizamos o caráter privatista, as ambiguidades e as contradições inerentes, e apontamos as dinâmicas de uso destes espaços bem como uma lógica social de produção da segregação. 19
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia
No texto seguinte, “Violência e medo na cidade: formas de exclusão do Outro na cidade contemporânea”, destacamos uma faceta indesejada pelo marketing da cidade de João Pessoa. Com cerca de 720 mil habitantes e graves problemas sociais, dentre eles a violência e a segregação socioespacial, João Pessoa figura dentre as cidades brasileiras com maiores índices de violência urbana. A sensação de medo e insegurança ganha forma, bem como as estratégias de segurança, resultando na orquestração de um novo padrão funcional e formal de arquitetura que amplia e generaliza modos específicos de segregação socioespacial. Neste estudo questionamos os projetos de intervenção urbana e a arquitetura que acentuam, ao invés de reduzirem, a segregação e demais efeitos negativos relacionados direta ou indiretamente com o aumento da violência nos espaços urbanos. Procuramos desenvolver uma visão critica dos aspectos associados ao individualismo, a privatização do público e a exclusão social relacionados ao padrão formal e funcional de “arquitetura do medo”. Os fundamentos deste artigo são as pesquisas efetuadas durante o PIBIC-2010/2011, intitulado “Cidades, culturas contemporâneas e urbanidades. Violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa” quando foram analisados os elementos e dispositivos de segurança incorporados às fachadas e às interfaces entre edifícios e ruas/calçadas em diferentes bairros de João Pessoa. Este trabalho destaca, ainda, a constituição desse fenômeno em uma cidade de Porte Médio que 20
Introdução
utiliza com frequência o argumento de ser segura, “capital da paz”, enquanto as pesquisas, as notícias de jornais, o cotidiano de seus moradores e a arquitetura local, revelam o contrário, um aumento crescente da violência, do medo e da insegurança, bem como as consequências de âmbito geral: exclusão do Outro, individualismo, intolerância e isolamento. Na terceira e última parte deste livro discutimos duas outras questões centrais envolvendo as cidades e as culturas contemporâneas: patrimônio cultural e imagens urbanas. Estes últimos aparecem associados em diversos discursos de variadas colorações. Alvos de políticas públicas diversificadas, enjeu de reivindicações políticas locais e mundiais, fazem parte dos principais processos de culturalização levados a efeito por governos de diferentes posturas políticas. Começamos estas breves reflexões com o artigo “Vizinhança, ambiência, entorno e paisagem... limites conceituais e operacionais para a proteção do patrimônio” discutindo as ambiguidades conceituais presentes nas documentações elaboradas por órgãos de reconhecido papel na preservação do patrimônio, referências comumente utilizadas para balizar os critérios de reconhecimento oficial dos bens a serem protegidos, assim como das possíveis intervenções que estes venham a sofrer. São analisados, em especial, os conceitos de vizinha, ambiência, entorno e paisagem enquanto potenciais de ampliação das formas de gestão e compreensão dos patrimônios culturais urbanos. São abordados os conteúdos de documentos oficiais em suas “imprecisões conceituais 21
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indesejáveis e nocivas”. A clareza conceitual desses termos, ou a falta dela, influencia diretamente na operacionalização das políticas quando associados aos instrumentos de proteção, notadamente no que diz respeito à necessidade da delimitação da sua abrangência espacial. O artigo seguinte, “Da Dinâmica Urbana à Produção dos Vazios Urbanos no Centro Histórico de João Pessoa”, aborda um problema recorrente na grande maioria dos centros históricos brasileiros: a existência de “vazios urbanos”. Destacamos aqui uma pesquisa de campo realizada com base em observações diretas e na utilização de ferramentas do desenho e morfologia urbana. A partir do comportamento urbano e social da porção da área central tombada pelo Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no final de 2007, o autor busca responder a questão: o que justifica a produção e/ ou permanência dos vazios urbanos no Centro histórico de João Pessoa e quais os efeitos no tecido urbano da cidade? Entendendo “vazios urbanos” como os terrenos e edifícios vacantes que se diferenciam no tecido urbano por estarem sem ocupação, sem uso ou subutilizados, representativos de mudanças socioeconômicas e produzidos a partir de um esvaziamento da área, destacando-se enquanto vazios social e fisicamente produzidos. O texto “A indissociabilidade entre patrimônio material e imaterial no estudo das culturas e identidades – A Festa do Rosário e a cidade de Pombal – PB” traz uma contribuição 22
Introdução
singular ao se concentrar na festa como elemento cultural exemplar da inseparabilidade entre patrimônio material e imaterial na análise das culturas e das identidades de povos e lugares. Focamos na ideia de que os objetos materiais e suas representações estão carregados de força simbólica e quando ritualizados, vivenciados por meio de festas, danças, músicas e adereços, bem como outras formas de celebração marcadas pelos encontros e trocas sociais, indicam a impossibilidade de uma rígida separação entre a produção material e imaterial, pois é justamente essa riqueza simbólica que singulariza o patrimônio cultural, ampliando as possibilidades identitárias e de inclusão de dimensões socioculturais diversas. Dentro desse campo simbólico e cultural as festas revelam-se como expressões de significados e espaços de vivências sociais constituindo-se em um campo de investigação importante para a análise das formas de apropriação da cidade e de compreensão das práticas sociais e culturais que fundamentam as identidades e/ou as recriam imbricadas com novos valores e significados. Este artigo procura, assim, compreender a festa como parte integrante e fundamental na construção e consolidação das identidades e das memórias locais. E, finalizamos esta terceira secção com o ensaio “Da cidade do trabalho à cidade do espetáculo. Imagens e discursos sobre Campina Grande” que fala das representações, imagens e discursos veiculados sobre a cidade de Campina Grande (PB) por meio de dois jornais locais - Diário da Borborema (DB) e 23
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia
Jornal da Paraíba (JP), enquanto possibilidade de refletir sobre as narrativas construídas sobre esta cidade entre 1970-2008 e de verificar como se constituiu o processo recente de requalificação urbana. Os resultados apontam uma passagem gradual da ideia de “cidade do trabalho” para a de “cidade do espetáculo” por meio da construção de um discurso marcado pela força, primeiro, da industrialização e vocação para o trabalho, posteriormente, pela requalificação urbana, criação de cenários espetaculares bem como pela construção de um marketing focado em festas populares e na necessidade de se redesenhar a cidade para torná-la competitiva e inseri-la na lógica do mercado. Destacamos, assim, a ampliação de processos antigos de segregação e de produção de novos conflitos socioespaciais. De cidade do trabalho à cidade do forró, da diversão, do lazer, se configuram novos espaços de divulgação da cidade enquanto mercadoria com foco nos processos de culturalização e produção de novos espaços marcados pelo conflito público e privado.
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia (Organizadora)
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I Ambiências urbanas e espaços públicos
POR UMA GRAMÁTICA GERADORA DAS AMBIÊNCIAS Jean-Paul Thibaud
Tradução: Jovanka Baracuhy C. Scocuglia Logo que nos aproximamos da cidade a partir de suas ambiências, a noção de contexto não deixa de ressurgir. Nesse sentido, não se trata apenas de valorizar a heterogeneidade do ambiente urbano, de reafirmar o caráter situado da percepção ou de preferir uma escala de análise à outra. O problema consiste, sobretudo, em pensar o contexto sensorial-motor da cidade com o objetivo de compreender suas dinâmicas. Como dar conta das variações e permanências sensíveis de um espaço público? Em que sentido as ambiências urbanas emanam de uma criação contínua? De que maneira as práticas sociais participam da sensibilização da cidade? Tais questões procuram dar conta do modo pelo qual uma ambiência se forma e se deforma, de compreender onde e como o sensível faz contexto. A ambiência em mutação Um duplo argumento está na base deste questionamento: por um lado, as ambiências urbanas não acontecem de uma vez
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Jean-Paul Thibaud
por todas, mas estão sempre em mutação, em curso de produção; por outro lado, elas não podem ser dissociadas das atividades dos citadinos. Em suma, a hipótese que será aqui defendida é a de que a noção de ambiência permite pensar a determinação mútua do ambiente construído e das práticas sociais. Inicialmente, afirmemos que as ambiências urbanas não podem ser reduzidas a uma simples decoração que envolve a atividade dos citadinos. Se fosse este o caso, a percepção in situ só se atualizaria enquanto uma contemplação desengajada, fundada sobre um retraimento do sujeito em face de seu ambiente imediato. Tudo se passaria como se o usuário pudesse se subtrair do lugar e se libertar. Ou, precisamente, ao conferir qualidades e propriedades particulares ao espaço, as ambiências mobilizam o corpo do passante e o colocam em relação com o lugar. Como veremos em seguida, elas reúnem formas de se deslocar, de se expressar e de perceber que provêm do pleno direito dos comportamentos em público. Longe de ser um simples epifenômeno da ação prática, as ambiências contextualizam as atividades e comprometem as situações em nível sensorialmotor. Dito de outra forma, o ambiente urbano não pode ser definido como um conteúdo neutro e homogêneo dentro do qual se inscrevem as práticas, ao contrário, provém de um meio ecológico heterogêneo formador de práticas que o afetam em retorno. Além disto, se os citadinos se apoiam nos recursos do lugar para desenvolver suas atividades, estes não são apenas puros receptáculos. 28
Por uma gramática geradora das ambiências
Com efeito, os modos de agir em público são em si produtores de ambiências na medida em que ampliam ou neutralizam certos fenômenos sensíveis, exacerbam ou alteram certas propriedades do ambiente construído. Como indica a linguagem corrente, o público tem esta dupla capacidade de “estar na ambiência” e de “fazer ambiência”. Deste ponto de vista, os contextos sensíveis da cidade repousam apenas em parte sobre as características formais e físicas do espaço construído. Tais considerações são plenas de consequências, uma vez que afirmam a relativa incompletude das ambiências em relação aos seus componentes estritamente espaciais e convidam a extrair as consequências do poder expressivo dos corpos em movimento. Partir da noção de ambiência para pensar a mútua determinação do ambiente construído e das práticas sociais conduz, assim, a uma reformulação dos termos desta polaridade. Por um lado, a parte sensível das ambiências se refere à eficácia sensorial-motora do lugar, sua capacidade de mobilizar as condutas e as maneiras de ser específicas; por outro lado, a parte social se refere ao poder expressivo da ação, sua capacidade de produzir e configurar os contextos sensíveis. O problema central é, então, deslocado e se trata de descrever a ambiência como o campo de articulação entre a eficácia sensorial-motora do lugar e o poder expressivo das atividades.
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Jean-Paul Thibaud
eficácia sensorial-motora do local
Ambiente construído
Ambiências urbanas
Práticas sociais
poder expressivo das atividades
Tomar o contexto pelo meio Este movimento de constituição recíproca do ambiente construído e das práticas sociais exige que se tome o contexto pelo meio. Partir de um dos dois termos para, em seguida, reintroduzir o segundo, só reconduziria a polaridade à qual se trata precisamente de escapar. Em outras palavras, a ambiência não é redutível a um ambiente vazio ou abandonado, ela não existe previamente às atividades que a animam. Da mesma forma, a ambiência não é redutível às práticas deslocalizadas ou desencarnadas, estas não precedem o ambiente a partir do qual se atualizam. O problema consiste em pensar a simultaneidade
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Por uma gramática geradora das ambiências
desta codeterminação, sem conferir nenhuma anterioridade a um dos dois termos1. Atribuir um lugar central ao contexto abordando-o pelo viés das ambiências permite reconhecer seu caráter fundamentalmente encarnado. De certo modo, um deslocamento se opera da ideia de contexto para a de contextualização. Tratase, então, de identificar os componentes materiais do contexto, de descrever as manifestações mais concretas especificando uma situação em relação à outra, tanto no plano ambiental quanto social. A este respeito, os fenômenos sensíveis observáveis in situ constituem um dado fundamental de todo contexto: acessível aos sentidos, eles são concretos por natureza; emergindo da interação entre as formas construídas e as condutas sociais, eles são necessariamente transversais; diversos e variados, eles permitem diferenciar as situações. Além disto, esses fenômenos variam segundo os tipos que frequentam o lugar e as ações em curso. Neste sentido, reintroduzem o caráter temporal das situações. Trata-se de compreender o contexto enquanto produção e execução, de revelar as dinâmicas locais a partir das operações elementares que articulam as propriedades 1 Em uma problemática próxima desta, Lave (1988) considera a noção de situação segundo uma dupla condição. A arena designa o arranjo prévio do ambiente material possibilitando a atividade, enquanto o setting designa o ambiente tal qual gerado pela atividade. Por mais interessante que esta distinção possa ser, ela reafirma implicitamente o primado do ambiente sobre a ação e se torna inoperante para dar conta do caráter simultâneo de sua determinação.
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Jean-Paul Thibaud
sensíveis do lugar às formas de condutas sociais. Tomar o contexto pelo meio reconduz, assim, a pensar de forma diferente os processos situados de encarnação da cidade. Em outras palavras, partir das ambiências para compreender a produção da cidade implica colocar a hipótese da constituição sensorialmotora do espaço-tempo urbano. Condições de influência das ambiências Como mostraremos a seguir, podem ser distinguidas três “condições de influência” das ambiências. Primeiro, a ambiência emerge de uma harmonia entre o lugar e as condutas que o suportam. Falamos, então, de uma “ambiência acordada”, no sentido de que os fenômenos sensíveis traduzem uma afinidade estreita que se estabelece entre as impressões e as expressões, entre aquilo que é sentido e aquilo que é produzido, entre o sujeito e o mundo. Neste caso, a ambiência é tematizada em termos da “Unwelt” e envolve uma ecologia do mundo vivido 2. Em segundo lugar, a ambiência emerge por uma variação do lugar em função das condutas as quais ela se presta. Falamos então de “ambiência modulada”, no sentido de que os fenômenos sensíveis flutuam no tempo e se diversificam segundo as atividades. Neste caso, a ambiência provém mais da atualização das “ofertas” (offrandres) e envolve uma ecologia da 2
Sobre a noção de unwelt, indicamos a obra já clássica de von Uexkül (1965).
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percepção situada3. Em terceiro lugar, a ambiência emerge de um condicionamento do lugar pelas práticas sociais em si mesmas. Falamos, então, de uma “ambiência alterada”, no sentido de que os fenômenos sensíveis são o objeto de um reenquadramento derivado da realização das ações em curso. Neste caso, a ambiência torna-se antes de tudo um instrumento de formatação de situações sociais e provém como tal de uma ecologia das relações em público4. Precisemos que as condições de influência não designam tipos de ambiências diferentes, mas dinâmicas de emergência particulares. Neste sentido, elas são complementares umas as outras e operam sempre simultaneamente. A distinção que propomos é, então, antes de tudo de ordem heurística. Esta distinção procura esclarecer três processos ecológicos de base, constitutivos das ambiências procedendo, respectivamente, da aclimatação, da inflexão e da conversão. Cada uma destas condições de influência será analisada sucessivamente a partir de três processos descritivos: a espacialidade (relativa ao lugar), a sensorialidade (relação entre os sentidos) e a socialidade (vínculo entre eles). Note-se que cada um desses processos envolve domínios do pensamento e objetos conceituais 3
Sobre a noção de “oferta” ou de “apreensão” (affordance) e ecologia da percepção de Gibson (1986). 4 A noção de situação social atravessa praticamente toda a obra de Goffman. A ecologia das relações em público que ele propõe é particularmente desenvolvida em Goffman (1963).
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específicos. É preciso ter em mente que as três condições de influência que revelamos provêm de três pontos de vistas entrelaçados relacionados à noção de ambiência. Aclimatação: a ambiência acordada A aclimatação refere-se a uma ressonância das ambiências e dos comportamentos, de modo que se torna impossível dissociar uns dos outros. Neste caso, a atividade dos citadinos se adéqua tanto quanto possível ao contexto sensível do lugar, ela apenas expressa ao seu modo a ambiência existente. De certo modo, o público se torna ambiência e a ambiência o público. Esta adequação provém de uma imediaticidade que deixa pouco lugar para uma atitude reflexiva, conforme o sujeito e seu ambiente se confundem, vibram em uníssono5. Esta primeira condição de influência, da ordem do “ceder”, consiste em “fazer corpo com o lugar”, “tomar-se de afeição” e “fundir-se na paisagem”. 5 O quiasma da cadeira e do mundo, tal como descrito por MerleauPonty em O visível e o invisível, constitui aqui uma referência maior. O comentário proposto por Barbaras (1992) é perfeitamente claro a este respeito: “Que o sujeito não esteja fora do espaço não significa que ele esteja nele: seu pertencimento é mais conivência do que inclusão. A fim de caracterizar este enraizamento, Merleau-Ponty utiliza o termo investimento, no sentido de uma adesão não objetivável, de uma inscrição à distância. O sujeito motor está no mundo sem lhe pertencer, ele o possui sem o representar e é neste sentido, possuído por ele”.
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Fazer corpo com o lugar Se o espaço se define e se mede por suas três dimensões, independentemente da direção e orientação, o mesmo não acontece quando se coloca no plano da experiência vivida. Lidamos, então, com o espaço qualificado implicando inelutavelmente a corporeidade do sujeito6. Deste ponto de vista, mais do que pensar o espaço como categoria a priori, trata-se de evidenciar as formas de espacialidade que mobilizam o meio urbano. Assim, certos lugares se apresentam tensos ou relaxados, se distinguem pelos fenômenos de contração ou de dilatação, mobilizam um sentimento de queda ou de ascensão. Em todos os casos, o sujeito incorpora a ambiência na qual ele se encontra ao mesmo tempo em que a encarna pelas posturas que assume e pelas atitudes que reforça. O corpo apenas diz à sua maneira aquilo que o lugar exprime, ele habita o espaço ao mesmo tempo em que é habitado por ele. Neste sentido, “fazer corpo com o lugar” constitui uma primeira forma de descrever a relação direta entre sujeito e ambiência. Esta dinâmica de aclimatação se atualiza em dois fenômenos fundamentais constitutivos do espaço vivido: amplitude e impulsão. A amplitude provém de um modo de envolvimento do corpo implicando um movimento de diástole e 6
Como mostrou Strauss (1980), de acordo com os trabalhos de LerouGouhran, o estar em pé é um dos traços fundamentais da corporeidade humana; permite tanto enfrentar o mundo quanto abrir um espaço lateral para liberação dos braços e das mãos.
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de sístole, de compressão e de expansão. A compressão remete ao sentimento de ser “estreitado”, “esmagado”, “fechado”, “pesado”, “apertado”, “afundado”. Esta forma de encolhimento do espaço vivido provém de um estado do próprio corpo combinado a um feixe de condições ambientais.A tendência a se dobrar sobre si mesmo, a se curvar e a se contrair se conjuga, por exemplo, a um calor excessivo e a uma ausência de movimento do ar, de teto baixo e de formas construídas exíguas, um ambiente sonoro saturado e uma forte densidade de público. Em resumo, o sujeito é comprimido ao mesmo tempo em que se comprime7. Este fenômeno só se deixa verdadeiramente apreender em relação ao fenômeno contrário, de expansão, que aparece quando o passante se depara com uma praça ou uma galeria mais ampla, quando um horizonte se libera, quando um jogo de espelhos e reflexos dilata o espaço visual, quando uma abertura dá acesso ao ar livre ou quando o ambiente sonoro se torna mais inteligível. Neste caso, o sujeito tem a tendência de 7
Binswanger (1998) tinha consciência desse fenómeno de “fechamento do coração” para recolocar em causa qualquer causalidade ou anterioridade do espaço sobre o vivido: “Nesta relação de essência do ser do clima do jogo – pelo qual escolhemos de preferência e pelas mais fortes razões a expressão “coração” como a melhor designação para o centro de nossa essência – e da espacialidade do mundo, nada é a causa ou o efeito, a condição ou o condicionado, aquilo que induz ou que é induzido, nem mesmo a razão ou a consequência, mas muito mais aquilo que chamamos de fechamento do coração consiste em tudo que está no limite do mundo e do céu, e inversamente a limitação do mundo e do céu reside no fechamento de nosso coração”.
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se abrir e reencontrar uma envergadura, uma “zona de conforto” 8 que havia momentaneamente perdido. A impulsão provém de um modo de acompanhamento do corpo móvel que começa um movimento de retenção e de protenção9. Este fenômeno dinâmico se manifesta em particular nos percursos urbanos quando o citadino se desloca e passa de um lugar ao outro. Neste caso, o impulso motor consecutivo à mudança de meio é vivido simultaneamente em termos ativos e passivos. De um lado, o sujeito toma posse do novo lugar ao desobstruí-lo ou penetrá-lo, ao mesmo tempo em que ele deixa o antigo ao escapar dele. Em todos os casos, sua atividade motora traduz uma transição entre os espaços qualificados: nós “penetramos numa zona sombria” ou “num lugar muito movimentado”, “deixamos para trás os sons de uma praça”, “escapamos de uma reverberação forte”, “mergulhamos em uma ambiência sonora confusa”, “perdemos a luz natural” etc. Por um lado, esta projeção do próprio corpo se acompanha do sentimento de ser “engolido” ou “aspirado” pela frente, ao mesmo tempo em que “ejetado” ou “empurrado” para trás. Às vezes até mesmo a sensação da queda torna-se tão pregnante que o sujeito tem a impressão de “mergulhar”, de “se afundar” ou de 8
Sobre as noções de “zona de conforto” e de “amplitude da vida” ver em particular Minkowski (1968). 9 Para Edmund Husserl, o presente não se reduz ao puro “agora” de uma impressão, mas chama necessariamente a “protenção” (aquilo que vai acontecer) e a “retenção” (o que acaba de acontecer).
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“se precipitar”. Tudo se passa como se o impulso do passante a ir em frente reduplicasse o apelo do lugar e a memória imediata do que deixa atrás de si. Em resumo, a amplitude e a impulsão constituem dois modos de articulação fundamentais do espaço-tempo vivido. Neste sentido, “fazer corpo com o lugar” não designa somente a arte de um saber corporal ligada a um ambiente, mas também a capacidade de uma ambiência de evocar as qualidades de movimentos específicos. Em suma, a ambiência coloca o corpo em certa disposição. Mais precisamente, esta ressonância do espaço do próprio corpo e do espaço do mundo ambiente se organiza com base em esboços motores10 constitutivos da experiência sensível. Tomar-se de afeição O processo de aclimatação envolve também os sentimentos de “plano de fundo” 11 que podemos tematizar em termos de afetividade. Deste ponto de vista, a ambiência não pode ser reduzida a uma soma de sinais físicos, nem mesmo à disposição de fenômenos distintos segundo a modalidade 10
A ideia de esboços motores permite acentuar a importância do tronco (mais do que as extremidades do corpo) como núcleo motor principal e centro da expressão essencial do sujeito. Desde meados do século XIX o ator ou músico François Delsarte já havia evidenciado o lugar fundamental do dorso enquanto poder de expressão e de simbolização do corpo em movimento. Um século mais tarde, Erwin Straus e Ludwig Binswanger reconduziram esta análise mostrando como o movimento do
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sensível considerada, ela provém muito mais de uma sinergia entre os sentidos fazendo apelo ao aspecto emocional de uma situação. Uma sonoridade, uma luminosidade ou um odor são sentidos segundo um mesmo movimento que confere unidade ao mundo sensível. Enfatizemos, por um lado, que estas disposições afetivas se distinguem das seis categorias fundamentais da emoção identificadas ao seu tempo por Darwin (medo, raiva, tristeza, desgosto, surpresa, alegria) uma vez que elas ficam a maior parte do tempo pré-conscientes e passam quase sempre despercebidas. Notemos, por outro lado, que estes impulsos são anteriores a oposição do objeto e do sujeito, evocam simultaneamente o sentimento de si e do mundo.
tronco domina o conjunto dos movimentos corporais e remete a nossa forma de estar no mundo. 11 A noção de “sentimento de plano de fundo” foi desenvolvida várias vezes na neurociência por Damasio (1996, 1999) para dar conta de nosso estado mental e de nosso humor, para valorizar nossa capacidade de avaliar mais ou menos conscientemente o estado de “tônus físico geral de nosso organismo” (cansaço, exaltação, doença, tensão, relaxamento, etc.)
Por exemplo, num espaço saturado de estímulos de todos os tipos, a ambiência pode ser avaliada como “embriagante”, “deprimente”, “aflitiva”, “perturbadora” ou “assustadora”. Estes qualificativos indicam uma tonalidade dominante do lugar ao mesmo tempo em que uma tensão rítmica envolve o conjunto dos sentidos. Em outras palavras, é menos aquele barulho particular que é apreendido do que o caráter “aflitivo” deste 39
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meio sonoro, menos a luminosidade extrema de um objeto ou de uma superfície do que o aspecto “perturbador” deste meio luminoso, menos a presença de um simples odor do que o efeito “incômodo” de um meio olfativo etc. Em suma, enquanto tonalidade afetiva, a ambiência não se aplica a objetos ou a stimuli particulares, mas colore a situação como um todo 11. Os fenômenos se conjugam uns aos outros para dar uma fisionomia de conjunto ao espaço percorrido. A tendência à agitação e à vivacidade é, assim, indissociável do sentimento experimentado: o mundo “transborda”, “fervilha em todas as direções”, “pulsa por todos os lados”. Tudo concorre para a hiperestimulação, para uma tensão generalizada, para um ritmo constante, sem que seja possível definir uma origem precisa e diferenciar claramente os fenômenos entre si. Em outros lugares ou em outras ocasiões, a ambiência pode ser sentida como “calma”, “repousante”, “relaxante” ou “tranquila”. Neste caso, predomina uma atmosfera geral de relaxamento que combina muito bem com uma luminosidade discreta e sem brilho, um meio sonoro silencioso e sem ressonância, uma relativa liberdade de deslocamento e passos 11 Ao definir Stimmung como o “plano de fundo obscuro dos sentimentos misturados”, Husserl viria a propor a ideia de uma intencionalidade nãoobjetivante. Desde que procuramos dar conta da vivência emocional do ponto de vista da gênese (e não mais estático), somos levados a reconhecer seu caráter difuso, mais do que focalizado. Sobre esta questão, ver em particular Nam-In (1998).
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lentos etc. Aqui também estes fenômenos sensíveis se sobrepõem e se conjugam num ritmo comum que lhes confere uma mesma tonalidade12. Os sujeitos experimentam um sentimento de apaziguamento “flutuante”, ao se deixarem “embalar”, “impregnar” ou “levar” pelo meio ambiente. Enquanto que a ambiência estressante descrita anteriormente foi vivenciada como limitação, estamos lidando aqui muito mais com uma atitude de disponibilidade com relação ao mundo em redor. Em síntese, “tomar-se de afeição” se refere a um modo de receptividade que remete a estados específicos dos corpos que colocam os sentidos em sinergia. Os dois casos extremos que acabamos de ilustrar revelam que existem diferentes modos de vivenciar uma ambiência e de compreendê-la. É claro que, outros contextos, mais variados, também despertam nossa 12
Ao relacionar a tonalidade afetiva ao valor do ritmo, Abraham (1999) mostra como forma e matéria se determinam mutuamente. Deste ponto de vista, a atitude ritmizante permitiria assumir certa unidade na diversidade de fenômenos sensíveis: “na atitude rítmica o objeto percebido não apareceria em si mesmo, mas apenas a titulo de substrato de um elemento destacável, o ritmo. Não é preciso acreditar, porém, que o ritmo se junte ao barulho pura e simplesmente. Trata-se do ritmo deste barulho mesmo, e é impossível de percebê-lo separadamente. Há, então, uma síntese. Mas uma vez percebido, o ritmo pode ser separado de seu substrato, reproduzido no lazer e levar uma vida autônoma, de qualquer modo extra-temporal. Torna-se uma regra, um saber. Mas ao mesmo tempo, esta regra, este saber, se oferece a mim como perpetuamente hipostasiado dentro do objeto de minha percepção. Em suma, o ritmo se apresenta, com relação ao seu substrato, a cada vez como imanente e transcendente”.
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propensão a sermos afetados. De qualquer maneira, enquanto atos não-objetivantes, reveladores de situações globais mais do que de objetos determinados, as tonalidades afetivas parecem garantir certa unidade aos diversos registros sensoriais. Fundir-se na paisagem A aclimatação remete ao estar-juntos, analisável em termos de intercorporeidade. Aqui se está em jogo o entrelaçamento estreito entre os corpos, como se estivessem ligados entre si por fios invisíveis, embora muito pregnantes 13. “Fundir-se na paisagem” designa a operação a partir da qual os indivíduos adotam ritmos e estilos de comportamentos partilhados, variáveis conforme os lugares e as circunstâncias. Estas maneiras de ser comuns se apoiam sobre formas coletivas de habilidade motora14. 13 Interrogando-se sobre as condições de possibilidade de todo encontro humano, Tallenbach (1992) reforça aquilo que ele chama de “acordo atmosférico”: “O que é preciso então a mais para que dois indivíduos comecem a se comportar como um em relação ao outro no sentido de um encontro pessoal? Parece-lhe bem que alguma coisa da qual eles participem juntos se coloca em ação neles, um fluido que os envolve e os dirige juntos a algo no qual eles são mergulhados, algo invisível, intangível, porém de uma realidade decisiva e absoluta. Podemos chamar este fluido de ‘atmosférico’”. 14
Para um desenvolvimento da ideia de “sociomotricidade” ver Demeuldre (1997).
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Em alguns casos, o ambiente é a tal ponto opressor que as expressões individuais se fundem e se diluem no coletivo. Esta “diluição” das identidades se manifesta, por exemplo, quando o sujeito consegue escutar os sons que ele mesmo produz. As vozes se “fundem” no burburinho, da mesma forma que os passos se “entrelaçam” num todo indistinto. Não se sabe mais quem produziu o que. Não apenas as expressões humanas se misturam umas as outras sem que seja possível diferenciálas, mas também acontece dos sons humanos se misturarem às emissões de origem mecânica: o rumor vocal fusiona com o barulho urbano, o conjunto das conversações se assimila ao som de uma fonte ou de uma escada rolante etc. A ambiência sonora não se deixa decompor em sinais identificáveis, mas provém, sobretudo, de uma “espécie de tudo”, um “burburinho confuso” ou um “nevoeiro sonoro” que deixa pouco lugar aos eventos singulares e às emergências notáveis. Da mesma forma, em nível cinestésico, os gestos de cada um participam de um movimento conjunto e impulsionam uns aos outros. As situações de multidão tendem, assim, a criar uma agitação da qual o sujeito dificilmente pode escapar. Neste caso, o imaginário de agitação e de congestionamento exprime uma relativa indiferenciação dos indivíduos que se movimentam e se deslocam em ritmos sensivelmente idênticos. Os gestos de cada um fazem parte de um movimento conjunto e impulsionam uns aos outros. Mas, em geral, o início da fase rítmica das condutas
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interpessoais constitui uma condição fundamental da interação social15. O mecanismo subjacente de ajustamento corporal consiste em adaptar seu comportamento às condições e circunstâncias locais. Segundo os lugares, os passantes começam a cochichar ou, ao contrário, a levantar a voz, a baixar o tom ou a falar auto. Assim, certos lugares são “lugares onde falamos alto” ou, ao inverso, lugares onde “parece impossível falar alto. Tudo se passa como se a ambiência em questão devesse ser prolongada coletivamente, como se uma injunção tácita incitasse o público a ajustar seu comportamento de modo a se adequar ao de outrem. Da mesma maneira, os espaços urbanos se distinguem uns dos outros por evocarem diversos tipos de passos. Alguns se prestam mais a deambulação e a flânância, enquanto outros não se deixam atravessar ou percorrer16. Os passantes modificam assim seus olhares em função do lugar no qual eles se encontram, eles aceleram ou desaceleram, começam a se “arrastar” ou a “andar em um ritmo acelerado”, “flanar mais” ou “andar mais lentamente” quando a “tensão diminui” e quando o “tempo se desacelera”. Ao se 15
Sobre a relação de “sintonia” como condição primeira do estar-juntos ver Schûtz (1984). O “modelo orquestral” de comunicação, desenvolvido por Winkin (1981) a partir do trabalho da École de Palo Alto oferece também uma preciosa análise desta forma de pensar o contexto.
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Sobre a variação de passos segundo os lugares urbanos atravessados ver em particular Sansot (1984) e Augoyard (1985).
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observar as condutas sonoras ou os estilos de caminhar, o problema se coloca nos mesmos termos: aquele da adaptação social a uma ambiência local, ou seja, da partilha possível de uma temporalidade encarnada. Para resumir, “fundir-se na paisagem” é uma operação a partir da qual um ambiente adquire unidade e coerência. Se o espaço público promove uma grande diversidade de atividades e de práticas, estas participam, porém, de um mesmo estilo de comportamento, de um ritmo de conjunto que lhes confere um colorido local. Em suma, a ambiência reconduz localmente as maneiras de partilhar. Em outras palavras, o acordo rítmico que se estabelece numa ambiência provém de uma disposição temporal dos corpos permitindo a existência de um mundo comum. Inflexão: a ambiência modulada A inflexão remete ao poder dos citadinos de modificar as ambiências urbanas. Estas variam em função dos usos e dos modos de intervir no lugar. Neste caso, as percepções e ações do público podem ser lidas num nível duplo: de um lado, se realizam em função das atividades oferecidas pelo ambiente, por outro lado, têm o poder de ativar ou de desativar alguns destes recursos. Paradoxalmente, enquanto uma literatura abundante se interessa pela forma como o ambiente construído torna a ação
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possível17, poucos trabalhos o trataram enquanto suporte da expressão dos habitantes. Se a realização de uma ação se apoia em grande parte nas informações liberadas pelo ambiente, não se deve esquecer que tal acontecimento não se faz sem modificar ao mesmo tempo o espaço sobre o qual ele se apoia. Esta segunda condição de influência, da ordem do se expor, consiste em “colocar o espaço à prova”, “acomodar-se com pouco” e “marcar presença”. Colocar o espaço à prova Em todos os sentidos o espaço construído gera as qualidades sensíveis dando forma a matéria, flexionando a sonoridade e a luminosidade dos lugares, especificando os modos de distribuição e de propagação dos sinais físicos. Estas qualidades não se referem apenas a tornar visível, escutar ou sentir, elas funcionam como recursos mais ou menos propícios a certas atividades: um recanto sombrio e relativamente isolado dos fluxos cotidianos se torna mais facilmente um nicho ecológico servindo de refugio aos sem abrigo; um terraço de café é muito mais atraente se possui um conforto térmico e um ponto de visto privilegiado para os eventuais consumidores; uma subida de escada bem dimensionada, ao abrigo do vento e particularmente ensolarada convida a permanência por alguns 17
Além das pesquisas fundantes de Gibson, retenhamos dentre outros os trabalhos muito esclarecedores de Norman (1988) e Hutchins (1995).
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instantes; uma mureta à boa altura oferece diversas oportunidades de uma estadia temporária (sentar-se, conversar, colocar seus objetos para fazer uma pausa durante um trajeto) etc.18Afirmar a existência de tais “amenidades sensíveis” não significa adotar uma lógica verdadeiramente determinista ou excessivamente simplificadora. Assim, certas características sensíveis do lugar não são necessariamente convergentes ao nível do conforto que oferecem ou das atividades que acolhem. Por exemplo, quando um passante deseja fazer uma pausa no espaço publico, um lugar ventilado, porém, bem ensolarado é preferível a um lugar protegido do vento embora muito sombreado? Uma praça bem exposta à luz, mas excessivamente barulhenta é mais adequada à permanência do que uma praça mais calma, porém particularmente fétida? Além disto, o habitante não se adapta automaticamente às injunções do espaço construído. Ele dispõe de um poder de resistência que o permite por vezes contornar os constrangimentos práticos aos quais é confrontado.19 Por exemplo, mais do que seguir um longo percurso conforme foi projetado inicialmente, os passantes não hesitam em tomar caminhos mais curto ou transversais… um banco deliberadamente projetado para impedir que se deite pode, em certos casos, ser utilizado para tal por meio de uma 18
Numerosas ilustrações e analises desses recursos ambientais podem ser encontrados em Whyte (1988) e Gehl (1987).
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No que se referem às “táticas” utilizadas pelos habitantes, ver as considerações elucidativas de Certeau (1980).
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postura adequada… Entretanto, reconhecer esta complexidade dos usos não coloca em questão necessariamente a ideia de que o ambiente construído provém de certa definição das práticas. Se o ambiente construído favorece determinadas práticas dando o suporte adequado, estas práticas não deixam imutáveis as propriedades deste mesmo ambiente. É suficiente comparar um mesmo lugar num período de grande afluência ou num momento onde ele é abandonado para compreender o quanto a simples presença física do público modifica sua estrutura territorial. Por exemplo, a distribuição do público no espaço altera as possibilidades dos percursos. Uma zona excessivamente densa e fortemente bloqueada pode por vezes necessitar de um contorno ou ao menos de uma redução da velocidade dos passantes. De certa forma a presença humana configura o espaço dos deslocamentos ao criar zonas mais ou menos fluidas ou congestionadas e ao imprimir um ritmo particular ao espaço percorrido. Mesmo certos lugares privilegiados de agrupamento estruturam temporariamente o território ao nível sonoro. Assim, uma explosão de vozes ou um rumor da multidão, gritos das crianças ou aplausos possuem o poder de restaurar a profundidade do espaço ao tornar audível uma fonte cuja origem não está mais visível. Segundo a localização e a maneira como se propagam essas produções sonoras, ligadas às atividades em curso, destacam a existência de certas zonas em detrimento de outras. As ações sonoras do público funcionam, assim, como indícios de suas presenças ao 48
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mesmo tempo em que são reveladoras da morfologia espacial do lugar. Em suma, estes modos diferenciais de ocupação e de uso do espaço não são sem efeito sobre a composição sensível do território urbano. Este fenômeno de territorialização sonora procede quase sempre por imbricação de dois ou vários espaços entre si. A ambiência sonora não se apresenta apenas como aquilo que está exatamente aqui, na proximidade, nem como o que já está longe, à distância, mas como o que está simultaneamente aqui e lá. Deste ponto de vista o ambiente construído se define em termos de dispositivos materiais. Esses oferecem recursos à ação, influenciando as práticas ao mesmo tempo em que as atualizam em função dos usos aos quais se prestam. Em síntese, “colocar o espaço à prova” consiste em tirar proveito dos recursos do lugar, selecionando, atualizando e valorizando aqueles que são efetivamente operacionais pelas ações em curso em determinado momento. De certa forma, a atividade dos citadinos opera como um filtro ou um amplificador das possibilidades práticas que oferece o espaço. Afirmar a capacidade do público de apreender as amenidades sensíveis de um lugar conduz, assim, a reconhecer o caráter variável e circunstancial do ambiente construído.
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Acomodar-se com pouco Como havíamos visto, é necessário muito pouco, quase nada para modificar uma ambiência. O que pode passar por um simples detalhe ou um fenômeno curioso, sem grande importância, é suficiente para qualificar o ambiente sensível em sua totalidade. A caminhada constitui a este respeito um exemplo significativo na medida em que permite influenciar a maioria das qualidades sensíveis de um lugar. A relação estreita com a morfologia do entorno, o revestimento do piso tem aqui um papel essencial. As diferentes propriedades que ele possui – liso ou estriado, firme ou móvel, opaco ou reflexivo, absorvente ou reverberante etc. – se atualizam no e pelo deslocamento do visitante. O piso não dá apenas apoio à caminhada, mas materializa de diversas formas, os passos e se revela tanto em nível sonoro quanto luminoso. Assim, certos pisos fazem com que “arrastemos os pés” ou “hesitemos em pousá-los”, “pisoteemos”, “tropecemos”, “escorreguemos” mais facilmente. Essas diferentes formas de caminhar produzem sonoridades particulares e qualificam o lugar em termos sonoros ao lhe conferir um ritmo e uma duração específicos 20. O lugar não é, então, atemporal, ele se impulsiona tanto pelas qualidades do 20 Charles (1979) distingue duas modalidades principais de produções sonoras derivadas da caminhada: pisoteio com sua dimensão rítmica e o escorregamento, da ordem da continuidade.
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movimento quanto pelas qualidades sonoras distintivas. Notemos que certos solos são mais “sonoros” do que outros, mais reverberantes, e permitem mais facilmente a expressão sonora de quem caminha. Nesse sentido, a caminhada é mais ou menos audível segundo os lugares atravessados, o piso e seu entorno fazendo a função de amplificador ou de amortizador dos barulhos de deslocamento. Além disso, as formas de contato do pé provêm do encontro entre as propriedades físicas do solo e os tipos de calçados usados. O corpo do passante é dotado de atributos que participam da modulação da ambiência sonora: calçados de saltos ou de solado compensado (como também malas com rodinhas ou patins, carrinhos de bebê ou cadeiras rolantes etc.). Conforme o caso, o passo começa a “ranger”, “crispar”, “bater”, “friccionar”, “soar” e “ressoar”. Algumas vezes o barulho dos passos forma um conjunto indistinto, um ruído (ronronar) surdo relativamente contínuo; em outros casos, produz um evento inesperado revelando certas irregularidades do solo (laje disjuntiva, bueiro instável etc.). Acontece, enfim, dele contar uma história quando o barulho do impacto dos saltos é tão preciso que possibilita que se siga, acompanhe pelo ouvido o percurso e as aventuras de um passante. Mesmo se numerosos recursos técnicos sonoros invadam certos espaços públicos urbanos (escadas rolantes, sistema de ventilação, música ambiente), a ausência de circulação motorizada nos espaços subterrâneos ou de pedestres favorece a relativa pregnância dos passos no ambiente sonoro. O solo constitui, assim, um 51
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instrumento de modulação sonora do local no qual e com quem interage o público. Igualmente, no nível luminoso, o piso fornece informações que conduzem o caminhante a seguir ou parar, passar ou hesitar. O piso muito brilhante ou com reflexos intensos pode desestabilizar momentaneamente o passante desavisado. Ao contrário, uma luz muito estruturada e canalizada pode orientar e direcionar o pedestre em seu caminho. Se as propriedades luminosas do solo participam na orientação e no deslocamento do caminhante, elas são também influenciadas pela presença mesma do público. Assim, segundo a densidade de frequentação, a pregnância visual do solo será maior ou menor. Além disso, os corpos em deslocamento podem, sob certas condições, projetar sua sombra no solo, reduzir por isso mesmo a luminosidade e causar perda de seu brilho. Quando o sol está forte ou quando o lugar é iluminado artificialmente por recursos luminosos muito direcionais, o piso se torna uma superfície perfeita de projeção das sombras e modifica por isso a apreensão que se tem dos tamanhos, das dimensões e das escalas (ALEKAN, 1991). Tomamos o solo como exemplo paradigmático desta aclimatação sensível pelo público. Outras superfícies de contato, como as escadas ou as pontes poderiam ser objeto de uma descrição semelhante. Sem entrar nos detalhes, uma simples abertura de ponte pode liberar uma vista, proporcionar luminosidade, criar uma corrente de ar, deixar entrar os odores 52
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ou os sons etc. Em todos os casos, lembremos que os componentes materiais do espaço permitem ao público modular muito sutilmente as qualidades sensíveis do lugar. O mais ínfimo detalhe de um dispositivo construído pode filtrar, acentuar ou neutralizar a força expressiva constitutiva das atividades em curso. Em resumo, “acomodar-se com pouco” consiste em se apoiar sobre os microfenômenos para modificar a estrutura e a coerência interna de uma ambiência. Deste ponto de vista, a produção de uma ambiência envolve um movimento de covariação das modalidades sensíveis. Acontece aqui uma integração do diverso dentro de uma totalidade sempre em movimento e instável, da interação entre a parte e o todo, entre o individual e o coletivo. Pelo seu potencial plurissensorial e sua operacionalidade prática, as superfícies de contato constituem sem dúvida um dos suportes privilegiados desta dinâmica de totalização. Marcar presença O público raramente é visto como um todo indiferenciado, como uma massa indistinta que ocuparia um espaço também homogêneo. Certos atributos dessas pessoas e certas práticas localizadas permitem marcar presença, de se manifestar de maneira particular ou de se constituir em grupo distinto. Em outras palavras, os suportes levados e transportados pelo público em si mesmo, assim como as diversas formas de 53
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apropriação social do espaço atualizam as qualidades próprias aos espaços habitados. Assim, o odor, a fumaça, o calor e o som não provêm apenas do ambiente construído e de suas características físicas, eles marcam e exprimem uma presença humana. Se os odores de perfume ou de cigarros podem se misturar àqueles provenientes das boutiques nas proximidades, tendem a se dispersar com a ajuda de sistemas de ventilação ou de aeração ou a perdurar por uma impregnação dos materiais, não é para menos que eles emergem, por vezes, do meio ambiente. Esses vestígios, deixados por um perfume ou pela fumaça de cigarro funcionam como traços sensíveis de um uso passado ou presente. Estes traços, mais ou menos evanescentes ou duráveis, personalizados ou anônimos, provêm de um uso efetivo do lugar ao mesmo tempo em que o qualificam. O mesmo com relação ao calor que é modulado em função do grau de frequentaçãodo lugar, um número importante de corpos em movimento constitui um aporte térmico não desprezível. No espaço fechado, apesar da maior ou menor possibilidade de circulação do ar, uma multidão densa e durável tende a aquecer o lugar e a dotá-lo de qualidades que não possuía no início do dia. Em nível sonoro, um simples grito de criança dentro de um local abandonado e reverberante “preenche” o lugar e exacerba a presença de crianças, o mesmo acontece com a chegada repentina de um grupo numa praça,
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pode produzir um efeito de onda21 que reconfigura o espaço sonoro em seu conjunto. E mais, se mostramos antes que os lugares tendem a se encarnar dentro de ritmos partilhados, isso não é sistemático. É suficiente que uma pessoa comece a correr num fluxo lento de transeuntes, procure seu caminho com passo hesitante ou tropece inesperadamente numa multidão em marcha, para que sua presença se torne perceptível e observada. Estes pequenos incidentes ou “microacontecimentos” (MOLES, 1982) participam da ambiência do local dando lugar ao imprevisível e à improvisação. Enfim, certas práticas, mais ou menos espontâneas ou ritualizadas, pontuam a ambiência em público. O uso mais ou menos frequente de telefones celulares, o uso de veículos de propaganda para anunciar e festejar um casamento, certos “corridas” praticadas na cidade aos sábados à noite são apenas alguns exemplos desses acontecimentos sonoros que permitem destacar sua presença frente ao outro. Da mesma forma que a prática crescente de patinar, fazer skateboard, patinetes e outras pranchas sobre rodas modificam sensivelmente a aparência dos espaços urbanos atuais e permitem colocar em cena novas categorias de passantes. Aparelhados com cada vez mais tecnologias portáveis e transportáveis, os citadinos dispõem de 21 O efeito de onda é um “efeito de composição descrevendo um som ou um grupo de sons que seguem uma curva de difusão da forma análogo ao de uma onda e de sua ressaca: crescendo, ponto maximal, ruptura mais ou menos precisa e decrescendo.” (Augoyard et Torgue, 1995).
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novos meios de ostentação e de expressão que imprimem suas marcas sobre a ambiência das cidades. Para resumir, “marcar presença” consiste em imprimir sua própria marca na ambiência do lugar ao deixar ali um traço perceptível ou ao se conduzir de modo singular e inesperado. Deste ponto de vista, a ambiência não é redutível a soma das produções ou expressões singulares, ela provoca um vai e vem contínuo entre o que é ordinário e o que se torna marcante. A este respeito, os microacontecimentos da vida cotidiana estão lá para nos lembrar de que uma ambiência pode ser requalificada a todo o momento. Conversão: a ambiência alterada A conversão remete ao trabalho de redirecionamento da ambiência do lugar pelo público. A atividade dos pedestres se torna pregnantea tal ponto que tende a alterar o meio ecológico no qual se desenvolve. Neste caso, os citadinos não se limitam a tirar proveito dos recursos do lugar, reconfiguram o contexto sensível sobre o qual se apoiam para conduzir melhor suas atividades. De algum modo produzem as próprias condições de suas ações e transformam as ambiências em um domínio de ordem essencialmente prática. Esta terceira condição de influência, da ordem do “captar”, consiste em “dar a medida do lugar”, “demonstrar discernimento” e “dar tonalidade as situações”. 56
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Dar a medida do lugar O público não age apenas se adequando ao lugar ou modulando-o, ele também dá a medida do lugar. Em particular, segundo as densidades de frequentação do espaço, as condições mesmas da percepção podem ser afetadas. São menos as qualidades sensíveis que estão em jogo aqui do que o mundo perceptível em si mesmo, ou seja, a possibilidade de ter acesso ou não, parcial ou completamente, ao campo de entorno. Mais precisamente, a presença humana pode influenciar o alcance do olhar e o potencial de audição. A redução do campo de percepção e de suas escalas intervém, por sua vez, no nível visual e sonoro. Do ponto de vista visual, o corpo dos passantes possui uma função de obstáculo e pode eventualmente bloquear a visão. Quando há a presença de poucos passantes, os corpos se separam e se disseminam no espaço, a visão fica relativamente liberada. Ao contrário, numa situação de multidão, o corpo dos citadinos faz o papel de uma “cortina” ou de uma “massa” opaca que não deixa passar o olhar e tende muitas vezes a sombrear o espaço em volta. O campo de visão se reduz ao mínimo e não se sobrepõe mais aos obstáculos materiais. O espaço visual é, então, principalmente, emoldurado pelo próprio público. Certas técnicas como, por exemplo, a “cabeça sobre os ombros” (WOLF, 1973) são utilizadas pelos transeuntes para tentar ver além da pessoa a sua frente, e para poder adiantar o percurso 57
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tanto quanto possível. Da mesma forma, quando dois fluxos de pedestres muito densos são levados a se cruzar (como, por exemplo, numa bifurcação), eles se organizam como “batedores” ou “escudos” que ajudam a enfrentar o “muro ambulante” vindo em sentido oposto (LIVINGTON, 2002). Em outras palavras, as ações práticas e interações sociais são elas mesmas produtoras de condições de visibilidade necessárias ao bom desempenho. Em nível sonoro, o acesso aos recursos distantes é consideravelmente reduzido quando nos encontramos no meio da multidão muito densa (manifestação pública, tráfego de pedestre em horas de pico, galerias comerciais ou ruelas estreitas no centro da cidade fortemente frequentadas etc.). Não apenas os corpos limitam a propagação dos sinais à distância formando barreiras, mas também as produções sonoras humanas próximas (em particular as vozes e os passos) tendem a escondê-los. Neste caso, os passantes são imersos em um banho sonoro que se compõe, sobretudo, de trechos de conversas captadas por ocasião das pessoas que seguimos, precedemos ou cruzamos. Em tal contexto, são, antes de tudo, a presença humana e a produção sonora do público que definem o potencial de audição. Aqui, como anteriormente para a visão, parece impossível distinguir claramente diferentes planos ou escalas de percepção 22 . 22
Retornamos aqui, analisado segundo uma perspectiva diferente, ao fenômeno da “compressão” descrito na parte dedicada à aclimatação.
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Em resumo, “dar a medida do lugar” consiste em reconfigurar as escalas do lugar do ponto de vista perceptivo. Isto se aplica aqui a própria materialidade dos corpos e a sua capacidade para obstaculizar a visão e a audição. Mesmo exigindo um esforço de atenção, o passante é submetido a uma restrição do campo perceptivo do qual é ele mesmo um dos principais fatores. Mostrar discernimento Se os passantes usam seus sentidos para agir e interagir com outros, eles são por vezes confrontados com situações problemáticas que não se deixam apreender em seu imediatismo. Certas informações emitidas pelo ambiente são percebidas como incongruentes, ambíguas ou deslocadas. Neste caso, a ausência de correspondência entre o esforço perceptivo e o percebido chama atenção e necessita de um verdadeiro trabalho de reenquadramento23. Estas desestabilizações perceptivas podem advir do ambiente sonoro ou visual ou mais frequentemente da disjunção entre aquele que viu e ouviu. Em nível visual, certos reflexos podem multiplicar ou inverter as perspectivas e produzir por isso 23 Sobre a noção de “quadro” como dimensão fundamental da experiência, ver Goffman (1991) que se inspira ele mesmo nos trabalhos de Bateson que são a origem da noção de quadro.
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ilusões óticas que só se resolvem ao longo do percurso. Contrariamente ao habitual, os passantes podem ver aquilo que se encontra atrás deles, captar as proporções do espaço sentidas de cabeça para baixo ou apreender simultaneamente um mesmo objeto segundo vários pontos de vista. Além disto, certas configurações luminosas podem indicar um acesso que é de fato inexistente ou fazer supor erroneamente a existência de saídas. Assim, os passantes tendem a se enganar e a só perceber após o golpe de ilusão ao qual foram submetidos. Em nível sonoro, certos espaços são fortemente ubíquos, ao ponto de ser difícil identificar exatamente a natureza e a procedência dos sons escutados. Os passantes têm, então, dificuldades em utilizar o ambiente sonoro para se situar ou se orientar, adotam uma atitude reflexiva a fim de resolver este problema de interpretação. Falta-lhes, às vezes, fazer uma verificação visual para se assegurarem do fundamento de sua versão e eventualmente retificá-la. Estas diversas anamorfoses do espaço percebido mobilizam um trabalho de inferência por parte do sujeito, percebendo e avaliando o conjunto de suas capacidades cognitivas. Muitas vezes, é a defasagem entre a imagem e o som que está em jogo. Vemos, por exemplo, apenas poucas pessoas enquanto escutamos muito ou, ao contrário, identificamos uma atividade intensa e movimentada de um grupo de músicos de rua sem ser possível escutar a música pela qual eles se agitam. Em outros casos, um local monumental, histórico, com forte carga 60
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simbólica e patrimonial, permite escutar apenas os sons anódinos do cotidiano, de ordem essencialmente do privado e mais familiares. Estas produções sonoras são percebidas como incongruentes e deslocadas, na medida em que remetem a outro contexto de referência, em suma, “há um erro na trilha sonora”. De certa forma, estamos diante aqui de uma “dissonância” entre o que é visto e o que é entendido, de uma descontextualização sonora do quadro visual de referência. Enfim, se o espaço público reúne uma diversidade de atores e de atividades, ele coloca também em jogo os ajustamentos recíprocos entre passantes, da ordem da civilidade. Deste ponto de vista, a percepção não se atualiza somente em função de um ambiente, mas também em função das condutas dos outros. A formatação do ambiente envolve simultaneamente um enquadramento das interações sociais. Por exemplo, as relações de tráfego mobilizam diversos tipos de atenção segundo o contexto considerado. A disponibilidade dos passantes com relação ao ambiente construído parece variar em função dos problemas de percurso encontrados. Assim, quando um local é suficientemente espaçoso e fluido, os percursos se realizam facilmente sem que seja necessário um grande esforço de atenção dedicado ao outro. Neste caso, o passante tem em todas as oportunidades de se deixar levar por um devaneio e deixar flutuar sua atenção sem, entretanto, negligenciar a presença de outros citadinos. Por outro lado, quando o espaço está particularmente denso, o caminhante deve estar constantemente 61
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em estado de alerta para caminhar sem armadilhas. É preciso, então, “esgueirar-se”, “zigzaguear”, “abrir caminho”, “contornar”, “evitar as pessoas”, “não colidir”, “não empurrar”, “não bloquear a passagem” etc. Em suma, a atenção é constantemente orientada para outrem. A evitação interpessoal e a antecipação das trajetórias se resolvem dentro de breves mudanças de olhares, em termos de olhadas furtivas 24. Tudo é matéria de informação, o prazer dos sentidos e as qualidades sensíveis do lugar ficando relegadas ao segundo plano. Aqui predomina a dimensão social das ambiências, em detrimento a sua dimensão sensível, a atividade dos passantes tende a se limitar quase exclusivamente a resolução de problemas práticos. Para resumir, “mostrar discernimento” significa tornar inteligível a ambiência na qual nos encontramos apesar dos enigmas perceptíveis encontrados. O trabalho de enquadramento executado pelos passantes permite dar sentido comum a um ambiente partilhado e de continuar a praticar conjuntamente um espaço público. Dar tonalidade às situações
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Sobre o olhar como unidade normativa de observação no espaço público ver Sudnow (1972). Por seu lado, Relieu (1996) mostra como a circulação de pedestres repousa fundamentalmente sobre uma minimização dos procedimentos de ajuste.
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Vimos anteriormente na parte dedicada ao processo de aclimatação que a ambiência incita tonalidades afetivas. Estas não dependem apenas das qualidades do ambiente sensível, mas também do clima emocional produzido pelo próprio público. Qualquer que seja a forma de interação social considerada, ela não reúne inevitavelmente uma expressão emocional que define a tonalidade das situações. Observe-se, inicialmente, que a emoção não é um epifenômeno ou um elemento adicional de comportamento em público, ela se constitui inteiramente à parte deste. Assim, segundo a concepção de espaço público que defendemos, a emoção pode ser pensada em termos de códigos sociais visando manter a ordem de interação e evitar os excessos intempestivos, incongruentes ou deslocados; pode ser analisada como um recurso sobre o qual se apoiam os atores para antecipar o comportamento do outro e coordenar as ações; pode, enfim, ser considerada como uma modalidade de julgamento e um instrumento de avaliação moral das condutas de outros 25. Se a emoção possui uma inclinação operatória para formação do vínculo social é porque ela não remete apenas aos estados internos ou às experiências privadas, mas se manifesta fundamentalmente nos comportamentos observáveis e partilhados. É necessário lembrar que um simples olhar, uma entonação particular de voz, um simples gesto da mão ou da 25
Estas diferentes formas de considerar as relações entre emoções e espaço público foram propostas por Paperman (1992).
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cabeça, uma mímica facial ou um modo de se conter tem o poder de transmitir aos outros sentimentos de vários tipos? Mas, estas expressões não se limitam em nenhum caso ao nível puramente individual, elas ganham todo sentido a partir do momento em que adquirem um valor coletivo e encontram um prolongamento na conduta de outros. Em outras palavras, a ambiência é também o objeto de uma organização coletiva que se especifica nas formas de engajamento e de sociabilidade. O interesse por tais observações está em questionar o peso e a autonomia relativa dos comportamentos sociais na qualificação afetiva de um espaço urbano. Assim, certas tonalidades emocionais podem ser o resultado conjunto das propriedades sensíveis do ambiente construído e das formas de mudança que ali se desenvolvem. O sentimento de mal estar ou de bem estar, de insegurança ou de hospitalidade que transmite um lugar repousa, por sua vez, sobre os dados de ambiente construído e sobre a forma de se comportar frente aos outros. A luminosidade ou a sonoridade de um lugar, da mesma forma que uma maneira de olhar os outros ou de lhes falar pode ser mais ou menos ansiosa ou confiante. Por outro lado, certos sentimentos como a vergonha ou a conivência, a cumplicidade ou a discórdia, o conflito ou o consenso repousam inicialmente e antes de tudo sobre a natureza e o desenvolvimento das interações sociais. Aqui prevalece a atmosfera moral constitutiva da ambiência, sem que as qualidades sensíveis do lugar sejam necessariamente pregnantes. Assistimos a certa deslocalização 64
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da ambiência no sentido em que ela não adere mais ou não se confunde totalmente com o lugar, mas muito mais com as circunstâncias sociais do momento. É o que está acontecendo, é o lugar no qual se desenvolve a atividade que atribui uma fisionomia particular a situação. Então, não se trata mais simplesmente de dizer que o público tem o poder de influenciar a ambiência ou de animar um espaço urbano, mas também de atenuar ou de relegar ao segundo plano a carga afetiva inerente às qualidades sensíveis do lugar. Para resumir, “dar tonalidade às situações” consiste em jogar com o poder expressivo das condutas sociais para conferir certa fisionomia às atividades em curso. Deste ponto de vista, a ambiência não é mais apanágio do lugar, mas se encarna também nas próprias formas de sociabilidade. Longe de não serem utilizadas, participam plenamente da sensibilização do mundo em redor. O potencial de contextualização Recapitulemos rapidamente o percurso que fizemos. Num primeiro momento, nos perguntamos como as ambiências urbanas se originam de uma “criação contínua”. Se colocar tal questão remete a conhecer o caráter relativamente indeterminado das ambiências. Dito de outra forma, afirmamos que estas não podem ser reduzidas ao ambiente construído ou às práticas sociais dadas a priori. Após analisarmos estas duas versões de um ponto de vista sensível, percebemos que o espaço 65
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construído oferece recursos à ação e que a ação afeta em troca as propriedades do lugar. Assim, levantamos a hipótese de que as ambiências emergem da determinação recíproca entre a eficácia sensorial-motora do ambiente construído e do poder expressivo das atividades sociais. Para dar conta desta codeterminação, distinguimos três condições de influência da ordem do “acordo”, da “modulação” e da “formatação”. Esta três ordens nos conduziram então a identificar algumas operações elementares que apresentam os planos da espacialidade, da sensorialidade e da socialidade. Para rememorar, fizemos abaixo um quadro de recapitulação com as principais noções evidenciadas.
Espacialidade
Sensorialidad e
Ambiência acordada “ceder”
Ambiência modulada “se expor”
Fazer corpo com o lugar esboço motor
Colocar o espaço à prova amenidade sensível
Tomar-se de afeição tonalidade afetiva
Acomodar-se com pouco superfície de contato
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Ambiência alterada “captar” Dar a medida do lugar campo perceptivo Mostrar discerniment o inteligibilida de cênica
Por uma gramática geradora das ambiências Socialidade
Fundir-se na Marcar presença paisagem microestilo de acontecimento conduta
Dar tonalidade as situações forma de sociabilidad e
A que concepção de ambiência conduz este esboço de gramática geradora de ambiência? Para responder esta questão nos propomos a pensar a ambiência em termos de potencial de contextualização. Tal argumento se inscreve no quadro de uma ecologia da flexibilidade, esta podendo ser definida aqui como “uma potencialidade não engajada de mudança” (BATESON, 1980). Trata-se de pensar a ambiência em nível, simultaneamente, temporal e contextual, como um futuro contextual ou se preferirmos como uma dinâmica contextualizante e contextualizada. Em outras palavras, considerar a ambiência como um potencial de contextualização remete ao vínculo complexo que se opera entre o estrutural e o conjuntural. De fato, ambiência surge da estrutura na medida em que os dispositivos construídos, os esquemas de percepção e as regras de comportamento que ela mobiliza se inscrevem na história de uma dada formação social. Em síntese, envolve a longa duração e a organização do conjunto de uma sociedade. Deste ponto de vista, a ambiência não será outra coisa que a expressão sensível de uma forma de vida. Porém, ela se origina também da conjuntura na medida em que são os acontecimentos, ocasiões e acasos da vida social que a ativam e a modulam. Em 67
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suma, ela extrai seu caráter concreto, local e circunstanciado das contingências da vida cotidiana. Deste ponto de vista, a ambiência não seria outra coisa que a atualização e a qualificação de situações sociais precisas, circunscritas dentro do espaço e do tempo. O problema consiste então em compreender como a ambiência pode ser ao mesmo tempo a expressão de uma forma de vida global e a qualificação de situações sociais particulares. A noção de potencial de contextualização repousa sobre dois argumentos de base: A ideia de “abertura e de fechamento contextual” permite realçar o grau de controle de uma ambiência e a ideia da “oscilação contextual” permite avaliar as formas de existência de uma ambiência. -
O grau de controle de uma ambiência. Vimos que uma ambiência emerge baseada num triplo processo: um processo de aclimatação da ordem do “ceder”, um processo de qualificação da ordem do “se expor” e um processo de recomposição da ordem do “captar”. Se estes processos estão sempre simultaneamente em ação numa ambiência, seu peso respectivo varia, entretanto, de uma ambiência a outra. Certas ambiências são mais abertas à mudança, mais disponíveis às variações e às improvisações do que outras. Acontecem aqui maiores ou menores aberturas e fechamentos 68
Por uma gramática geradora das ambiências
contextuais, ou seja, da capacidade relativa de uma ambiência para integrar, exacerbar ou neutralizar o poder expressivo das atividades sociais. -
Os modos de existência de uma ambiência. Vimos que uma ambiência envolve ao mesmo tempo o plano da espacialidade, da sensorialidade e da socialidade. Cada um desses planos se apresenta de diversas formas que convêm precisamente articular. Em relação ao plano da espacialidade, podemos “fazer corpo com o lugar”, “colocar o espaço à prova” ou “dar a medida do lugar”. Deste ponto de vista, a ambiência coloca em tensão estas duas polaridades que são a aderência ao lugar e a coerência situacional. Ela provém tanto de uma lógica do lugar quanto de uma lógica da situação. No que se refere ao plano da sensorialidade, pode “tomar-se de afeição”, “acomodarse com pouco” ou “dar prova de discernimento”. A ambiência coloca aqui em tensão estas duas polaridades que são a fusão empática e a distância objetivante. Ela se origina mais de uma lógica do sentir do que de uma lógica do perceber. Em relação ao plano da socialidade, pode-se “fundir na paisagem”, “marcar presença” ou “dar tonalidade às situações”. A ambiência coloca aqui em tensão estas duas polaridades que são o movimento expressivo e a 69
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ação intencional. Aponta muito mais para uma lógica da expressão do que para uma lógica da ação. Estes três níveis de articulação necessitam do uso de quadros teóricos, de instrumentos conceituais e de níveis de análise mais frequentemente dissociados e impermeáveis entre si. Poderíamos falar aqui de uma “oscilação contextual”, ou seja, da capacidade de uma ambiência polarizar, equilibrar ou alternar diversos tipos de relações com o mundo ao redor.
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ESPAÇO PÚBLICO, SERAÇÃO E URBANIDADE por uma arquitetura humanista e um planejamento sensível Jovanka
Baracuhy
Cavalcanti
Scocuglia Introdução As cidades e as culturas contemporâneas transformamse impulsionadas pelas inovações tecnológicas, formas de comunicação e de governança, alterando as urbanidades. Assiste-se a acumulação e proliferação de “dispositivos” (no sentido discutido por AGAMBEN, 2009)26 que afetam as relações entre corpo-cidade e ser-ação. Os espaços públicos das cidades contemporâneas são os lugares privilegiados nos quais se expressam os conflitos que perpassam estas relações e onde se manifesta de modo mais intenso e com maior frequência a dita “crise da cidade” e da “urbanidade”. 26 Dispositivo é “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEN, 2009, p.40).
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Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
Explicitaremos, neste artigo, algumas das inquietações teóricas e metodológicas presentes na prática de pesquisa sobre as cidades e os espaços públicos contemporâneos. Destacamos as ações e processos sociais como protagonistas de uma arquitetura e de um planejamento urbano sensíveis valorizando a criatividade dos praticantes da cidade, a forma como percebem e reagem aos dispositivos técnicos e às imagens projetados por arquitetos e urbanistas, apontando os descompassos entre práticas urbanas e planejamento. Estes descompassos aqui apresentados de forma sintética formam a base reflexiva de um projeto de pesquisa em andamento, financiado pelo CNPq (2011-2014), com foco nos espaços públicos das cidades do Recife e de João Pessoa e nas análises dos comportamentos e interações dos indivíduos e grupos nos lugares públicos destas cidades, em suas dimensões físicas (arquitetônicas e urbanísticas) e socioantropológicas (as interações e sociabilidades), verificando a criação de processos “contrahegemônicos” (resistências aos projetos e ações hegemônicos, à homogeneização, à criação de cenários e à exclusão sociocultural). Trata-se de refletir sobre os “territórios usados” (RIBEIRO, 2003) identificando ações e processos sociais envolvidos mais diretamente nas relações que se estabelecem entre espaço e sociedade, arquitetura e urbanidade, espaços públicos e ação/ criação social focando na análise destes processos em territórios específicos, ruas e praças de duas 72
Espaço público, ser-ação e urbanidade
cidades do Nordeste do Brasil e produzindo cartografias destas ações/criações e processos que possam nos auxiliar na elaboração de uma arquitetura humanista e um planejamento sensível. Neste texto são discutidos conceitos-chave para a atualização da noção arquitetura, planejamento e políticas culturais, das ações e processos políticos que relacionam os territórios e as urbanidades contemporâneas. Começamos pela própria ideia de “contemporâneo”, compreendida aqui como “o intempestivo” (Roland Barthes apud AGAMBEN, 2009), e de “contemporaneidade” como “uma singular relação com o próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distância; mais precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e de um anacronismo” (AGAMBEN, 2009, p. 59). Entretanto, é preciso considerar que mesmo tratando de processos contemporâneos, os efeitos urbanísticos e socioculturais do modo de conceber historicamente o espaço no Brasil e na América Latina não podem ser minimizados, pois uma noção de desenvolvimento dentro de uma lógica marcada pela fragmentação e segregação se impôs, acentuada pela mercantilização das relações e dos espaços públicos. O enfoque específico sobre a arquitetura da cidade como consequência, causa, reflexo ou imagem mais forte do enfraquecimento da esfera pública e da sociabilidade nos espaços públicos, da violência, da insegurança e do 73
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individualismo é recente, posterior a década de 1990 (CALDEIRA, 2000; BAUMAN, 2009; SOUZA, 2008; FIJALKOW, 2007), embora a questão venha se delineando desde a década de 1980 se analisarmos, por exemplo, do prisma das grandes transformações socioeconômicas e políticoinstitucionais nas cidades brasileiras, ou seja, a segregação socioespacial, a crise de moradia e a favelização. Vários foram os processos que se combinaram para provocar as mudanças recentes no padrão funcional e formal da arquitetura, bem como de segregação espacial nas cidades brasileiras e latino-americanas. Muitos estudos associam a decomposição ou desconstrução da vida urbana e o aumento do fator de risco, depois dos anos 1980, à volatilidade da ordem econômica neste período, com as reformas neoliberais, a recessão vivida por muitos países do continente, o aumento do desemprego e a perda da continuidade e da proteção dos empregos, bem como o enfraquecimento das instituições de segurança social e dos organismos de reivindicações coletivos (sindicatos e partidos políticos). Com efeito, esta insegurança socioeconômica de múltiplas faces conduziu a uma instabilidade generalizada e intensificou a busca por recursos como a informalidade. Uma das explicações convencionais da progressão da informalidade é fornecida por certo pensamento conservador que assimila informalidade e ilegalidade. Os estudos sobre criminalidade e antropologia também indicam um aumento da criminalidade, da insegurança e do medo na 74
Espaço público, ser-ação e urbanidade
América Latina, a partir dos anos 1980, coincidindo com a privatização e a transnacionalização das economias, bem como com a perda dos empregos e do poder de compra dos salários (CANCLINI, 1995). Neste caminho, novos desafios vêm sendo colocados àqueles que pensam, projetam, desenvolvem políticas públicas e vivem nos espaços urbanos. Podem ser citados, por exemplo, a mobilidade, a segregação e a fragmentação ampliadas, a multiplicação e especialização das novas “centralidades” e a força das distâncias e das lógicas mercantilistas que se impõem às intenções de dar continuidade formal e simbólica aos espaços públicos. As relações entre formas, usos e ritmos destacam-se entre os desafios da arquitetura e da urbanidade dentro da concepção dos espaços públicos aqui pensados, sobretudo do ponto de vista arquitetônico e sociocultural e na dimensão política de lugar de trocas, conflitos, interatividades e alteridades que poderíamos chamar de “arquitetura sociológica” (HOLANDA, 2002). São ruas e praças, parques e outros espaços urbanos de permanência, circulação e passagens que estudamos com especial destaque, dando ênfase a dimensão sociocultural e arquitetônico-urbanística, bem como a dimensão política da noção de espaço público, sobretudo, por estarmos interessados em discutir como estas dimensões da vida urbana estão sendo inseridas nas políticas urbanas, problematizando-as por meio da noção de urbanidade.
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Assim, pretendemos explorar a relação entre território e espaço público, corpo e cidade propondo a mobilização dos instrumentos de análise do urbano e da vida pública para refletir sobre a cidade contemporânea, seus problemas e suas potencialidades, bem como sobre metodologias de intervenção e gestão nos espaços públicos que valorizem a experiência dos moradores e visitantes, mas também dos urbanistas dispostos a conhecer melhor e, de algum modo, se desterritorializar/ reterritorializar no esforço para ampliar a compreensão dos lugares que irão modificar, planejar. Na experimentação destes conceitos e recursos teóricometodológicos é preciso antes reconhecer que o urbanismo contemporâneo, herdeiro do Movimento Moderno e reconstrutor de cidades após a Segunda Guerra Mundial, orienta-se por um funcionalismo dotado de um instrumental separador (o zoneamento e os modelos) justificado por urgências sociais (habitação, equipamentos básicos) e acentuado pela especialização das administrações públicas e das profissões. O resultado tem sido quase sempre a aplicação de políticas setoriais ao invés de ações que articulem a diversidade e a complexidade das demandas urbanas. Continuam sendo desenvolvidas as grandes operações habitacionais, agora sob a forma dos condomínios residenciais destinados a segmentos sociais determinados, bem como os “Minha Casa Minha Vida”, no caso da política habitacional brasileira, que priorizam o
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Espaço público, ser-ação e urbanidade
ordenamento e a inversão deixando o espaço público como elemento residual. Ressalte-se que não se trata de culpar tendências do Movimento Moderno pelos males da cidade contemporânea até porque não eram tão simplistas quanto os desdobramentos posteriores na forma do urbanismo funcionalista do capitalismo desenvolvimentista atuante a partir dos anos 1960. Neste sentido, a preocupação com a habitação popular, com a higiene e a paisagem urbana bem como a importância atribuída à circulação viária expressava uma visão produtivista, talvez menos especulativa da cidade e certo interesse pelas condições de vida dos trabalhadores. Assim, é impossível não reconhecer que havia também propostas de valor do ponto de vista de sua complexidade, capacidade de integrar objetivos sociais, formais e funcionais. Entretanto, o urbanismo funcionalista, resultante de correntes que podem ser ditas hegemônicas do Movimento Moderno e que predominaram na Europa após os anos 1960/70 e na América Latina nas últimas décadas, pode ser considerado mais perverso ao combinar o funcionalismo tecnicista dos programas e a setorização das políticas públicas com as dinâmicas de mercado, acentuando a segregação e as desigualdades sociais, agravadas pelos usos políticos destas estratégias de planejamento urbano e gerenciamento dos problemas socioespaciais. Se, de um lado, os conjuntos habitacionais se degradam rapidamente pela má qualidade construtiva, pela falta de 77
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inserção urbana, pela anomia sociocultural, pela pobreza ou ausência de equipamentos, as favelas proliferam e a violência urbana é atribuída em parte à concentração de população pobre e a uma desordem socioespacial. Por outro lado, as áreas centrais congestionadas e especializadas perdem seu papel integrador em beneficio das funções administrativas e comerciais, enquanto os centros “históricos”, despedaçados e desarticulados por projetos turísticos e sistemas viários desrespeitosos em relação ao entorno e a qualidade de vida dos moradores, se tornam evidências. Dispersam-se no território os centros comerciais e de serviços, as universidades e algumas indústrias, ordenando a vida da população trabalhadora e estudantil segundo o esquema: circular, trabalhar, dormir. Destacamos ainda a intensificação do processo de desvalorização-valorização imobiliária que provoca deslocamentos de antigos moradores de áreas degradadas e quase sempre centrais, “requalificadas” pelas elites e/ou por promotores imobiliários e poderes públicos, com a consequente perda do direito à centralidade e à acessibilidade para os mais desfavorecidos socialmente. E, ainda, o fenômeno crescente dos condomínios fechados (gated communities) com seus muros altos, cercas elétricas e câmeras ampliando os desurbanismos (HILLIER, 1996), gerando espaços cegos e as barreiras às sociabilidades públicas (HOLANDA, 2003). Estimula-se, desse modo, a formação de vazios urbanos e a obsolescência do solo. Intervenções que, em suma, potencializam o círculo vicioso da “periferização” física e social. 78
Espaço público, ser-ação e urbanidade
Apesar de tudo, a cidade que temos forjado no nosso imaginário é um produto físico, político e cultural complexo caracterizado pela concentração de população e atividades, lugar propício à mescla social e funcional, com capacidade de autogoverno e que é também lugar da identificação simbólica e da participação cívica (BORJA, 2003, p.126). Cidade como espaço da diversidade e da alteridade, lugar de trocas e de encontros, de cultura e comércio, cidade de lugares e não apenas de fluxos. Estes aspectos, por vezes paradoxais, precisam ser problematizados na busca por práticas e políticas contemporâneas nas quais os desenvolvimentos urbano, econômico e sociocultural estejam integrados e que possa incorporar à dimensão pública dos problemas urbanos à criação de novas urbanidades, bem como à recriação de antigas formas de coesão sociocultural. Esta problematização incorporadora de dimensões sensíveis e socializantes a partir da relação entre corpo e cidade, território e sociedade parte da noção de espaço público enquanto um “sistema de objetos e ações” (SANTOS, 2008), locais onde se realiza a síntese de lugares e fluxos, na qual o conceito de território ganha sentido estendido de apreensão do espaço como construção e apropriação humana e referencial de identidade. A urbanidade seria outro conceito vinculado à dimensão do espaço público, aqui valorizada. Entendida como civismo, mas também no sentido atribuído por Isaac Joseph de “trabalho da sociedade urbana sobre si mesma“, 79
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“como irrupção do urbano e resistência ao político.” (JOSEPH, 2002, p. 28). Uma virtude essencial que define o ho mem na sua condição urbana e simultaneamente virtude social, cultural e política. Mas também do ponto de vista urbanísticoarquitetônico urbanidade é o movimento contínuo de pessoas que confere vida ao tecido urbano. Neste sentido ganha relevância a discussão sobre o espaço público quando o entendemos enquanto lugar da diversidade, do encontro social e da possibilidade de trocas, mesmo que sejam apenas encontros de olhares, trocas de gentilezas numa fila para atendimento público, no ponto de ônibus etc. Sabe-se que a sociologia urbana e a filosofia coincidem em afirmar que a cidade é o lugar onde se concentram e convivem as diferenças de origem, aptidão, atividades, admitindo também que esta diversidade favorece a imprevisibilidade, introduz desordem e possibilita inovação. A diversidade com um mínimo de pautas comuns que possibilitam a convivência e torna possível o intercâmbio. Assim, tanto o civismo quanto o intercâmbio de produtos, serviços e ideias necessitam se desenvolver e se expressar no espaço público, físico e simbólico. O espaço público é também onde o poder se faz visível, a sociedade se fotografa, onde o simbolismo coletivo se materializa no sentido da afirmação de H. Lefebvre (1968): “A cidade é a sociedade inscrita no solo”. A cidade é um espaço público que quanto mais aberto for a todos, mais expressara a 80
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democratização política e social. A cidade e seu espaço público enquanto lugar da representação e expressão da sociedade tanto de dominados quanto de dominantes, sendo assim, o espaço no qual a sociedade desigual e contraditória pode expressar seus conflitos. Complementando estas considerações introdutórias, resta relacionar os espaços públicos com os comportamentos corporais e as formas de sociabilidade que indicam os modos como os indivíduos se servem de seus corpos em ritmos específicos, de técnicas corporais repetidas nos espaços de modo cíclico ou linear e que envolvem nas ruas e praças processos tais como: deslocamentos, passagens, permanências ou interações, velocidades, aberturas e fechamentos, aproximações e afastamentos, agrupamentos e dispersões de indivíduos de modo regular, esporádicos ou excepcional. Estes usos dos espaços públicos remetem à movimentação física de tipos urbanos variados como: transeuntes, moradores das proximidades, visitantes, comerciantes de ruas, mendigos que vivem nestes lugares. Não se trata da recepção da paisagem urbana, “da obra pelo sujeito, nem do consumo do produto pelo cliente, mas da relação dialógica que se instaura entre um espaço urbano e aquele que o atravessa, o percorre ou o explora” (JOSEPH, 1999, p.35). Esta abordagem da cidade tem como um dos seus precursores Henri Lefebvre (1992) quando propôs uma reinterpretação da cidade por meio da heurística da rua e dos 81
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ritmos da vida cotidiana e antes dele Georg Simmel. Ressaltamos ainda Michel De Certeau (1994) e a ideia de uma cidade praticada que se insinua no texto/conceito da cidade planejada e visível. Neste sentido, a cidade praticada pode ser vista como o coração da urbanidade contemporânea, ao mesmo tempo lugar habitado, ancorado em sua história e no seu território, confrontado aos fluxos de mundialização, de circulação de bens, de homens, de ideias, de informações e de imagens. Importam os vínculos pragmáticos e simbólicos entre os homens e a materialidade da cidade. Esta abordagem se justifica se observarmos os processos contemporâneos de urbanização cada vez mais marcados pela mercantilização da cidade e da vida urbana e se pensarmos que a “modernização da sociedade” aprofundou e generalizou a lógica da cidade produzida enquanto valor de troca (LEFEBVRE, 1986) modificando sua estrutura socioespacial no sentido da “espetacularização”27(DEBORD, 1997), da “homogeneização” (SASSEN, 1998) ou da “urbanalização” (MUÑOZ, 2008) 28 das paisagens urbanas. 27
A introdução do ”espetáculo” como palavra-chave da teoria social contemporânea começou com Guy Debord e sua obra “A sociedade do espetáculo”, 1967. São 221 teses sobre a sociedade capitalista do pósguerra. Espetáculo refere-se à maneira como as imagens são mobilizadas para assegurar a influência da forma produtiva sobre o tempo do lazer, a fim de legitimar as relações sociais existentes e de colocar o indivíduo em uma situação passiva e contemplativa em relação a sua própria dominação.
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Alimentada em grande parte pelas economias de serviços, desde os serviços profissionais ao turismo global e a uma redescoberta do setor cultural, esta tendência, observada nas metrópoles, é igualmente constatada nas cidades médias, nas quais os efeitos “negativos” da mercantilização da cultura e de uma espécie de culturalização generalizada e indiferenciada da cidade, dos seus espaços e de seus processos se fazem sentir de forma intensa nas propostas hegemônicas de intervenção nos espaços públicos, em especial, nas ruas e praças dos seus centros urbanos. De fato, a crítica ao processo atual de mercantilização e de espetacularização urbana se tornou recorrente no meio acadêmico diante da forma cada vez mais explícita pela qual se expressa no cotidiano da vida contemporânea. Discute-se, em especial, a existência de uma ruptura espaço-temporal na relação da sociedade com seu passado e com seu futuro (FERNANDES, 2006, p.53-59) e uma “hipertrofia da dimensão material e visual na compreensão do conceito de cidade” desconsiderando
28 Saskia Sassen defende a tese de que a urbanização contemporânea se caracteriza por uma homogeneização da paisagem urbana, alimentada pelo fato das cidades de tornarem economias de serviços avançados (1998). Francesc Muñoz (2008) observa um tipo banal de urbanização do território que se pode repetir em lugares diferentes: a produção de uma paisagem comum em escala global que conduz ao uso, manipulação e reavaliação de alguns elementos da esfera local em suas múltiplas dimensões.
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indivíduos ou grupos e a diversidade de suas histórias, memórias e experiências (BRITO e JACQUES, 2009). Torna-se explícito o problema contemporâneo que Richard Sennet, em Carne e Pedra (2008, p.15), descreve como “a privação sensorial (…) a passividade, a monotonia e o cerceamento táctil que aflige o ambiente urbano” cujas raízes o autor procura compreender por meio da investigação da história da relação entre corpo e cidade na civilização ocidental. Remonta a Roma Antiga, ao Medievo, ao Renascimento, ao século XIX até chegar aos tempos modernos e atuais em que se privilegiam as sensações do corpo e a liberdade de movimento e, entretanto, essa carência dos sentidos tornou-se notável, demonstrando a influência que exerceram sobre os espaços urbanos os novos conhecimentos científicos e sinalizando para o problema dos projetos em que “urbanistas e arquitetos modernos tinham de alguma maneira perdido a conexão com o corpo humano” (Ibid., p.15). Os primeiros indícios desta desconexão, segundo estes críticos acima mencionados, são perceptíveis a partir das mudanças de caráter das populações das cidades. A massa de corpos que antes se reunia nos centros urbanos em experiências de diferenciação, complexidade e estranheza (aspectos que sustentam a resistência à dominação), hoje parece se dispersar em polos comerciais, se preocupa mais em consumir do que em outro propósito mais complexo, político ou comunitário. No lugar do “choque” como experiência marcante no século XIX e 84
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começo do XX, parece predominar a “anestesia” neste início do século XXI. Uma exacerbação da atitude blasé descrita por Simmel, agora não mais como parte da reação do indivíduo frente à experiência chocante de modernidade, mas frente ao ambiente urbano apaziguado, monótono, alisado que reduz a capacidade reativa, distancia os corpos e enfraquece os estímulos ao potencial sensorial-motor de ação e reação nos espaços das cidades ocidentais. A partir destes indícios e supondo uma acentuada dispersão dos corpos, precisamos estar atentos e dar destaque às práticas urbanas dos transeuntes, dos passantes, ao movimento dos corpos e aos usos dispersos nos espaços públicos, pois essa homogeneização e anestesia nunca são totais, por vezes são aparentes como parte dos cenários programados. Discutimos, na sequência, os conceitos teóricos e abordagens metodológicas que fazem o trabalho de explicitar os vínculos entre indivíduos em copresença nutridos por “interações”, “efeitos recíprocos” de convivência em lugares públicos, em meio aos comportamentos corporais. Interações estas mediadas por “eventos”, “situações”, nas palavras de Irving Goffman (2010), ambientes de copresença face a face, técnicas espaciais, mas também por fatores sociais, culturais e históricos. De antemão destacamos a existência de abordagens descritivas com dados empíricos relativos aos comportamentos corporais e às formas de sociabilidades nos espaços públicos 85
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articuladas a referenciais teóricos variados, embora convergentes no sentido de interpretar tais usos nas cidades contemporâneas (FRÚGOLI, 2007; SERPA, 2007; CANEVACCI, 2005; FREHSE, 2009). Mas também, abordagens teóricas interpretativas das condutas corporais e de relacionamentos sociais nas ruas das cidades alcançadas pela modernidade, revelando novas perspectivas de análises epistemológicas no âmbito dos estudos urbanos. Sobressai-se a abordagem de Michel De Certeau (1994) centrada nas “astúcias e combinações de poderes sem identidade legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional, impossíveis de gerir” (CERTEAU, 1994, p.174). Alguns dos procedimentos – “multiformes, resistentes, astuciosos e teimosos” (Ibid., p.174) que escapam à disciplina sem ficarem fora do campo onde se exercem e que podem levar a uma “teoria das práticas cotidianas, do espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade” (1994, p.175). As análises de Isaac Joseph (1999) são também referenciais quando apontam para os pressupostos de uma noção de espaço público como mediador entre o sistema político, os setores privados e os sistemas de ação funcionalmente específicos, que ele chama de “uma realidade porosa”, na qual se sobrepõem distintos sistemas de ação (Ibid., p.25). Móvel da democracia e operador de um acordo entre cidadãos, este conceito de espaço público seria resultante de uma relação sensível com a paisagem urbana e de interesses democráticos, 86
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com dois enunciados maiores de orientação para o trabalho empírico: a definição de Hannah Arendt (1987) de espaço público como o lugar da ação e dos modos de subjetivação nãoidentitários – em oposição aos processos comunitários de identificação e aos territórios da familiaridade – e o enunciado de Jurgen Habermas (1997) que faz do espaço público o domínio historicamente constituído da controvérsia democrática e a dinâmica de uma ética procedimental do agir comunicacional elaborado a partir de um acordo que pressupõe um “uso livre e público da razão” (Ibidem, p.18-19). Sem entrar no debate filosófico, nem nas teorias específicas de Arendt e Habermas, embora nos inspirando no conceito de espaço público de Isaac Joseph, propomos uma reflexão sobre desenvolvimento, território e sociedade tendo como fundamento a relação entre corpo/cidade, espaços públicos/urbanidade e a análise interdisciplinar. São estas também as bases das pesquisas que coordenamos no âmbito do LECCUR – Laboratório de Estudos sobre Cidades, Culturas Contemporâneas e Urbanidades - PPGAU-UFPB sobre práticas urbanas, condutas corporais, sociabilidades, formas de intervenções, poderes e usos dos espaços que implicam a constituição de urbanidades.
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Descompassos práticas sociais
entre
território
urbanizado
e
As mudanças na esfera da produção afetam e modificam profundamente os sistemas e as formas de produzir bens de consumo, bem como de organizar o trabalho. Nas últimas três décadas do século XX, as transformações se estenderam ao tipo de território ou a um processo de desterritorialização associado às mudanças econômicas. A própria expansão física do espaço construído tornou cada vez mais fácil encontrar características próprias da cidade em lugares tradicionalmente à margem dos processos de urbanização. Entretanto, estes fenômenos de desconcentração que fizeram da periferia um território mais flexível pela difusão e melhoria das redes de comunicação e telecomunicação, que ampliou a importância das cidades de tamanho médio como centros urbanos importantes no marco da economia global, parecem não representar uma ruptura absoluta com o modelo de concentração historicamente característico do sistema fordista. O geógrafo norte-americano Edward Soja considera que o centro ainda é importante e que, apesar das tendências centrífugas, a nodalidade centrípeta não desaparece (2000, p. 263). Um binômio: centralidade-difusão passa a marcar as cidades do mundo ocidental definido fundamentalmente em termos de redes (CASTELLS, 1999; CORREA, 2006; FIJALKOW, 2007). Fala-se de uma centralidade dependente dos 88
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níveis de competência, competitividade e cooperação dentro de um conjunto de redes urbanas. Acrescentam-se também as novas formas de mobilidade e de construção cultural da velocidade que ampliam os territórios de fluxos configurando um cenário de mobilidade intensiva e uso extensivo do território próximo ao que David Harvey (1992) definiu como compressão espaço-temporal, ou seja, compressão do espaço e aceleração do tempo (SANTOS, 1996, 2008). Além da metáfora da mancha de azeite evocada para simbolizar as fases de concentração urbana das cidades, da ideia de redes e de fluxos para explicar os modelos de organização do território urbano regional, temos o conceito de rizoma 29 de Gilles Deleuze e Félix Guattari (1980) como um dos exemplos destas aproximações formalistas ao diferentes tipos de crescimento que a cidade vem desenhando sobre o território ao longo dos últimos séculos. A cidade-rizoma seria a metáfora de um sistema urbano constituído por territórios com características diferenciadas e relações que se situariam além dos critérios dicotômicos binários. Seriam relações mais complexas do que as 29 O rizoma é também uma crítica ao pensamento moderno ocidental, articulado sobre estruturas hierárquicas e arvorecentes, caracterizadas por terem um começo e um fim, um passado e um futuro com sentido evolucionista, uma hierarquia de circulação das informações sobre a base da lógica binária. O rizoma, ao contrário, seria ainda uma estrutura sem um centro, organizada em forma de plateaux, com importâncias iguais no sistema.
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definidas pelas típicas dicotomias centro-periferia ou campocidade. E assim, no quadro geral dos estudos urbanos desenvolvidos nas últimas décadas, identifica-se um esforço de reflexão e renovação teórica a partir da constatação das transformações econômicas e sociais que afetaram as cidades e que expressam, sobretudo, uma reestruturação econômica pósfordista30 ou pós-industrial com ênfase nas consequências da concentração tecnológica no território urbanizado e nas características dos modelos de cidades emergentes: a cidade global (SASSEN, 1998), a cidade informacional (CASTELLS, 1999) ou a pós-metrópole (SOJA, 2000), entre outros. Estes conceitos de cidade expressam alguns dos resultados concretos, a exemplo da fragmentação da estrutura social urbana e da própria cidade como território habitável, uma excessiva valorização da imagem, a espetacularização e a mercantilização da cidade enquanto objeto cultural (DEBORD, 1997; JEUDY e JACQUES, 2006; SCOCUGLIA, 2010). E, neste sentido, a hegemonia de um conceito de cidade reificado que se expressa na celebração do privado, na patrimonialização e na criação de cenários (FERNANDES, 2006; SCOCUGLIA, 2010) que paradoxalmente vão se legitimar por meio de um 30
A fase pós-fordista seria posterior ao modelo de regulação econômica fordista, com origem em 1930 e apogeu nos anos 1960/1970, no qual a produção de massa significava consumo em massa e um novo sistema de reprodução da força de trabalho, bem como uma nova política de controle e gerência deste (HARVEY, 1992).
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discurso generalizado de valorização e de intervenção sobre o espaço público. Neste ponto, convém mencionar a distinção conceitual entre cidade e urbano apontada por Manuel Delgado (2008). Ele afirma que: A cidade não é o urbano. A cidade é uma composição espacial definida pela alta densidade populacional e de instalação de um amplo conjunto de construções estáveis, uma colônia humana densa e heterogênea constituída essencialmente por estranhos entre si (…) o urbano, ao contrário, é outra coisa: um estilo de vida marcado pela proliferação de teias relacionais deslocalizadas e precárias (Ibid., p.23).
Por seu turno, Jean Remy e Liliane Voye descrevem a urbanização como “um processo que consiste em integrar de forma crescente a mobilidade espacial na vida cotidiana ao ponto desta ser estruturada por aquela” (1992, p.14) convertendo a instabilidade em instrumento paradoxal de estruturação que determina um conjunto de usos e representações de um espaço nunca plenamente territorializado. A vida urbana é cada vez mais marcada pela reapropriação capitalista da cidade, segundo uma dinâmica cujos elementos fundamentais e recorrentes são a conversão do espaço urbano em um parque temático, a “gentrificação” 31 de centros urbanos (ZUKIN, 1995, 2000; 31 Gentrificação, do inglês gentrification, designa um processo de deslocamento e de mudança de população dentro dos setores urbanos centrais por categorias sociais mais abastadas e a reabilitação física dos mesmos (Ruth Glass, 1964). Estudos mais recentes indicam um fenômeno mais
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SCOCUGLIA, 2010), a terceirização que implica a reconversão de bairros industriais inteiros, a dispersão de uma miséria crescente que não se consegue ocultar e o controle sobre o espaço público cada vez menos público. Estes processos de alcance mundial são apontados como requerimentos da renúncia dos agentes públicos da missão de garantir direitos democráticos fundamentais – o usufruto das ruas e praças em liberdade, de uma habitação digna para todos etc. - e da desarticulação do que resta do que foi o Estado do bem-estar-social32. Esta renúncia ou abandono das responsabilidades do Estado em matéria de bem comum tem sido compatível com autoritarismos em outros âmbitos. Uma submissão ao liberalismo urbanístico que converte a cidade em produto de marketing e ao mesmo tempo ampliam o controle e a vigilância sobre o espaço público assegurando as operações imobiliárias e desfazendo a imagem que se poderia oferecer de um espaço público expurgado de qualquer elemento de complexo e diferenciado em fases. Além disto, o conceito se transformou para incluir outras formas de “elitizações”, outros atores sociais e espaços. Ver a respeito: Jovanka Scocuglia. “Imagens da cidade: cenários, patrimonialização e práticas sociais”, 2010, e Revista: “Espaces et societés. La gentrification urbaine.” nº132-133, 2008. 32 Segundo Claus Offe em “Las nuevas democracias: transicion politica y renovacion institucional en los paises postcomunistas”, 2005, o Welfare State teve sua origem nos EUA, anos 1930, fundamentado em três princípios: seguridade social, proteção ao emprego e política redistributiva.
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conflitividade. Outra expressão dessas ações de “pacificação” dos espaços públicos são a “limpeza” dos exteriores urbanos das presenças e condutas inconvenientes, a repressão e controle da pobreza e dos seus locais de concentração (JOSEPH, 2002; JEUDY e JACQUES, 2006; DELGADO, 2010). Como afirma Manuel Delgado (2010), o protagonismo do conceito de espaço público nas iniciativas e retóricas relacionadas nas últimas décadas com os contextos urbanizados é bem menos inocente e natural do que poderia parecer à primeira vista. No Brasil, especificamente, a aceleração e voracidade do desenvolvimento urbano e a concentração de população, iniciadas em décadas anteriores, nem sempre foram orientadas por políticas de planejamento capazes de limitar os problemas urbanísticos que afetam hoje grande parte das cidades. Entretanto, vivemos em um tempo em que as transformações parecem ser orientadas pela filosofia da qualidade de vida, projetos de ordenamento urbano, de animação cultural, de instalação de novos equipamentos e de requalificação do espaço público. Sabedor destes paradoxos Milton Santos fala de uma urgência de reflexão sobre a cidade enquanto “sistema de objetos e de ações” (SANTOS, 2008), tendentes a uma artificialidade, a fins estranhos ao lugar e a seus habitantes. O planejamento das cidades necessita entender e explicar as “novas ecologias urbanas”, as relações entre o mercado, as 93
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instituições e o meio ambiente construído, de modo a explicitar as relações entre “a temporalidade do fazer e a das coisas” (Ibid.). E neste sentido, M. Santos (Ibidem) afirma 33: os capitais fixos, fixados, instalam-se duravelmente nas cidades, mas, desde que envelheçam, podem ser operados sem maior submissão aos atores econômicos e sociais hegemônicos, e muitas atividades urbanas podem, assim, escapar à regulação direta desses atores econômicos e sociais hegemônicos (2008, p. 90).
Ele diz mais: nas cidades, essas áreas “irracionais” do ponto de vista da modernidade, seriam semelhantes ao que os planejadores dos anos 1970 identificaram como sendo “brechas” e que podem ser ampliadas em nossas pesquisas para falarmos não apenas de brechas tecnológicas, mas também socioespaciais e culturais recentes, numerosas e que precisam ser estudadas em seus próprios contextos, lembrando com Milton Santos de “não pensar o lugar sem o mundo”, se propondo a entender o espaço como “um conjunto indissociável de sistemas de objetos e de sistemas de ações”. Assim, pensar os objetos e as ações contemporâneas se impõe diante do que M. Santos identifica como uma “práxis invertida” que tem o discurso como base da ação e dos objetos impelindo os homens a cada dia aprenderem tudo de novo estimulados pelas “novíssimas inovações”, pelo estabelecimento 33
Ver: Milton Santos. “Técnica, espaço, tempo: globalização e meio técnico-científico informacional”, no capítulo 09, “O espaço: sistemas de
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de novas dinâmicas e diferenciações. Seriam estas tarefas urgentes e necessárias de um planejamento urbano-regional atual que “já não comporta formulas pré-fabricadas, nem pode admitir a utilização de teorias historicamente superadas. É na objetos, sistemas de ações”. São Paulo: Editora da USP, 2008.
própria história contemporânea, história conjunta do mundo e dos lugares, que nos devemos inspirar, tanto para entender os problemas como para tentar resolvê-los” (Ibidem, p.91) 34. Convém, neste sentido, lembrar que estas temáticas são relevantes tanto na sociedade brasileira quanto em grande parte da latino-americana e europeia, nas quais as questões relativas à emergência de uma renovada cultura urbana, às formas de resistência e afirmação das expressões culturais localizadas, ou, ainda, à pertinência dos diferentes modos de (des) localização, (des) territorialização e (re) significação, tem conduzido ao reconhecimento da necessidade de uma avaliação rigorosa dos vários parâmetros que condicionam os modos de organização da vida social. Como afirma Carlos Fortuna (2002, 2007, 2009), amplia-se a necessidade de uma reforma epistêmica dos instrumentos analíticos e conceituais sobre a cidade e a 34 No XI SHCU, Vitória, out. 2010, a profa. Ana Fernandes proferiu palestra sobre “Processos históricos e questões contemporâneas” na qual ressaltava a importância de ampliarmos tal perspectiva.
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“reinvenção do urbano” assinalada, em parte, pelo movimento de afastamento gradual e pela não-coincidência entre o território urbanizado da cidade e o modo como se estruturam as práticas, mentalidades e relações sociais que ali se desenvolvem e que podemos chamar de cultura urbana. Dentro do campo disciplinar da arquitetura, Giulio Argan (1998) também aponta a necessidade de uma reforma epistêmica dos instrumentos analíticos e conceituais sobre a cidade e o urbano, bem como de se apontar os limites da técnica. Nas palavras do autor: “como disciplina que visa interpretar, estabelecer, reorganizar e finalmente programar para o futuro a conformação da cidade, o urbanismo está se separando cada vez mais de seu objeto, dir-se-ia até que aspira a destruí-lo” (Ibid., p. 15). Maria Stella Bresciani (2008) referindo-se aos primeiros críticos desta forma de estabelecer a relação entre homem e cidade, cita como exemplos: Camilo Sitte, Georg Simmel, Walter Benjamim, entre outros, que “denunciavam a fatuidade de idealizar-se uma razão única, despojada da tradição e da história, uma razão obediente à sua própria lógica, construtora de formas belas e logicamente irrepreensíveis – constituições, governos, raciocínios, edifícios, cidades” (Ibid., p.17). Neste sentido, há uma solicitação cada vez maior de estudos aprofundados sobre estes temas em função até mesmo da dimensão dos problemas urbanos e da falência dos modelos de planejamento e de desenvolvimento que priorizam o ponto de 96
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vista técnico, mitigando a importância dos outros campos que se articulam direta e indiretamente à arquitetura e ao urbanismo, mas há, sobretudo, uma urgência de estudos que valorizem os praticantes da cidade, os usos e “contra-usos” (LEITE, 2009) dos espaços planejados, as territorialidades e formas de apropriação diversificadas. O território urbanizado e o modo como se estruturam as práticas, mentalidades e relações sociais Reconhece-se hoje a emergência de uma cultura urbana renovada, de formas de afirmação de expressões culturais diversas, algumas consideradas eXtremas (CANEVACCI, 2005), outras localizadas, globalizadas e diferentes modos de (des) localização, (des) territorialização e (re) resignificação em metrópoles mundiais. Destacamos a necessidade de uma nova postura do urbanista/pesquisador frente à cidade: se desterritorializar, rizomatizar 35 (DELEUZE E GUATTARI, 1995) para, em uma multiplicidade de sentidos, interrogar a cidade do ponto de vista 35 Seria proceder por meio da “variação, expansão, captura, picada, expansão, conquista” (DELEUZE e GUATTARI, 1995, p. 19). Trabalhar com uma multiplicidade de entradas e de relações entre elementos não dispostos de forma hierárquica, pela heterogeneidade dos seus componentes e pelas conexões organizadas entre linhas chamadas de direções em movimento. Seria experimentar, deambular, vivenciar em direções movediças.
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das subjetividades, reciprocidades e práticas cotidianas e avançar para identificar e avaliar a relação entre os “dispositivos técnicos” e as “disposições sociais” (JOSEPH, 2002), a fabricação e os seus praticantes. Apoiamo-nos aqui, em especial, na abordagem de Simmel e em suas reflexões epistemológicas sobre o fenômeno urbano e a cultura moderna para pensar a cidade enquanto lugar específico de socialização e espaço de emergência de novas formas espaciais e estéticas, como indicam seus ensaios sobre Roma, Florença e Veneza (JONAS, 2008), entre outros. Mas é em seu ensaio sobre “As grandes cidades e a vida do espírito” (SIMMEL, 2000, 2005) que desenvolve uma análise especialmente fecunda da condição urbana moderna. Diferente da vida nas pequenas cidades, a experiência metropolitana se caracteriza, segundo ele, por uma “intensificação dos estímulos nervosos que resultam das transformações ininterruptas de stimuli externos e internos” gerados pelo ambiente urbano (SIMMEL, 2000, p.175). O citadino é submetido a múltiplos choques dos quais ele tenta se proteger, embora modifiquem profundamente seu psiquismo e seu aparelho sensitivo. Segue-se uma propensão à individualização, à intelectualização, ao cálculo, a indiferença e à racionalização das relações sociais que analisa como uma “proteção subjetiva contra as ameaças constantes e as discrepâncias do ambiente externo” na metrópole (Ibid., p.176).
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As condições de vida moderna criaram as situações, formas e necessidades específicas de comportamento e sensibilidade, um modo de vida que exerce influência sobre a consciência dos homens. O verdadeiro bombardeio de imagens a que são submetidos ao saírem às ruas não pode ser acompanhado pela consciência, nem sua capacidade de lhes atribuir sentidos. Diante do fluxo intenso de imagens e sua variedade nas metrópoles, o indivíduo reage como o faz no interior dos transportes públicos ou em outros locais quando se vê colocado em uma situação de proximidade excessiva, variável e relativamente demorada frente aos outros: impossibilitado de reagir com a energia apropriada ou de manter contato com elas, ele apenas deixa fluir, se distancia do que está próximo demais, transformando o contato com o estranho suportável e corriqueiro. O anonimato e a impessoalidade, quando o indivíduo se esconde por trás do grupo, são também parte da objetividade característica da vida nas metrópoles. Esta atenção às transformações dos registros da experiência subjetiva conduz Simmel a estudar a aparição de novas condutas urbanas – a reserva, a atitude blasé, o conflito, o estrangeiro – como os pontos de partida de uma sociologia da cultura e uma sociologia dos sentidos, próprias à grande cidade, destinadas a analisar os fatos provenientes da constituição sensorial do homem, os modos de percepção mútuos e as influências recíprocas que daí deriva para a significação da vida coletiva. Para Simmel, os conflitos, a definição de fronteiras 99
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simbólicas e o choque metropolitano são também determinantes na compreensão da experiência de modernidade. Neste sentido e na busca de compreender a cidade contemporânea, parece-nos essencial destacar a força metafórica das pontes e portas a partir da qual Simmel analisa a capacidade do ser humano de associação e de atravessar fronteiras. Ele afirma: porque o ser humano é um ser de conexão que deve sempre separar e que não pode conectar sem separar – precisa primeiro conceber, intelectualmente, como uma separação, a existência indiferente dos dois lados de um rio, para religá-los por uma ponte. E o ser humano é também um ser de fronteiras que não tem fronteiras. O fechamento de sua vida doméstica através de uma porta significa que ele separa assim uma parcela da unidade ininterrupta do ser natural. Mas mesmo se a limitação disforme tomar forma, sua limitação encontra seu significado e dignidade apenas no que a mobilidade da porta representa: na possibilidade de romper esta limitação a todo instante para ganhar a liberdade (SIMMEL, 2000, p.174).
Pode-se, então, refletir sobre os muros, reais e simbólicos, erguidos nas cidades contemporâneas e que não param de se multiplicar ao nosso redor encerrando não apenas bairros de uma cidade, favelas em bairros de camadas médias, mas também entre cidades, as gated communities que se impõem atualmente como produtos imobiliários de valor e o crescimento da demanda por estes enclaves residenciais, supostamente “seguros”. Tais empreendimentos imobiliários não nos dão qualquer evidência de que aumentem assim as relações comunitárias, as trocas entre vizinhos. Ao contrário, apenas
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banalizam o isolamento, revelando uma fragilidade afetiva de seus moradores sempre a espera de uma chamada telefônica, de uma mensagem de email, de um chamado distante que possa manifestar certa proximidade, familiaridade, alguma “ligação” que justifique por ela mesma o desligamento que este tipo de moradia exige. Assim também a cidade virtual, dentro da qual se tem um lugar (um portal, um endereço, um site, um blog, um twitter etc.) para o jogo das trocas de informações, facilita os contatos e os afastamentos sem, entretanto, assegurar o encontro e a integração. A troca eletrônica não requer esta disponibilidade, esta presença, esta responsabilidade com o outro que o encontro, a conversa telefônica propiciam. No entanto, esta forma de comunicação apresenta hoje múltiplas facetas a serem analisadas considerando-se seu potencial transgressor e agregador evidenciado de forma muito clara no caso do recente conflito político no Egito (fev. 2011), divulgado pela mídia nacional e internacional, no qual um ditador foi derrubado com a ajuda de conexões via internet, de pontes construídas para romper as tentativas do poder estatal de impedir a comunicação para a organização dos protestos nas ruas da cidade do Cairo. E mais, as conexões cortadas, foram viabilizadas por meio das redes internacionais disponibilizadas por sistemas alternativos em outros países. Se a modernidade é concebida e vivenciada por Simmel como um fluxo de um mundo interior cujos conteúdos 101
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substanciais são constantemente dissolvidos pelo movimento, numa visão muito próxima do sentido que Baudelaire a entendia, ou seja, como o transitório, o fugidio, o contingente, a reflexão de Simmel sobre a metrópole representa o ponto de intensificação crucial da modernidade junto com a economia monetária. No contexto de sua teoria social, é muito mais a vida urbana do que a indústria ou a produção ou a organização racional a chave para a compreensão da modernidade. Sua análise se concentrou nas consequências pessoais do envolvimento nas esferas da troca, do consumo e da circulação de mercadorias e de indivíduos. Embora a metrópole fosse o lugar da dominação da cultura objetiva e da “cultura das coisas”, a problematização do desenvolvimento da identidade e da subjetividade do citadino permaneceu uma preocupação central das “sociologias de Simmel” (VANDENBERGUE, 2005). Como Walter Benjamin, Simmel também se refere às mudanças profundas no aparelho perceptivo observando os pedestres nas ruas da grande cidade. Observa que o deslocamento do indivíduo se encontra condicionado por uma série de choques e conflitos, sobretudo visuais. Afirma que a superabundância de imagens e impressões nas grandes cidades arranca do sistema nervoso, pela rapidez e violência de sua alternância, respostas violentas, o submetendo a choques tais que o homem usa suas últimas forças e não consegue se reconstituir.
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É importante aprender com Simmel quando explica estes novos registros da experiência subjetiva não por meio de conceitos totalizantes, mas a partir de uma atenção aos detalhes concretos, aos fenômenos de superfície, acessíveis à experiência sensível da vida nas cidades: o lugar característico das grandes cidades (as ruas, os cafés, os cinemas, as salas de espera, os parques, as calçadas), os objetos do cotidiano (relógios, guardachuvas, máquinas de escrever, redes de montagem) ou ainda os tipicamente citadinos (a indiferença, a reserva, a propensão ao conflito, a moda, o lazer, as exposições). Estes objetos e lugares hoje seriam outros, manter-se-iam as ruas, os bares, os parques, praças e calçadas, salas de espera, acrescentar-se-iam as praças de alimentação dos shoppings, os pontos de ônibus, os diversos espaços de encontro dos jovens, a internet, sites, blogs, enquanto os objetos seriam os celulares, notebooks, palmtops, ipods e aspectos exacerbados do medo, da violência, da desigualdade social, da estigmatização, a formação de tribos urbanas, a arquitetura da vigilância com suas grades, muros altos, câmeras de segurança privadas e públicas. Elementos presentes na experiência subjetiva das metrópoles contemporâneas que indicam as novas formas deste jogo e a complexidade e o aguçamento de algumas das reações subjetivas identificadas nas metrópoles do início do século XX, compatíveis com a alienação e a reificação, a ampliação do desequilíbrio trágico entre cultura objetiva e cultura subjetiva e outras dimensões inexistentes na época da formulação das ideias 103
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de Simmel que hoje parecem indicar, ao invés de choque, certa paralisia ou anestesia diante dos processos de mercantilização intensos, como mencionamos anteriormente. Interessa, sobretudo, destacar aqui a forma como Simmel, de uma série de observações empíricas, extrai uma teoria geral da modernidade que atribui um lugar central às experiências vivenciadas na grande cidade. Esta forma de pensar a experiência de modernidade está associada a um contexto material e intelectual estruturado pelo crescimento explosivo das grandes cidades na Alemanha na virada do século XIX para o XX e articula-se também ao modo como se constrói o debate sobre a modernidade metropolitana na Alemanha antes e depois da Primeira Guerra Mundial. Muito embora, ela deva muito a forma particular como este autor apreendeu o caráter, sobretudo, visual da urbanização berlinense. De fato, o contexto no qual se constitui o pensamento de Simmel e sua teoria da modernidade está dominado pelo processo de metropolização, que atingiu a Alemanha de maneira particular. Pela sua extensão e rapidez, o crescimento urbano alemão não afetou apenas o quadro material de vida de numerosos citadinos, mas produziu igualmente uma experiência singular da época, dominada por uma sensação de crise. Uma sensação que parece se estende até a atualidade, tomando formas diversas e ampliadas, pelo caráter de conflitividade, heterogeneidade e diversidade de experiências do espaço metropolitano. Além de estar constantemente em estado de 104
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estruturação e reestruturação, de elaboração e reelaboração de suas definições e propriedades, cada vez mais ampliado e mundializado. A partir deste contexto que Simmel capta e nos apresenta um estilo de vida metropolitano paradigmático, onde o indivíduo precisa circular por um mundo cada vez mais objetivo, onde a sensibilidade deve se refugiar nos interstícios da vida urbana cada vez mais societária e menos comunitária. É um mundo objetivo individualista, dominado pelo intelectualismo, pelo cálculo e pela economia monetária. Mas, ao mesmo tempo, Simmel não renuncia a ideia de que a metrópole da modernidade também seja capaz de criar as condições psicológicas para a sensibilidade da alma do citadino (SIMMEL, 2000, 2005). Como afirmam S. Jonas e F. Weidmann (2006) foi um dos primeiros sociólogos e filósofos da cultura a perceber que o questionamento sobre a estética da cidade e o lazer de massa associa-se a uma reflexão sobre a sociedade e as novas formas sociais e espaciais que ela mesma criou. Assim, a contribuição de Simmel à discussão sobre práticas urbanas e políticas culturais aponta, de um lado, para uma crítica da modernização ou a reforça, mesmo que involuntariamente, uma vez que uma abordagem sensitiva da cidade possibilita um entendimento sobre o modo como foi sentida, compreendida e rejeitada a modernidade. Revela que a experiência da grande cidade é, antes de tudo, uma experiência traumática da modernização, dominada pela hiperestimulação 105
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sensorial e pelo estado de choque. Ademais, esta experiência é a origem de um abatimento psíquico, de uma perda de orientação espaço-temporal, de certa dissolução das experiências de transmissão intergeracionais, mas pode, por outro lado, ser compreendida como uma tentativa ambígua de superação destas mesmas críticas. Em Simmel, a hiperestimulação sensorial continha também um potencial libertador. Neste sentido, o novo modo de vida urbano poderia ser lido como uma reação do citadino às novas condições de percepção geradas pela metropolização. Desta forma, a experiência de modernidade metropolitana não geraria apenas alienação e reificação, indicaria ainda a possibilidade de uma liberdade individual. Assim, o transeunte e o flâneur interessam a Simmel, em primeiro lugar, porque as práticas urbanas cotidianas de quem passa pela rua e da flânerie são consideradas como fatores de socialização para os citadinos submetidos aos múltiplos estímulos do espaço da rua e colocam seu equilíbrio psicológico à prova. E, em segundo, porque a observação e o estudo destas figuras parecem indispensáveis para pensar as possibilidades de usos da cultura e das práticas cotidianas como instrumentos de desenvolvimento sociais. O transeunte é o indivíduo apressado que se desloca de maneira racional e objetiva, mecânica e quase automática por espaços urbanos estreitos sempre apertados, densos e hipertrofiados. O flâneur é aquele que percorre quase sempre o mesmo espaço, mas com descontração, sem objetivo preciso. 106
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Entretanto, os pedestres são alternativamente, segundo seus tempos, transeuntes ou flâneurs na vida urbana. Simmel indica, em seus estudos, que o pedestre desenvolve uma atitude blasé, de reserva, aparentemente insensível à proximidade e aos olhares dos outros. Porém, esta reserva é interpretada como uma reação de insegurança, um sentimento de estar sendo ameaçado e uma reação à sugestibilidade indiscriminada pela proximidade e aglomeração dos corpos, mas também a própria forma que assume a urbanidade moderna e torna possível a vida nas grandes cidades. A leitura de Simmel trás também para a discussão da metrópole dimensões epistemológicas significativas para a interpretação dos problemas contemporâneos que apontam para uma abordagem interacionista e fenomenológica. Tratase de relacionar os espaços com os comportamentos corporais e formas de sociabilidade que indicam as maneiras como os indivíduos territorializam, desterritorializam e reterritorializam os lugares, para usar o vocabulário de Deleuze e Guattari (1995), se servem de seus corpos em ritmos específicos, de técnicas corporais repetidas nos espaços de modo cíclico ou linear e que envolvem processos tais como: deslocamentos, passagens, permanências ou interações, velocidades, aberturas e fechamentos, aproximações e afastamentos, agrupamentos e dispersões de indivíduos de modo regular, esporádicos ou excepcional. Estas práticas urbanas remetem à movimentação física de tipos urbanos variados como: transeuntes, moradores, 107
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turistas, ambulantes, mendigos que vivem diariamente nestes lugares. Outros autores precursores desta abordagem da cidade “sensível” são Henri Lefebvre (1992), quando propôs uma reinterpretação da cidade por meio da heurística da rua e dos ritmos da vida cotidiana, além de Michel De Certeau (1994). Ressalta-se uma cidade praticada que se insinua no texto/ conceito da cidade planejada e visível. Práticas do espaço que remetem as “maneiras de fazer” (Ibid., 1994), aos “usos” dos espaços que evocam a coexistência física e social dos pedestres nos lugares públicos. Neste sentido, convém ressaltar que a experiência sensível do indivíduo na cidade contemporânea se liga às práticas e interações, aos lugares, às histórias vividas e às imagens coletivas presentes nos discursos partilhados. Estas experiências e as trocas ampliam-se na metrópole contemporânea assim como também as tensões apontadas por Simmel. Amplia-se, sobretudo, a tensão entre a ruptura com o passado que está sob ameaça de perda, um presente que está em estado de crises constantes e um futuro que oferece possibilidades incertas, com riscos mundialmente compartilhados. Lembrando que hoje a mobilidade e velocidade das novas tecnologias de informação e de telecomunicação distinguem de modo mais intenso o espaço urbano atual daquele do início do século XX.
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Urbanidades e usos dos espaços públicos: novos instrumentos analíticos e conceituais A perspectiva de estudo e compreensão da cidade contemporânea que consideramos ser uma contribuição necessária e urgente às reflexões atuais sobre as urbanidades, a democratização dos espaços públicos e o planejamento urbano parte do entendimento da problemática urbana contemporânea do ponto de vista da interdisciplinaridade, valorizando a articulação de conhecimentos produzidos entre os urbanistas, os arquitetos, os antropólogos, os sociólogos assim como também os artistas e os praticantes da cidade. Um esforço para realizar pesquisa empírica, prática e reflexão teórica, no sentido de uma reforma epistêmica dos nossos instrumentos analíticos, conceituais e de gestão das cidades. Neste caminho, a articulação entre arquitetura, urbanismo, sociologia e antropologia sugere a formação de um campo de conhecimento identificado por Ulf Hannerz (1991) e Manuel Delgado (2008, 2010) como “antropologia do urbano” e “antropologia dos espaços públicos” cujas principais raízes e ramificações podem ser encontradas em autores como G.Tarde, G. Simmel, G. Mead, os teóricos da Escola de Chicago em geral, H. Lefebvre, M. De Certeau, I. Joseph e disciplinas em bloco como a etnometodologia ou a microssociologia marcadamente nos estudos de E. Goffman. Podemos acrescentar ainda J. Jacobs (2000) e R. Sennet (1988) que denunciaram há
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mais de três décadas a decadência de um espaço público no século XX em comparação ao espaço criativamente caótico e dissonante do século XIX. Parte-se da constatação de que o pouco que restara da diversidade e do fervor do século XIX teriam sido as políticas urbanísticas centradas nas vigilâncias intensivas em nome da manutenção da ordem pública, o zoneamento, a periferização e preponderância do automóvel, da circulação. E que, entretanto, vivemos hoje um momento em que as ruas e praças voltam a ser reivindicadas como espaço para a criatividade e a emancipação, ao mesmo tempo em que a dimensão política do espaço público é colocada no centro das discussões em favor da democracia. Tudo isto, conta com a entrada em cena de novas modalidades de espaço público como o cyberespaço, exigindo uma revisão do lugar que ocupam no mundo atual as sociedades entre desconhecidos, baseadas em interações efêmeras. Vê-se, assim, a importância das interpretações e suas respectivas formas de análises contempladas em conjunto revelando algumas das vertentes teórico-metodológicas centrais do pensamento social no século XX. Na abordagem interacional, destacam-se as abordagens fenomenológicas centradas nas relações de sentido subjacentes a comportamentos corporais e a relacionamentos sociais. Na acepção funcional/arquitetônica e urbanística de “uso” destacam-se as relações desses mesmos comportamentos e formas de sociabilidades com funções urbanas definidas a priori. Ressalta-se, ainda, uma preocupação 110
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em interpretar os usos dos espaços públicos referenciando-se por processos sócio-históricos e/ou políticos amplos. São ambas as abordagens marcadas pela noção de dialética. Nesse percurso metodológico, tudo parece indicar que o substrato comum da possibilidade desse debate sobre os usos dos espaços públicos é o corpo, pois é ele que se move, interage, atua, cumprindo ou não funções, produzindo e sendo produzido em contextos específicos. E, assim, ganha força a noção de práxis recuperada do método dialético marxista (ato, relação dialética entre a natureza e o homem, as coisas e a consciência), inicialmente vinculada à crítica sociológica da vida cotidiana francesa do Pós-Guerra (LEFEBVRE, 1969). Retemos deste raciocínio a ideia de que o espaço é mediação crucial da práxis (LEFEBVRE, 2000), fundamentando noções de “prática espacial”, “usos do corpo” e de “espaço percebido”. O uso corporal do espaço mediado pelo “corpo vivido” e pelas pressões do espaço ordenado, planejado. Adviria também desta reflexão a diferença entre “usuários” e “praticantes dos espaços” numa crítica que amplia a complexidade dos atos cotidianos, contemplando os usuários sob a ótica das contradições históricas. Diferenciam-se, portanto, daqueles do senso comum do mundo moderno: usuários que usam os serviços públicos e privados, que gerem a vida urbana. Importa associar/articular usos particulares a processos sociais e políticos amplos procurando “compreender […] o que sustenta e mantém a hierarquia das grandes e 111
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pequenas, das estratégias e táticas, das redes e lugares” (LEFEBVRE, 2000, p. 105). Explicita-se o poder de um jogo e a criatividade do vivido. A dimensão semântica do poder assume relevo em uma nova acepção para a qual Michel De Certeau (1994, p.99) contribui significativamente partindo de práticas culturais de consumo e recepção para pensar sobre as “artes de fazer”, entre outras, como práticas cotidianas, inventivas e regradas por envolverem usos (ações dotadas de criatividade e formalidade) em contextos específicos explicitando relações de poder subjacentes a estas práticas. Seria necessário distinguir, nos usos e práticas urbanas, as “estratégias” (cálculo das relações de forças definido pela postulação de um lugar capaz de ser circunscrito como próprio) e as “táticas” (cálculo definido pela impossibilidade de postulação desse lugar próprio). Igualmente importante é pensar que, se as cidades sempre foram relacionais, lugares de convivência com o outro, com o “estrangeiro”, de coexistência das diferenças, também são ao mesmo tempo lugares da exacerbação do individualismo e do cosmopolitismo. Formas e conteúdos das sociabilidades que G. Simmel (2005) identificou como elementos que pautam a experiência dos habitantes das cidades: a relação entre proximidade corporal e distância espiritual, personificada no comportamento blasé. No Brasil estes problemas estão associados ainda a formação do espaço urbano marcada pelo patrimonialismo e 112
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fisiologismo de grupos dominantes, e a um longo caminho ainda a ser percorrido com relação aos direitos sociais e à cidadania (CARVALHO, 2003; LEITÃO, 2009), o que resultou na constituição de cidades excludentes nas quais os trabalhadores de baixa renda não têm acesso garantido a moradia, nem aos serviços e equipamentos públicos de qualidade. Em suma, urge estudar e discutir as práticas urbanas, as ações, processos sociais e as políticas culturais nos espaços públicos como praças e ruas em suas dimensões de lugares, territórios nos quais se enfrentam sociabilidades antagônicas, usos diferenciados por meio de palavras, gestos e posturas corporais. Investigar novas formas e usos que possam apoiar reflexões sobre um urbanismo contemporâneo que não negue à cidade aquilo que lhe é essencial – a vida pública. Refletir sobre novas formas epistêmicas no campo da arquitetura, do urbanismo e do planejamento urbano, informados pela produção crítica da própria área de conhecimento, das ciências sociais e das artes, relacionando os espaços construídos e as práticas urbanas (sociais, culturais e estéticas) e vendo a cidade como uma criação da inquietude cuja materialidade dos espaços públicos é inevitavelmente híbrida. Os praticantes da cidade, a fabricação e o planejamento urbano Para finalizar, ressaltemos que as ideias sobre as práticas urbanísticas contemporâneas inquietam não apenas os 113
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estudiosos e os agentes gestores das cidades, mas também seus habitantes. Os criadores e executores de planos, projetos e demais decisões que dirigem os rumos dos processos urbanos raramente explicitam o pensamento que os fizeram optar por certas alternativas e descartar outras. Quais foram seus conceitos de cidade, de problemas urbanos, de eficácia, de desenvolvimento, de qualidade de vida e, principalmente, do que seja o desejo e forma de praticar e usar os espaços dos indivíduos e grupos que fazem das cidades, fenômenos vitais, e não entidades abstratas. Junto com o discurso sobre a “crise” da cidade, do urbano, sobre a violência, incivilidade, etc., tudo parece indicar que os usuários pouco reivindicam essas explicações, induzidos pelas urbanistas e pelo hábito de acreditar em seus discursos. Parecem se adaptar aos lugares que lhes preparam os técnicos, planejadores e gestores, assimilar deformações, espaços pacificados, controlados por câmeras etc. Ao contrário, queremos finalizar este texto, apontando no sentido da existência de um saber local dos praticantes das cidades utilizado pelos habitantes para se desviarem das arquiteturas e espaços urbanos super-programados, planejados por meio de “táticas”, “astúcias” (CERTEAU, 1994), “ruses” urbanas, artifícios para se apropriarem e reinventarem seus espaços (BIASE, 2006). E com M. De Certeau dizer que, apesar de tudo indicar que a cidade do nosso tempo, do século XXI, tornou-se um 114
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espaço em “crise”, que a cidade-conceito se degradou, é preciso desconfiar das nossas análises e das aparências. Como diz M. De Certeau (1994, p. 174): talvez as cidades se estejam deteriorando ao mesmo tempo em que os procedimentos que as organizaram. Mas é necessário desconfiar de nossas análises. Os ministros do saber sempre supuseram o universo ameaçado pelas mudanças que abalam as suas ideologias e os seus lugares. Mudam a infelicidade ou a ruína de suas teorias em teorias da ruína. Quando transformam em ‘catástrofes’ os seus erros e extravios, quando querem aprisionar o povo no ‘pânico’ de seus discursos…
Opondo-se a esta lógica, o autor (Ibid., p.175) propõe outro caminho: analisar as práticas microbianas, singulares e plurais que um sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento… procedimentos que, muito longe de serem controlados ou eliminados pela administração panóptica, se reforçam… táticas… regulações cotidianas e criatividades subreptícias que se ocultam somente graças aos dispositivos e aos discursos, hoje atravancados, da organização observadora.
Refletir sobre a urbanidade em suas relações de civilidade, práticas urbanas, inseridas em uma dupla dimensão socioespacial torna-se urgente e fundamental para repensarmos as formas de atuação, gestão e planejamento de nossas cidades. Referências bibliográficas AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? E outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. 115
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L’ espace
ESPAÇOS PÚBLICOS, CORPOS E PRÁTICAS: novos elementos conceituais para a interpretação da urbanidade. O caso das Malvinas, em Campina Grande Iale Luiz Moraes Camboim Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia Marcele Trigueiro de Araújo Morais A perspectiva de estudo e compreensão dos processos de fabricação da cidade e de seus efeitos em matéria de convivencialidade urbana (ILLICH, 1973) parte do entendimento da problemática urbana do ponto de vista da interdisciplinaridade. A articulação entre arquitetura, urbanismo, sociologia e antropologia sugere a formação de um campo de conhecimento identificado por Hannerz (1991) e Delgado (2008, 2010) como “antropologia do urbano” e “antropologia dos espaços públicos”, cujas principais raízes e ramificações podem ser encontradas em autores como Tarde, Simmel, Mead, os teóricos da Escola de Chicago em geral, Lefèbvre, De Certeau, Joseph, e nas disciplinas como a etnometodologia ou a
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nos
estudos
de
Goffman
Esta orientação exige o trato da questão do espaço público a partir da identificação dos indícios nele impressos pela contemporaneidade e, mais precisamente ainda, pelo processo de urbanização contemporânea. A inquietude não é de todo atual e, há mais de três décadas, Jacobs (2000) e Sennett (1979) denunciaram a decadência do espaço público no século XX, em comparação ao espaço criativamente caótico e dissonante do século XIX. De fato, o pouco que restara desta diversidade foram as políticas urbanísticas centradas no zoneamento, na preponderância do automóvel e da circulação (TOMAS, 2001), mas também nas vigilâncias intensivas em nome da manutenção da ordem pública, com efeitos de hiper-programação espacial (GERMAIN, 2002; VAREILLES, 2006; TRIGUEIRO, 2008), de espetacularização (DEBORD, 1997; JACQUES, 2004, SCOCUGLIA, 2010b), homogeneização e, em última instância, de pacificação urbana (JOSEPH, 1995 apud JACQUES, 2009; TRIGUEIRO, 2010). Bassand (1997) atribui parte destes fenômenos ao crescimento desenfreado das cidades e de suas populações. Nos termos de Ascher (1995), trata-se do processo de modernização da sociedade que, fundamentado no tríptico individualização /racionalização/ diferenciação social, modificou fundamentalmente a estrutura espacial e social das cidades. 122
Espaços públicos, corpos e práticas
Malgrado estas constatações, o espaço público urbano volta a ser reivindicado como espaço para a criatividade e a emancipação, ao mesmo tempo em que a dimensão política do espaço público (SCOCUGLIA, 2010a), ou ainda do ciberespaço (CARVALHO, COSTA, CUKIERMAN, 2005), é colocada no centro das discussões em favor da democracia. Dentro da disciplina antropologia dos espaços públicos e no percurso metodológico que a acompanha, uma convergência parece indicar que o substrato comum da possibilidade de debate sobre os espaços públicos e seus usos é o corpo, pois é ele que se move, interage, atua na rua, produzindo e provocando novas interações em contextos específicos (JACQUES, JEUDY, 2006). Partindo de uma proposta de renovação epistêmica neste campo disciplinar36, ganha força a noção de práticas urbanas, recuperada do método dialético marxiano diante das contradições da práxis (LEFEBVRE, 1969). Resulta deste raciocínio a ideia de que o “espaço é mediação crucial da práxis”(LEFEBVRE, 1992), fundamentando noções de prática espacial, usos do corpo e de espaço percebido; em outros termos, noções segundo as quais a apreensão do espaço público passa pelo conceito de “uso corporal do espaço mediado”, observado pelo “corpo vivido”, resultado por sua vez das pressões do “espaço concebido”, ordenado, pacificado. 36
Proposta refletida em pesquisa recente coordenada pela professora Jovanka Scocuglia junto ao CNPq: PQ – Produtividade em Pesquisa, Processo 304430/2010-2 (cf. SCOCUGLIA, 2010a).
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Advém a diferença entre “usuários” e “praticantes dos espaços” numa crítica que valoriza a complexidade dos atos cotidianos e contempla tanto os usuários quanto os praticantes sob a ótica das contradições históricas. Os praticantes do espaço se diferenciam, portanto, daqueles do senso comum do mundo moderno, dos usuários dos serviços públicos e privados, que constituem e gerem a vida urbana. Há, portanto, o poder de um jogo “concebido”, embora brote dialeticamente a irredutibilidade dos usos devido à criatividade do “vivido”. A dimensão semântica do poder ganha, enfim, relevo em uma nova acepção, para a qual De Certeau (1994, p.99) contribui significativamente, partindo de práticas culturais de consumo e recepção para pensar sobre “as maneiras de fazer”, as “artes de fazer”, entre outras, como práticas cotidianas e inventivas. Pela capacidade que os espaços públicos urbanos têm de oferecer possibilidades em práticas urbanas cotidianas e inventivas e de estimular o processo de acionamento de outros inúmeros objetos e usos, os espaços públicos urbanos se encontram no cerne da questão da urbanidade e são, neste sentido, considerados instrumentos da urbanidade (TRIGUEIRO, 2008). Por “urbanidade”, entendem-se as relações de civilidade, práticas urbanas, inseridas em uma dupla dimensão socioespacial; trata-se de “disposições adquiridas pelo cidadão e, ao mesmo tempo, dos dispositivos de socialização presentes no meio urbano” (JOSEPH, 2002, p.35). Em outros termos, “de um dispositivo de socialização particular, que seria 124
Espaços públicos, corpos e práticas
próprio ao meio urbano e que teria efeitos ou consequências diretas no tipo de práticas e de relações sociais, nos comportamentos ou nas condutas de civilidade e de incivilidade” (ibid.). A dupla dimensão espacial e social aparece, nos estudos desenvolvidos por Holanda (2003), como “situação relacional [em itálico no texto] entre padrões físico-espaciais e expectativas sociais de muitos tipos” (ibid., p.20). Hillier e Hanson (1976 apud HOLANDA, 2002; 1984) referem-se igualmente às dimensões “sintáticas” e “semânticas” da arquitetura: às barreiras e às permeabilidades físicas sobre o chão (sintaxe) se superpõem regras de utilização (semântica) que acrescentam significado simbólico à sintaxe do lugar e contribuem para constituir – produzir e reproduzir – padrões de interação social. Os espaços públicos aparecem nesta problemática como um objeto privilegiado de observação, por apresentarem indícios de relações entre corpo e espaço e permitirem a articulação entre a sintaxe e a semântica das construções. Os espaços públicos do Conjunto Habitacional Álvaro Gaudêncio – ou Conjunto Habitacional (CH) Malvinas, como é popularmente conhecido – situado na periferia de Campina Grande, constituem o objeto empírico observado. Que padrões arquitetônicos e urbanísticos podem ser identificados? Que práticas / usos dos espaços urbanos do bairro das Malvinas indicam interações, sociabilidades ou ainda conflitos na relação dialógica que se instaura entre o espaço urbano e aqueles que o atravessam, o 125
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exploram? Que padrões de utilização podem ser considerados “contra-hegemônicos” ou ainda que manifestação(ões) de urbanidade(s) determinadas situações espaciais facultam contemplar? Parte-se da suposição da existência de um saber local dos praticantes das cidades, utilizado como alternativas em termos de práticas sociais e relações corpo-cidade ou ainda como possibilidades de “desvio” dos objetos fabricados (arquiteturas e espaços urbanos contemporâneos) e das “disfunções” cujo espaço público é o teatro privilegiado. Trata-se das “táticas”, “astúcias” ou ainda das “ruses” urbanas (DE CERTEAU, 1994), entendidas como artifícios utilizados pelos praticantes no sentido de reivindicarem e reinventarem seus espaços (BIASE, 2006). Nos termos de De Certeau (1994), trata-se de: Analisar as práticas microbianas, singulares e plurais que um sistema urbanístico deveria administrar ou suprimir e que sobrevivem a seu perecimento... procedimentos que, muito longe de serem controlados ou eliminados pela administração panóptica, se reforçam... táticas... regulações cotidianas e criatividades sub-reptícias que se ocultam somente graças aos dispositivos e aos discursos, hoje atravancados, da organização observadora (DE CERTEAU, 1994 p. 174-175).
A partir da observação dos espaços públicos urbanos e do registro de reações corporais específicas, pretendese problematizar a experiência da urbanidade nos bairros periféricos de habitação social, propondo uma reflexão sobre as práticas inventivas, i.e. sobre os processos “contra-
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Espaços públicos, corpos e práticas
hegemônicos” (DE CERTEAU, 1994; SCOCUGLIA, 2010a, 2010b) desenvolvidos no seio destes setores da cidade. Contexto, quadro teórico e métodos A cidade em crise... o que dizer do espaço público? O enfoque específico sobre a arquitetura da cidade como consequência, causa, reflexo ou imagem forte da crise urbana e do enfraquecimento da esfera pública, com repercussão nas sociabilidades urbanas, é recente (CALDEIRA, 2000; BAUMAN, 2009; SOUZA, 2008; FIJALKOW, 2007). No Brasil, a questão vem se delineando desde a década de 1980, se analisada, por exemplo, sob o prisma das grandes transformações socioeconômicas e político-institucionais – i.e. sob a ótica da segregação socioespacial, da crise de moradia e da favelização. Vários foram os processos que se combinaram para provocar as mudanças recentes no padrão funcional e formal das cidades brasileiras e latino-americanas. Estudos associam a decomposição ou desconstrução da vida urbana e o aumento do fator de risco, depois dos anos 1980,à volatilidade da ordem econômica neste período, bem como às reformas neoliberais e à recessão vivida por muitos países do continente. Fatores como o aumento do desemprego, a perda da continuidade e da proteção dos empregos, bem como o enfraquecimento das instituições de segurança social e dos organismos de reivindicações coletivos 127
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(sindicatos e partidos políticos) vêm agravar o quadro e conduzir a uma instabilidade generalizada, intensificando a busca por recursos como a informalidade. Os estudos sobre antropologia também indicam neste período um aumento da criminalidade, da insegurança e do medo na América Latina, o que coincide com a privatização e a transnacionalização das economias, bem como com a perda do poder de compra dos salários (CANCLINI, 1995; SCOCUGLIA, 2010a). Canclini (id.) alude às “cidades paranoicas” em oposição ao conceito de “cidades espetáculo” para descrever a conjuntura. Com efeito, o discurso jornalístico e televisivo aponta paisagens desastrosas, destruídas pelos ladrões, “batedores de carteiras”, sem-tetos, imigrantes, revoltados, excluídos (SCOCUGLIA, SZYLAGI e COELHO, 2011). No Brasil estes problemas estão associados ainda à formação do espaço urbano marcada pelo patrimonialismo e fisiologismo de grupos dominantes (CARVALHO, 2003; LEITÃO, 2009), o que resultou na constituição de cidades excludentes nas quais os trabalhadores de baixa renda não têm acesso garantido à moradia, nem aos serviços / equipamentos públicos de qualidade e, não raro, onde o narcotráfico edificou seu império. Segundo Maricato (1996, 2001), esta situação se agrava, sobretudo, após a crise econômica das décadas de 1980 e 1990, aprofundando o óbice da “nãocidade”, definida por se encontrar fora da esfera dos direitos, do acesso aos referidos serviços e equipamentos públicos. 128
Espaços públicos, corpos e práticas
Neste contexto, o espaço público aparece incapaz de promover o ideal moderno de universalidade e termina por promover a separação e a ideia de que os grupos sociais estão fadados a viver em enclaves homogêneos, fortificados, isolados daqueles considerados diferentes (SCOCUGLIA, 2010a). Delineia-se então um novo padrão de segregação espacial que serve de base a uma nova esfera pública, na qual as diferenças de classes e as estratégias de separação são acentuadas. Nesta configuração, o esvaziamento da praça e da rua, como espaços de fluxos, de circulação, corresponde ao silenciar de vozes (ANDRADE, 2008), concomitante à emergência de um padrão de privacidade associado à “maquinaria do conforto” (id.); padrão que substitui um modo de satisfação corporal, cujos efeitos são incontroláveis, por um bem-estar cujos meios de produção e os efeitos possam ser controlados e utilizados – caso dos centros comerciais, com seus malls e praças de alimentação, verdadeiras “máquinas de conforto que regulam as vidas íntimas e públicas” (id., p.100). O espaço público, seja ele livre (espaços públicos tradicionais) ou privatizado (caso dos espaços internos aos centros comerciais), é regido por códigos de uso, por regras de conduta37, e “uma regra [...] não é somente uma maneira de agir 37
A primeira dentre elas sendo esta “maneira de ser citadino, ensinada desde a infância, que consiste em andar na rua sem pular como um cabrito, nem apontar as pessoas com o dedo; andar sem ser notado, indivíduos similares aos outros, neutros, anônimos” (ROCAYOLO apud PORNON, 1996, p.115).
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habitual: é antes de tudo uma maneira de agir obrigatória, subtraída em alguma medida do arbitrário individual” (DURKHEIM, 2004, p.V). Dentro desta lógica, o agenciamento dos espaços públicos “pode valer como expectativa dos comportamentos dos públicos que os utilizarão” (TOUSSAINT, 2003, p.50); os “dispositivos técnicos e espaciais do urbano” 38 compreendidos em cada agenciamento constituem neste sentido possibilidades concretas em matéria de ação e oferecem alternativas em termos de práticas sociais. A invenção e a urbanidade possíveis: as zonas urbanas “opacas” O discurso sobre a crise da cidade, do urbano, sobre as manifestações de violência, e de incivilidade configura-se como o relato de uma catástrofe presente e anunciada, à qual os públicos urbanos devem confrontar-se, resignando-se e adaptando-se aos espaços fabricados, ordenados, domesticados, pacificados, controlados por câmeras e seguranças. Segundo Jacobs (2000) “talvez nos tenhamos tornado um povo tão displicente, que não mais nos importemos com o funcionamento geral das coisas, mas apenas com a impressão exterior imediata e fácil que elas transmitem”. De Certeau (1994) reforça o 38 Do francês, dispositifs techniques et spatiaux de l’urbain (DTSU) – termo proposto por Zimmermann e Toussaint (cf. TOUSSAINT, 2003, pp.5153).
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Espaços públicos, corpos e práticas
pensamento, alegando que “talvez as cidades se estejam deteriorando ao mesmo tempo em que os procedimentos que as organizaram” (id., p.174), mas alerta: É necessário desconfiar de nossas análises. Os ministros do saber sempre supuseram o universo ameaçado pelas mudanças que abalam as suas ideologias e os seus lugares. Mudam a infelicidade ou a ruína de suas teorias em teorias da ruína. Quando transformam em “catástrofes” os seus erros e extravios, quando querem aprisionar o povo no “pânico” de seus discursos (DE CERTEAU, 1994, p.174.).
Os “praticantes” desenvolvem táticas, ruses, como meios de se inserirem e, assim, resistirem às formas hegemônicas de intervenção e fabricação dos espaços públicos urbanos. Convém valorizar as práticas urbanas cotidianas e ordinárias, enquanto parte do processo de constituição da cidade contemporânea, em especial, aquelas que acontecem nas “zonas urbanas opacas”, definidas por Santos (2008) como “os espaços do aproximativo e não espaços de exatidão; [...] espaços inorgânicos, abertos e não espaços racionalizados e racionalizadores; [...] espaços da lentidão e não da vertigem” (id., p.79). Para o geógrafo, o espaço é o resultado indissolúvel da relação entre sistemas de objetos e sistemas de ações, de maneira que, na sociedade contemporânea, a união do espaço e do tempo pela técnica constitui de forma radical as “zonas urbanas luminosas”, nas quais tanto os objetos são artificiais quanto as ações tendem a ser “artificiosamente instrumentalizadas” gerando, na cidade, “a ‘naturalidade’ do objeto técnico” (id.). Trata-se de: 131
Iale L. M. Camboim, Jovanka B. C. Scocuglia, Marcele T. de A. Morais Uma mecânica repetitiva, um sistema de gestos sem surpresa – essa historicização da metafísica crava no organismo urbano áreas “luminosas”, constituídas ao sabor da modernidade e que se justapõem, superpõem e contrapõem ao resto da cidade, onde vivem os pobres: as zonas urbanas “opacas” (SANTOS, 2008, p.79).
Identifica-se nas cidades e, em especial, nas cidades do território brasileiro, uma subdivisão dos espaços em subespaços que podem ser diferenciados por apresentarem, de um lado, uma carga considerável de tecnicidade – um meio técnicocientíficoinformacional, onde a racionalidade dos agentes hegemônicos é possível e eficaz, formado por objetos criados prévia e deliberadamente para o exercício desta racionalidade, por sua vez outorgada pelas ações e pelos objetos técnicos – e, de outro, uma presença técnica pouco relevante. Decorre a constituição de uma nova centralidade, cuja tecnicidade é onipresente, em oposição aos setores onde ela é praticamente inexistente (SCOCUGLIA, 2010a). Na lógica proposta por Santos (2008), as possibilidades de microrresistências se encontram nestes “espaços opacos”, que estão longe das centralidades hiper-técnicas e fora dos holofotes dos processos globalizados de pacificação e espetacularização urbana. Pensar os espaços públicos das cidades contemporâneas, a partir desta diferenciação, como maneira de apreensão da urbanidade, remete a uma postura que pode ser identificada ao “urbanismo cotidiano” (CHASE, CRAWFORD, KALISKI, 2008 apud BRITO, JACQUES, 132
Espaços públicos, corpos e práticas
2010), uma vez que pretende apontar para as apropriações espontâneas e temporárias, presentes nas “zonas urbanas opacas”, a partir das quais estes setores da cidade são reinventados. Trata-se de uma “fenomenologia dos espaços urbanos”, ou ainda da tentativa de uma formulação teórico-reflexiva sobre a efetivação da urbanidade, capaz de vincular as práticas e seus significados humanos e sociais ao desenho e planejamento urbano. Através de determinado “‘filtro conceitual”, formado pelos conceitos de corpos e práticas urbanas, e da apreensão da atitude ordinária do praticante e de sua experiência urbana cotidiana, pretende-se, mais do que soluções construtivas e normativas, investigar as formas e os usos particularmente desenvolvidos nas zonas urbanas opacas, de maneira a apoiar reflexões sobre um urbanismo contemporâneo que não negue a determinadas áreas urbanas aquilo que lhes é igualmente essencial – a vida pública e a alteridade (LEFEBVRE, 1986; SENNETT, 1979). Metodologia Embora diversas vertentes teórico-metodológicas centrais do pensamento social no século XX tenham servido de
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referência39, optou-se por uma forma de análise voltada para uma antropologia dos espaços públicos, apta a revelar a essência do espaço público e, sobretudo, da(s) urbanidade(s) que eles facultam observar, a partir do registro do movimento corporal e das atividades sociais urbanas registradas no espaço de um grande conjunto habitacional de interesse social. Neste sentido, justifica-se a utilização de um filtro teórico, fundamentado no “estabelecimento de categorias” (GRAWITZ, 2001) – os conceitos de corpos e práticas sociais – através do qual são explorados resultados de uma pesquisa desenvolvida entre 2010 e 2011 na UFCG40. Para tanto, foram mobilizadas técnicas de investigação com o objetivo de, por um lado, prestar conta das características espaciais do conjunto habitacional em foco (i.e., os DTSU) e, por outro lado, das sociabilidades desenvolvidas no seio dos 39 Entre elas, citem-se as abordagens fenomenológicas, fundamentadas nas relações de sentido subjacentes a comportamentos corporais e a relacionamentos sociais; a acepção funcional / arquitetônica / urbanística do conceito de “uso”; ou ainda a preocupação em interpretar os usos dos espaços públicos, referenciando-se por processos sociohistóricos e/ou políticos amplos. 40 Pesquisa realizada por Iale Luiz M. Camboim (UFCG), sob a orientação de Marcele Trigueiro, com a colaboração de Jovanka Scocuglia para esta publicação. Ademais, as reflexões metodológicas, teóricas e conceituais desenvolvidas dentro do âmbito da pesquisa “Território e urbanidade”, dirigida por Jovanka Scocuglia no seio do LECCUR integram este texto.
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Espaços públicos, corpos e práticas
espaços observados; em outros termos, trata-se da constituição de um corpus “duplamente qualificado” (TRIGUEIRO, 2008), que corresponde à dupla dimensão compreendida no conceito de urbanidade. Uma “análise sintática”, a partir de cartografias axiais do conjunto foi realizada (HILLIER, HANSON, 1984 apud HOLANDA, 2002), associada a métodos de “análise visual” (CULLEN, 1983) e de morfologia urbana (LAMAS, 2000; LYNCH, 2010) aplicadas a determinados setores do bairro41. A fim de contrapor a estes elementos informações de cunho social, optou-se pela realização de uma pesquisa qualitativa desenvolvida junto aos habitantes a partir de entrevistas semidiretivas e de questionários estruturados (35 ao total), mas também de observações de campo efetuadas “de fora em segredo” (DEL RIO, 1990) e de um registro fotográfico das áreas de estudo. A exploração destes dados foi feita a partir de uma análise estatística das questões objetivas presentes nos questionários, bem como de uma análise do discurso produzido pelas questões subjetivas e entrevistas. Por fim, no intuito de colocar em evidência as práticas sociais mais frequentemente observadas, as imagens receberam tratamento gráfico por programa computacional específico.
41
No caso deste texto, apenas serão mostradas as imagens referentes à análise morfológica do bairro (parcelamento e uso do solo), uma vez que o padrão preto e branco impossibilita a clara compreensão das cartografias axiais.
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Conjunto Habitacional Malvinas, em Campina Grande (PB) O crescimento urbano de Campina Grande se deu a partir da adição de novos bairros na periferia da cidade. Desde 1968, com a participação de órgãos como Instituto de Orientação às Cooperativas Habitacionais (INOCOOP), Companhia Estadual de Habitação Popular (CEHAP), Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado (IPASE) e Instituto de Previdência do Estado da Paraíba (IPEP), o processo de produção da periferia campinense se intensificou e diversos conjuntos habitacionais foram fundados em áreas não contínuas à malha urbana, principalmente na parte oeste da cidade. O CH Malvinas, construído em 1980, gerou diversos conflitos entre a população e os poderes públicos após a invasão das casas, em 1983, por parte de pessoas não cadastradas na CEHAP42. A área onde foi construído o Conjunto Malvinas era como todos os outros conjuntos erguidos no período 1960 – 1980, bastante distante do centro e da área efetivamente ocupada, deixando um longo vazio na malha urbana, [...] criando grandes manchas. O Conjunto Malvinas foi o primeiro grande conjunto habitacional popular 42 O conjunto ficou popularmente conhecido pelo nome “Malvinas”, pois, no mesmo período da sua invasão, acontecia o confronto armado entre Inglaterra e Argentina, ocorrido nas Ilhas Malvinas.
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Espaços públicos, corpos e práticas construído pelo Estado na cidade de Campina Grande (MAIA, 2010, p.7).
O CH Malvinas cresceu e tornou-se um dos maiores e mais populosos bairros de Campina Grande, com 38.713 habitantes (IBGE, 2010), o que representa cerca de 10% da população do município. Encontra-se afastado do Centro, porém menos deslocado que outros bairros populosos da cidade [cf. infra, Figura 01].
Figura 01. Localização do CH Malvinas, na cidade de Campina Grande, em relação ao Centro Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011.
A economia do conjunto é baseada em pequenos comércios espalhados por sua extensão. A atividade comercial mais intensa está essencialmente localizada na parte antiga do 137
Iale L. M. Camboim, Jovanka B. C. Scocuglia, Marcele T. de A. Morais
bairro, notadamente na Rua das Umburanas, Rua Jamila Abrahão Jorge e Rua Olinda. Em relação aos equipamentos urbanos, é igualmente o setor consolidado que possui melhor infraestrutura de luz, esgoto e pavimentação. Alguns conjuntos construídos recentemente estão parcialmente pavimentados ou não receberam pavimentação, nem rede de esgoto. Em todo o bairro, inexistem locais para atividades culturais ou de lazer. Devido à animação inerente a áreas comerciais e mais consolidadas do tecido urbano, optou-se, dentro do bairro das Malvinas, pela determinação de dois percursos (ruas) e setores de estudo, escolhidos como objetos de investigação: o Setor 1, composto por quadras situadas à margem da Rua das Umburanas; e o Setor 2, com quadras em torno da Rua Olinda [cf. infra, Figura 02].
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Espaços públicos, corpos e práticas Figura 02. Localização dos setores e percursos estudados no interior do CH Malvinas Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011.
Análise espacial Morfologia urbana Com base
nos
dados fornecidos
pela
Prefeitura Municipal de Campina Grande (PMCG), foram elaborados mapas de uso e parcelamento do solo das áreas estudadas [cf. infra, Figuras 03 e 04]. Em ambos os setores, a malha urbana é ortogonal; os quarteirões são, em sua maioria, retangulares e não apresentam ruas de penetração; os lotes são ortogonais e semelhantes uns aos outros em termos de dimensão, com exceção dos lotes de esquina, maiores que os demais. As edificações, por sua vez, são predominantemente horizontais e a tendência à verticalização, pouco considerável nos setores estudados43. Observa-se ainda uma variedade de usos do solo ao longo da Rua Olinda e da Rua das Umburanas, bem como a ocorrência de lotes com uso misto – residência, associada a comércio e/ou serviços [cf. infra, Figuras 03 e 04]. 43 Apenas o Setor 2 apresenta uma concentração de 13 lotes verticalizados, em edificações de tipo “T+2” ou “T+3” pavimentos (quadra central cuja maior dimensão margeia grande parte da Rua Olinda).
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Iale L. M. Camboim, Jovanka B. C. Scocuglia, Marcele T. de A. Morais
Figura 03. Setor 01: parcelamento e uso do solo, com ênfase para a ocorrência do uso comercial Fonte: PMCG/SEPLAN (2010). Edição dos autores.
Figura 04. Setor 02: parcelamento e uso do solo, com ênfase para a ocorrência do uso comercial
Fonte: PMCG/SEPLAN (2010). Edição dos autores.
Na Rua das Umburanas, a atividade comercial mais intensa aparece na sua porção sul, enquanto que, na Rua Olinda, os usos misto e comercial estão majoritariamente concentrados ao nordeste do setor. A comparação entre os dados fornecidos pela PMCG e os registros
140
Espaços públicos, corpos e práticas realizados in loco permitiu a observação de certa disparidade em
termos de uso do solo, o que indica a informalidade de alguns estabelecimentos comerciais e de serviços, provavelmente ainda não cadastrados pelo município. Ademais, os espaços privados sobrepõem-se aos espaços públicos, estes últimos praticamente resumidos às ruas e calçadas. Não existem espaços abertos de uso coletivo, como praças, capazes de proporcionar permeabilidade à malha, nem opções de atividade social urbana. As quadras são cercadas por barreiras que determinam os limites do espaço privado, e até mesmo um campo de “pelada”, localizado na Rua das Umburanas (Setor 1), é cercado por muros. Sintaxe espacial No que concerne às informações sintáticas, percebese que as linhas axiais coincidem com as vias de pedestres e veículos, pois se configuram como os únicos espaços abertos da área em que estão inseridos [cf. infra, Figuras 05 e 06]. Estes últimos dados são tão logo compreendidos como fortes indícios da configuração espacial do bairro estudado. Na Figura 05 [cf. infra], os mapas axiais de integração das áreas investigadas mostram que as ruas escolhidas inicialmente como os percursos a serem avaliados (Rua das Umburanas e Rua Olinda) são justamente as vias mais integradas de ambos os setores. Verificase ainda, através dos mapas axiais de conectividade [cf. 141
Iale L. M. Camboim, Jovanka B. C. Scocuglia, Marcele T. de A. Morais
infra, Figura 06], que as ruas mais integradas são também as mais conectadas, ou seja, apresentam mais cruzamentos com outras vias da área. A cartografia axial do bairro indica, assim, que a Rua das Umburanas e a Rua Olinda são as vias mais inteligíveis do Setor 1 e Setor 2, respectivamente.
Figura 05. Mapa de integração: as cores escuras representam os maiores valores de integração. Fonte: PMCG/SEPLAN (2010). Edição dos autores.
Figura 06. Mapa de conectividade: as cores escuras representam os maiores valores de conectividade Fonte: PMCG/SEPLAN (2010). Edição dos autores.
A Figura 3 [cf. supra] sinaliza ainda para uma dupla caracterização da Rua das Umburanas, onde sua porção norte é 142
Espaços públicos, corpos e práticas
predominantemente residencial, com poucos estabelecimentos comerciais em edificações mistas, e sua porção sul mais comercial. A fim de verificar a influência destas diferenças no grau de conectividade da rua, um terceiro mapa axial foi elaborado, considerando a Rua das Umburanas composta por dois segmentos. A cartografia resultante reforça a vocação já observada, uma vez que o trecho sul da via possui maior grau de conectividade em relação ao trecho norte sendo, por consequência, o trecho mais inteligível do setor. Análise visual Experiências visuais distintas marcam o percurso ao longo da Rua das Umburanas. Os quadros a, b e c, da Figura 07 [cf. infra], são extraídos da porção norte da via e mostram que a rua, sempre retilínea, não possui apelos visuais significativos, com exceção da caixa d’água, elemento construtivo de certa predominância vertical – a presença deste “marco”, para empregar os termos propostos por Lynch (2010), favorece a imaginabilidade da Rua das Umburanas, conhecida como “a rua da caixa d’água”. No entanto, percebe-se que a calçada possui desníveis que dificultam a acessibilidade, configurandose como um dispositivo de constrangimento no espaço – nestas condições, os moradores invertem seu uso e servem-se do desnível para se sentar e conversar com os vizinhos.
143
Iale L. M. Camboim, Jovanka B. C. Scocuglia, Marcele T. de A. Morais
(a)
(b)
(c)
(d)
(e)
(f)
Figura 07. Série de quadros visuais sucessivos na Rua das Umburanas (Setor 1) Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011. Os quadros d, e ef, da Figura 07 [cf. supra], são extraídos da
porção sul da via e apresentam características diferentes. Por se tratar de uma área prioritariamente comercial, onde estão presentes mercadinhos, supermercados, farmácias, ótica, salão de beleza, entre outros estabelecimentos, observa-se uma maior intensidade de apelos visuais. A presença de placas comerciais, pinturas e de cartazes nos muros dá evidências de que se trata de um dos centros comerciais do bairro. Contudo, o desordenamento destes elementos dificulta a legibilidade da paisagem. A incidência de edificações com dois pavimentos é 144
Espaços públicos, corpos e práticas
também maior nesta porção sul da rua: de fato, é aparente o adensamento da área, que parece ter potencial para absorver mais estabelecimentos comerciais e de serviços. Ademais, não foram encontrados “nós” (LYNCH, 2010) com importância significativa para a imaginabilidade da área, possivelmente em decorrência do desenho viário do setor. As edificações são majoritariamente residenciais e térreas. Apesar disso, o uso comercial ocorre de forma isolada e aleatória em unidades mistas, com pontos comerciais instalados em algum cômodo da casa (“puxadinhos”), ou ocupando o pavimento térreo de uma edificação que apresenta o segundo pavimento destinado ao uso residencial – em ambos os casos, muito provavelmente, a situação é legalmente irregular [cf. infra, Figura 08].
Figura 08. Edificações de uso misto ao norte da Rua das Umburanas (Setor 1) Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011.
A Figura 09 [cf. infra] compreende os quadros referentes ao percurso da Rua Olinda. Neles, percebe-se que a rua é retilínea, porém mais estreita que a Rua das Umburanas. As
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Iale L. M. Camboim, Jovanka B. C. Scocuglia, Marcele T. de A. Morais
edificações são de alvenaria e algumas unidades comerciais ou mistas apresentam até três pavimentos.
(a)
(b)
(c)
Figura 09. Série de quadros visuais sucessivos na Rua Olinda (Setor 2) Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011. A atividade comercial da Rua Olinda é intensa e as residências se encontram intercaladas às lojas de roupas, loterias, serralharias, oficinas de eletrodomésticos e salões de beleza. Por este motivo, abundam placas, cartazes e outros meios de divulgação comercial. O conteúdo da área é composto por uma multiplicidade de usos, que, aliada à complexidade das imagens desordenadas vistas ao longo da via, torna a legibilidade do local pouco evidente. As calçadas são estreitas e, similarmente à descrição anterior, de difícil acesso, considerando os desníveis e barreiras presentes no espaço – a área de circulação é utilizada para colocação de placas e mostruários publicitários, como mostram os quadros b e c, da Figura 09 [cf. supra].
Segundo Cullen (apud DEL RIO, 1990), a população insere identidade ao seu local de convívio, conferindo a este o 146
Espaços públicos, corpos e práticas
sentido de “lugar”. As interferências pós-ocupacionais mais perceptíveis nos setores estudados consistiriam, dentro desta lógica, os meios pelos quais os moradores teriam promovido adaptações à configuração original do conjunto habitacional – a primeira delas, sendo esta necessidade recorrentemente observada de definir com clareza os ambientes internos / externos, públicos / privados, a partir da delimitação nítida dos lotes; ou ainda, a conversão dos usos dos espaços, de forma a acrescentar atividades comerciais e de serviços onde essa versatilidade não estava prevista. A população parece, nestas circunstâncias, encontrar meios de suprir as diferentes carências espaciais, agindo empiricamente (embora não menos pragmaticamente), mesmo que, para tanto, a qualidade visual da paisagem seja sacrificada. Um exemplo disso é a instalação desordenada de pontos comerciais em ruas de maior integração e inteligibilidade, onde circulam mais pessoas e veículos. Espaços, corpos e práticas: a observação da urbanidade A urbanidade pressupõe e implica a convivência entre várias atividades e categorias de pessoas, entre práticas urbanas e corpos no espaço. Não importa necessariamente se as habitações, serviços e/ou comércios estão próximos espacialmente ou em acordo com o desenho dos arquitetos, mas se os moradores, ao praticá-los e realizarem suas atividades 147
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cotidianas, recorrem ao encontro do outro e desenvolvem, por meio de relações pessoais (i.e. laços de sangue, de amizade, etc.) ou impessoais, porém interdependentes, determinados padrões de urbanidade. Sua observação implica a apreensão dos DTSU, assim como a forma segundo a qual tais objetos são investidos pelos praticantes. Dentro desta lógica, percebe-se que a Rua Olinda (Setor 2) compreende residências, sendo contudo pontuada por vários estabelecimentos comerciais; trata-se naturalmente de uma rua que apresenta maior fluxo de veículos e de pedestres. As edificações são baixas e situadas ao longo da rua, o que favorece o deslocamento das pessoas e o modo como funcionam os sentidos. O contato dos corpos e da visão com o que se passa ao nível do solo é possível e intensifica as possibilidades de interação. As fachadas estreitas das residências e dos pequenos comércios, bem como a existência de muitas portas contribuem para que não haja dispersão, possibilitando agrupamentos e maior permeabilidade dos lotes. Convém ressaltar que as observações foram realizadas no final de tarde, quando várias pessoas se encontravam nas calçadas, em frente às suas casas, para conversar com vizinhos ou com pessoas conhecidas que por ali passavam. Alguns moradores conversavam em pé, outros se sentavam nos batentes da entrada, ou ainda em cadeiras e bancos trazidos de suas residências [cf. infra, Figura 10, quadro a].
148
Espaços públicos, corpos e práticas
(a)
(b)
Figura 10. Práticas urbanas na Rua Olinda (Setor 2) Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011.
Este comportamento se repetiu durante os dias em que ocorreram as observações e provavelmente representa uma prática constante no horário. Da mesma forma, em alguns estabelecimentos comerciais, foi possível observar funcionários instalando cadeiras na calçada, com o objetivo de contemplar a passagem dos pedestres ou simplesmente de interagir com outras pessoas. As calçadas são classificadas, nestas condições, como os únicos “palcos de ação” (DEL RIO, 1990), onde ocorrem “atividades específicas” no bairro; no caso do setor observado, apenas elas permitem a integração entre as esferas privada (residências, lojas, etc.) e pública (calçada). De fato, os moradores realizam seus encontros nas calçadas, uma vez que os demais espaços públicos são inexistentes e que não há nenhuma outra estrutura urbana propícia a este tipo de atividade social. Em consequência, a população mobiliza os poucos dispositivos presentes no espaço, compensando de certa maneira a lacuna 149
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espacial. Trata-se tipicamente de uma adaptação das necessidades dos praticantes do espaço ao ambiente construído, que origina situações comportamentais diferenciadas: a ausência de espaços de qualidade não parece, contudo, inviabilizar o uso dos espaços existentes, que finalmente assumem o caráter de área de encontros sociais. Embora solicitadas no cotidiano pelos moradores e demais praticantes do espaço, as calçadas são inadequadas à circulação. Os passeios são demasiadamente estreitos, com uma série de obstáculos, que inviabilizam outras tantas atividades – cite-se, por exemplo, a dificuldade demonstrada por uma moradora em caminhar, conduzindo um carrinho de bebê [cf. supra, Figura 10, quadro b]. Não apenas a irregularidade do piso, com buracos e elevações, mas também as diversas barreiras que se encontram no caminho dos passantes, como placas, cavaletes, etc. dificultam a caminhada, constrangendo os movimentos no espaço. Inviabilizadas pela disposição, no espaço público, de objetos inapropriados, as calçadas são frequentemente preteridas pelos pedestres, que, na maioria das vezes, optam por caminhar ou mesmo por encontrar conhecidos ao longo do meio-fio, na faixa de rolamento destinada aos veículos: os quadros a e b da Figura 11 [cf. infra] mostram cenas destas “reinvenções” na Rua das Umburanas (Setor 1). De fato, no entardecer, na porção norte da via, alguns moradores aproveitam as sombras projetadas na rua para praticar cooper, passear com o cachorro ou reunir-se com seu vizinho: por se 150
Espaços públicos, corpos e práticas
tratar de uma via pouco movimentada, o risco de atropelamento parece não ser uma real preocupação.
(a)
(b)
Figura 11. Práticas urbanas na Rua das Umburanas (Setor 1) Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011.
Outras cenas do cotidiano puderam ser registradas, como grupos de conversa entre vizinhos nos portões das casas (atividade praticada principalmente pelas mulheres) ou entre funcionários e/ou clientes em frente a uma vidraçaria [cf. infra, Figura 12, quadro a].
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(a)
(b)
(c)
Figura 12. Práticas urbanas na Rua das Umburanas (Setor 1) Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011.
Mais animada, a porção sul da Rua das Umburanas (Setor 1) possui uma maior atividade comercial e de serviços, bem como compreende o principal acesso às linhas de ônibus do bairro. Os aspectos de copresença são, portanto, mais intensos nesta área: no momento da observação, algumas pessoas se acumulavam em paradas de ônibus, em pé ou sentadas no meiofio, uma vez que não havia abrigos [cf. supra, Figura 12, quadro b]; paralelamente, uma vendedora ambulante vendia seu milho na calçada, enquanto transeuntes paravam para conversar e comprar seus produtos [cf. supra, Figura 12, quadro c]. Estes movimentos e encontros de corpos indicam a existência de relações sensíveis entre corpo-cidade no bairro das Malvinas, apesar da inexistência de equipamentos urbanos, desde os mais simples, como abrigos para espera de ônibus, ou calçadas niveladas e largas que convidem ao passeio e a convivência entre vizinhos, até os mais complexos, como grandes parques públicos urbanos. Malgrado a insuficiência de dispositivos adequados à atividade social urbana, as calçadas parecem ser lugares catalisadores de encontros, aglomerando pessoas de todas as gerações. Nesses espaços, fronteiras são dissolvidas mesmo que por curtos períodos de tempo. Como as fotos acima indicam, não há barreiras entre os corpos: as pessoas conversam na soleira da porta do pequeno comércio, enquanto a vendedora
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Espaços públicos, corpos e práticas
ambulante se apropria da calçada colocando seu pequeno comércio com mesa, cadeira, fogão a lenha; os fregueses aproximam-se, sentam-se e conversam à vontade, como se estivessem na sala de estar de suas casas [cf. supra, Figura 12]. Tais comportamentos repetiram-se durante os dois dias da observação de campo. Dispositivos técnicos supostamente mais frequentes em bairros residenciais de média e alta renda, os muros altos e as grades de proteção estão igualmente presentes nos setores estudados. No entanto, convém salientar que, quando encontrados, os muros e as grades não pareceram impedir usos corriqueiros das calçadas, encontros e conversas entre vizinhos. De maneira geral, trata-se de dispositivos de segurança que representam barreiras físicas e promovem a separação entre os espaços público e privado, delimitando ambas as esferas, mas também inibindo o desenvolvimento de áreas de transição suave, capazes de favorecer a interação social em zonas limítrofes. No caso específico da Rua Olinda e da Rua das Umburanas, não foram identificadas zonas de ausência e/ou de enfraquecimento das práticas sociais em decorrência destes elementos físicos. Locais de atração, como parques, praças etc. também não foram encontrados nos setores estudados – as “peladas” ocorrem geralmente em terrenos desocupados. Mesmo assim, uma forte interação social e intensa aproximação de corpos e diversidade de encontros foram constatadas no bairro. Conforme indicado acima, as ruas, bem como as calçadas constituem os únicos 153
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espaços públicos urbanos que permitam o encontro entre os moradores e visitantes do bairro: as ruas menos movimentadas são indevidamente apropriadas para algumas práticas, de forma que as calçadas constituem, na realidade do conjunto habitacional, os únicos espaços públicos urbanos aptos a promover a interação entre praticantes – talvez por este motivo, espaços como as calçadas apresentem índices tão significativos de copresença. O ponto de vista dos praticantes do espaço Foram entrevistados 35 moradores, entre estudantes, donas de casa, comerciantes, motoristas, secretárias, vendedores e aposentados, com idades de 14 a 83 anos [cf. infra, Figura 13, quadros a e b]. Alguns discursos e opiniões se repetiram em todas as entrevistas, revelando-se essenciais para a compreensão da relação corpo-cidade e para a interpretação da urbanidade no bairro.
(a)
(b) 154
Espaços públicos, corpos e práticas Figura 13. Caracterização da população entrevistada (porcentagem de homens e mulheres). Fonte: CAMBOIM, TRIGUEIRO, 2011.
Assim, grande parte dos entrevistados avalia que as relações entre os moradores de uma mesma vizinhança é “bom” e até “ótimo”, em alguns casos. Um dos entrevistados chegou a dizer que seus vizinhos eram considerados “parte da família”. Apesar da forte interação entre vizinhos, nenhum dos entrevistados disse participar de comunidades de bairro, nem de redes formais de solidariedade. O contato entre os habitantes parece ocorrer de forma espontânea, diariamente, na saída e na chegada do trabalho, a partir dos encontros nas ruas e calçadas, ou apenas nos finais de semana. No caso dos estudantes, a interação diária é maior entre amigos que moram no conjunto habitacional, os encontros ocorrendo predominantemente à tarde, nas calçadas do bairro. De acordo com os entrevistados, os moradores costumam se divertir em suas próprias casas, na casa dos amigos e familiares, ou ainda na igreja. Os mais jovens aproveitam o ambiente escolar para se confraternizar com os amigos e raramente têm momentos de lazer com a família em algum local do bairro. Todos os entrevistados, porém, aproveitaram a oportunidade para alertar as autoridades públicas sobre a ausência de investimentos em áreas de lazer e espaços de convivencialidade, capazes de promover encontros entre moradores, abrigando os conflitos e os momentos de socialização, que os fazem loci da urbanidade.
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Considerações finais A relação entre os praticantes e os instrumentos urbanos, assim como suas expressões corporais e as formas de urbanidade desenvolvidas nos setores estudados confirmam o lugar de importância dos espaços públicos no cotidiano dos moradores das Malvinas. A confrontação entre os aspectos técnico-espaciais e as práticas sociocorporais revela, no entanto, a ausência de espaços públicos apropriados à atividade social urbana – principalmente, espaços de qualidade, com possibilidades diversificadas em termos de equipamento urbano. Centradas na especulação do solo e em lógicas reprodutoras de espraiamento urbano e de fratura social, as configurações espaciais de bairros como este são consumidoras de espaço, inapropriadas à vida urbana, quiçá indiferentes a um patamar tolerável de qualidade de vida urbana. Elas indicam, neste sentido, um profundo equívoco em matéria de premissas urbanísticas e, mais gravemente ainda, uma negação completa das condições elementares à urbanidade. Trata-se de uma ausência visivelmente compensada por táticas urbanas, que tomam forma a partir dos usos diferenciados no espaço; em suma, de microrresistências ou práticas contra-hegemônicas, que testemunham a aptidão da população a enfrentar as dificuldades do cotidiano, através de meios precários, mas relativamente eficazes em termos de sociabilidade urbana.
156
Espaços públicos, corpos e práticas
Ao término, a observação realizada nas Malvinas reforça a importância do estudo urbano para o diagnóstico e compreensão dos níveis de interação da população com o espaço público: importa avaliar a qualidade e a funcionalidade dos ambientes urbanos para que soluções possam ser aplicadas em projetos de intervenção, percebendo-se ao mesmo tempo que espaços “hiper-programados” (TRIGUEIRO, 2010) são tão prejudiciais quanto a carência total dos mesmos. A relação corpo / cidade exige a humanização dos espaços, então desenhados para favorecerem a vida social entre edifícios e a realização de atividades cotidianas, opcionais ou socializadoras. A qualidade do entorno físico pode, dentro desta lógica, contribuir para ampliar esta tendência à interação, identificada no CH Malvinas apesar das condições adversas dos seus espaços. Algumas interrogações permanecem como, por exemplo, a possibilidade questionada dos comportamentos observados persistirem, caso viessem a existir áreas apropriadas à sociabilidade urbana, como praças, parques, etc.: até que ponto pesariam os costumes e referências culturais incorporados às práticas cotidianas e tão fortemente consolidados? A associação entre as compensações estabelecidas e a criação informal de um sistema de regulação específico continua igualmente pouco esclarecida: frente a espaços públicos inapropriados às atividades sociais, as populações se mobilizam em torno de interstícios espaciais e desenvolvem padrões de interação social, mas até que ponto tais modalidades se configuram efetivamente 157
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como ações contra-hegemônicas, “racionais e autônomas” (BOUDON, 1992)? Eis algumas das pistas sugeridas pela pesquisa e que as disciplinas de etnometodologia e antropologia urbana, notadamente, ajudariam a elucidar. Referências bibliográficas ANDRADE, Carlos R. M. de. “Confinamento e deriva: sobre o eclipse do lugar público na cidade moderna”. In: SOUZA, Celia F. de; PESAVENTO, Sandra J. (org.) Imagens Urbanas: os diversos olhares na formação do imaginário urbano. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2008, pp.97-103. ASCHER, François. Métapolis ou l’avenir des villes.Paris: Editions Odile Jacob, 1995. BASSAND, Michel.Métropolisation et inégalités sociales. Lausanne: Presses Polytecniques et Universitaires Romandes, 1997. BAUMAN, Zigmund. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2009. BIASE, Alesia de. “Ruses urbanas como saber”, In: JACQUES, Paola B.; JEUDY, Henry Pierre (org). Corpos e cenários urbanos: territórios urbanos e politicas culturais. Salvador: EDUFBA; PPG-AU/FAUFBA, 2006, pp.105-113. BOUDON, Raymond (org.). Traité de sociologie. Paris: Presses universitaires de France, 1992. BRITO, Fabiana D.; JACQUES, Paola B. (org). CorpoCidade – debates, ações e articulações. Salvador: EDUFBA, 2010. 158
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BAIRROS DE JOÃO PESSOA E SUAS PRAÇAS: encontros e desencontros nos processos de requalificação Mónica Lourdes Franch Gutiérrez Tereza Correia da Nóbrega Queiroz
Introdução Boa parte dos estudos contemporâneos sobre a cidade tem explorado os efeitos dos processos de renovação e ou revitalizações urbanas sobre a tessitura das relações sociais, envolvendo questões como a intensificação ou não da segregação urbana, o declínio ou revigoramento do espaço público, o incentivo ou desestímulo ao convívio nos espaços urbanos, dentre outros aspectos. Esse trabalho dialoga com essas questões, a partir da experiência da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba, que nas últimas décadas vem experimentando transformações complexas, entre as quais uma maior intervenção do poder público municipal nos equipamentos urbanos públicos, como praças, parques e jardins. Entretanto, essas intervenções que seguem alguns princípios urbanísticos considerados
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Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, Tereza Correia da Nóbrega Queiroz
hegemônicos entre urbanistas e gestores das cidades contemporâneas trazem a marca dos personagens locais, tanto dos planejadores quanto dos usuários dos espaços, e sugerem uma atenção cuidadosa aos diferentes processos que elas ensejam. Os usos e contra-usos, os efeitos dos processos de requalificação urbana sobre a sociabilidade dos moradores de diferentes espaços diferenciam-se em decorrência das culturas de bairro, do nível socioeconômico dos usuários, das histórias locais, dos estilos de moradia e da própria criatividade dos personagens. João Pessoa é uma cidade de porte médio, e possui, segundo o IBGE, em 2011, 723.515 habitantes. Vem passando nas últimas décadas por um processo de crescimento urbano acelerado, que se traduz na expansão de seu território construído e no aumento da segregação urbana com maior concentração de moradias de elevado padrão construtivo em algumas áreas da cidade e na ampliação do número de favelas, em outras. A cidade vem barganhando também seu ingresso no chamado “mercado das cidades” procurando, através de distintos mecanismos, atrair fluxos turísticos e de capitais para o seu espaço, com a requalificação de determinados equipamentos e territórios da cidade, e pela construção de um imaginário de cidade verde, cidade bela e tranquila, além de celeiro de artistas de variadas expressões, com raízes em numa cultura popular vigorosa. Os conflitos e demandas dos habitantes e moradores da localidade por ampliação da cidadania e por direito à cidade 166
Bairros de João Pessoa e suas praças
também repercutem sobre as iniciativas promovidas pelo poder público. Em João Pessoa, um dos instrumentos de intervenção do poder público tem sido a “revitalização de praças, parques e jardins” em muitos de seus bairros, visando a melhoria da qualidade de vida da população, a disseminação de práticas saudáveis e o retorno da população aos espaços públicos. Esse artigo se propõe a discutir os diferentes efeitos que essas intervenções produziram em dois bairros distintos da cidade, que se destacaram por resultados até certo ponto contrastivos, sugerindo reflexões sobre os motivos desses resultados. As intervenções do poder público no tecido da cidade vem sendo discutida por diferentes autores dedicados a compreensão das transformações das cidades contemporâneas. As praças e os processos de requalificação Os espaços públicos são espaços de convívio, de encontro com o outro, com a alteridade, onde se confrontam diferenças, se explicitam conflitos e se praticam também a urbanidade e a política. Nesse sentido, o espaço urbano apenas se torna público quando é investido de significação pelos seus moradores (PROENÇA, 2002). São a apropriação e o uso continuado por parte da população que transformam os equipamentos urbanos em espaços vivos e cheios de sentidos. 167
Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, Tereza Correia da Nóbrega Queiroz
As praças são consideradas como espaços públicos urbanos destinados à convivência e ao lazer dos cidadãos, acessíveis a todos e livres de veículos. Embora elas tenham sofrido modificações ao longo do tempo, seu caráter social permaneceu como sua principal qualidade intrínseca (ROBBA E MACEDO, 2003). Elas podem ser vistas como espaços públicos privilegiados nos quais se encenam as relações sociais e se exercita a sociabilidade urbana. As praças têm uma importante função na ativação do espaço públicos urbanos que, nas sociedades modernas tem sido sufocados pela prevalência do movimento, da circulação de automóveis e de mercadorias, transformando as cidades em “espaços de trânsito” (Duarte, 2006) Algumas vozes do urbanismo contemporâneo têm questionado a intervenção funcionalista da cidade, que ao zonear e segregar diferentes funções na cidade, gerou também sua desertificação. As praças contemporâneas, munidas de equipamentos variados para permitir o lazer e divertimento de seus usuários, guardam semelhanças, mas também significativas diferenças, com as praças de outros períodos históricos. Olhar para as praças implica, portanto, dialogar com as reconfigurações do urbano em cada época, que determinam sentidos diferentes para o espaço público e para as sociabilidades ali desenvolvidas. Por sua vez os bairros de grandes cidades são diferenciados entre si e internamente, e estão em constante 168
Bairros de João Pessoa e suas praças
transformação, dando expressão a diferentes lógicas de sociabilidade e de apropriação de espaços públicos, envolvendo a ressignificação de traçados e intenções arquitetônicas préestabelecidas. Leite usa a expressão contra-usos para referirse às práticas inovadoras dos habitantes da cidade, que sempre encontram maneiras de redefinirem os usos oficiais de espaços públicos e de ultrapassarem fronteiras apropriando-se daqueles espaços, atribuindo-lhes sentidos e construindo identidades. São processos que transformam espaços em lugares (LEITE, 2002). A movimentação pela cidade, longe de ser anônima e impessoal, traduz muitas vezes uma apropriação simbólica do traçado urbano, que passa a ser cartografado em pedaços, circuitos e trajetos ligados a estilos de vida diferenciais (MAGNANI, 1996). As políticas de revitalização urbana em que se inserem as intervenções que visam à recuperação ou implantação de praças abrem um campo amplo de reflexões sobre o urbano: como essas políticas interagem com as diferentes localidades em que se inserem? Até que ponto elas interferem nos processos de individualização e de desertificação dos espaços públicos? Como interagem com os saberes e culturas locais? Como interferem nas relações de vizinhança e na construção e destruição de lugares? No contexto das cidades contemporâneas as praças vêm assumindo feições diversificadas, podendo designar desde pequenas áreas destinadas ao esporte em bairros habitacionais, 169
Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, Tereza Correia da Nóbrega Queiroz
até os complexos que articulam grandes artérias em áreas centrais da cidade. Elas são um dos alvos das políticas urbanas que procuram, mediante sua modernização e requalificações, controlar os índices de violência urbana, respondendo simultaneamente a determinadas dinâmicas da população que demanda espaços de lazer, equipamentos de esportes, embelezamento dos bairros e outras. Em função do espaço em que estão situadas, as praças podem assumir funções diferenciadas (ROBBA e MACEDO, 2003): nas áreas centrais elas devem amenizar as condições climáticas, melhorando a qualidade do ar e o conforto térmico, e servindo também para organizar o fluxo de pedestres; em áreas habitacionais elas são utilizadas como espaço de sociabilidade e servem também para a prática de esportes e lazer contemplativo; incluem ainda a recreação infantil e o consumo cultural. Além disso, a configuração do bairro e de seus habitantes assim como suas peculiaridades culturais e suas diversidades internas podem influenciar os modos de utilização e apropriação das praças. Para refletir sobre essas questões foram escolhidas duas praças recentemente revitalizadas, situadas em bairros distintos da cidade de João Pessoa: a Praça Tiradentes, que apresentou uma intensa utilização pelos moradores do bairro, e a Praça Alcides Carneiro, que apresentou uma utilização mais esporádica com explicitação de segmentações nítidas entre grupos sociais distintos. Como são utilizadas as duas praças? 170
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Quem as usa e como usa? Quais as implicações da requalificação nas relações entre moradores do bairro entre si e com pessoas de outros bairros? Qual a repercussão dessa ação na identidade de bairro? O que explica as diferenças nos modos de utilização? Os bairros e as praças O Bairro da Torre é um dos mais antigos da cidade. Inicialmente era um bairro eminentemente residencial e a partir, sobretudo da década de 80, vem agregando um vigoroso comércio em algumas de suas ruas centrais (MONTEIRO, L. E BASTOS, Y., 2010). Não se trata de um bairro homogêneo envolvendo também comunidades com moradores vivendo em situação de risco social, como a Brasília de Palha, a Padre Hildon Bandeira e a São Rafael. Dispõe também de moradias populares tradicionais como vilas ao lado de construções mais modernas e de melhor padrão construtivo, situadas principalmente ao longo da Avenida Beira Rio. Os moradores do bairro propriamente dito e os das comunidades do entorno usam os mesmos equipamentos de lazer e participam juntos de atividades culturais e desportivas. Não se evidenciam segregações pronunciadas entre eles. De modo geral, seus moradores apresentam uma rica tradição cultural. O bairro possuía antigamente diversas manifestações de cultura popular, como cocos de roda, 171
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quadrilhas juninas, tribos indígenas, blocos e agremiações carnavalescas, entre outros. Muitas delas ainda hoje têm seus continuadores e permanecem em atuação além de guardarem certo parentesco com manifestações contemporâneas de cultura, sobretudo na área musical. A identidade dos moradores do bairro é forte e está presente nas vozes e canções de seus músicos, de seus times de futebol e respectivas torcidas. A Praça Tiradentes, desde o início de sua construção, atraiu os moradores do bairro, tornando-se importante foco de sociabilidade. Mello (1990), (apud MONTEIRO, L. E BASTOS, Y, 2010) destaca a importância dessa praça na vida social do bairro, que envolvia o uso intenso de suas quadras esportivas, principalmente com os jogos de vôlei e futebol, além do coreto, palco de apresentações musicais e de folguedos populares. Era também na praça que os jovens se encontravam para encontros e namoros. Nas últimas décadas a praça esteve abandonada pelo poder público, e pequenas iniciativas que envolveram a parceria público-privada não funcionaram para a recuperação da praça e de seus equipamentos. Em 2006 a prefeitura municipal inicia um processo de recuperação da praça, que é re-inaugurada em 2007, passando a contar com os seguintes equipamentos: 24 bancos de concreto, quatro mesas com tabuleiros de dama e xadrez, com bancos, duas quadras de concreto (reformadas) e duas de areia, para jogos de futsal e vôlei, uma caixa de areia com casa park para 172
Bairros de João Pessoa e suas praças
crianças, três barras (uma paralela e duas frontais), passeios internos e externos calçados para a prática de Cooper, além de jardinagem e canteiros gramados. O Bairro de Manaíra situa-se no litoral da cidade e vem passando por um crescente processo de valorização. Antigamente era habitado por colônias de pescadores que retiravam seu sustento da atividade pesqueira e, ao final do ano, por veranistas moradores do centro da cidade ou de cidades do interior do Estado que possuíam casas rústicas para o período de férias. As elites locais habitavam predominantemente o centro da cidade. Com a abertura de avenidas ligando o centro à praia teve início um processo de deslocamento de moradias em direção à praia, e o Bairro de Manaíra passa a ser intensivamente ocupado por pessoas de classe média ou alta. Esse processo se intensifica, sobretudo a partir da década de 60, período em que através do Projeto Cura se amplia a infraestrutura do bairro (GUIMARÃES, A. S. E SANTANA, C. V., 2010). Na mesma época ocorre uma invasão de área nas proximidades do bairro, constituindo-se gradativamente uma favela de grandes dimensões, situando-se às margens do rio Jaguaribe. Essa área foi alvo de diversas tentativas de remoção até a década de 80 quando foram implantados projetos de urbanização da área e de melhoria das habitações, transformando-se a favela em bairro S. José. Apesar de pequenas melhorias em sua infraestrutura o bairro concentra até hoje uma população que vive precariamente, sobrevivendo em sua maioria 173
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de biscates ou subempregos. É uma área fortemente estigmatizada, apresentando índices elevados de violência urbana. Na década de 1980 o Bairro de Manaíra passa por um processo intenso de verticalização. Disseminam-se edifícios elevados, direcionados aos grupos de classe média e classe média alta, que se apresentam como modelos de moradia mais modernos e propiciadores de um novo estilo de vida. Além dos aparatos de segurança dispostos em suas muralhas, seu estilo arquitetônico sugere modos de vida mais individualizados, centrados no âmbito privado. A Praça Alcides Carneiro tem uma grande dimensão e dispõe, após a recuperação, de 22 bancos, aparelho de musculação, playground, duas quadras de areia, uma para futebol, outra para vôlei, boa iluminação, dois holofotes para a prática de esportes à noite além de área espaçosa para caminhada. Antes da revitalização, que melhorou a iluminação do local, além da introdução dos equipamentos já citados, a praça era pouco utilizada pelos moradores do bairro. Sociabilidades e usos das praças revitalizadas As diferenças entre os dois espaços estudados surgem logo à primeira vista com o número de pessoas concentradas nas praças. Na Praça Tiradentes, a aglomeração de pessoas é bem densa em vários momentos do dia, enquanto na Praça Alcides 174
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Carneiro afrequência é mais difusa, apresentando-se como um espaço vazio em boa parte do dia. O significado atribuído as duas praças é também diferenciado. Os moradores do Bairro da Torre, usuários da praça, destacam sua função de lugar de encontro, de lugar de reativação de laços comunitários e de práticas de esporte ou de cultura, de caráter mais coletivo. No Bairro de Manaíra, nas falas sobre a praça, os temas da violência, da “invasão” do espaço pelos moradores da “favela” são recorrentes. Atravessam esses discursos uma ideia de privatização do espaço da praça para os moradores do bairro, certa reprodução de uma ideia de cidade fragmentada, formada por ilhas que não se comunicam entre si, principalmente quando se trata de comunidades que são diferenciadas do ponto de vista socioeconômico. Foi no entorno desta praça que fomos informados da existência de uma reunião entre os moradores de um condomínio para discutir formas de “vigilância sobre a praça”. Além disso, atribui-se aos moradores do Bairro São José a origem de todos os problemas urbanos ali situados. O medo do espaço público, pensado como lugar do perigo, prevalece sobre qualquer virtuosidade a ele atribuída e dificulta a abertura dos moradores para novas possibilidades de interação. Na Praça do Bairro da Torre, ouviu-se também um discurso sobre a violência, mas esse não impede sua frequência nem os contatos e encontros entre os moradores naquele espaço. Pelo contrário, a praça propiciou uma retomada de uma 175
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sociabilidade de vizinhança que parecia estar se diluindo com o aumento dos índices de violência da cidade e com a ampliação de valores individualistas. No Bairro da Torre, a memória da sociabilidade de vizinhança é recente e facilmente acionada pelas possibilidades dos atuais encontros na praça. As moradias ainda são horizontais em sua maioria, e apesar do aumento na altura dos muros e das grades, ainda é possível reencontrar os vizinhos, não só nas calçadas e bares, mas também na praça. Em Manaíra, alguns usos da praça permanecem individualizados. Assim, os moradores saem para levar os cachorros para passear, mas não permanecem nos espaços da praça para conversas mais alongadas e descontraídas com os vizinhos. Em alguns momentos a praça traduz a heterogeneidade do entorno, com a presença de estudantes da escola pública do bairro S. José, famílias, trabalhadores da construção civil, casais de namorados, skatistas, mas as fronteiras entre eles permanecem nítidas apesar de invisíveis. Na prática de esportes e na ocupação da praça ficam explícitas, em determinados momentos, as práticas de segregação. Criam-se, assim, zonas de exclusão, fronteiras simbólicas que se estabelecem entre os moradores de Manaíra e os do Bairro S. José, de forma que, quando um grupo ocupa uma determinada área ela passa a ser evitada pelo outro. Nos times que se exercitam nas quadras não há mistura entre jogadores das distintas áreas. Apenas nos sábados a tarde ocorre um jogo de vôlei socialmente heterogêneo. 176
Bairros de João Pessoa e suas praças
Na Praça da Torre, os moradores do bairro propriamente dito e das comunidades vizinhas se misturam sem maiores problemas. Essa coexistência acontece nos jogos de futebol e de vôlei, nas agremiações carnavalescas e em outras festividades. Um exemplo da importância da praça na vida dos moradores desse bairro reflete-se, por exemplo, no cuidado com ela, antes mesmo do processo de revitalização. São diversos exemplos de moradores que se encarregaram pessoalmente de sua limpeza e ordenamento, mesmo quando a gestão pública se fazia ausente. Alguns equipamentos foram doados por seus moradores e usuários. A prática de esportes também antecede a revitalização, gerando a formação de times de futebol com certa repercussão no cenário esportivo da cidade. São fatos que revelam a constituição e simultaneamente um reforço da identidade de bairro, que se mostraram importantes na retomada da praça, no uso de seus equipamentos e espaços, após sua recuperação. Os bares do Bairro da Torre que circundam a praça tem também um “cara” local, atraindo em sua maioria os moradores da área, ao contrário dos que se estabelecem no entorno da Praça de Manaíra, que têm características mais impessoais, mesmo quando agregam referências culturais locais a seus produtos e serviços. Essa aglomeração de vizinhos nos bares da Torre ocorre de forma evidente em dias de jogos que envolvem times nacionais importantes. Nessas ocasiões, um dono de um bar 177
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localizado bem próximo à praça Tiradentes projeta imagens do jogo em uma parede branca situada em frente. Essa projeção atrai grande quantidade de moradores, formando-se verdadeiras torcidas que confraternizam ou “se lamentam” em conjunto. Trata-se de outra manifestação de práticas coletivas compartilhadas pelos moradores do bairro. Manifestações dessa natureza são impensáveis nos bares e restaurantes do entorno da Praça Alcides Carneiro onde predominam relações marcadas pela impessoalidade entre proprietários e frequentadores e entre os próprios frequentadores. No Bairro de Manaíra observou-se também uma prática comum em cidades pequenas do Estado, que é a de colocar cadeiras nas calçadas e praças para bater papo, tocar violão, contar casos. Entretanto essa prática em Manaíra foi adotada apenas por uma extensa família de proveniência sertaneja, que reproduz no espaço da praça contemporânea um uso tradicional de sua cidade de origem. Esse grupo familiar ampliou os limites do agrupamento familiar inicial com a formação de um bloco carnavalesco que desfila na Praça Alcides Carneiro no período do carnaval. Mas, talvez seja revelador do individualismo disseminado entre os demais moradores do bairro, que essa prática tenha se restringido apenas aos membros dessa família, que surgem de vários locais da cidade e do estado para participar do evento. Chama a atenção o fato de que essa manifestação que ocorre no espaço público da praça não consegue ultrapassar os limites familiares para tornar-se uma manifestação de moradores 178
Bairros de João Pessoa e suas praças
do bairro. Uma questão a ser investigada é sobre os processos de constituição de identidades de bairro em espaços verticalizados como o do Bairro de Manaíra. Essas experiências demonstram que a relação entre programas de revitalização e padrões de sociabilidades urbanas não são uniformes. Frequentemente criam-se grandes expectativas em torno desses programas como se fossem capazes, de reorientar comportamentos de forma imediata. Como afirma Fonseca: “os padrões de socialização de um determinado grupo tem implicações diretas nos espaços de uso coletivo da cidade” (2005:37). Na Praça Alcides Carneiro, os usos da praça se dão de forma fragmentária, agrupando pessoas de mesma condição socioeconômica que não se misturam em atividades comuns. A maioria dos prédios do entorno da praça possui áreas privativas de lazer, sendo a praça considerada por boa parte dos moradores como um espaço perigos, que deve ser evitado. A verticalização e outras intervenções arquitetônicas no bairro têm implicações na cultura urbana e nas relações com os moradores, promovendo uma maior descontinuidade entre os espaços da casa e da rua (PROST, 1992). O modelo de moradias em apartamentos adotado no Bairro de Manaíra traz embutida em suas formas uma lógica de organização da sociabilidade, da vida familiar e da relação com os vizinhos, destacando-se as ideias de reclusão para o espaço da casa e distanciamento em relação à vizinhança. Além disso, a 179
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proximidade da beira-mar com seus calçadões diminui o poder de atração da praça para os usos de práticas de lazer, esporte e sociabilidade que não se realizam com muita intensidade naquele local. Esses fatores ajudam a entender os diferentes usos que fazem os moradores desse bairro, mais centrado em atividades pontuais como caminhadas e esportes, que não necessariamente propiciam laços de vizinhança. Como vimos na experiência do Bairro da Torre, outros aspectos são importantes para explicar os usos e apropriações dos espaços da praça nos diversos bairros da cidade. Um deles é a cultura de bairro, o conjunto de práticas cotidianas, relações de vizinhança, de parentesco, de músicas, ritmos, manifestações artísticas e esportivas, culturas tradicionais e culturas urbanas que conferem expressividade e identidade aos moradores que compartilham um espaço contíguo de moradia. A memória social compartilhada e referência identitárias comuns favorecem o uso e apropriação de espaços coletivos abertos como o das praças. No bairro que experimentava certa deterioração de sua praça tradicional houve uma rápida retomada do espaço público após a revitalização da mesma, com a recuperação de práticas tradicionais, a renovação de antigas amizades e a invenção de novos usos do espaço. A sociabilidade de vizinhança, que experimentava certo declínio, foi retomada com vivacidade assim que encontrou ambiente propício para o seu desenvolvimento.
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MONTEIRO, L. e BASTOS, Y. “O bairro da Tôrre e a Praça Tiradentes” in FRANCH, M. e QUEIROZ, T. Da casa à praça. Um estudo da revitalização de praças em João Pessoa. Belo Horizonte/MG: Argumentum, 2010. PROST, Antoine. “Fronteiras e espaços do privado”. In:História da Vida Privada. Da Primeira Guerra a nossos dias. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. ROBBA, F. e MACEDO, S.S. Praças brasileiras. São Paulo: Edusp, 2003. SCOCUGLIA, Jovanka Baracuhy C. Cidade, habitus e cotidiano familiar. João Pessoa: Editora Universitária/UFPB, 2000. SENNETT, Richard. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
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A REVITALIZAÇÃO DO PONTO DE CEM RÉIS NA CIDADE DE JOÃO PESSOA: os novos usos e significados segundo seus frequentadores Edmilson Esequiel Cantalice44 Introdução Este trabalho discute os impactos que processos de revitalização urbana geram nos usos e significados que são dados e/ ou atribuídos aos lugares onde eles ocorrem. Trata-se de uma versão resumida de minha dissertação de mestrado intitulada “A revitalização do Ponto de Cem Réis na cidade de João Pessoa-PB (2008 e 2009): novos usos e significados atribuídos ao lugar segundo seus frequentadores” que foi desenvolvida através do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba, sob a orientação da Profa. Dra. Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia, e defendida em novembro de 2011. Sua publicação, nesta coletânea, se deve à minha participação, como pesquisador, no Laboratório de Estudos 44 Mestre em Sociologia pelo PPGS/UFPB (cantalice13460@hotmail.com).
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sobre Cidades, Culturas Contemporâneas e Urbanidades LECCUR -, vinculado ao Departamento e à Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, do Centro de Tecnologia, da Universidade Federal da Paraíba. Para atender às exigências desta publicação, optei em fazer uma exposição de parte dos capítulos que foram trabalhados na dissertação de mestrado. Primeiramente é apresentada uma síntese dos procedimentos metodológicos utilizados na pesquisa. Na segunda parte, se discute as condições do Ponto de Cem Réis antes da revitalização de 2008 e 2009. Em seguida são discutidos o projeto que foi concebido pelo poder público municipal e a revitalização que acabou sendo realizada. Já na quarta parte, são apresentados e analisados alguns dos depoimentos que resultaram do processo das entrevistas que a pesquisa de mestrado envolveu. Por último, são expostas considerações finais. A metodologia da pesquisa A nossa investigação se constituiu como uma pesquisa de campo, de natureza qualitativa, que teve por sujeitos os frequentadores do Ponto de Cem Réis, localizado no centro histórico da cidade de João Pessoa. Para empreendê-la, tivemos de realizar um estudo exploratório de viés etnográfico, onde buscamos identificar as
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novas configurações físicas e os usos que passaram a ser dados ao local com a revitalização. Além disso, realizamos um levantamento documental, composto por imagens fotográficas, mapas e plantas da cidade e do Ponto de Cem Réis, no intuito de compreendermos como se deu o processo de formação e de transformação deste último no contexto urbano em que ele se encontra inserido. O material que resultou desse levantamento foi adquirido junto às bibliotecas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), da Fundação Espaço Cultural (FUNESC), do Instituto de Educação da Paraíba (UNIPÊ) e do Instituto Histórico e Geográfico da Paraíba (IHGP), às Secretarias de Planejamento e de Comunicação da Prefeitura Municipal de João Pessoa, e aos acervos particulares de Gilberto Stuckert e de Edmilson Cantalice da Trindade45. No trabalho de campo, a abordagem dos frequentadores se deu de maneira direta e informal. Apesar de essa opção nos permitir o contato e o acesso a um grande número de frequentadores, isso não chegou a garantir que a maioria deles se comprometesse em contribuir com a pesquisa. O resultado foi a constituição de um grupo total de 10 frequentadores, sendo 02 comerciantes informais46, 03 idosos47, 02 sapateiros que foram realocados para trabalhar num local próximo ao Ponto de Cem Réis e 03 frequentadores diversos. 45
Trata-se um primo homônimo que possui uma coleção de postais com imagens antiga da cidade de João Pessoa.
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A realização das entrevistas ocorreu nos meses de julho a dezembro de 2010. Para isso, utilizamos um roteiro semiestruturado como forma de possibilitar aos nossos interlocutores a liberdade necessária diante das questões que trabalhamos. Todas as entrevistas foram gravadas em áudio e transcritas para que pudessem servir de corpus para nossa análise. Quanto às técnicas de análise, utilizamos a análise de conteúdo das mensagens fornecidas pelos entrevistados: categorizamos falas
os
aspectos
relevantes
das
dos frequentadores em torno de temáticas mais
recorrentes. O Ponto de Cem Réis antes da revitalização De maneira em geral, as condições em que se encontrava o Ponto de Cem Reis no momento imediatamente anterior à revitalização eram bastante adversas: existia uma fonte que se encontrava em desuso; um busto que homenageava André Vidal de Negreiros, comumente utilizado como suporte para a fixação de materiais de propaganda; existiam vários bancos de ferro e 46 A Prefeitura Municipal de João Pessoa - PMJP autorizou que os comerciantes informais que tinham seus negócios instalados nas fachadas das edificações do entorno da área revitalizada permanecessem trabalhando no local. 47
Esse grupo costuma se encontrar diariamente no Ponto de Cem Réis, tanto no turno da manhã quanto no da tarde.
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madeira; a iluminação era composta por um conjunto disperso de postes; havia alguns canteiros e diversas árvores, jovens e adultas; o piso, bastante danificado, apresentava vários níveis; havia também a presença marcante do Viaduto Damásio Franca que tinha, inclusive, seu vão todo envolvido por um gradil; também existia um mastro para se hastear bandeiras, mas que já não era utilizado para tal fim. Quanto aos usos, o Ponto de Cem Réis se caracterizava: pela existência do comércio formal de lojas, lanchonetes e cafeterias convivendo com o comércio informal praticado por ambulantes, camelôs e negociantes de motocicletas; pela presença diária de sapateiros realizando consertos de sapatos e bolsas, mas também de crianças e adolescentes cheirando cola de sapato, fumando maconha e praticando pequenos delitos; pela presença de pessoas de várias idades - especialmente idosas - que se encontravam para conversar e/ou jogar cartas, dominó ou dama, e; pela presença de prostitutas que buscavam “clientes” para realizar programas. O projeto e a revitalização A partir de 2006, a PMJP criou o “Programa de Recuperação de Parques, Praças, Passeios e Jardins” com o objetivo de construir novos espaços públicos ou recuperar os que se encontravam em más condições de uso e manutenção na cidade. Desse programa é que resultou o projeto de revitalização
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do Ponto de Cem Réis, elaborado por uma equipe de arquitetos 48 contratados pela Secretaria de Planejamento. Segundo o arquiteto Amaro Muniz49, a inclusão do Ponto de Cem Réis entre os locais que deveriam fazer parte do Programa de Recuperação de Parques, Praças, Passeios e Jardins se deu pelo fato dele sempre ter atraído o interesse da população. E como havia o entendimento por parte do poder municipal que o centro da cidade necessitava de um espaço público que fosse amplo e que permitisse a aglomeração de pessoas, o projeto idealizado acabou envolvendo toda a área do Ponto de Cem Réis. O arquiteto também relatou que havia uma proposta de se construir nele um “pavilhão” todo vedado em vidro para servir para a exposição de obras, planos e serviços que a Prefeitura Municipal estivesse realizando na cidade. Essa proposta, no entanto, não se concretizou. De modo que a ideia foi criar um espaço livre de obstáculos para que nele pudessem acontecer eventos que pudesse aglomerar um grande número de pessoas. O que, de fato, acabou acontecendo.
48 Amaro Muniz Castro, Ângela Nunes, Jonas Bezerra e Rafaela Mabel. 49
No período da pesquisa foi possível, também, conversar com Amaro Muniz um dos arquitetos que idealizaram o projeto de revitalização do Ponto de Cem Réis, tendo como objetivo levantar algumas informações acerca da concepção e dos objetivos do projeto de revitalização.
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E a revitalização revelou como isso foi alcançado: o Viaduto Damásio Franca foi transformado em túnel; foi feita a retirada da fonte que, mesmo não funcionando mais, existia no local; os canteiros e a maioria das árvores que lá existiam foram, quase todos, retirados; foi feito o nivelamento total do piso que, antes, apresentava certo grau de irregularidade; houve a remoção de todos os boxes que serviam aos sapateiros; também foi feita a substituição e redistribuição de todos os bancos de sentar; foi reconstruído e reposicionado o busto em homenagem à Vidal de Negreiros; foram incorporados três exaustores em forma de pirâmides para servir à ventilação de salas construídas na parte interna do túnel Damásio Franca; foi feita a mudança de toda a rede elétrica, que passou a ser subterrânea; e incorporou-se uma escultura em bronze para homenagear o músico e compositor paraibano Livardo Alves que, antes de falecer, fora um assíduo frequentador do local. O poder público também instituiu uma programação de eventos pautada na realização de shows musicais, de espetáculos teatrais e cirandas de serviço50 desenvolvidas por secretarias e órgãos vinculados à administração municipal. Todas essas mudanças se fizeram acompanhar da presença constante de agentes de controle urbano - responsáveis por impedir que 50 Ações desenvolvidas com o objetivo de oferecer serviços - corte de cabelo, expedição de documentos civis, oficinas de arte, entre outros - de forma gratuita à população em áreas públicas.
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ambulantes e camelôs se instalem e/ou permanecem no Ponto de Cem Réis - e de agentes de limpeza urbana, retirando o lixo que diariamente é produzido pelas pessoas que frequentam o local. Em razão de todas essas mudanças é que novos usos e significados passaram a ser dados e atribuídos ao Ponto de Cem Réis. Os (novos) frequentadores
usos
e
significados
segundo
os
Para compreendermos como a revitalização afetou os usos e significados atribuídos e dados ao Ponto de Cem Réis após a revitalização de 2008 e 2009 optamos por questionar os frequentadores que entrevistamos, inicialmente, sobre “como ele - o Ponto de cem Réis - era antes das mudanças acontecerem (?)”. Diante das respostas que obtivemos foi possível constatar que a ampla maioria dos entrevistados construiu uma “imagem negativa” do lugar, o referenciando como “abandonado”, “sujo”, mal iluminado, “marginalizado” e onde ocorria “prostituição”. Apesar de essa ter sido a compreensão da maioria dos entrevistados, houve quem se reportasse ao local, de antes da revitalização, como sendo “lindo” e arborizado (Entrevistado 02).
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Quando questionados sobre “que pessoas costumavam frequentar o Ponto de Cem Réis (?)”, verificamos que todos os nossos entrevistados se referenciaram às crianças e adolescentes que cheiravam cola no local. Essa referência, sempre que foi feita, associava as imagens das crianças e adolescentes à violência e à criminalidade. Além desse grupo de frequentadores, os sapateiros e os camelôs foram lembrados como sendo aqueles grupos que, além de sempre se fazerem presentes, trabalhavam no Ponto de Cem Réis. Nas falas a seguir observamos como eles se reportaram a esses dois grupos de frequentadores: [...] os sapateiros, eles eram uma tradição aqui no Ponto de Cem Reis. Era pra ter um local pra eles ficarem aqui pelo menos durante o dia e serem realocados durante a noite pra não ficar a bagunça que os sapateiros fazem (Entrevistado 01). Chegava um deputado pra engraxar um sapato, chegava um senador, chegava um ex-governador, chegava um ex-vereador, chegava você, chegava eu, nós da classe média, era um lugar pra gente procurar, era aqui pra engraxar um sapato, pra consertar. Hoje chega uma senhora aqui: moço, onde é que tem um sapateiro? Ela sai perdida com os sapatos na mão sem saber onde é que fica. Fizeram um quiosquezinho pros pobres dos sapateiros ali, que isso é uma coisa absurda que fizeram a eles. Aqui, era pra esses sapateiros - desde que tinha a fiscalização em cima deles - porque os sapateiros (eu tô, eu tô gratificando os sapateiros), ao mesmo tempo eu desclassifico. Pelo seguinte: porque tem muito sapateiro que eles formaram aqui um grupo de entorpecente, no caso, de droga. Você entendeu? Então não era bem assim. Então para eles ficarem aqui, eles tinham que chegar e ser um grupo unido, como muitos amigos meus, conheço todo mundo, sapateiro eu conheço tudo, só que uns são homens, outros não são homens. Certo? Passava, ultrapassava a lei da violência. Eles
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Edmilson Esequiel Cantalice passavam até pra violência. Mas hoje eu tenho pena deles, eu tenho pena deles que eles tão num lugar inadequado ali, e infelizmente o local deles tinha que ser aqui. Aqui é o local dos sapateiros (Entrevistado 02). [...] tinha os sapateiros aqui, que era o ganha pão deles, que agora estão em outro lugar, tentando se adaptar (Entrevistado 03). Tinha uns sapateiros, coitados, eles também não tinham outro meio de sair, porque não tinham para onde sair. Era uma pocilga, realmente. Não tinha alternativa ou fazia do jeito que está agora ou não tinha nenhuma perspectiva de melhoria. (Entrevistado 04). [...] ali no ponto dos sapateiros é que as pessoas se reuniam para fofocar, falar de política, né! (Entrevistado 05). [...] se retirou as tradições daquela praça. Tinha muita tradição ali, primeiramente, eram os sapateiros, os camelôs, tiraram tudinho. É como ele disse: tirar o camelô para colocar num shopping, mas lugar de camelô é na rua, só ganha dinheiro na rua; camelô não pode instalar uma loja, os que foram para ali a gente sabe que não estão vendendo. E assim vai (Entrevistado 09).
No caso dos sapateiros, as falas dos entrevistados 01, 02 e 09 são bastante significativas do que esse grupo representava para o local. Os sapateiros estavam no Ponto de Cem Réis diariamente, chegando por volta das sete e meia da manhã e saindo por volta das dezoito horas. Apesar dos problemas que eles enfrentavam por conta da falta de manutenção nos boxes que haviam sido feitos para eles trabalharem no local, a busca pelos serviços prestados por eles era frequente. As pessoas que, comumente, andavam pelo centro da cidade sabiam que ali no
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Ponto de Cem Réis haviam boxes onde sapateiros estavam instalados e que, se necessitassem, poderiam consertar um sapato ou uma bolsa. Enquanto trabalharam no Ponto de Cem Réis, os sapateiros tinham cada um seu box individualizado e ganhavam o suficiente para continuar com essa atividade. Depois da revitalização e a transferência deles para um espaço próximo do Ponto de Cem Réis, uma série de problemas surgiu para eles: Diminui 50% da renda da gente. 50% não... diminuiu 70%. Diminuiu também a quantidade de sapateiros: uns morreram, outros agora tão lavando carro, outros tomando cachaça. Éramos 24, hoje só somos 07. Os outros abandonaram porque não tinha condições de trabalhar aqui. Não tem banheiro, a gente tem que se deslocar para o banheiro das lojas, não tem energia e nem água (Entrevistado 09).
Toda essa problemática que nosso entrevistado apresenta revela que há outro lado nos processos de revitalização: que exclui e que tenta esconder “aquilo” que possa representar sujeira, ignorância, pobreza. No caso dos camelôs, a situação não foi menos dramática: a fala de nosso entrevistado 07 é bastante ilustrativa de como se deu o processo de retirada deles - dos camelôs - do Ponto de Cem Réis: “[...] foram tirados imediatamente por uma
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tal de SEDURB, perseguidos por uns tal de bombados51 que tomavam as coisas deles e aí levava [...]”. Esse procedimento atingiu a grande maioria daqueles que tinham estruturas montadas permanentemente para realizar suas atividades comerciais no Ponto de Cem Réis, já que a determinação do poder público municipal era de desocupar o local totalmente. Poucos foram aqueles que conseguiram deixar o local sem algum tipo de perda material. Por outro lado, a Prefeitura tentou minimizar os prejuízos dos camelôs construindo estruturas no centro da cidade que pudessem acomodá-los. Só que uma questão como essa dos camelôs não se resolve apenas com medidas dessa natureza. A coisa é bem mais complexa. Se observarmos a narrativa de nosso entrevistado 02, perceberemos como a ocupação e desocupação de vários boxes que foram doados pela Prefeitura para os camelôs de deram: [...] foi dado, doado, pelo Prefeito para os camelôs de rua. Os camelôs de rua, hoje, voltaram tudo pra rua de novo e venderam lá de graça. Por mil e quinhentos, por dois mil reais. E hoje está valorizado (os boxes). Por quê? Porque o grande investiu e soube aonde tirar o valor. Tomou conta. (Entrevistado 02).
Essa situação é interessante porque ela nos mostra que os camelôs, mesmo tendo recebido boxes para montar seus negócios, optaram por vendê-los e iniciar um movimento de 51 Agentes de Controle Urbano.
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retorno às ruas. Mas é preciso considerar que muitos dos camelôs avaliaram que os locais onde foram construídas as estruturas que comportavam os boxes não favoreciam ao comércio deles. Além do que era preciso pagar uma taxa mensal à Prefeitura para o uso desses lugares. É preciso avaliar se “[...] tirar o camelô para colocar num shopping [...]” (ENTREVISTADO 09), de fato, foi à medida correta, mesmo porque, houve quem defendesse, entre nossos entrevistados, que lugar de camelô é na rua. Da mesma forma que aconteceu com os sapateiros, o faturamento de muitos camelôs diminuiu. Essa foi uma das razões que levou à venda dos boxes e a tentativa de retornar para as ruas. O problema é que esse retorno não é permitido pelo poder público, que mantém o controle do uso dos espaços públicos. A descrição que apresentamos logo a seguir revela o tipo de situação que tem sido gerada em razão das tentativas de retorno dos camelôs para as ruas: Se você me perguntar se um guarda vira um carrinho de fruta do camelô? Eu respondo que sim. Mas e por que ele vira? Porque o camelô também é imbecil. Se esses guardas fazem isso, noventa por cento deles fazem com ordem, eles não fazem pensando. Porque você mandou o cara se retirar e o cara continuou insistindo em ficar na rua. (Entrevistado 02).
Esse
controle
sobre as
atividades
dos
camelôs, particularmente no que se refere àquelas que 195
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eram praticadas no Ponto de Cem Réis, foi avaliada por um dos nossos entrevistados da seguinte maneira: O sistema de camelô era bom para nós, a gente queria comprar uma coisa mais em conta já tinha aqui, não precisava procurar em outro canto, subir para canto nenhum, em loja nenhuma, se resolvia aqui mesmo uma coisinha mais em conta; todo mundo comprava. Aqui se vendia panela, frigideira, todas as peças domésticas para mulheres e comprava aqui mesmo; linha, agulha essas coisas, tudo se tinha aqui (Entrevistado 07).
Apesar dessa posição não refletir a opinião da maioria de nossos entrevistados, ela, por outro lado, deixa evidenciado que também não há unanimidade com relação à retirada dos camelôs do Ponto de Cem Réis e, até, das ruas da cidade. Outro grupo que sempre frequentava o Ponto de Cem Réis e que foi destacado por nossos entrevistados foi o dos idosos. Em relação a esse grupo as referências que foram feitas a ele se contrastaram àquelas feitas em relação aos demais até aqui analisados. As falas seguintes apresentam a maneira como a maioria dos nossos entrevistados avaliava a presença dos idosos naquele local: Os idosos não tinham um canto para se sentar [...] os senhores idosos que vinham para se encontrar, palestrar, encontrar com os amigos [...] (Entrevistado 07). Isso era absurdo, uma capital não ter um lugar para os idosos se sentar (Entrevistado 04).
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Essa situação que nos foi relatada confirmou aquilo que testemunhamos na época em que realizamos a pesquisa anterior, no âmbito da graduação. Os idosos, de fato, se constituíam num grupo frequentador permanente do Ponto de Cem Réis. Comumente, eles - os idosos - são vistos tanto no turno da manhã quanto da tarde. No turno da manhã eles costumam se concentrar mais nos bancos próximos à Rua Duque de Caxias, por conta das sombras permitidas pela copa das árvores adultas que foram mantidas no Ponto de Cem Réis mesmo depois da revitalização. Já no turno da tarde, eles procuram os bancos que margeiam a Rua Duque de Caxias, por conta das sombras que vão sendo geradas pelas edificações próximas aos bancos. Em geral, eles se encontram em pequenos grupos que ficam conversando entre si e observando a movimentação de pedestres pelo Ponto de Cem Réis. Essa cena era bastante comum de se observar no Ponto de Cem Réis antes da sua revitalização. A presença dos idosos, pelo que se pode denotar da fala de nossos entrevistados 07 e 04, gerava um sentimento de nostalgia nos outros frequentadores do Ponto de Cem Réis. Um sentimento que se contrastava com aquele gerado pela presença de prostitutas, “cheira-cola” e ladrões. Era uma imoralidade, as raparigas aí com putaria nos bancos da praça (Entrevistado 07).
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Já a presença dos artistas que usavam o Ponto de Cem Réis para fazer apresentações foi pouco referenciada por nossos entrevistados, quando ela ocorreu foi de forma positiva. Como se pode observar nas falas seguintes: [...] tinha os artistas para encontrar com outros artistas para tratar assunto de música [...] (Entrevistado 07). Ventríloquo, tinha cantador de viola, sempre teve essas coisas aqui, esse pessoal que é artista qualquer lugar é lugar para se apresentar. Eles sempre estavam por aí, cantador de viola, embolador, jogador de capoeira, eles sempre estavam por aqui. Qualquer motivo eles inventavam para vir aqui se apresentar. Agora está bem mais prático (Entrevistado 04).
Artistas se apresentando em locais públicos, particularmente em áreas centrais de cidades, não é algo tão incomum. O fato de áreas centrais terem um fluxo constante de pessoas atrai o interesse de artistas dos tipos que foram referenciados. Na maioria das vezes, as apresentações que eles realizam é para ganhar algum dinheiro com elas e/ou vender algum produto, como cd’s e dvd’s. De fato, nas visitas que realizamos antes e depois da revitalização, testemunhamos apresentações artísticas no Ponto de Cem Réis: vimos músicos andinos, ventríloquos, emboladores de coco, entre outros. Essas atividades confirmam o uso do Ponto de Cem Réis como local de trabalho.
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Após analisarmos as perspectivas de nossos entrevistados sobre como era o Ponto de Cem Réis antes da revitalização, buscamos saber deles se consideravam que “havia e necessidade de mudança naquele lugar (?)”.Diante das respostas, constatamos que todos, de forma unânime, se colocaram favoráveis às mudanças que aconteceram. O que variou, no entanto, foi quanto a certos aspectos que se relacionavam a elas. Como, por exemplo, na resposta do entrevistado 01, que afirmou que, [...] essas mudanças que houve foram muito boas, só que falta segurança, que não tem. O que falta hoje é segurança, somente, tanto da policia militar pra dar segurança a gente que é cidadão, como também da guarda municipal, pra manter a ordem e a organização da praça. (Entrevistado 01).
De fato, durante a maior parte das visitas que realizamos ao Ponto de Cem Réis para fazer observações e anotações e, também, realizar as entrevistas, não chegamos a ver com tanta facilidade a presença de policiais circulando pelo Ponto de Cem Réis. O que também acontecia antes dele ser revitalizado. Quem sempre nós tivemos a oportunidade de ver nas visitas que realizamos foram os agentes de controle urbano que a Prefeitura determinou que fiscalizassem o uso do espaço público nas áreas do centro. Por outro lado, é preciso considerar que a presença de policiais militares passou a ser evidente nos dias em que eventos
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passaram a ocorrer no Ponto de Cem Réis: como o “Folia de Rua”, a “Paixão de Cristo”, o “São João Pessoa”, a “Festa das Neves”, o Projeto Som das 6”, todos coordenados pela Fundação Cultural de João Pessoa, ligada à Prefeitura Municipal. Esse fato revela que, em certa medida, a mudança que houve na segurança do local, está diretamente relacionada aos interesses diretos do poder público, e não dos seus frequentadores corriqueiros. Já nosso entrevistado 02, deu a seguinte resposta à mesma pergunta: [...] foi necessária porque João Pessoa precisava disso aqui, dessa praça. Se você analisar direitinho, você tá aqui, agora. Para você chegar no antigo Café São Braz do outro lado, você vai com a maior facilidade. Antes, você fazia? Esse pessoal que se desloca para o comércio no centro - o pessoal que mora em Bayeux, Santa Rita, aqui principalmente no Varadouro -, que quer chegar na Lagoa: ele chega com mais facilidade, né?! Então foi um espaço de mundo moderno. Então hoje eu considero a cidade de João Pessoa, principalmente na área praiana, uma cidade de primeiro mundo. (Entrevistado 02).
Diferente do entrevistado 01, o entrevistado 02 avaliou que as mudanças foram necessárias porque havia dificuldade no fluxo das pessoas pelo local. É preciso dizer que essa colocação de nosso entrevistado em relação à fluidez dos pedestres pelo Ponto de cem Réis, mas também pelas ruas do centro da cidade, em certa medida, foi influenciada pela política desenvolvida pela Prefeitura 200
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Municipal nos últimos anos de reformar as calçadas de várias ruas do centro da cidade para facilitar o fluxo de pedestres. Essa política faz parte do “Projeto de Restauração das calçadas do Centro Histórico de João Pessoa” que vem sendo realizado por etapas. A primeira delas envolveu passeios públicos de quatorze vias do centro. Para que fosse realizado foram gastos três milhões de reais. De acordo com dados divulgados pela Prefeitura, o objetivo desse projeto é recuperar vinte e três mil metros quadrados de calçadas do centro da cidade, sendo em algumas delas com intervenções totais e, em outras, com intervenções parciais. Na opinião do historiador José Otávio de Arruda Melo, em depoimento prestado à Secretaria de Comunicação da Prefeitura Municipal de João Pessoa no início de 2011, as restaurações “[...] têm caráter inovador, porque devolvem à população os espaços antes esquecidos. Não convém alterar profundamente os monumentos, mas fazer adaptações para nossa época como estão sendo feitas é válido”. O que se pode avaliar é que a Prefeitura Municipal passou a desenvolver um projeto que traz preocupações que foram expostas por Jacobs (2009) quando se reportou à função que as calçadas devem ter para as cidades. Gerar segurança e interação entre as pessoas. Por esse olhar, acreditamos que as mudanças que passaram a ser implementadas nesses espaços da cidade pelo poder público local se deram por haver uma 201
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compreensão de que elas, as calçadas, se constituem como um dos “(...) principais locais públicos de uma cidade (...)” (JACOBS, 2009, p.29). Chegamos a questionar nossos entrevistados se a Prefeitura havia realizado algum tipo de consulta aos mesmos, antes da revitalização ocorrer, sobre como deveria ficar o Ponto de Cem Réis. A maioria respondeu que não, que não houve consulta e que não conheciam ninguém que possa ter sido consultado. E os que não afirmaram diretamente não haver a consulta, também, informaram que não foram consultados e que não tinham conhecimento de alguém ter o sido, apenas sinalizaram que acreditavam que deve ter havido tal consulta. Sobre “como ficou o Ponto de Cem Réis depois do processo de revitalização (?)”, foi possível constatar que a ampla maioria dos entrevistados construiu uma “imagem positiva” do lugar, que passou a ser referenciado como limpo, movimentado, alegre, bem frequentado e onde se podem assistir eventos. As falas a seguir demonstram, literalmente, como eles se reportaram ao lugar depois da revitalização: [...] o antigo era feio. Agora você chega no Ponto de Cem Réis e dá gosto de sentar, conversar; primeiro não dava para você sentar aqui essa hora. Olha, agora é cheio de gente e à noite tem mais gente ainda (Entrevistado 06). A praça hoje é cheia, diariamente, na parte da manhã e da tarde. E a noite, principalmente, eu passo aqui à noite e vejo a praça com bastante gente: criança brincando de patins, de skate. (Entrevistado 03).
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A revitalização do ponto de cem réis na cidade de João Pessoa Na parte de iluminação, de limpeza, é tudo legalzinho aqui, a limpeza aqui é todos os dias, é tudo limpinho; calçaram tudo, você anda para todo canto sem problema, fizeram várias coisas aqui que foram boas [...] Esse espaço para mim hoje ele é alegria, é diversão, é ponto de encontro, é diversão, (Entrevistado 07). [...] é um palco de show pra mim, no meu modo de ver (Entrevistado 01). O que ficou bom foi o espaço que tirou aquela sujeira que tinha porque o povo estava fazendo necessidade fisiológica, estava a maior imundície do mundo (Entrevistado 09). Hoje pode ver que tem bastante atração turística para quem mora em João Pessoa e para quem vem de fora (Entrevistado 10).
Como se pode observar pelo conjunto das falas, as principais referências que passaram a constituir a imagem do Ponto de Cem Réis depois da revitalização se relacionam: com o “aumento do número de frequentadores”; com a “melhoria da limpeza e da iluminação”; com o uso para “encontros” de pessoas, realização de “eventos culturais” e “práticas esportivas”. De fato, nas visitas que realizamos ao Ponto de Cem Réis e o acompanhamento que fizemos das notícias que veiculadas em páginas da internet após a revitalização, constatamos que todos esses aspectos elencados por nossos entrevistados passaram a fazer parte da realidade dele.
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No
que
número
se
refere ao
aumento
do
de frequentadores é preciso destacar que
isso passou a ocorrer mais em função dos eventos que a própria Prefeitura Municipal, através de suas Secretarias, passou a realizar no local. Quanto aos aspectos da limpeza e da iluminação, isso também passou a ocorrer. No caso da limpeza, diariamente é possível observar a presença de agentes de limpeza urbana retirando o lixo que se acumula no local. Já a questão a iluminação, essa também é verificada com a série de postes que passaram a existir no local, inclusive tendo fiação subterrânea. Com relação aos encontros de pessoas, apesar de no turno da manhã ser possível constar a presença de vários grupos de pessoas conversando e se encontrando, é no turno da tarde que isso fica mais evidenciado. As práticas esportivas, por sua vez, que foram citadas por nossos entrevistados também é uma realidade que se pode verificar mais nos finais de semana, especialmente nos sábados a tarde ou nos domingos. No conjunto, as mudanças que aconteceram no Ponto de Cem Réis se coadunam com aquelas que, em geral, são utilizadas em experiências de revitalização urbana, onde grupos tidos como marginais e sujos são afastados e onde são feitas alterações em seus aspectos estéticos com o objetivo de construir uma imagem de lugar público, limpo e seguro. 204
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Quando questionados sobre “o que não deveria” ter sido feito no Ponto de Cem Réis (?)”, nossos entrevistados deram as seguintes respostas: [...] esses tijolinhos aí com areia. Teria feito uma coisa mais bonita. Teria botado um tijolinho desenhado. Afinal esse cimentado da praça ficou muito mal feito, isso era para ter feito em cerâmica, uma cerâmica de piso de chão numa qualidade melhor porque nos projeto não está assim não, nos projetos os tijolos eram tudo desenhado e botaram uns tijolos vagabundos. (Entrevistado 07). O que eu não aprovei foi esse palco aqui permanente por que tem que deixar isso aqui livre para população. (Entrevistado 03).
A preocupação de nosso entrevistado 03 é corroborada também por nosso entrevistado 10 quanto afirma que “[...] tem um palco ali que passa meses e meses montado, armado, atrapalhando uma série de coisas [...]” (ENTREVISTADO 10). Nas conversas informais que mantivemos com outros frequentadores do Ponto de Cem Réis durante as visitas exploratórias que realizamos, houve quem dissesse, inclusive, que o palco estava servindo de banheiro público quando eram realizados eventos culturais à noite no local. Já a avaliação de nosso entrevistado 07 está relacionada com o fato de que o projeto de revitalização que foi divulgado pela Prefeitura entrava em desacordo com o que, efetivamente, chegou a ser construído. Como se observa na passagem seguinte:
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Edmilson Esequiel Cantalice [...] esse cimentado da praça ficou muito mal feito, isso era para ter feito em cerâmica, uma cerâmica de piso de chão numa qualidade melhor, porque no projeto não está assim não, no projeto os tijolos eram tudo desenhado e botaram uns tijolos vagabundos (ENTREVISTADO 07).
Além das expectativas sobre “o que não deveria ter sido feito”, nossos entrevistados se colocaram sobre “o que faltou ser feito (?)”. Os depoimentos que vêm logo a seguir revelam como essa questão foi observada por alguns deles: [...] eu regularia as banquinhas de revista, faria um lugar melhor para eles: o Reginaldo e aquele outro menino ali são muito antigos aqui. E esses prédios, a prefeitura tem que tomar conta por que tão tudo abandonado. Você olha o Ponto de Cem Réis bonito, mas tem um prédio ali - do IPASE52 - e aqui - o Duarte da Silveira - abandonados. Eu fazia qualquer coisa, locava, botava os camelôs [...] Porque é uma vergonha você ter uma praça bonita e ter uns prédios caindo. (Entrevistado 03). Eu tentaria negociar com os donos de prédios que tem ao redor da praça no processo de revitalização, um programa de incentivo seja no IPTU, compra pelo município, transformações desses espaços com características da década de sessenta e setenta em prédios públicos da gestão municipal, estadual ou com convênio com o governo federal (Entrevistado 05). [...] essa praça já está bom demais não precisa aumentar mais não. O povo fala desses prédios velhos, mas a boniteza dessa praça é esses prédios aí, deixa esses predinhos velhos aí. È fazer a reforma por dentro, eu entrei aqui nesse casarão e está caindo tudo, por fora é bonito, mas vá vê por dentro, está tudo caindo (Entrevistado 06). 52 Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado.
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A revitalização do ponto de cem réis na cidade de João Pessoa Eu fazia umas ilhazinhas para os sapateiros, como o prefeito Cícero Lucena fez umas cabinezinhas bonitas que a gente trabalhou dez anos nelas e foi ótimo (Entrevistado 09). Eu acho que agora só falta banheiro público, num lugarzinho bem bacana (Entrevistado 04).
Observe-se que os entrevistados 03, 05 e 06 se reportaram à problemática que envolve os usos de algumas edificações que existem na área do Ponto de Cem Réis. Como é o caso do Edifício Duarte da Silveira, do casarão que pertenceu à família D’Ávila Lins, do próprio Parahyba Palace Hotel e do Edifício onde funcionou o Instituto de Previdência e Assistência dos Servidores do Estado, que são ou subutilizados ou não apresentam uso algum. Essa situação em que se encontram as edificações decorre exatamente do processo de expansão que houve na cidade a partir do início da segunda metade do século XX quando a ocupação daquela área começou a se reduzir significativamente. E como não houve interesse nem da parte da iniciativa privada nem do poder público em retomá-los a situação persistiu e se mantém até os dias atuais. Daí as preocupações de nossos entrevistados com o estado atual em que se encontram. Mas divergem quanto à solução para essa situação. O entrevistado 03 ainda destaca que a revitalização deveria ter proporcionado a construção de algum tipo de estrutura que pudesse servir para acomodar melhor as bancas de
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jornal e revistas que permaneceram funcionando no local, como é o caso da que pertence ao “Seu Reginaldo”, situada junto da parede do Parahyba Palace Hotel Já o entrevistado 09 avaliou que a revitalização deveria ter garantido, também, a construção de estruturas que permitissem a manutenção dos sapateiros trabalhando no local, já que se caracterizavam como um grupo “tradicional” que trabalhava e frequentava a área. Para o entrevistado 04 o que faltou ser feito foi banheiro público no local. O Ponto de Cem Réis, por não servir apenas como local de passagem de pessoas, deveria ter um banheiro público que possibilitasse seu uso por parte dos frequentadores. Essa avaliação feita por eles adquire mais importância na medida em que, também, já haviam constatado que “[...] já tá quase ficando do mesmo jeito, com pessoas urinando [...]” (ENTREVISTADO 02) ao lado do palco onde acontecem eventos artístico-culturais. E para concluirmos essas análises sobre o processo de revitalização, passaremos à última questão, qual seja: “como se poderia definir o Ponto de Cem Réis depois de revitalizado”. As respostas que obtivemos variaram em relação ao significado que se deveria atribuir ao Ponto de Cem Réis enquanto local público da cidade e, em alguns casos, apresentaram concordância sobre a persistência de problemas sociais no local. Como se pode observar nas falas a seguir:
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A revitalização do ponto de cem réis na cidade de João Pessoa [...] o meu meio de vida, que eu trabalho aqui no centro. Eu vivo sobre isso aqui, com essa praça aqui na minha frente. (Entrevista 01). Um espaço para pessoa andar, para se divertir, para se sentar (Entrevistado 04). Hoje é a sala de visitas de João Pessoa. Um lugar de receber amigos, de vir para assistir shows, de vir para jogar xadrez, dama, para quem gosta de jogar baralho; de falar da vida alheia para quem tiver tempo (Entrevistado 05). Esse espaço para mim hoje ele é alegria, é diversão, é ponto de encontro, é diversão, é tudo de bom, nota dez (Entrevistado 07). [...] Eu vejo hoje como uma pista de skate, a moçada empinando bicicleta. Á noite prostituição e cachaça, a maior esculhambação, aí depois de sete da noite até madrugada é zoada (Entrevistado 09). [...] pra mim ficou ótimo. Ficou melhor do que estava. A praça hoje é cheia, diariamente, na parte da manhã e da tarde. E a noite, principalmente, eu passo aqui à noite e vejo a praça com bastante gente. Criança brincando de patins, de skate aliás, família vem tirar foto, até uma certa hora, pois a partir das dez horas também é perigoso. (Entrevistado 03).
Se considerarmos a fala do entrevistado 01, constataremos que o Ponto de Cem Réis é avaliado como um local de trabalho. Os diversos estabelecimentos comerciais existentes e os trabalhadores informais que continuaram no local seria a confirmação disso. Já os entrevistados 04, 05, 07 e 09, avaliaram que o lazer e diversão se tornaram características marcantes do Ponto de Cem Réis. Os encontros entre amigos, os jogos de cartas, damas 209
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e xadrez, os shows, as práticas esportivas, além de outras atividades, para esses entrevistados, é o que passou a se evidenciar naquele local. Ressalvas,
o
entanto,
foram feitas por
nossos entrevistados 09 e 03 quanto ao que ocorre no Ponto de Cem Réis à noite, particularmente em dias que não têm eventos acontecendo no local. Como tivemos a preocupação de observar o local também no turno da noite, verificamos que comerciantes informais montam pequenas estruturas de mesas e bancos de plástico para vender bebidas e tira-gostos no local. E, também, pudemos constatar que os “cheira cola” também são vistos fazendo usos do espaço. O que confirma as informações prestadas por esses dois últimos entrevistados. Considerações finais Este trabalho teve o objetivo apresentar os resultados da pesquisa de mestrado que desenvolvemos junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba. A investigação se constituiu numa reflexão sobre os impactos que uma experiência de revitalização urbana pode gerar nos usos e significados que as pessoas dão aos lugares onde ela ocorre. Para tanto, tomou por objeto de pesquisa a revitalização do Ponto de Cem Réis na cidade de João Pessoa, ocorrida dos anos de 2008 a 2009. A pesquisa partiu do 210
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pressuposto de que aquela intervenção, além de ter alterado os aspectos físicos, afetou os usos e os significados que os frequentadores atribuem ao lugar onde ela ocorreu. A pesquisa confirmou a hipótese de que a revitalização, além de alterar os aspectos físicos do Ponto de Cem Réis, afetou os usos e significados que a ele eram dados. De lugar degradado, deteriorado e marginalizado, ele passou a ser considerado um local limpo, onde pessoas poderiam frequentar para se encontrar, conversar, jogar cartas, dominó e dama. Onde as famílias poderiam se divertir levando os filhos para andar de bicicleta e andar de skate, onde poderiam assistir shows musicais e espetáculos teatrais. Também confirmamos que os grupos sociais marginalizados e fragilizados socialmente, especialmente das crianças e adolescentes que frequentavam o local para se drogar, as prostitutas, os camelôs e os sapateiros, acabaram sendo os mais prejudicados com a revitalização, já que passou a ocorrer um controle sobre quem deveria fazer uso do espaço. As questões e problemáticas que a pesquisa envolveu acabaram revelando que é preciso continuar aprofundando o estudo sobre a temática. As questões que envolveram a situação das crianças e adolescentes pobres, dependentes de drogas e vivendo nas ruas merece uma atenção muito mais profunda do que tivemos possibilidade de dar. Da mesma forma que a problemática da prostituição de mulheres que tem que transformar seus corpos em mercadoria para sobreviver. Os 211
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dramas que assolam a vida das pessoas que sobrevivem do comércio informal praticado nas ruas das cidades se constituem numa outra questão importante a ser mais bem analisada e aprofundada. Problemáticas como essas são apenas alguns exemplos do que ainda podemos investigar em outros níveis de formação. Referências ALESSANDRI CARLOS, Ana Fani. Espaço-tempo na metrópole: a fragmentação da vida cotidiana. São Paulo, SP: Contexto, 2001. ALMEIDA, Maria Cecília Fernandes de. Espaços Públicos em João Pessoa (1889-1940): Formas, Usos e Nomes. São Carlos, SP: [s.n.], 2006. BERMAN, Marshall. Tudo o que é Sólido Desmancha no Ar. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. BEZERRA, Natanael Delanne Nóbrega. O Ponto de Cem Réis Ontem e Hoje. João Pessoa: Sal da Terra Editora, 2003. CASTELLO, Lineu. A percepção de lugar: repensando o conceito de lugar em arquitetura-urbanismo. Porto Alegre: PROPARUFRGS, 2007. CERTEAU, Michel de et alli. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes, 2008. CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo, SP: UNESP, 2005. 212
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A CIDADE E SUAS PRAÇAS: estratégias de requalificação e usos contemporâneos Jovanka Baracuhy C. Scocuglia Marcela Dimenstein Introdução Este artigo apresenta os resultados das pesquisas desenvolvidas para elaboração de um Trabalho Final de Graduação em Arquitetura e Urbanismo – UFPB, em 2011, com o objetivo de estudar as transformações recentes que ocorreram em espaços públicos da cidade de João Pessoa, mais especificamente, as intervenções de requalificação em três praças, buscando compreender como tais mudanças tem interferido nos usos cotidianos destes espaços. Foram analisadas praças exemplares de processos recentes de requalificação na cidade de João Pessoa: a Praça Alcides Carneiro no Bairro de Manaíra, a Praça da Paz no Castelo Branco e a Praça Vidal de Negreiros no Centro (ver figura 01, a seguir). Estas praças atendem populações distintas e desempenham funções diversificadas. Conforme afirma Lilian F. Vaz (2008), estudar os espaços públicos nas cidades contemporâneas é um desafio por
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vários motivos, dentre eles as dificuldades relacionadas com os significados diversos que assumem segundo a área de conhecimento. Aqui, privilegiaremos a visão arquitetônicourbanística, embora fazendo uma interface com outros campos disciplinares como a sociologia e a antropologia. O espaço público será, então, designado pelos espaços livres, sem edificação, com acesso ao público em geral, local de visibilidade e encontro com o Outro,tais como ruas, praças, largos, parques etc. O caráter de espaço coletivo é reforçado enquanto lugar de manifestações políticas, cultos e outras cerimônias propícias à interação social,recreação, convivência, circulação e encontros em qualquer fase da vida.
Figura 01. Mapa de localização das praças nos seus respectivos bairros – 01. Praça Alcides Carneiro, Manaíra. 02. Praça da Paz, Castelo Branco. 03. Vidal de Negreiros, Centro. Fonte: Google Earth. Editada por Marcela Dimenstein.
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A cidade e suas praças
No Brasil,nas últimas décadas,a despeito da importância para a sociabilidade pública, muitas praças deixaram de ser utilizadas pela população, em parte devido à degradação acelerada do espaço físico e ambiental, ao abandono ou à insegurança. A proliferação de espaços coletivos privados, tais como as praças de alimentação dos shoppings centers e áreas de lazer de condomínios residenciais fechados também contribuem para a desvalorização dos espaços públicos na medida em que oferecem um lugar de lazer limpo, seguro e cheio de opções (ALMEIDA, 2006). Esta problemática ocorre em diversas cidades brasileiras e João Pessoa não foge à regra. Entretanto, nesta cidade, destacam-se o grande número e a variedade de praças, embora muitas delas ainda permaneçam em desuso, deterioradas ou pareçam ter perdido funcionalidade e beleza. Ressaltemos ainda, que a sensação crescente de insegurança, impulsiona a disseminação de espaços privados destinados ao uso coletivo, contribuindo para um uso menos intenso das praças públicas. Outrossim, em João Pessoa estão sendo desenvolvidas políticas públicas voltadas para requalificação e dinamização artística e cultural das praças. Várias delas já foram requalificadas e inseridas nos circuitos de arte e cultura em diversos bairros da cidade como parte das ações que vem sendo desenvolvidas pela Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP), desde 2006, com o Programa de Recuperação de Parques, Praças, Passeios e Jardins. 217
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
As ações desenvolvidas no sentido de requalificar praças e parques públicos na cidade de João Pessoa representam uma resposta do poder público diante do cenário de precariedade e abandono anteriormente mais grave. As estratégias tem se voltado para a disponibilização de uma série de equipamentos/ dispositivos técnicos nas praças já existentes: quadras, pistas de skate, parques, playgrounds, pistas de Cooper, anfiteatros, dentre outros, aliado à transformação desses locais em pontos de convergência de serviços de assistência social, a exemplo dos Projetos Vida Saudável, Estação Digital, Segundo Tempo, PróJovem, além do Circuito das Praças, patrocinados pela Prefeitura Municipal. A relevância do estudo analítico desses processos de requalificação nos últimos cinco anos pela PMJP está em contribuir para o debate teórico a respeito das políticas voltadas para os espaços públicos contemporâneos. Além de ser um instrumento para repensar estas ambiências e seus usos reconhecendo o potencial destes lugares na construção e consolidação de urbanidades fundadas em valores de convivência, encontro e diversidade. Apresentaremos, a seguir, de forma resumida, alguns dos resultados de pesquisa que indicam como as ações de requalificação das praças da cidade João Pessoa afetam as sociabilidades e os usos cotidianos dos espaços públicos. Durante a pesquisa de campo foram desenvolvidas algumas ações especificas que passamos a enumerar: a construção do 218
A cidade e suas praças
referencial teórico-conceitual, pesquisa visual e observacional de campo pela manhã e ànoite durante um mês, nos dias de semana e nos finais de semana, pesquisa oral de campo com vinte e cinco usuários em cada uma das praças,totalizando setenta e cinco entrevistas, sistematização e análise dos dados, com uso de recursos iconográficos como registro fotográfico e construção de cartografias dos usos que indicam concentração, fluxo e atividades desenvolvidas nas praças. Estratégias de requalificação e as táticas dos usuários O Programa de Requalificação das Praças busca atingir vários bairros da cidade, não se limitando a promover a estrutura física, mas também diversos outros programas e serviços que se apoiam nesses espaços para melhorar a qualidade de vida de moradores do entorno e promover a inserção em programas de assistência social voltados para jovens, idosos e crianças. Inicialmente, foram escolhidas as praças estrategicamente melhor localizadas em relação ao bairro, diversificando os grupos sociais atingidos, ao fluxo de pessoas e a visibilidade pública.O quadro a seguir mostra os números e o percentual de praças requalificadas nos bairros estudados. Manaíra
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Castelo Branco
Centro
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein Nº de praças bairro/reformadas % de reformas p/bairro
por
09 / 04
13 / 01
11 / 09
44%
7%
81%
Quadro 01: Porcentagem de praças requalificadas nos bairros estudados.
As praças estudadas antes das reformas se encontravam em estado de conservação entre regular e péssimo. Apresentavam pisos quebrados e não apropriados para as atividades, canteiros destruídos e sujos, jardins mal cuidados, mobiliário urbano danificado e pouco atrativo. Quando existiam quadras, estas estavam sem manutenção, não apresentavam tratamento de piso, redes ou travas no gol. A grande quantidade de folhas secas e sementes advindas das árvores existentes nas praças contribuíam para a degradação dos canteiros, e suas raízes subiam à superfície e destruíam o piso.As diferenças de antes e depois da requalificação das três praças estudadas podem ser vistas no quadro 02:
220
A cidade e suas praças
Antes Praça Alcides Carneiro - Manaíra
Praça da Paz – Castelo Branco
Praça Vidal de Negreiros - Centro
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Depois
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein Quadro 02: Praça Alcides Carneiro em 2006-2011. Praça da Paz em 2008-2011. Praça Vidal de Negreiros em 2009-201. Fonte: DIPLUR/ SEPLAN e Marcela Dimenstein.
Nos casos da Praça Alcides Carneiro e da Praça da Paz, o desenho urbano foi pouco modificado, as maiores alterações foram nas definições dos percursos dos pedestres, deixando-os menos confusos e mais aprazíveis. Os pisos foram totalmente modificados, os canteiros foram limpos e refeitos, os bancos foram reconstruídos em concreto armado, as quadras foram recuperadas e divididas por meio de redes de proteção e canteiros, foram instaladas rampas acessíveis e também aparelhos para realização de exercícios físicos. Atualmente,estas praças são bem mais movimentadas e fazem parte do circuito de eventos oferecidos pela PMJP. A Praça Vidal de Negreiros, conhecida como Ponto de Cem Réis, está inserida na área de preservação do centro histórico tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba – IPHAEP e também na área de entorno da poligonal de tombamento definida pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN.Esta Praça já sofreu diversas intervenções, sendo esta última em 2009, modificando mais uma vez seu espaço, deixando-o agora mais amplo e uniforme após o fechamento do Viaduto Damásio Franca que cortava a Praça e provocava uma fenda em uma de suas laterais, fragmentando-a. O piso foi trocado por lajotas de concreto, os bancos foram substituídos, os postes também foram
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A cidade e suas praças
modificados por um modelo “retrô”. O monumento à Vidal de Negreiros foi reformado, foi criada uma espécie de mausoléu em volta do busto elevado cujos volumes de base formam patamares utilizados pela população para subir e acessar a estátua. Foram retiradas algumas árvores que sombreavam a Praça e permitia a concentração de pessoas em uma de suas laterais. Esta mudança provocou alterações profundas na ambiência da praça e afastou/dispersou diversos antigos frequentadores e usos como os engraxates, vendedores ambulantes e idosos que se concentravam sob as árvores. Outro tipo de vegetação, mais ornamental do que sombreadora, foi plantado junto aos novos bancos. As intervenções nas três praças estudadas, além de modificar a forma física, geraram uma nova dinâmica de apropriação. Para compreendermos as mudanças em cada uma delas, realizamos observações de campo nos horários da manhã e da noite. Essa etapa da pesquisa gerou mapas de fluxos e concentrações de pessoas nos quais foram cartografadas as ações e as formas de associação, encontros e percursos dos moradores e visitantes. As cartografias não foram inseridas neste texto por serem muito extensas e a redução de tamanho das mesmas prejudicaria a qualidade na visualização das informações e imagens.Reproduzimos no quadro 03 apenas alguns dos mapas de fluxos e concentrações de pessoas:
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Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
Manhã Praça Alcides Carneiro s – Manaíra
Noite
Praça da Paz – Castelo Branco
Praça Vidal de Negreiros – Centro
Legendas: Fluxos de pessoas
Concentração de pessoas Nº do Trajeto
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A cidade e suas praças
Quadro 03: Mapas de fluxo, concentração e usos de pessoas pela manhã e à noite. Duas das praças analisadas – a Alcides Carneiro e a Praça da Paz – são praças de bairro, cujas funções principais são de servir de lugar de reuniões, passeios, ócio e atividades de lazer. Os equipamentos para atividades esportivas, as quadras e o playground indicam o público principal que circula em ambas. Diferem da Praça Vidal de Negreiros que é uma praça central, de grande fluxo de pessoas que trabalham, consomem ou utilizam os serviços e o comércio das redondezas. Além disto, a Vidal de Negreiros tem uma importância simbólica enquanto local de convergência da população em momentos de reivindicação ou comemoração cívica, e se apresenta como marco referencial para João Pessoa. A ausência de equipamentos urbanos comuns às outras duas praças, como também a diferença do público que a frequenta e da forma como é utilizada, são indícios diversidade de apropriação que encontramos nesta praça. As observações em campo indicam que os ritmos de uso dos dois tipos de praças divergem quanto aos horários das atividades, às formas de ocupação, aos tipos de equipamentos disponíveis, aos tipos de programa de assistência social que a PMJP institui alterando o cotidiano.
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Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
Praça Alcides Carneiro Pela manhã, em geral, nos dias que a visitamos, identificamos que as áreas de maior concentração de pessoas é a parte central da praça: o local para realização de exercícios físicos (com aulas de ginástica), seguida da área do mural de arte e do anfiteatro. Os usos da praça estão bastante vinculados às atividades esportivas. Grande parte da população caminha nas calçadas externas que circundam a praça, se exercitando na academia a céu aberto e nas aulas de ginástica. O anfiteatro muitas vezes é utilizado para aulas de música e para descanso/ conversas. A maioria das pessoas que não está realizando atividades esportivas se concentra na porção centro-sul, mais arborizada e amena em termos ambientais / climáticos. O fluxo de pessoas é intenso. Foram observados quatro caminhos de maior importância. Um dos principais acessos fica em frente à parada de ônibus da Av. João Câncio, a leste da Praça. A partir desse acesso, as pessoas se dispersam seguindo seus caminhos de destino. Uma peculiaridade foi identificada em um dos trajetos, pois a rota de circulação intensa está fora do caminho prédefinido como passeio, indicando que a mudança de piso ou mesmo o canteiro não se configura como uma barreira física para o pedestre. Nas noites, vimos que o cenário é mais agitado do que nas manhãs, embora as áreas de uso sejam apenas um pouco 226
A cidade e suas praças
mais diversificadas e os pontos de concentração de pessoas estejam na parte central e norte: a academia, anfiteatro e quadras. Assim como pela manhã, à noite grande parte da população está caminhando nas calçadas ao redor da Praça, fazendo exercícios na academia ou descansando e conversando nos bancos ou no gramado. Os postes de iluminação são pontos de concentração de pessoas, assim como na proximidade de ruas movimentadas como a Av. João Câncio ou as áreas voltadas para fachadas ativas onde se localizam as lanchonetes do entorno. Na extremidade norte e oeste da Praça existem sorveterias e bares que concentram população. São, portanto, fachadas ativas que influenciam no uso mais intenso e na diversidade do público que utiliza a Praça nos diferentes turnos. O fluxo à noite é intenso, foram percebidos seis caminhos principais. A parada de ônibus existente em frente à Praça é um dos elementos que atrai parte desse fluxo, embora muitas pessoas venham de suas residências e de áreas próximas apenas para desfrutar do espaço requalificado. Praça da Paz Pela manhã, as áreas de maior concentração de pessoas se localizam na parte sul da Praça: a academia, o playground e a quadra onde acontecem as aulas de ginástica, sobretudo, às quintas-feiras. O fluxo é intenso, principalmente em sua 227
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
periferia. Indivíduos de diversas faixas etárias realizam atividades esportivas e caminham ao redor da Praça. Foram identificados cinco caminhos principais. O cruzamento das ruas Hermenegildo de Almeida e Eurípedes Gadelha é o principal acesso à praça, sendo também o trajeto mais próximo até a parada de ônibus da Avenida Padre Zé. Outro trajeto movimentado é o da Rua Coutinho da Silva que desemboca na Rua Profa. Francisca Romana. À noite, a Praça da Paz é mais movimentada do que pela manhã. As áreas de uso são diversificadas e os pontos de concentração de pessoas estão na parte sul e central, onde se localizam os aparelhos da academia, o playground e a quadra esportiva. Uma peculiaridade desta Praça é a utilização das suas calçadas para conversas entre moradores do casario do entorno. Muitas pessoas utilizam os bancos da praça para observar os filhos ou para se encontrar com vizinhos, e acabam por deixar as portas de suas casas abertas, observando-as da calçada da praça. Esse fato indicada uma apropriação específica, como extensão da casa na rua/na praça. A escala mediana da Praça da Paz, o aspecto pacato das ruas que a circundam (todas são vias locais) podem ser alguns dos motivos deste tipo de apropriação, mas há também vinculação com os hábitos culturais de vida nas cidades menores do interior do estado, o costume de colocar as cadeiras sobre as calçadas no final da tarde.
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A cidade e suas praças
A existência de locais relativamente escuros, provocados pela sombra de algumas árvores (porção sul e sudeste),não representa um problema, pois a grande movimentação nas calçadas parece afastar qualquer sensação de insegurança. O fluxo nesta Praça no período noturno é também intenso e foram identificados sete percursos principais. Praça Vidal de Negreiros Nas visitas realizadas no período da manhã, verificamos que as áreas de maior concentração de pessoas ficam na parte nordeste e sul da Praça Vidal de Negreiros, onde existem bancos sombreados, lanchonetes, uma casa lotérica e o antigo Hotel Parahyba Palace (desativado para esta função). Foram identificados diversos usos como, por exemplo, pessoas apenas de passagem, conversando, descansando, trabalhando e assistindo às atrações artísticas que ocorrem nas áreas sombreadas. É possível ver que as áreas: central, noroeste e sudeste se caracterizam como áreas de passagem e não atraem os usuários à permanência, justamente por não serem protegidas das intempéries e não oferecerem uma ambiência adequada em termos de conforto térmico. O fluxo de passantes é intenso e foram identificados seis caminhos principais de circulação dos transeuntes, todos bem movimentados. Os principais acessos se dão pelo Viaduto Damásio Franca e pela Av. Visconde de 229
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
Pelotas que são os dois caminhos que levam às paradas de ônibus mais próximas. À noite, o fluxo continua intenso. As áreas de uso são mais diversificadas e os pontos de concentração de pessoas são nos bancos a oeste e a nordeste da Praça, sob a marquise do Hotel Parahyba Palace, em frente ao Viaduto Damásio Franca e no Busto de Vidal de Negreiros. Ritmos e Movimentos De segunda a sexta,nas duas praças de bairro, Alcides Carneiro e da Paz, o movimento começa a aparecer logo nos primeiros horários do dia. Idosos e mulheres vão se exercitar na academia, fazer cooper ao redor da praça ou se envolvem nas atividades do Programa Vida Saudável, que promove aulas de ginástica com professor(a) para uma média de 25 pessoas. Na Praça Alcides Carneiro, uma cena frequente foi encontrar várias pessoas levando seus animais de estimação para passear nas primeiras horas do dia. Isso acontece de forma intensa, segundo M. Franch e T. Queiroz (2010), como efeito indireto do processo de verticalização que se observa no bairro e ao redor desta praça. Ao longo do dia, as praças Alcides Carneiro e da Paz começam a se tornar lugar de passagem de pessoas em direção ao trabalho ou às paradas de ônibus próximas. No final da tarde, as atividades de exercícios na academia,o cooper e a mera contemplação e o descanso retornam, pois coincidem com os 230
A cidade e suas praças
horários de retorno do trabalho e da escola. O público que frequenta a praça à noite é mais variado do que o público matutino, incluindo, mulheres e idosos, homens adultos e jovens de ambos os sexos. Também é neste horário que as crianças circulando com as mães ou babás e brincam com outras crianças. Nos fins de semana ou feriados, o número de frequentadores diminui, mas ainda é possível localizar atividades no início da manhã e à noite. A Praça Vidal de Negreiros, por seu turno, apresenta uma dinâmica diferenciada se comparada às duas mencionadas anteriormente.O movimento começa um pouco mais tarde, pois o comércio, os edifícios de escritórios e de prestação de serviço só iniciam seu funcionamento a partir das 7h30/8h da manhã. Por volta das 10h, a praça está muito movimentada, com pessoas circulando, conversando e também prestigiando algumas apresentações espontâneas de artistas mambembes.É notável que a ausência de proteção à forte incidência solar matutina faz com que grande parte do seu espaço fique subutilizado para fins de permanência. À medida que o sol vai se pondo - por volta das 15h30 - a sombra projetada pelos edifícios Régis, IPASE e do casario edificado a oeste da Praça compõe uma ambiência convidativa, atraindo muitos transeuntes a se sentarem, verem as apresentações artísticas mambembes e desfrutarem da paisagem local. O movimento vai diminuindo gradativamente com a chegada da noite e por volta das 19h ainda há movimento principalmente próximo aos bancos e jardineiras que compõem 231
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
o mobiliário urbano recém instalado no processo de requalificação. Este último, mesmo pouco confortável e até mesmo inadequado ao lazer e ao descanso é utilizado pelas pessoas que se sentem atraídas pela ambiência da Praça. Muitos se divertem formando tabuleiros para jogos sobre os bancos; crianças, acompanhadas de seus pais, brincam com bolas e bicicletas e grupos de jovens se apropriam do espaço liso e amplo da Praça requalificada para ensaiar manobras de skate e de bicicleta. Estriam-no, de certa forma, dando significado e uso. O comércio ambulante também se instala no perímetro da Praça, atraído pelos novos usuários, potenciais consumidores de bebidas, refrigerantes, batatas fritas, pipocas e churrasquinhos. Durante a pesquisa de campo, questionamos os praticantes das praças com relação à frequência de uso destas praças e sobre o nível de satisfação com o espaço requalificado. E os resultados podem sintetizados no quadro abaixo: Você vinha praça antes reforma?
à Manaíra
Castelo Branco
Centro
d a
Sim
07
06
16
Não
18
19
09
Quadro 04: Resultados dos usuários com relação à vinda à praça antes da reforma.
Nas das praças de bairro, Alcides Carneiro e da Paz, a maior parcela do universo questionado disse que não costumava 232
A cidade e suas praças
utilizá-las antes da reforma. No caso da Praça Vidal de Negreiros, localizada no Centro da cidade, ao contrário, a maior parte dos entrevistados afirmou que a utilizava antes da reforma, e a outra parcela afirmou ter passado a frequentála e transformála em rota de passagem e permanência após a requalificação. Hoje, como mostra o quadro 05, as praças são consideradas por grande parcela dos entrevistados, como um local ótimo ou bom. Houve pontuações regulares e péssimas, apontando que nem tudo está completamente satisfatório para os que frequentam esses espaços, e alguns temas foram considerados negativos, principalmente na Praça da Paz e na Praça Vidal de Negreiros. O que você acha Manaíra da praça hoje?
Castelo Branco
Centro
Ótimo
11
04
12
Bom
09
16
07
Regular
05
03
04
Ruim
00
00
00
Péssimo
00
02
02
Quadro 05: Resultados dos usuários ao nível de satisfação com o espaço.
O próximo quadro mostra o que foi considerado negativo nas praças de acordo com a opinião dos usuários.
233
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
Há alguma coisa que Manaíra você considere negativo na praça?
Castelo Branco Centro
Não acho negativo
nada 12
07
11
A vizinhança
00
00
03
A falta de bancos
03
00
02
A falta de árvores
02
00
03
Atendimento do 00 transporte público
00
00
Insegurança
18
06
08
Quadro 06: Resultados dos usuários ao que é considerado negativo nas praças.
Os entrevistados que apontaram algo negativo se detiveram nas questões de segurança, seguidos dos problemas de manutenção dos equipamentos e baixa qualidade ambiental. Na Praça Alcides Carneiro, um jovem chegou a comentar que à noite não brincava na parte leste da praça, pois achava muito esquisito e escuro. Neste caso, tudo indica que as árvores e pouca iluminação nesta parte da praça fazem com que exista um ambiente de insegurança. No caso da Praça da Paz, as reclamações se concentraram em dois assuntos relacionados à insegurança: os jovens que se reuniam nesta em determinados horários para o uso de drogas e o roubo de um equipamento da 234
A cidade e suas praças
academia.Na Praça Vidal de Negreiros, a insegurança também foi considerada um grande problema justificada pela falta de policiamento, pelo descontentamento com relação à vizinhança e pelo abandono das edificações do entorno. Para dois dos entrevistados, o IPASE, que abriga “sem tetos” que o invadiram há vários anos, foi denominado como “Carandiru”. Outros reclamaram da falta de árvores e de bancos protegidos da insolação, pois os existentes estavam sempre lotados. Houve quem mencionasse a inexistência de um banheiro público no local, assim como a ausência de um bar ou lugar para se tomar um “chope”. Essas considerações indicam, que apesar do bom resultado geral da requalificação das praças estudadas, ainda houve certas descontinuidades e incongruências entre o projeto de requalificação e o funcionamento cotidiano, revelando a ausência de um estudo mais detalhado sobre a ambiência e a relação desta com usos e usuários, práticas sociais e movimento dos corpos. À guisa de conclusão: contra-usos e incongruências entre projeto e ambiência Nas três praças identificamos elementos inadequados de projeto que conflitam ou não se adéquam às ambiências, bem como contra-usos. Por exemplo, no caso da Praça Alcides Carneiro, atividades planejadas para serem realizadas em determinados espaços estão se desenvolvendo em outros locais 235
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
não-planejados para tais usos. Há um descompasso entre esses espaços planejados e seus usos. Há também uma inadequação na escolha da vegetação causando ineficiência quanto ao controle das temperaturas, da radiação solar, ventos, chuvas, poluição e ruídos. As ruas que circundam as praças também influenciam no microclima do bairro e do entorno. Logo, o tipo de pavimentação, a largura das ruas e a altura dos edifícios do entorno afetam a ambiência destas praças. Consultamos a Secretaria de Planejamento – SEPLAN, órgão responsável pelo paisagismo das praças junto à PMJP, e a paisagista responsável pelos projetos afirmou que, das praças estudadas, apenas a Praça da Paz havia passado por um tratamento paisagístico, com a retirada de árvores conhecidas popularmente como “castanholas”, pois estas sujavam os caminhos e canteiros com folhas e sementes, o que impedia uma boa conservação e limpeza da praça. Em seu lugar foram plantados espécimes conhecidas como Acácias já bastante utilizadas em outras praças da cidade pelo potencial de sombreamento e estético. Os canteiros também foram refeitos com vegetação rasteira e folhagens arbustivas. Na Praça Vidal de Negreiros, o projeto de requalificação reduziu consideravelmente a área verde do local, concebendo algumas mudas na sua porção oeste, e mantendo apenas as quatro Acácias da vegetação original. Dessa forma, mesmo mantendo as Acácias, houve uma redução dos espaços 236
A cidade e suas praças
sombreados e de permanência, tornando o ambiente árido pela exposição excessiva do sol forte da região. Finalmente, com relação à Praça Alcides Carneiro, a vegetação existente está principalmente concentrada na sua porção sul, o que influencia diretamente na percepção da presença ou ausência de pessoas e atividades desenvolvidas no espaço. Para que haja uma intensidade de usos dos espaços públicos é necessário que os estudos e projetos para esses espaços propiciem ambiências adequadas com condições confortáveis de lazer. Níveis de luz solar, sombra, temperatura, umidade, chuva, vento e ruído possuem forte influencia em nossa experiência de uso do ambiente urbano. Estes fenômenos incidem diretamente na qualidade do ambiente natural, do microclima urbano e na relação dos corpos em movimento com os elementos que compõem os espaços como pisos, colunas, bancos, postes, vegetação etc.. Portanto, os projetos de requalificação das praças poderiam ser mais adequados aos ambientes e aos usuários se pesquisas de qualidade ambiental e de conforto, de usos e dinâmicas culturais preexistentes tivessem um papel prioritário no planejamento, com a inserção de proteção as intempéries nas áreas de maior fluxo de pedestres,posicionando o mobiliário e equipamentos coletivos de forma a ganharem maior visibilidade e adequação às ambiências, implantação de vegetação apropriada perto das vias de maior fluxo diminuindo a intensidade dos ruídos,bem como nos locais de maior 237
Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Marcela Dimenstein
permanência, mudanças estruturais no sistema viário que assegurassem maior segurança aos pedestres e inibisse a circulação intensa de automóveis no entorno imediato. Tais medidas acentuariam a tranquilidade durante as atividades de exercício e contemplação nos locais de maior proximidade com as vias de maior tráfego. Referências ALEX, Sun.Projeto da Praça: convívio e exclusão no espaço público. São Paulo, Ed. Senac, 2008. ALMEIDA, Maria C. Espaços Públicos em João Pessoa (1889 – 1940): formas, usos e nomes. Dissertação de Mestrado. São Carlos, FAUUSP, 2006. BAUMAN, Zygmunt.Confiança e medo na cidade. – Rio de Janeiro, Editora Jorge Zahar, 2009. CORBETT, Nick. Transforming cities – Revival in the square. Londres: RIBA Enterprises Ltd., 2004. DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. – Rio de Janeiro. 5 Ed.,Rocco, 2007. DAVIS, Mike. Cidade de Quartzo: escavando o futuro em Los Angeles. São Paulo, Boitempo, 2009. DIEB, Marília de Azevedo. Áreas verdes públicas da cidade de João Pessoa: Diagnóstico e Perspectiva. Dissertação de Mestrado. João Pessoa, UFPB, 1999.
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A cidade e suas praças
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II Dinâmicas de exclusão e segregação socioespacial
CONDOMÍNIOS HORIZONTAIS FECHADOS EM JOÃO PESSOA comparação entre expectativas e a dinâmica cotidiana a partir dos casos do Cabo Branco Residence Privê e Vila Real Christiane Nicolau Marcela Dimenstein Patrícia Alonso Wylnna Vidal53 Introdução Nas últimas décadas, observa-se, no município de João Pessoa, a crescente e contínua expansão dos condomínios horizontais fechados, empreendimentos que se caracterizam, 53
Equipe integrante da pesquisa Interinstitucional envolvendo o Departamento de Arquitetura da Universidade Federal da Paraíba-UFPB e o Curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa – UNIPÊ, intitulada “O muro e a cidade: ‘guetificação’ em João Pessoa a partir dos condomínios fechados emergentes?” (2008-2011), sob a responsabilidade das professoras Msc. Patrícia Alonso (UFPB/UNIPÊ) e Msc. Wylnna Vidal (UFPB), com a participação das alunas Christiane Nicolau Rosendo Ferreira (PPGAU/UFPB) e Marcela Dimenstein (UFPB).
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Christiane Nicolau, et al
entre outros aspectos, pela ocupação de extensas glebas, cercadas por muros, com acesso controlado e marcados pelo isolamento e homogeneidade social. A sensação de insegurança e temor dos moradores das cidades face à violência crescente vem sendo apontada como uma das principais razões para a disseminação exitosa do modelo. João Pessoa conta atualmente com onze condomínios voltados para classes mais ricas, todos com alto padrão construtivo, oferta diversificada de equipamentos de lazer e segurança rigorosa. Merece atenção a maneira como eles vêm se agrupando, de modo quase contíguo, no setor dos bairros do Portal do Sol e Altiplano, onde estão localizados nove desses condomínios54. Na busca por melhor compreender esse modelo de morar contemporâneo e suas características e implicações locais, no presente artigo trataremos da análise de dois condomínios horizontais fechados da cidade de João Pessoa: o Condomínio Cabo Branco Residence Privê e o Condomínio Vila Real. A escolha se apoia inicialmente na percepção de uma série de similaridades verificadas entre os dois objetos – a localização 54 São eles: Cabo Branco Residence Privê (1998) e Vila Real (1999) – estes, com a maioria dos lotes já ocupados; Portal do Sol (2004), Boungainville (2004), Extremo Oriental (2005), Bosque das Orquídeas (2008), Bosque das Gameleiras (2008) e Villas do Farol (2008) – os seis ainda com poucas casas construídas; e Condominio Alta Vista, o mais novo da cidade, em etapa de finalização.
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Condomínio horizontais fechados em João Pessoa
em um mesmo setor da cidade, o porte do empreendimento, o grau de ocupação de seus lotes e seu padrão socioeconômico. Para além das afinidades, a questão repousava no esforço de identificação daqueles aspectos particulares de cada um dos condomínios. Para tanto, a análise foi mediada pela verificação dos aspectos morfológicos – configuração físico-espacial – por estudos de comportamento ambiental, pela análise visual e por instrumentos da percepção ambiental - aplicação de entrevistas. Escolhas e procedimentos metodológicos O crescimento do número de condomínios fechados reflete a alta aceitabilidade do modelo pelo mercado imobiliário. O apelo comercial associado a esses empreendimentos passa sempre pela valorização do aspecto da segurança, do conforto e da distinção proporcionados que lhe seriam inerentes. A análise que segue, em certa medida, busca confrontar esse conjunto prévio de expectativas com a avaliação de desempenho dos dois condomínios de alto padrão mais antigos da cidade. Para tanto, a análise se volta, em primeira instância, para leitura dos aspectos de estruturação configuracionais dos dois empreendimentos, buscando verificar o modelo do traçado e do parcelamento do solo, e as articulações entre os elementos físicos-espaciais constituintes – domínio do púbico e privado, relações de cheios e vazios, circulação e acessibilidade, entre outros, avaliando em que medida o modelo implantado se 245
Christiane Nicolau, et al
distingue do padrão de ocupação do solo verificado na cidade, fora dos muros. Foram consultados os processos de licenciamento de tais empreendimentos junto ao Arquivo Central da Prefeitura Municipal de João Pessoa, observandose os índices urbanísticos praticados – taxa de ocupação, índice de aproveitamento, percentuais de áreas verdes/ lazer/ lotes residenciais/ lotes comércio e/ou serviço e vias de circulação – bem como, os aspectos relativos ao desenho urbano – forma e inter-relação entre os diversos elementos constituintes. Complementando a análise morfológica e visando melhor compreender o comportamento do usuário e sua interação com o ambiente construído, foram feitas visitas de observação nos dois empreendimentos escolhidos. Fizeramse estudos de comportamento ambiental nas suas áreas de uso comum, análise visual da paisagem intramuros, e aplicação de questionários junto aos moradores sobre sua percepção e satisfação em relação à vida dentro do condomínio. Os procedimentos metodológicos adotados nos estudos de comportamento ambiental e na análise visual intramuros abrangeram, em cada condomínio, visitas para observação comportamental em dias e horários diversificados (dias de semana e sábados, no fim da tarde e pela manhã) e um exercício de análise visual do tipo visão serial (por um trajeto escolhido pelas ruas internas do condomínio). A observação comportamental foi do tipo direta, nos equipamentos principais de lazer/esportes (quadras, parquinhos, empraçamentos). Os 246
Condomínio horizontais fechados em João Pessoa
registros foram feitos com fotos, anotações, croquis e mapas de comportamento, de atividades e de fluxo. Na visão serial, o trajeto foi demarcado em mapa, e a paisagem, documentada em fotos e anotações textuais sequenciais. As sensações e emoções experimentadas durante o exercício também foram registradas pelas pesquisadoras. Por fim, realizou-se a aplicação de entrevista com parte dos moradores dos dois condomínios, visando mensurar sua percepção e o seu grau de satisfação em relação à vida intramuros, as motivações da opção pela moradia em condomínio fechados e o atendimento das expectativas iniciais, levando em consideração aspectos como segurança, infraestrutura, acessos, localização, equipamentos de uso coletivo para lazer e esportes, serviços e relações de vizinhança. Análise da morfologia Em linhas gerais, percebeu-se, nos modelos de projetos urbanísticos adotados nos condomínios horizontais de João Pessoa, a recorrência de um desenho urbano que pouco se distingue da lógica imobiliária praticada em loteamentos abertos, com predomínio do desenho em grelha, com lotes retangulares e enfileirados, conformando quadras regulares, decorrente da priorização de se projetar nos limites da rentabilidade máxima do solo, conforme o atendimento dos requisitos legais. A reprodução do modelo de ocupação 247
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amplamente verificado fora dos muros deixa no ar o descompasso entre um discurso publicitário apoiado na oferta de qualidade e distinção e a mera reprodução de um padrão exaustivamente praticado, agora cercado por muros perimetrais. Aprofundando a discussão e pelas razões já expostas anteriormente, discorreremos mais detidamente sobre os casos dos condomínios Cabo Branco Residence Privê e Vila Real. Os dois empreendimentos atendem aos requisitos estabelecidos na legislação urbanística pertinente. Oferecem lotes destinados à moradia, serviços e/ou comércio, além das áreas de uso comunitário e guarita de segurança com controle de acesso. Os muros que os circundam são altos, predominantemente opacos e vigiados tanto pela guarita, quanto por câmeras de vigilância estrategicamente distribuídas, além de receberem cercas elétricas. Esses elementos limitadores, barreira físicas claramente delimitadas, impedem a possibilidade de diálogo entre a estrutura intramuros e o contexto urbano extramuros. Os dois condomínios apresentam um traçado regular, malha viária hierarquizada – com vias de acesso com dimensões mais generosas e as de distribuição mais estreitas –, lotes de dimensões de 12 (doze) metros por 30 (trinta) metros, e os de esquina de 15 (quinze) por 30 (trinta) metros, semelhantes às praticadas em loteamentos abertos existentes em diversas áreas da cidade. Os recuos praticados seguem o dimensionamento estabelecido pela Legislação Urbanística Municipal, ou seja, são 248
Condomínio horizontais fechados em João Pessoa
pequenos e não apresentam nenhum diferencial qualitativo, quando comparados àqueles vistos em outras partes da urbe. Alguma distinção se restringe ao estabelecimento de certas regras para construção da área de serviço, limitação de altura e extensão dos muros internos e de altura do gabarito das edificações, revelando que esses empreendimentos ainda reproduzem a configuração de bairros residenciais tradicionais, a não ser por sua separação ostensiva do entorno urbano. A necessidade de separação implica uma homogeneização do espaço físico e social. Para Duarte (2006, p. 17), o resultado é um bairro de “iguais”, morando em casas parecidas e compartilhando uma mesma infraestrutura condominial que inclui itens de lazer, conforto e segurança 24 horas.
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Christiane Nicolau, et al Figura 01: Condomínio Vila Real. A – Guarita, B – Playground, C Salão de festa, D – Quadra esportiva, E – Área de preservação. O condomínio apresentam 06 quadras. Fonte: Google Earth, 2011.
Figura 02: Condomínio Cabo Branco Residence Privê. A – Guarita, B – Guarita de serviço, C – Salão de festas, D – Quadras esportivas, E – Área de preservação, F- Privê Shop, G – Padaria, H – Academia e I Pracinha. O condomínio apresenta 17 quadras. Fonte: Google Earth, 2011.
Os acessos aos dois condomínios se dão pelas guaritas. No caso do Condomínio Vila Real, os acessos do proprietário, do visitante e funcionários se dão pelo mesmo local, entretanto no Condomínio Cabo Branco Privê, existem duas guaritas diferentes: uma para proprietários e visitantes e outra para funcionários e para acesso de veículos e profissionais associados
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Condomínio horizontais fechados em João Pessoa
a realização de serviços em geral no interior do condomínio, transparecendo uma maior especialização e controle de fluxos. As residências existentes são de elevado padrão construtivo. Apesar da existência de uma área de lazer coletiva dentro do condomínio, via de regra cada casa apresenta sua própria área de lazer, muitas vezes em dimensões reduzidas, ocupando uma apertada faixa de recuo, refletindo uma postura de priorização da individualidade, resultando em um ambiente no qual as relações de vizinhança parecem pouco valorizadas. Isso curiosamente contrasta – no caso do Cabo Branco Residence Privê – com a norma condominial que proíbe a edificação de muros perimetrais entre as edificações, havendo permissão, dentro de certos limites, apenas para as áreas de serviço. A ausência de muros reduz a privacidade, uma sensação que é ampliada pela extrema proximidade das casas que ocupam lotes pouco generosos, com recuos igualmente exíguos.
Figura 03: Residência no Condomínio Vila Real e Cabo Branco Residence Privê. Fonte: Arquivo da pesquisa.
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As calçadas, que são elementos de domínio público, também deixam transparecer alguns conflitos. Em alguns trechos os proprietários das residências as tratam como elementos privados, acomodando jarros de plantas ou mesmo estendendo os seus jardins até o limite com a rua. Outros problemas identificados decorrem da própria estruturação do condomínio, no momento em que, por exemplo, implanta postes de iluminação em meio ao passeio. São atitudes que dificultam a circulação de pedestres e novamente refletem a pouca valorização do espaço de uso coletivo. O mobiliário urbano é escasso, praticamente inexiste ao longo das ruas e calçadas, restringindo-se às áreas de lazer. Durante as observações verificou-se que apesar de constituírem o item de grande apelo nas propagandas de vendas, os espaços de lazer são pouco utilizados no cotidiano dos condomínios.
Figura 04: Quadra de esporte no Condomínio Vila Real e no Cabo Branco Residence Privê. Fonte: Arquivo da pesquisa.
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Condomínio horizontais fechados em João Pessoa
Em termos absolutos, as áreas verdes dos dois condomínios apresentam dimensões generosas, no entanto, estão concentradas em bolsões situados tanto nos limites laterais, quanto de fundos dos condomínios, pouco contribuindo para a qualidade de seu desenho urbano, da paisagem construída e do conforto de seus habitantes. A planta da pré-análise do Condomínio Vila Real, encontrada nos arquivos da Prefeitura Municipal, apresenta uma proposta de configuração espacial bastante diferente da configuração executada. Verifica-se a existência de uma série de acessos independentes na face lateral, a de maior dimensão do lote, conformando agrupamentos de casas. Não há um sistema viário interligando o todo, são propostas ruas de acesso restrito a cada conjunto de edificações, inviabilizando a existência de um acesso comum e controlado. A cada agrupamento de casas constava uma porção de área verde, fracionada e intercalada com o desenho dos lotes, de modo que todos apresentavam alguma face voltada para essas porções verdes. O desenho que de fato foi implantado foi decisivo para conformação do condomínio fechado, assim, o desenho das quadras e o sistema viário executados estão mais bem articulados, entretanto, como já argumentamos, a solução das áreas verdes concentradas em bolsões periféricos é pobre e compromete sua plena utilização.
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Figura 05: Planta do Condomínio Vila Real. Fonte: Arquivo central da Prefeitura Municipal de João Pessoa.
Já a planta existente no Arquivo Central da Prefeitura do Condomínio Cabo Branco Residence Privê apresenta apenas a delimitação do terreno destinado à construção do empreendimento.
Figura 06: Situação Proposta do Condomínio Cabo Branco Residence Privê. Fonte: Arquivo central da Prefeitura Municipal de João Pessoa.
Percepção e concentrações e fluxos
comportamento
ambiental:
À primeira vista, os espaços interiores dos dois condomínios transmitem a impressão de ordem, segurança e 254
Condomínio horizontais fechados em João Pessoa
quietude, com casas de alto padrão construtivo e ruas tranquilas. No entanto, percebeu-se também o pouco uso e precária manutenção dos equipamentos e áreas coletivas de lazer e esportes, além da desertificação das calçadas e ruas em geral, o que demonstra não haver valorização do coletivo, nem relações de vizinhança consolidadas dentro dos condomínios estudados. Durante as observações, no Condomínio Cabo Branco Residence Privê, havia crianças brincando, andando de bicicleta e jogando bola nas ruas. Viam-se também brinquedos deixados nas ruas, calçadas e jardins abertos, o que é um indicativo de que ali não há, internamente, preocupações com furtos. Verificou-se que a presença de adultos nas áreas de uso coletivo era menor que a de crianças – registraram-se pessoas caminhando ou em bicicletas. A padaria e a loja Privêshop são os pontos de encontro do condomínio, tanto por estarem localizados na rua principal, onde o fluxo de pessoas é maior, como por oferecerem alguns serviços que são escassos nas imediações. O fato de existir uma área comercial no Cabo Branco Residence Privê contribui para a circulação de pessoas nas suas ruas, mas, ainda assim, muitos dos moradores preferem fazer os trajetos dentro do condomínio em carro, ou mesmo solicitar algum serviço com entrega em domicílio. Já no Condomínio Vila Real, apesar da mesma atmosfera de tranquilidade, pouquíssima movimentação de pessoas foi vista nas ruas. Na maioria das vezes, os moradores eram vistos quando estavam cuidando dos seus jardins ou entrando nos seus 255
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automóveis para sair do condomínio.Houve visitas em que apenas os sons advindos de aparelhos de televisão das casas e a visão dos carros estacionados nas garagens indicavam a presença de moradores, já que as varandas, jardins, calçadas e ruas permaneciam desertos. A inexistência de comércios ou serviços intramuros certamente contribui para tal desertificação. Ademais, a área de lazer também parece não ser muito utilizada. Essa reclusão dos moradores em suas casas confere com a afirmação de alguns entrevistados de que a relação com seus vizinhos é superficial - não existe espírito de comunidade no condomínio, as pessoas não se conhecem, não se veem, não se encontram com frequência, limitando-se a cumprimentos formais no dia a dia. Caminhando-se pelos condomínios, percebe-se que eles são muito extensos. As distâncias percorridas são grandes, o que desfavorece o uso pelo pedestre e, consequentemente, prejudica as interações entre as pessoas, tornando a paisagem erma e o espaço, sem vitalidade.
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Figura 07: Mapa de fluxo e concentrações de pessoas do Condomínio Vila Real. Fonte: Arquivo da pesquisa. Editado por Marcela Dimenstein
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Figura 08: Mapa de fluxo e concentrações de pessoas do Condomínio Cabo Branco Residence Privê. Fonte: Arquivo da pesquisa. Editado por Marcela Dimenstein
Ambos os condomínios apresentam variedade de estilos das casas. Algumas são completamente alheias às condições climáticas locais, remetendo a uma arquitetura cheia de estrangeirismos, como por exemplo, com referências a chalés de cobertas excessivamente inclinadas, outras de forte inspiração historicista, bem tradicionais, que remetem à imagem dos subúrbios americanos. Naturalmente, há aquelas bastante singelas, lembrando casas de praia, e ainda outras que adotam uma linguagem mais contemporânea, a de casas “brancas”,
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Condomínio horizontais fechados em João Pessoa
geometrizadas e com muitas esquadrias em vidro expostas à insolação, negligenciando os rigores da intensidade solar peculiar à cidade. Em geral, as casas são grandes e abrigam no mínimo dois carros na garagem, mas algumas chegam a ter seis carros.
Figura 09: Residência no Condomínio Vila Real e Cabo Branco Residence Privê. Fonte: Arquivo da pesquisa.
Apesar da segurança nos condomínios fechados ser uma das características mais enfatizadas nas propagandas, para alguns, os sistemas disponíveis parecem não ser o suficiente. 259
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Isso foi constatado ao observarem-se residências que tinham suas próprias câmeras de segurança e portões eletrônicos fechando a garagem. No entanto, os moradores entrevistados demonstraram-se satisfeitos com o nível de segurança dos empreendimentos onde vivem (a maioria avaliou a segurança com ótima ou boa).
Figura 10: Residências no Condomínio Vila Real. Fonte: Arquivo da pesquisa.
Nas entrevistas, nos dois empreendimentos, os motivos mais alegados para a opção por viver em um condomínio foram segurança, tranquilidade e o desejo de morar “em casa”, ou seja, em uma residência unifamiliar. A estrutura de lazer foi majoritariamente avaliada como boa ou regular no Cabo Branco Residence Privê, e como regular ou péssima no Vila Real. Curiosamente, em ambos, a grande maioria dos entrevistados afirmou não utilizar nunca tal estrutura. A localização de ambos os condomínios foi avaliada positivamente (maioria das
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Condomínio horizontais fechados em João Pessoa
respostas: boa ou ótima), mas, os condôminos se queixaram da escassez de serviços e da deficiência do transporte público.
Figura 11: Privêshop e padaria do Condimínio Cabo Branco Privê. Fonte: Arquivo da pesquisa.
Conclusão O condomínio horizontal fechado não é um fenômeno recente, mas segue em expansão e é amplamente aceito. A publicidade imobiliária explora fortemente a ideia de que tais modelos podem suprir a lacuna da segurança e proporcionar lazer, conforto, distinção e melhor qualidade de vida, o que, na prática, tem sido traduzido na disponibilização de equipamentos variados de lazer e esportes, de dispositivos de controle de acesso, de altos muros com cercas elétricas e no monitoramento 24hs. Visando melhor compreender os modelos praticados em João Pessoa, voltou-se atenção detalhada aos condomínios Vila Real e Cabo Branco Residence Privê. A análise da morfologia 261
Christiane Nicolau, et al
revela que o desenho em ambos os casos pouco difere do modelo de parcelamento recorrente em vários setores da cidade, praticando o mesmo padrão de dimensionamento de lote e os mesmo índices urbanísticos, induzindo à construção de uma paisagem urbana que só não se confunde com o entorno em virtude da ostensiva presença dos muros periféricos. Os estudos apoiados nas visitas in loco, na percepção espacial e na aplicação de entrevista evidenciou aspectos bastante interessantes. A observação revelou o baixo índice de utilização das áreas de lazer e de uso coletivo, em descompasso com o forte apelo tão característico nos anúncios publicitários. Na prática, verificou-se a pouca valorização dos espaços de uso comum e o baixo índice de interação entre os vizinhos. Com as entrevistas, percebe-se que, no caso de João Pessoa, o principal anseio que os condomínios conseguem suprir é o desejo de “morar em casa” – as pessoas declararam não sentir segurança em morar em residências unifamiliares “isoladas”, mescladas ao entorno urbano. Nesse sentido, o ambiente segregado, dentro dos muros, surge como alternativa para atender às expectativas de garantir tranquilidade e segurança. Atento às demandas do mercado, o setor imobiliário explora amplamente a ideia de que o condomínio horizontal fechado é a melhor resposta para quem deseja morar em uma casa com segurança. Contudo, a configuração do condomínio impõe aos moradores o monitoramento permanente, o controle 262
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sobre o ir e vir e os muros opressores com cercas elétricas, itens que, naturalmente, não estampam os anúncios publicitários. No fim das contas a estruturação de segurança desses empreendimentos funciona às avessas, impondo um controle que incide mais diretamente sobre os seus moradores e visitantes que propriamente sobre os outros, os de fora. Resta refletir sobre a abrangência e eficiência desse modelo de segurança. Fica a dúvida: afinal, nesses espaços, quem é realmente vigiado? Referências ABRAHÃO, Sérgio. Luis (2008). Espaço público: Do urbano ao político. São Paulo, Annablume. BAUMAN, Zygmunt (2009). Confiança e Medo na cidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar. BECKER, Débora (2005). Condomínios Horizontais Fechados: Avaliação de Desempenho interno e Impacto Físico Espacial no Espaço Urbano. Dissertação de mestrado. Rio Grande do Sul, UFRGS. CALDEIRA, Teresa Pires do Rio (2000). Cidade de Muros – Crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Edusp. DEL RIO, Vincente (1990). Introdução ao Desenho Urbano no processo de planejamento. São Paulo, Pini, 263
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DUARTE, Cristovão Fernandes (2006). Forma e movimento. Rio de Janeiro, PROURB, 2006. GEHL, J. La Humanización del Espacio Urbano: La vida social entrelos edificios. Barcelona: Reverté, 2006.
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ENTRE MUROS: as áreas de uso coletivo dos condomínios residenciais fechados Christiane Nicolau Rosendo Ferreira Jovanka Baracuhy C. Scocuglia Introdução As transformações que atingem as cidades exigem cada vez mais a atenção dos estudiosos no sentido de abordar de forma crítica os inúmeros problemas relacionados aos processos de urbanização. O crescimento acelerado das cidades e a complexidade dos sistemas urbanos, com acentuação dos problemas socioespaciais, vêm acompanhados da insegurança e do medo que alimentados pelo marketing da especulação imobiliária alteram de forma intensa os modos de vida e a sociabilidade. Falamos aqui mais especificamente das mudanças fundamentais no espaço público e nas formas de moradia, em especial, alterando espaços anteriormente caracterizados por aberturas, fluidez e coexistência das diferenças. E, neste sentido, destacamos os condomínios fechados para as classes médias e altas, nos quais identificamos uma clara intenção de autossegregação e exclusão/afastamento do Outro, do diferente, pela presença dos muros altos, protegidos com
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fiação elétrica e câmeras, mudando a relação com a rua e seu potencial enquanto espaço público. De fato, o condomínio fechado altera a existência entre o público e o privado, a partir do fechamento de espaços potencialmente públicos como ruas, calçadas e praças. Entretanto, esse tipo de moradia vem tendo um crescimento acelerado e a grande aceitação por parte da população evidencia, em parte, a ampliação de uma cultura do isolamento e do medo. Por ocuparem extensas áreas urbanas e seu território ser demarcado e isolado por muros, o condomínio fechado interrompe a continuidade da malha urbana alterando o equilíbrio entre ruas, quadras e lotes. Fragiliza, assim, o caráter do espaço coletivo como condensador das heterogeneidades, diversidade de usos e das vivências, acarretando uma perda das funções e significados urbanos primordiais. Não há espaços que estejam mais intimamente ligados ao sentido de cidade do que as ruas, praças, calçadas, parques públicos etc., e a perda da delimitação clara entre público e privado acaba por enfraquecer o próprio sentido de cidade. Os condomínios fechados criam em seu interior vários espaços coletivos, de uso exclusivo dos condôminos construídos para a realização de atividades funcionais, sociais, de lazer e recreação. A noção de espaço público ou interação social é vivida no espaço intramuros por grupos sociais homogêneos. Este texto é parte das reflexões preliminares desenvolvidas como fundamento para a elaboração de uma 266
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dissertação de mestrado em Arquitetura e Urbanismo junto ao PPGAU-UFPB na qual discutimos os condomínios horizontais fechados quanto à morfologia e organização socioespacial, observando as regras de planejamento, as formas, usos e comportamentos dos moradores procurando contribuir no processo de revisão e avaliação dos efeitos desta forma de moradia e organização espacial na dinâmica urbana e nas sociabilidades contemporâneas. As pesquisas empíricas que alimentam e exemplificam as questões que apresentamos neste texto foram realizadas no Bairro Portal do Sol, zona sul da cidade de João Pessoa, onde foram construídos, nas últimas décadas, sete condomínios horizontais fechados, cada um com suas grandes áreas de lazer, resultando em espaços de moradia e convívio social para um grupo seleto de pessoas. Essas áreas de lazer parecem grandes clubes com espaços gourmet, piscinas, quadras, parques infantis, pistas de Cooper, saunas, academias etc. Partimos da hipótese de que estas áreas comuns são pouco utilizadas indicando que são mais uma questão de status do que uma condição para uma vida cotidiana mais gratificante. Nestes termos evidenciamos a autossegregação das elites paraibanas enquanto fenômeno contemporâneo que afeta as relações sociais, as formas de moradia, consumo e lazer na cidade de João Pessoa.
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A autossegregação como fenômeno contemporâneo O condomínio é uma tipologia residencial em expansão principalmente nas grandes metrópoles. Cada vez mais a palavra condomínio tem feito parte do cotidiano das pessoas e geralmente veiculados por propagandas, panfletos publicitários e seções de imóveis nos jornais. Devido a essa constante expansão, o crescimento do número de condomínios acaba gerando impactos sociais e urbanos além de acarretar um processo de fragmentação e exclusão socioespacial. Um condomínio pode ser constituído de um edifício, um conjunto de edifícios, edifícios e casas unifamiliares ou ainda um conjunto de casas unifamiliares. E de maneira geral, está sujeito a dois regimes de propriedade: a exclusiva e a comum, onde a propriedade exclusiva é de uso privado do proprietário ou inquilino e a comum são as demais áreas de uso coletivo de todos os moradores. Existem ainda os condomínios que possuem não apenas o uso residencial, mas também o uso comercial. Em João Pessoa, até o ano de 2009, foram encontradas quarenta e duas ocupações que apresentam caráter residencial e de isolamento com relação à cidade, além da presença de extensos muros e controle de acesso por guaritas. Os condomínios horizontais fechados, no município de João Pessoa vêm ganhando mais espaço a cada ano, se concentrando principalmente em áreas periféricas e de baixo valor imobiliário.
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Figura 01: Mapa da cidade de João Pessoa com indicação dos condomínios encontrados durante o mapeamento. Fonte: Prefeitura de João Pessoa e editado por Marcela Dimenstein.
Apresentaremos, na sequência, três condomínios residenciais do tipo horizontal sendo um deles com inserção de área comercial. O bairro Portal do Sol, zona sul da cidade de João Pessoa, é pouco urbanizado, escassamente provido de infraestrutura urbana, com grandes vazios e baixa densidade, inseridos em uma zona periférica da cidade, aumentando a dependência do automóvel.
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Figura 02: Delimitação territorial do bairro Portal do Sol. Fonte: Google earth editado por Julio Gonçalves. Ago/2011.
A opção por estudar este bairro veio do reconhecimento, a partir de pesquisa de campo, do processo deprodução crescente do espaço urbano e da valorização imobiliária por meio do registro dos condomínios horizontais fechados implantados a despeito da extensa área de vazios urbanos neste bairro. De acordo com o censo do IBGE (2010), a população urbana de João Pessoa soma 720.789 habitantes. No bairro Portal do Sol, em 2000, o censo registrou 1.878 habitantes e em 2010 esse número aumentou para 4.136 habitantes. Do ano 2000 para o ano de 2010, foram implantados setecondomínios horizontais fechados no Bairro Portal do Sol. Assim, a densidade demográfica, segundo o IBGE (2010) é de 793,12 hab/km².
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Assim, o Bairro Portal do Sol possui sete condomínios horizontais fechados e um condomínio vertical ainda em fase de acabamento, direcionados às classes média e alta. Os condomínios horizontais são: Cabo Branco Residence Privê (1998), Extremo Oriental (2005), Porta do Sol (2003), Bougainville (2004), Vilas do Farol (2008), Bosque das Orquídeas (2007) e Bosque das Gameleiras (2007); e o condomínio vertical Jardim Cabo Branco (2009). O condomínio fechado é um fenômeno contemporâneo de autossegregação das elites cujas raízes podem ser identificadas no modelo norte-americano das gated communities. Estas últimas surgiram nos Estados Unidos na década de 1950, influenciadas pelas propostas do New Urbanism, um movimento que, nessa época, buscava repensar os subúrbios americanos em expansão. Tudo indica que os primeiros registros de estudos a respeito dos condomínios fechados como forma de moradia, se expandindo por diversas regiões e países, tiveram início na década de 1980. No Brasil, o crescimento dos condomínios residenciais se deu na década de 1970 e começaram a aparecer principalmente nas periferias das cidades, originando-se da procura de moradores urbanos por espaços de lazer e serviços para finais de semana. Este fenômeno em João Pessoa data da década de 1990 e apesar de um pouco tardio com relação às outras capitais brasileiras, essa nova modalidade residencial tem
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movimentado o mercado imobiliário da cidade, se tornando alvo de investimentos de grandes construtoras. A busca por segurança consiste no motivo maior para o sucesso dos condomínios. O medo associado ao aumento da violência urbana é um fator que impulsiona a procura deste tipo de moradia, uma vez que, além da oferta de lazer e serviços, também oferece todo um aparato de serviços de segurança. A ausência de parâmetros urbanísticos para construção de condomínios fechados em João Pessoa Destacamos, como um dos resultados das pesquisas que realizamos sobre esta forma de moradia em João Pessoa, que a construção de condomínios fechados ainda acontece com a ausência de parâmetros urbanísticos específicos. Verificamos que o Código de Urbanismo da cidade de João Pessoa, aprovado em 1975, se mostra defasado com relação à dinâmica urbana atual. Somente por Decreto Lei de 2005, o condomínio horizontal foi reconhecido como parte da cidade focalizando a faixa Altiplano - Cabo Branco, como classifica o código, mas, ainda sem especificar diretrizes de ocupação, como, por exemplo: afastamentos, integração com a malha urbana, alternativas para muros e espaços públicos. Com relação ao uso e parcelamento do solo, inicialmente não havia a tipologia Condomínio Fechado, havia apenas a denominação R4 multifamiliar. Na tabela de Zoneamento, que determina o uso R4 como permitido, não há indicação de parâmetros mínimos de 272
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implantação, e sim a necessidade de consultar o anexo 9, porém no referido anexo não constam tais informações. Em razão desta ausência de parâmetros legislativos claros e precisos, os primeiros condomínios fechados da cidade de João Pessoa foram registrados como loteamentos, a exemplo do Condomínio Cabo Branco Residence Privê, datado de 1999. Somente no ano de 2009, a síndica do referido condomínio juntamente com a engenheira responsável entraram com o pedido de remembramento, onde o condomínio passou a ser reconhecido como tal. Áreas de uso coletivo em três condomínios fechados: Cabo Branco Residence Privê, Porta do Sol e Bosque das Orquídeas Os condomínios fechados Cabo Branco Residence Privê, Porta do Sol e Bosque das Orquídeas, localizam-se no Bairro Portal do Sol, em João Pessoa, retratam a expansão dessa tipologia habitacional e são paradigmáticos dos vários empreendimentos construídos e em construção. Importa analisar as áreas coletivas destes condomínios fechamos porque identificamos haver uma carência na literatura sobre o assunto relativa à análise do desempenho interno desses empreendimentos do ponto de vista urbanístico com foco nos espaços de uso coletivo. Para escolha dos condomínios fechados a serem analisados sob o ponto de vista do desempenho interno das áreas 273
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de uso coletivo foram realizadas, inicialmente, leituras das geoimagens da cidade, obtidas no site oficial da Prefeitura Municipal de João Pessoa, quando pudemos identificar o Portal do Sol como o bairro com maior concentração de condomínios horizontais fechados. Após a leitura e mapeamento dos condomínios horizontais fechados, a escolha dos três condomínios se deu por diferentes motivos: o condomínio Cabo Branco Residence Privê foi escolhido por ser o mais antigo do bairro e o mais habitado; o condomínio Porta do Sol porque está inserido numa área verde que foi completamente devastada para a implantação do condomínio; e o Bosque das Orquídeas por ser um dos condomínios que compõe a cidade dos bosques e que passou por uma interferência da Prefeitura Municipal, o que mostra o reconhecimento, por parte da administração da cidade, do impacto desses empreendimentos na malha urbana. A escolha também se deu por algumas semelhanças: todos estão inseridos no mesmo bairro relativamente periférico da cidade, atualmente, em processo de expansão pela presença dos condomínios e também de empreendimentos de grande porte como a Estação Ciência (projeto de Oscar Niemeyer), o Centro de Convenções (em construção) para citar apenas alguns exemplos mais destacados, todos podendo ser considerados de alto padrão ou de impacto socioambiental. As barreiras físicas mais impactantes à paisagem urbana são os muros que se configuram como barreiras funcionais e visuais, impedindo a integração entre o interior do 274
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empreendimento e as ruas de entorno. Contraditoriamente, o Portal do Sol é um bairro ainda pouco dotado de infraestrutura, porém o interior de cada empreendimento atende aos requisitos de infraestrutura que os torna “independentes” da cidade. O Condomínio horizontal Cabo Branco Residence Privê teve seu processo de aprovação em 20 de janeiro de 1998 e possui 33,75 ha. Parte da área de lazer se localiza na extremidade esquerda do condomínio e apenas um playground se localiza no lado direito do mesmo. A área de lazer é composta por campo de futebol gramado, duas quadras de vôlei de areia, uma quadra de tênis, uma quadra de squash e uma reserva ambiental onde o seu entorno é utilizado para caminhadas e passeios de bicicleta. O playground, localizado na outra extremidade do condomínio é circundado por grades e portão, e há uma reserva ambiental dentro do condomínio utilizada para caminhadas. O salão de festas se localiza na parte frontal do condomínio, junto ao gradil de proteção da entrada. Existe ainda um espaço de praça construído pelos próprios moradores após a construção de suas residências, é uma área pavimentada e gramada, com bancos, postes pequenos de iluminação e estrutura de madeira e telha cerâmica. O condomínio Porta do Sol teve seu processo aprovado em 01 de agosto de 2003 e possui uma área de 40.261,91 m². A área de lazer é composta por uma quadra poliesportiva e uma quadra de tênis localizados na frente do condomínio, ao lado do salão de festas e ainda um parquinho, próximo ao muro lateral. 275
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Diferente do Cabo Branco Residence Privê, no condomínio Porta do Sol o playground é aberto, podendo ser utilizado a qualquer hora do dia. A última área de lazer analisada neste trabalho está inserida no condomínio Bosque das Orquídeas, com uma área total de 420.000,00 m². A área de lazer do condomínio Bosque das Orquídeas possui clube social: estar, circulação, salão de jogos, cozinha, despensa, terraço externo e pátio de serviço; espaço gourmet, kids club: terraço, salão, copa, lavabo, piscina kids, piscina baby, playground; clube esportivo: terraço de acesso, vestiários, sauna, ducha, depósito, piscina de hidromassagem, piscina com raia e academia; quadras poliesportivas, quadra de tênis, campo de futebol society, trilha ecológica e praça de convivência. Passaremos a seguir a analisar as características próprias de cada morfologia básica, segundo classificação de E. Kohlsdorf (1985, p.162). Estas morfologias foram examinadas com o auxílio de categorias de análise do espaço partindo de configurações necessariamente ligadas a aspectos estruturais de uso e apropriação. São eles: sítio físico, planta baixa e a estrutura interna do espaço. Sobre o sítio físico, o contexto do bairro para a construção dos condomínios fechados, segundo as ações transformadoras características de cada quadro de ocupação se incorpora à atual paisagem urbana. Ainda existem vestígios da 276
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paisagem urbana e da morfologia anterior, e estes vestígios podem ser vistos ao circular pelo bairro. Provavelmente, devido à distância do aglomerado urbano, muitas medidas urbanísticas ainda não foram realizadas, como por exemplo, a infraestrutura básica prevista pelo Código de Urbanismo. Uma das características mais marcantes dos condomínios horizontais fechados, não apenas da cidade de João Pessoa, mas do Brasil e do mundo é o cuidado quanto à escolha do sítio, já que esse tipo de empreendimento requer uma extensa área para implantação. Com isso, os condomínios residenciais fechados são geralmente implantados em áreas periféricas da cidade, muitas vezes pouco adensadas e urbanizadas e, consequentemente, de baixo custo. Além disso, os condomínios horizontais fechados têm seu território demarcado por muros com mais de três metros de altura e com cerca elétrica em toda extensão. Para Lynch (1997, p. 52) esses muros são limites, ou barreiras mais ou menos penetráveis. O parcelamento do solo é feito respeitando a topografia existente. Quando existe vegetação natural, apenas alguns condomínios a preservam parcialmente, outros, não preservam nada, replantando algumas árvores após o parcelamento do solo para atender aos 5% de área verde determinado pelo Código de Urbanismo. No caso dos três condomínios analisados, todos se localizam em área periférica da cidade de João Pessoa e seus limites são sempre barreiras reais, ou seja, muros com mais de
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três metros de altura e não havia elementos de fácil transposição física. De acordo com a planta baixa, os condomínios horizontais fechados apresentam tipos semelhantes, explicadas por um mesmo processo de produção (KOHLSDORF, 1985, p.172): regularidade na malha, disposição dos lotes, área reservada para lazer, um eixo de acesso, etc. Uma característica do parcelamento do solo desse tipo de empreendimento é o maior aproveitamento dos espaços para os lotes, já que esse modelo de habitação visa principalmente o lucro, com isso, as residências ficam muito próximas uma das outras tirando dos moradores a privacidade e impondo uma relação de vizinhança. As vias comparecem com funções específicas de deslocamentos e no caso dos condomínios horizontais fechados configuram-se como superfícies muito próximas das edificações. De acordo com Lynch (1997, p.52), as vias são os canais de circulação ao longo dos quais os habitantes observam-na à medida que se locomovem por ela. No condomínio Cabo Branco Residence Privê, as pessoas dividem o espaço das ruas com os carros pela ausência de calçadas nas residências ou pela presença de calçadas com obstáculos. Para o estudo da organização socioespacial, foram estudados os comportamentos dos moradores nos espaços de uso coletivo. J. Gehl (2006, p. 17) afirma haver atividades exteriores realizadas no dia a dia que influenciam uma série de
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condicionantes. O autor descreve um conjunto de atividades realizadas no espaço urbano e as condições físicas que influenciam essas atividades, classificando-as em três categorias: atividades necessárias, opcionais e sociais. Observando os condomínios segundo estas atividades, foram identificados comportamentos semelhantes nos três condomínios, indicando que os moradores têm rotinas e estilos de vida semelhantes, ou até mesmo que a moradia no condomínio fechado influencia no estilo de vida. Nos condomínios horizontais fechados aqui estudados, com exceção daquele que tem área comercial, a as atividades necessárias são realizadas com o auxílio do veículo o que dificulta as relações sociais no espaço. Essas atividades acontecem com maior intensidade no começo da manhã e no início da noite. Nos horários entre seis e oito horas da manhã as ruas ficam mais movimentas pelas saídas de veículos, circulação de ônibus escolares, saída de pedestres do condomínio para a parada de ônibus e ainda a entrada de empregadas, pedreiros, jardineiros e demais funcionários. As atividades opcionais são aquelas que se participa se existir o desejo de fazê-la ou se o tempo e o lugar permitirem, ou seja, estas atividades só se realizam quando os condicionantes exteriores são favoráveis. Esse tipo de atividade pode ser identificado entre os moradores que caminham pelas ruas do condomínio com seus filhos ou cachorros, que praticam
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corrida como atividade física regular, que levam seus filhos ao parquinho, que se dirigem a piscina ou academia de ginástica. As atividades sociais são todas aquelas que dependem da presença de outras pessoas. Acontecem de maneira espontânea como consequência direta da presença de pessoas no mesmo espaço e variam de acordo com o contexto que se produz. Nos condomínios analisados, esse tipo de atividade foi percebido, sobretudo, entre crianças e adolescentes que utilizam as ruas para andar de bicicleta e jogar bola. Entre os adultos, esse tipo de atividade foi mais identificado no condomínio Cabo Branco Residence Privê, por ser o único com área comercial, o que parece dinamizar e facilitar o encontro entre os moradores. De acordo com I. Goffman (2010) é através da observação dos ambientes e seus praticantes que nos tornamos mais conscientes do comportamento das pessoas em lugares públicos. Regras de conduta em ruas, parques, restaurantes, teatros, lojas, pistas de dança, sala de reuniões e outros lugares que concentram pessoas, dizem muito sobre as formas de organização social. Um ato pode ser apropriado ou não,dependo de como um determinado grupo social o define. Tende a existir uma concordância entre o significado dos comportamentos que são vistos e os que deveriam ser mostrados. E, assim, o entendimento da linguagem do corpo é uma das razões para chamarmos um grupo de indivíduos de sociedade.
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Configuração horizontais fechados
socioespacial
dos
condomínios
A cidade nos ensina a lidar com a diversidade, conviver com estranhos já que se desenvolve dentro de uma lógica de heterogeneidade e ela mesma nos ensina como viver com essa diversidade, já que nela se constrói a identidade do espaço urbano. Entretanto, a experiência cotidiana na cidade contemporânea é complexa e as nossas análises apontam para contradições na ocupação e uso de espaços de forma segregada em detrimento do caráter público e da ampliação dos espaços de convivência coletiva. A erosão da vida pública significa o abandono do espaço público que é destinado mais à passagem do que à permanência, sendo a violência urbana o principal fator que tem levado ao fechamento de espaços públicos. Atualmente, também experimentamos uma facilidade de movimentação desconhecida de qualquer civilização urbana anterior à nossa (SENNETT, 1988, p.28): o automóvel particular, que torna o espaço da rua estressante e carente de urbanidade. Edifícios especializados em atividades oferecidas ao público surgem para atender o novo estilo de vida que separa certas práticas sociais do âmbito da vida pública, como por exemplo, teatros, estádios, mercados, etc. Na história das cidades, diferentes sociedades produziram seus respectivos espaços públicos (DUARTE, 2006, p.47), mas também criaram 281
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os modos de morar confinados, como as cidadelas, as vilas operárias, conjuntos de habitação social, subúrbios-jardins e condomínios fechados que são expressões físico-territoriais da segregação social (SOUZA, 2008, p.99) e das diversas separações que marcam as cidades atuais. Assim, um número cada vez maior de cidades tem se caracterizado por enclaves e diversas situações de isolamento onde as funções da cidade são agora interiorizadas. No livro Cidade de Muros, Teresa Caldeira afirma que: (...) as transformações recentes estão gerando espaços nos quais os diferentes grupos sociais estão muitas vezes próximos, mas estão separados por muros e tecnologias de segurança, e tendem a não circular ou interagir em áreas comuns. O principal instrumento desse novo padrão de segregação espacial é o que chamo de “enclaves fortificados”. Trata-se de espaços fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento (CALDEIRA, 2000, p.211).
A versão desses espaços segregados que mais vem se popularizando são os condomínios residenciais, valorizado pelos empreendedores e cada vez mais aceito pela população. Os condomínios fechados oferecem no seu interior uma série de equipamentos de uso coletivo acessível apenas aos moradores. Os espaços de uso coletivo parecem desempenhar um papel fundamental na vida das pessoas que moram em condomínio. Esses espaços possibilitam as mais diversas atividades de socialização à medida que oferecem as mais diversas opções de lazer, se tornando uma das principais razões para as pessoas optarem por esse tipo de empreendimento. 282
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Com a chegada dos condomínios fechados ao Brasil e a grande aceitação por parte da população, muitos estudos acadêmicos foram produzidos abordando temas como a segregação, a relação dos condomínios com a cidade, os modos de vida, os agentes produtores do espaço urbano, etc. Esse fenômeno chamou a atenção de diversas áreas, por exemplo, a arquitetura, a sociologia, a antropologia e a geografia. Uma das maiores dificuldades desses estudos que procuram entender a dinâmica interna dos condomínios é a dificuldade de adentrar no espaço e conseguir informações junto à administração do empreendimento. Mesmo assim, trazem algumas interpretações correntes dos condomínios, tais como, por exemplo, homogeneidade, segurança e fuga da cidade. Durante o mês de julho de 2011, foi realizada a pesquisa de campo com o intuito de observar o interior dos três condomínios fechados focos desta pesquisa. As observações de campo tiveram duração de uma hora cada dia e nesse tempo duas análises básicas foram produzidas de acordo com Lynch (1997, p.18): 1. foram coletados dados quanto ao espaço físico; 2. o número de pedestres que circularam pelas ruas e áreas de lazer durante a pesquisa. Posteriormente, foram feitas outras visitas para aplicação de questionários com uma amostra de 20% dos moradores, com o objetivo de saber suas próprias visões do meio em que vivem e também sobre a convivência com outros moradores.
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Dos três condomínios analisados, apenas o Condomínio Cabo Branco Residence Privê possui alguns lotes destinados a atividades comerciais. Os outros dois condomínios estudados são predominantemente residenciais. As unidades habitacionais estão dispostas lado a lado, formando as quadras e a construção de muros ao redor das residências segue as exigências específicas de cada condomínio, ou seja, no Cabo Branco Residence Privê só é permitido a construção de muros atrás das residências para esconder roupas penduradas no varal. No caso dos condomínios Porta do Sol e Bosque das Orquídeas, é permitido construir muros nas laterais e fundos da residência respeitando apenas o recuo frontal de cinco metros, o que acaba contribuindo para uma maior individualidade dos moradores nas suas residências. O número de lotes dentro da área total de cada condomínio pode ser considerado grande e desconfortável pelo número de casas, pelo gabarito de construção e a pouca distância entre esses lotes. Nos três condomínios, o recuo lateral é de dois metros comprometendo a ventilação e a privacidade entre as residências. A densidade pode estar diretamente ligada a um maior aproveitamento do espaço para a demarcação de um maior número possível de lotes visando prioritariamente o lucro e pode até ser bem aceito por pessoas que não tem a vivência do condomínio fechado, mas para os moradores, o quesito
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privacidade é um ponto forte que todos vão se adequando ao espaço da melhor maneira possível. Para muitos estudiosos a respeito das razões que levam famílias a optarem pelo condomínio fechado, a segurança é uma das primeiras razões. Porém, segundo Caldeira (2000, p.266), pelo menos dez anos antes do crime violento aumentar e se tornar uma das principais preocupações dos moradores de São Paulo, a insegurança da cidade já estava sendo construída nas imagens das imobiliárias para justificar um novo tipo de empreendimento urbano e essa prática persiste até hoje. Como os condomínios fechados são circundados por barreiras físicas, e possuem um ambiente socioeconômico homogêneo, é de se esperar que sejam ambientes seguros, onde seus residentes sintam-se protegidos, interferindo positivamente na satisfação geral (Becker, 2005 p. 56). Segurança e controle são as condições para manter os outros de fora e para assegurar não só a exclusão, mas também a “felicidade”, “harmonia” e até mesmo “liberdade” (Caldeira, 2000 p.267) negando assim a existência desses fatores na cidade. Nos condomínios objeto de estudo, a segurança é feita por uma empresa contratada. A segurança eletrônica se dá por câmeras de segurança instaladas nos portões de acesso, onde o acesso de visitantes só é permitido com a autorização do morador; cerca elétrica no muro de toda a extensão dos condomínios; e registro das impressões digitais e apresentação de uma carteirinha com foto de todos os empregados das 285
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residências, onde estes, diariamente precisam registrar a entrada através da leitura digital das impressões; e, por fim, o portão eletrônico. Além dos vigilantes que ocupam guaritas e circulam pelas ruas internas do condomínio, no Cabo Branco Residence Privê e Bosque das Orquídeas, existe ainda a ronda, ou seja, um carro da empresa que durante a noite circula pelas ruas dos condomínios com outros dois vigilantes. Em cada condomínio, também se diferencia o desenho da planta baixa e da malha viária. A planta baixa, segundo Kohlsdorf (1980, p. 87) define-se como um corte analítico, horizontal, no espaço dos assentamentos, que se refere às várias escalas contidas no espaço urbano. É a partir da planta baixa que se deixa ler alguns elementos e análise: tipos de malhas, parcelamento, relações entre cheios e vazios e tipos de unidades morfológicas. Com relação às vias, Lynch (1997, p. 51) vai classificar como uma das formas físicas que estão contidas na cidade, definindo-as como canais de circulação ao longo dos quais o observador se locomove. Nos condomínios que estudamos, as vias são mais retilíneas com as quadras bem definidas e as vias locais separadas da rua ou eixo principal, como é o caso do Condomínio Cabo Branco Residence Privê onde se observa claramente o eixo central que liga todas as vias locais. Cada rua local liga apenas um grupo de lotes, diminuindo ao máximo o fluxo de veículos entre essas ruas.
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Figura 03: Vista aérea do Condomínio Cabo Branco Residence Privê. Fonte: Google earth, editado por Christiane Nicolau. Maio/2012. Legenda: 1. Acesso; 2. Área comercial; 3. Áreas de uso coletivo; 4. Área verde de preservação.
Em casos de condomínios pequenos, como o Portal do Sol, a marcação das áreas destinadas a lotes já mostra o desenho da rua (ver figura 04). E, por fim, há aqueles condomínios com ruas sinuosas e quadras definidas, mas de difícil percepção, como o condomínio Bosque das Orquídeas, que os lotes tem tamanhos variados devido ao desenho das quadras (ver figura 05). 287
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Figura 04: Vista aérea do Condomínio Porta do Sol. Fonte: Google earth, editado por Christiane Nicolau. Maio/2012. Legenda: 1. Acesso; 2. Áreas de uso coletivo.
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Figura 05: Vista aérea do Condomínio Bosque das Orquídeas. Fonte: Google earth, editado por Christiane Nicolau. Maio/2012. Legenda: 1. Acesso; 2. Áreas de uso coletivo; 3. Área verde de preservação.
É possível observar através das imagens aéreas que os condomínios Cabo Branco Residence Privê e Bosque das Orquídeas possuem uma extensa área verde de preservação. Essas áreas deveriam ser protegidas e conservadas, não podendo ser utilizadas nem desmatadas. No condomínio Cabo Branco Residence Privê, as áreas verdes de preservação são abertas e utilizadas pelos moradores para caminhadas e passeios de bicicleta, já no Condomínio Bosque das Orquídeas, a área verde de preservação é isolada por um gradil, e só um pequeno espaço
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é utilizado como “Espaço Tarzan”, ou seja, um espaço de playground para as crianças. A respeito dos espaços coletivos “semiprivatizados”, alguns são construídos como um meio principal de atrair compradores para os lotes. Nada mais atrativo numa propaganda de condomínio fechado do que as áreas de lazer. Alguns aspectos de projeto podem interferir na satisfação e no uso desses espaços como, por exemplo, a aparência, sua relação com as residências e a dimensão dos espaços, além da presença de vegetação e mobiliário urbano. Quanto mais próximas das residências estiverem essas áreas de lazer, maior é a frequência de uso desses espaços. Porém, durante a pesquisa de campo foi possível observar que as casas são construídas no interior do condomínio da mesma maneira que são construídas na cidade tradicional, ou seja, voltadas para dentro, com um pouco mais de permeabilidade visual apenas pelo aumento da quantidade de vidro nas fachadas e pelos muros mais baixos que definem lotes. Observou-se também que a maioria das residenciais tem a sua própria área de lazer. A prioridade é o maior número de lotes a serem vendidos. Dentro dos condomínios fechados existe uma forma de sociabilidade baseada em evitar conflitos. Existem códigos de conduta e regimentos internos muitas vezes contratados de empresas externas para administrar esses empreendimentos, minimizando assim conflitos diretos entre vizinhos ou mesmo a necessidade de negociarem questões comuns. 290
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Supomos que quando existe um bom desempenho do ambiente, aumenta a satisfação em relação à moradia. O motivo de escolha por uma determinada moradia já revela que há expectativas e objetivos, porém à medida que identificamos aspectos que geram satisfação e insatisfação, descobrimos se as expectativas dos moradores foram ou não preenchidas. Além disso, as características pessoais dos moradores e as características físicas e espaciais do ambiente construído são algumas das variáveis que afetam o desempenho desses espaços e a vivência dos moradores. Os encontros frequentes relacionados com as atividades cotidianas aumentam as ocasiões de estabelecer contato (GEHL, 2006 p.27). Nos condomínios, as maiores possibilidades de encontros são no início da manhã e à noite, ou nos finais de semana onde as ruas são utilizadas para caminhadas, corridas, encontros de amigos nas calçadas ou ainda o uso dos equipamentos de lazer como as quadras de futebol e tênis que são as mais utilizadas e/ou a academia de ginástica. Além das crianças que são as maiores responsáveis pela sociabilidade entre os moradores, e muitas vezes, elas também são a principal razão dos pais optarem por morar em condomínios fechados. Alguns estudos revelam a importância da interação social para a satisfação residencial, identificando que quanto maior a interação entre os moradores, maior o nível de satisfação residencial (BECKER, 2005, p. 26). Supõe-se, em geral, que o fato de existirem interesses comuns pode propiciar 291
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bons níveis de interação entre os moradores, porém essa não é a realidade apontada na maioria dos estudos nem observada nos condomínios aqui analisados. O item segurança não foi apontado como o mais relevante pelos moradores, o que vai de encontro com a literatura que trata da vida nos condomínios. No entanto, o fato do item segurança não aparecer, não significa que ele foi desconsiderado, ou seja, não é prioritariamente desejado pelos moradores, mas está implícito na escolha de se viver nesse tipo de empreendimento. A boa segurança interna tende a repercutir de maneira positiva no uso dos espaços coletivos, apesar do baixo uso. Os três condomínios investigados são semelhantes, formando um conjunto homogêneo e apesar do mesmo contexto socioeconômico, verifica-se menor intensidade, diversidade e uso das ruas. Considerações finais Embora o Condomínio Horizontal tenha o intuito de oferecer uma qualidade de vida que aparentemente a cidade não oferece mais, isso não o faz autossuficiente. A segurança tão defendida nas propagandas e pela especulação imobiliária gera um conforto psicológico para quem opta por morar em condomínio. A segurança intramuros funciona dos muros para dentro, mas o acesso aos condomínios gera uma insegurança não
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apenas para os moradores, mas para quem circula no entorno. Os muros cegos do entorno acentuam a desconexão entre a rua e o interior dos condomínios, ampliando a sensação de descontinuidade e de autossegregação. Os “olhos da rua” se afastam, passando rapidamente nos veículos automotores ou se fechando no interior dos condomínios. Neste sentido, os condomínios fechados representam perda da qualidade socioespacial de nossas cidades e da urbanidade, enquanto expressão das qualidades espaciais que valorizam as possibilidades de encontro e de visibilidade entre diferentes, a alteridade, a possibilidade de esbarrar no Outro e de, assim, diversificar as sensações e as experiências cotidianas nas cidades. A infraestrutura planejada e sofisticada dos condomínios fechados não significa ausência de problemas, assim como também não significa que haverá sociabilidade entre os moradores e uma vida em comunidade como se divulga nas propagandas publicitárias deste tipo de empreendimento. A qualidade de vida é maquiada com grandes áreas de lazer e serviços. Essas novas tendências à autossegregação residencial produzem como consequência um urbanismo às avessas, na disseminação da cultura individualista, ampliação da especulação imobiliária, sensação de medo e insegurança, valorização de status pela moradia e problemas de destruição ambiental, dentre outros. 293
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As breves reflexões apontadas neste texto possibilitam perceber que existem meios de tornar esse tipo de empreendimento menos agressivo a paisagem, com uso de grades ao invés de muros, serviços não apenas para os moradores, mas abertos ao público, poderiam até se localizar na parte da frente do condomínio a fim de gerar convívio, integração espacial e maior urbanidade etc. Amenizar seus impactos passa também por uma legislação mais específica promovendo qualidade de vida dentro e fora dos muros, mas o melhor mesmo seria não haver necessidade ou intenção de autossegregação nem a promoção deste tipo de desejo e de moradia. Referências BAUMAN, Zygmunt. Confiança e Medo na cidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. Ed., 2009. BECKER. Débora. Condomínios horizontais fechados: avaliação de desempenho interno e Impacto Físico Espacial no Espaço Urbano. Dez/2005. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Rio Grande do Sul. CALDEIRA, Teresa P. do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. 2000. São Paulo: Editora 34/Edusp. CALDEIRA, Teresa P. “Medo da Cidade: Pobreza e más condições de vida não são causas claras da violência urbana”.
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Revista digital TRÓPICO. Disponível em: <http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/330,1.shl>. Acessado no site UOL em 18 de março de 2008. DEL RIO, Vicente. Introdução ao desenho urbano no processo de planejamento. São Paulo: PINI, 1990. GEHL, Jan. La humanizaciòn del espacio urbano: La vida social entre los edificios. Barcelona: Editora Reverte, 2006. KOHLSDORF, Maria Elaine. “As Imagens de Brasília”. In: PAVIANI, Aldo (Orgs.). Brasília, Ideologia e Realidade: Espaço Urbano em Questão. São Paulo: Projeto, 1985. LOPES, Andiara Valentina de Freitas. Condomínios residenciais: novas faces da sociabilidade e da vivência de transgressões sócias. Tese (Doutorado) – Universidade Federal de Pernambuco. CAC. Desenvolvimento Urbano. 2008. LYNCH, K. A imagem da Cidade. São Paulo. Martins Fontes. 1997. RAPOSO, Rita. “Condomínios fechados em Lisboa: paradigma e paisagem”. Análise Social. [online]. jan. 2008 [citado 29 Maio 2009]. Acesso: 25 de maio de 2009. ZAKABI, Rosana. “Viver em Condomínio”.Revista Veja, 15 mai. 2002.
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VIOLÊNCIA E MEDO NA CIDADE: formas de exclusão do Outro na cidade contemporânea Camila Coelho Emmanuel Szylagi Jovanka Baracuhy C. Scocuglia Introdução Este artigo apresenta reflexões teóricas e resultados de pesquisa, realizada no âmbito do PIBIC/PIBIT – Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e Tecnológica – CNPq – UFPB, intitulada: “Cidades, culturas contemporâneas e urbanidades - violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa”. A pesquisa se desenvolveu entre 2010-2011 e tratou da relação entre violência, medo e segregação socioespacial na cidade de João Pessoa analisando as alterações espaciais, formais e funcionais, bem como o discurso veiculado na mídia local (matérias de jornais) e suas influências sobre a concepção de espaço público e de arquitetura numa cidade de Porte Médio do Nordeste brasileiro. Identificamos a formação de um novo padrão funcional e formal de arquitetura, em particular, nas habitações de bairros de classes médias e elites na cidade de João Pessoa, ilustrando algumas das 297
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mudanças recentes na arquitetura da cidade, associadas, em especial, ao aumento da sensação de medo e violência, a proteção patrimonial e a segregação socioespacial. Foram realizadas observações de campo em bairros residenciais e no centro da cidade para registro dos principais mecanismos ou estratégias de segurança incorporadas às edificações, verificando a relação entre estas, a arquitetura e os espaços públicos de entorno (ruas e calçadas). Discute-se o pressuposto de que a cidade não produz automaticamente a violência, embora propicie um cenário privilegiado para seu desenvolvimento pela forma segregada como se expande o processo de mercantilização da vida social. Na pesquisa, verificam-se os tipos de violência e exclusão, questionando a possibilidade de correlações entre arquitetura e violência, em dimensões físicas e socioculturais. Defende-se a ideia de que certos espaços da urbe contemporânea são cenários propícios aos efeitos de uma estrutura social desigual e injusta com alta concentração de renda, tendo o discurso jornalístico como campo privilegiado de legitimação da localização da pobreza e das desigualdades socioespaciais. Pretende-se contribuir com o debate sobre cidade e cultura, bem como na discussão sobre os condicionantes e efeitos diretos e indiretos na constituição de novas formas de sociabilidade e urbanidade contemporâneas. A relação entre cidade e violência aponta para uma correlação na qual a cidade contemporânea seria a causa dos 298
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problemas urbanos de violência, segurança e medo, cada vez mais tematizados e veiculados em pesquisas e, sobretudo, na mídia nacional e internacional. Contrariamente, partimos da hipótese que a cidade não produz automaticamente a violência, embora seja um cenário privilegiado para seu desenvolvimento, não apenas pelo seu caráter de diversidade, heterogeneidade e conflitividade, bem como enquanto sede do poder, mas, sobretudo, pela forma segregada como se constituiu ao longo do tempo o processo de mercantilização da vida social, cabendo análises mais cuidadosas que contribuam para esclarecer alguns dos seus múltiplos aspectos e um aprofundamento desta relação. No que diz respeito às temáticas relativas ao crescimento urbano contemporâneo, às cidades e seus problemas, às urbanidades, à violência urbana, há uma solicitação cada vez maior de estudos aprofundados sobre estes temas, e daí a importância da pesquisa que desenvolvemos, em função até mesmo da dimensão dos problemas urbanos e da falência dos modelos de planejamento e de desenvolvimento que priorizem/ atuem unicamente do ponto de vista técnico, mitigando a importância das outras dimensões que se articulam direta e indiretamente à arquitetura e ao urbanismo em suas dimensões culturais, sociais e políticas. O interesse pelas relações entre violência e arquitetura produzida e/ou modificada pelo uso de elementos de fortificações/defesa ou pelas verdadeiras cidades instituídas pelos condomínios residenciais fechados resulta de uma 299
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vivência cotidiana destes problemas, mas também de um ponto de vista crítico enquanto arquiteto/urbanista que circula por nossas cidades e identifica uma paisagem relativamente homogênea quanto ao medo refletido nas câmeras de vídeo, portões e vidros blindados, lanças sobrepondo gradis de ferro, praças cercadas, muradas, entre outros mecanismos e elementos de segurança acrescentados às edificações em geral e, sobretudo, às habitações. Procedimentos de pesquisa Delimitamos nossa área de observação para desenvolvermos o levantamento fotográfico e iconográfico. Assim, utilizamos como critério de escolha uma amostragem representativa da diversidade de bairros da cidade, bem como concentradores de camadas sociais diversificadas. Tendo em vista tais pontos, foram selecionados os seguintes bairros: Mangabeira, Varadouro, Centro, Manaíra e Jaguaribe. Definida a área de estudo, fomos para as observações em campo, identificando os exemplares mais significativos quanto ao uso das estratégias de segurança incorporadas às edificações residenciais e aos condomínios. Além de anotações in loco, fizemos registros fotográficos atestando a composição de um novo padrão formal e funcional de arquitetura e de segregação socioespacial anunciado nos dispositivos técnicos e nas disposições sociais e culturais. Observamos a arquitetura em 300
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relação aos espaços públicos imediatos: uso de ruas, calçadas e praças. A partir do registro fotográfico da arquitetura identificada por bairros, elaboramos fichas para melhor compreensão e leitura de uma “arquitetura do medo” na cidade de João Pessoa (Fig. 01). A intenção foi criar uma memória iconográfica em suas diferentes formas de expressão quando são utilizadas as estratégias de segurança, de afastamento ou de impedimento da permanência e/ou circulação de “visitantes”, “estranhos”. Neste modelo de ficha, inserimos os seguintes itens: identificação do imóvel (endereço, bairro e uso do imóvel); sistema(s) de segurança (grades, guarita, cerca/gradil, cerca elétrica, elementos pontiagudos, vigia, câmera, vedação/imóveis vazios, muros altos, vegetação de proteção/impedimento, placas de alerta e sensor de movimento), registro fotográfico (imagens do imóvel e do sistema de segurança empregado); observações (período e dia do levantamento); autor das imagens (nome do bolsista que realizou a imagem); acervo fotográfico (nome do projeto de pesquisa); data do levantamento; n° da ficha; localização da quadra no bairro (ilustração esquemática da localização do imóvel na quadra/rua pesquisada)55. 55 Utilizamos como referência para elaboração das fichas iconográficas a monografia de conclusão do Curso de Arquitetura e Urbanismo Arquitetura Moderna Residencial de Campina Grande: Registros e Especulações (1960 - 1969), elaborada por Adriana Leal de Almeida Freire e defendida em 2007.
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Figura 01: Exemplo das fichas iconográficas referentes aos dispositivos e estratégias de segurança utilizados nos bairros de João Pessoa. Fonte: Arquivos da Pesquisa “Cidades, culturas contemporâneas e urbanidades - violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa”. PIBIC/PIVIT/CNPq (2010-2011).
No registro fotográfico, verificamos grande parte dos dispositivos de segurança utilizados por diversos segmentos sociais segundo os bairros da cidade de João Pessoa, indicando um medo generalizado, sobretudo, mas não unicamente, entre os segmentos de média e alta renda. Verificamos, por um lado, estratégias de segurança sofisticadas nos bairros de média e alta renda, porém, não são mais frequentes nem evidentes do que as identificadas em bairros populares, incluindo o centro da cidade. Em João Pessoa, podemos afirmar que os espaços públicos e a vivência coletiva dos citadinos mudaram em função de um 302
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aumento da sensação de medo e insegurança nos últimos anos. Praças, ruas e calçadas estão sujeitas ao processo de desertificação urbana, uma vez que espaços potenciais de uso coletivo se transformam em ambientes hostis e “inadequados” a convivência humana. A cidade como palco da violência Como afirma Simmel (2005) [1903], a cidade nos oferece a vivência de uma experiência ambivalente: ela seduz e afasta ao mesmo tempo. As cidades são relacionais, lugares de convivência com o Outro, com o “estrangeiro”, de coexistência das diferenças, mas ao mesmo tempo de exacerbação do individualismo. O sociólogo George Simmel identificou uma dimensão não menos significativa que pauta parte da experiência dos habitantes das cidades: a relação entre proximidade corporal e distância espiritual, personificada no comportamento blasé. No ensaio “As grandes cidades e a vida do espírito”(2005) [1903] revela dimensões da vida urbana associadas a racionalidade e ordenação capitalista, afirmando que os indivíduos expostos a incessantes estímulos e à exatidão calculista da vida prática situam-se entre o anonimato e a multiplicidade de papéis em diferentes círculos, momentos e situações, e dentro dessa polaridade, como uma espécie de defesa psíquica, o caráter blasé – reservado, insensível, indiferente. Segue-se uma propensão à individualização, à intelectualização e à 303
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racionalização das relações sociais que Simmel analisa como uma “proteção da vida subjetiva contra a violência da grande cidade”. Outros clássicos da sociologia como Max Weber (1999) e Émile Durkheim (1958) também aproximaram o tema da violência com a cidade. Estes autores não imputam às cidades a causa da violência e dos problemas sociais e urbanos que se intensificam na contemporaneidade, e defendem que estes problemas estão relacionados com a intensificação da concentração geográfica e demográfica, pelos conflitos e contradições socioculturais emergentes nos espaços públicos e privados, bem como pelos poderes político e econômico que nela se estabelecem. Estudos mais recentes, conforme indica Teresa Caldeira (2000), consideram que o espaço público contemporâneo não gera mais o ideal moderno de universalidade, ao contrário, promove a separação e a ideia de que os grupos sociais precisam viver em enclaves homogêneos e fortificados, isolados daqueles considerados diferentes. Assim, tudo indica que a cidade do século XXI teria se tornado o espaço do medo e da insegurança. Nela, como afirma Zygmund Bauman em seu livro “Confiança e medo na cidade” (2009), “o estrangeiro passou a ser apartado por marcas urbanas da diferença: bairros próprios, grades, muros e todos os mecanismos possíveis de segregação”. A arquitetura resultante deste processo é nomeada de arquitetura do medo ou arquitetura da violência como se refere 304
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a professora/pesquisadora da UFF - Universidade Federal Fluminense, Sônia Ferraz (2000), em estudo sobre Rio de Janeiro e São Paulo, que nos inspirou na realização desta pesquisa na cidade de João Pessoa. Essa arquitetura do medo é entendida como reflexo de um sentimento de inquietação ante a noção de um perigo real ou imaginário, de uma ameaça; susto, pavor, temor, terror (Novo Dicionário Aurélio, Editora Fronteira). Nas análises específicas sobre o Brasil, a noção de arquitetura do medo aparece, em geral, associada à crescente violência urbana e é, com maior frequência, atribuída aos pobres e miseráveis, fazendo com que os demais moradores das cidades estejam em constante movimento de ampliação das estratégias de segurança - de autoproteção e proteção patrimonial (FERRAZ, 2008). Elementos que, segundo S. Ferraz (2008), nos fazem lembrar as fortificações características da arquitetura da Idade Média e as prisões contemporâneas (bem como alguns elementos do panóptico de J. Bentham), estão cada vez mais presentes nas edificações de diversos tipos e usos em cidades de Porte Médio como João Pessoa, até mesmo nos espaços públicos, afetando as relações sociais e gerando não só um novo padrão formal e funcional para a arquitetura e urbanismo, mas também uma exacerbação do processo de segregação socioespacial marcado pelo medo e isolamento.
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Essa arquitetura acaba acentuando a sensação de insegurança, através de marcas construtivas e de esquadrinhamento do solo que segundo o arquiteto Steven Flusty (1997), geram mais violência e o consequente pânico social, produtores do que chama de mixofobia ou medo de misturar-se. A relação entre exclusão, medo, violência e arquitetura na cidade contemporânea O enfoque particular sobre a arquitetura da cidade como efeito, reflexo ou imagem da “violência urbana”, da insegurança, do medo e do individualismo é recente, posterior a década de 1990 (FERRAZ, 1995, 2008; CALDEIRA, 2000; BAUMAN, 2009), embora a questão venha se desenhando desde a década de 1980 se analisarmos, por exemplo, a segregação, a crise de moradia, a favelização, o enfraquecimento da esfera pública e da sociabilidade nos espaços públicos das cidades brasileiras. Diversos foram os processos que, em conjunto, provocaram as mudanças recentes no padrão funcional e formal da arquitetura, bem como de segregação espacial nas cidades brasileiras e latino-americanas. Muitos estudos associam a decomposição ou desconstrução da vida urbana e o aumento do fator de risco, depois dos anos 1980, à volatilidade da ordem econômica neste período, com as reformas neoliberais, a recessão vivida por muitos países da América Latina, o aumento 306
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do desemprego e a perda da continuidade e da proteção dos empregos, bem como o enfraquecimento das instituições de segurança social e dos organismos de reivindicações coletivos (sindicatos e partidos políticos). Esta insegurança socioeconômica “multifacetada” (RODRIK, 2001) conduziu a uma instabilidade generalizada e intensificou a busca por recursos como a informalidade. No Brasil estes problemas estão associados ainda a formação do espaço urbano marcada pelo patrimonialismo e fisiologismo de grupos dominantes, e a um longo caminho ainda a ser percorrido com relação aos direitos sociais e à cidadania (CARVALHO, 2003), o que resultou na constituição de cidades excludentes, nas quais os trabalhadores de baixa renda não têm acesso garantido à moradia. Segundo Ermínia Maricato (2001), esta situação se agravou após a crise econômica das décadas de 1980 e 1990 do século XX, aprofundando o óbice da “nãocidade”, definida por se encontrar fora da esfera dos direitos, do acesso aos serviços e equipamentos públicos de qualidade. Neste sentido, a desigualdade social e econômica que opõe os segmentos sociais é representada por formas distintas de moradia na cidade e é caracterizada por uma dupla exclusão: a autoexclusão das elites nos bairros de alta renda e a exclusão dos miseráveis sem acesso à moradia. De um lado os segmentos médios e as elites se protegem confinadas em fortalezas e bunkers urbanos contratando a proteção e a segurança particular diversificada, enquanto o poder público continua atribuindo a 307
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violência às cidades ou aos problemas urbanísticos e sociais relacionados à presença dos pobres e miseráveis nas cidades congestionadas, ao trânsito caótico que aumenta as taxas de homicídio por acidentes, enquanto deixa a própria sorte os citadinos e, sobretudo, a população mais pobre e carente pela ausência de políticas públicas (habitação, saúde, emprego, transporte público de qualidade, infraestrutura urbana etc.). Noutra linha de atuação, procura resolver tais problemas por meio de políticas públicas de repressão e controle, mantendo os pobres fora do campo de ação e de visão dos espaços por onde circulam os turistas, moram, trabalham e consomem os segmentos de média e alta renda. Deve-se ressaltar que o mercado de dispositivos e equipamentos de segurança tem colaborado consideravelmente para a modificação das relações sociais nas cidades. Segundo o grupo ARQVIOL coordenado por Sônia Ferraz (2008), “o papel das antigas janelas abertas para rua, que estimulavam a visibilidade e a permeabilidade e permitiam a relação entre pessoas e seu contato físico, hoje é substituído por residências quase que hermeticamente fechadas para o exterior, sem qualquer janela, a não ser as ‘seteiras’ de guaritas ou um par de câmeras (e um muro alto) [...]”. Além de contribuir para a modificação das relações sociais nas cidades, a indústria de materiais e equipamentos de proteção patrimonial também tem contribuído para a padronização das medidas de proteção residencial e, consequentemente, para a padronização da 308
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“paisagem arquitetônica” do que pode ser chamado de “segurança patrimonial urbana” (FERRAZ, 2008). Tais equipamentos se tornaram essenciais na cidade contemporânea, não apenas por motivos de segurança e segregação, mas também por razões estéticas e de status. Os produtos de segurança constituem parte de um novo código para expressar a distinção na aparência pública e “devem permitir a comparação entre vizinhos, para mostrar tanto quem está se saindo melhor socialmente quanto quem tem o gosto mais sofisticado” (CALDEIRA, 2000). João Pessoa tocada pela violência e exclusão A cidade de João Pessoa possui hoje cerca de 720 mil habitantes (723.515 hab., estimativa do IBGE, 2010), e graves problemas sociais, dentre eles a violência e a segregação social e espacial. A ocupação territorial da cidade possui algumas características marcantes e extensivas, como tantas outras cidades brasileiras: até a década de 1920 sua urbanização e desenvolvimento estiveram concentrados na região central; a partir de 1930, o eixo de expansão dirigiu-se especialmente no sentido da orla-marítima; a partir de 1950, houve uma ampliação dos eixos de expansão para estados vizinhos; entre 1970 e 1990 deu-se uma expansão radial e implantação de programas habitacionais localizados em áreas afastadas do centro urbano, caracterizando a periferização e ampliouse a segregação
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socioespacial bem como um processo de verticalização acentuada das formas de moradia das camadas médias e elite. A partir de 2000, identifica-se, de modo crescente, a implantação de condomínios de alta renda localizados preferencialmente no litoral, concomitante ao aumento gradual do número de favelas (cerca de 120 favelas segundo dados da FAC - Fundação de Apoio à Cultural do Governo do Estado da Paraíba, 2008). A partir da década de 1950, houve uma aceleração do crescimento e da densidade urbana, acentuadas a partir da década de 1980 tendo como características marcantes a fragmentação e a expansão dos espaços em condomínios e shopping centers diante de um quadro de grande desigualdade e segregação territorial e social. Características gerais como: o excessivo espraiamento espacial urbano; a assimetria econômica e deslocamento das atividades mais rentáveis para os bairros onde residem populações de média e alta renda; a fusão de atividades e segregação social; a formação de enclaves residenciais; a perda de vitalidade dos comércios centrais e o surgimento dos simulacros centrais (shopping centers, hipermercados, etc.) e novas centralidades associados ao distanciamento da acessibilidade ao emprego e renda para os mais pobres, em função da reestruturação econômica em torno das áreas de maior renda. O resultado em termos da vida urbana é alarmante, apesar da fama de “capital da paz” construída pela indústria do turismo e por órgãos públicos, João Pessoa, em 2008, foi o município 310
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paraibano com maior mortalidade de jovens (92,7 por 100 mil hab.), conforme o Mapa da Violência dos Municípios Brasileiros de 2008ocupou a 22ª posição no ranking das 200 cidades mais violentas do país (FERREIRA, 2008). Mais recentemente, segundo o Mapa da Violência 2011 estes índices representam 60% (entre 100 mil homicídios). Lembrando que estão excluídos destes cálculos parte dos homicídios e agressões às mulheres, muitas vezes fora dos registros oficiais. Estratégias arquitetônicas de exclusão do Outro Acompanhando o crescimento da violência e consequentemente, da sensação de medo e insegurança, moradores e donos de propriedades voltadas para comércio e serviços buscam a segurança constantemente e intensamente, mudando suas práticas sociais habituais (como evitar saídas em horários noturnos, contratar seguranças particulares, manter uma relação de desconfiança ao estranho, etc.) a fim de se precaver do problema. Quanto às estratégias e dispositivos de proteção patrimonial, são incontáveis as convenções e apropriações de linguagens arquitetônicas que, segundo FERRAZ (2008), “produzem e reforçam, por exemplo, o caráter medieval e/ ou carcerário de grande parte dessas construções”, que espelham, sem sutileza alguma, a sensação de medo crescente sociedade.
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Hoje, com facilidade, se encontram nas edificações comerciais e residenciais, principalmente nos bairros de classe média e alta, os mais variados tipos de equipamentos eletrônicos de vigilância superpostos, como câmeras, cercas eletrificadas, sensores e interfones, elementos estes que o mercado atualiza num intervalo de tempo bastante curto, e que, como afirma Ferraz (2008), “acrescenta simbolismos de agressividade, rejeição e, certamente, de muita proteção,mesmo que ela não signifique nenhuma certeza de segurança”.
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Figuras 2, 3, 4, 5, 6 e 7 – Exemplar de dispositivos de segurança encontrados em residências e pontos de comércio e serviços. Fonte: Arquivos da Pesquisa “Cidades, culturas contemporâneas e
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Nos bairros de moradia da população de média e alta renda de João Pessoa, como Manaíra, edifícios residenciais são erigidos fazendo uso de uma vasta gama de elementos de segurança, além dos citados anteriormente, chama-se atenção para as guaritas elevadas e detentoras de vários sistemas de segurança, como o doble safe, por exemplo, que dão às torres “ares de arquitetura militar”, como cita P. Andrade (2011), tornando-se verdadeiras releituras de torres medievais (Fig.8, 9 e 10). Identificada como “medievalização” da arquitetura residencial de alta renda por Ferraz (2008), a estética gerada pelo uso de tais elementos representa, com clareza, a sensação de medo crescente e revela também, como aponta Harvey (1992 apud FERRAZ, 2008), o charme e o glamour que o estilo medieval de morar representa, e que,por conseguinte,“podem funcionar como um escape ao enfrentamento do presente, como uma fantasia nostálgica que cai muito bem aos espíritos ‘pós modernos’” (Ibid.).
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Figuras 8, 9 e 10 – Exemplar da “medievalização” da arquitetura residencial de alta renda. Fonte: Arquivos da Pesquisa “Cidades, culturas contemporâneas e urbanidades - violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa”. PIBIC/PIVIT/CNPq (20102011). 315
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Alguns dos inúmeros elementos presentes neste novo tipo de arquitetura são os muros e portões de proporções exageradas que remetem às penitenciárias de segurança máxima. Ao andarmos pela cidade de João Pessoa, notamos que muros e grades delineiam quase todas as ruas, e seu coroamento ganha lanças pontiagudas ou cacos de vidro (Fig. 11, 12, 13, 14 e 15). Os muros, que deveriam ter como função delimitar o terreno e a edificação, distinguindo o espaço privado do espaço público, hoje são produzidos com um novo sentido: sua função agora é evitar que os limites do domínio privado sejam atravessados. Simbolicamente, os muros produzidos nas edificações e aqueles utilizados nas penitenciárias possuem o mesmo significado, uma vez que buscam o isolamento e o confinamento dos indivíduos. Vale lembrar que a utilização de tais elementos arquitetônicos impede a visibilidade do interior da edificação, estimulando a ação de bandidos, uma vez que seu uso inadequado dificulta a relação entre espaço público e privado, assim como também reflete a sensação de medo gerada por este artifício.
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Figuras 11, 12, 13, 14 e 15 – Utilização de grandes portões e muros altos nas edificações, visando à proteção e o isolamento. Fonte: Arquivos da Pesquisa “Cidades, culturas contemporâneas e
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Camila Coelho, Emmanuel Szylagi, Jovanka Baracuhy C. Scocuglia urbanidades - violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa”. PIBIC/ PIVIT/CNPq (2010-2011).
Os gradis são elementos comumente utilizados nos imóveis, também no sentido de demarcar o território, e possuem dois pontos positivos: permitem a visibilidade (tanto para quem está no interior quanto para quem está no exterior da edificação, resultando assim numa maior integração do usuário e a rua) e a ventilação, fatores que são descartados com a utilização de muros altos. Entretanto, eles perderam o valor decorativo que havia anteriormente.Como descreve Ferraz (2008), hoje eles “não passam de um conjunto de barras de ferro verticais, de formas simplificadas, presos nos extremos por barras horizontais com acabamento pontiagudo”. Encontramos exemplares onde o uso deste elemento em excesso nos permite equiparar as edificações a gaiolas ou prisões, figuras 16, 17 e 18.
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Figuras 16, 17 e 18 – Arquitetura. Fonte: Arquivos da Pesquisa “Cidades, culturas contemporâneas e urbanidades - violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa”. PIBIC/PIVIT/CNPq (2010-2011).
Um exemplo bastante peculiar dessa nova estética arquitetônica são as torres de vigia, utilizadas em presídios da Idade Média e que complementam as táticas de “aprisionamento, autoconfinamento, vigilância e ordem” dos moradores. Nos presídios, as torres desempenham o papel de vigiar e controlar as ações dos presos. Nas residências, adquirem a mesma função, agora controlando e vigiando os transeuntes das ruas limítrofes às residências, estando localizadas na parte superior dos muros e permitindo, assim, a visualização das áreas internas e externas.
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Figura 19 – Exemplar de torre de vigia na arquitetura residencial de João Pessoa. Fonte: Arquivos da Pesquisa “Cidades, culturas contemporâneas e urbanidades - violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa”. PIBIC/PIVIT/CNPq (2010-2011).
Outro artifício utilizado pelos proprietários de residências para a proteção de seus imóveis é a inserção de vegetação nociva ao tato, ou seja, a utilização de determinadas espécies de vegetais mais “agressivas”, por suas formas pontiagudas e presença de espinhos, nos arredores dos muros altos e extensos, como visto nas figuras 22 e 23. Vegetações usadas para a camuflagem de grampos e outras estratégias de segurança nos muros das habitações (Fig. 24), tornando-se uma espécie de armadilha para os ladrões e invasores.
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Figuras 20,21 e 22 – O uso da vegetação como elemento de segurança. Fonte: Arquivos da Pesquisa “Cidades, culturas contemporâneas e urbanidades - violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa”. PIBIC/PIVIT/CNPq (2010-2011).
Outra manifestação visível e hostil para com o individuo, relacionada com a Arquitetura do medo é a “arquitetura antimendigo” que busca impedir a acomodação e a ocupação de moradores de rua em locais de permanência prolongada, principalmente durante o período noturno. Segundo P. Andrade (2011), a arquitetura “antimendigo” adota desde artifícios sutis, como pisos irregulares, ferragens pontiagudas e bancos com desenhos que dificultam seu uso, até versões mais ofensivas – esguichos de água suspensos em 321
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marquises para molhar calçadas durante a noite; jogos incômodos de luzes; superfícies tipo camas de pregos; planos inclinados e/ou com revestimentos assentados de forma a evitar o contato. Nos bairros sobre os quais nos debruçamos na pesquisa, esta arquitetura é delineada por grades e telas de forma pouco sutil, deixando claro quais os locais que repelem a presença da população sem teto, evidente tanto em áreas comerciais quanto residenciais. Como afirma P. Andrade (2011): Os dispositivos “antimendigos”, assim como a arquitetura-fortaleza dos condomínios e shopping centers, dizem mais respeito ao grau de isolamento em relação aos grupos e indivíduos indesejáveis, do que à proteção pessoal ou patrimonial dos cidadãos. Embora tais arranjos possam parecer inofensivos ou corriqueiros às pessoas “protegidas” que podem apreciá-los, acostumar-se a eles, ou nem sequer notá-los são imediatamente compreendidos e sentidos por aqueles a quem são dirigidos: os outros, os excluídos. (ANDRADE, 2011).
Figuras 23 e 24 – Exemplos de dispositivos “antimendigos”. Fonte: Arquivos da Pesquisa “Cidades, culturas contemporâneas e urbanidades - violência urbana, arquitetura e segregação socioespacial em João Pessoa”. PIBIC/PIVIT/CNPq (2010-2011).
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Tendo em vista tais elementos, pode-se dizer que a produção deste tipo de arquitetura representa fortemente a exclusão do Outro e a dimensão do medo e, poucas vezes, o valor do patrimônio resguardado. Ao mesmo tempo, como reforça Ferraz (2008), resume o crescimento e a concretização do extenso e variado mercado que cresce juntamente com a ampliação do sentimento “de pânico, da sensação de segurança de uns contra outros, dos novos modos de vida privada dos indivíduos e dos novos modos de vida coletiva urbana ‘(des) socializada’”. Considerações finais Este texto representa nossa vontade de estranhar o que parece tantas vezes óbvio, comum porque parte do nosso cotidiano, incorporado e naturalizado também na prática profissional de projetar a arquitetura da cidade. Queremos contribuir para o desenvolvimento de um olhar crítico com relação às estratégias construtivas de segurança e sua repercussão na arquitetura da cidade, assim como nas relações sociais do urbano. Aponta para a importância do desenvolvimento de pesquisas que busquem conhecer, registrar e tornar visíveis, bem como divulgar, as informações sobre a constituição de uma arquitetura do medo em uma cidade de Porte Médio que utiliza com frequência o argumento de ser segura, não violenta, “capital da paz”, enquanto as notícias de 323
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jornais, o cotidiano da vida de seus moradores e a arquitetura da cidade, revelam o contrário: um aumento crescente da violência, do medo e da insegurança, bem como as consequências de âmbito geral: individualismo, intolerância e isolamento. Assim, enquanto o Estado não fornece segurança à população, tal fato acaba por ser resolvido e adquirido de forma privada pelos cidadãos, ocasionando o mascaramento da ausência de segurança pública. Como afirma Ferraz (2008), tudo acontece como em um ciclo vicioso, onde “a população com capacidade de solvência intensifica suas ações imediatistas chegando a níveis de autoconfinamento que a alienam da vida em comum nas cidades, fazendo com que cada um viva outra realidade, como em um mundo à parte”. Ao limitar a estética de prédios ou casas, quem perde é a própria cidade. As fachadas deixaram de ser importantes, pois passou a prevalecer o quesito segurança. As fachadas de algumas casas e edifícios são a visão expressiva deste temor. Criou-se um ambiente de egoísmo e individualismo. Este tipo de arquitetura sedimenta a ausência de solidariedade e coletivismo, e, certamente, segurança implica em muito mais do que enclausuramento. Segundo Ferraz (2008), a segurança “pressupõe outra ética de valorização da liberdade, da alteridade, da solidariedade e da preservação coletiva do planeta com a justa distribuição das riquezas e dos saberes”. Continuemos a refletir e a resistir contra o nãocrescimento da fragmentação das cidades, pela valorização 324
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dos espaços públicos e fortalecimento da urbanidade na perspectiva da criação de espaços propícios ao encontro, à convivência na diversidade e na diferença. Referências ANDRADE, Patrícia Alonso de. Quando o design exclui o Outro – Dispositivos espaciais de segregação e suas manifestações em João Pessoa PB. ARQUITEXTOS, n. 134.05 . Ano 12. Jul. 2011. Disponível em: <www.vitruvius.com.br/revistas/read/ arquitextos/12.134/3973> Acesso em: 04 ago. 2011. ARRUDA, Antonio. “Arquitetura do medo” isola cidadão e provoca fobia social. In:Folha de S.Paulo. São Paulo, 01/05/2003. BARBOSA, Daniela Batista Lima. Do medo da violência à “condominiarização” das cidades brasileiras: sobre as conseqüências da modificação da legislação federal de parcelamento do solo urbano. Minas Gerais, 2008. 253 f. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo) – Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. BAUMAN, Zygmund. O mal-estar da pós modernidade. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1998. ________________. Confiança e medo na cidade.Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2009. CALDEIRA, Teresa P. do R. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34/Edusp, 2000.
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III PatrimĂ´nio cultural e imagens urbanas
VIZINHANÇA, AMBIÊNCIA, ENTORNO E PAISAGEM... Limites conceituais e operacionais para a proteção do patrimônio Rafaela Mabel Silva Guedes Introdução O interesse na proteção do patrimônio trilhou um longo caminho para que chegasse ao entendimento hoje adotado. O próprio termo patrimônio referia-se a princípio aos bens passados como herança de pai para filho, contudo, hoje adquire uma significação muito mais abrangente, englobando manifestações de ordem artística e cultural que seja interesse da coletividade proteger e transmitir as gerações futuras. Numa concepção contemporânea e abrangente do termo, Poulot (2009) coloca que O patrimônio define-se, ao mesmo tempo, pela realidade física de seus objetos, pelo valor estético – e, na maioria das vezes, documental, além de ilustrativo, inclusive de reconhecimento sentimental – que lhes atribui o saber comum, enfim, por um estatuo específico, legal ou administrativo. (POULOT, 2009, p.13)
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Vizinhança, ambiência, entorno e paisagem...
A respeito dos bens que seriam considerados patrimônio nacional, internacional, ou estadual, também houve um considerável avanço conceitual em sua definição. Os bens imóveis ampliaram-se da escala da edificação, alcançando a escala de conjunto e de cidade. Da mesma forma, ampliouse também o recorte temporal e geográfico a que inicialmente estavam restritos esses bens, podendo hoje ser encontradas edificações consideradas “patrimônio recente” e distribuídas em todas as nacionalidades, muitas delas no Brasil. O marco legal da preservação do patrimônio histórico e artístico no Brasil se deu a partir da promulgação do Decreto-lei nº25, datado de novembro de 1937. Até então este é um dos principais documentos, senão o mais importante deles, que tem como intenção regular a proteção sobre bens móveis e imóveis utilizando para tanto o instrumento do tombamento. Em seu texto, mais precisamente no seu artigo 1º e parágrafo 2º, associam-se a esses bens, sendo assim também passíveis de tombamento, os monumentos naturais, sítios e paisagens que se importe conservar. Em relação aos bens imóveis que até então estavam restritos à escala da edificação, podemos notar com o acréscimo dos sítios e paisagens uma considerável ampliação da escala dos bens a serem tombados, e ao incluí-los como objeto de preservação, o decreto abre espaço para que seja discutida a delimitação de tais áreas para efetiva operacionalização do tombamento. 333
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No que diz respeito ao termo paisagem, por exemplo, a dificuldade em precisar o seu conceito, não definido pelo documento, acompanha também a dificuldade de precisar os seus limites reais, ou seja, a extensão da área objeto do tombamento, a qual caberia uma série de restrições. Da mesma forma, ao colocar em seu artigo 18 que, sem a devida autorização do órgão responsável pela proteção do bem, “não se poderá, na vizinhança da coisa tombada, fazer construção que lhe impeça ou reduza a visibilidade” o decreto soma à paisagem outro termo não conceituado pelo documento e que viria a ser alvo de importantes discussões de caráter operacional no seio do próprio órgão: vizinhança. Como definir até onde se estende a vizinhança de um bem tombado? E ainda mais, segundo o mesmo texto, como trabalhar a questão da visibilidade do bem a partir de sua vizinhança? Se já nos parece difícil tomar como exemplo um bem isolado, que resguarde das edificações “vizinhas” uma distância tal que não afete a sua “visibilidade”, mais complexa se torna a situação em que o bem a ser tombado esteja inscrito num conjunto urbano, onde provavelmente estará sofrendo interferências das demais edificações. Essas interferências podem se dar nos dois sentidos: tanto em termos da dificuldade da delimitação da sua “vizinhança” – considerando que para esta também caberá restrições – quanto para a aferição de sua “visibilidade”, em meio a outras edificações de características distintas tais como dimensões, cores e estilos. 334
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Junte-se ainda à paisagem e à vizinhança do Decretolei, o entorno e a ambiência, termos que acompanham a imprecisão conceitual dos primeiros, devido a sua utilização nos documentos que tratam da preservação do patrimônio sem a devida conceituação. Em se tratando de termos que no senso comum assumem significados bastante próximos, e sendo estes utilizados nas documentações sem uma conceituação clara, acabam por se sobrepor, dificultando o entendimento dos limites e da abrangência de cada um. Com relação ao termo entorno, segundo publicação do IPHAN (2007, p.11), este foi um neologismo criado por técnicos do órgão por volta da década de 1970 para designar “áreas vizinhas aos bens tombados” (note-se a sobreposição dos conceitos de vizinhança e entorno), sendo posteriormente incorporado aos dicionários de língua portuguesa. Segundo Meneses (2006, p.44), ao contrário do bem tombado, o valor do entorno “não é substantivo, mas adjetivo: é seu efeito qualificador que conta, em relação ao bem tombado”.Assim, entendia-se que entorno também deveria ser protegido, mas a ele caberia sempre um valor acessório, menor em relação ao bem tombado. Podendo ser entendida a partir das mesmas definições de entorno, geralmente utilizada como sinônimo deste, a ambiência é também tomada como área envoltória do bem, uma área de “amortização” cuja preservação visa garantir ao bem a sua
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permanência num contexto urbano não conflitante com as suas características, as quais lhe atribuíram valor. Nota-se que os quatro termos aqui discutidos: paisagem, entorno, vizinhança e ambiência, são frequentemente utilizados para definir a mesma área ou o mesmo objeto, o que ocorre mais notadamente nos três últimos, onde um termo acaba sendo usado para explicar a definição do outro. Já o termo paisagem, ainda que em alguns documentos oficiais esteja associado à noção de elemento circundante do bem, aparece em outros como sendo o bem principal ao qual cabe a preservação. Sendo assim, o objetivo deste artigo é investigar como os órgãos internacionais e nacionais direcionados para a preservação do patrimônio utilizam esses termos em seus principais documentos oficiais, na intenção de compreender os limites conceituais adotados para cada um dos quatro termos em questão. Justifica-se tal preocupação pelo fato de que a imprecisão conceitual com que geralmente são utilizados estes termos acarreta diretamente a dificuldade em estabelecer limites operacionais para a efetivação da proteção por meio de tombamento, tais como a definição de zonas, polígonos e área de abrangência do instrumento. Para tanto, essa investigação se inicia com a discussão sobre o termo vizinhança, destacando o posicionamento dos principais documentos patrimoniais que contém o termo.
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Vizinhança Pode-se dizer que entre os termos aqui estudados, vizinhança foi o primeiro a ser citado, já na Carta de Atenas, de 1931. A Carta, que trata entre outros princípios, da administração, legislação e valorização dos monumentos, traz as seguintes recomendações no que diz respeito às suas áreas envoltórias: [...] recomenda respeitar, na construção dos edifícios, o caráter e a fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados especiais. [...] Recomenda-se, sobretudo, a supressão de toda publicidade, de toda presença abusiva de postes ou fios telegráficos, de toda indústria ruidosa, mesmo de altas chaminés, na vizinhança ou na proximidade dos monumentos, de arte ou de história.(Carta de Atenas, 1931, p.2, grifo nosso)
Ainda que por esta época e especificamente nesta Carta, os monumentos aos quais se faz referência atinjam apenas a escala da edificação, é de grande relevância a preocupação demonstrada com o respeito à vizinhança desses monumentos, à qual ficam expressas as recomendações destacadas, sendo a maior parte de caráter extremamente visual. É possível que a extensão da preocupação com a vizinhança do bem tenha sido um dos fatores que abriram espaço para que nas recomendações seguintes fosse destinada uma discussão maior a respeito dessas áreas, sejam elas denominadas de ambiência do bem ou de entorno deste. De toda 337
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forma, mesmo sem a devida conceituação do termo vizinhança no documento em questão, ou sem o seu aprofundamento esperado, é inegável o papel da pioneira Carta de Atenas nessa discussão. O reflexo dessa preocupação pode ser visto, anos mais tarde,no documento resultante da Reunião sobre conservação e utilização de monumentos e lugares de interesse Histórico e Artístico, as Normas de Quito, de 1967. Neste documento, que não trata especificamente de nenhum dos termos aqui estudados e nem chega a citá-los, nota-se uma grande evolução em respeito da discussão sobre o valor do bem e da sua área envoltória quando diz, em suas considerações gerais, que A ideia do espaço é inseparável do conceito do monumento e, portanto, a tutela do Estado pode e deve se estender ao contexto urbano, ao ambiente natural que o emoldura e aos bens culturais que encerra. Mas pode existir uma zona, recinto ou sítio de caráter monumental, sem que nenhum dos elementos que o constitui, isoladamente considerados, mereça essa designação.(Normas de Quito, 1967, p.2)
Por esse trecho do documento, podemos notar a grande contribuição dada ao tornar indissociáveis os conceitos de espaço e monumento, ainda que o valor patrimonial do segundo se sobressaia em relação ao primeiro. Ainda seguindo o mesmo entendimento, o texto cita a possibilidade de que elementos isolados não tenham o mesmo valor do que quando considerados em conjunto, interligados pelo espaço em que se inserem.
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A partir do entendimento de espaço e monumento como conceitos inter-relacionados e indissociáveis, como colocado pelas Normas de Quito, ampliou-se a preocupação em garantir a proteção desse conjunto, ainda que o bem assuma o valor prioritário. Assim, surgem as primeiras documentações usando o termo ambiência, como numa ampliação do conceito de vizinhança, não no sentido territorial, mas no aprofundamento dado à questão. Ambiência A Recomendação de Nairóbi, documento resultante da 19ª Conferência Geral da UNESCO, ocorrida em 1976, e de reconhecida importância para a salvaguarda dos conjuntos históricos, defende a adoção de uma política “global e ativa de proteção e revitalização” desses conjuntos e de sua ambiência como parte do planejamento. A inquestionável contribuição dessa Recomendação se faz principalmente ao definir o conceito de ambiência usado no correr do texto, da seguinte forma Entende-se por “ambiência” dos conjuntos históricos ou tradicionais, o quadro natural ou construído que influi na percepção estética ou dinâmica desses conjuntos, ou a eles se vincula de maneira imediata no espaço, ou por laços sociais, econômicos ou culturais. (Recomendação de Nairóbi, 1976, p.3)
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O documento entende ainda que tanto o conjunto quanto sua ambiência são um patrimônio insubstituível e que, portanto, deveriam ser tomados como [...] um todo coerente cujo equilíbrio e caráter específico dependem da síntese dos elementos que o compõem e que compreendem tanto as atividades humanas como as construções, a estrutura espacial e as zonas circundantes. Dessa maneira, todos os elementos válidos, incluídas as atividades humanas, desde as mais modestas, têm, em relação ao conjunto, uma significação que é preciso respeitar. (Recomendação de Nairóbi, 1976, p.3)
Da mesma forma, entende que ambos devem ser protegidos contra a deterioração, acréscimos supérfluos e demais formas de poluição que atentem contra sua autenticidade. Remetendo à questão da visibilidade, o documento faz também uma evolução considerável em relação aos anteriores ao associar a visão do monumento com a visão que se pode ter a partir dele, fazendo a seguinte recomendação Os arquitetos e urbanistas deveriam empenhar-se para que a visão dos monumentos e conjuntos históricos, ou a visão que a partir deles se obtém, não se deteriore e para que esses conjuntos se integrem harmoniosamente a vida contemporânea.(Recomendação de Nairóbi, 1976, p.4)
Interessante observar ainda que este mesmo documento que chega a definir o conceito de ambiência e que faz relevantes considerações a seu respeito cita em dois momentos o termo “entorno” utilizado com o mesmo sentido que teria a ambiência, 340
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tal como conceituada no texto, quando coloca que “[...] interessados na salvaguarda dos conjuntos históricos ou tradicionais e seu entorno” e, em outro momento ao dizer que “não se deveria autorizar o isolamento de um monumento através da supressão de seu entorno”. Nota-se, com isso, a proximidade e, por outro lado, a imprecisão conceitual dos dois termos, que ora são citados em um mesmo documento com significado semelhante e ora são desenvolvidos individualmente por documentos específicos, o que só dificulta o entendimento de ambos, bem como contribui para a existência de zonas nebulosas de conceituação. Vale a pena citar ainda a Declaração de Tlaxcala, elaborada poucos anos depois da Recomendação de Nairóbi, em 1982, e que apoiada nesta, usa mais uma vez o termo ambiência – e apenas este, sem a presença do termo entorno – para posicionar-se contra os perigos que “ameaçam o patrimônio arquitetônico e a ambiência das pequenas localidades”. A Declaração, que tem como foco a conservação e a revitalização das pequenas localidades, considerando para tanto os seus aspectos históricos, antropológicos, sociais e econômicos entende que a ambiência e o patrimônio arquitetural das pequenas zonas de habitat são bens não renováveis cuja conservação deve exigir procedimentos cuidadosamente estabelecidos para evitar os riscos de alteração ou de falsificação causados por razões de oportunidade política. (Declaração de Tlaxcala, 1982, p.1-2)
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Apenas pontuando o termo ambiência, essa Declaração não aprofunda a sua discussão, nem o define tal como feito a Recomendação de Nairóbi, sendo sua contribuição o entendimento de que a ambiência, assim como as edificações estão sujeitas não só a alterações danosas quanto também à falsificação, temática que seria desenvolvida com a Conferência de Nara, de 1994. Entorno O termo “entorno” é mais amplamente utilizado que os anteriores “vizinhança” e “ambiência”, sendo citado em maior número de documentos internacionais acerca da preservação do patrimônio. O primeiro documento que fez uso do termo em questão foi a “Recomendação Paris de Obras Públicas e Privadas” resultante da 15ª Sessão da Conferência Geral da UNESCO, datada de 1968. Nela, estão reconhecidos como bens culturais os bens móveis e imóveis com valor histórico, artístico ou arquitetônico ou ainda etnológico, e segundo o documento, “a expressão bens culturais se estende também ao entorno desses bens”, o que demonstra que segundo essa acepção, o entorno ascendia da condição de valor acessório do bem para o seu entendimento como o próprio bem ou como parte indissociável dele. Em seguida, em 1976 temos a Declaração de Nairóbi, que como comentado anteriormente, faz uso tanto do termo 342
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ambiência quanto do termo entorno, mas conceituando apenas o primeiro e citando o entorno em apenas duas rápidas passagens. Segundo publicação do IPHAN (2007, p.15) uma contribuição deste documento deve-se ao fato de que ele introduz o aspecto social, econômico e cultural como componentes da ambiência, e que dessa forma colocados no contexto da década de 1970, foram ganhando espaço para a conceituação do termo entorno. Em 1980, com a publicação da Carta de Burra, o termo entorno aparece já nas definições iniciais do documento, ao ser colocado que O termo bem designará um local, uma zona, um edifício ou outra obra construída, ou um conjunto de edificações ou outras obras que possuam uma significação cultural, compreendidos, em cada caso, o conteúdo e o entorno a que pertence.(Carta de Burra, 1980, p.1, grifo nosso)
Sendo este um documento interessado em discorrer sobre os procedimentos cabíveis para realizar a intervenção em um bem, entre os quais a conservação, preservação, restauração e reconstrução, é válido reconhecer o destaque dado ao papel do entorno nesta discussão, ao qual coube as seguintes recomendações: A conservação de um bem exige a manutenção de um entorno visual apropriado, no plano das formas, da escala, das cores, da textura, dos materiais, etc. Não deverão ser permitidas qualquer nova construção, nem qualquer demolição ou modificação susceptíveis de causar prejuízo ao entorno. A introdução de elementos estranhos ao meio
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Rafaela Mabel Silva Guedes circundante, que prejudiquem a apreciação ou fruição do bem, deve ser proibida. (Carta de Burra, 1980, p.2)
A Carta Internacional para a Salvaguarda das Cidades Históricas, ou Carta de Washington, de 1986, mais uma vez atenta para o papel do entorno como parte importante para a preservação da diversidade de expressões materiais e sociais das cidades e portanto apresenta-se como interessada [...] mais precisamente às cidades grandes ou pequenas e aos centros ou bairros históricos com seu entorno natural ou construído, que, além de sua condição de documento histórico, exprimem valores próprios das civilizações urbanas tradicionais. (Carta De Washington, 1986, p.1)
Essa Carta oportunamente coloca que os valores aos quais cabe a preocupação com a preservação são aqueles advindos do caráter histórico da cidade, cuja ameaça comprometeria a autenticidade dessa cidade histórica, assim como o conjunto dos elementos que expressam sua imagem, entre os quais estão colocadas “as relações da cidade com o seu entorno natural ou criado pelo homem” (Carta De Washington, 1986, p.2). O mais recente documento que trata da proteção do entorno, e o mais aprofundado deles, é a Declaração de Xi’an Sobre a Conservação do Entorno Edificado, Sítios e Áreas do Patrimônio Cultural, adotada a partir de 2005. Segundo esta
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Declaração, que considera os documentos anteriores que fazem referência à ideia de entorno e ao interesse em sua conservação, O entorno de uma edificação, um sítio ou uma área de patrimônio cultural se define como o meio característico seja de natureza reduzida ou extensa, que forma parte de – ou contribui para – seu significado e caráter peculiar. (IPHAN, 2007, p.119)
A Declaração destaca ainda que a definição de entorno vai além de seus aspectos físicos e visuais, e supõe uma interação com outros aspectos do patrimônio cultural intangível, tanto quanto com o “contexto atual e dinâmico de natureza cultural, social e econômica”. O aprofundamento na conceituação do entorno advindo com esta Declaração abre espaço também para a sua discussão no campo operacional, a com o surgimento de questões como a definição de limites para entorno, sobre a qual o documento coloca que Compreender, documentar e interpretar os entornos é essencial para definir e avaliar a importância como patrimônio de qualquer edificação, sítio ou área. A definição do entorno requer compreender a história, a evolução e o caráter dos arredores do bem cultural. Tratase de um processo que deve considera múltiplos fatores, inclusive a experiência de aproximação ao sítio e ao próprio bem cultural. [...] As tradições culturais, os rituais, as práticas espirituais e os conceitos, assim como a história, a topografia, os valores do meio natural, os usos e outros fatores contribuem para criar o conjunto de valores e dimensões tangíveis do entorno. A definição do entorno deve conjugar harmoniosamente seu caráter, seus valores e sua relação com o bem cultural. (IPHAN, 2007, p.120)
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Como podemos ver, a Declaração de Xi’an adota uma preocupação com os valores imateriais e intangíveis não vista anteriormente e faz desses valores critérios a serem considerados no momento operacional da delimitação do entorno para fins de sua conservação. Assim, com a dilatação conceitual do termo, faz-se ainda mais delicado, porém necessário, o trabalho da sua delimitação. Para tanto, a Declaração faz também considerações de cunho técnico e legal ao colocar que as regulamentações e afins para conservação do patrimônio “devem prever a delimitação de uma zona de proteção ou respeito ao seu arredor que reflita e contribua para conservar o significado e o caráter diferenciado do entorno” (IPHAN, 2007, p.121). E, ainda, que “os instrumentos de planejamento devem incluir medidas efetivas de controle do impacto das mudanças rápidas ou paulatinas sobre o entorno” onde as silhuetas e os panoramas devem ser considerados como fatores fundamentais para evitar distorções visuais e espaciais, assim como usos inadequados no entorno. Conforme coloca a publicação do IPHAN intitulada Entorno de Bens Tombados, o conceito de vizinhança foi sendo expandido conforme fora também ampliada a noção de patrimônio, e hoje o termo entorno parece mais apropriado, sendo utilizado nas publicações mais recentes. Nestas, o seu entendimento “pressupõe o conhecimento da história e das características ambientais e culturais, ou seja, o espaço ou território ou paisagem são importantes para o entendimento de 346
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um todo, que não pode ser somente informado pelo bem protegido” (IPHAN, 2007, p.18, grifo nosso). Ainda segundo a mesma publicação, o instrumento do entorno se fortaleceu como estratégia de gestão urbana, sendo hoje um recurso importante das práticas de preservação no Brasil. A partir da colocação anterior de que a paisagem é também importante para o entendimento do todo que não se encerra na compreensão do próprio bem, abrimos o caminho para discutir este outro conceito frequentemente associado ao entorno. Paisagem O uso do termo paisagem se distancia do conceito de vizinhança, mas permanece associado aos conceitos de ambiência e entorno, aos quais ora está subordinado, ora compreende-os na sua conceituação e abrangência física. Nesse sentido, parece-nos importante investigar de que maneira as principais documentações internacionais que tratam da proteção do patrimônio entendem a questão da proteção da paisagem e como se dá o embate com os demais conceitos aqui estudados. O primeiro documento de caráter patrimonial onde é citado o termo paisagem é a Recomendação Paris Paisagens e Sítios, de 1962, que tem como intenção salvaguardar e quando possível restituir, por sua beleza e caráter, os aspectos das “paisagens e sítios, naturais, rurais e urbanos, devidos à natureza 347
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ou obra do homem, que apresentam um interesse cultural ou estético, ou que constituem meios naturais característicos” (Recomendação de Paris, 1962, p.2). Neste documento, a paisagem é tomada como o bem a ser conservado e não no sentido de entorno ou ambiência de um bem, ela em si possui o valor substantivo a que se refere Meneses (2006, p.43). A Recomendação de Paris traz ainda uma importante contribuição que reside no fato de demonstrar uma preocupação com a escala de abrangência que tais paisagens podem ter e para isso, o documento lança mão de medidas que devem ser trabalhadas em conjunto com planos de urbanização e de planejamento nos níveis regionais, rurais e urbanos. Entre essas medidas pode ser citada a proteção legal por zonas, no caso de paisagens extensas, termo colocado pelo documento, que indica ainda Os sítios isolados e de pequenas dimensões, naturais ou urbanos, assim como porções de paisagem que ofereçam um interesse excepcional, deveriam ser protegidos por lei. Deveriam ser igualmente protegidos por lei os terrenos de onde se aprecie uma vista excepcional e os terrenos e imóveis que envolvam um monumento notável. (Recomendação Paris Paisagens e Sítios, 1962, p.5)
Algumas observações podem ser feitas a partir do trecho citado, como o uso inédito da expressão “porções de paisagem” que indica uma possível delimitação desta paisagem e ainda a difere do que seria uma paisagem extensa, por ter um caráter mais reduzido. A questão da visibilidade venha tona 348
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compreendendo também como bem a ser protegido o terreno a partir de onde se produz essa vista – ao contrário do bem para o qual se deve possibilitar a apreciação visual. Destaca-se ainda no trecho, o interesse na proteção de terrenos ou imóveis que envolvam um monumento, mas que para os quais não foi utilizado nem o termo paisagem, ao qual se refere o teor do documento, nem os demais termos que são objeto do nosso estudo. A Recomendação de Paris é também um dos únicos documentos internacionais que tratam a paisagem sem necessariamente vinculá-la a algum adjetivo qualificativo como paisagem urbana, paisagem histórica, paisagem cultural entre outros. Essa vertente no estudo da paisagem é bastante significativa, visto que a partir da difusão do termo paisagem cultural nas décadas de 1970 e 1980, estabeleceram-se outros interesses, outras conceituações e outras discussões que afastam ainda mais o entendimento de paisagem enquanto envoltório de um bem. Entre os poucos documentos que assim enxergam a paisagem, como uma envolvente, cita-se o Memorando de Viena, de 2005, que intitulado “O patrimônio mundial e a arquitetura contemporânea - Gestão da paisagem urbana histórica”, trata especificamente da inserção da nova arquitetura sobre a paisagem urbana e como contribuição, “vai para além dos termos tradicionais de ‘centro histórico’, ‘conjunto’ ou ‘envolventes’, frequentemente utilizados nas cartas e leis de proteção, para incluir o quadro territorial e a paisagem
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Rafaela Mabel Silva Guedes envolvente” (Vienna Memorandum, 2005, p.3, tradução nossa, grifos nossos).
Entendemos aqui, diante do que já fora exposto, que considerar a existência de uma paisagem envolvente é retomar a definição dos conceitos de ambiência e entorno, o que não nos parece ser devidamente apropriado no caso de uma publicação destinada especificamente a conservação das paisagens, assim como antes aconteceu na Declaração de Nairóbi, que trata da ambiência, mas faz uso inadvertido do termo entorno. Coma paisagem aparecendo nas mais recentes documentações internacionais e nacionais como o bem a ser conservado – geralmente acrescido de alguma qualificação, como a paisagem cultural – e não como um valor adjetivo do bem principal, podemos entender que a proximidade conceitual desta com os demais termos limita-se a sua indefinição operacional e que, assim como o entorno, a ambiência e a vizinhança indicam a necessidade de sua conservação, nenhum destes termos deixa claros os limites reais da sua abrangência e consequentemente da possível atuação. Considerações Finais Pudemos acompanhar na discussão aqui delineada que os termos vizinhança, ambiência, entorno e paisagem são comumente utilizados para designar as áreas que influenciam e reciprocamente sofrem influência de um determinado bem com 350
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valor patrimonial. Pela aproximação conceitual com que são utilizados principalmente os três primeiros termos nos documentos aqui citados, podemos estender as colocações que Meneses (2006) faz, referindo-se especificamente ao entorno, para a ambiência e a vizinhança. O autor entende que O bem tombado é que é o objeto de interesse e de proteção; se há controle do entorno, é em função do bem tombado. Portanto, valor substantivo é o do bem tombado; o entorno tem valor adjetivo. Se o entorno tivesse valor substantivo, seria irresponsabilidade do órgão de proteção não o ter incluído na ação protetora adequada, que é o tombamento. (MENESES, 2006, p.43)
Considerando que a paisagem assume na maioria dos documentos a posição do próprio bem – e que teria, portanto, valor substantivo – e ainda levando em conta o valor adjetivo do entorno, ambiência e vizinhança, podemos dizer que tratamos aqui de termos que encerram em si um valor tal que os faz merecedores de uma conceituação apropriada, para que dessa forma seja possível colocar em prática a efetiva proteção dos seus valores. Contudo, o que vem sendo transmitido pelos documentos que tratam da preservação do patrimônio é uma forte imprecisão conceitual, que faz com que os termos em questão sejam na maioria das vezes utilizados como sinônimos. Não seria a semelhança conceitual o maior problema das documentações caso estivessem sendo tratados termos com uma definição espacial menos complexa. Por exemplo, se usássemos os termos edificação, construção ou imóvel para designar o 351
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mesmo bem, provavelmente não estaríamos incorrendo na imprecisão dos limites destes tão gravemente como quando usamos ambiência, entorno, vizinhança ou paisagem para designar uma mesma coisa. Por outro lado, o investimento na delimitação precisa do que é conservação, preservação ou restauração que garante até então, os subsídios para a discussão dos termos e aplicação dos procedimentos. O que este artigo tentou demonstrar é que imprecisões no campo conceitual interferem direta e indiretamente na aplicação destes conceitos no campo operacional, afinal, se é necessária a proteção do entorno de um bem, é praticamente impossível fazê-la sem que esteja claro o que é efetivamente e espacialmente o entorno deste. Supõe-se ainda que uma delimitação espacial legítima não pode ser fundamentada num conceito impreciso, que pode ser facilmente substituído por outro utilizado com a mesma significação também imprecisa. Para a aplicação do instrumento do tombamento, ou para as demais ações possíveis para a conservação de um bem não parece apropriado considerar todos esses termos como unívocos e continuar incorrendo na imprecisão. À paisagem cabe o seu valor, o seu entendimento e os seus instrumentos de proteção. Aos demais termos digam-se o mesmo, mas espera-se que o campo conceitual favoreça tais entendimentos e que isso repercuta no campo operacional da proteção destes.
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DA DINÂMICA URBANA À PRODUÇÃO DOS VAZIOS URBANOS NO CENTRO HISTÓRICO DE JOÃO PESSOA Tadeu de Brito Melo “a percepção é, acima de tudo, um processo seletivo, pois nós só percebemos aquilo que nossos objetivos mentais nos preparam para perceber” (Del Rio, 1998)
Introdução Neste artigo traremos uma análise do Centro Histórico de João Pessoa realizada com base em observações diretas e na utilização de ferramentas do desenho e morfologia urbana. Esta análise busca entender, a partir do comportamento urbano e social da porção da área central tombada Instituto de Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), no final do ano de 2007, quais as razões que justificam a produção e/ou permanência dos vazios urbanos que lá existem e quais são seus efeitos no tecido urbano da cidade.
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Da dinâmica urbana à produção dos vazios urbanos no centro histórico...
Entendemos vazios urbanos como os terrenos e edifícios vacantes que se diferenciam no tecido urbano por estarem sem ocupação, sem uso ou subutilizados, sendo representativos de mudanças socioeconômicas e produzidos a partir de um esvaziamento da área, trata-se de um vazio que é social e fisicamente produzido. (BORDE, 2006). Na categorização dos vazios utilizou-se da classificação identificatória dos vazios urbanos do Estatuto da Cidade (Apud BORDE, 2006, p.15) criada como diretriz prioritária para evitar a retenção especulativa do solo urbano que diz: a) terrenos não ocupados: são aqueles nos quais não há edificação, mas que podem estar sendo temporariamente utilizados para circulação ou lazer, por exemplo; b) terrenos não utilizados: são terrenos que podem até ser ocupados por edificações, mas onde não se verifica uso, ainda que temporário; c) terrenos e edifícios subutilizados: são aqueles em que se desenvolvem usos e ocupações temporários ou parciais que os caracterizam como parcialmente ociosos, subaproveitados. O caminho metodológico adotado para realização deste trabalho inicia-se com uma revisão bibliográfica que busca, primeiramente, compreender o conceito de vazio urbano e fazer um resgate histórico do início do processo de esvaziamento das edificações da área central da cidade. Este conhecimento permitiu questionar qual é a dinâmica socioeconômica desta área e, posteriormente, iniciar a elaboração de mapas temáticos onde são identificados os vazios e os usos predominantes. A 357
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espacialização dos vazios nos mapas nos permitiu compreender a real proporção que possuem dentro do tecido urbano do Centro Histórico. O passo seguinte foi a pesquisa direta com entrevistas e registro fotográfico. Por fim foi feita a sistematização e análise das informações obtidas para a elaboração da redação da pesquisa. Para facilitar esta análise elegemos alguns elementos que acreditamos serem fundamentais à compreensão da dinâmica urbana do local, tais como: uso e ocupação do solo, tecido urbano, relações de vizinhança, vias, fluxos e percursos e a distância do uso habitacional da área central para os equipamentos urbanos e socioculturais existentes. Somente a partir da análise desses elementos nos foi possível ter a real compreensão dos vazios urbanos existentes na área desde sua gênese, e também delinear algumas hipóteses acerca da sua existência e permanência na área central. Setores – Uso e Ocupação do solo
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Figura 01: Representação reduzida do Mapa 02/03, elaborado sobre bases cartográficas de João Pessoa de 2005 – Arquivo Público PMJP. Elaboração: Autor, 2009.
A imagem acima nos mostra com clareza os diferentes usos existentes na área central e a configuração de áreas a partir da aglomeração do mesmo tipo de uso que nos possibilitaram separar a área em pequenos setores com comportamentos específicos e tentar assinalar alguns fatores que influenciam na implantação desses usos, como por exemplo, os fluxos/percursos de pedestres e veículos. De acordo com Del Rio (1998) setores são áreas da cidade que possuem certa extensão, limites precisos, identidade própria e são interligados por percursos. No caso da área central os setores foram distinguidos a partir dos diferentes usos do solo. Os setores identificados foram o comercial, de serviços e
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residencial, porém pudemos perceber que eles não se somam para construção de uma área com uma dinâmica única Com a saída da população residencial da área central e a posterior intensificação das atividades comerciais foi-se delimitando o que atualmente definimos como setor comercial. Ele é organizado em torno de uma aglomeração de estabelecimentos varejistas, desde óticas, papelarias, roupas e móveis, até equipamentos e utensílios para bares, restaurantes, cozinhas industriais, etc. Além disso, foram se configurando ruas especializadas em um determinado tipo de produto que de acordo com Corrêa (1989), formam um conjunto funcional que criam um monopólio espacial, atraindo consumidores, que têm assim a possibilidade de escolher entre vários tipos de marcas e preços. Geralmente essas ruas especializadas, mesmo sendo de naturezas distintas, estão localizadas juntas umas das outras, formando um conjunto coeso que pode induzir o consumidor a comprar outros bens que não faziam parte de seus propósitos (CORRÊA, 1989, p.57). A ocorrência de ruas especializadas na área central de João Pessoa foi recentemente identificada e apontada por Sales. À exemplo da rua da República com estabelecimentos de artigos de espuma e colchões; a rua Visconde de Pelotas com óticas; o Parque Solón de Lucena com estabelecimentos de calçados e roupas, e o trecho sul da rua General Osório com estabelecimentos de materiais eletrônicos. (SALES, 2009, p.120).
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Percebemos que no setor comercial é configurado um trecho que pode ser chamado de núcleo principal de comércio da área central como pode ser observado na figura abaixo e, que a partir dele vão se formar percursos que levam a outros aglomerados de atividades comerciais, porém de menor intensidade, quando comparados a esse núcleo principal. Geralmente, os percursos dos pedestres são determinantes para a formação desse setor. O comportamento dos pedestres que se dirigem ao setor comercial inicia-se ou no Parque Solón de Lucena (parada de ônibus da Lagoa) ou na Avenida Guedes Pereira (parada dos Correios), dependo da proximidade com os seus interesses no comércio. A partir de então, eles se locomovem pelo setor e após atingirem seus objetivos, para saírem, dirigem- se a um dos dois pontos citados.
Figura 02: Mapa de uso do solo com destaque para o núcleo principal de comércio e percursos que levam a outros aglomerados de 361
Tadeu de Brito Melo atividades comerciais, elaborado sobre bases cartográficas de João Pessoa de 2005 – Arquivo Público PMJP. Elaboração: Autor, 2009.
Os pedestres são condicionados a seguirem este percurso devido ao fluxo de transporte e/ou a topografia com desníveis acentuados, já que estes são os pontos estratégicos para se chegar ao setor comercial, pois as outras paradas de ônibus – na Avenida Cardoso Vieira, Estação Ferroviária e Terminal de Integração – dificultam a chegada neste setor. Foi a partir desse comportamento, do grande aglomerado comercial e do intenso fluxo de pessoas no horário comercial que delimitados o núcleo principal de comércio da área central, como pode ser melhor observado na figura acima. Dentro desse núcleo nota-se um fluxo intenso de pedestres que o torna favorável ao desenvolvimento de atividades comerciais, já que sempre há pessoas cruzando as vitrines com a possibilidade de serem atraídas ao consumo. As calçadas, regra geral, são tomadas por esse fluxo e também pelo comércio informal e diversas estratégias publicitárias. Neste núcleo dificilmente são encontradas edificações desocupadas e que não tenham suas frentes utilizadas como vitrines, com exceção das instituições bancárias e administrativas. É uma área onde a ocorrência de vazios urbanos é praticamente nula, pois não há motivo racional para se deixar a edificação fechada visto que há uma demanda intensa por comércio. Os poucos exemplares de vazios encontrados são de edificações subutilizadas, onde o térreo é ocupado para o 362
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comércio e os demais pavimentos ficam fechados. Esta prática acontece porque o interesse maior no uso da edificação são as atividades comerciais, diminuindo-se assim o interesse na ocupação dos pavimentos superiores, tendo em vista que não há possibilidade de se criar uma vitrine, mesmo quando existe uma entrada independente para esses pavimentos e que poderiam ser ocupados por habitações ou serviços. De forma dispersa são encontrados os poucos serviços que em sua maioria dividem espaço com as atividades comerciais e ficam restritos aos fundos das edificações que funcionam como galerias, com exceção dos restaurantes, bares e lanchonetes. Quando partimos para tentar entender as razões da existência de atividades comerciais fora do núcleo de comércio principal, percebemos outros núcleos secundários na extensão da área central. Estes núcleos secundários estão fora do percurso principal de pedestres que liga o Parque Solón de Lucena á Avenida Guedes Pereira, que acabam por atrair certo número de consumidores por oferecerem um comércio característico e por serem áreas já consolidadas historicamente pelo uso comercial como os casos da Rua da República e Rua Maciel Pinheiro, ruas especializadas. Atualmente, a Rua da República possui grande oferta de móveis usados, tecidos e vidros; e a Rua Maciel Pinheiro, de materiais de construção e peças automotivas. As principais vias que levam os pedestres a essas ruas também acabam se tornando 363
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foco do uso comercial, como a Avenida Barão do Triunfo, que leva para a Rua Maciel Pinheiro e as Avenidas General Osório e Beaurepaire Rohan, que dão acesso a Rua da República. Também fazendo parte do setor comercial, o comércio informal insere-se em qualquer lugar da malha urbana onde haja fluxo de pessoas e ele possa ser notado. Geralmente, esse tipo de comércio marca um ponto fixo ou definirá um itinerário de acordo com sua clientela. Na área central de João Pessoa ele vem conquistando locais específicos para se instalar, devido à construção de shoppings populares ou camelódromos, criados para receber ambulantes e camelôs locais. Para Sales: As atividades terciárias informais vêm atribuindo dinâmica econômica a este centro, bem como reforçando sua centralidade para um padrão de consumo especifico (...) De fato, quiçá o comércio informal não expresse uma centralidade, mas é certo que sua ocorrência vem a reforçar e a incrementar a centralidade múltipla do Centro Principal de João Pessoa. (SALES, 2009, p.119).
Aparecendo, inicialmente, dentro do setor de comércio com poucos e dispersos exemplares (lanchonetes, bares e restaurantes) o setor de serviços começa a se formar às margens do núcleo de comércio principal, mas só assumirá uma forma própria com a constituição de um aglomerado de estabelecimento de serviços diversos como escritórios, galerias de arte, instituições, casas noturnas, salões de beleza, academias, clínicas, hospitais, dentre outros.
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Os estabelecimentos de serviços se instalam na área central devido à fácil acessibilidade e a disponibilidade de infraestrutura existente, mas também como apontado por Sales: As atividades terciárias dispersas ora buscam uma proximidade com o cliente - principalmente no caso de prestação de serviços como cabeleireiro, academia de ginástica, escolas de 1 grau, 2 grau e 3 grau - ora para sua funcionalidade buscam a distância, tanto pela maior oferta de espaço – à exemplo das gráficas - como forma de evitar grandes concentrações e aquilo que lhe é inerente, como poluição do ar, sonora – à exemplo dos hospitais e asilos. (SALES, 2009, p.113).
A configuração espacial produzida pelo setor de serviços possibilita o aumento dos rendimentos dos estabelecimentos comerciais, pois atrai um fluxo de pessoas tanto quanto o uso comercial, mas de modo diferente. O fluxo de pedestres é atraído para este setor caso ele tenha algum objetivo especifico para ser realizado na área ou quando estes serviços estão situados em alguma de suas vias de percurso, como as de entrada ou saída da área central que veremos adiante. No entanto, devido ao seu caráter periférico em relação ao setor comercial, o setor de serviços apresenta uma organização especifica. São exemplos desse comportamento a Rua da Areia, que é conhecida na cidade pela concentração de casas noturnas; trecho das Ruas Duque de Caxias e Visconde de Pelotas, pela concentração de serviços voltados para as artes e letras; e parte da praça Dom Ulrico e São Francisco, com a Faculdade de Ciências Médicas.
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No setor de serviços são encontrados exemplares de vazios urbanos tanto de terrenos não ocupados quanto de edificações não utilizadas e subutilizadas. Os três tipos de vazios estão espalhados por todo o setor, mas são encontrados em pequenos aglomerados, haja vista que como já foi dito “um vazio atrai outro vazio”. Quando analisamos o setor residencial notamos, primeiramente, que como resultado de alguns anos de esvaziamento populacional ele ficou reduzido a permanecer implantado em sua grande parte as margens da área central. A dinâmica urbana atual deste setor está intimamente ligada a do bairro vizinho, Roger, que é predominantemente residencial, seguindo a tendência dos bairros que margeiam as áreas centrais.
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Da dinâmica urbana à produção dos vazios urbanos no centro histórico... Figura 03: Mapa de uso do solo com destaque para o setor residencial, elaborado sobre bases cartográficas de João Pessoa de 2005 – Arquivo Público PMJP. Elaboração: Autor, 2009.
Devido à saída de uma grande parcela da população residente da área objeto de estudo, muitas edificações foram deixadas fechadas e sem nenhum uso, gerando uma perda do valor imobiliário; consequentemente, tornaram-se imóveis que quase não recebem investimentos dos seus proprietários, pois estão localizados em uma área que praticamente não atrai nem pessoas para morar nem o comércio. A tendência é que este setor diminua cada vez mais, ficando restritos às ocupações irregulares e às partes que estão inseridas na dinâmica urbana do Róger. Segundo Corrêa (1989), a zona periférica do centro apresenta um amplo setor residencial caracterizado por residências populares e de classe média baixa, muitas delas deterioradas, como os cortiços, onde residem parcela da população que trabalha na área. Para ele este setor possui um pequeno comércio varejista e de serviços que atendem a essa população, neste caso, podemos tomar como exemplo o pão que é vendido na área do Porto do Capim em horários fixos utilizando bicicleta ou carro. Neste setor é possível encontrarmos vazios urbanos dos três tipos (terrenos não ocupados e não utilizados e edifícios subutilizados), que em sua maioria estão inseridos nas proximidades da área do Porto do Capim, composta por três
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favelas, a do Porto do Capim, a XV de Novembro e a Vila Nassau. Entendemos que a existência desses vazios está ligada a barreiras sociais devido às ocupações irregulares. A separação por setores para a análise definida por manchas predominantes de uso do solo nos ajudou a perceber que entre os setores se constituem faixas de transição que são onde se encontram, em maior quantidade, os exemplares de vazios urbanos. Acreditamos que esse fato ocorre por nestas áreas se constituírem o que chamamos de uso de espera. Esse uso é caracterizado pela presença de edificações que ficam fechadas ou tendo uma rotatividade de estabelecimentos até que algum uso passe a prevalecer nesta faixa, já que ela não tem predominância nem de características do uso comercial, nem de serviços e nem residencial. Enquanto isso, estas edificações permanecem fechadas, produzindo pequenos concentrados de vazios urbanos, principalmente, devido ao pouco fluxo de pessoas e a não consolidação de vizinhança. É uma área de esvaziamento populacional ou abandono de edificações. Outro ponto de bastante importância para o entendimento da conformação do tecido urbano, da dinâmica de uso do solo e o consequente surgimento dos vazios urbanos na área é a questão de vizinhança. Percebe-se que, tal como a existência de um vazio atrai o aparecimento de outro, uma residência atrai o “surgimento” ou permanência de outra e, consequentemente impedem a aproximação dos vazios. 368
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Esse comportamento é analisado por Borde (2006), no qual a proximidade a um vazio urbano faz com que a área em torno seja também submetida a uma situação de esvaziamento: são os terrenos e edificações que pelo estado de conservação e ocupação ou pela desvitalização econômica das atividades que neles se desenvolvem configuram um frágil equilíbrio urbano e podem vir a se constituir em vazios urbanos. Como também já apontado por Jacobs (2000), ao citar o exemplo das cidades dos Estados Unidos, onde os lugares tendentes à decadência provocam um efeito econômico tão forte na vizinhança que a torna um “lugar morto”. Além da questão da vizinhança, um aspecto importante a ser apontado é a distância do setor habitacional para os equipamentos urbanos e sócio-culturais existentes, pois mesmo esta área apresentando uma quantidade razoável desses equipamentos, como teatros, escolas, bibliotecas, praças e etc., estes não estão localizados próximos das áreas de concentração habitacional restantes. Muitos desses equipamentos foram instalados quando a área central ainda era vivenciada intensamente por residências, comércios e serviços. Após a gradativa saída de grande parte das residências e a intensificação do uso de comércio e serviços, foise então consolidando uma distância entres estes equipamentos e a concentração residencial. Essa distância é hoje ocupada por vazios, serviços e comércios e influi na apropriação das edificações e nos 369
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percursos que levam aos equipamentos. Devido a essa situação, o uso desses equipamentos fica condicionado, em grande parte, ao funcionamento em horário comercial, que é o horário que tem mais pessoas utilizando as ruas. Ou ficam vinculados ao público que se desloca de carro ou ônibus, como no caso do Teatro Santa Roza, já que o público que cruza a área central a noite é mínimo, o que torna o caminho perigoso. Um ponto que deve ser assinalado e que foge aos setores que foram expostos, mas que por muito tempo influenciou na definição dos setores de comércio e serviços, são as atividades administrativas. Desde a origem da cidade as atividades administrativas fizeram parte da configuração da área central, no entanto, vem ocorrendo um processo recente de saída destas funções da área. As razões que estão motivando a saída dessas funções estão ligadas a falta de espaço físico, para instalações que possam aglutinar uma diversidade de serviços. Outra razão é a tendência de se locar as sedes governamentais dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário em setores urbanos que maximizam as condições de deslocamento das classes economicamente privilegiadas, abrangendo a lógica da localização valorizada, pois gera uma importância institucional ao “centro novo” e deixa o centro tradicional relegado ao esvaziamento (VILLAÇA, 2001, p.328). Um exemplo recente dessa saída foi a transferência da administração e grande parte das secretarias da Prefeitura 370
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Municipal de João Pessoa para o Centro Administrativo localizado no bairro periférico de Água Fria (margem da BR230). Essa transferência representou não só o privilegio dos que possuem automóveis, mas também um fator negativo para a dinâmica urbana do centro da cidade, pois a presença dos órgãos administrativos municipais nessa área proporcionava uma maior utilização das atividades do centro por parte daqueles que, diariamente, usufruíam dos serviços da Prefeitura. (ANDRADE, 2007, p.100). Vias e fluxos Além das razões postas anteriormente, percebemos que outras causas corroboram para o surgimento de vazios urbanos no tecido urbano da cidade. Dentre elas as vias de entrada, os percursos internos – tanto dos carros quanto dos pedestres – e a saída e as vias que cruzam a área de estudo, como veremos adiante.
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Figura 04: Mapa de uso do solo com destaque para as entradas e saídas da área central, elaborado sobre bases cartográficas de João Pessoa de 2005 – Arquivo Público PMJP. Elaboração: Autor, 2009.
Pudemos contabilizar nove vias que possibilitam a entrada na área central, quatro com acesso leste: 01) Avenida Dom Pedro I, 02) Rua Barão de Abiaí, 03) Rua Miguel Couto, 04) Avenida Dom Pedro II; três sul: 05) Rua Rodrigues de Aquino, 06) Rua Rodrigues Chaves, 07) Rua Amaro Coutinho; uma oeste: 08) Avenida Sanhauá; e uma norte: 09) Rua Elpídio Alves da Cruz. Todos esses acessos são possíveis para veículos de passeio, motocicletas e caminhões de pequeno porte. Para o transporte coletivo ficam restritas as entradas da Rua Miguel Couto e Avenida Sanhauá, sendo a primeira utilizada pelo transporte coletivo do município de João Pessoa, e a segunda 372
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pelo intermunicipal e interestadual. Cada acesso permite que o usuário defina o seu percurso de acordo com os seus interesses na área central. Destacamos os acessos pela Rua Miguel Couto e Avenidas Dom Pedro I e Sanhauá. O acesso pela Avenida Dom Pedro I permite que o fluxo vindo do leste da cidade acesse a área central sem ter que necessariamente passar pelo núcleo principal de comércio, onde há um intenso fluxo de veículos. Esta avenida que juntamente com a Rua Barão de Abiaí e Avenida Dom Pedro II, formam o principal fluxo interno da área central, já estabelecem percursos e retornos dentro do núcleo de comércio principal. Já a Rua Miguel Couto é a entrada da área central mais acessada pelos transportes coletivos, visto ser a única utilizada por estes. Por ela passam 69 linhas das 81 que existem na cidade, com uma frota de 421 ônibus, somada a frota dos transportes individuais, que segundo o IBGE/CIDADES (2007) conta com 428.469 veículos – entre automóveis, caminhonetes, caminhões, motocicletas e motonetas. Isto contabilizaria, em média, um veículo e meio por pessoa.
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Figura 05: Mapa de uso do solo com destaque para o percurso da Rua Miguel Couto, elaborado sobre bases cartográficas de João Pessoa de 2005 – Arquivo Público PMJP. Elaboração: Autor, 2009.
Ou seja, a Rua Miguel Couto é o início de uma via expressa que leva o fluxo para o Terminal de Integração, Rodoviária, Distrito mecânico ou para a saída da cidade. Esta via é formada pela Rua Miguel Couto, seguida pela Avenida Cardoso Vieira, Rua João Suassuna e Avenida Sanhauá que a partir do cruzamento existente em frente a Estação Ferroviária, se divide em três caminhos distintos, são eles: a Avenida Sanhauá em direção a Bayeux ou a saída da cidade; a Rua Francisco Londres em direção ao Distrito Mecânico ou João Machado; e a terceira opção é o retorno para a Lagoa, após
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cruzar o terminal de ônibus, seguir pela Avenida Guedes Pereira e sair pela Avenida Padre Meira. Na referida via expressa, a partir da Avenida Miguel Couto até o momento da divisão do fluxo, percebe-se um afunilamento do tráfego de veículos e ônibus que cruzam a área central, sem precisar criar, necessariamente, nenhuma relação com a mesma, evitando assim, toda a lentidão do trânsito dentro do núcleo principal desta área. No entanto, essa via oferece em troca para a área central, uma localidade onde as edificações que nela se encontram compõem um grande e extenso vazio urbano. O intenso e veloz fluxo de automóveis em uma via estreita, com calçadas estreitas, cria uma forte sensação de insegurança que somada a falta de vagas para estacionamento, elimina as possibilidades de instalação de qualquer uso. Consequentemente, não há motivos para que as pessoas andem por ela. No caso da Avenida Sanhauá ela se configura como um dos principais acessos que as cidades vizinhas – Santa Rita, Bayeux, Cruz do Espírito Santo e etc. – têm para chegar a João Pessoa, obrigando o fluxo vindo dessas cidades a cruzar a área central, o que interfere diretamente na dinâmica desta área por conta do aumento do fluxo.
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Figura 06: Mapa de uso do solo com destaque para o percurso da Avenida Sanhauá, elaborado sobre bases cartográficas de João Pessoa de 2005 – Arquivo Público PMJP. Elaboração: Autor, 2009.
Percebemos que essa via expressa, além de definir um corredor de vazios urbanos, também define as principais saídas da área central, que são a Avenida Padre Meira em direção leste, e Avenida Sanhauá e Visconde de Itaparica em direção oeste. As outras saídas da área central encontradas são: 01) Rua Deputado Odon Bezerra; 02) Avenida Padre Meira; 03) Rua Índio Piragibe, em direção leste; 04) Rua das Trincheiras, em direção sul; 05) Rua Irineu Pinto; 06) Rua Visconde de Itaparica; 07) Avenida Sanhauá, em direção oeste; e 08) Avenida Gouveia da Nóbrega, em direção norte.
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Relativo ao fluxo de pedestres, percebemos que ele é definido por duas variáveis, o percurso dos ônibus e a área residencial. O caminho seguido pelos ônibus tende a formar um percurso de pedestres, que como já apontado favorece a formação de um setor comercial. É na distância entre o setor comercial e o residencial que se constrói uma ligação dada pelos percursos dos pedestres, como visto na figura acima. No entanto, por esse percurso ser restrito a poucas pessoas, quando comparado com o fluxo que há no núcleo de comércio principal, acaba por não atrair a instalação de estabelecimentos comerciais. Além disso, não atrai o uso habitacional, já que este não tende a expansão.
Figura 07: Mapa de uso do solo com destaque para as paradas de ônibus e os percursos dos pedestres que partem destas paradas ou do setor residencial em direção ao setor comercial e de serviços, elaborado sobre bases cartográficas de João Pessoa de 2005 – Arquivo Público PMJP. Elaboração: Autor, 2009. 377
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Assim, notamos que os percursos desenhados pelos pedestres não influem diretamente no aparecimento de vazios, pois sua relação é construída prioritariamente com os usos. Tecido, dinâmica e vazios urbanos Diante do quadro exposto, percebemos que a atual rigidez na configuração dos usos comercial e serviços, que não criam relação com o uso residencial, tende a influenciar no surgimento e permanência da situação de vazios urbanos na área de estudo, mesmo quando essa mesma área apresenta superficialmente uma grande acessibilidade e heterogeneidade urbana, pois quando analisamos a relação entre eles percebemos que não se somam para a criação de uma área com diversidade e sem vazios urbanos. A área central é hoje uma área rigidamente rachada entre usos e vias. E para a construção de um quadro de dinâmica e diversidade urbana, se faz necessário que cada uso interaja com os elementos humanos, econômicos e arquitetônicos que existem dentro do seu setor e com os setores que o margeiam. O atual fluxo definido pelos veículos automotores é resultado de uma malha urbana que criou na Rua Miguel Couto uma “micro rodovia” dentro de uma estrutura urbana histórica que não suporta tamanho fluxo, ou seja, que não fortalece o caráter residencial, comercial e nem histórico da área, criando um caminho de vazios urbanos. 378
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Quanto aos percursos definidos pelos pedestres, estes não influenciam diretamente nos vazios, pois são resultado da configuração dos usos, não tendo força por si só de romper essa falta de relacionamento entre os usos e nem de atrair pelo seu caminhar a instalação de comércios, serviços ou residências. E os usos de comércio e serviços, mesmo apresentando um alto fluxo de dinheiro, não tende a crescer espacialmente, ocupando novas edificações, mas sim a haver uma continua substituição do tipo de atividade oferecida, tendo em vista que o comércio que cresce é o informal, como pode ser observado com o surgimento de novos centros comerciais para os camelôs e ambulantes. É ao redor desses usos que são encontradas a maior quantidade de vazios urbanos. Em meio ao que foi dito, notamos, então, que os motivos encontrados para a existência dos vazios urbanos na área central de João Pessoa estão associados a quatro fatores que atuam isoladamente ou combinados, são eles: a) barreiras sociais à ocupação; b) falta de dinâmica no mercado imobiliário; c) esvaziamento populacional ou abandono das edificações e d) circulação viária. Estas percepções foram aprofundadas em outra etapa do estudo, no qual foram escolhidos três trechos específicos da área de estudo para serem analisados isoladamente, pois eles são representativos de uma forma de produção e de apropriação urbana da área central. São eles: trechos das ruas Maciel Pinheiro, Duque de Caxias e Visconde de Pelotas e da área do 379
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Porto do Capim. Nesta etapa, também foram analisada a concentração de terrenos não ocupados – que aparentam ter um comportamento urbano diferenciado dos outros vazios encontrados na área de estudo – foram levantadas recomendações para a elaboração de um planejamento e desenho urbano que vise à ocupação e utilização destas áreas com a reinserção do uso habitacional como forma de tentar inverter o processo de esvaziamento populacional e de degradação do tecido urbano. Referência bibliográfica ANDRADE, Paulo A. F. Metamorfose dos centros urbanos: uma análise das transformações na centralidade de João Pessoa – PB, 1970-2006. Dissertação de mestrado, UFPB, 2007. CORREA, Roberto Lobato. O Espaço Urbano. Coleção Princípios. São Paulo: Ática, 1989. CULLEN, Gordon. Paisagem Urbana. Lisboa/Portugal: Edições 70 [s.d.] BORDE, Andréa de L. P. Vazios urbanos: perspectivas contemporâneas. Tese de doutorado UFRJ, 2006. DEL RIO, Vicente. Introdução ao Desenho Urbano. São Paulo: PINI, 1998. JACOBS, Jane. Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
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A INDISSOCIABILIDADE ENTRE PATRIMÔNIO MATERIAL E IMATERIAL NO ESTUDO DAS CULTURAS E IDENTIDADE: A Festa do Rosário e a cidade de Pombal Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia Taise Costa de Farias Introdução A igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, localizada na cidade de Pombal/PB, possui valor material comprovado por meio da história e pela arquitetura do século XVIII. Entretanto, é a leitura em conjunto desse patrimônio material com o seu universo simbólico e popular, que se manifesta através da festa do Rosário, que atribui sentido ao patrimônio cultural local. Pois, para a sociedade, como afirma Michel De Certeau: o patrimônio não é feito dos objetos que ela criou, mas das capacidades criadoras e do estilo inventivo que articula, à maneira de uma língua falada, a prática sutil e múltipla de um vasto conjunto de
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Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia, Taise Costa de Farias coisas manipuladas e personalizadas, reempregadas e ‘poetizadas’. Finalmente, o patrimônio são todas essas ‘artes de fazer’. (CERTEAU, 2008, p. 199)
Compreender a festa como parte integrante e fundamental para a construção e consolidação da identidade e da memória local é o principal objetivo desse artigo. Para tanto percorremos o conceito de patrimônio cultural e a inserção da festa enquanto elemento da cultura popular complementar a esse patrimônio. A festa como patrimônio cultural O tema patrimônio cultural assume, no final do século XX, um papel particularmente importante nas questões referentes à memória coletiva e as identidades nacionais e regionais. Partindo de um discurso patrimonial que se resumia aos monumentos artísticos e arquitetônicos, o conceito de patrimônio caminhou para uma concepção mais ampla na qual os conjuntos culturais passaram a ser reconhecidos e valorizados. “Delineava-se a ideia de que havia um patrimônio cultural a ser preservado e que incluía não apenas a história e a arte de cada país, mas o conjunto de realizações humanas em suas mais diversas expressões” (ABREU E CHAGAS, 2002). É nesse contexto que se institui a noção de patrimônio imaterial ou intangível, implicando a ideia de uma produção não apenas material, mais também simbólica, como: 384
A indissociabilidade entre patrimônio material e imaterial no estudo ... (...) as práticas, representações, expressões, conhecimentos e técnicas - junto com os instrumentos, objetos, artefatos e lugares culturais que lhes são associados - que as comunidades, os grupos e, em alguns casos, os indivíduos reconhecem como parte integrante de seu patrimônio cultural (UNESCO, 2003).
As visões antropológicas e sociológicas da história implicaram na valorização dos aspectos culturais das atividades humanas: as línguas, os instrumentos de comunicação, as relações sociais, os ritos e cerimônias, que passaram a ser vistos como símbolos da memória coletiva que necessitavam de preservação. Memória essa entendida como um elemento essencial da construção identitária, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia (LE GOFF, 1992). A noção de que os bens materiais carregam consigo uma força simbólica que pode ser de ordem histórica, memorial, artística, religiosa, social ou econômica indica uma impossibilidade da rígida separação entre a produção material e a imaterial, já que é justamente essa riqueza simbólica que irá caracterizar o bem cultural como único, proporcionando, assim, uma concepção mais rica e ampla sobre o patrimônio cultural. Dentro desse campo simbólico e cultural a festa revelase como expressão de significados e espaço de vivências sociais constituindo-se em uma área de investigação importante para a análise das formas de apropriação da cidade e de compreensão das práticas sociais e culturais que fundamentam as identidades 385
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e/ou as recriam imbricadas com novos valores e significados. Como afirma Mariely Santana em pesquisa recente: a festa interrompe a sequência dos dias do cotidiano e proporciona um momento de pausa (...) impregnados de sentidos e significados e, para a sua vivificação e reatualização, são realizados conjuntos cerimoniais e ritos, que acontecem em lugares específicos e em um tempo próprio, estabelecendo, no presente, uma ligação com o passado e, ao mesmo tempo, se apossando de hábitos rotineiros. (SANTANA, 2009)
No Brasil uma característica marcante das festas populares é a sua relação com a religiosidade e com os espaços de ruas e praças. Mesmo quando surgiram independentes de comemorações religiosas estas foram sendo incorporadas ao calendário religioso. As festas religiosas, vinculadas a uma comunidade, grupo ou irmandade, possuem características peculiares, que as diferenciam de manifestações semelhantes, o que reforça a riqueza e a complexidade cultural que envolve essas manifestações. Elas também representam espaços de vivências coletivas e de atualização dos principais ritos que identificam uma comunidade com o seu patrimônio cultural. Por meio das festas o patrimônio cultural é vivenciado e ressignificado na contemporaneidade. Para MARTINS (2006) as formas populares encontradas na religiosidade, pelos cantos, orações e vestuários, apesar de estarem envolvidas inicialmente numa aparência passiva, na
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realidade mostram uma face inventiva, criadora, expansionista e barulhenta. As festas brasileiras em devoção aos santos milagrosos continuam atraindo multidões que chegam em romarias, nas quais é possível identificar uma vivência do religioso atravessado pelo cultural, possibilitando, muitas vezes, novas experiências de identificação. Atribuindo-se à festa a sua importância como parte integrante e fundamental para a construção e consolidação do patrimônio cultural, abrem-se perspectivas de preservação da memória dos diferentes grupos formadores das culturas brasileiras e de suas identidades. Sincretismo religioso: a devoção do rosário dos pretos Durante a colonização brasileira, o marco da vitória dos europeus e das ideias que traziam o significado da “cruz” era a construção de igrejas católicas. Ao redor destes templos se estruturam diversas vilas e cidades do Brasil colonial. As irmandades e as ordens terceiras, vinculadas a tradição das confrarias, irão construir uma das formas mais comuns de agrupamento de leigos, cujo intuito era o de promover o caráter religioso e assistencial aos seus membros. Assim, as irmandades podem ser entendidas como associações formadas por um grupo de pessoas, que tendo afinidade ou
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interesse em comum, estabelecem normas visando à implantação de atividades em favor de um bem comum. Uma das expressões mais fortes dessas associações religiosas talvez tenha sido a que reunia, no período colonial, a religiosidade dos negros com a religião católica, formando um sincretismo sob a evocação de santos, sendo a Nossa Senhora do Rosário a mais aceita pelos negros no Brasil. A irmandade de Nossa Senhora do Rosário surgiu na Europa em 1408, sendo que em 1493, através dos portugueses e dominicanos chegou ao Congo, quando o catolicismo passou a ser a religião oficial daquele reino. Com a intensificação do tráfico de escravos para o Brasil, em 1552 a irmandade chegou à Pernambuco. Com a criação das irmandades negras no Brasil, o poder régio passou a ter a preocupação maior com as congregações leigas, tendo em vista que estas procuravam de todas as formas fugirem da interferência de qualquer autoridade, pondo-se assim, portanto, sob vigilância da igreja. No Brasil, até o período imperial, essas irmandades religiosas configuravam o principal vínculo do catolicismo popular, pois pela atenção devotada a um santo específico e em troca de sua proteção os devotos ofereciam-lhe exuberantes homenagens por meio de festas. Com isso, além do envolvimento espiritual vivenciado em grupo e em suas relações sociais permitiam a manutenção de antigas tradições africanas
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expressas nestas festividades nas figuras do rei e da rainha, chegando a ocupar lugar de destaque durante as festividades. A Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, da cidade de Pombal/PB, foi oficialmente instituída na década de noventa do século XIX. Wilson Seixas (1962) registra, com base em pesquisa aos “documentos de compromisso da irmandade”, a criação da mesma em 1895 pelo negro Manoel A. de Maria Cachoeira: (...) se depreende o despacho conferido ao Bispo de Olinda, D. João Fernandes Tiago Esberardi, ao preto e confrade Manoel Antônio de Maria Cachoeira, que saíra a pé de Pombal até aquela cidade com o fim de receber do prelado olindense o documento de ereção canônica para a criação da referida irmandade. De acordo com aquele despacho, firmado em 1895 pelo escrivão de registro da Comarca Eclesiástica de Olinda e autorizado pelo mesmo Bispo, ficava instituída a Irmandade de N. Senhora do Rosário de Pombal. (SEIXAS, 1962).
Não se tem muitas informações sobre Manoel Cachoeira (Mané Cachoeira), porém sabe-se que teria sido ele o fundador da Irmandade, o introdutor da festa folclórica e o propagador da devoção, sendo incorporado na literatura e na história de Pombal como um homem religioso, honesto e trabalhador, um exemplo a ser seguido.
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FIGURA 01: Apresentação de um grupo folclórico vinculado a Irmandade do Rosário, na festa do Rosário, em Pombal. S/d. FONTE: Acervo de Marcos Lacerda e Venerck Abrantes de Souza. Disponível em: http://www.pombalemsaudade.hpgvip.ig.com.br/>. novembro de 2010.
Acesso em:
Essa autorização por meio de documento canônico foi um dos primeiros passos para a organização da Irmandade. Dessa forma, os negros puderam elaborar um documento que designava os cargos e as funções dos membros, constituindo o primeiro estatuto, que funcionava apenas para efeito de organização, já que as decisões eram tomadas mediante reuniões com todos os membros.
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Em
Pombal
Rosário
a
Irmandade
do
organiza anualmente uma festa à santa,
chegando a durar mais de uma semana do mês de outubro. A festa do rosário na cidade de pombal/PB Outubro é o mês do Rosário e por todo o interior do país o povo e as irmandades preparam a sua festa.
FIGURA 02: Festa do Rosário na cidade de Pombal; 1947. FONTE: Acervo de Marcos Lacerda e Venerck Abrantes de Souza. Disponível em: http://www.pombalemsaudade.hpgvip.ig.com.br/>.Acesso novembro de 2010.
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em:
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Em Pombal, o foco da festa é realizado no primeiro domingo de outubro, mas nove dias antes já começam os festejos com realização de missas e apresentações de grupos folclóricos formados por negros, que juntamente com os da irmandade, circulam pelas ruas da cidade em busca de donativos para a igreja. Na noite da abertura da festa, a irmandade reúne um grande número de fiéis à Nossa Senhora do Rosário, que saem em procissão com o Rosário, em direção a igreja de mesmo nome. Na igreja iniciam-se a celebração e as homenagens a santa. Fica, dessa forma, oficialmente aberta a festa do Rosário. As festas religiosas em Pombal em devoção a “santa milagrosa” continuam atraindo multidões que chegam em romarias. Nestas festas, parte da memória cultural é ritualizada, vivenciada, anualmente, na festa do Rosário pelos grupos folclóricos formados por negros: Os congos, pontões e o reisado. Esses grupos conseguem manter a força da cultura negra e a religiosidade, resistindo ao longo do tempo e reforçando o caráter tanto religioso quanto lúdico da festa.
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FIGURA 04: Festa do Rosário na cidade de Pombal; 2005. FONTE: Acervo de Marcos Lacerda e Venerck Abrantes de Souza. Disponível em: http://www.pombalemsaudade.hpgvip.ig.com.br/>.Acesso em: novembro de 2010.
Foi para sobreviver à dor da escravidão e do exílio, que os escravos, trazidos para o Brasil, trataram de se unir, harmonizando os seus ritos ancestrais, da melhor forma possível. Dessa maneira, os conjuntos religiosos representavam um elo importante, através das quais os negros podiam expressar as suas necessidades de defesa e proteção, os seus desejos de liberdade, de caridade para com o próximo e de solidariedade humana. Dentro da festa do Rosário de Pombal, o grupo que apresenta maior preservação dos seus ritos é denominado de Congos ou “pretinhos do Congo” como preferem ser chamados.
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Apresentam-se com dramatizações, cortejos e embaixadas, conservando o sistema de coroação. Acredita-se que tal manifestação trata-se de uma versão local ou de uma adaptação da versão olindense desaparecida, embora mantenham características gerais e comuns as de outras regiões. O grupo é constituído por doze homens, que cantam e dançam, além de um ou dois músicos que tocam viola. A música é produzida pelos maracás e marcada pelos passos da dança, acompanhados do som da viola.
FIGURA 05: Foto dos Reis do Congo, em Pombal. FONTE: Foto retirada durante a missão de pesquisa folclórica, Luís Saia, 11 de abril de 1938. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/fotos_frameset.html>. Acesso em: novembro de 2010. 394
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Segundo a tradição oral, o grupo mais antigo vinculado a irmandade e que se apresenta na festa do Rosário chama-se: Pontões. Trata-se de um grupo exclusivamente masculino, cujo número de integrantes varia entre 22 e 25 membros que se apresentam em dois cordões, com trajes simples nas cores vermelho e azul. Na cabeça usam chapéu de palha, enfeitados de fitas coloridas. Trazem lanças com pontas de maracás ornamentadas com fitas de diversas cores. Os Pontões usam lanças tanto para abrir caminho na procissão, como para fazer figurações de danças e, sobretudo, para marcar com os maracás o ritmo de suas músicas. Há um chefe, chamado de “Capitão dos Pontões”, se destacando do grupo pela roupa branca e chapéu militar, constituindo a guarda do rei da irmandade, durante as procissões. Em Pombal, o grupo mais novo vinculado a irmandade é o Reisado, cujo início das atividades teria ligações com a festa de Natal, simbolizando os reis que chegavam para presentear o menino Jesus.
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FIGURA 07: Foto dos negros dos Pontões, em Pombal. S/d. FONTE: Acervo de Marcos Lacerda e Venerck Abrantes de Souza. Disponível em: http://www.pombalemsaudade.hpgvip.ig.com.br/>.Acesso em: novembro de 2010.
Os ritmos das músicas e danças são marcados por um violão e pandeiro, um apito, sapateado e o canto ritmado com o conjunto. Usam calças brancas e blusas azuis ou vermelhas e conduzem uma espada, encenando momentos de guerra, liderada pelo Rei.
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FIGURA 08: Foto do Reisado, em Pombal. S/d. FONTE: Foto retirada durante a missão de pesquisa folclórica, Luís Saia, 11 de abril de 1938. Disponível em: http://www.sescsp.org.br/sesc/hotsites/missao/fotos_frameset.html>. Acesso em: novembro de 2010.
Portanto, a festa do Rosário, com suas características religiosas e profanas, representa o patrimônio cultural da cidade de Pombal, mostrando que o patrimônio não é usado apenas para simbolizar, representar ou comunicar, mas também para recriar, para agir. Essa categoria faz a mediação sensível entre seres humanos e divindades, entre mortos e vivos, entre passado e presente, entre o céu e a terra e entre outras oposições. Não existe apenas para representar idéias e valores abstratos e nem 397
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apenas para ser contemplado. O patrimônio cultural constrói, cria e recria, forma as pessoas e atualiza os grupos. Estas são algumas das reflexões que nos inspiram em nossas pesquisas sobre o patrimônio cultural de Pombal em processo de desenvolvimento junto ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU-UFPB. Referências ABREU, Regina; CHAGAS, Mário (Org.). Memória e patrimônio: Ensaios contemporâneos. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lamparina, 2009. CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: 2. Morar, cozinhar. 8ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. LE GOFF, Jacques. História e Memória. 2ª Edição. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992. MARTINS, Clerton, (Org.). Patrimônio cultural: da memória ao sentido do lugar. São Paulo: Rocca, 2006. SANTANA, Mariely Cabral de. Alma e festa de uma cidade: devoção e construção da Colina do Bonfim. Salvador: ADUFBA, 2009. SEIXAS, Wilson. O velho arraial de Piranhas (Pombal). João Pessoa: Gráfica “A imprensa”, 1961. UNESCO. Convenção para a salvaguarda do patrimônio cultural imaterial. Paris: UNESCO, outubro de 2003.
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DA CIDADE DO TRABALHO À CIDADE DO ESPETÁCULO: discursos e imagens sobre Campina Grande Jovanka Baracuhy C. Scocuglia Maria Jackeline Feitosa Carvalho Introdução O presente artigo é parte dos resultados de pesquisa de Doutorado em Sociologia (PPGS/UFPB) e tem por objetivo identificar os discursos que constituíram a cidade de Campina Grande no período compreendido entre 1970-2008, analisando, ao mesmo tempo, as relações destes com as transformações ocorridas na estruturação do seu espaço urbano e a formulação de uma narrativa sobre a cidade. Parte-se do pressuposto de que a “requalificação” não apenas ressignifica as imagens de Campina no discurso político e social, mas reelabora a prática viva e mítica de significados sobre a cidade em sua condição urbana contemporânea. Lançaremos aqui algumas pistas encontradas em nossas pesquisas, de modo a analisar as principais imagens e discursos
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da concepção de cidade que, em paralelo, constituíram o processo recente de requalificação urbana de Campina Grande. Salientemos que recorremos como suporte metodológico à análise de discurso realizada a partir da leitura de dois dentre os maiores jornais impressos no município de Campina Grande Diário da Borborema(DB) e Jornal da Paraíba (JP) – procurando identificar a partir do discurso jornalístico as narrativas construídas sobre Campina Grande (1970-2008). Utilizamos o jornal como recurso de pesquisa por entendê-lo como fonte e campo de práticas culturais que, em suas conexões com a sociologia, a arquitetura e a história, expressam diferentes vozes e sujeitos. É importante notar que esta concepção supera a ideia de que o discurso presente nos jornais exista por si mesmo, e não entre sujeitos. A leitura do modo como a fonte jornalística e seus mapas podem significar é um elemento fundamental na interpretação e compreensão do processo de “requalificação” urbana em Campina Grande. Ademais, o debate presente nos jornais é tomado em conjunto pelas propostas de constituição de determinadas imagens sobre a cidade cujo propósito foi se constituir enquanto narrativas que significaram a cidade e que inaugurou, neste contexto, a Campina urbana, competitiva e moderna. Assim, é interessante perceber que a cidade, como categoria de análise, muito além de sua materialidade, é
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expressa, interpretada como um espaço de linguagem. Como afirma Eni Orlandi (2004:81): A questão de base, em relação à cidade, é: como a cidade significa? Em outros termos, como esse espaço se constitui como tal, significando de maneira própria, por ser um espaço que se particulariza como espaço urbano?
Nesta direção é que pensamos como se constitui o processo de significação da cidade de Campina Grande, a partir da década de 1970, e que discursos a projetam como elemento de diferenciação espacial e social. Formas pelas quais as cidades derivam em seus diferentes modos de significar e se tornarem competitivas: (...) Pois, se de um lado supõe-se que essas cidades dispõem de uma infra-estrutura peculiar(...), de outro, é fundamental que cada uma apresente um elemento diferencial, de forma a torná-la competitiva na atração de capitais, de mão-de-obra especializada, na realização de eventos internacionais etc. (MAGNANI, 2002, p.13).
Podemos pontuar, assim, que as práticas de mercado e consumo reestruturam as territorialidades urbanas e fazem surgir novas centralidades, marcadas pela fragmentação, segregação espacial e, por conseguinte, pelo encolhimento do espaço público. É por esta discussão que Campina Grande será analisada, em suas condições de produção de um discurso sobre o urbano.
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Discurso este que contempla, pensa, reconstrói e desafia a Campina Grande contemporânea. (Re) significações Podemos observar que há um processo relativamente novo que manifesta um discurso de “ressignificação” ou “reinvenção” (SCOCUGLIA, 2004) das cidades pelos seus atributos e qualidades para assegurar vantagens específicas à atração de novos investimentos em determinadas partes da cidade, com o primado do espaço privado e da lógica de mercado. Além disso, como afirma Luiz C. Q. Ribeiro: (...) No atual urbanismo de “melhoramentos e embelezamento”, o higienismo cede lugar à estratégia de utilização da imagem da cidade reunificada como vantagem competitiva na atração de seus fluxos globais de capital. (RIBEIRO, 2004, p. 18).
E, desse modo, as cidades se tornam imperativo da competitividade onde se acentua uma configuração urbana bem mais complexa. É a própria concepção de cidade que passa a ser revista e a forma de pensá-la, planejá-la, com impactos na sua morfologia e com configuração de novas centralidades de comércio, serviços e formas de morar. Elegeremos aqui, como recorte, algumas das imagens que interpretam e produzem em Campina Grande aquilo que a significa como requalificada.Uma questão diz respeito à interrogação crítica das imagens do que se convencionou chamar 402
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de processo de ressignificação de Campina Grande, ocorrido a partir da década de 1970. Construído por meio de um discurso que projeta a cidade [Campina Grande] como elemento de diferenciação competitiva. Nos anos 1970 ocorrem modificações importantes na economia e na estrutura urbana do município. Campina Grande passa por um processo de industrialização, incentivado por recursos fiscais e financeiros da SUDENE. Neste momento se produz um interdiscurso da Campina desenvolvimentista que se situa apoiado no sentido de criar uma cidade industrial e polo regional. (...)Surgiu, nesse lustro, como marco admirável do progresso de Campina Grande, aquilo a se chamou de “arrancada para a industrialização”, (...) Começou então, a fase decisiva da vida industrial de Campina Grande(DB-02/04/1970).
O recorte da industrialização em Campina Grande(PB) se constitui pela lógica de organização territorial e de localização dos sujeitos e suas atividades no espaço da cidade. (...)E começaram a subir, vertiginosamente, na verticalidade do progresso, as chaminés das fábricas e dos centros fabris. (...), “terra abençoada por Deus”, capital do trabalho, porta aberta de todos os caminhos do Nordeste (DB-02/04/1970).
Este discurso pode ser pensado em face de duas narrativas: a primeira, a perspectiva de inserir a cidade como
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rota de desenvolvimento regional e, a segunda, fortalecer Campina Grande como cidade com vocação para o trabalho: Cidade profundamente vocacionada para o trabalho (...). Campina Grande tem sido chamada de “Capital do Trabalho”, forma designativa com que melhor se referem o espírito e o arrojo realizadores do seu povo. (Grifo nosso!). (DB-02/04/1970).
É perceptível no discurso veiculado pelos jornais da época a preocupação em construir e redescobrir a grande Campina. Uma das leituras que mais expressará este processo será refletida nas dimensões do espaço urbano. Campina Grande se consolida, então, como polo regional com modificações marcadas pela urbanização acelerada e recebimento de investimentos no setor industrial (incrementos das atividades industriais). O que impulsiona nos anos 1980 a expansão da infraestrutura e oferta de serviços urbanos, expansão de sua malha urbana, crescimento de fluxos e movimentos migratórios intra-regionais, periferização e instalação de um quadro de conflito urbano na cidade, entre outros fenômenos. Contrastando visivelmente com as modernas instalações das fábricas ali implantadas uma série de barracas sem a menor estética vem ultimamente incidindo(sic) as áreas ainda ociosas do Distrito Industrial constituindo um espetáculo degradante aos olhos de quem visita (...) nossas organizações empresariais no setor da indústria. (...). O distrito Industrial será transformado dentro de pouco tempo numa espécie de feira livre (...), quando em não mais uma favela , com todos os males que esses aglomerados(...) constituem para a
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Da cidade do trabalho à cidade do espetáculo cidade, mormente por serem anti-estéticas(sic) e anti-higiênicas(sic). (grifos nosso!).( DB- 02/06/1977).
A imagem da Campina cidade do trabalho instaura uma ordem que passa a ser adotada por uma série de intervenções urbanísticas com o fim de ordenar o desenvolvimento do seu tecido e do espaço intraurbano. Os impactos destas transformações na morfologia urbana, nas décadas de 1970-1980, irão constituir nos anos 1990 outra imagem, a de que Campina se reinventa. A imagem da cidade será construída agora pelo processo de reestruturação urbana, na busca por vantagem competitiva regional e aliada ao surgimento de novas narrativas espaciais. Uma das imagens mais fortes deste cenário foi a retirada de parte dos camelôs do centro, simultaneamente, ao processo de “revitalização” do conjunto arquitetônico de Art Déco localizado nas principais artérias centrais: A revitalização promete mudar o perfil urbanístico do centro de Campina Grande, uma vez que envolve um trabalho de resgate e preservação do casario Art Déco, visando a transformar o centro num espaço permanente de visitação e dessa forma consolidar de vez o potencial turístico de Campina Grande (Grifo nosso!). A obra foi iniciada pela construção das áreas de comércio e cultura ao ar livre, onde serão instalados os vendedores ambulantes que hoje ocupam as calçadas do centro (DB- 19/04/2000).
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A imagem do consumo implicará na necessidade de uma nova lógica na configuração do espaço urbano de Campina Grande: renovação dos usos do seu tecido urbano pelo surgimento de novas centralidades; crescimento da incorporação imobiliária e a descentralização das atividades de serviços, dentre outros. O trecho abaixo do Diário da Borborema esclarece: Nos últimos três anos, Campina Grande vem experimentando um acentuado crescimento vertical, refletido na quantidade de novos edifícios que vêm sendo construídos na cidade, conferindo um novo visual ao seu tecido urbano. Quem circula pelas ruas campinenses, certamente perceberá os chamados “espigões” (DB 07/07/1988).
Os impactos destas transformações na morfologia urbana vão consolidar, a partir dos anos 1990, uma estrutura urbana mais extensa, descentralizada e segregada nos diferentes tipos de uso da cidade, com encolhimento do espaço público. Destacamse dois usos conflitantes, por vezes opostos que se destacam na cidade em mutação e dois discursos sobre a cidade:o primeiro refere-se à crescente presença de camelôs no centro da cidade, sempre posta por uma narrativa de conflito. E o segundo exemplo, a narrativa do momento de inauguração do Shopping Center Iguatemi (1998). Assim, vejamos: Providencial invenção dos urbanistas, os famosos calçadões, tão adequadamente aproveitados nos centros maiores do país, encontraram em Campina Grande o inverso das suas finalidades.
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Da cidade do trabalho à cidade do espetáculo Se em outros recantos eles se prestam ao ir e vir descontraído, (...), aqui eles espantam o cidadão abastado- aquele de poder aquisitivo mais elevado, e acabam por prejudicar a própria atividade comercial. Nossos calçadões Venâncio Neiva, Maciel Pinheiro e Cardoso Vieira viraram feira!E longe estão de parecer Mercado Persa, pois a proliferação de mercadores e mercadorias não permite mínima comparação. O que temos hoje, nas ruas centrais da cidade, é uma feira sem ordem, onde,misturam-se camelôs (...) e todo tipo de quinquilharia. Já não existe o “passeio público”, mas a desordem pública (...). (...)Pena ainda que tenhamos de conviver com esse tipo de desordem, prejudicando a distinta classe comercial estabelecida nos calçadões e o público que se arrisca a vir ao centro para as suas compras (Grifos nosso!) (DB 1977).
Um dos aspectos mais notáveis nessa questão é a constatação da ambivalência dos lugares. De um espaço que nem é privado, nem é público, “(...), porém, mais precisamente público e privado ao mesmo tempo”. (...). (BAUMAN, 2000, p.12). Sendo para tanto, necessário que os lugares possam ser nomeados pelos significados que, aparentemente homogêneos, constituem-se enquanto espaços públicos de contestação, visibilidade política, lugar da diferença e de reafirmação de identidades nos usos dos espaços da cidade. A chegada do Shopping Iguatemi em Campina Grande aponta para uma nova maneira de experimentar o tempo e o
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espaço, um modo particular de experimentar, interpretar e ser na cidade. Quando o consórcio empreendedor do Shopping Center Iguatemi Campina Grande se der por inaugurado aquele moderno equipamento(...) uma nova página estará se abrindo para escrever as relações comerciais locais (...), implicando também mudança de hábito na população. (...), já se integra [o Iguatemi] na paisagem da cidade e indubitavelmente modificará as relações (...), levando o comércio tradicional a uma repaginação(...). Igualmente com relação ao lazer, em razão dos instrumentos agregados que este equipamento proporciona (DB 17/10/1998).
O novo desenho urbano de Campina Grande, na década de 1990,traz consigo outros sentidos sobre a urbe, novos conflitos e outro imaginário onde a apropriação física e simbólica da imagem da cidade é marcada pela crescente segregação dos lugares. Exemplo disso éo momento da transferência dos camelôs, pela criação das ARCCAS- Áreas de Comércio e Cultura ao Ar Livre. No dia 6 de fevereiro Campina Grande viveu um momento inesquecível.Foi a remoção dos camelôs das ruas centrais da cidade para pontos comerciais determinados.Tal evento, sem dúvida, projetou ainda mais a imagem de nossa urbe no contexto das cidades brasileiras (…). Campina Grande há mais de uma década que enfrentava essa situação que aumentava a passos acelerados (...). No entanto, evitar que os camelôs ocupassem espaços nas ruas fixando ali seus pontos de negócios, de forma desordenada e em prejuízos dos interesses
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Da cidade do trabalho à cidade do espetáculo comuns dos cidadãos, comerciantes estabelecidos e do poder público, era uma meta difícil e delicada. (...) cabe agora ao poder municipal não permitir que novos camelôs passem a ocupar de novo as calçadas (...). Mas, o bom de tudo isso não foi a inauguração. Naquele dia, Campina amanheceu diferente, saudável e risonha (...) Pelas calçadas caminhei livremente, como se estivesse seguindo caminhos dantes navegados (...).(JP- 20/02/2002).
Dentre os elementos mais tácitos desta imagem da cidade se destacam: a preservação da ordem, as buscas de pureza do ponto de vista político e social e a apropriada organização do ambiente, expondo claramente o camelódromo e o shopping como lugares diferenciados. Todos estes elementos se baseiam num pressuposto ainda mais profundo que seria o aniquilamento do estranho; são os consumidores falhos os “ novos impuros”. Podemos delinear que: O serviço de separar e eliminar esse refugo do consumismo é, como tudo o mais no mundo pós-moderno, desregulamentado e privatizado. Os centros comerciais e os supermercados, templos do novo credo consumista, e os estádios, em que se disputa o jogo do consumismo, impedem a entrada dos consumidores falhos a suas próprias custas, cercando-se de câmeras de vigilância, alarmes eletrônicos e guardas fortemente armados; assim fazem as comunidades onde os consumidores afortunados e felizes vivem e desfrutam de suas novas liberdades; assim fazem os consumidores individuais, encarando suas casas e seus carros como muralhas de fortalezas permanentemente sitiadas (BAUMAN, 1998, p.24)
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Esse processo de requalificação em Campina Grande se dará por uma espacialização de fortes transformações, novas localizações e formas urbanas por outras bases simbólicas do espaço, diferentes das até então existentes. Concomitantemente, se constituirá um discurso de ampliação das atividades de serviços com ênfase na produção, circulação e diversificação funcional. Campina Grande passa a reforçar serviços mais especializados(tecnológicos, educacionais, médicos, turísticos e de lazer), como forma de adquirir vantagens locacionais diferenciadas que passam a lhe atribuir maior centralidade em sua articulação regional. Campina se reinventa! Campina se reinventa pela utilização de outra imagem, enquanto vantagem competitiva na atração de capitais.O processo de reestruturação urbana, trazido pelo surgimento de novos espaços economicamente dinâmicos onde os empreendimentos de grande porte passam a ser destinados à tecnologia, recreação e lazer, expressa um consumo intensivo do espaço. A partir da construção de belos edifícios de vários andares na cidade, Campina Grande tem progredido extraordinariamente com a elevação de modernos prédios de apartamentos. Alto Branco, Santo Antônio, Mirante, Catolé,Prata, Açude Velho (...), em todos os pontos do quadrante surgem belos e não raros luxuosos edifícios (...) Entretanto, um pouco por toda parte estão sendo feitas reformas de gosto duvidoso, geralmente em locais de casas residenciais que estão
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Da cidade do trabalho à cidade do espetáculo cedendo lugar a prédios de consultórios médicos, escritórios comerciais etc. (JP -21/09/2003).
A imagem da Campina contemporânea é a moderna incorporação imobiliária que passa a produzir o discurso da promoção imobiliária a qual “não vende casas, vende um sistema residencial”, um “sistema seguro de vida planejada”, vende “um espetáculo que você não pode perder” (VILLAÇA, 2001, p.184). A invenção dos condomínios privados em Campina Grande e as recentes transformações em sua estrutura urbana criam uma série de particularidades na forma urbana dos bairros, fortalecendo cidades novas dentro de uma mesma cidade. O elevado índice de violência na cidade vem forçando as pessoas a trocarem suas confortáveis residências pelos espaços limitados de apartamentos que têm preços considerados “salgados”, e que muitas vezes ficam acima das condições financeiras dos campinenses que buscam esse tipo de moradia por uma questão de segurança e tranquilidade (sic). O crescimento dos edifícios em Campina Grande tem sido visto pelos profissionais do segmento imobiliário da cidade como salutar. Eles esperam, por outro lado, que haja uma acomodação de seus preços equiparando-os assim com os das casas (...) a crescente construção de prédios em Campina Grande representa o progresso da cidade. De qualquer maneira (...) mostra que Campina está crescendo(...) (JP -21/09/2003).
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Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Maria Jackeline Feitosa Carvalho
A experiência que passa a promover, elaborar e circular um discurso sobre a vida urbana em Campina Grande e suas práticas sociais é marcada pela fragmentação do cotidiano, pelas mudanças dos usos e significados do espaço e por uma nova condição discursiva do urbano. A cidade e suas novas paisagens, com um padrão que incide sobre os impactos na dimensão espacial, gerando outras lógicas de produção e consumo do ambiente construído e apreendido pelas ambivalências. Considerações finais Consideramos que a imagem de Campina Grande e de seu desenho urbano, no período analisado, traz consigo outros sentidos sobre seu espaço citadino, novos conflitos e um imaginário onde a apropriação física e simbólica da imagem da cidade é marcada pela crescente segregação por vezes voluntária das pessoas. A requalificação urbana em Campina Grande foi compreendida neste trabalho para além das transformações no espaço físico, uma vez que ela se configura por meio de discursos ‘flexíveis, incertos e estratégicos’ sobre as transformações da cidade. A imagem de Campina Grande foi constituída também pelas profundas e rápidas transformações em seu ambiente construído e nas modificações das localizações principais de consumo, moradia e serviços.
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Da cidade do trabalho à cidade do espetáculo
A visão higienista do espaço urbano de Campina Grande traduz imagens-sínteses, acionadas para “falar” por Campina. As intervenções são tomadas em nome de determinadas imagens da cidade, chamada a ser revitalizada e melhorada em suas condições sociais e urbanísticas. As intervenções estabelecem uma imagem distintiva sobre a cidade e seus usos, em contraposição a tais intervenções,é significativa a articulação que ambulantes e pobres urbanos realizam sobre o espaço público citadino. Contra-usos acionam e potencializam disputas e tensões entre diferentes usos e significados da cidade. O processo de requalificação urbana se aproxima de uma referência pública higienista, impositiva e desigual da cidade. Referência essa que nunca, ou raramente, é comunicada, mas que, por isso mesmo, reforça as imagens hegemônicas de Campina Grande. Buscamos neste texto expor, de forma bastante sintética preliminar, os primeiros elementos de um estudo sobre a leitura do modo como a cidade e os discursos veiculados nos jornais podem significar, para a compreensão do processo de requalificação urbana em Campina Grande. O que ainda nos possibilita o estabelecimento de outros modos de compreender a cidade, em seus discursos e narrativas. Referências BAUMAN, Z. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
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Jovanka Baracuhy C. Scocuglia, Maria Jackeline Feitosa Carvalho
__________. Em busca da política. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2000. __________. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Edt., 1999. MAGNANI, José Guilherme Cantor. De perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.17,nº 49, São Paulo,p.11-24,jun.2002. MATTOS, Carlos A. de. Redes, nodos e cidades. In: Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. São Paulo: Fundação Abreu Abramo/ FASE/Observatório das Metrópoles, 2004 (p.157-196). ORLANDI, Eni. P. Cidade dos sentidos. Campinas (SP): Pontes, 2004. RIBEIRO, Luiz Cesar de Queiroz(org.). Metrópoles: entre a coesão e a fragmentação, a cooperação e o conflito. São Paulo: Fundação Abreu Abramo/ FASE/Observatório das Metrópoles, 2004(p.17-40). SCOCUGLIA, Jovanka B. C. Revitalização urbana e (re)invenção do centro histórico na cidade de João Pessoa – 1987-2002. João Pessoa: Editora Universitária, 2004. VILLAÇA, Flávio. Espaço intra-urbano no Brasil. 2ª ed. São Paulo(SP): Studio Nobel/FAPESP/Lincoln Institute, 2001.
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Sobre os autores Camila Coelho é estudante de graduação em Arquitetura (UFPB) e pesquisadora Junior do LECCUR. Foi bolsista do PIBIC-CNPq-UFPB entre 2010-2011. Christiane Nicolau Rezende é Arquiteta e Urbanista (UNIPÊ), mestranda do PPGAU-UFPB. Pesquisadora Junior do LECCUR. Emmanuel Szylagi possui graduação em Educação Artística pela Universidade Federal da Paraíba (2009) e é estudante de graduação em Arquitetura (UFPB). É pesquisador Junior do LECCUR. Foi bolsista do PIBIC-CNPq-UFPB entre 2010-2011. Aprofundou seus estudos sobre patrimônio histórico, arte contemporânea e museologia na Université Pierre MendèsFrance Grenoble II (2008/2009). É membro do LECCUR e, atualmente encontra-se participando do Programa Brafitec em Estraburgo- França. Edmilson Esequiel Cantalice é Sociólogo, com mestrado em Sociologia (PPGS-UFPB) e pesquisador do LECCUR. Iale Luiz Moraes Camboim é estudante de graduação em Engenharia Civil (UFCG) e pesquisador Junior do LECCUR. Foi bolsista do PIBIC no período de 2010 a 2011.
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Sobre os autores
Jean-Paul Thibaud é Sociólogo, doutor em Urbanisme et Aménagement (1992) com Habilitation à Diriger les Recherches (2003). É pesquisador do Laboratório Cresson UMR 1563 Ambiances architecturales et urbaines, Ecole Nationale Supérieure d’Architecture de Grenoble. É Diretor de Pesquisa do CNRS. Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia é Arquiteta e Urbanista, docente e pesquisadora do Departamento de Arquitetura/CT/UFPB desde 1989, membro do PPGAU/UFPB e do PPGS-UFPB. Mestre em Ciências Sociais pela UFPB (1992), doutora em Sociologia pela UFPE (2003) e pós-doutorado em Sociologie Urbaine e Antropologie pela Université Lumière Lyon 2 atuando como membro do Groupe de Recherche sur la Socialisation GRS – CNRS. Líder do Grupo de pesquisa Cidade, Cultura Contemporânea e Urbanidade. É atualmente pesquisadora bolsista de Produtividade em Pesquisa PQ/ CNPq nível 2. Pesquisadora membro do Réseau Ambiances/ CRESSON/ Grenoble/ França. Coordena o laboratório LECCUR. Faz parte como pesquisadora associada do Centre Max Weber (Université Lumière Lyon 2). E é membro do Conselho Estadual de Habitação de Interesse Social – CEHIS. Marcele Trigueiro de Araújo Morais é Arquiteta e Urbanista (UFPB - Brasil), doutora em Planejamento Urbano/Arquitetura e Urbanismo (INSA de Lyon – França) e, atualmente, professora Adjunto I do Departamento de Arquitetura/Centro de 416
Sobre os autores
Tecnologia/UFPB. É vice-coordenadora do LECCUR pesquisadora associada do ITUS (INSA de Lyon).
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Marcela Dimenstein é Arquiteta e Urbanista (UFPB) e pesquisadora Junior do LECCUR. Participou em 2008 do grupo de pesquisa Projeto e Memória e em 2010 passou a fazer parte do grupo de pesquisa Cidades, Culturas Contemporâneas e Urbanidade. É, atualmente, aluna especial do Programa de PósGraduação em Arquitetura e Urbanismo da UFPB. Mónica Lourdes Franch Gutiérrez possui graduação em Geografia e História (área de concentração em Antropologia) Universidad de Barcelona (1992), mestrado em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco (2000) e doutorado em Antropologia pelo PPGSA-UFRJ. É professora Adjunto I do Programa de Pós-Graduação em Antropologia, do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de PósGraduação em Sociologia da Universidade Federal da Paraíba. Atualmente é vice-coordenadora do Programa de PósGraduação em Antropologia - PPGA/UFPB. Maria Jackeline Feitosa Carvalho possui Graduação em Ciência Política (UFPB), é mestre e doutora em Sociologia (PPGS/UFPB). É professora efetiva da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) - Doutora-DE, Líder do Grupo de Estudos Urbanos( GEUR).
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Sobre os autores
Patrícia Alonso de Andrade é graduada em Arquitetura e Urbanismo pela UFPB (1997) e mestre em Projeto de Interiores pela Universidad de Salamanca (1999). É professora da UFPB desde 2008 e professora adjunta do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário de João Pessoa. É membro do Grupo de Pesquisa Cidade, Cultura Contemporânea e Urbanidade. É bacharel em Direito pelo Centro Universitário de João Pessoa (2006). É pesquisadora do LECCUR. Rafaela Mabel Silva Guedes é Arquiteta e Urbanista (UFPB), mestranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU-UFPB. Pesquisadora do LECCUR. Atualmente é arquiteta da Companhia Estadual de Habitação Popular. Tadeu Brito é Arquiteto e Urbanista (UFPB) e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS-CCHLAUFPB. Pesquisador do LECCUR. Atualmente é Coordenador de Prática da Oficina Escola de Revitalização do Patrimônio Histórico e Cultural de João Pessoa (PB) e responsável pelas obras de restauração da Capela de Nossa Senhora da Graça e da Escola Municipal de Gastronomia. Taise Costa de Farias é Arquiteta e Urbanista pela UFPB. Mestre em Arquitetura e Urbanismo (PPGAU-UFPB). Pesquisadora do LECCUR.
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Sobre os autores
Tereza Queiroz possui graduação em Licenciatura em Filosofia pela Universidade Federal da Paraíba (1970), mestrado em Sociologia pela Universidade Federal da Paraíba (1993) e doutorado em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (1999). Atualmente é professor associado II da Universidade Federal da Paraíba e pesquisadora do LECCUR. Wylnna Vidal possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal da Paraíba (1996), especialização em História, Meio Ambiente e Turismo pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ (2001) e mestrado em Engenharia Urbana pela Universidade Federal da Paraíba (2004). Atuou como assessora técnica em Arquitetura e Urbanismo na SEPLAN Secretaria de Planejamento de João Pessoa- PB (2005-2010). Atualmente é professora assistente do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Paraíba - UFPB.
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