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Universidade Federal da Paraíba - UFPB Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo - PPGAU-CT-UFPB Programa de Pós-Graduação em Sociologia - PPGS - CCHLA-UFPB
IMAGENS DA CIDADE: PATRIMONIALIZAÇÃO, CENÁRIOS E PRÁTICAS SOCIAIS Jovanka Baracuhy Cavalcanti Scocuglia
Editora UNIVERSITÁRIA UFPB 2010
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João Pessoa, 2010
A Afonso, André, Lucas e Alice, companheiros e amores de todas as horas, e aos meus pais Assis (em memória) e Yara. A todos os colegas arquitetos e sociólogos, alunos e informantes que contribuíram direta e indiretamente com as pesquisas aqui apresentadas e com leituras e sugestões para a realização deste livro.
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO.......................................................................................................................................................................05 INTRODUÇÃO.............................................................................................................................................................................07 CAPÍTULO I: Imagens, cenários e patrimonialização: João Pessoa em perspectiva 1 - Imagens e narrativas globalizadas da reabilitação urbana.....................................................................................................22 2 - Uma nova imagem e visibilidade para o centro histórico de João Pessoa - o patrimônio se torna cenário para festas........29 3 - Outras narrativas e usos do patrimônio cultural.....................................................................................................................34 3 - Participação, mobilização e memória urbana.........................................................................................................................37 4 - Ações e limites da reabilitação no centro antigo de João Pessoa..........................................................................................41
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CAPÍTULO II: Reabilitação e gentrification no centro antigo 1 – Casos exemplares de uma problemática mundial: marketing turístico e gentrification.........................................................50 2 - Cenários da requalificação, marketing e moradia no centro histórico de João Pessoa: Programa Moradouro e Projeto de Requalificação do Varadouro e Porto do Capim.....................................................................................................................57 3 – A exclusão dos moradores da Favela Porto Capim. Pode-se falar em gentrification? E as táticas contra-usos e processos de resistência?.......................................................................................................................................................................65 CAPÍTULO III: As imagens e representações da periferia no centro: favela Porto do Capim e Vila Nassau
1 – A periferia no centro antigo: fundamentos, abordagens e contextos.....................................................................................82
2 - Representação e territorialidade no Porto do Capim e Vila Nassau......................................................................................98
CAPÍTULO IV: Imagens atuais e memórias da moradia e do comércio nas ruas da Areia e Maciel Pinheiro no centro antigo de João Pessoa
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1 - Rua Maciel Pinheiro: comércio tradicional e cenário atual da degradação socioespacial .................................................105 2 - Rua da Areia: moradia, memória e imagens recentes.........................................................................................................136
3 - Degradação patrimonial, segregação e violência: imagens das ruas analisadas no contexto de planejamento e estratégias de requalificação.............................................................................................................................................120
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................................................................................173
FONTES E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................................................176
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APRESENTAÇÃO
Este livro é resultado de um conjunto de pesquisas desenvolvidas a partir de 2003, individualmente e em grupos sob minha orientação e coordenação. Trata-se de um esforço coletivo de pesquisa conduzido no seio do Departamento de Arquitetura e Urbanismo do Centro de Tecnologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia – PPGS do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da UFPB e, ano 2008-2009, no GRS - Groupe de Recherche sur la Socialisation na Université Lumière Lyon 2, durante a realização de um pós-doutorado na França. Inserem-se, ainda, no grupo de pesquisa Culturas das cidades: arte, política e espaço público na contemporaneidade inscrito no CNPq que reúne pesquisadores de diversas instituições federais de ensino superior do Norte e Nordeste brasileiro. Pretende-se com esta publicação alcançar dois objetivos principais: um científico e outro didático-pedagógico. O objetivo científico será buscado na medida em que o livro é inteiramente resultante das pesquisas desenvolvidas sob os auspícios constantes da CAPES durante o doutorado e pós-doutorado em Sociologia Urbana e do CNPq na forma de bolsas de PIBIC para os colaboradores da graduação. O objetivo didático-pedagógico será alcançado em função da utilização desses resultados de pesquisas como fontes de estudos e de outras pesquisas na graduação e na pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo e em Sociologia. Estas pesquisas tiveram por objetivo a confrontação sistemática das imagens planejadas e das transformações sócio-culturais nos centros antigos de cidades brasileiras e internacionais, sendo relatadas aqui, especificamente, às referentes ao centro antigo de João
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Pessoa, sobretudo aos projetos e ações relativos aos processos de reabilitação urbana e às dinâmicas culturais e residenciais correlatas. O objetivo central foi perseguido em conjunto com a análise das representações, das formas de patrimonialização, de uso dos espaços públicos e das práticas sociais dos usuários de antigos bairros em processo de renovação e/ou reabilitação. Em especial, as imagens e representações associadas ao bairro do Varadouro - um dos maiores e mais antigos do centro histórico de João Pessoa. As páginas que se seguem representam os resultados destas pesquisas. Uma obra coletiva que teve a contribuição notadamente de Maria das Dores Q. Vital, Yara Cunha, Camila Leal, Tadeu Brito, Kelly C. Gomes e Roberta Paiva, a primeira mestranda do PPGS-CCHLA-UFPB, os demais alunos do Curso de Arquitetura e Urbanismo - UFPB e bolsistas do PIBIC – CNPq - UFPB. Jovanka Baracuhy C. Scocuglia
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INTRODUÇÃO
Na era da mundialização, as cidades contemporâneas se reconfiguram e as relações que os cidadãos desenvolvem com o espaço e o mundo social, ganham formas renovadas. Deste modo, dentro da literatura urbana recente, são numerosos os trabalhos que evocam, atualizando em parte os temas “clássicos” sobre a vida social dos indivíduos nas metrópoles (Simmel, 1903), a aparição de um indivíduo “livre”, liberado de suas raízes territoriais, inscrito em redes sociais mais ou menos espacializadas, se deslocando de um lugar para outro dentro de um espaço expandido, fragmentado e recomposto segundo novas centralidades. Neste sentido, surgem questionamentos relativos às identidades urbanas e a produção/fabricação de novas imagens das cidades. A idéia, largamente difundida, de que há uma fragmentação dos espaços urbanos é um dos sintomas desse problema ao indicar que as sociedades estariam se apresentando cada vez mais sob uma forma disjuntiva, cada segmento se percebendo como dissociado do resto. A forma de apreensão da forma urbana estaria sendo construída como um conjunto de segmentos diferenciados e diversos, associados apenas por justaposição. Há uma dificuldade de produzir imagens unitárias das cidades. Como consequência, reforçam-se as interpretações particularizadas e a disjunção. Por outro lado, a pluralidade, o respeito às diferenças que se abrigam nas cidades seriam as bases da concepção de vida urbana. Neste sentido, só a multiplicidade poderia representar e gerar identidades segundo variados pontos de vistas geradores das imagens das cidades.
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Assim sendo, a valorização das diferenças comunitárias e a fragmentação espacial nos conduzem ao questionamento do próprio sentido de cidade e de urbanidade. Este processo é bastante descrito nas metrópoles, mas atinge também as cidades de menor porte indicando se tratar de uma leitura mais ou menos generalizada que nos conduz a alguns questionamentos fundamentais: como gerir e planejar estes espaços urbanos diante das tendências à fragmentação? Qual é o tipo de coexistência possível e sobre que bases de estruturação físico-espacial? Haveria um desaparecido das formas de enraizamento locais e das práticas de proximidade e de associação ou, ao contrário, teriam assumido maior importância dentro dessas relações associadas à mobilidade? Qual a consistência do centro urbano antigo, dos bairros antigos dentro de uma sociedade de redes e de mobilidade? Como se articulam estas dimensões locais e globais das relações entre espaço e tempo na sociedade contemporânea? Como convivem as dinâmicas de reabilitação e as habitações precárias nos centros antigos das cidades brasileiras a exemplo das experiências aqui analisadas de convivência entre as favelas Porto do Capim e Nassau e as dinâmicas culturais voltadas para o turismo na capital paraibana? Estas são algumas das questões que perpassam de modo transversal as reflexões aqui apresentadas, construídas com base em um debate científico nutrido por numerosos trabalhos recentes e ancorado nas reflexões teóricas no Brasil como também na literatura internacional. Nesse caminho, há abordagens que consideram que falar de bairros antigos, de centros históricos, é falar de grupos que não tem acesso à mobilidade, que seriam sinônimos de fechamento territorial e social, formação de guetos. Ao contrário, em outras perspectivas teóricas, seria um recurso de identificação para seus habitantes e o enraizamento em um bairro, no centro da cidade, seria cumulativo de outros usos, mais móveis, do espaço urbano. Há ainda reflexões contemporâneas que consideram que esses modos de relações sociais territorializadas são complementares a outras modalidades de laços sociais que se exprimem dentro de outros espaços e sob formas não territorializadas. Estas reflexões conduzem ao exame das
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políticas para os centros históricos e das construções sócio-culturais destes espaços por parte dos agentes sociais diferentes sejam moradores, gestores urbanos, comerciantes, turistas, trabalhadores ou intelectuais. De fato, constata-se que após a década de 1990, as cidades continuam a mudar sua fisionomia por meio de mecanismos de mobilidade, de circulação, de redistribuição de populações que se operam frequentemente dentro do próprio perímetro já urbanizado, ou melhor, por meio de fenômenos de recomposição que afetam os espaços urbanos existentes e que, às vezes, dão lugar a novas formas de interação e práticas culturais, bem como de cooperação entre o Estado, as coletividades locais, associações civis e os diversos atores privados. Nesse sentido, coloca-se a necessidade de operar uma renovação metodológica e das análises urbanas. Este é também um dos objetivos deste livro ao se propor a analisar um problema, necessariamente limitado em sentido espacial e temporal, mas ao mesmo tempo sensível dentro do processo de urbanização das cidades contemporâneas. Cenários urbanos, patrimonialização e reabilitação de bairros antigos: dinâmicas e conceituações Ao introduzirmos a idéia de cenários e de patrimonialização de bens culturais urbanos, em especial das edificações e espaços públicos das áreas centrais, estamos tratando das políticas de imagens adotadas pelas cidades contemporâneas na busca por atraírem capitais e expandirem as atividades turísticas. Nesse processo, há a constituição de um marketing que se apóia sobre três tipos de narrativas das cidades (RIVIÈRE D’ARC E MEMOLI, 2006; BERDOULAY, 2008): a arquitetônicourbanística, centrada na valorização estética e na requalificação dos monumentos; a socioparticipativa, de projetos ou programas centrados na revalorização do patrimônio cultural como estratégia identitária, associadas às práticas voltadas para a inclusão social no uso do solo; e as políticas de imagem, que utilizam como base as narrativas anteriores na tentativa de
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refuncionalizar os centros antigos dentro de um processo de revalorização comercial, de consumo cultural e turístico ancorados na ressignificação simbólica. Neste sentido, o estudo das estratégias de planejamento urbano voltadas para os sítios históricos possibilitam o mapeamento de imagens e discursos elaborados no processo de seleção do patrimônio cultural a ser valorizado e a apropriação do espaço público das cidades. Por trás da formulação genérica dos processos de reabilitação urbana se encontra outra questão ao mesmo tempo ampla e ambígua no sentido de que a noção de “bairro antigo” que designaria por volta dos anos 1980 apenas os bairros “históricos”, caracterizados pela acumulação de experiências, de patrimônios históricos e arquitetônicos e suscetíveis de restaurações ou revitalizações, situados dentro dos centros das cidades, em geral, locais de origem e formação urbana, é hoje ampliada recobrindo situações variadas e temporalidades diversas, englobando não apenas os bairros centrais antigos, mas também os bairros mais recentes, construídos, por exemplo, nos anos 1950 e 1960 ou os cais de antigos portos ou ainda antigas zonas industriais abandonadas. Ambígua no sentido de que a reabilitação pode ser entendida de duas formas diferentes. Na primeira acepção, que é também a mais comum, associada às intervenções em sítios históricos, posteriores aos anos 1960, vinculadas aos programas de restauração de monumentos históricos, de obras de arte consideradas de valor excepcional ou que evocassem um retorno a um estado inicial que lhe atribuiria valor. E, numa segunda acepção, que conduz à raiz do termo “reabilitar”: restabelecer os direitos de uma pessoa, uma capacidade, uma situação jurídica que ela havia perdido e, nesse sentido, podendo ser traduzida também pelo termo “requalificar” hoje bastante utilizado (AUTHIER, 1993, p. 13). Assim, a questão da requalificação ou da reabilitação dos bairros antigos pode ser entendida no sentido mais estreito de uma ação de melhoria, conservação do conjunto de construções associadas a um procedimento bem definido ou no sentido mais amplo de
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revalorização de um bairro que perdeu sua auto-estima, podendo se tratar de um bairro antigo central ou de um bairro mais afastado do centro. Assim, a definição de centro histórico que abrangeria, em princípio, apenas as características urbanísticas, arquitetônicas e históricas passa, posteriormente, a compreender o compromisso social vinculado à política de residência e à produção de culturas e identidades. A Carta de Veneza, resultado do II Congresso Internacional de Arquitetos e Técnicos de Monumentos Históricos: A Carta Internacional sobre a Conservação e Restauração de Monumentos e Sítios, evento realizado em Veneza, em maio de 1964 (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios – ICOMOS, 1995, p. 109) define que monumento histórico: (...) compreende a criação arquitetônica isolada bem como o sítio urbano ou rural que dá testemunho de uma civilização particular, de uma evolução significativa ou de um acontecimento histórico. Estende-se, não só às grandes criações, mas também às obras modestas, que tenham adquirido, com o tempo, uma significação cultural.
Já a Carta de Restauro (1995, p.212) resultante da reunião realizada na Itália, em 1972, define assim centros históricos: Para efeito de identificar os centros históricos, levam-se em consideração não apenas os antigos centros urbanos, assim tradicionalmente entendidos, como também, de um modo geral, todos os assentamentos humanos cujas estruturas unitárias ou fragmentárias, ainda que se tenham transformado ao longo do tempo, hajam se constituído no passado ou, entre muitos, os que
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eventualmente tenham adquirido um valor especial como testemunho histórico ou características urbanísticas ou arquitetônicas particulares. Sua natureza histórica refere-se ao interesse que tais assentamentos apresentarem como testemunhos de civilizações do passado e como documentos de cultura urbana, inclusive independentemente de seu intrínseco valor artístico ou formal, ou de seu aspecto peculiar enquanto ambiente, que podem enriquecer e ressaltar posteriormente seu valor, já que não só arquitetura, mas também a estrutura urbanística, têm por si mesmas um significado e um valor.
Outro ponto importante a ser destacado em relação à literatura sobre patrimonialização e reabilitação dos centros antigos é o fato de que vamos encontrar inicialmente uma tendência a concentrarem-se na dimensão operacional da requalificação, nos processos de conservação dos monumentos arquitetônicos, analisando ou medindo os efeitos socioeconômicos induzidos pela colocação em prática desses processos e dessas operações. Muitos deles concentrados na dimensão técnica, mas também turística e de revitalização comercial dos antigos bairros centrais. São trabalhos necessários e importantes, mas ao mesmo tempo limitados no sentido de que não consideram ou dão pouca importância aos mecanismos simbólicos e aos processos de circulação e de redistribuição das populações, de produção de imagens que conduzem cada vez mais a revalorização dos centros antigos. Entretanto, pesquisas recentes, após finais dos anos 1990, abordam as transformações dos centros antigos, e mesmo mais especificamente nos bairros centrais, tendo como objeto de estudo não apenas os procedimentos, as operações ou as ações de reabilitação, mas os processos ou os fenômenos de revalorização ou de reconquista desses antigos espaços centrais. São estudos que se inspiraram, inicialmente, na matriz conceitual anglo-saxônica (GLASS, 1964) sobre os fenômenos da gentrification, ou seja, analisam as mudanças nos bairros antigos centrais como um efeito das mudanças
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sociais e culturais, mais precisamente, como efeitos de micro-decisões de indivíduos pertencentes às camadas médias e elites urbanas. Estudos franceses e latino-americanos, em especial, brasileiros, analisam estes fenômenos também como um retorno de tendências associadas à produção de novos valores como “a centralidade”, “a convivialidade”, “a historicidade” etc. por diferentes categorias de atores sociais (AUTHIER, 2008; BIDOU-ZACHARIASEN, 2006; SCOCUGLIA, 2004). O processo de patrimonialização de bens culturais urbanos, em especial das edificações e espaços públicos das áreas centrais, faz parte das políticas de imagem das cidades contemporâneas com o intuito de atrair investimentos, sobretudo voltados para expansão das atividades turísticas. É, portanto, um processo seletivo (LUCHIARI, 2005) que elege e incorpora significação à imagem urbana a ser promovida, Neste sentido, a patrimonialização enquanto processo pode levar a uma redução narrativa ao destacar certas áreas em detrimento de outras e assim gerar problemas urbanos relacionados à funcionalidade e à hegemonia de usos sociais nas territorialidades dos centros históricos. Há, portanto, no debate teórico internacional sobre a requalificação urbana de diferentes cidades indícios de um retorno aos centros urbanos antigos num quadro bastante diverso. Durante os últimos vinte anos, sobretudo, houve mudanças importantes em relação à imagem dos centros urbanos e uma dinâmica visível “de produção de centros históricos” por meio de ações públicas de valorização e demarcação destes espaços. Gentrification: conceitos, formas e atores Atualmente, a gentrification é um termo “resiliente” no vocabulário da pesquisa urbana contemporânea. Designa um processo observável e claramente definido: a transformação nas construções e nos espaços urbanos bem como nas características socioeconômicas daqueles que os habitam e os freqüentam, mas que, por outro lado, é um termo utilizado para descrever realidades diversas ao longo do tempo. Para alguns autores estaríamos assistindo a uma terceira fase de
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gentrification que remete a novos processos, especialmente ao papel ativo e pró - gentrification dos poderes públicos (HACKWORTH E SMITH, 2001) 1. A cada uma das fases corresponderia, assim, uma extensão do conceito. Seria, portanto, uma categoria de análise concreta, bem definida e ampla, podendo ser considerada também como ecumênica e durável
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(RÉRAT, SÖDERSTRÖM, BESSON e PIGUET, 2008). É, portanto, um campo de pesquisa vasto ao qual corresponde o conceito de gentrification. Apresenta a vantagem de acolher de modo convergente e complementar olhares teóricos e disciplinares variados tanto em termos do desenvolvimento dos debates teóricos, dos procedimentos metodológicos quanto dos campos de investigação, procurando compreender os diferentes sentidos. E a extensão do conceito pode permitir, de um lado, a possibilidade em termos heurísticos de uma melhor articulação entre os trabalhos e, portanto, de conhecimento sobre os diferentes mecanismos pelos quais as cidades adquirem novos valores e, em particular, se “elitizam” (em benefício de certas categorias de população e em detrimento de outras). Ao longo do tempo as redefinições do conceito de gentrification indicam um caminho que vai da canônica definição de Ruth Glass (1964) que designa, de um lado, um processo de deslocamento e de mudança de população dentro dos setores urbanos centrais por categorias sociais mais abastadas e, de outro, a reabilitação física dos mesmos setores. Essa reabilitação implica a transformação, por segmentos de classes médias e superiores, das habitações que apresentam geralmente um caráter patrimonial e que se situam dentro desses bairros populares. Em seguida, ao longo das diferentes fases, a definição do conceito se transforma para incluir outras formas de “elitizações”, outros atores sociais e outros espaços. 1A primeira seria a da gentrification esporádica (realizada por moradores pioneiros) e a segunda seria a da consolidação da gentrification (os protagonistas seriam principalmente os promotores e investidores privados). 2 Mesmo que lhes sejam atribuídos valores diferenciados conforme os autores ou os atores urbanos.
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Teoricamente, duas correntes analisam por que e como ocorrem estas mudanças. Uma primeira centraliza nos aspectos econômicos do processo, na relação entre fluxo de capital e produção do espaço urbano e pode ser identificada pela abordagem do geógrafo Neil Smith. Para Smith, é a desvalorização do capital no centro das cidades que gera a oportunidade de revalorização dessas partes “subdesenvolvidas” do espaço urbano. A gentrification viria com a volta do capital para as antigas áreas centrais, dando oportunidades de lucro com a realocação de habitações. E uma segunda corrente focaliza as características dos atores sociais da gentrification (sexo, padrão educacional, atividade ocupacional, atividade profissional, gosto, hábitos, história de vida, etc.) e seus padrões de consumo, deslocando, assim o foco para a produção de uma cultura urbana e para o consumo na sociedade pós-industrial. O geógrafo David Ley (1996) seria o mentor desta corrente que enfatiza a necessidade de compreender quem são as pessoas e grupos dessa complexa classe média que procura morar nos bairros antigos. Nesse sentido, as pesquisas indicam uma procura desses grupos de diferenciação pelo padrão de consumo e não pelo nível educacional, de renda ou ocupacional. O consumo histórico e simbólico como um diferencial importante. Assim, da forma clássica associada às habitações, a gentrification passou nos últimos vinte anos a incluir aspectos relativos aos espaços públicos e ao comércio. Sharon Zukin (1995, 2000), por exemplo, descreveu a transformação dos espaços públicos de Nova Iorque mostrando que o mobiliário urbano e o estilo arquitetônico utilizado contribuem para filtrar socialmente os freqüentadores e para excluir as categorias sociais que antes as utilizavam. Mais recentemente, autores como Van Criekingen e Fleury (2006) analisaram as dinâmicas comerciais ligadas às iniciativas de empresários de Bruxelas e de Paris mostrando como o comércio pode ser autor e motor de dinâmicas de gentrification na escala de um bairro e não apenas os reflexos de transformações sócio-residenciais. Mostram, então, como a causalidade entre gentrification residencial e
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comercial pode ser recíproca. Nos dois casos trata-se de formas complementares à forma canônica apontando o papel dos elementos arquitetônicos e urbanísticos assim como dos usuários e das iniciativas comerciais. Em paralelo, a partir dos anos 1990, diferentes autores qualificaram de “new-build gentrification” as operações de construção de novas unidades de habitação sobre os vazios urbanos, em especial, aqueles deixados pelas antigas indústrias, cais de antigos portos, estações etc. (DAVIDSON e LEES, 2005). Consideram que tais projetos podem ser considerados processos de gentrification porque são caracterizados pela mesma dinâmica de revalorização dos centros urbanos: representam um reinvestimento de capital em zonas centrais abandonadas, implicando uma modificação do meio ambiente construído e da paisagem urbana e, além disso, envolvem as mesmas categorias sociais. Entretanto, o processo de mudança de população não é direto, mas indireto, uma vez que as áreas em questão são inabitadas: a valorização de um espaço faz aumentar a atratividade dos bairros em redor nos quais um fenômeno de mobilidade de população pode vir a se produzir. Quanto aos atores sociais, foram citados, em geral, os moradores, os comerciantes e os empresários como os novos renovadores ou gentrificadores. Por outro lado, David Ley (2003), em suas pesquisas, aponta para os atores culturais, em especial os artistas como os desbravadores da gentrification. Teriam o dom de descobrir novas áreas onde os valores imobiliários seriam baixos, mas cuja localização e paisagem urbana seriam promissoras. Os artistas e seus modos de vida seriam ainda capazes de influenciar e atrair uma parte da classe média superior – a New Middle Class, cujos membros se caracterizam por um alto nível de formação, renda elevada e um emprego no setor terciário (LEY, 1996). Outros autores ressaltam o processo de produção de gentrifieurs de diversas categorias ao evidenciarem a participação crescente das mulheres no mercado de trabalho e do aumento de casais sem filhos (BONDI, 1991), o papel das comunidades gays (DELIGNE et alli, 2006), a multiplicação das habitações ocupadas por jovens adultos (OGDEN e HALL, 2004) ou ainda a
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emergência de uma elite globalizada (ROFE, 2003). Cito ainda os atores sociais que marcariam a terceira fase apontada por Neil Smith (2006): as autoridades municipais, considerados os promotores ativos da gentrification nos Estados Unidos. De acordo com a literatura sobre o gentrification no Brasil, trata-se de um conceito “incômodo” (RUBINO, 2004), sobretudo em função da forma como se produz, processos de higiene social ou de limpeza social, devido à violência que é adotada contra direitos humanos quando das ações de expulsão de habitantes tradicionais (é o caso de São Paulo, por exemplo, publicado nos meios de comunicação social brasileiros na Revista Veja, 11/01/2006). O termo é também utilizado com freqüência na mesma acepção proposta pelos autores Harvey (1992), Zukin (1995) e Smith (1996), para designar intervenções urbanas como empresas que elegem certos espaços da cidade, considerados centralidades e transformam-no em setores de investimento público e privado. Estas mudanças de significado de uma localidade histórica transformam o patrimônio em segmento do mercado. Assim, o termo tem sido tomado como referência para explicar as intervenções urbanísticas e de reabilitação em antigos bairros de cidades como Recife, Fortaleza, João Pessoa, Belém, Rio de Janeiro, São Paulo etc. De fato, na América Latina, a noção de gentrification possui diferentes conotações e conseqüências. O papel do poder público é mais significativo e determinante no processo. A valorização do patrimônio cultural como um dos aspectos centrais da globalização galvanizou o processo de reabilitação de espaços históricos e culturais, na tentativa de inserção no mercado mundial, favorecendo o turismo. As culturas tornam-se assim um elemento diferenciador, de disputa e concorrência. Após um longo processo de redução de investimentos, marcado por um cenário de abandono e substituição das funções qualificadas por serviços não qualificados, os centros históricos das grandes cidades latino-americanas sofreram as
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últimas décadas uma tentativa de mudança da sua imagem. O poder público investiu em projetos e políticas de reabilitação destes sectores centrais como uma estratégia para manter a sua identidade física, mas também como forma de participar no mercado do turismo internacional, objetivando atrair investimentos privados. No entanto, havia grande expectativa quanto ao compromisso de investidores privados no setor imobiliário dos bairros centrais e, por conseguinte, sobre o aquecimento da economia local. Dessa forma, se por um lado os processos de requalificação seguiram as tendências internacionais, por outro lado, a inserção subordinada da América Latina aos fluxos internacionais de capitais imprime características próprias às cidades se comparadas com as economias centrais. Um primeiro comentário a fazer refere-se ao dinamismo menos forte dos processos de requalificação. Em segundo lugar, a requalificação provoca uma modificação dos usos, mas altera raramente a norma residencial dos setores atingidos, pelo menos no sentido da habitação para as camadas médias. Além disso, o principal elemento diferenciador refere-se ao papel do poder público como condutor dos processos de requalificação e de gentrification. Analisando o caso de diversas cidades mexicanas, Melè (1998, p. 11) sublinha “a visibilidade da ação pública” no que diz respeito ao desinteresse de certas formas de capital imobiliário por estas intervenções nos centros urbanos. No caso da Cidade de México, Hiernaux (2003) mostra que a valorização da cidade que resulta da sua classificação como “patrimônio da humanidade” pela UNESCO, em 1984, conduziu o poder público local a elaborar estratégias de requalificação do seu centro histórico. Nesta cidade também, identificam-se, sobretudo processos de gentrification de consumo.
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No Brasil, os estudos indicam um papel mais ativo dos poderes públicos no sentido de investir na transformação de bairros antigos ou áreas urbanas abandonadas, sobretudo antigos centros urbanos cujo caráter patrimonial seja reconhecido pelos órgãos oficias do patrimônio em nível nacional, em setores dinâmicos para visitação turística, parques temáticos ou áreas de lazer e em outros casos, ao invés de promoverem a gentrification, tentam, em nome da mescla social, combinar as políticas de atração de camadas médias com o financiamento de habitações de baixo custo, com a finalidade também de equilibrar as contas fiscais nesses setores urbanos e ainda de conciliarem objetivos ambientais e sociais (SCOCUGLIA, 2004, 2006). Entretanto, resta uma questão a ser compreendida, sobretudo nos programas de requalificação em cidades brasileiras e latino-americanas: Por que estas áreas históricas com fortes apelos simbólicos e com investimentos de novos capitais não são atrativas para as classes médias enquanto locais de moradia? Quais seriam as parcelas da população mais sensíveis a moradia nessas áreas requalificadas de antigos centros? Os principais casos de reabilitação de centros históricos brasileiros começam após a inscrição destes lugares como patrimônio nacional ou patrimônio da humanidade. Os centros urbanos brasileiros, em geral, não são abandonados, apresentando, pelo contrário, um dinamismo no que diz respeito às atividades comerciais e residenciais, estas últimas, sobretudo para as populações de baixa renda. Freqüentemente são considerados decadentes devido às fachadas deterioradas, a falta de segurança, dos problemas de infra-estruturas. Assim, o processo de requalificação tem a sua origem num monumento ou construção do patrimônio da cidade ou por meio da criação de novos centros culturais e/ou comerciais. Por conseguinte, os fenômenos de requalificação e de gentrification no Brasil são facilmente confundidos porque embora os centros urbanos brasileiros requalificados não tenham a
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sua população local substituída por outra mais abastada, estes espaços tornam-se lugar de turismo e, às vezes, lugar de consumo para a classe média que continua a habitar em outros setores. Contudo, à exceção de algumas categorias profissionais e grupos identificados na nossa investigação recente sobre o Programa “Moradouro” da Prefeitura Municipal João Pessoa, tudo indica que a classe média brasileira dificilmente ocupará estes espaços centrais urbanos. Entre os 137 inscritos para ocupar 07 construções que estão para serem reabilitadas, foram identificados grupos ou os indivíduos associados a categorias e trajetórias de vida específicas como artistas (sobretudo dos artistas plásticos, os músicos), casais sem crianças, indivíduos no início da sua carreira profissional (professores de nível elementar e intermédio, de pequenos comerciantes informais, entre outros), que têm nomeadamente o capital cultural e simbólico para característica notável (Documentos fornecidos pela Secretaria Municipal de Habitação Social da Prefeitura Municipal João Pessoa, 24 de Julho de 2007). Em geral, a população de baixa renda que habita os bairros reabilitados, ou nos arredores, é deslocada para outros setores periféricos, quer oficialmente, quer de maneira informal. Os novos espaços esvaziados passam a abrigar atividades comerciais e não residenciais. Assim como em Recife, as prostitutas e as outras figuras locais dos bairros centrais foram deslocadas para abrir os espaços para um leque de investimentos - de novos restaurantes, bares etc. O mesmo fenômeno produziu-se no Pelourinho em Salvador onde um setor considerado decadente e perigoso foi reabilitado não com o objetivo de manter a cultura local, mas para substituí-la por estruturas de consumo e de lazer para os turistas. São dois exemplos evidentes de gentrification, considerados clássicos entre os casos brasileiros, onde uma população literalmente foi deslocada para responder às vontades de investidores públicos e privados.
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Sublinho também, nos casos brasileiros, exemplos de outras cidades: João Pessoa, Fortaleza, Belém e São Luís que foram objeto de processos de gentrification para consumo, igualmente reabilitadas para valorização dos seus centros históricos visando sua promoção como espaços de lazer. As reabilitações destas cidades tiveram como condutores os governos do estado e/ou municipais, num esforço para fortalecer a imagem turística das cidades. São casos importantes porque indicam novas relações entre os atores implicados, para além do fato de terem sido conduzidos por diferentes instâncias do poder público. Os efeitos do lugar têm, por conseguinte o seu papel (SCOCUGLIA, 2004, 2007; GONDIM, 2007; CASTILHO E VARGAS, 2006). A análise dos exemplos de gentrification e de requalificação brasileiros indica outra especificidade, às vezes paradoxal se comparada com os exemplos europeus ou norte-americanos: apesar de não serem deslocadas, estas populações podem freqüentemente reapropriarem-se destes espaços, quer por segmentos que trabalham no comércio informal, quer por “tribos urbanas” que utilizam estes espaços como lugares de encontro. Isto pode ser ilustrado pelo caso de Recife onde, após grandes esforços de gentrification do centro histórico, diversos tipos de espaços foram abertos para acolher vários segmentos da população (LEITE, 2001), mas também pelo caso João Pessoa (SCOCUGLIA, 2004) por meio das associações sem fins lucrativos (ONG) e nas festas populares como o Carnaval e São João, quando há uma mistura de populações e apropriações diferenciadas destes espaços centrais e antigos. Centro antigo, centralidade e periferia urbana No âmbito da reflexão sobre centralidade e periferia urbana que perpassa grande parte das análises conduzidas ao longo dos capítulos deste livro, convém ressaltar que do ponto de vista urbanístico e sociológico admite-se que o centro
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urbano não corresponde ou limita-se apenas a centralidade geográfica de uma determinada área. Ele é produto de um processo funcional, no qual há uma concentração de certas funções distribuídas em equidistância com relação ao todo. O centro urbano representa, nesse sentido, a ligação dessas funções, que se estabelecem na comunicação entre os elementos de uma estrutura urbana (CASTELLS, 1983). Seguindo o mesmo raciocínio, identifica-se a origem da nova noção de centralidade urbana associada à locomoção dos indivíduos, à mobilidade espacial, numa busca pela otimização do tempo de deslocamento (VILLAÇA, 2001). Assim, a noção de centro quando associada ao ponto de convergência física dos trajetos ou de ações que facilitem o encontro e o abastecimento, lugar das trocas comerciais, remete a definição de centro de trocas, de mercado. À medida que são inseridas outras características como funções religiosas, de lazer, políticas, culturais, atividades financeiras e de administração, passamos a inserir a noção de centro de negócios ou Central Business District - CDB. Há, portanto, ao longo do tempo uma variação nas denominações atribuídas aos antigos centros urbanos dentre as quais se destacam: centro histórico, centro de negócios, centro principal, centro tradicional, centro antigo, centro de mercado e ainda simplesmente centro (VARGAS e CASTILHO, 2006). O conceito de centro histórico estaria atrelado à origem do antigo núcleo urbano, à simbologia associada ao passado, à importância da área como elemento inicial no processo de formação do espaço urbano. Enquanto o conceito de centro principal ou de centro tradicional corresponderia à maior aglomeração diversificada de empregos, ou a maior aglomeração de comércio e de serviços numa correspondência com as antigas áreas centrais que deram origens as cidades brasileiras, chamadas anteriormente apenas de “centro”. Flávio Villaça (2001) introduz outra expressão, subcentro, para falar de regiões diversificadas e equilibradas de comércio e de serviços não enquadradas como centro principal, que ao longo do tempo cresceram trazendo parte do
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comércio e dos serviços que outrora permaneciam nas ruas do antigo centro da cidade. Pode-se citar como exemplares as áreas comerciais litorâneas brasileiras, João Pessoa não foge à regra, voltadas para a moradia das camadas de alta renda, como também outras novas áreas comerciais como aquelas localizadas a Sudeste da cidade de João Pessoa, destinadas as populações de média e baixa renda. A expansão da cidade e o conseqüente aparecimento de subcentros constituem peças importantes para se entender a metamorfose física que vem ocorrendo na centralidade de João Pessoa, sobretudo nas últimas três décadas (ANDRADE, 2006). E, neste sentido, após as décadas de 1980 e 1990 identifica-se na cidade de João Pessoa, da mesma forma que em outras cidades brasileiras, uma grande mobilidade de seu espaço central. Segue-se a lógica da variedade equilibrada de atividades de comércios e serviços tanto nos centros principais quanto nos novos subcentros numa busca por reduzir o número de deslocamentos de seus usuários. Nesse novo contexto, a noção de centro em João Pessoa pode ser entendida dentro da economia e da cultura de consumo contemporâneas que configuram o centro como o lugar da lucratividade de mercado, melhor dizendo, o “centro” de um sistema desigual que assume um caráter dispersivo associado, sobretudo às localizações das camadas de média e alta renda. No entanto, mais do que isso, identifica-se nessa discussão sobre a centralidade urbana uma ampliação do processo de segregação em termos habitacionais, mas também em função das atividades comerciais e de serviços (ANDRADE, 2006). Pode-se afirmar que a estrutura urbana de João Pessoa configura-se a partir de um perfil sócio-econômico definido pelas camadas sociais de média e alta renda, refletido no solo urbano. As camadas de média e alta renda ocupam as áreas elevadas, planas, litorâneas, que durante o crescimento da cidade passaram a ser munidas de infra-estrutura e serviços, como é o caso dos bairros de Manaíra, Cabo Branco, Miramar, Bairro dos Estados, Tambauzinho, Tambaú e, mais recentemente, Bessa. Enquanto as camadas de baixa renda ficam relegadas às regiões desprovidas de infra-estrutura e que
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possuem topografias baixas e/ou acidentadas. É o caso das margens do rio Sanhauá no Varadouro, no centro antigo de João Pessoa, do Baixo Roger nas proximidades do primeiro, das áreas alagadas de Mandacaru, do rio Jaguaribe, do Bairro São José. Conseqüentemente, a renovação no tratamento da questão da reabilitação dos centros antigos, necessária para um melhor entendimento dos modos de vida e de transformação das cidades contemporâneas, supõe uma conciliação entre os dois tipos de abordagens mencionados anteriormente, abrangendo as operações ou procedimentos e também os processos de revalorização e reconquista, de produção de imagens da vida urbana. Considerando-se como central a idéia de que a patrimonialização é um processo seletivo que visa eleger e incorporar uma significação à imagem urbana a ser promovida. Depende, portanto, de uma mise em scène do espaço público, apoiada por narrativas ou discursos que destacam cenários específicos. Desta maneira, tratamos nesse livro a patrimonialização e a reabilitação urbana como um fenômeno dinâmico, produto de processos múltiplos e variados, não como efeito de uma causa única, procurando conhecer os movimentos espontâneos, as práticas e representações, sem deixar de lado as análises das interações entre as decisões (estratégicas) dos atores institucionais e privados. Esta forma de abordagem teórica se acompanha de uma opção metodológica de desenvolver uma pesquisa localizada, centrada em um bairro antigo, cuja evolução no tempo é singular, e ao mesmo tempo submetida a processos mais gerais de urbanização e mudança social característicos de cidades brasileiras e latino-americanas, mas também internacionais, tentando extrair de um caso particular a substância de fenômenos transportáveis ou referenciáveis a outros contextos urbanos na busca pelos termos que possibilitem a realização de estudos comparativos.
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O centro histórico da cidade de João Pessoa O centro histórico da cidade de João Pessoa 3 foi declarado patrimônio histórico nacional pelo IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 2007. Fundada em 1585, com o nome de Cidade de Nossa Senhora das Neves, foi o terceiro núcleo urbano do Brasil colonial a receber a denominação de cidade – depois de Salvador e Rio de Janeiro – caracterizando-se por uma malha urbana de significativa regularidade. O núcleo antigo da cidade guarda até hoje o registro do seu traçado urbano original, bem como edificações representativas que assinalam o percurso da arquitetura dos séculos XVII e XVIII, formando um conjunto com as contribuições dos séculos XIX e XX, merecendo particular realce os edifícios ecléticos e alguns relevantes exemplares do modernismo, permitindo leituras da história e da evolução da cidade. Por serem detentoras de valor patrimonial e arquitetônico, diversas edificações situadas no núcleo histórico de João Pessoa foram alvos de tombamento federal, a partir da década de 1930. Outras ações de proteção vieram com a criação do IPHAEP – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba – instituição que, desde 1980, procedeu ao tombamento de 54 bens imóveis na cidade e delimitou a primeira poligonal para definição do Centro Histórico de João Pessoa delimitando a área protegida pelo Decreto Estadual nº 9.484, de 10 de Maio de 1982. Corresponde a uma área total de 305,40 hectares, que tem por limite inicial a margem esquerda do Rio Sanhauá, o qual constituía o único meio de acesso à cidade, no período de sua fundação. A partir do rio, abrange os bairros do Varadouro e o Centro, os quais correspondem aos núcleos de cidade baixa e cidade alta que tiveram formação desde o século XVI. O centro antigo de João Pessoa é banhado pelo Rio Paraíba, cujo estuário possui canais e afluentes que formam as ilhas da Restinga, dos Porcos, dos Stuart e do Tibiri, caracterizando um meio ambiente marcado pela relação: rio-marvegetação. Localizada entre o mar e o vale do Rio Sanhauá - afluente do Rio Paraíba - a cidade de João Pessoa está 3 Capital do estado da Paraíba. Possui cerca de 700 mil habitantes (Censo do IBGE, 2001). Seu centro histórico situa-se às margens do rio Paraíba e atinge a foz na cidade portuária de Cabedelo (Grande João Pessoa), extremo oriente do Nordeste. Em seu patrimônio, destacam-se exemplares da arquitetura militar, civil e religiosa e um traçado urbanístico regular característico das primeiras cidades planejadas no Brasil colonial.
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inserida nessa paisagem marcada por diversos atributos naturais: a topografia de relevo suave, a vegetação exuberante e, principalmente, a relação existente entre o seu núcleo histórico e o Rio Sanhauá. Este núcleo histórico sob proteção do IPHAEP é composto, também, por áreas que resultaram do processo de formação da cidade até meados do século XX, o Parque Sólon de Lucena e os bairros de Tambiá, Trincheiras e Jaguaribe. No interior deste perímetro encontra-se a maioria dos edifícios protegidos por legislação de tombamento federal e um significativo número de áreas e edificações tombadas pelo IPHAEP, bem como os parques Arruda Câmara e Sólon de Lucena. Através de um convênio firmado, em 1987, o Centro Histórico de João Pessoa passou a integrar o Programa de Preservação do Patrimônio Cultural da Ibero - América, mantido pela Agência Espanhola de Cooperação Internacional - AECI, em vários países da América Latina. A partir deste programa, foi implantado o Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa, cuja equipe técnica passou a atuar sobre uma área correspondente a 117 ha. do núcleo tombado a nível estadual, abrangendo a parte mais antiga da cidade. Para implantação deste projeto foi feito um inventário da estrutura urbana e de todas as edificações inseridas neste perímetro, bem como elaborada uma normativa de preservação. Nesta área passou a ser adotada uma normativa de preservação elaborada a partir do conhecimento da realidade específica, e aplicada pela Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa, criada através do Decreto Estadual nº 12.239, de 24 de Novembro de 1987, para ser o órgão gestor do Projeto de Revitalização. Entre as ações previstas no Projeto de Revitalização, estava a expansão da metodologia a todo o perímetro do centro antigo e a outras áreas de interesse urbanístico da cidade. A não realização dessa expansão gerou procedimentos diferenciados na gestão do centro antigo conforme as conjunturas municipais e estaduais, ocorrendo orientações diversas para situações semelhantes e excessiva burocracia na tramitação e aprovação de projetos de intervenção. Esta situação motivou uma revisão da delimitação do Centro Histórico de João Pessoa, definida em 1982, de forma a criar uma homogeneidade nos procedimentos e orientações sobre toda a área. Sendo assim, através do Decreto Estadual nº
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25.138, de 28 de Junho de 2004, foi aprovado o tombamento da nova delimitação do centro histórico abrangendo o trecho da cidade existente até a primeira metade do século XX. Em oposição à abrangência do Centro Histórico protegido por legislação estadual, para o tombamento a nível federal, foi proposta uma poligonal que abarca a parte mais antiga da cidade, correspondendo, basicamente, aos núcleos iniciais do Varadouro e Cidade Alta (ver nas próximas páginas as plantas com as poligonais das áreas de tombamento e de entorno e a localização dos principais monumentos com interesse de preservação segundo a imagem produzida pelos órgãos do patrimônio na cidade de João Pessoa). A escolha do Varadouro como locus de estudo foi motivada pelo caráter antigo, mas, sobretudo pela situação curiosa de um bairro cujas imagens de degradação e abandono se misturam as de local de origem da cidade e de produção de cenários para consumo turístico e divulgação da cultura local. Por vezes marginalizado, gueto de prostituição, local de moradia de uma população estigmatizada vivendo na grande maioria em favelas às margens do rio Paraíba, sobretudo após os anos 1960, e ao mesmo tempo local de maior concentração em termos de monumentos considerados patrimônios históricos e arquitetônicos nacionais, bem como local de memória dos anos iniciais de formação e crescimento da cidade. Foi durante mais de trezentos anos área de delimitação do espaço urbanizado e de intensas trocas sociais e comerciais na cidade de João Pessoa (de 1585 até aproximadamente 1850), a partir de 1987 foi alvo principal do projeto de revitalização iniciado com o convênio de cooperação internacional entre o Brasil e a Espanha e no final da década de 1990 e primeiros anos do século XXI reinventado como centralidade e cenário de consumo e lazer nos bares e cafés como parte da reabilitação da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves.
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Fonte: IPHAN, Proposta para o tombamento nacional do Centro Hist처rico de Jo찾o Pessoa, 2006. Fonte: IPHAN, Proposta para o tombamento nacional do Centro Hist처rico de Jo찾o Pessoa, 2006.
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Pode-se até mesmo dizer que nas décadas de 1960 e 1970 ainda existia no centro antigo da cidade de João Pessoa um tipo de sociabilidade semelhante ao de qualquer bairro da cidade. Mesmo as estigmatizadas atividades noturnas de prostituição e boemia conseguiam conviver com as atividades administrativas, serviços, comércio varejista, moradia e missas que eram realizadas no Varadouro, na Igreja de São Frei Pedro Gonçalves. Porém, na década de 1980, período em que se iniciava o programa de reabilitação do centro histórico de João Pessoa, através do convênio entre Brasil e Espanha, o núcleo original da cidade encontrava-se, com toda sua vida urbana e comercial, bastante deteriorado e abandonado. Pode-se afirmar, também, que de todas as áreas que compõem o centro antigo foi no Varadouro (Cidade Baixa e Porto do Capim) que se processou maior perda de diversidade nos usos e funções e um processo intenso de deterioração física de seus imóveis. Ao mesmo tempo em que ganhava novos usos desconformes com a realidade do local, a exemplo das oficinas mecânicas, revenda de peças automotivas, eletrônicas e de materiais de construção civil. Esses novos usos foram, em parte, os responsáveis pela descaracterização das fachadas de importantes edificações de relevância histórica, modificando o aspecto geral das antigas ruas do centro antigo, a exemplo da Maciel Pinheiro e da Rua da Areia que serão analisadas no capítulo IV. Entretanto, o centro antigo de João Pessoa ou o centro principal (incluindo Cidade Alta e Baixa), apesar de seu evidente estado de “decadência” física, ainda forma dentro da cidade a área de maior concentração de atividades de serviços licenciados (ANDRADE, 2006). Outro aspecto importante na vida do centro antigo de João Pessoa está na forte presença de órgãos e entidades públicas das esferas federais, estaduais e municipais que lhe conferem a manutenção de intenso funcionamento diário através de atividades econômicas, da geração de empregos e da sustentação de diversas outras atividades. A área em destaque neste livro, o bairro do Varadouro, foi também o ponto de concentração, sobretudo a partir de finais dos anos 1990 das ações de reabilitação de espaços públicos que conduziram a um processo de reinvenção do lugar
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no imaginário da população local, gerando novas dinâmicas de cultura, lazer e serviços e, mais recentemente, fazendo surgir projetos de conversão de antigos casarões para o uso residencial bem como de deslocamento de favelas para construção de espaços turísticos e de lazer. A estruturação e os destaques das pesquisas apresentadas Serão destacados, portanto, ao longo desse livro, aspectos ligados às práticas culturais e às relações residenciais, ao uso e à recriação de espaços públicos, à valorização de práticas culturais, da memória urbana e à participação de diferentes atores sociais no processo de reabilitação, direta e indiretamente, institucional e espontânea, do Centro Histórico de João Pessoa. Serão analisadas as dinâmicas de cultura, a socialização e a participação de atores sociais no centro antigo a partir do estudo do processo de requalificação urbana, de ruas, praças e de duas favelas do bairro do Varadouro. Neste percurso serão realçados os processos de formação de coletividades, associações civis e movimentos organizados para defesa de direitos e para ampliação de uma consciência ampla da importância do patrimônio histórico e da memória do bairro e da cidade. O esforço se dá no sentido de articular a análise dos aspectos institucionais do Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa/Convênio Brasil-Espanha (1987), das expectativas com o Projeto Moradouro (2007) e o PAC Plano de Aceleração do Crescimento do Vale do Rio Paraíba/Sanhauá com a análise das representações dos moradores e demais usuários dos espaços reabilitados e/ou em processo de reabilitação em trechos do bairro do Varadouro. Visa, assim, estimular a reflexão e ampliar a compreensão das transformações espaciais recentes segundo os interesses, as nostalgias e as esperanças de todos que participaram das entrevistas, questionários e observações de campo aqui apresentadas de forma resumida.
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Convém informar que a questão norteadora da concepção do Projeto de Revitalização/Convênio Brasil-Espanha, tanto nos seus aspectos arquitetônicos e urbanísticos quanto na sua dimensão de política cultural, foi objeto de reflexão da minha tese de doutorado e que as pesquisas em destaque neste livro, algumas delas ainda em continuidade, permitem a atualização das informações analisadas na referida tese, concluída em 2003, o aprofundamento de aspectos apenas indicados anteriormente, bem como a inclusão e análise de novas dimensões presentes do debate sobre o tema. A tese abrangeu não apenas a análise de documentos oficiais e de entrevistas com os responsáveis pelo Projeto (Agência Espanhola de Cooperação Internacional - AECI, Comissão Permanente de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa - CPRCH e representantes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do Estado da Paraíba - IPHAEP) como também a análise dos usos contemporâneos por meio de observação de campo e da elaboração de entrevistas e questionários com moradores e comerciantes do centro histórico, incluindo os usuários/consumidores dos espaços de cultura e lazer revitalizados nos últimos anos da década de 1990 e início do século XXI – em especial as obras de revitalização na Praça Anthenor Navarro e no Largo de São Frei Pedro Gonçalves (1998-2002). Foram realizadas também pesquisas em jornais da cidade de João Pessoa, arquivos públicos e privados e análise de documentos relativos à implantação do Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa (este material compõe um arquivo de fontes documentais e históricas utilizado como ponto de partida para pesquisas posteriores). Este livro está dividido em quatro capítulos. Apesar da divisão e da possibilidade de leitura de cada capítulo separadamente, sem que seja necessário seguir uma ordem do primeiro ao último, estes segmentos não são tratados isoladamente, há uma totalidade em que se buscou um movimento de análise-síntese no qual a teoria e a pesquisa empírica são trabalhadas ao longo dos capítulos.
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No primeiro capítulo deste livro serão apresentados dados trabalhados desde meados de 2003 até 2008 num esforço de síntese que aponta para a construção de narrativas e imagens globalizadas da reabilitação urbana enquanto práticas e valores a serem perseguidos por órgãos públicos e privados. Inicialmente, imagens e narrativas vinculadas às práticas que funcionam como fatores de atração de novos usuários, voltadas para a dinamização cultural e para o turismo em bairros antigos. Posteriormente, sendo incorporados os valores associados ao aproveitamento de áreas urbanas abandonadas dentro dos perímetros urbanos num afastamento dos ideais urbanísticos dos anos 1960 que valorizavam a periferização e ampliação territorial das cidades. Estas imagens e narrativas sobre os centros antigos e os processos recentes de reabilitação apareceram, em geral, vinculadas aos valores de historicidade, convivialidade e centralidade na busca por novos conceitos de moradia e de relações sociais. Há ainda indícios de uma possibilidade de convivência entre moradia e dinamização cultural e/ou comercial e de retorno das camadas médias aos bairros antigos. No segundo capítulo, investe-se na análise crítica da relação entre habitação popular, relações residenciais e projetos de reabilitação para centros urbanos, tendo como foco empírico o centro antigo da cidade de João Pessoa. O objetivo é analisar como os processos de reabilitação urbana afetam a população já existente, neste caso os moradores do Porto do Capim, mediante o estudo das modificações ocorridas e das propostas em seus aspectos sociais, políticos e urbanísticos. Verificando as peculiaridades locais quanto à existência de um processo de gentrification em curso. Na seqüência, no capítulo III, serão apresentados os resultados parciais de uma pesquisa em andamento sobre as formas de moradia, a socialização e a produção social dos espaços residenciais em favelas do centro histórico da cidade de João Pessoa. Serão discutidas as informações obtidas numa primeira etapa da investigação (entre agosto de 2007 e fevereiro de 2008) com a colaboração de Tadeu Brito e Camila Leal, estudantes do Curso de Arquitetura e bolsistas do PIBIC/CNPq/UFPB, sob minha orientação, cujo projeto intitula-se: O lugar da favela na cidade contemporânea - arquitetura e
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estética da periferia no centro histórico de João Pessoa. Esta pesquisa se volta para o registro dos usos dos espaços destas favelas, das edificações, ruas, becos e para a relação dos moradores com o rio por meio de pesquisa iconográfica e cartográfica. Em função do estágio em que se encontra a pesquisa, serão apresentadas as informações sobre o processo de formação e consolidação das comunidades Porto do Capim e Vila Nassau, localizadas no bairro do Varadouro, apontando para aspectos básicos da dinâmica espacial entre as comunidades e o rio, as relações sócio-espaciais e a territorialidade. A observação de campo foi utilizada como forma de conhecimento geral sobre os movimentos diários, entradas e saídas, marcação de fronteiras e limites etc. segundo os percursos e as atividades dos moradores. Foram registrados os usos de ruas, calçadas, becos, pátios, margens do rio e do entorno das habitações. A dinâmica entre as comunidades e o rio é apresentada nos mapas de evolução urbana, no levantamento fotográfico quando são identificados os limites territoriais, usos e ocupação do solo, acessos, pontos de referências e percursos. Estes registros foram elaborados ainda com auxílio do cruzamento de informações fornecidas em conversas informais com moradores mais antigos, fotogrametrias dos anos 1976, 1990, 1998 e 2007, e da base cartográfica da cidade de João Pessoa de 2005 fornecida pela Prefeitura Municipal de João Pessoa (PMJP). E, por fim, no capítulo IV, apresento os resultados referentes às atividades desenvolvidas na pesquisa: Revitalização urbana, cultura e espaço público: usos contemporâneos do patrimônio na cidade de João Pessoa (ago/2003 a jul/2005). Elaborada em conjunto com as alunas do Curso de Arquitetura e Urbanismo, bolsista do PIBIC – CNPq - UFPB Kelly C. Gomes e Roberta Paiva entre 2003-2005 sob a minha coordenação. Neste sentido, as informações aqui inseridas fazem parte de um estudo sobre a história, a memória e os usos recentes dos espaços e dos modos de vida em duas ruas fundamentais na formação da cidade de João Pessoa. Trata-se da Rua da Areia e da Rua Maciel Pinheiro que passaram, nos
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últimos vinte anos, por transformações significativas em seus usos bem como por alterações de população no sentido da mobilidade residencial e comercial.
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CAPÍTULO I Imagens, cenários e patrimonialização: João Pessoa em perspectiva
1. Imagens e narrativas globalizadas da reabilitação urbana As políticas de imagens que as cidades contemporâneas adotam para atrair investimentos têm como uma de suas dimensões mais importantes a patrimonialização de bens culturais urbanos, sobretudo localizados nas antigas áreas centrais. Estas políticas, intensificadas a partir da década de 1990, tiveram origem a partir dos anos sessenta quando a questão dos centros históricos passa a fazer parte das preocupações do planejamento urbano e, em especial, do desenho urbano, tornando-se objeto de estudos e metodologias específicas de trabalho. A principal mudança refere-se à troca das estratégias de renovação pelas de reabilitação com entendimento progressivo dos valores espaciais, culturais, urbanísticos e sociais dos tecidos urbanos. Críticas como as de Jane Jacobs (1961), os estragos das Grandes Guerras Mundiais e ainda maiores estragos causados pelas renovações imobiliárias estão certamente na gênese desta mudança. O interesse e a valorização da cidade antiga vão-se impondo paralelamente com o alargamento do conceito de patrimônio cultural, arquitetônico e urbanístico. Outro marco importante seria a polêmica internacional que, entre protestos na França e em diversos outros países europeus, acompanhou a demolição dos pavilhões Baltard, os Halles de Paris, em 1967, ou ainda a Maison du Peuple de Victor Horta, em Bruxelas, em 1968. A dimensão da polêmica dos Halles contribuiu fortemente para reacender o interesse
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pela conservação e reutilização dos antigos edifícios, indo de par com a evolução da arquitetura que, entretanto, se organizou metodologicamente com técnicas e meios para introduzir novas funções em antigos edifícios, explorando a complexidade e contradição daí resultantes. Havia, também por esta via, uma crítica às ortodoxias modernas e funcionalistas ao verificar-se que as antigas edificações se adaptavam a novas e diferentes funções, podendo a função também adaptar-se a forma (LAMAS, 1992, P. 421). Portanto, este debate teve início nas décadas de sessenta e setenta e, a partir de 1967, a batalha pela cidade histórica ou pela cidade antiga tem sido constante. A crise energética e econômica contribui também neste sentido. Afirma-se que os custos globais da reabilitação são menores do que os da expansão periférica, enquanto administrações urbanísticas e populações vão reconhecendo a necessidade de reutilizar os centros das cidades (LAMAS, 1992; ROSSI, 1967). O reconhecimento de que as novas urbanizações ficavam aquém das antigas cidades em qualidade, riqueza formal e estética e de que as cidades antigas formavam tecidos sociais difíceis de recriar seriam contribuições para uma posição consubstanciada nos documentos internacionais sobre o patrimônio cultural, a exemplo da Carta de Veneza (1964) e dos apoios de órgãos internacionais como: UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação a Ciência e a Cultura), ICOMOS (Conselho Internacional de Monumentos e Sítios), Conselho da Europa e OEA (Organização dos Estados Americanos). A ação desenvolvida por estes organismos culminaria no reconhecimento dos conjuntos urbanos e de cidades inteiras como patrimônio mundial. A recuperação dos centros históricos iria também chamar a atenção para a qualidade ambiental e a riqueza da vida nos antigos espaços urbanos, para a concepção de cidade e de urbanidade. Esta discussão viria junto com a abertura da cidade a presença do passado e a influência da História e dos lugares no processo criativo, limitando a uniformização estética
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do estilo internacional. Esta revalorização da antiga cidade legitimaria e daria um forte impulso à adoção das formas urbanas tradicionais. A visibilidade dos projetos de intervenção em trechos urbanos antigos, em especial após a década de 1990, se daria em um quadro social e político, mas também econômico e cultural marcado pela complexidade das mudanças em termos mundiais e relevância da produção do espaço público seja como parte de um processo que alguns descrevem como “de uma homogeneização” do espaço causada pela globalização da economia seja no que outros consideram como as novas utilizações dos territórios e indícios contrários a esta imagem de homogeneidade. Desse modo, a partir das duas últimas décadas do século XX, em várias cidades do mundo, vem sendo desencadeados processos de reabilitação de áreas urbanas degradadas e/ou abandonadas promovendo reutilizações do patrimônio cultural, bem como dos recursos ambientais e paisagísticos. Estas experiências recorrem aos símbolos representativos dos primórdios da formação das cidades ou de um saber fazer, de práticas ligadas à tradição e à memória coletiva, valores como convivialidade, centralidade e historicidade. Em geral, são processos que procuram atrair novos usos dos espaços na tentativa de viabilizar o sistema econômico utilizando como recurso o dinamismo cultural e turístico, bem como o potencial arquitetônico e urbanístico destes bairros ou trechos urbanos antigos e/ou abandonados ao longo do tempo. São intervenções urbanísticas que pressupõem um processo no qual as ações integradas se desenvolvem mediante um planejamento estratégico entre poder público, iniciativa privada e usuários. A idéia geral é que os resultados positivos realimentem o processo atraindo novos investidores, gerando outros projetos. Expressam, assim, um dilema central da cultura contemporânea entre preservar e consumir e, além disto, seus aspectos excludentes vêm encontrando resistência organizada da sociedade civil, em fóruns e associações não-governamentais como, por exemplo, em São Paulo, do Fórum Centro Vivo (2000) que reúne movimentos populares urbanos, pastorais, universidades e entidades de defesa dos diretos
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humanos, educação e cultura. São espaços geradores de trocas sócio-culturais, de lugares públicos de contestação e/ou reivindicação de direitos sociais, mas que também podem expressar aspectos de segregação sócio-espacial. Adotados em maior ou menor escala em diversas cidades, ganharam destaque, sobretudo após as experiências norteamericanas e européias bem sucedidas, a exemplo das pioneiras em Baltimore, Londres, Barcelona, Lisboa, entre outras. Na América Latina, destacam-se Puerto Madero e o bairro de La Boca, em Buenos Aires bem como as operações renovadoras em Quito, no Equador. No Brasil, esse processo tem caracterizado diversos projetos como a reurbanização da Praça 15 de Novembro (Rio de Janeiro), o Projeto Cores da Cidade (Curitiba, Rio de Janeiro e Recife) e no Projeto Novas Anternativas (Rio de Janeiro), bem como nas experiências pioneiras no Pelourinho de Salvador, além de iniciativas diversas em cidades como Fortaleza, São Luís, Belém e João Pessoa, entre outras. No Brasil, alguns dos primeiros centros urbanos alvos de ações de reabilitação com vistas à preservação de seus valores culturais localizam-se na região Nordeste. São processos de reabilitação que refletem várias das tendências que predominaram na América Latina como um todo e parte das européias (com adaptações locais) por influência dos imaginários das elites nacionais e das políticas, bem como dos investimentos dos organismos internacionais vinculados à preservação patrimonial. Destaco, a seguir, alguns desses processos no Brasil e interfaces com Europa e América Latina. Pode-se considerar que a ação do poder público na área de requalificação de antigos bairros sob intervenção estatal direta teve início no Brasil na cidade de Salvador, em 1967, com a criação de uma fundação pública para recuperação dos bairros do Pelourinho e do Maciel: o Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC). Resultou da recomendação da missão da UNESCO no Nordeste do Brasil, presidida pelo Inspetor Geral dos Monumentos da França, o arquiteto Michel Parent (GOMES, 1995). Este relatório foi, de fato, o embrião da valorização e destaque das cidades históricas e dos monumentos religiosos do Nordeste do Brasil em nível de muitas cidades barrocas européias (alguns dos exemplares mais
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representativos do barroco do Nordeste localizados, inclusive, em João Pessoa). Punha ainda o turismo como meio eficaz para conseguir os recursos necessários à conservação e restauração dos mesmos. O turismo cultural inspirado nas experiências européias era a palavra de ordem naquela época tanto na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) como na Organização dos Estados Americanos (OEA), conforme afirma Paulo O. Azevedo (2004) referindo-se ao encontro técnico realizado por estas entidades no Equador de onde saíram as Normas de Quito. Estas reuniões ficaram famosas na região por apontarem o turismo cultural como a solução para conservação dos monumentos e centros históricos, mas também para os graves problemas de desenvolvimento econômico dos países latino-americanos. No Brasil, o relatório da UNESCO impactaria, sobretudo, os tecnocratas do Regime Militar iniciado em 1964 ao revelar as potencialidades turísticas das regiões mais pobres do Brasil enquanto uma saída para o desenvolvimento e promoção do suposto Milagre Brasileiro. Foi criado em 1973 o Programa das Cidades Históricas do Nordeste (PCH) com ênfase no turismo cultural. Em 1977, o PCH foi estendido para outras regiões a exemplo de Espírito Santo, Minas Gerais e Rio de Janeiro sem um aumento correspondente dos recursos. Foi encerrado em definitivo em 1983, interrompendo a principal fonte de financiamento dos projetos na região Nordeste. A valorização e restauração de monumentos e a reabilitação de centros históricos deixava de representar uma estratégia de desenvolvimento regional para se tornar um tema cultural. Este modelo de desenvolvimento econômico regional baseado no turismo cultural não funcionou no Brasil e nem tampouco nos outros países latino-americanos. Entretanto, em todas as formas de atuação desta época houve efeitos positivos sobre o turismo e o patrimônio material. Uma das razões destes fracassos teria sido imaginar que a introdução de uma nova atividade, o turismo, por si só, poderia mudar a dinâmica urbana local e o quadro de pobreza estrutural da região. Porém, outros fatores foram igualmente definidores do fracasso local dessas políticas, a exemplo da ausência de
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investimentos maciços e constantes da iniciativa privada, deficiências e inconstâncias nas ações dos poderes públicos variantes em função das conjunturas e da “sensibilidade” dos governantes/gestores. Em alguns casos, o excessivo paternalismo estatal gerou vícios na obtenção de benefícios através de subsídios impossíveis de serem mantidos por longos períodos, em outros, a depender da região e da conjuntura política, da maior ou menor organização social, mas, sobretudo, pelo não enfrentamento das questões sociais relativas ao trabalho e a moradia marcantes em todas as cidades latinoamericanas. Nesse caminho, é preciso considerar o fato de que, ao longo das décadas de 1970 e 1980, o crescimento urbano no Brasil aconteceu em contextos de intensa expansão, caracterizada por um crescimento horizontal e adensamento vertical, enquanto os centros das cidades começaram a perder posição e prestígio frente aos novos bairros mais sofisticados. E além disto, a crise econômica e institucional das décadas de 1980 e 1990 modificou o quadro em termos do planejamento urbano (MARICATO, 2001). Houve redução da capacidade de investimento das administrações municipais. Isto conduziu, em muitos casos, à necessidade de definição de estratégias econômicas viáveis em termos locais. O planejamento urbano passou a buscar estratégias semelhantes às grandes corporações privadas, identificando as potencialidades de desenvolvimento dos municípios. Nas cidades com centros históricos considerados de significativo valor cultural, os poderes públicos estaduais e municipais, com apoio do governo federal, passaram a identificar, ao lado dos instrumentos legais de proteção, novos caminhos que pudessem assegurar a manutenção e a valorização desses espaços. A reintegração dos centros históricos ao cotidiano das cidades teria ainda um reforço com o reconhecimento da falência do modelo de expansão “periférico” e de que o princípio da densificação das cidades seria um caminho a ser seguido diante da necessidade de otimização dos recursos disponíveis, fossem eles referentes à infra-estrutura, transportes urbanos ou ocupação da área construída.
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Nesse sentido, elaborou-se um marketing a exemplo do que tem acontecido na Europa e nos Estados Unidos desde a década de 1980, que se repetiu na América Latina nos anos 1990, procurando desenvolver características globais e reaproveitar as especificidades próprias da região (HARVEY, 1992). São exemplares os programas como os de Curitiba, Salvador, Fortaleza, Recife e João Pessoa no Brasil. Estes programas foram na maioria concebidos como requalificação urbana, de iniciativa estadual ou municipal. Embora privilegiassem os centros históricos, por sua grande visibilidade e densidade cultural, buscavam e ainda buscam construir narrativas de valorização e comercialização da imagem da cidade como um todo e dos centros históricos como um dos elementos de destaque, no âmbito nacional e global, não apenas como lugar turístico, mas como lugar de oportunidades para negócios (DEBORD, 1997; JEUDY, 2005, GONDIM, 2007). No caso latino-americano, o aparecimento destes programas está associado ainda aos financiamentos oferecidos por agências internacionais e nacionais de desenvolvimento. A partir de 1994, os financiamentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) começaram a estimular a renovação de centros históricos na região, como os projetos Prodetur e Monumenta do Brasil e a reabilitação dos centros históricos de Quito, Montevidéu e Buenos Aires. Apesar dos objetivos destes projetos não serem antagônicos aos da reabilitação de antigos centros urbanos em seus aspectos sociais, na maioria das áreas que investiram, houve transferência de populações pobres (moradores de rua, prostitutas, trabalhadores informais) para bairros periféricos ou houve ameaças e exclusão dos benefícios da requalificação implementada como em Recife e Salvador. Foram operações de “limpeza social” para conversão dos antigos bairros, por exemplo, em área de comércio, serviços e lazer, instalação de shopping centers e outros equipamentos voltados para dinamização cultural. Sem os moradores e usuários diários de seus espaços diurnos e noturnos os antigos centros se transformaram em cenários, vazios de significados para a realização de espetáculos, shows destinados aos artistas visando atender a população de classes médias e aos turistas.
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Embora sejam evidentes as mudanças recentes no modelo de intervenção nos centros históricos no Brasil, ainda mantêm-se alguns destes vícios como monopólio do turismo, o paternalismo com os proprietários e a exclusão dos antigos moradores e populações pobres. Em João Pessoa bares e pequenos comerciantes que haviam se instalado nas áreas reabilitadas entre 1998-2002, abandonaram-na à medida que o poder público começou a solicitar contrapartidas, investimentos e conservação nos imóveis ocupados (SCOCUGLIA, 2004). Os projetos de criação de enclaves turístico-comerciais cercados por bairros decadentes e favelas, não funciona e têm um custo de manutenção muito alto, não muda a dinâmica sócio-econômica dos centros históricos, não traz sustentabilidade e não provoca reações significativas do setor privado. Entretanto, alguns casos colocam em xeque as teorias recentes da gentrification generalizada segundo as quais sob o efeito da mundialização usados pelas intervenções públicas e investimentos privados, as camadas populares seriam expulsas dos centros das cidades e substituídas pelas camadas médias. O Rio de Janeiro, por exemplo, e poderíamos citar também João Pessoa (cidade dita de porte médio), Salvador e Recife (metrópoles do Nordeste), certos bairros degradados como a Lapa foram objetos de reabilitação e reinvestimentos traduzidos por intervenções públicas e pelo desenvolvimento de lugares de lazer especialmente noturnos, sem que isso impedisse a permanecia da proximidade entre as favelas e os bairros alvos da gentrification. A gentrification convive, pelo menos nesses casos, com as transformações e evoluções completamente diferentes. No Brasil, as atuações mais recentes, de 2003 a 2008, se destacam os programas de moradia para os antigos centros urbanos com financiamento para reabilitação habitacional em convênios entre prefeituras e Caixa Econômica Federal por meio do Programa de Arredamento Residencial – PAR e os projetos vinculados ao PAC (Plano de Aceleramento do Crescimento) que, em João Pessoa, financiam a remoção de 872 famílias residentes às margens do rio Sanhauá no bairro do Varadouro. É parte do Projeto Vale do Sanhauá de reabilitação do rio e suas margens, bem como implantação de um parque
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com dinâmica cultural e turística na área do antigo atracadouro, Porto do Capim, local onde aportaram os colonizadores em 1585. O programa financiado pela Caixa Econômica Federal (PAR) estabelece critérios que inviabilizam o acesso aos imóveis pelas populações de mais baixa renda ao seguir exigências para as inscrições que indicam uma lógica de substituição por estratos sociais das camadas médias urbanas. Em João Pessoa, por exemplo, o perfil dos inscritos para o Programa Moradouro é formado por famílias jovens, rapazes solteiros, funcionários públicos, artistas e pessoas com nível de escolaridade superior, envolvidos com arte e cultura (segundo as fichas de inscrições dos candidatos aos imóveis junto à Caixa Econômica Federal). Em outras palavras, se viabiliza a operação e se estimula o uso habitacional, mas para populações com nível econômico mais elevado e/ou com um perfil diferenciado, em geral artistas, jovens casais sem filhos e jovens recém-formados, em ascensão profissional. A massificação do uso do solo tipo “mini-apartamento” aparece como solução em termos arquitetônicos e, sem dúvida, mostra alguns avanços nos processos com relação à dinâmica anteriormente desenvolvida nas cidades brasileiras, mas não estão sendo resolvidos, nem enfrentados ainda os problemas sociais, além de haver, de certa forma a manutenção do caráter de “exclusão” social. Estas análises apontam para a necessidade de se questionar os resultados dos novos processos de intervenção urbana, do ponto de vista dos seus beneficiários, sobretudo quando se observa nos discursos em prol dos novos projetos uma tendência a apresentarem os interesses envolvidos como se fossem consensuais, interesses “da cidade”. Reifica-se uma realidade complexa, cuja marca é a diversidade e a heterogeneidade, como já afirmavam os estudiosos da Escola de Chicago, nas primeiras décadas do século XX.
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Com efeito, no atual contexto da globalização econômica, o que se observa é a exacerbação das diferenças sociais na medida em que escasseiam os empregos no setor formal e aumenta a concentração de renda (SASSEN, 1994). No Brasil e em países chamados “emergentes”, políticas atreladas ao sistema financeiro internacional agravaram a exclusão social, o que se manifesta na maior visibilidade da pobreza nas áreas urbanas (população de rua, aumento do número de favelas) e no aumento dos indicadores de violência, entre outras. Neste contexto, a revitalização é apresentada como instrumento para dinamizar a economia das cidades, gerando emprego e renda, bem como elemento propiciador da recuperação do espaço público, em benefício dos direitos de cidadania. Entretanto, a relação entre o acesso a esses direitos e a deterioração ou mesmo eliminação de espaços abertos à convivência com a diversidade e a desigualdade tornou-se uma questão complexa nas cidades contemporâneas. Há evidências de que a exclusão social e a violência são fatores que contribuem para a privatização das áreas de convivência coletiva, como mostrou Caldeira (2000). Porém, há, ainda, a possibilidade de haver “disjunção” entre tal privatização e o exercício dos direitos políticos de cidadania. A questão torna-se mais complexa na medida em que, em muitas destas áreas, evidenciam-se também formas de organização em fóruns e associações civis para defesa da manutenção dos antigos moradores e para discussões dos problemas ligados às especificidades de cada localidade. Surgem novos usos e formas de apropriação do patrimônio e dos espaços públicos nas cidades, merecedores de reflexões quanto às possibilidades de estarem sendo gerados espaços participativos e de sociabilidades públicas. Além disto, não se pode esquecer o forte apelo comunitário que o patrimônio cultural apresenta quando associado à identidade cultural das pessoas, aos direitos sociais e culturais – estes últimos
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reconhecidos pela Constituição de 1988 no Brasil, inseridos também no Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001. 2. Nova imagem e visibilidade para o centro histórico de João Pessoa - o patrimônio se torna cenário para festas No caso da cidade de João Pessoa 4, os anos 1980 evidenciaram a deterioração do centro da cidade e um acentuado processo de segregação espacial, pelo qual os pobres, cada vez mais, tenderam a residir em periferias longínquas e precariamente equipadas ou nas franjas das áreas centrais. Enquanto os bairros da orla marítima e adjacências passaram a concentrar moradias de classe média e alta, juntamente com comércio e serviços modernos. Estes, sobretudo na presente década, tendem a se concentrar em shoppings centers, que passaram a se constituir, também, como centros de lazer. Novas centralidades urbanas proliferaram enquanto o antigo centro perdeu sua importância comercial e residencial. Entretanto, um processo de revitalização do centro histórico de João Pessoa foi iniciado em 1987 mediante Convênio Brasil/Espanha de Cooperação Internacional, mas apenas em finais dos anos 1990 ocorreu um movimento mais articulado entre população local, poder público e iniciativa privada no sentido da revalorização do patrimônio cultural local (estes últimos, sobretudo, a partir dos recursos voltados para o turismo advindos de agentes financeiros internacionais como o BID através do Prodetur/NE) 5. 4 Apesar de possuir exemplares da arquitetura militar, civil e religiosa que remontam aos primórdios das vilas e cidades brasileiras, as áreas alvos das intervenções da década de 1990 foram a Praça Anthenor Navarro e o Largo de São Frei Pedro Gonçalves, cujo entorno é marcado por conjuntos urbanos ecléticos do início do século XX e por influências européias Art Nouveau e o Art Déco. 5 O Prodetur-NE – Programa de Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste Brasileiro foi implantado em 1992 por iniciativa federal, junto aos governos estaduais, visando financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento – BID. Para isto foi obtido um crédito especial do governo federal, no BNDES, para a iniciativa privada que quisesse investir no setor. A estratégia do Prodetur se fundamenta, pelos menos no discurso, no tripé: iniciativa privada, governo e população. Esta política de turismo como fator de desenvolvimento teve início no Brasil com a implantação do Plantur – Plano Nacional de Turismo (1992), cujo fundamento é a diversificação geográfica da infra-estrutura concentrada no Sul e no Sudeste. A redistribuição se daria através de pólos de desenvolvimento integrados, em novas áreas, associadas à expansão de infra-estrutura, estradas, aeroportos, etc.
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As pesquisas que realizei e coordenei indicam a criação e recriação de usos e sociabilidades nos espaços de lazer e de cultura que se estruturaram a partir do período entre 1997-2002 bem como a criação de cenários para realização de festas e do Carnaval. O marco principal de reinvenção do centro histórico de João Pessoa são as obras, em especial, na Praça Anthenor Navarro e no Largo de São Frei Pedro Gonçalves, a dinamização cultural destas áreas públicas acompanhados de um retorno, mesmo que localizado e intermitente, das camadas médias e da elite local (estudantes, profissionais liberais, artistas, etc.) ao antigo centro da cidade. Entretanto, esta nova imagem do Centro Histórico de João Pessoa simbolizada na requalificação da Praça Anthenor Navarro e no Largo de São Frei Pedro Gonçalves não promoveu a expulsão imediata dos moradores destas áreas nem das favelas e habitações precárias nas proximidades. Ao contrário, em certos casos, deram visibilidade aos problemas enfrentados pela população estigmatizada que vive às margens de um rio: o Sanhauá, mas também à margem da cidade formal, das políticas de trabalho e de educação de qualidade. Deste prisma, destacaram-se no processo de requalificação do Centro Histórico de João Pessoa, em especial dos trechos requalificados no bairro do Varadouro, espetacularização, patrimonialização, mas também sociabilidades diversificadas na formação de fóruns, associações e organizações não-governamentais, bem como atividades culturais nos espaços de lazer e diversão, festas populares, bares etc. enquanto espaços nos quais se intensificaram as possibilidades de trocas, de aproximações e de reconhecimento das diferenças. Três associações surgiram vinculadas ao processo de revitalização e representam formas de ação social organizada no sentido de uma maior participação da população local nos projetos: a) a Associação Centro Histórico Vivo (ACEHRVO), reunindo antigos e novos comerciantes, moradores, jornalistas e artistas locais, representantes de movimentos sociais, pastorais, universidade e entidades ligadas aos direitos humanos, à cultura e à educação no estado da Paraíba; b) a Associação Oficina-Escola de Revitalização do Patrimônio Cultural de João Pessoa que trabalha com jovens de baixa renda em canteiros de obras de restauração baseados no objetivo e na filosofia de
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“aprender fazendo” em ofícios de carpinteiro, pedreiro, jardineiro, marceneiro e serralheiro e, por último, c) a Associação Folia de Rua com o Projeto Folia Cidadã. Este último, centrado na perspectiva de alcançar e defender uma cidadania para crianças e adolescentes residentes na favela do Porto do Capim mediante um trabalho educativo e artístico ligado à tradição do carnaval de rua. Estas, além de novas instâncias de debate sobre o tema, representaram ações da sociedade civil no sentido de inserção social da população pobre residente no Centro Histórico. A consciência da existência de um “centro histórico” na cidade de João Pessoa ampliou-se neste contexto de finais do século XX aliada às estratégias de marketing turístico do poder público, seguindo o modelo do Recife Antigo e tentando construir uma nova imagem da cidade. Quatro anos após o início de experiências de grande repercussão nacional como a Operação Pelourinho, em Salvador, e o Projeto de requalificação do Recife Antigo, o Jornal Correio da Paraíba, de 08 de março de 1997, destacava “A vez de João Pessoa” e afirmava que o poder municipal queria “repetir a mesma façanha de Recife, cujo centro histórico foi inteiramente revitalizado para o desfrute e convívio cultural da comunidade pernambucana e dos milhares de turistas que se maravilham com a transformação lá operada”. Intensificavam-se as notícias nos principais jornais da capital paraibana sobre a revitalização do centro antigo. Tal fato demonstrava interesse crescente dos intelectuais, do Estado, da opinião pública e da mídia sobre o tema. Repetiu-se em João Pessoa não só a estratégia de pintar as fachadas com cores fortes, mas também as parcerias entre órgãos públicos e privados, incluindo-se os pequenos empresários instalados na Praça Anthenor Navarro, já que as edificações não foram desapropriadas, apenas negociados os aluguéis com mediação dos órgãos de patrimônio e gestores do poder público municipal e estadual. O sistema de parcerias foi o primeiro passo para a operacionalização do Projeto de
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Revitalização da Praça Anthenor Navarro marcado também pela tentativa de recriação da imagem do patrimônio histórico da cidade de João Pessoa. Firmou-se, assim, desde o período de 1997-2002, nova imagem, narrativas e usos no centro histórico. Em todas as notícias dos jornais locais, recorria-se à imagem da origem da cidade e à idéia de que o patrimônio cultural passaria de abandonado e em ruínas para algo dinâmico, vivo, com cores e efervescência cultural 6. Esta seria a forma que possibilitaria transformar aquele patrimônio em mercadoria nova e explorá-lo para consumo cultural e turístico. Uma reportagem do Jornal A União, de 02 de novembro de 1997 destacava: O centro histórico pessoense está passando por uma grande cirurgia plástica para voltar a ter a cara de quando a cidade estava começando a crescer. Antigos prédios transformados em ruínas estão sendo recuperados para dar lugar a novas formas de exploração da chamada Cidade Antiga. (...) As ruínas que hoje fazem parte da paisagem urbana da Cidade Velha darão espaço a barzinhos, centros culturais e praças que, apesar do aspecto de novo que passarão a ter, terão de volta um pouco da arquitetura que João Pessoa já teve há séculos. Mas o Projeto vai além da recuperação dos prédios antigos e passa pela revitalização da área (...).
Antevia-se a valorização das potencialidades da área como um “centro cultural e lanterninha da rota turística do estado” (Jornal O Norte, 30/03/1997). Antes mesmo de concluídas as obras da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Pedro Gonçalves, a Prefeitura Municipal de João Pessoa, através da Fundação de Cultura de João Pessoa – Funjope realizara o Baile dos Artistas e as prévias carnavalescas com, aproximadamente, duas mil e quinhentas pessoas no Adro da 6
Dentro do programa de atração de novas atividades econômicas, após as obras de revitalização, foram implantados na Praça Anthenor Navarro, nos seus antigos imóveis, bares (Parahyba Café e Engenho do Chopp), lojas de artesanato e design (Mixtura Filipéia), galerias de arte e atelier de artistas plásticos, a Funjope, a Secretaria de Turismo do Município e o Memorial da Justiça do Trabalho. No Largo foram implantados: antiquário (Dodge Antiguidades), uma associação cultural (Associação Folia de Rua), um escritório de consultoria, uma editora, um escritório do Programa Empreendedor Cultural do SEBRAE, produtora de vídeos e boate (Intoca).
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Igreja de São Frei Pedro Gonçalves. A “Paixão de Cristo segundo o Anjo da Anunciação” foi encenada em frente ao Adro da Igreja de São Francisco e o Arraial do Varadouro, com o concurso de quadrilhas juninas, no Largo de São Frei Pedro Gonçalves. As festas juninas, as prévias carnavalescas, os lançamentos de livros, shows, festivais de cultura popular, o Auto de Deus, entre outras, delinearam formas de usos desses lugares. O casario reformado da Praça Anthenor Navarro transformou-a num agitado “ponto de encontro” e diversão por onde circulavam políticos, escritores, intelectuais, artistas, estudantes, em principal, numa praça iluminada e ao som de um burburinho de vozes e música (jazz, MPB, música instrumental). Reforçava-se a impressão cenográfica da revitalização, cujo impacto passou a ser um enorme contraste social com a letargia do resto do bairro do Varadouro. Paralelamente a essa maior visibilidade, implantou-se um processo de publicidade do centro histórico, incentivado até mesmo pela intensificação do ato de circular e de conhecer, vivenciar as qualidades, mas também os problemas daquela área e da população moradora. Tornava-se público ainda o descaso das autoridades locais com a poluição do rio Sanhauá, agravada com a presença do Lixão do Roger 7 e com as precárias condições do ambiente natural e da qualidade de vida das pessoas residentes na comunidade Porto do Capim. Desse modo expressaram-se, desde o início das intervenções mais recentes no antigo centro de João Pessoa, as ambigüidades específicas de uma experiência que transformou em lugar de consumo e lazer uma praça abandonada e degradada, transformada na imagem do que hoje se conhece popularmente como sendo o “centro histórico de João Pessoa”. Porém, não conseguiu “revitalizar” o patrimônio urbano no sentido de que não foi totalmente eliminada a imagem que a 7 Depósito de lixo da cidade localizado há 40 anos nas margens do rio Sanhauá e que só após a dinamização cultural do centro histórico, em fins dos anos 1990, aliada as pressões dos grupos que ali circulam, foi transferido para um aterro sanitário e em seu lugar construído um parque ecológico.
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caracterizava. A imagem cenográfica teria pouca duração, “o palco” sobre a praça seria desmontado gradativamente após os dois primeiros anos de inauguração da Praça Anthenor Navarro. Entretanto, a associação da Praça Anthenor Navarro com o “centro histórico” da cidade continua a permear o imaginário da população local. Parece-me importante frisar que os símbolos da nova vida no centro histórico não estavam presentes apenas nos bares e eventos culturais diversificados no final dos anos 1990 e início do século XXI mostrados nas imagens desenvolvidas pelo marketing, mas também nas formas de interações sociais e ações espontâneas, associativas e reabilitadoras, em especial, nas ações criadas por associações civis sem fins lucrativos, vinculando patrimônio cultural, arte e educação. 3. Outras narrativas e usos do patrimônio cultural em João Pessoa A Associação Oficina-Escola de Revitalização do Patrimônio Cultural de João Pessoa, criada em 1991 como suporte legal para o funcionamento da Escuela-Taller de João Pessoa, num convênio entre a Agência Espanhola de Cooperação Internacional – AECI, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, o Governo do Estado da Paraíba e a Prefeitura Municipal de João Pessoa, foi implantada como parte do Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa (1987) e, atualmente, faz parte da história do Programa de Escuelas - Taller
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em nível internacional. Conforme a
diretora do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural Ibero - americano, “los lazos estabelecidos van mucho más allá
8 O programa de Escuelas-Taller vinha sendo desenvolvido na Espanha pelo Ministério do Trabalho desde 1986, voltado para adolescentes e jovens que apresentavam situações de risco pessoal e social. Em 1990 havia várias escolas desse tipo só na Espanha, ensinando os ofícios da restauração e preservação do patrimônio histórico natural e construído. Foi quando se firmou um convênio de colaboração entre o Instituto Nacional de Empleo – INEM e a Agência Espanhola de Cooperação Internacional – AECI para expansão desse programa de EscuelasTaller em países da Ibero-Ámérica. A Oficina-Escola de João Pessoa foi a segunda mais antiga do Programa de Preservação do Patrimônio Cultural da Ibero-Ámérica e a primeira no Brasil, seguida em 1996 pela criação da Oficina-Escola de Salvador.
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de los de carácter institucional, aprentándose de manera decidida y ya difícil de desatar a lo largo de estos años de trabajo conjunto” 9. Os trabalhos centrados no objetivo e na filosofia de “aprender fazendo” e “ensinar fazendo”, ou ainda, “trabalhar aprendendo” utilizam a prática cotidiana e o “saber-fazer” como fios que tecem a experiência educacional, pessoal e social dos jovens, professores e instrutores da Oficina-Escola. Em 1995, a Oficina-Escola de João Pessoa ganhou sede própria no prédio da antiga Fábrica de Vinhos Tito Silva. A restauração e o uso da fábrica Tito Silva (tombada pelo patrimônio nacional na década de 1980) é um exemplo do “saber-fazer” e da criatividade e diversidade regionais, da cultura material e imaterial. Nesse período, o extinto Pró - Memória (atual IPHAN) havia demitido os profissionais que atuavam na execução das obras de restauração (pedreiros, marceneiros, carpinteiros etc.), já que o órgão passara a exercer apenas funções de fiscalização. A equipe recém-formada da Oficina-Escola incorporou, no projeto, quatro desses profissionais (serralheiro, marceneiro, carpinteiro e pedreiro) para exercerem funções de professores – instrutores nos ofícios ligados diretamente à construção civil, ancorados no entendimento e conscientização preservacionista. Passaram, assim, a ser parte importante do Projeto de Revitalização e instrumento de formação de mão-de-obra especializada para suprir as necessidades operacionais do processo de revitalização, até então executadas por empresas privadas, num ritmo muitas vezes incompatível com as exigências da preservação. A partir de meados da década de 1990, foram entregues as principais obras restauradas pelos alunos das primeiras turmas da Oficina-Escola. Teve, assim, papel importante na intensificação do interesse despertado pelo patrimônio na cidade de João Pessoa, desde então. 9 GÓMEZ-PALLETE, Amparo; MAZO, Miguel del. "Um orgulho". In: GOVERNO DO ESTADO DA PARAÍBA. Paraíba-Brasil. Oficina – Escola de João Pessoa – Dez anos reconstruindo o futuro. João Pessoa, Textoarte, 2001. p. 10.
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Deste modo, a Oficina-Escola continua a atuar na capacitação de jovens de baixa renda para intervir fisicamente nos monumentos e áreas urbanas do centro histórico de João Pessoa, visando à sua absorção pelo mercado da construção civil. Inicialmente, trabalhava-se com jovens de 16 a 24 anos, mas, na seqüência da experiência, esse critério foi alterado, passando-se a selecionar maiores de 18 anos (por questões de ordem trabalhista e de segurança do trabalho). Além de bolsas de estudo (correspondentes a um salário mínimo), os alunos da Oficina-Escola de João Pessoa têm acesso à educação, alimentação, fardamento, vale-transporte, assistência médica e psicológica, orientação profissional e recebem estímulos à auto-estima a partir da segurança adquirida por ofícios milenares. Para manter estas atividades, a coordenação, os professores e alunos desenvolveram táticas frente à realidade social de pobreza na Paraíba, bem como frente às pressões das instituições financiadoras. As interações sociais e os conhecimentos adquiridos na experiência cotidiana de trabalho e convivência entre os membros da Oficina-Escola e com o patrimônio histórico, além do caráter coletivo e participativo dessa forma de aprender trabalhando, representam tentativas de inclusão social baseadas na relação entre patrimônio cultural e cidadania. 4. Participação, mobilização e memória urbana Em 2000, após a conclusão das obras da Praça e do Largo e frente a certo retraimento da Prefeitura Municipal e do Governo do Estado com relação às obras de revitalização e dinamização cultural, formou-se o Fórum para o Desenvolvimento Sustentável do Centro Histórico de João Pessoa. Dele resultou a Associação Centro Histórico Vivo – ACEHRVO e o Workshop Construindo o Futuro, reunindo intelectuais, comerciantes, moradores, alguns políticos locais. Instituiu-se uma reunião pública semanal no antigo Hotel Globo, onde travaram as principais discussões e decisões relativas
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ao tema. Iniciava-se a constituição de um espaço de reivindicação da população aos poderes públicos locais. Cobrava-se vontade política, interesse pelos problemas da área e continuidade na dinamização cultural. O Projeto Folia Cidadã10, por sua vez, surgiu em 2001, como parte da Associação Folia de Rua – uma associação criada a partir do movimento de artistas e moradores do bairro de Miramar no sentido de fazerem um resgate do carnaval de rua na cidade 11. O Projeto Folia Cidadã voltou-se para a população de crianças e adolescentes pobres da comunidade Porto do Capim, trabalhando a relação arte e educação por meio de oficinas de percussão criativa, técnica vocal, artes plásticocênicas, oficina de fabricação e reciclagem de papel, além do curso de Anfitrião Mirim
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. Todas as ações da entidade têm
como eixo central a tradição cultural do carnaval de rua. Este projeto representava, assim, uma ação dos próprios consumidores e usuários diante da situação precária de vida das crianças, no sentido de incentivar a permanência da população pobre do centro histórico/Porto do Capim e o desenvolvimento de ações voltadas para a melhoria de vida. Iniciava-se, em torno do centro histórico, uma politização do debate acerca das reivindicações sobre diretos culturais e pertencimento à cidade. A ACEHRVO e, depois, a Associação Folia de Rua/Projeto Folia Cidadã, não apenas se tornaram as principais interlocutoras dos anseios da população do bairro, como 10 O Projeto Folia Cidadã obteve o apoio do Ministério da Cultura, através da Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91), com vistas à captação de recursos junto às empresas privadas. Entretanto, a parceria mais importante foi firmada com o Instituto Ayrton Senna que o inseriu entre os dezesseis projetos nacionais escolhidos no Brasil para fazerem parte de uma experiência intitulada Cidadão 21 Arte. Os objetivos desse último foram inspirados no conteúdo do art 68 do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.691/90) com ênfase voltada para a formação continuada de crianças e de adolescentes. 11 As “Muriçocas do Miramar” envolvem mais de 200.000 pessoas nas festividades da quarta-feira que antecede a semana de Carnaval. 12 Esse projeto representou uma parceria da Associação Folia de Rua/Projeto Folia Cidadã com a Secretaria de Turismo de João Pessoa, entre outubro e dezembro de 2001, atendendo a vinte adolescentes numa programação envolvendo aulas sobre história da Paraíba, conduta turística, informações turísticas e monumentos históricos. Após essa primeira etapa, quinze adolescentes ficaram aguardando providências por parte da Prefeitura Municipal de João Pessoa/Setur no sentido de passarem à segunda etapa do curso, ou seja, à parte prática. Poderiam, então, atuar nos principais pontos turísticos, recebendo uma bolsa de incentivo, da ordem de 60% do valor do salário mínimo. Teria sido uma oportunidade para, através da memória inscrita no patrimônio cultural, desenvolver a responsabilidade da conservação naqueles que habitam o centro. Entretanto, o projeto foi abandonado.
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também passaram a ser reconhecidas como indícios de que a população organizada poderia influenciar para garantir a continuidade e abrangência do processo de requalificação. Com efeito, as ações da ACEHRVO e do Projeto Folia Cidadã, como também as festas, shows, festivais etc., atividades culturais promovidas pela Prefeitura e pelo Governo do Estado da Paraíba nas áreas revitalizadas se traduziram em esforços no sentido de transformar o Varadouro em um local onde se pode ter contato com a cultura popular paraibana. Mais do que isso, o vínculo entre patrimônio edificado e as expressões imateriais da cultura configuraram uma tentativa de relocalização e de afirmação de uma tradição através da qual se buscava reinventar a centralidade de um espaço da cidade. Apesar do discurso de inclusão dos moradores da favela no processo de revitalização em curso no bairro do Varadouro, por parte dos agentes culturais, das associações e do poder público, percebia-se a forma como operavam as categorias conflituosas de interação, onde as faces invisíveis da exclusão ganhavam forma. Deste modo, durante o dia, as ações do Projeto Folia Cidadã significavam uma tentativa de inclusão dessa população pobre no processo de revitalização com um trabalho desenvolvido com as crianças e adolescentes do Porto do Capim. Durante a noite, as calçadas iluminadas e enobrecidas, e até mesmo o gosto musical dos freqüentadores demarcava fronteiras e usos segregados da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves. As representações que os usuários faziam de si e dos outros estavam fortemente marcadas pelas possibilidades de acesso a padrões culturais de consumo, cujos limites se definiam a partir da transformação do patrimônio em mercadoria cultural. Enobrecidas as antigas edificações, estas pareciam ficar mais distantes do cotidiano dos moradores do bairro.
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Já as prévias carnavalescas e a festa do São João, com o concurso de quadrilhas, passaram a contar com a participação de uma população mais diversificada da cidade como um todo. Nesses grandes eventos, milhares de pessoas circulavam pelo bairro, em seus becos, ladeiras, praças e largos, de maneira indiscriminada. E até mesmo os moradores do Porto do Capim começaram a ocupar os espaços da Praça Anthenor Navarro com comércio ambulante, configurando-se como um exemplo de insurreição pelo uso dos moradores pobres do bairro do Varadouro e imediações. Entretanto, convém ressaltar que a reabilitação do centro histórico da cidade de João Pessoa não expulsou sua população moradora, talvez até mesmo pela forma lenta e gradual com que as intervenções vêm sendo conduzidas se compara aos exemplos de Recife e Salvador, muito embora a gentrification já tenha sido identificada na maneira como foi conduzido o processo de reabilitação e nos usos posteriores, especificamente, da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves, cuja dinamização cultural gerou uma imagem distante da realidade da população moradora do bairro, privilegiando consumidores de segmentos da elite local. As parcerias entre iniciativa privada e pública também se tornaram elementos de transferência de investimentos do primeiro para o segundo. Reabilitada, a área transformou-se no principal ponto de encontro e de diversão noturna do Centro Histórico de João Pessoa. Casario restaurado, esquema de segurança, presença de pessoas da classe média etc. Tudo apontava para a gentrification da área. Essa nova imagem da Praça e do Largo tornava ainda mais visível, pelo efeito contrastante, o abandono e a degradação das demais áreas do Varadouro (SCOCUGLIA, 2004). No entanto, a festa e a efervescência cultural, nos moldes pretendidos, não duraram muito e cerca de quatro anos depois, a área começou a dar sinais de estagnação. O poder público municipal reduziu consideravelmente sua participação no processo de requalificação. Os eventos culturais foram deixados a cargo da iniciativa privada, basicamente dos donos de
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bares e boates que haviam se instalado no local, e dos artistas locais que se interessavam na animação cultural do lugar. Além disso, a Prefeitura também deixou de assegurar uma infra-estrutura e de serviços urbanos em condições que fossem satisfatórias a permanência dos novos usos do local. Sem programação cultural, em meio à escuridão e sem segurança pública, o público-alvo do lugar afastou-se. Também a especulação imobiliária, com a subida dos aluguéis dos prédios, promoveu o afastamento dos investidores, inclusive os donos de bares e boates que já estavam estabelecidos no local. Prédios ocupados com bares e boates foram fechados. O quadro foi agravado, quando o mais conhecido e freqüentado bar da área revitalizada – o Parahyba-Café – deixou a Praça Anthenor Navarro. Entre 2002 e 2005, a Praça Anthenor Navarro e o Largo de São Pedro Gonçalves atravessaram um período de estagnação, com alguns prédios fechados e sem programação cultural nenhuma. Atualmente, os bares e boates já não caracterizam o lugar, como ocorria anteriomente, quando estava no auge (entre 1998-2002). Outros tipos de atividades tem se estabelecido na área, como galerias de arte, ONGs, institutos de pesquisa, gabinete cultural etc. Em que pese os inúmeros problemas, algumas tentativas para recuperar o dinamismo e o prestígio que sempre caracterizou, não somente o centro histórico, mas toda a região central tem sido realizadas, inclusive fora do âmbito institucional do Projeto de Revitalização objeto de Convênio Brasil/Espanha. Algumas ações partem da iniciativa privada (implantação do Shopping Tambiá, em 2003), mas a maioria é oriunda do poder público, notadamente da Prefeitura Municipal. Umas fracassaram, a exemplo da implantação de um shopping popular, em 2004 (o Shopping Durval Ferreira, no bairro do Varadouro, no prédio antes ocupado pela Prefeitura), outras obtiveram resultados positivos, como a instalação, em 2000/2001, de um outro shopping popular – conhecido pelo nome de “Terceirão”, situado à Rua Duque de Caxias. Da parte
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do Governo do Estado, ocorreu a instalação da Casa do Artista Popular (2005), em um prédio histórico restaurado para este fim, situado nas imediações da Praça da Independência, no bairro Tambiá. 5. Ações e limites da reabilitação no centro antigo de João Pessoa Nos últimos dois anos, observa-se a retomada do interesse público pela região central e, neste processo, o surgimento de novas propostas e novos atores sociais. Novos empreendimentos vêm sendo realizados e projetados, tais como: a reestruturação do Terminal de Transportes Coletivos Urbanos (2006), conhecido como “terminal de integração”, a revitalização das Praças Pedro Américo e Aristides Lobo (2007), a reestruturação do Mercado Público Central (obra a ser concluída), a implantação do Centro de Comércio e Serviços do Varadouro (numa parceria entre a Prefeitura Municipal e o Grupo Pão de Açúcar), além da restauração da Igreja da Misericórdia (2007), no contexto do Projeto de Revitalização. Estas ações fazem parte de uma política de mudança de imagem da cidade pelos órgãos públicos estaduais e, sobretudo municipais, dentro de uma estratégia de comunicação que se apóia sobre a seleção de tipos de espaços públicos a serem destacados e de construção de cenários que possam satisfazer, ao mesmo tempo o habitante, o homem de negócios e o turista. Esta imagem deve passar também a idéia de que a qualidade de vida faz eco à qualidade da morfologia urbana. Trata-se de projeto de planejamento onde o patrimônio cultural e arquitetônico e a produção de imagem foram fortemente mobilizados para a atratividade turística, uma mise en scène de uma cidade atrativa economicamente e também de uma cidade com qualidade de vida para os residentes da área tombada e para os habitantes da cidade em geral. Os projetos arquitetônicos e urbanísticos são, assim, parte importante da construção simbólica e imaginária da cidade, são
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também importantes para que se possa relacionar as dimensões políticas e sociais das propostas de intervenções urbanas em áreas centrais e os aspectos formais e estruturais dos espaços em questão. As atenções e as expectativas em torno das ações que dão continuidade ao processo de revitalização do Centro Histórico de João Pessoa, na área do Varadouro, estão voltadas, em especial, para o Programa Moradouro e para o Projeto de Requalificação do Antigo Porto do Capim, ambos lançados em 2007. O Programa Moradouro, criado pela Prefeitura Municipal de João Pessoa em parceria com a Caixa Econômica Federal, inicialmente, concentra suas ações na restauração e requalificação de sete imóveis, localizados à Rua João Suassuna, no bairro do Varadouro. Estes casarões foram projetados para serem transformados em trinta e cinco apartamentos, com cada um dos imóveis abrigando cinco apartamentos. A compra desses imóveis será financiada pela própria Caixa Econômica Federal e o comprador terá um prazo de quinze anos para pagar. A área construída de cada apartamento mede entre 52 a 68 metros quadrados com dois quartos, sala única, cozinha, área de serviço e banheiro. Em cinco dos sete casarões, os apartamentos terão suíte. A prestação será R$ 260,00, que representa 0,7% do valor total do imóvel (aproximadamente 35 mil reais), e deverá ser paga durante um período de 15 anos, segundo as regras do Programa de Arrendamento Residencial (PAR). Toda a obra está orçada em R$ 1.242.500,00 – recursos do Governo Federal, através da Caixa Econômica Federal (CEF) – mais uma contrapartida da Prefeitura de João Pessoa 13. A obra está avaliada em cerca de R$ 1.242.500,00 e os recursos provêm do PAR (Programa de Arrendamento Residencial), com a contrapartida da Prefeitura Municipal, que entrou com os imóveis, o projeto de restauração e reforma e o processo de seleção. Os pretendentes devem preencher alguns requisitos como: não ter financiamento pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH); ser maior de 18 anos ou emancipado; ter no máximo 65 anos de idade incompletos; não ter 13 As informações aqui registradas sobre os projetos arquitetônicos e urbanísticos em desenvolvimento pela Prefeitura Municipal na área do Centro Histórico de João Pessoa a partir de 2005, sobre o Programa Moradouro bem como sobre o Projeto de Requalificação do Antigo Porto de Capim foram fornecidas pela SEMHAB – Secretaria Municipal de Habitação Social e pela SEPLAN – Secretaria de Planejamento da PMJP- Prefeitura Municipal de João Pessoa em 2007.
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contrato anterior de arrendamento rescindido por inadimplência ou outra falta contratual; não ter pendência no Serviço de Proteção ao Crédito ou Serasa; renda mensal entre R$ 900,00 e R$ 2.100,00 (podendo ser a renda familiar); ter ciência de que habitará uma área onde sempre haverá shows e festas e de que os prédios não possuem garagem. Uma vez preenchidos esses requisitos, a preferência será dada aos artistas ou pessoas que trabalham no Centro da cidade. Embora a reforma dos prédios ainda não tenha começado, a expectativa é de que, até o final de 2008, os imóveis já estejam ocupados. O perfil dos inscritos em abril de 2007 é formado por músicos, artesãos, atores, designers, professores de artes e de história, publicitários, arquitetos, fotógrafos, jornalistas e pessoas que trabalham no centro antigo de João Pessoa. Tudo indica que a possibilidade de morar no cartão postal da cidade de João Pessoa mexeu com o sonho de muita gente que deseja a casa própria, 141 pessoas disputam os 35 apartamentos que serão construídos na Rua João Suassuna no centro antigo da capital pelo Programa Moradouro. Quanto ao Projeto de Requalificação do Antigo Porto do Capim, corresponde à terceira etapa do Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa. Embora fosse parte das vinte e seis áreas que foram selecionadas como prioritárias dentro do Plano de Intervenções Estratégicas no Centro Histórico, em 1987, foi somente a partir de 2005 que as discussões envolvendo o Porto do Capim tornaram-se mais intensas e amplas no cenário público da cidade. Razões históricas (ligadas à origem da cidade) e razões ambientais (ligadas à presença na área de um ecossistema protegido por Lei Federal) fazem do Porto do Capim um lugar duplamente importante no contexto da cidade e de enorme significação no contexto do processo de requalificação do centro antigo de João Pessoa. Entre os objetivos do Projeto estão: a conservação/valorização do patrimônio cultural do lugar; a revitalização da função econômica – comercial e serviços – do centro no contexto da cidade e da função habitacional, assegurando condições de habitabilidade às populações existentes e aquelas que serão atraídas para a área; a transformação do antigo porto em
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uma importante área de lazer, cultura e diversão para a população da cidade; o resgate do vínculo rio/cidade, com a transformação do rio, do antigo porto e do Varadouro em um núcleo turístico da cidade, voltado para o turismo históricocultural e do ecoturismo etc. A proposta de intervenção abrangerá a restauração e reformas internas de prédios de grande importância histórica (três deles situados às margens do rio Sanhauá, formando o que os técnicos chamam de “Complexo da Antiga Alfândega”, e onde serão instalados o Museu da Cidade – Unidade Colônia; o Centro de Referência da Cultura Popular Paraibana e o Centro de Apoio ao Turista); a construção de um píer (onde as embarcações turísticas atracarão) e de praças de eventos e contemplação; a restauração da Antiga Ponte Sanhauá; a recuperação e requalificação de várias ruas e praças históricas; a restauração do Complexo Fabril da Matarazzo (onde haverá um centro educacional, comércio, centro de reciclagem profissional, atividades de arte e educação, teatro e auditório, praça de eventos etc); a construção de unidades habitacionais para os moradores da favela Porto do Capim. A proposta de requalificação do Porto é ampla, atuando em diversas frentes: patrimônio histórico, turismo, ecologia, lazer, comércio, serviços, habitação, atividades culturais, educação, etc. No entanto, os técnicos entrevistados em nossas pesquisas demonstraram que os focos principais são: a reintegração da cidade com o seu nascedouro, o rio, e a inclusão social dos moradores da favela Porto do Capim. Essa seleção de sentido que a cidade pode representar é levada a efeito pela manipulação de suas formas e de seus usos. Só recentemente a concepção dos programas de recuperação do patrimônio cultural incorporou efetivamente a idéia de conservar um mínimo de população residente. Na maioria dos programas analisados em nível nacional e internacional, até o momento, a patrimonialização teve um efeito denominado de gentrification (substituição de população antiga por novos segmentos de camadas médias e elites) com relação a população mais antiga. Nas propostas que serão analisadas neste
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capítulo, vê-se que esse fenômeno foi levado em consideração e medidas foram tomadas no planejamento destas áreas no sentido de atenuar sua extensão e os seus efeitos. Entretanto, duas décadas após o início das obras de reabilitação do centro histórico de João Pessoa, em especial no bairro do Varadouro, a população do Porto do Capim e demais favelas e vilas que margeiam o rio Sanhauá permanece na mesma situação de pobreza e discriminação. A requalificação da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Pedro Gonçalves não modificou estruturalmente a realidade desta população. Em suas entrevistas, os moradores ribeirinhos afirmaram que estavam satisfeitos com as mudanças na Praça e no Largo, argumentando que a requalificação destas áreas trouxe um pouco de segurança e de divertimento, além de alguma visibilidade pública para o Porto do Capim. Porém, em termos de trabalho e renda, saneamento básico, escolas e moradia, das necessidades básicas da população, a situação ainda não mudou. Os moradores do Porto do Capim e Vila de Nassau afirmam terem sido preteridos à população que freqüentava as áreas reformadas. A partir de 2007, com o Projeto de Requalificação do Porto do Capim e Vale do Sanhauá sendo rediscutido, voltou-se a falar na reabilitação da área e da realocação da população que ali vive. Apesar da descrença e da desconfiança que os moradores entrevistados nas comunidades ribeirinhas demonstraram possuir na concretização do Projeto e, mais ainda, na permanência deles na área após a conclusão das obras, os técnicos responsáveis pelos projetos e representantes do IPHANPB garantiram em suas declarações às nossas pesquisas que os moradores não sairão da área, que apenas serão deslocados internamente, permanecendo dentro do próprio Porto do Capim. Para o referido deslocamento foram adquiridas duas áreas com aproximadamente 2,4 hectares nas proximidades do local onde as mesmas residem atualmente. Os objetivos, com esta intervenção, seriam de promover uma melhoria significativa na qualidade de vida dos moradores da Comunidade do Porto do Capim e adjacências por meio de ações infraestruturais como pavimentação,
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drenagem e esgotamento sanitário e a construção de habitações adequadas, melhorando a qualidade de vida dos beneficiados, bem como contribuindo com a redução do déficit habitacional do município. Em relação ao partido urbanístico adotado para a intervenção no Porto do Capim algumas decisões nortearam a proposta, segundo os técnicos e urbanistas da Prefeitura Municipal de João Pessoa, responsáveis pelo projeto: a priorização e respeito ao pedestre, o conceito da quadra aberta com permeabilidade de fluxos e visual, o favorecimento das unidades habitacionais ao conforto ambiental, a descentralização das áreas verdes, de sociabilidades e de lazer, a combinação de três tipos arquitetônicos contribuindo para a dinâmica plástica e desenho qualificado da paisagem, o sistema viário perimetral delimitando a área a ser ocupada e servindo de controle para possíveis ocupações desordenadas, o escalonamento de altura dos tipos de habitações e a implantação das edificações na macro-quadra criando vias de pedestres e equipamentos comunitários favoráveis à animação urbana (Ver na sequência, abaixo, desenho da proposta urbanística de implantação das edificações no terreno, sistema viário e equipamentos coletivos).
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Proposta urbanística para a realocação da Comunidade do Porto do Capim (SEMHAB, PMJP, 2007).
A população beneficiada se encontra hoje dividida em três regiões, denominadas: Comunidade Trapiche (Vila Nassau), Praça XV de Novembro e Vila Frei Vital. A divisão da população beneficiada por comunidade pode ser observada na tabela abaixo.
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Região Comunidade Trapiche (Vila
Nº de Famílias 60
Nassal) Praça XV de Novembro
143
Vila Frei Vital
94
TOTAL
297
População beneficiada pelo Projeto Porto do Capim (SEMHAB, PMJP, 2007).
De acordo com os técnicos e urbanistas, as famílias cadastradas não terão ônus com o processo de realocação. Durante a construção das unidades habitacionais, os moradores permanecerão em suas casas atuais. Cada família será contemplada com o título de propriedade do novo imóvel (estas entrevistas foram gravadas e arquivadas como parte da documentação sobre o tema). Para as unidades habitacionais a serem construídas nas situações de realocação, foram projetadas três tipos de edificações, lançando mão de estratégias de verticalização e geminação das residências em razão da adaptação do terreno disponível e o número de famílias a serem beneficiadas. No primeiro tipo de edificação proposto (Duplex), as unidades foram divididas conforme o plano que corta o eixo de simetria longitudinal do lote, ou seja, cada unidade passou a ser dividida internamente em pavimento térreo e superior. Cada uma com área construída de 40,28 m 2. Sendo assim, cada lote ficou com uma área construída de 80,56 m2. No pavimento térreo ficaram localizadas as salas de estar e jantar, a cozinha, o banheiro social, bem como uma área para lavanderia externa. Os ambientes de permanência prolongada (quartos) foram projetados no pavimento superior.
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Maquete eletrônica e planta baixa com lay-out (térreo e primeiro andar) da tipologia duplex, a ser utilizada na realocação da Comunidade do Porto do Capim (SEMHAB, PMJP, 2007).
No segundo tipo de edificação proposto, o lote comporta quatro unidades habitacionais, sendo duas no pavimento térreo e duas no pavimento superior. O diferencial nesse caso é o fato de que todas as habitações foram planejadas com um quintal individual, mesmo as que se encontram no primeiro pavimento. Cada unidade de habitação apresenta uma área construída de 38,82 m2 com sala, dois quartos, banheiro, cozinha e área de serviço, ficando cada lote com 96,00 m 2 de área construída.
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Maquete eletrônica e planta baixa com lay-out (térreo e primeiro andar) das edificações tipo térreo + 1 a serem utilizadas na transferência da Comunidade do Porto do Capim (SEMHAB, PMJP, 2007).
O terceiro tipo proposto foi projetado com três pavimentos, sendo dois apartamentos por andar. Cada apartamento apresenta uma área construída de 41,46 m2, com sala, dois quartos, banheiro, cozinha e área de serviço. Foram previstas unidades adaptadas aos problemas de acessibilidade identificados no cadastro social da população realizado pela Prefeitura. São portadores de necessidade especiais e idosos. Seguindo os preceitos da NBR 9050 para essa adaptação foi proposto outro tipo térreo + 1 para portadores de necessidades especiais (Ver as imagens seguintes, abaixo, a proposta da PMJP com edificações tipo térreo + 2 e térreo + 1 adaptadas para portadores de necessidades especiais).
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Maquete eletrônica e planta baixa com lay-out do tipo térreo + 2 a ser utilizada na realocação da Comunidade do Porto do Capim (SEMHAB, PMJP, 2007).
Planta baixa com lay-out do tipo de edificação tipo térreo + 1, adaptada aos portadores de necessidades especiais segundo NBR 9050 (SEMHAB, PMJP, 2007).
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Nossas pesquisas continuam a acompanhar o processo de regularização fundiária da área para a qual serão transferidos os moradores das margens do rio Sanhauá, bem como a construção das edificações e transferência de população. Enquanto os moradores aguardam o desfecho dos acontecimentos, a vida no antigo centro da cidade de João Pessoa continua a se desenvolver enquanto as atividades de lazer e diversão perdem força no cenário da Praça Anthenor Navarro e Largo de São Frei Pedro Gonçalves. Com efeito, pode-se afirmar que nos últimos anos, as atividades de diversão e as festas na Praça Anthenor Navarro se tornaram intermitentes e, no entanto, no cotidiano do bairro continuam a circular trabalhadores, moradores, consumidores e os alunos da Oficina-Escola de João Pessoa, como também, do Projeto Folia Cidadã, os moradores do Porto do Capim e das demais comunidades que margeiam o Rio Sanhauá, bem como turistas em visita aos monumentos históricos e arquitetônicos reabilitados. Contudo, pode-se afirmar que apesar do avanço lento dos processos de reabilitação urbana no Varadouro, há uma continuidade das ações de requalificação e de atração de novas populações, bem como a permanência dos moradores antigos como, no caso, os que ocupam os trechos às margens do Rio Sanhauá. Estes últimos representam parte importante das sociabilidades no centro antigo aliadas àquelas geradas nas noites, nos bares, boates e eventos artístico-culturais. Neste sentido, no Centro Histórico de João Pessoa, com a reabilitação de seu patrimônio cultural, passou-se a reinventar a centralidade de um lugar que apesar de gerar cenários para realização de festas e do Carnaval de rua, também lançou pequenas e estreitas pontes que podem permitir uma continuidade das sociabilidades criadas a partir da arte e do consumo cultural. No capítulo seguinte será focalizado, particularmente, o tema da patrimonialização associado às políticas de habitação e às representações dos moradores, em especial da Comunidade Porto do Capim já mencionados como parte do processo em destaque na forma mais recente de reabilitação do Centro Histórico de João Pessoa.
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Capítulo II Patrimonialização, reabilitação e gentrification no centro antigo
1 – Os casos exemplares de uma problemática: marketing turístico e gentrification Neste capítulo investe-se na análise crítica da relação entre habitação e projetos de reabilitação urbana, tendo como foco empírico o centro antigo da cidade de João Pessoa (PB). O objetivo é analisar como o processo de requalificação urbana afeta a população já existente, neste caso, na “Comunidade Porto do Capim”, mediante o estudo das modificações ocorridas ou propostas em seus aspectos sociais, políticos e urbanísticos 14. Para isso, além do processo de requalificação do centro histórico, destacam-se as representações de moradores sobre o processo e as táticas (DE CERTEAU, 1994, 1998) que os mesmos têm utilizado para lidar com os efeitos das mudanças, inclusive em sua condição de atores políticos 15. Tal empreitada adquire relevância, pois, nos últimos anos, cidades de diferentes países e de diversas regiões do Brasil propuseram intervenções em seus centros antigos visando à reabilitação de seu patrimônio cultural. Atente-se para o fato de 14
As reflexões e os resultados de pesquisa aqui apresentados inserem-se nas atividades de pesquisa e docência que realizo junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia PPGS/UFPB e ao Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB. Foram discutidas em dissertação de mestrado, sob minha orientação, realizada por Maria das Dores de Q. Vital (PPGS-UFPB). Inserem-se ainda como partes de um grupo de pesquisa interdisciplinar e interinstitucional: Culturas das cidades: arte, política e espaço público na contemporaneidade, do CNPq, no qual participo com pesquisadores da UFC, dentre outras instituições analisando diferentes experiências regionais e inserindo-as nos contextos nacionais e internacionais. Desdobram-se ainda nas reflexões que desenvolvi no pós-doutorado (França-Lyon), 2008-2009. Neste sentido, o estudo do caso da “favela Porto do Capim” será referido a outras experiências internacionais e nacionais de requalificação urbana, por meio de bibliografia disponível.
15 Nestas
pesquisas procura-se também analisar, inclusive como contraponto, os discursos do saber especializado local, bem como o discurso oficial que orienta as políticas e os programas elaborados para a questão. Enfatiza-se que este não é o único discurso, nem o mais importante, embora seja o mais visível. Outros discursos e representações sociais oriundos do imaginário e do conhecimento popular são construídos e, embora tantas vezes inaudíveis, são parte irredutível da realidade social, possuindo especificidades, um saber-dizer e um saber-fazer próprio do homem comum e do cotidiano, cuja existência não se desliga do discurso oficial uma vez que nenhum discurso existe por si só e em estado puro.
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que nos cinco últimos anos as propostas são mais complexas e articulam projetos de transformações dos usos, do valor do solo e das funções. Apesar de uma crescente visibilidade e suposta valorização das áreas públicas e do patrimônio cultural em centros urbanos, sobretudo a partir da década de 1990, muitos são os impasses, controvérsias e conflitos permanecendo uma exponencial deterioração e segregação sócio-espacial, especialmente nos casos brasileiros. Neste sentido, acentua-se a necessidade de conhecer a população moradora e usuária, seus problemas e aspirações, para avaliar as possibilidades das proposições e as alternativas aos impasses uma vez que estas propostas vêm sendo utilizadas sob o argumento de serem estratégias de desenvolvimento e geração de emprego/renda via turismo e dinamização cultural. Além de estarem sendo inseridas, mais recentemente, ainda que de forma pontual, em políticas de habitação popular e de camadas médias urbanas. Ademais, os discursos e as mudanças presentes nas representações do ambiente da atual sociedade urbana parecem pouco conhecidos ou negligenciados por profissionais do urbanismo e por gestores destas políticas públicas. Trata-se de uma velha questão que permanece atual mesmo diante das grandes transformações sócio-econômicas e político-institucionais nas cidades brasileiras nas últimas décadas, ou seja, a segregação sócio-espacial e a moradia em favelas16, sobretudo, aquelas localizadas em áreas de valorização imobiliária, para as quais têm sido propostas intervenções urbanísticas.
16 A problemática das favelas é objeto de vasta literatura no próprio campo temático da habitação no Brasil (VALLADARES, 1980, 2005). Além de atrair o olhar de cientistas sociais, urbanistas e administradores públicos bem como de escritores, músicos e cineastas, a favela tem sido alvo de reflexões abrangentes sobre a pobreza urbana e o comportamento político dos pobres. A partir da década de 1970, programas de remoção de favelados para conjuntos habitacionais foram estudados em inúmeras pesquisas. Sobretudo a partir da década de 1980 a temática passou a ser combinada com novos enfoques, destacando-se o estudo dos movimentos sociais urbanos, incluindo a remoção ou a urbanização de favelas. Insere-se a questão habitacional na discussão sobre a reforma urbana (ROLNIK e CYMBALISTA, 1987; MARICATO, 1987). Esta colocou na agenda da pesquisa e do debate político a reflexão sobre instrumentos de planejamento e gestão capazes de contribuir para cidades mais eqüitativas, democráticas e ecologicamente sustentáveis. Especificamente com relação às favelas, estudos mais recentes demonstram preocupação com a urbanização e regularização fundiária sobre as quais já existem análises referidas aos novos instrumentos incluídos no Estatuto da Cidade (MARICATO, 2000, 2001; CALDEIRA, 2000; TASCHNER, 1995; SILVA, 2000).
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Entretanto, como afirma Ermínia Maricato: “a questão da moradia social em áreas centrais urbanas tem solução satisfatória apenas nos marcos de uma política habitacional nacional que inclui a regulamentação do mercado e os programas subvencionados destinados àqueles que não têm acesso ao mercado privado” (2001, p.128). É preciso que se veja ainda que os “programas de moradia para a baixa renda são inviáveis quando a classe média não tem acesso ao mercado formal” (2001, p.129). O papel dos governos municipais e estaduais é fundamental e não há porque esperar um plano nacional para programar um local, mas é preciso ter clareza dos limites dos poderes locais em relação às questões como o direito de propriedade ou à regulamentação financeira do mercado residencial, além de aspectos mais específicos como os subsídios para a população excluída. Assim, pelo menos, os esforços das prefeituras municipais e dos governos de estado contribuem para amenizar a situação dramática da moradia social nas cidades brasileiras na ausência de uma política nacional17. No Brasil parece haver ainda as reticências sobre uma eventual residência no centro antigo. Estratos médios da sociedade passam a freqüentar estes lugares durante a noite, edificações são recuperadas para consumo e promoção de eventos, lazer etc. Durante o dia são as pessoas das favelas, dos cortiços, os trabalhadores do comércio e serviços que circulam. Constata-se que ainda há a rejeição, o abandono e o estigma que inviabilizam projetos de moradia entre os estratos das camadas médias e impede programas para grupos de baixa renda. Será que as representações negativas das camadas médias em relação aos centros antigos revelam uma tendência muito forte no Brasil? Será que os discursos da UNESCO e 17 Em
termos de investimentos públicos e parcerias destaca-se a experiência de requalificação do centro do Rio de Janeiro com o Programa Novas Alternativas parte realizado numa parceria com o Governo Francês (como a reabilitação do Morro da Conceição envolvendo recuperação de espaços públicos e residenciais). Apesar das dificuldades em termos de flexibilização da legislação urbanística, de regulamentação urbana e de viabilização financeira dos projetos, parece avançar em ações articuladas no sentido de recuperação de sobrados e casarões mal-conservados e em ruínas, cortiços e da ocupação de vazios resultantes de demolições e desabamento de edificações, propondo sua adaptação para uso habitacional nos moldes atuais. A prefeitura atua como agente promotor e a Caixa Econômica Federal como agente financeiro, associados à iniciativa privada e ONGs quando do apoio a reocupação e seleção de novos moradores, na formação do condomínio e na administração dos imóveis, bem como no trabalho sócio-educativo com as famílias em diversas fases de implementação do programa. Os imóveis foram agrupados em categorias de cortiços, ruínas, (sobrados e casarões parcialmente demolidos ou em desabamento), vilas operárias, conjuntos habitacionais. O campo de atuação é o centro antigo do Rio e os trechos preservados, em meio ao centro urbano, lugares como a Lapa, Central do Brasil, Praça Tiradentes, Gamboa e Santo Cristo, Morro da Conceição entre outros.
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das prefeituras basearam-se em uma representação conservadora dos centros das cidades? E o discurso atual poderia reverter essa tendência? Refiro-me, por exemplo, a uma adesão social proveniente dos meios culturais, intelectuais e econômicos e a rejeição em termos de moradores de camadas médias, bem como as propostas de remoção dos moradores de favelas próximas às áreas alvo dos programas de requalificação. Uma apropriação alternada dia e noite observada no Recife, Fortaleza, Salvador, Belém e João Pessoa, entre outras capitais do Brasil parece revelar, em parte, esta rejeição. Há, concomitantemente, reações destas populações à remoção e a tipos específicos de moradias impostos pelos projetos de requalificação. É marcante ainda a ausência de financiamentos que atendam as faixas de um a três salários mínimos e projetos habitacionais para estas áreas viáveis em termos de manutenção e continuidade em longo prazo. Pelo exposto, penso que o caso da requalificação do centro antigo de João Pessoa pode trazer luzes a esta discussão. E, para isso, na seqüência, desenvolvo este trabalho em três partes: primeiro foco (ainda que brevemente) a literatura que mostra a relevância dessa problemática em várias cidades do mundo; depois desloco o olhar para o processo de requalificação de João Pessoa; a seguir trago as representações dos moradores da área (Favela Porto do Capim) para, finalmente, considerar aquilo que as pesquisas permitiram concluir, ainda que parcialmente. As análises apontam para a existência de um fenômeno mundial cada qual com suas especificidades e contextos. Estudos recentes sobre experiências européias e norte-americanas (BIDOU-ZACHARIASEN, 2006; RIVIÈRE, D’ARC, 2004) discutem os efeitos dos processos de requalificação em bairros centrais antigos apontando para um repovoamento por famílias de renda média. Na maioria são processos de “gentrification” 18 O termo gentification
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que iniciados ainda nos anos setenta em algumas
bem como seus derivados, foi utilizado ainda na década de sessenta por Ruth Glass (GLASS, 1964) para explicar o repovoamento (nesta altura espontâneo) de antigos bairros desvalorizados do centro de Londres, identificando uma transformação da composição social dos residentes numa substituição de camadas populares por camadas médias. Inúmeros autores retomaram este termo como um fenômeno ao mesmo tempo físico, econômico, social e cultural implicando em mudança física e social do estoque de moradias na escala de bairros ou trechos urbanos. Mais recentemente, o termo se alargou para designar segmentos de classes médias residindo em condomínios de luxo de centros das grandes cidades em termos mundiais (SASSEN, 1998) e dinâmicas culturais e de lazer associadas ao consumo em áreas alvo de processos de reabilitação urbana (FEATHERSTONE, 1995; ZUKIN, 1998, 2000).
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cidades como Nova Iorque, Lyon, Bruxelas, Barcelona, Nápoles, posteriormente, atravessaram diferentes fases como a incorporação pelo capital imobiliário seguida do interesse mais recente das políticas estatais. Afirma-se que de modo inimaginável nos anos setenta, a construção destes projetos imobiliários e dos novos complexos de gentrification nas áreas centrais ao redor do mundo torna-se estratégia de acumulação de capital para economias urbanas em competição sob o argumento da criação de empregos pela geração de impostos, pelo desenvolvimento do turismo e pela construção de grandes complexos culturais. Para Neil Smith (2006), a generalização da gentrification posterior aos anos noventa está associada ao abandono das políticas urbanas progressistas do século XX (Estado providência) e à vitória das políticas neoliberais. Passa a ser apresentada como “natural” por alguns planejadores e urbanistas cujos planos e discursos denotam certo eufemismo que mascara o caráter gentrificateur. Smith ressalta ainda a resistência contra a gentrification, o alto grau de repressão a que foram expostos os movimentos anti-gentrification nos anos oitenta e noventa enquanto prova do caráter central dos programas imobiliários na nova economia urbana. Enfatiza também a repressão a grupos que atuam nos centros incluindo um programa de “tolerância zero” fartamente exportado. Hélène Rivière D’Darc (2004, 2006) em estudo sobre São Paulo discute a importância das análises comparativas entre experiências de requalificação na América Latina e Europa. Propõe reflexões sobre as iniciativas das prefeituras “progressistas” no Brasil, no caso de São Paulo, as desenvolvidas na gestão do Partido dos Trabalhadores em 2002 e a Associação Viva o Centro, assim como a Associação Centro Vivo e demais movimentos sociais atuantes na região central 19. Questiona um suposto interesse das camadas médias paulistanas por voltar ao centro, apontando para um desconhecimento 19 Em João Pessoa destacam-se: (1) a Associação Centro Histórico Vivo (ACEHRVO) - formada a partir do Fórum para o Desenvolvimento Sustentável do Centro Histórico de João Pessoa reunindo comerciantes, moradores, profissionais liberais, movimentos sociais, pastorais, universidade e entidades ligadas aos direitos humanos, à cultura e à educação; (2) a Associação Oficina-Escola de Revitalização do Patrimônio Cultural de João Pessoa, que trabalha com jovens de baixa renda em canteiros de obras de restauração baseados no objetivo e na filosofia de “aprender fazendo” em ofícios de carpinteiro, pedreiro, jardineiro, marceneiro e serralheiro e (3) a Associação Folia de Rua com um projeto que visa alcançar e defender uma cidadania para crianças e adolescentes residentes na favela Porto do Capim mediante um trabalho educativo e artístico ligado à tradição cultural; entre outras .
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nos estudos locais em relação às aspirações destes segmentos e, em especial, dos que estão abandonando o centro. Vê ainda a presença dos movimentos sociais e atividades hoje remanescentes no centro como “uma chance que pode permitir a São Paulo evitar os excessos da competição pela reapropriação estratégica do espaço urbano, tal como a vê Neil Smith” (2006, p.289). De fato, nossas “classes médias” são diferentes das americanas e européias, embora não as conheçamos muito bem como também ainda não conhecemos suficientemente os membros das favelas e cortiços que habitam os centros das cidades. Nossas cidades oferecem opções diferentes e ao setor imobiliário, sendo pouco provável um movimento intenso em direção ao centro antigo (considerando-se ainda a existência de novas centralidades conforme Heitor Frugóli Jr., 2000). Entretanto, a exemplo de algumas das cidades européias já mencionadas, nas cidades brasileiras há uma possibilidade de pessoas sós ou de casais jovens, com razoável nível de instrução e poder de consumo, aparecer como demanda para morar nos centros associadas a uma nova maneira de morar. Naquelas cidades, estudos apontam uma nova composição da demanda fruto de “um processo de gentrification ondas sucessivas de instalação, mobilizando a cada vez diferentes frações das classes médias, das mais ‘marginais’ às mais ‘ricas’” (AUTHIER, 2006, p.122) 20. Assim, o esquema ideal-tipo da gentrification seria algo como: o fenômeno de reconquista dos bairros antigos que teria início com um pequeno número de pessoas audaciosas (“invasores”), em seguida seria conduzido por uma clientela mais 20 Jean-Yves Authier (2006) quando estuda o caso de Lyon valida apenas parcialmente os esquemas clássicos de análise do processo de gentrification em ondas sucessivas: de “gentrification esporádica” (anos cinqüenta e sessenta), depois de “enraizamento” do processo (fim dos anos setenta e fim dos anos oitenta) e a terceira onda que seria a da “gentrification generalizada” (a partir de 1994), ao afirmar a existência de mobilidade social alta e de práticas sociais diferenciadas . Entretanto, nas conclusões dos trabalhos de Jean-Yves Authier sobre a França, ele afirma ser este um processo contínuo, não se tratando simplesmente de substituição de uma população por outra que se poderia descrever de maneira única, mas renovações sucessivas; portanto não há “modelo único” de gentrifieur, sob penalidade de uma deformação da realidade, mas um dégradé de perfis dos anos 1970 aos nossos dias, o importante seria sublinhar os pontos comuns e as diferenças.
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preocupada com os riscos (“os pioneiros”) e assumida, por fim, após as intervenções do poder público e setores privados empresariais, por segmentos das “classes médias” em ascensão social (os yuppies ou “atores do aburguesamento”). Entretanto, este esquema, de acordo com o contexto, poderia comportar algumas variações. Neil Smith (2006) afirma, por exemplo, que São Paulo não teria conhecido a primeira nem a segunda fase da gentrification, mas ao mesmo tempo afirma que nos anos oitenta o fenômeno teria atingido o planeta inteiro, inclusive, é claro, São Paulo e outras cidades brasileiras. Haveria, então, uma espécie de “gentrification sem passado” no Brasil e que de repente se tornou uma estratégia global e concentrada como um traço da mundialização e recomposição urbana neste período pós-fordista? Com efeito, cada vez mais pesquisadores e setores populares ligados a projetos sociais ou habitacionais preocupamse com os efeitos destas intervenções de requalificação nas áreas centrais uma vez que são inúmeros os casos de substituição de famílias moradoras pobres por outras de extratos médios e superiores. Estas intervenções vêm se concretizando de forma conflituosa, com resistência dos moradores à remoção ou com a substituição gradativa por novos grupos familiares. O enfrentamento desses processos implica em investimentos públicos e privados, em planejamento coerente com as realidades locais para a conservação e requalificação. Trata-se, de fato, de atuar na contramão da linha hegemônica do Movimento Moderno que negava a utilidade das morfologias passadas, sobrevalorizando a idéia de “partir do zero”. Além disto, alguns dos princípios “modernistas” como a verticalização, a separação de usos e funções resultaram em novos problemas: grandes distâncias, segregação social e desperdício de infraestrutura. No Brasil os questionamentos são diversos segundo a composição diferenciada em termos sociais. Interessa saber, por exemplo, como se constroem os discursos dos moradores de famílias pobres residentes nestes centros antigos e de que forma são atingidos por estas problemáticas? Como reagem à expulsão? O que a possibilidade comparativa com outras
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experiências em nível nacional e internacional nos ensina e ajuda a compreender em termos das mudanças sociais? Colocase, neste sentido, uma dificuldade dos urbanistas em promoverem a “mescla social” que aparece com freqüência nos discursos de prefeituras progressistas brasileiras. Só possível de ser enfrentada mediante o conhecimento das mudanças sociais e das aspirações dos diversos segmentos envolvidos nas propostas de requalificação das moradias e áreas públicas dos centros urbanos no Brasil, senão estas idéias serão cada vez mais utópicas levando ao questionamento do caráter sustentável da recuperação, da requalificação urbana.
2 – Cenários da requalificação, marketing e moradia no centro histórico de João Pessoa: Programa Moradouro e Projeto de Requalificação do Varadouro e Porto do Capim Na cidade de João Pessoa21 a idéia de reabilitação e de valorização do seu patrimônio cultural representado pelo centro histórico teve início em 1987, sob o olhar estrangeiro, com o Convênio Brasil/Espanha de Cooperação Internacional para elaboração do Projeto de Revitalização do referido Centro. Momento de invenção deste conceito para a cidade e de inserção da capital paraibana no Programa de Preservação do Patrimônio Cultural Ibero-americano do Governo da Espanha. Foi também o começo da valorização do patrimônio cultural como estratégia de desenvolvimento econômico mediante políticas voltadas para o turismo em nível local, nacional e internacional 22.
21 É uma “grande cidade média” (SANTOS, 1996) com problemas urbanos comuns às metrópoles. Há uma permanência de elementos da herança patriarcal e oligárquica nordestina, sobretudo no estilo de vida dos estratos médios misturados às atualizações desses grupos quanto a comportamentos e atitudes sociais, políticas e culturais veiculadas pela indústria cultural, numa integração à lógica de mercado e a cultura de consumo global (Ver a respeito: Jovanka Scocuglia, “Cidade, habitus e cotidiano familiar”, Editora Universitária, UFPB, 2000 ).
22 Sobre
patrimônio cultural e convênio Brasil-Espanha de Cooperação Internacional para requalificação do Centro histórico de João Pessoa ver: Jovanka Baracuhy C.Scocuglia, “Revitalização e (re) invenção do centro histórico na cidade de João Pessoa – 1987-2002” e “Cidadania e Patrimônio Cultural – Oficina-escola, Projeto Folia Cidadã e ACEHRVO no centro histórico de João Pessoa”, ambos publicados pela Editora Universitária UFPB, João Pessoa, 2004.
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Entretanto, o centro histórico passou a ser objeto de intenso processo de requalificação a partir das intervenções na Praça Anthenor Navarro e no Largo de São Frei Pedro Gonçalves, realizadas entre 1998 e 2002. Tratou-se da reinvenção da figura do centro histórico na capital paraibana, atribuição de novos usos e construção de um marketing fundamentando uma imagem turística da cidade, um cenário para divulgação. As fachadas pintadas com cores fortes que compõem o conjunto urbano eclético do entorno da Praça são, até hoje, imagens centrais da propaganda turística divulgada em catálogos de companhias aéreas, em hotéis, publicações as mais diversas em jornais e revistas. Após a requalificação da área e seu entorno, instalaram-se bares, restaurantes e casas de show, predominando sobre usos mais diretamente ligados a funções culturais, como ateliês, galerias de arte e lojas de artesanato. De início houve uma valorização dos imóveis e a conseqüente elevação dos aluguéis e dos preços de venda. Essas transformações têm acarretado ameaças à permanência dos moradores do Porto do Capim no terreno da União que ocupam próximo ao antigo prédio da Alfândega e por detrás dos muros de vários prédios comerciais e galpões ligados às atividades do antigo atracadouro. A requalificação e os investimentos no setor turístico aceleraram uma estratégia para transformar João Pessoa numa cidade “pós-moderna”, competitiva, intenção evidenciada desde a década de 1990 em diferentes gestões estaduais e municipais. Destacam-se, atualmente, as intervenções de grande porte em áreas de preservação da cidade como a construção da Estação de Ciência, Cultura e Artes
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construída na Ponta do Cabo Branco, ponto extremo oriental das
Américas, amplamente divulgada nos meios de comunicação como uma “abertura das portas do mundo para a capital paraibana” (Jornal Correio da Paraíba, 09 de abril de 2007). Planeja-se a remoção dos moradores da “Favela Porto do 23 Conjunto arquitetônico projetado por Oscar Niemeyer que tem por finalidade apoiar a difusão cultural e científica. O projeto foi executado com recursos do município e do Governo Federal, através dos ministérios do Turismo e da Ciência e Tecnologia. A obra foi inaugurada no dia 03 de julho de 2008. Foi idealizada para ocupar o núcleo central da Zona Especial de Preservação - Parque do Cabo Branco (criada através do Decreto Municipal 5.363/2005, em 28 de junho 2005). Na parte superior do Altiplano Cabo Branco, no entorno da extremidade mais oriental das Américas, o projeto de Niemeyer configura-se no coração de uma área verde que ainda guarda resquícios de Mata Atlântica. Projeto polêmico entre profissionais arquitetos e urbanistas, entidades ambientalistas que protestaram nos primeiros momentos da divulgação da obra, evidenciando os impactos ambientais relacionados com a sua localização em área de preservação ambiental.
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Capim” como parte do Projeto de Requalificação do Varadouro e do Porto do Capim, no âmbito de uma parceria entre Governo do Estado, Prefeitura Municipal e Agência Espanhola de Cooperação Internacional. Como também ações de planejamento voltadas para a conversão de antigos imóveis localizados no centro antigo da capital paraibana para uso residencial a partir de convênio entre a Caixa Econômica Federal (PAR) e a Prefeitura Municipal, o Programa Moradouro. Dessa forma, em João Pessoa evidenciam-se estratégias com características do novo tipo de planejamento urbano, que se efetivam em intervenções pontuais, destinadas à valorização da imagem da cidade. Em conseqüência, os espaços se transformam em potencialidades a serem consumidas, mediante atividades culturais, turísticas e de lazer (ARANTES, 2000; CHOAY, 1999; ZUKIN, 1995 e 2000; VARGAS e CASTILHO, 2006). A localização da favela do Porto do Capim numa área objeto desse tipo de intervenção constitui uma peculiaridade
24
na medida em que se contrapõe uma experiência de “planejamento pós-moderno” e uma forma de habitação “pré-moderna”, no sentido de que permaneceu à margem da “cidade legal” produzida pelo urbanismo modernista (MARICATO, 2000). Em abril de 2007, o governo estadual anunciou que pretende retomar o Projeto de Requalificação do Varadouro e Antigo Porto do Capim destacado desde 1987 dentre as 26 prioridades do Plano de Intervenções Estratégicas para o centro histórico de João Pessoa como parte do Convênio Brasil/Espanha de Cooperação Internacional. No entanto, foi apenas em 1994 que a concepção da idéia de intervenção foi intensificada em três anos de estudos e elaboração do projeto. Sua execução vem sendo postergada por diversas ocasiões e em mudanças na gestão estadual e municipal, sob o argumento de ausência de recursos, apesar de notícias e anúncios oficiais diversos, em diferentes ocasiões, terem divulgado a alocação de recursos do PRODETUR-NE para as obras de requalificação da área. Em junho de 2005 foi realizado o Fórum de Construção de Parcerias para Promoção do Desenvolvimento Social e Econômico do Porto do Capim, iniciativa da Comissão Permanente 24 Em situação análoga encontra-se a favela Poço da Draga, próximo ao Centro Dragão do Mar em Fortaleza, Ceará, o qual tem sido objeto de projeto de requalificação. Ver, a respeito, a tese de doutorado de Vancarder Brito Sousa (2006).
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de Revitalização do Centro Histórico/Agência Espanhola de Cooperação Internacional aliada aos representantes regionais do IPHAN e a Arquidiocese da Paraíba, reunindo diversas entidades públicas municipais, estaduais e federais, além de setores populares, artísticos e ONGs atuantes na área como a Associação Unidos do Porto do Capim numa das tentativas mais expressivas de retomada do processo de requalificação da área. Durante o referido evento o Projeto de Intervenção foi reapresentado e dentre os objetivos expostos destacam-se:
A conservação e valorização do patrimônio cultural do setor mais antigo da cidade que mantém em sua estrutura o registro dos mais de 400 anos da mesma;
A revitalização de sua função econômica dentro do contexto da cidade, com a inserção de novos usos que resgatem o caráter de centro comercial e de serviços, diversificado e de bons níveis de qualidade;
A revitalização de sua função habitacional, com a dotação de condições dignas de habitabilidade e de desenvolvimento econômico e social das populações existentes, que, somadas ao incentivo à fixação de novas habitações em outras áreas do Centro Histórico, promoverão a criação de um substrato de ocupação permanente desta área;
A transformação da área do antigo porto em um dos importantes pontos do Centro Histórico destinados ao lazer e diversão da população da cidade, com utilização dos espaços públicos para eventos, concentrações e contemplação;
A consolidação na área do Varadouro das atividades culturais, associadas ao resgate histórico, divulgação da cultura local e o intercâmbio cultural;
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O resgate do vínculo rio/cidade, com a transformação do rio, do antigo porto e do Varadouro em importante núcleo turístico da cidade, com a criação de infra-estrutura necessária ao aproveitamento através do turismo histórico-cultural e do ecoturismo;
A transformação das áreas de mangue do estuário do rio Paraíba em parque ecológico, com a utilização do trecho remanescente na área do Centro Histórico para atividades didáticas, de pesquisa e de lazer contemplativo.
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Proposta Urbanística divulgada durante o Fórum, parte do Projeto de Revitalização do Varadouro e Porto do Capim elaborado pela Comissão Permanente para Revitalização do Centro histórico de João Pessoa, junho, 2005.
De acordo com esse Projeto, os moradores do Porto do Capim seriam realocados para unidades de habitações multifamiliares a serem construídas nas proximidades. Segundo o depoimento da coordenadora adjunta da Comissão do Centro Histórico de João Pessoa, o projeto de revitalização do Porto do Capim já avançou nas discussões e amadurecimento e deverá ser iniciado, efetivamente, este ano. O processo de revitalização do Porto do Capim é um processo lento, já vem sendo discutido há mais de 13 anos e envolve uma gama de ações. Já conseguimos grandes avanços no sentido de amadurecimento, como a oportunidade de realização de vários fóruns e a participação cada vez maior da sociedade local. Hoje a nossa visão não é apenas no sentido de recuperar o patrimônio histórico, mas sim usar e recuperar esse patrimônio para o desenvolvimento social. A idéia é devolver o rio para a cidade que serviu de nascedouro e com o tempo a cidade virou as costas para o rio e se voltou para o mar (Sônia Gonzales).
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Como se pode constatar, não é a primeira vez que a remoção da comunidade é anunciada e postergada. A falta de integração entre os governos estadual e municipal tem sido um dos aspectos criticados nas discussões públicas sobre o empreendimento, aliado à realocação para outras áreas. Do ponto de vista da maioria dos moradores do Porto do Capim, a mudança para habitações providas de infraestrutura parece ser bem-vinda (SCOCUGLIA, 2004; VITAL, 2006) desde que mantidas nas proximidades. Entretanto, nas discussões do Projeto, a questão habitacional ainda aguarda o equacionamento de pontos problemáticos e fundamentais como: a adequação dos novos espaços às necessidades das famílias; a situação das pessoas que têm comércio em suas casas; a utilização e manutenção das áreas comuns; os custos das novas moradias decorrentes do pagamento de IPTU, condomínio e tarifas por serviços públicos; os prazos para o início das obras. Além disto, é improvável que os beneficiários conseguirão resistir às prováveis investidas de pessoas ou grupos interessados em adquirir imóveis situados em área de intensa valorização imobiliária. Assentada em área de patrimônio da União a favela Porto do Capim é caracterizada como uma invasão, ou seja, ocupação ilegal e irregular. Apesar desta situação todos os entrevistados em nossas pesquisas reclamaram o direito de propriedade de seus imóveis, segundo eles, construídos à custa de muitos sacrifícios. São, na maioria, imóveis próprios inseridos na área próxima ao mangue, alguns ocupando um trecho já parcialmente urbanizado com arruamento e coleta de lixo, construídos em alvenaria, com água encanada e energia elétrica, alguns com linha telefônica, porém sem esgotamento sanitário. Entretanto, os imóveis localizados por trás desta rua principal, foram construídos diretamente sobre o mangue, mediante aterros sucessivos e são mais precários, constituídos por materiais diversos, como restos de madeiras, papelão, taipa, cobertos com palha, entre outros improvisos.
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Há a possibilidade de aplicação, neste caso, dos instrumentos definidos no Estatuto da Cidade com vistas à democratização da gestão urbana e à maior equidade do acesso à habitação e aos serviços urbanos. Entretanto, tem-se em vista que a mera inclusão desses instrumentos no Plano Diretor não garante sua aplicação, uma vez que, historicamente, a gestão das cidades brasileiras está marcada por uma dicotomia entre a legislação urbanística decorrente dos planos e sua efetiva aplicação. Assim, a inclusão das áreas que permaneceram à margem da “cidade legal” depende da capacidade de mobilização e do poder de pressão dos diferentes grupos que produzem o espaço urbano. Ressalte-se a importância de considerar o planejamento como um processo político, cujos resultados têm o plano e a legislação urbanística apenas como ponto de partido (MARICATO, 2001). A questão de moradia na capital é preocupante. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) revelam por meio do relatório Habitat 2006, que o número de pessoas vivendo em favelas aumentou muito nos últimos dez anos no Brasil 25. O índice coloca Brasília como a capital brasileira que mais se "favelizou" entre o período de 1991 a 2000, com 398% das pessoas vivendo em condições precárias de moradia. Em segundo lugar está João Pessoa, com crescimento de 265% da população de favelas e, em terceiro, Salvador, com aumento de 179%. A Secretaria de Habitação Social de João Pessoa afirma existirem 122 "aglomerados subnormais" (nomenclatura utilizada pelo IBGE para favelas, áreas de invasão), com uma população estimada em 108.727 habitantes. As “comunidades” estão distribuídas em quarenta dos sessenta bairros oficiais do município, ocupando uma área de aproximadamente 501 hectares, com 24.142 domicílios. 25 O relatório elogia diversos programas sociais brasileiros, mas alerta que a vida de quem vive nas favelas continua piorando e que os velhos preconceitos não mudaram. O documento da ONU mostra como as condições de moradia afetam quem vive nos aglomerados: eles passam mais fome, têm menos educação, menos chances de conseguir emprego no setor formal e sofrem mais com doenças que o resto da população das cidades. Atualmente, quase um bilhão de pessoas, o equivalente a um sexto da população mundial, vivem em favelas. Caso a tendência atual continue, este número vai subir para 1,4 bilhão em 2020, a mesma população da China, de acordo com o relatório do Programa Habitat. Segundo o Relatório da ONU, 2006, "a comunidade internacional não pode ignorar os habitantes das favelas, porque, depois da população do campo, eles são o maior grupo nos países em desenvolvimento e este número vai crescer quando estes países se tornarem mais urbanizados". A solução para frear o crescimento desigual, de acordo com a ONU, é que os governantes levem as diferenças entre favelas e outras áreas urbanas em conta na hora de formular políticas sociais.
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Foi a partir da década de setenta que o planejamento elaborado pelo poder público contribuiu para acentuar o esgarçamento do tecido urbano construindo conjuntos habitacionais na periferia, ao mesmo tempo em que aumentava a população em favelas e financiava a expansão dos bairros de classe média e alta. Paralelamente, assistiu-se à deterioração progressiva do centro da cidade em suas funções tradicionais de comércio e moradia, tendo as praças e os logradouros sido ocupados por vendedores ambulantes, postos de gasolina, estacionamentos, mendigos e delinqüentes. O bairro do Varadouro, até a década de quarenta, abrigava, predominantemente, usos ligados às atividades portuárias, ao comércio, à habitação e ao lazer. A construção de um novo porto, na cidade de Cabedelo, zona metropolitana de João Pessoa, bem como a urbanização do entorno do Parque Sólon de Lucena, abertura e pavimentação da Av. Epitácio Pessoa acelerou o processo de expansão urbana em direção às praias. Acarretou, posteriormente, o abandono e a transferência gradual das atividades comerciais, institucionais e de moradia no sentido centro-praia. Iniciou-se um processo de estagnação dos bairros centrais e, em especial, do bairro do Varadouro (hoje conhecido como o maior bairro da Cidade Baixa) onde permaneceram alguns trechos ocupados por habitações de classes médias e baixas, convivendo com espaços deteriorados, bares e casas de prostituição - freqüentados à noite por boêmios e intelectuais. Neste mesmo período, entre as décadas de 1940 e 1970, ocorreu a consolidação da comunidade do Porto do Capim formada, em geral, por famílias de pescadores, situada nas vizinhanças do antigo atracadouro, então abandonado. Na cidade como um todo o padrão de segregação espacial do tipo centro-periferia (CALDEIRA, 2000) consolidou-se ao longo das décadas de setenta e oitenta favorecidos pela ação do Estado, por intermédio do BNH (MARICATO, 1987, 2001; SCOCUGLIA, 1999; VALLADARES, 1980, 2005). Este último financiou a construção de residências de classes médias, sobretudo na parte leste, e de grandes conjuntos habitacionais na periferia, os quais foram ocupados, em parte, por moradores de favelas removidas para dar lugar a obras de infra-estrutura viária. Ainda neste período, ocorreu a consolidação
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da orla litorânea leste como centro de lazer (SCOCUGLIA, 1999). Nesse contexto de exclusão social, até mesmo a praia, espaço aberto e favorável à sociabilidade entre os grupos sociais, acaba configurando territórios segregados, em função tanto da maior ou menor acessibilidade, quanto da ocupação da orla por bares e restaurantes (além das invasões de espaços públicos por “barracas” e quiosques). Gradativamente, verificou-se o deslocamento de parte do comércio e dos serviços localizados no centro para outros bairros, próximos às grandes artérias de transporte centro/orla. Prejudicado pelo sistema viário de ruas estreitas e espaços insuficientes para estacionamento, bem como pela ausência de mobiliário urbano de qualidade, o trânsito na área central tornou-se caótico, afugentando consumidores com maior poder aquisitivo. Aliado a isso, a partir da construção do Shopping Center Manaíra (o maior da cidade), na década de 1980, foi construído um número crescente de shoppings. Na mesma época, ocorreu um crescimento vertiginoso das favelas e assentamentos periféricos. Apesar de anos de abandono e de demolições realizadas na calada da noite, a área central da cidade de João Pessoa conta com expressivo patrimônio histórico, ambiental e cultural remanescentes da arquitetura colonial barroca, militar e religiosa, bem como da arquitetura eclética do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX. Os moradores da "favela do Porto do Capim” formam uma população de aproximadamente 300 famílias, abrigados em condições precárias em termos higiênicos, sanitários, de saúde pública e ambiental. Porém, poderia falar da Favela do Rato em Recife, do Porto da Draga em Fortaleza e tantas outras “comunidades”
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deste tipo em cidades no Norte e Nordeste
brasileiro. Aliado ao Projeto de Requalificação do Antigo Porto, atualmente, a Prefeitura Municipal busca alternativas e apoio federal para programar políticas habitacionais no centro e demais áreas da cidade. Foram iniciadas as obras de 26 Devido ao estigma associado à palavra “favela”, os moradores do Porto do Capim
(SCOCUGLIA, 2004), assim como também do Poço da Draga (SOUSA, 2006) preferem ser designados como uma “comunidade”, termo que remete a uma visão mais
positiva, na medida em que implica vínculos de solidariedade e pertença comum. Por esta razão utilizo este termo em alguns trechos em substituição à favela.
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requalificação de antigos edifícios localizados à Rua João Suassuna como parte do “Projeto Moradouro” executado com recursos da Prefeitura e da Caixa Econômica Federal. A Prefeitura procura viabilizar o financiamento para a aquisição de imóveis no centro e incentiva a ocupação dos mesmos por usos diversificados com apoio financeiro da Caixa Econômica Federal. A nova gestão pública municipal vem desenvolvendo atividades pontuais na manutenção da dinâmica cultural da área estimulada desde a revitalização da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves. Trouxe de volta para o antigo centro da cidade os festejos juninos em 2005 e promoveu a recuperação do “Conventinho” (prédio anexo à Igreja de São Frei Pedro Gonçalves doado pela Arquidiocese da Paraíba à Prefeitura) para ser a sede da Fundação de Cultura de João Pessoa - FUNJOPE e de um Centro Vocacional de Confecções (CVC). Estão em processo a instalação um centro cultural que inclui um teatro experimental, um cineclube e um café, além do centro de profissionalização para atender periodicamente cerca de 50 jovens e adultos das comunidades carentes do centro da cidade. 3 – Nova imagem e exclusão dos moradores da Favela Porto Capim. Pode-se falar em gentrification? E as táticas contra-usos e processos de resistência? As evidências empíricas indicam, e os depoimentos com os moradores confirmam que, até o presente momento, o processo de reabilitação do centro histórico não promoveu transformações estruturais nas condições de vida da população moradora do Porto do Capim, não afetando, de modo a melhorar ou a piorar as condições de trabalho e de renda, de moradia, de saúde, educação etc. Também não promoveu nenhuma modificação na paisagem física da área da favela. As maiores transformações foram realizadas no trecho onde houve a intervenção mais direta, representada pela Praça Anthenor Navarro e pelo Largo de São Pedro Gonçalves. Nesses espaços, as mudanças não se restringiram à situação física do
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casario, sobretudo o uso do espaço foi modificado. Os edifícios, antes abandonados ou ocupados com atividades de prostituição, oficinas mecânicas, armazéns, depósitos etc., receberam novos usos relacionadas ao lazer e ao entretenimento, as atividades culturais desenvolvidas pelas ONGs que se estabeleceram na área desde então, a prestação de serviços e pequeno comércio, além de algumas repartições públicas. A Praça e o Largo voltaram a ser utilizados como ponto de encontro, teve reforçada a função de ponto de passagem, além de ter passado a ser palco privilegiado de diversas atividades relacionadas à cultura, ao divertimento e a recreação de alguns segmentos da população moradora da cidade como também dos usuários em geral, entre turistas e visitantes. Apesar de não terem sido os beneficiados diretos e formais pela requalificação desta área do centro, nenhuma dessas transformações passou despercebida pelos moradores entrevistados do Porto do Capim. Todos os entrevistados foram unânimes em reconhecer as mudanças porque passou a área em questão e a importância dessas mudanças não apenas no contexto do bairro do Varadouro ou do centro histórico, mas também, da própria cidade de João Pessoa. A mudança na imagem do lugar e no tratamento de maior visibilidade dado ao Porto e sua população são, sem dúvida, algumas das alterações mais fortemente percebidas pelos entrevistados. No tocante a imagem do lugar, alguns entrevistados chegam a comparar a área antes da reabilitação a um “museu” ou a uma área “sem vida”. – Era um museu. Era que tinha um muro na frente que não passava ninguém. As ruas eram só lama. (...). (Regina)
Os depoimentos vêm destacando também, e com muita ênfase, a mudança no olhar da sociedade local ou alguns de seus setores para com os moradores do Porto, tidos como pessoas violentas. – (...) antigamente o povo tinha medo de ir à comunidade porque pensavam que era uma comunidade violenta, onde tinha muitas brigas, muitos assaltos e de um tempo pra cá, de cinco anos
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pra cá, o povo estão acreditando que não é aquilo que ele via, que é muito diferente, é uma comunidade onde moram pessoas carentes e que todo mundo convive como família. (Leopoldo)
Embora esses moradores do Porto não tenham participado da concepção e da implantação do Projeto de requalificação das áreas em questão, nem serem os beneficiários diretos das melhorias produzidas até o momento, não se mostram insatisfeitos com as reformas realizadas na Praça e no Largo, contestam apenas o caráter exclusivista do Projeto, por não ter contemplado diretamente a área do Porto do Capim e sua população. – Ah, melhor, né? Você tem um lugar que é batido de terra e pedra, pra hoje um lugar desse... é mudar da água pro vinho, né? Muito bom. Se acontecesse lá no Porto do Capim era bom, né? Mas, se saísse do papel era bom. (Vicente)
Por meio dos depoimentos e das conversas informais nas pesquisas realizadas em 2001-2002, atualizadas na dissertação de mestrado de Maria das Dores de Q. Vital em 2006, os moradores mostram-se cada vez mais conscientes da necessidade de participação no processo. Aproveitam como podem as oportunidades que têm surgido em conseqüência da requalificação e, em particular, seus efeitos indiretos e informais, ou seja, valem-se das táticas (DE CERTEAU, 1994) e contra-usos (LEITE, 2001; SCOCUGLIA, 2004) para subverter os usos esperados dos espaços urbanos requalificados seja nos espaços do lazer, do trabalho, da cultura e educação etc. Segundo Michel De Certeau, “as táticas do consumo, engenhosidades do fraco para tirar partido do forte, vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas” (1994, p.45). Os entrevistados reconhecem que, apesar do processo de requalificação não ter sido capaz de promover as transformações sociais mais substanciais ou em termos de estrutura de suas moradias necessitam, pelo menos não até o
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momento da realização das enquetes aqui apresentadas, a requalificação das áreas vizinhas trouxe algumas alterações no cotidiano do Porto e de seus moradores ou de uma parte deles. Nesse sentido, os depoimentos de moradores em diferentes momentos de pesquisa apontaram que, dentre as alterações que a requalificação da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Pedro Gonçalves trouxe para o cotidiano do lugar e dos seus habitantes, as mais importantes foram: a visibilidade pública da área requalificada, do próprio Porto e de seus moradores; a limpeza, a beleza e a segurança/respeito para a área; a promoção da cultura e das festas; além de algum emprego, indicando haver expectativas dentre os moradores do Porto com relação ao processo de requalificação e a possibilidade de trabalho/emprego. A proximidade ou o acesso fácil ao centro comercial da cidade, os vínculos afetivos que os moradores mais antigos possuem com a área são algumas das principais razões pelas quais os entrevistados resistem à remoção. Entretanto, há indícios de que as intervenções realizadas nas áreas da Praça e do Largo também podem ser fortes motivos para que os entrevistados resistam a permanecerem na área do Porto do Capim. Há fortes indícios de que tanto o reconhecimento público do local quanto a recuperação física do patrimônio cultural tem funcionado como atrativos, dando prestígio e visibilidade às pessoas que habitam no local, mesmo que continuem a sentirem-se excluídos do processo de requalificação e da sociedade em geral, inclusive porque as suas condições de moradia e de vida continuam muito precárias. Houve, indubitavelmente, uma elevação no status do bairro em comparação com os anos anteriores à implantação das reformas, principalmente as décadas de 1970 e 1980, mesmo que ainda não tenha conseguido reverter o processo de degradação física e simbólica da área. Ao mesmo tempo, percebe-se que esse novo status adquirido atingiu também a área do Porto do Capim e seus moradores, constituindo-se em motivo de preocupação entre os habitantes da favela Porto do Capim. Há certo temor e apreensão quanto à atratividade gerada pela maior visibilidade e possibilidade de benefícios aos
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moradores. A ameaça passa a ser não apenas a incerteza quanto à remoção e seus benefícios ou malefícios, mas também a vinda de moradores de outras periferias da cidade ou até dos municípios vizinhos, tornando-se um centro de atração para famílias de baixa renda, tão ou mais carentes que eles, desejando usufruir do status do lugar e dos benefícios recebidos pela população que já existia, como por exemplo, uma nova moradia, a inclusão nos projetos sociais relacionados ao emprego e renda etc. As classes médias ainda não são vistas como atraídas pela moradia ou ameaças aos moradores do antigo Porto do Capim. Existe por parte dos entrevistados a desconfiança de que “novos invasores” que, segundo alguns depoimentos, já estariam procurando se instalar na área, o façam na esperança de conseguirem uma casa, para morar ou para vender, quando da concretização do projeto de requalificação do Porto do Capim. Estas novas unidades levantadas na “beira da maré”, como afirmam os moradores da favela Porto do Capim, também foram mencionadas por técnicos do patrimônio que trabalham na área. Porém o temor maior dos moradores antigos continua sendo a remoção para as áreas distantes do centro antigo. – (...) e a preocupação nossa é que a cada dia chega um, cada semana chega outro... (...) e vai chegando um dia eles vão dizer assim: - Agora, não tem condições de fazer mais aquele projeto que nós pensava, vão tirar todo mundo e botar num lugar bem distante, como eles tão pensando botar lá pra Penha e Mangabeira, e nós ficamos preocupados quando eles disseram isso na primeira vez. (Leopoldo)
De fato, tornar invisíveis os pobres da cidade deslocando-os para periferias longínquas tem sido prática característica da política urbana no Brasil. Esconder a pobreza foi, inclusive, um dos objetivos das reformas urbanas nas capitais brasileiras desde finais do século XIX e início do século XX e continua a ser no século XXI. O ideal de uma cidade moderna implicava
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além da demolição das estruturas antigas, a reconstrução do cenário urbano, em suas áreas mais centrais, livrando-o de qualquer imagem que remetesse à pobreza. Entretanto, até o momento pode-se afirmar o contrário: que a participação dos moradores e os trabalhos das ONGs e associações na área do centro antigo de João Pessoa têm dado visibilidade aos problemas do bairro e a seus moradores mais pobres. Antes do início do processo de requalificação da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Pedro Gonçalves, o Porto do Capim e seus moradores estavam praticamente esquecidos e ignorados. A população ali fixada há mais de cinqüenta anos sequer era considerada ou aparecia nos censos e estatísticas sobre dados populacionais da cidade. Quase não se tinha notícias sobre quem eram essas pessoas, de onde vinham, porque tinham se estabelecido ali no Porto do Capim, como viviam e quais eram as suas necessidades e interesses. Os moradores do Porto estavam literalmente escondidos entre a pobreza e as edificações históricas já bastante deterioradas. Na percepção dos entrevistados, as discussões em torno do processo de requalificação dessa área forçaram determinados segmentos da população local (em geral, consumidores das atividades do lugar ou da cultura veiculada no centro histórico, moradores da cidade e turistas, escolas e universidades públicas e privadas, além de autoridades públicas, políticos e empresários) a reconhecerem a existência da população ali residente. – (...) Antigamente ninguém ouvia falar nada daqui, nada. Não vinha ninguém aqui. Hoje em dia, turista aqui não falta no Porto. Quando nós vê é muita gente aqui pra ir pra lá pro Porto, vem procurar saber onde era a antiga Alfândega, aonde era o Porto do Capim, a antiga Saboaria. Hoje tá mais importante, mais antigamente... Na minha chegada, quando eu vim morar aqui, não existia isso não. Agora tá. (Lutero)
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E, desse modo, promoveu-se a visibilidade da pobreza em que vive uma parcela significativa da população do centro antigo, aquela que ocupa as áreas mais marginais e periféricas. A sociedade local ou parte dela foi obrigada a tomar conhecimento dos problemas que afligem à área do Porto e seus moradores. Foram obrigados a recolocarem o Porto do Capim e sua gente no contexto social e político-cultural da cidade. – (...) Era totalmente diferente, porque a gente não tinha o apoio que a gente tem hoje em dia. O apoio que a gente recebeu foi só depois que começou isso, modificou a pracinha. (...). (Regina) – Hoje tem mais interesse, né? Agora, porque antigamente eles não vinham, não procuravam saber, não queriam saber quem era, quem não era, nem ligavam de conhecer muito as pessoas. E hoje em dia, não. Eles se interessam, eles procuram a gente. É muito melhor agora. Melhorou muito. (Gláucia)
Este reconhecimento, por vezes entendido como certa notoriedade fez aumentar a auto-estima dos moradores da favela, fazendo com que o patrimônio cultural, material e imaterial, começasse a ocupar um lugar importante no imaginário e no cotidiano destes atores sociais. O reconhecimento da importância do patrimônio cultural existente no Varadouro e no Porto do Capim também se traduziu em vantagens simbólicas. Muitos dos entrevistados disseram sentirem-se prestigiados por morarem num lugar que tem o reconhecimento público, inclusive, de turistas. – (...) A gente que tem que preservar que tem que cuidar que tem que cuidar daquilo ali, pra dizer eu moro no patrimônio histórico, mas eu preservo o patrimônio histórico, porque a gente faz parte dele. Dizer que aquilo ali, a gente não faz parte? Faz sim. Antes, quando eu dizia que morava aqui, o pessoal tinha medo: ‘Vige, Ave Maria tu mora ali?! Hoje, eu digo que moro aqui: ‘Eita, tu mora no patrimônio histórico?’ É outra coisa. Até influencia no emprego que a gente vai arrumar. Porque quando eu fui trabalhar aí disse: ‘Você mora aonde?’ Aí, eu digo: no patrimônio histórico, na avenida
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Sanhauá que é a rua que fica né’. Não fizeram cerimônia. Quando perguntaram para o menino: ‘Você mora aonde?’ ‘Eu moro na entrada de Bayeux, na ponte velha’. Já refrearam quando o menino foi ao modo dele. Quer dizer, tudo isso conta. E se você não preserva o que é seu, quem é que vai preservar? (...). (Regina) – (...) porque o pessoal fala que foi onde nasceu João Pessoa e isso pra gente é importante, né? porque é uma área visitada, não muito, mas o pessoal conhece, né?, quando a gente fala que mora no Centro Histórico, aí o pessoal elogia. (Gláucia)
Mudaram as representações que os moradores constroem a respeito não apenas do processo de requalificação, mas sobre si próprios. Tornam-se menos passivos e conformistas diante das críticas e dos discursos negativos e até pejorativos associados ao estigma de favelados e à precariedade da área onde moram. O estigma que a comunidade carrega de violência, de lugar perigoso e de “gente que não presta” etc., começa a ser questionado e combatido no interior mesmo da própria comunidade. – Apesar de muita gente dizer que o lugar não presta, diz por que não conhece, porque não mora lá, mas a gente que mora, sabe que o lugar presta sim, que as pessoas que tem ali embaixo têm sua casa, respeito, trabalha, as crianças estudam (...). (Judite)
Nesse processo, as organizações não governamentais (ONGs) têm conseguido estabelecer um diálogo e uma aproximação maior e intensa com a população local mais do que os institutos/órgãos e os instrumentos oficiais de gestão e preservação patrimonial. Através de uma série de atividades, relacionadas ao trabalho, ao lazer, à educação e cultura estas organizações têm alcançado resultados favoráveis não apenas em relação ao patrimônio histórico-cultural propriamente dito. Trabalham no sentido de despertar nos moradores um sentimento de valorização desse patrimônio e a compreensão da sua importância para a memória da cidade e do lugar onde vivem. Porém, trabalham no sentido de desperta uma consciência
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cidadã em relação aos direitos à cidade como um todo, aos direitos civis, sociais, políticos e culturais. Estimulam a participação e a inclusão nos processos sociais que formam e modificam a realidade social. Conforme apontam os depoimentos, antes da requalificação, estes espaços não eram muito utilizados pelos moradores do Porto do Capim. Por causa da má fama da área – principalmente da Praça Anthenor Navarro, onde se localizava atividades de prostituição –, da sujeira, da escuridão e do abandono dos prédios, os entrevistados disseram que evitavam passar pela área, temendo que algo de ruim lhes acontecesse e as suas famílias. Embora as atividades comerciais durante o dia mascarassem o estado de pobreza e de abandono da área, havia se formado uma espécie de gueto, reduto de pessoas marginalizadas, o qual a sociedade local evitava perceber. Até mesmo as populações pobres e estigmatizadas que viviam nas proximidades desta área, como os moradores do Porto do Capim, tentavam evitar o contato com estas áreas, seus moradores e usuários, sobretudo no período da noite. Nesse sentido, os depoimentos também revelam o preconceito dos próprios moradores com relação às atividades de prostituição que marcavam mais fortemente a ocupação do casario de entorno da Praça Anthenor Navarro antes da requalificação urbana. Os trechos seguintes são ilustrativos: – Esquisito. Casa velha, estupro, bagunça, briga, assalto. Só era isso que tinha. Você não podia passar ali depois das dez, que você viesse do colégio. (...) Era um esquisito. A praça não era daquele jeito. A Igreja não tinha reforma. Aqueles prédios eram tudo velho, acabado. Era totalmente diferente. (Regina) – Melhorou, porque pelo menos existe o respeito, né isso? A gente passa por ali qualquer hora, tem aqueles funcionários, aqueles funcionários que tá trabalhando por ali e tal. É outra coisa. (...) Tá uma beleza... Pra vista do que era, tá uma beleza, um respeito. Ali era um setor daquelas pessoas desocupadas, das pessoas solteiras... De noite, ali... Hoje, é um respeito. (Getúlio)
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Com a Praça Anthenor Navarro restaurada, os moradores do Porto passaram a utilizá-la com maior freqüência e em segurança. Não apenas como ponto de passagem, também como ponto de encontro, de conversas ou simplesmente para momentos de contemplação, de observação do movimento da rua, dos passantes, dos turistas e visitantes. As obras físicas de restauração dos monumentos e praças, a melhoria da qualidade dos espaços públicos, assim como as ações culturais correlatas vêm tendo continuidade por meio da Prefeitura Municipal de João Pessoa e por ações espontâneas de entidades públicas e privadas e pessoas individualmente interessadas pela área como artistas, produtores de cultura e antigos moradores do bairro do Varadouro, enquanto novas alternativas estão sendo buscadas para a requalificação do centro antigo de João Pessoa com a perspectiva de serem colocados em Projeto de Requalificação do Porto do Capim e o Programa Moradouro, ambos voltados para instalação de novas residências, atração de novos usuários, moradores, turistas, comerciantes e consumidores para o centro antigo da cidade de João Pessoa. Dos relatos analisados, depreende-se que no rastro do projeto de requalificação, estes atores sociais estigmatizados acompanham as mudanças no Projeto de Requalificação do Porto do Capim, preocupados com a remoção, ampliando a participação no processo e, por vezes, lançando mão de contra-usos como resistência à gentrification. O início das obras do “Projeto Moradouro” aponta para o início de mudanças no sentido de atrair segmentos de camadas médias para moradias no centro, enquanto a retomada do Projeto de requalificação do Porto do Capim também indica alterações neste mesmo sentido, embora as intenções dos técnicos envolvidos sejam, ao menos no papel, no sentido de manutenção dos moradores da favela e de promoção da tão proclamada mescla social. A complexidade das questões envolvidas e a carência exponencial destas populações residentes na favela do Porto do Capim, bem como a ausência de políticas em âmbito nacional deixam muitas incertezas quanto ao futuro próximo destas populações.
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A noção clássica de gentrification em seu sentido mais tradicional e em suas fases, conforme identificada em alguns dos casos europeus, não corresponde aos processos identificados em João Pessoa até o momento. Porém, como foi dito na introdução deste livro, o termo e o campo de pesquisa ao qual corresponde hoje em dia o conceito de gentrification são vastos. No caso de João Pessoa, o centro antigo vem sendo especialmente objeto de uma ocupação cultural e ainda podese, dentro das especificidades locais, considerar que se encontra atualmente em processo a terceira fase da gentrification, sem que tenha havido as duas primeiras na forma de ciclos fechados e completos, quando estão sendo desenvolvidas políticas visando transformar simbolicamente o centro antigo para se adaptar ao gosto das classes médias e dos turistas, seja para residir ou consumir, como forma de conter seu declínio econômico e social. A reflexão a partir da análise comparativa com outras cidades e com referencial de pesquisas sobre gentrification em sua diversidade fenomênica apresenta ainda o interesse de poder articular a análise na demanda habitacional e das práticas residenciais de grupos que não encontram uma oferta estruturada que correspondam as suas necessidades e aspirações, assim como realizar uma análise mais refinada das relações entre estratégias residenciais e processos de valorização/desvalorização do espaço urbano. No caso de João Pessoa o Moradouro representa essa tentativa de atração de novas populações e em especial de um novo tipo de demanda por habitação. Houve também gentrification no momento de uso mais intenso logo após a requalificação da Praça e do Largo entre 1998-2002 em termos do acesso dos novos usuários e consumidores nos bares e casas de shows, nas festas, carnavais, shows em áreas públicas etc. e que de certa forma ainda continua a acontecer beneficiando também os moradores do Porto do Capim com mais limpeza, lazer etc. A gentrification também pôde ser identificada na maneira como aconteceram reformas e usos dentro do Projeto de Revitalização, especificamente, da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves, na medida em que a estetização e a dinamização cultural geraram uma imagem distante da realidade dos
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moradores do bairro, privilegiando consumidores, segmentos das classes médias locais e turistas. As parcerias entre iniciativa privada e pública também se tornaram elementos de transferência de investimentos do primeiro para o segundo. Porém, a convivência entre as dinâmicas culturais nas Praças e Largos do centro antigo e a moradia em favelas às margens do Porto do Capim conduz aponta especificidades locais na reflexão sobre a gentrification. A aceitação da permanência de moradores de baixa renda nas proximidades da área alvo do Projeto de requalificação do Varadouro e Porto do Capim, em novas habitações saneadas sugerem uma estratégia para escamotear conflitos reais ou potenciais na tentativa de concretização dos objetivos de gentrification do Porto do Capim para consumo turístico e lazer noturno. Grandes projetos como este, a ser construído no Porto do Capim, produzem um espaço de grande visibilidade ao incrementarem o turismo, o lazer e as atividades culturais. São alguns dos traços marcantes do urbanismo dito “pósmoderno” que procura tornar invisíveis os pobres, acenando com sua milagrosa e falsa ascensão social, mediante transferência para apartamentos e programas de qualificação profissional. A situação econômica do centro antigo de João Pessoa evidencia-se na grande quantidade de imóveis fechados enquanto a perda simbólica da centralidade se expressa na ausência de segurança e serviços básicos de atendimento cotidiano aos freqüentadores do lugar. Para se ter uma idéia do descaso que predominava com o centro antigo, pelo menos até o final da década de 1990, localizava-se a poucos metros dali, às margens do rio Sanhauá, o depósito de lixo da cidade (o Lixão do Roger). Ficou cerca de 50 anos poluindo o manguezal e destruindo o ecossistema do rio. Desativado em 05 de agosto de 2003 representa um dos resultados mais positivos do processo de requalificação urbana, em parte, alcançado pelas pressões das organizações não governamentais e dos agentes financeiros preocupados com os empecilhos ao turismo.
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Contudo, mais do que esperar uma gentrification com capacidade de investimentos massivos, os projetos dos poderes públicos locais deveriam apoiar-se numa requalificação patrimonial e urbana que estimulasse uma mobilização dos atores sociais dos bairros que formam o centro antigo sobre seus espaços, procurando articular um projeto de requalificação e reabilitação urbana com políticas públicas para habitação, saúde, educação e geração de emprego/renda. Neste caminho, investimentos fundamentais centrar-se-iam na educação patrimonial e na política de habitação que promovesse e estimulasse a manutenção dos antigos moradores e a atração de novos, entre outras medidas. Estes seriam os pilares de uma requalificação que buscasse restaurar direitos, construir cidadania e alicerçar o humanismo que a cidade fez invisível.
CAPÍTULO III As imagens e representações da periferia no centro: Porto do Capim e Nassau
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As imagens e as representações da periferia do centro das cidades brasileiras fazem parte das significações dos gêneros de urbanidade contemporânea, simbolizam um tipo de vida e de organização dos espaços particular. São imagens de lugares que concentram significações, são densos de sentidos e simbolizam algumas das principais mudanças nas cidades ao longo do século XX e início do século XXI. As pesquisas recentes indicam que a maioria das áreas dos antigos centros urbanos brasileiros alvo de processos de patrimonialização e/ou de requalificação possuem favelas, cortiços, vilas etc. que compõem o que se chama neste texto de periferia no centro. João Pessoa não foge à regra e em seu Centro Histórico podem ser identificadas, atualmente, cerca de vinte áreas deste tipo, consideradas Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS (PMJP, 2007), dentre elas a Comunidade Porto do Capim e a Vila de Nassau. No Brasil, a formação do espaço urbano foi marcada pelo patrimonialismo e fisiologismo de grupos dominantes, o que resultou na constituição de cidades excludentes nas quais os trabalhadores de baixa renda não têm acesso garantido a moradia. Segundo Ermínia Maricato (2001), esta situação se agravou após a crise econômica das décadas de 1980 e 1990 do século XX, aprofundando o óbice da “não-cidade”, definida por se encontrar fora da esfera dos direitos, do acesso aos serviços e equipamentos públicos de qualidade. Entretanto, após a Constituição de 1988 e o Estatuto da Cidade a questão urbana relativa às favelas e às outras ocupações informais brasileiras já não é mais, na grande maioria, relativa à remoção e à transferência dos habitantes das favelas para áreas longínquas da malha urbana. O direito à urbanização foi adquirido e é quase incontestável fazendo com que, como afirma Paola Berenstein Jacques (2006), a problemática não seja mais apenas social e política, mas passe obrigatoriamente pelas esferas culturais e estéticas. Embora, a aplicação da lei e o cumprimento dos instrumentos previstos no Estatuto da Cidade ainda enfrentem sérias dificuldades na maioria das cidades brasileiras. Neste caminho, o tabu em se falar nas dimensões culturais e estéticas das favelas também ainda persista, embora estejam se fortalecendo, nos últimos
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anos, abordagens diferenciadas quanto à visualidade e a linguagem cultural da periferia, retratando sua maneira própria de captar o mundo de forma “antropofágica”, transformadora e criativa, dentro de sua realidade econômica. Mapeamentos de algumas dessas visões criativas nos campos da arquitetura, artes visuais, desenho industrial, comportamento e moda estão sendo desenvolvidos por meio de trabalhos acadêmicos, filmes, vídeos, livros, exposições etc. e apontam para a importância de integrá-los na produção de espaços mais democráticos. Sabe-se que festas e ícones da cultura popular brasileira com o samba, o carnaval, entre outros, se desenvolveram e ainda se desenvolvem fortemente vinculados aos espaços de favelas. Mesmo assim, ao longo da história, várias favelas foram removidas por serem consideradas “antiestéticas” ou focos epidêmicos numa política de “limpeza” do espaço urbano, infrutífera em muitos casos, pois apenas postergaram os problemas ou deslocaram-nos para outras áreas urbanas por um curto período de tempo. Enquanto, em contrapartida, muitos artistas da própria favela ou da cidade dita formal, estrangeiros e brasileiros, tiveram influências e fonte de inspiração na “arquitetura”, no “urbanismo”, na estética das favelas. Além de serem parte do patrimônio cultural e artístico nacional, estes espaços de favelas se constituem por meio de estratégias arquitetônicas e urbanísticas vernáculas de caráter singular, diferindo do dispositivo projetual tradicional da arquitetura e do urbanismo eruditos, como também formam uma estética própria, uma estética das favelas, que P. Berenstein Jacques (2001) chamou de “estética da ginga”. Estas pesquisas e reflexões se inserem nos movimentos artísticos e arquitetônicos de busca de uma brasilidade iniciada por artistas modernistas brasileiros desde os anos 1920, com o movimento antropofágico, reencontrada na arte brasileira dos anos 1960, em plena ditadura militar, conhecido como Tropicalismo e, sobretudo na exposição do artista Hélio Oiticica realizada no Museu de Arte Moderna (MAM) do Rio de Janeiro em 1967. Nestes estudos elaboraram-se releituras estéticas, pesquisas de materiais, técnicas construtivas e da diversidade cultural no espaço urbano das favelas.
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Ao contrário dos artistas modernistas e tropicalistas, os arquitetos não buscaram nas favelas uma fonte de inspiração 27. Os modernos acreditavam que os conjuntos habitacionais eram a melhor opção para habitação social (BONDUKI, 2004), como o famoso conjunto Pedregulho28 projetado por Affonso Reidy para funcionários da Prefeitura do Rio de Janeiro. A questão da manutenção e da urbanização das favelas, entretanto, só teve início em finais dos anos sessenta com a experiência pioneira de Carlos Nelson Ferreira Santos em Brás do Pina, no período de plena ditadura militar. Até então as favelas eram praticamente ignoradas pelo poder público e durante a ditadura militar eram removidas (especialmente as localizadas em áreas visíveis e/ou valorizadas) e a população realocada, de modo autoritário, para enormes conjuntos habitacionais construídos nas periferias distantes dos centros das cidades e sem infra-estrutura adequada. Por outro lado, Lícia Valladares (2006) quando estuda a literatura sobre favelas no Brasil ressalta que falar em favela é, atualmente, o mesmo que falar em “problema social”, “segregação” e “violência urbana”, mostrando que já há um século se reflete sobre este objeto o qual nos reenvia a um conjunto de imagens e representações sociais sucessivas segundo diferentes atores sociais mobilizados ao longo do tempo. A partir de uma reflexão sobre o conhecimento científico relativo às favelas no Brasil, a autora distingue três períodos: o primeiro que vai até os anos 1940, corresponde à gênese do pensamento intelectual sobre o tema e se resume a um pequeno número de publicações de caráter ensaístico e jornalístico recorrendo com freqüência ao julgamento moral e acentuando a necessidade de uma ação higienista, educativa e assistencialista. O segundo período, de 1940 até meados dos anos 1960, representando a favela transformada em problema social e urbanístico, como um fato concreto, bem definido. É também a fase de formação das ciências sociais no Brasil e na 27 Embora saibamos que o urbanista Alfred Agache tenha falado das favelas em 1926 em sua terceira conferência no Rio de Janeiro, comparando-as com as cidades-jardins européias para depois propor, em 1930, sua erradicação. Blaise Cendras, amigo dos urbanistas brasileiros, visitando o Brasil entre 1924 e 1929 também se impressionara com as favelas cariocas de então e até Le Corbusier teria comentou na sua conferência no Rio em 08/11/1929 uma visita que fizera ao Morro da Favella e há quem diga que os morros cariocas o inspiraram no seu projeto “gratte-mers” curvilíneos para o Rio (JACQUES, 2001). 28 O prédio principal do Conjunto Pedregulho ficou conhecido como “Minhocão” (outro era o conjunto da Gávea) por suas curvas que lembravam as curvas dos morros cariocas, semelhante ao que seria o projeto proposto por Le Corbusier para o Rio.
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qual os recenseamentos de 1948 e de 1950 vão permitir os primeiros dados específicos sobre o universo das favelas e de seus habitantes, em especial no Rio de Janeiro. Elabora-se neste momento a primeira definição oficial de favela a partir de cinco critérios aplicados aos conjuntos de construções aglomeradas: o tamanho mínimo de 50 habitações, predominância de barracos de aspecto rústico, construções ilegais sobre terrenos alheios, ausência total ou parcial de rede de saneamento, de eletricidade, de telefone e de abastecimento de água, além de zona não urbanizada sem traçado de ruas. O terceiro período começa em meados dos anos 1960, marcado por um forte crescimento do número de publicações. Lícia Valladares considera-o como o período da “favela das ciências sociais”. Nele teriam sido produzidos mais de 90% dos textos. Dentro desta vasta produção, a partir de 1970, destacam-se os estudos doutorais nas Universidades brasileiras e as publicações, em geral, vão utilizar as favelas para discutir questões mais gerais como a pobreza urbana, o modo de vida e as práticas cotidianas do mundo popular. O crescimento de número de estudos sobre o tema estaria, segundo Valladares (2006), relacionado com o crescimento efetivo do número de favelas e da pobreza no Brasil e com a maior visibilidade das novas favelas associadas às suas localizações. Haveria ainda uma explicação conjuntural das políticas públicas e urbanas preocupadas com o tema a partir da década de 1970, bem como das iniciativas de diversas organizações não-governamentais (ONGs) que combinariam com freqüência suas ações com atividades de pesquisa. Estes olhares sobre as favelas, exteriores ao âmbito universitário, coincidiriam com um processo interno ao meio acadêmico de acentuação dos estudos sobre a violência e a exclusão social. Com base neste quadro geral, Lícia Valladares (2006) considera existirem algumas características consensuais entre as pesquisas sobre as favelas que assumem claramente as figuras de dogmas. São três os principais dogmas relativos às favelas no Brasil: o primeiro é a afirmação da especificidade da favela. Considera-se que com uma história particular e um modo de crescimento diferente de outros bairros, a favela é um espaço singular para geógrafos, arquitetos, antropólogos,
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sociólogos, organismos oficiais, cada um ressaltando aspectos concernentes aos seus campos específicos de pesquisa, mas todos afirmando a forte identidade destes espaços e de sua população. A favela condicionaria, assim, o comportamento de seus habitantes numa reativação do postulado higienista ou ecológico da determinação do comportamento humano pelo meio. O segundo dogma é a caracterização social dos habitantes e do território: a favela é o lugar da pobreza, “território dos pobres” e universo do popular, associado ao mundo dos problemas sociais: educação, saúde, setor informal, jovens, violência etc. Símbolo também da segregação espacial. E em terceiro, o dogma que afirma haver uma unidade da favela, seja ao nível da análise científica seja ao nível político. Há um reconhecimento quanto à diversidade em termos geográficos e demográficos, mas curiosamente há uma negação das diferenças de natureza sociológica, a maioria das análises é marcada pela tendência a reduzir um universo plural a uma categoria única, ocultando a diversidade, a pluralidade de formas, de relações sociais e de situações sociais. As conseqüências em termos metodológicos do reconhecimento dessas diferenças são importantes e conduzem aos estudos de casos atentos às diferenças internas entre as favelas como longe de serem negligenciáveis. Na capital da Paraíba, a problemática da moradia é grave e o número de favelas cresce a cada ano de modo exponencial. Dados da Organização das Nações Unidas (ONU) revelam através do relatório Habitat 2006, que o número de pessoas vivendo em favelas teria aumentado nos últimos dez anos no Brasil como um todo. O índice coloca Brasília como a capital brasileira que mais se "favelizou" entre o período de 1991 a 2000, com aumento de 398% das pessoas vivendo em condições precárias de moradia. Em segundo lugar estaria João Pessoa, com crescimento de 265% da população de favelas e, em terceiro, Salvador, com 179%. A Secretaria de Habitação Social de João Pessoa afirma existirem 122 "aglomerados subnormais" (nomenclatura utilizada pelo IBGE para favelas, áreas de invasão), com uma população estimada em 108.727 habitantes. Segundo esta
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mesma fonte, as “comunidades” estão distribuídas em quarenta dos sessenta e quatro bairros oficiais do município, ocupando uma área de aproximadamente 501 hectares, com 24.142 domicílios. Na área delimitada como Centro Histórico de João Pessoa (IPHAEP, 2004) há cerca de vinte favelas, dentre estas, oito estão situadas no perímetro e no próprio interior do bairro do Varadouro (informações obtidas na SEPLAN/Setor de Geoprocessamento/PMJP, 2007), indicando a existência de uma ampla periferia no centro. As informações registradas na seqüência deste capítulo são resultantes de uma pesquisa desenvolvida junto ao Programa de Iniciação Científica – PIBIC – CNPq – UFPB intitulada: O lugar da favela na cidade contemporânea - arquitetura e estética da periferia no centro histórico de João Pessoa, de ago. 2007 a jul. 2008. Como parte das atividades de pesquisa, realizou-se um estudo da organização do espaço urbano e da arquitetura das favelas Porto do Capim e Nassau por meio de fotografias e cartografias. Estas comunidades são alvo de controvérsias relacionadas com o destino dos seus moradores diante das mudanças previstas no Projeto de Revitalização do Varadouro e do Porto do Capim como parte do Convênio Brasil/Espanha de Cooperação Internacional e do PAC – Plano de Aceleração do Crescimento para as margens do rio Paraíba/Sanhauá. O objetivo central desta pesquisa foi conhecer a organização socioespacial de duas favelas localizadas no Centro Histórico da cidade de João Pessoa, a Comunidade Porto do Capim e a Vila Nassau. Pretende-se, assim, contribuir com informações que possam subsidiar projetos e ações de requalificação urbana destas áreas que preservem suas alteridades mediante uma metodologia de ação que leve em consideração o modo de vida dos moradores já existentes e seus significados. Um tipo de ação que incorpore o Outro (morador e usuário dos espaços) e aponte para alternativas de ação, interação e intervenção nas situações contemporâneas diante da complexidade urbana quando formalidade e informalidade se mesclam.
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1 – A periferia do centro antigo: fundamentos, abordagens e contextos A problemática das favelas é objeto de vasta literatura, tendo sido o núcleo constitutivo do próprio campo temático da habitação no Brasil (VALLADARES, 1980, 2005, 2006; VALLADARES & MEDEIROS, 2003)29. Além de atrair o olhar de cientistas sociais, urbanistas e administradores públicos – para não falar em escritores, músicos e cineastas (VALLADARES, 2000, 2006) – a favela tem sido o locus de reflexões mais abrangentes sobre a pobreza urbana e o e o comportamento político dos pobres como afirma Lícia Valladares. Trata-se de uma velha questão que permanece atual mesmo diante das grandes transformações socioeconômicas, e políticas e institucionais nas cidades brasileiras nas últimas décadas, ou seja, a segregação socioespacial e a moradia em favelas, sobretudo, aquelas localizadas em áreas de valorização imobiliária, para as quais têm sido propostas intervenções urbanísticas. A partir da década de 1970, programas de remoção de favelados para conjuntos habitacionais foram objeto de grande número de pesquisas, fornecendo subsídios para avaliar essa política pública (VALLADARES, 1980, 2006, GONDIM, 1982). Sobretudo a partir da década de 1980, a temática passa a ser combinada com novos enfoques, destacando-se o estudo dos movimentos sociais urbanos relacionados as políticas habitacionais, incluindo a remoção ou a urbanização de favelas – como, por exemplo, o trabalho de Santos (1981), no Rio de Janeiro, os de Barreira (1992), em Fortaleza e as análises realizadas junto ao grupo de pesquisa Movimentos Sociais e o Estado no Nordeste vinculado ao NDIHR - Núcleo de Documentação e Informação Histórica Regional da UFPB (1990), coordenado por Beatriz e João Lavieri, em João Pessoa. 29 Uma bibliografia analítica completa, focalizando o caso do Rio de Janeiro, foi organizada por Lícia Valladares e Lídia Medeiros (2003). A fim de não tornar demasiadamente longa a lista de referências bibliográficas, são mencionadas, aqui, apenas obras de interesse mais direto para a presente pesquisa.
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A partir de fins da década de 1980, refletindo mudanças na conjuntura política, sobretudo no que concerne às discussões relacionadas à Constituição de 1988, multiplicam-se os trabalhos que inserem a questão habitacional na discussão sobre a Reforma Urbana (SANTOS JR., 1995; SOUZA, 2002). Esta colocou na agenda da pesquisa e do debate político a reflexão sobre instrumentos de planejamento e gestão capazes de contribuir para cidades mais eqüitativas, democráticas e ecologicamente sustentáveis. Especificamente com relação às favelas, estudos mais recentes demonstram que a existência dessa forma de moradia recebeu “reconhecimento institucional e simbólico”, que se traduz no abandono de uma “solução final” via programas de erradicação em massa (MACHADO DA SILVA, 2002, p. 232). Também a partir da segunda metade da década de 1990, multiplicam-se as experiências de urbanização e regularização fundiária sobre as quais já existem análises referidas aos novos instrumentos incluídos no Estatuto da Cidade (MARICATO, 2000, 2001; CALDEIRA, 2000; TASCHNER, 1995; SILVA, 2000). Apesar dos avanços no direito urbanístico e na gestão urbana democrática, a alternativa da remoção não desapareceu de todo, mantendo-se em certa “hibernação”, pronta para emergir nas políticas públicas, ainda que de maneira mais tópica e conjugada a medidas para reduzir seu impacto (MACHADO DA SILVA, 2002, p. 231). Este parece ser o caso do projeto de realocação dos moradores da Comunidade Porto do Capim, ocupantes de um espaço que, graças à requalificação do centro histórico de João Pessoa, Projeto de Revitalização do Varadouro e Porto do Capim, ganhou visibilidade e valorização. Embora a solução apresentada seja de remoção para área próxima a atual localização, controvérsias ainda permanecem quanto à forma de realização desta remoção. A questão habitacional ainda aguarda o equacionamento de pontos problemáticos e fundamentais como: a adequação dos novos espaços às necessidades das famílias; a situação das pessoas que têm comércio em suas casas; a utilização e manutenção das áreas comuns; os custos das novas moradias decorrentes do pagamento de IPTU, condomínio e tarifas por serviços públicos; os prazos para o início das obras. Além disto, é
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improvável que os beneficiários consigam resistir às prováveis investidas de pessoas ou grupos interessados em adquirir imóveis situados em área de intensa valorização imobiliária. Assentadas em áreas de patrimônio da União, as favelas Porto do Capim e Nassau são caracterizadas como invasões, ou seja, ocupações ilegais e irregulares. Apesar desta situação todos os entrevistados em nossas pesquisas (SCOCUGLIA, 2003, 2004a, 2004b) reclamaram o direito de propriedade de seus imóveis, “construídos à custa de muitos sacrifícios”. São, na maioria, imóveis próprios inseridos na área próxima ao mangue, alguns ocupando um trecho parcialmente urbanizado com arruamento e coleta de lixo, construídos em alvenaria, com água encanada e energia elétrica, alguns com linha telefônica, porém sem esgotamento sanitário. Entretanto, os imóveis localizados por trás desta rua principal, foram construídos diretamente sobre o mangue, mediante aterros sucessivos e são mais precários, constituídos por materiais diversos, como restos de madeiras, papelão, taipa, cobertos com palha, entre outros improvisos (Ver, a seguir, mapa da situação fundiária).
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Situação fundiária no Porto do Capim e Vila de Nassau. Fonte: C. Leal, 2008. Acervo Jovanka Scocuglia – Pesquisa PIBIC.
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A aceitação da permanência de moradores de baixa renda nas proximidades, em novas habitações saneadas, sugere muitas vezes uma estratégia para escamotear conflitos reais ou potenciais, uma vez que grandes projetos, como é o caso do Projeto de Revitalização do bairro do Varadouro e do Porto do Capim, produzem um espaço de forte visibilidade, objetivando incrementar o turismo, o lazer e a indústria cultural. Ao mesmo tempo, o urbanismo contemporâneo procura tornar invisíveis os favelados, acenando com sua milagrosa transformação em “classe média”, mediante transferência para apartamentos. É nesse contexto que se situa o estudo das favelas do Centro Histórico de João Pessoa cujo objetivo foi fazer um recorte representativo da periferia da capital paraibana começando por estudar as favelas do Centro Histórico com enfoque sobre aspectos socioculturais aliados aos espaços públicos e privados produzidos pelos próprios moradores em situação de precariedade. A relevância desta pesquisa se acentua na medida em que os órgãos oficiais e os gestores do processo de requalificação urbana da capital paraibana conhecem pouco ou nada das condições efetivas de moradia, a arquitetura e a estética desenvolvida na favela Porto do Capim, seus becos e vilas, assim como nas demais favelas localizadas no centro antigo de João Pessoa. Removê-las ou deslocá-las sem conhecer as condições de ocupações atuais e sem haver um estudo que compatibilize a estética própria, o modo de vida e as culturas destas populações com o saber técnico de planejamento, de desenho urbano, as estratégias e as intervenções urbanas parecem apontar para um fracasso quase certo no processo de realocação. Entretanto, é preciso que se diga que não se pretendeu com esta pesquisa trazer soluções definitivas para o problema da moradia nas cidades ou nos centros históricos do Brasil, pois como analisa Ermínia Maricato: “a questão da moradia social em áreas centrais urbanas tem solução satisfatória apenas nos marcos de uma política habitacional nacional que inclui a regulamentação do mercado e os programas subvencionados destinados àqueles que não têm acesso ao mercado privado” (2001, p.128). É preciso que se veja ainda que os “programas de moradia para a baixa renda são inviáveis quando a classe
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média não tem acesso ao mercado formal” (2001, p.129). Mas Maricato também reconhece que o papel dos governos municipais e estaduais é fundamental e não há porque esperar um plano nacional para programar um local, porém é preciso ter clareza dos limites dos poderes locais em relação às questões como o direito de propriedade ou à regulamentação financeira do mercado residencial, além de aspectos mais específicos como os subsídios para a população excluída. Assim, pelo menos, os esforços das prefeituras municipais e dos governos de estado contribuem para amenizar a situação dramática da moradia social nas cidades brasileiras na ausência de uma política nacional 30. No Brasil parece haver ainda reticências sobre uma eventual residência no centro antigo e João Pessoa não foge à regra. Estratos médios da sociedade passam a freqüentar estes lugares durante a noite, edificações são recuperadas para consumo e promoção de eventos, lazer etc. Durante o dia são as pessoas das favelas, dos cortiços, os trabalhadores do comércio e serviços que circulam. Constata-se que ainda há a rejeição, o abandono e o estigma que inviabilizam projetos de moradia entre os estratos das camadas médias e impede programas para grupos de baixa renda. Será que as representações negativas das camadas médias em relação aos centros antigos revelam uma tendência muito forte no Brasil? Será que os discursos da UNESCO e das prefeituras basearam-se em uma representação conservadora dos centros das cidades? E o discurso atual poderia reverter essa tendência? Refiro-me, por exemplo, a uma adesão social proveniente dos meios culturais, intelectuais e econômicos e a rejeição em termos de moradores de camadas médias, bem como as propostas de remoção dos moradores de favelas próximas às áreas alvo dos programas de requalificação. Uma apropriação alternada dia e noite observada no Recife, Fortaleza, Salvador, Belém e João Pessoa, entre outras capitais do Brasil revela, 30 Em termos de investimentos públicos e parcerias destaca-se a experiência de requalificação do centro do Rio de Janeiro com o Programa Novas Alternativas, em parte realizado numa parceria com o Governo Francês (como a reabilitação do Morro da Conceição envolvendo recuperação de espaços públicos e residenciais). Apesar das dificuldades em termos de flexibilização da legislação urbanística, de regulamentação urbana e de viabilização financeira dos projetos, parece avançar em ações articuladas no sentido de recuperação de sobrados e casarões mal-conservados e em ruínas, cortiços e da ocupação de vazios resultantes de demolições e desabamento de edificações, propondo sua adaptação para uso habitacional nos moldes atuais. A prefeitura atua como agente promotor e a Caixa Econômica Federal como agente financeiro, associados à iniciativa privada e ONGs quando do apoio a reocupação e seleção de novos moradores, na formação do condomínio e na administração dos imóveis, bem como no trabalho sócio-educativo com as famílias em diversas fases de implementação do programa. Os imóveis foram agrupados em categorias de cortiços, ruínas, (sobrados e casarões parcialmente demolidos ou em desabamento), vilas operárias, conjuntos habitacionais. O campo de atuação é o centro antigo do Rio de Janeiro os trechos preservados em meio ao centro urbano, lugares como a Lapa, Central do Brasil, Praça Tiradentes, Gamboa e Santo Cristo, Morro da Conceição entre outros.
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em parte, esta rejeição. Há, concomitantemente, reações destas populações à remoção e a tipos específicos de moradias impostos pelos projetos de requalificação. É marcante ainda a ausência de financiamentos que atendam as faixas de um a três salários mínimos e projetos habitacionais para estas áreas viáveis em termos de manutenção e continuidade em longo prazo. Na seqüência será apresentada uma breve análise do processo de formação e consolidação da Comunidade Porto do Capim e Vila Nassau. Neste sentido, serão discutidos aspectos morfológicos e históricos destas favelas, bem como a organização/criação de espaços pela população em situação de precariedade. Verificar-se-ão as dinâmicas espaciais entre as comunidades e destas com o rio, bem como as relações sócio-espaciais intervenientes no processo de consolidação e transformação destas áreas, alvos de um projeto de revitalização urbana, por um lado, e de um projeto de remoção da população residente, por outro.
O bairro do Varadouro – heranças e características
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Ilustração de Franz Post mostrando o Rio Sanhauá e a então Frederickstadt do século XVII.
O bairro do Varadouro é um dos mais antigos da cidade de João Pessoa. Aparece registrado acima na ilustração de Franz Post como parte da iconografia e cartografia holandesa sobre a cidade de Frederica no século XVII. No século XVI, o Varadouro já existia como espaço de formação da Cidade pela localização do atracadouro, porto seguro de implantação dos primeiros vínculos entre os colonizadores e a paisagem que viria a se transformar na atual cidade de João Pessoa. Os registros iconográficos e cartográficos holandeses e portugueses são abundantes nesse sentido (REIS FILHO, 2001). O Varadouro funcionou também, desde longa data, como entrada oeste da cidade de João Pessoa. Abrigou grande número de estabelecimentos comerciais ligados às rudimentares instalações portuárias da capital e na chamada beira-
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molhada do Sanhauá se localizavam armazéns de estivas, depósitos, lojas comerciais, além dos edifícios de fiscalização fazendária. As habitações, em minoria, se concentravam nos patamares mais elevados do bairro, a meio caminho da Cidade Alta. A característica mais marcante do bairro sempre esteve associada à atividade comercial. Até as primeiras décadas do século XX eram comercializados diversos produtos nacionais e importados. Ali se localizaram as primeiras lojas de departamento da cidade, alfaiatarias etc. A Estação Ferroviária, na Praça Álvaro Machado, complementava a entrada e saída de produtos que o baixo calado do Rio Paraíba não comportava, reforçando a vocação comercial do bairro. A Rua Maciel Pinheiro concentrava os principais estabelecimentos comerciais a ponto de receber o majestoso prédio da Associação Comercial projetado pelo arquiteto Hermenegildo Di Láscio. Desse modo, entre o século XVII e século XIX, a zona portuária do Varadouro se consolidou por meio do funcionamento do Porto do Capim, da Alfândega, do Tesouro Provincial e dos armazéns de mercadorias. Os relatos dos viajantes no século XVII evidenciam esse fato, Elias Herckmans afirma: “Defronte do dito rio, um pouco mais para o sul, fica a boca do Varadouro, que faz uma larga baía estendendo-se quase um quarto de légua para o interior, (...) mas no ano de 1637 o diretor da mesma Capitania, em virtude de ordem S. Excia., e do Supremo Conselho, fez construir ali um armazém grande e capaz com um bonito molhe ou dique no Varadouro, onde atracassem as embarcações, e se embarcasse ou desembarcasse o açúcar, para cômodo e utilidade dos mercadores.” (HERCKMANS, 1982, p.12)
Em 1855, foi elaborado, por encomenda de Beaurepaire Rohan ao engenheiro Alfredo de Barros Vasconcelos, um levantamento com os alinhamentos das ruas e a designação dos espaços urbanos (ruas, praças, largos, becos, etc.) da
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cidade de João Pessoa. Este levantamento serviu de base para os planos de intervenção de Beaurepaire Rohan na cidade, como a construção da Estrada do Aterro, paralela ao rio Sanhauá, que ligava a Ponte do Sanhauá à Praça da Gameleira (atual Praça Álvaro Machado) e um acostamento para embarcações (cais). A avenida serviria para melhorar a fluidez do trânsito dos produtos vindos do interior para o Porto.
Planta esquemática do traçado urbano da cidade da Parahyba do Norte, em 1855 elaborada por Alfredo de Barros e Vasconcelos. Fonte: VIDAL, 2004
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Praça XV de Novembro, 1910 e o antigo cais do Porto do Capim. Fotos: Walfredo Rodrigues.
Havia por parte da população de comerciantes e moradores da cidade a esperança de instalação de um porto nas margens do Rio Sanhauá, entretanto, as tentativas falharam, sobretudo após o imbróglio envolvendo as obras para a construção do Porto do Varadouro, na década de 1920, durante a curta passagem de Epitácio Pessoa pela Presidência da República. Após este episódio, a área não recebeu mais os investimentos necessários ao seu desenvolvimento permanecendo inalterada em sua estrutura urbana até meados da década de 1930 quando foram realizadas reformas urbanas sob a administração de Argemiro de Figueiredo e projetos urbanísticos sob orientação de Nestor de Figueiredo durante o governo de Getúlio Vargas. Entre as diversas alterações no antigo tecido urbano do bairro, com demolições de
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imóveis para abertura de avenidas, alargamentos e criação de novos logradouros e praças, foi construída a Praça Antenor Navarro, fruto da demolição de parte de uma quadra situada ao final da Rua Maciel Pinheiro, durante o governo estadual de João Pessoa. Neste período, o Varadouro foi contemplado ainda com o moderno edifício da Secretária de Finanças elaborado pelo arquiteto Clodoaldo Gouveia.
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Foto de Nestor de Figueiredo publicada no Jornal A União (1932) mostrando a Cidade Baixa. Pode-se ver nesta foto: à esquerda, a Igreja de São Frei Pedro Gonçalves (1) e, alinhados em primeiro plano próximo às margens do rio Sanhauá a Praça XV de Novembro (2), o cais do porto – local atual da Vila Nassau (3) e a estação Ferroviária (4). Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia.
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Entretanto, durante a década de 1970, o Varadouro recebeu um equipamento que contribuiu para uma retomada de parte da centralidade perdida com o crescimento da cidade no sentido centro-praia intensificado a partir da década de 1950. Trata-se da construção do Terminal Rodoviário de Passageiros, fruto de um concurso público organizado pela municipalidade e vencido pelo arquiteto Glauco Campelo. A rodoviária surgiu como reforço à necessidade de integração entre as várias modalidades de transportes existentes na área, além de promover a renovação de parte da área ribeirinha do bairro. O Varadouro concentra também desde o começo de sua formação os trabalhadores de cidades e sítios vizinhos, a exemplo de Bayeux e Santa Rita, que chegam ao Terminal Urbano – hoje conhecido como “Integração” – com destino aos diversos bairros da capital. São cerca de trinta e cinco mil pessoas circulando pela área todos os dias (PMJP, 2007). Boa parte formada por trabalhadores informais que comercializam diversos produtos em barracas localizadas nas calçadas, nas praças e mesmo nas ruas de pedestres do centro da capital. Entretanto, com a expansão da cidade e o surgimento de outros centros de negócios situados em bairros como a Torre, Mangabeira, além da Orla Marítima, entre outros, a antiga vocação comercial do bairro passou a enfrentar momentos críticos. E, neste sentido, o antigo centro de João Pessoa passou a por uma crise de identidade marcada pelo fechamento de estabelecimentos comerciais e de serviços, bem como transferência de muitas lojas para bairros mais competitivos. Apesar disto, o bairro ainda conserva uma forte identidade associada à imagem de lugar de origem da cidade e abriga instituições e um traçado urbano que guardam parte da memória de João Pessoa, além de representar um lugar de circulação e centralidade do sistema de transportes urbanos e interestadual, fazendo a ligação com municípios vizinhos e de outros estados. A área continuou, assim, a atrair parcela significativa da população, embora com renda mais modesta, caracterizando-se como ponto de interesse para os comerciantes informais e tendo às margens do Rio Sanhauá ocupadas
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com moradia precárias que se constituíram gradativamente em favelas, a exemplo da Porto do Capim, Vilas de Nassau, Trapiche entre outras. Neste caminho, o patrimônio cultural do Varadouro marcante no traçado de suas ruas e em edificações de diferentes temporalidades na formação do núcleo urbano só passou a receber a atenção e ser alvo de um projeto de requalificação com a assinatura de um convênio internacional entre o Brasil e a Espanha em finais da década de 1980. Desde então num movimento inconstante e pendular de aproximação e afastamento, conforme a conjuntura e a sensibilidade dos governantes, os poderes públicos estaduais e municipais vêm atuando na conservação e reabilitação de todo o Centro Histórico da capital, da qual o Varadouro é parcela significativa. A Comunidade Porto do Capim e a Vila de Nassau A Comunidade Porto do Capim31 intensificou a ocupação das margens do Rio Sanhauá a partir da década de 1950, com a decadência das atividades portuárias e abandono gradativo do centro por parte da população mais abastada da cidade de João Pessoa. A Vila Nassau, de formação mais recente, década de 1980, surgiu associada ao depósito da fábrica de cimento Nassau e aos armazéns próximos ao antigo atracadouro do Porto do Capim. A área como um todo abriga uma população carente formada por cerca de 300 famílias que residem em unidades habitacionais de baixo padrão construtivo (Segundo dados da PMJP seriam 297 famílias em 2007). Essas, em sua maioria, foram construídas sobre aterros realizados às margens do Rio Sanhauá sem infraestrutura adequada à moradia. Uma população pobre e, na maioria, desempregada, encontra-se instalada nesta área há mais de 50 anos. A planta apresentada 31
A área de estudo é compreendida pelas comunidades: Trapiche, Praça XV, Porto do Capim e Frei Vital será generalizada pela nomenclatura Porto do Capim devido o local ser conhecido na cidade como tal, mesmo que os moradores da Vila Nassau busquem se diferenciar e estabelecer limites, fronteiras entre eles e a Comunidade do Porto do Capim.
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na sequência, abaixo, informa as áreas de localização da população estudada e de um projeto de intervenção nas áreas ocupadas por estas comunidades dentro do PAC - Programa de Aceleração do Crescimento do Governo Federal, a ser implantado pela Prefeitura Municipal em parceria com o Governo Estadual e órgãos de patrimônio estaduais e nacionais. O registro e a análise sócio-espacial destas comunidades tornaram-se urgentes em função da previsão de remoção de parte desta população para novas unidades habitacionais a serem construídas pela Prefeitura Municipal e já em processo de licitação e de regularização em termos fundiários.
Subdivisões da Comunidade Porto do Capim: Trapiche, Praça XV de Novembro e Vila Frei Vital (PMJP, 2007).
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A realocação da Comunidade do Porto do Capim faz parte do Projeto de Revitalização do Antigo Porto do Capim considerado estratégico para o desenvolvimento do centro histórico. Para tanto foram adquiridas duas áreas com aproximadamente 2,4 ha nas proximidades do local onde as mesmas residem atualmente, conforme pode ser observado na figura abaixo.
Área destinada à realocação das famílias residentes na Comunidade Porto do Capim. Fonte: PMJP, 2007.
Estas comunidades destacam-se ainda pela proximidade com o centro histórico, participação em projetos sociais ligados à reabilitação do antigo centro e imbricação constante entre a população, o rio e o espaço construído ao longo dos
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últimos cinqüenta anos, gerando uma nova espacialidade, conflitos, sociabilidades e transformações na paisagem. As constantes mudanças nas edificações são ocasionadas pelo movimento do rio assim como pela precariedade das condições de vida da população definindo formas específicas de usos, contra-usos e territorialidades.
A população às margens do Sanhauá
Os primeiros moradores do Porto do Capim foram os que tinham um pequeno comércio local de hortifrutigranjeiro, os que trabalhavam no antigo Porto como arrumadores e os funcionários dos depósitos de madeira, coco e carvão. A favela do Nassau foi ocupada inicialmente pelos funcionários do antigo depósito de cimento Nassau que após o fechamento dos galpões e do depósito de cimento ocuparam os imóveis e, gradativamente, foram chegando novas famílias. Essa ocupação se estendeu para os arredores da antiga fábrica de gelo (CIBRAZ) e do sindicato dos arrumadores. O aumento do número de habitações e a expansão dos aglomerados, sob forma de aterro às margens do Rio Sanhauá, estão representados nos mapas de evolução e uso do solo. Estes mapas, reproduzidos nas páginas seguintes, nos mostram a ocupação no decorrer do tempo (1976 – 2007) e a proporção das áreas edificadas avançando sobre o rio. Podese ver que, em 1976, na região da futura Vila Nassau havia galpões de depósitos enquanto às margens do rio ainda existia uma vegetação de Mata atlântica densa utilizada como cais para barcaças. O sindicato dos arrumadores, inaugurado em 1955, e a fábrica de gelo CIBRAZ estavam em funcionamento próximos ao núcleo de comércio incipiente.Na mesma época, no Porto do Capim, Cleumy Madeiras, o Curtume e os estabelecimentos comerciais da Rua Visconde de Inhaúma se destacam. Os edifícios da Alfândega e do Tesouro Provincial encontravam-se fechados e sem funcionamento. À margem do
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rio havia poucas habitações, alguns atracadouros e um trapiche, com a vegetação preservada e ainda sem uma densa ocupação residencial. Em 1990, houve a ampliação da Vila Nassau com habitações sobre o mangue e o fechamento de alguns galpões de depósito. As oficinas mecânicas, a antiga fábrica de gelo e o entorno do sindicato dos arrumadores estavam ocupados/invadidos e utilizados como locais de moradia improvisada. A Rua Visconde de Inhaúma permanecia ocupada por armazéns e depósitos de madeira. Pode-se verificar por meio dos mapas de 1998 e 2007 um adensamento das ocupações, conforme as manchas de usos. Ressalte-se a ampliação da derrubada do mangue e o aterramento às margens do Rio Sanhauá.
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Mapas de expansão e uso e ocupação do solo do Porto do Capim e da Vila Nassau elaborados sobre bases cartográficas da cidade de João Pessoa de 1976, 1990, 1998 e 2005 – Arquivo Público PMJP. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2008.
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2 - Representação e territorialidade no Porto do Capim e Vila Nassau – entre o rio e a cidade
No cotidiano dos moradores do Porto do Capim e da Vila Nassau ganham destaque os vínculos construídos com o Rio Sanhauá pelas atividades de pesca, lazer das crianças e com os quintais das casas voltados para o rio. Muito embora a poluição e assoreamento do rio agravados pela ocupação desordenada de suas margens torne essa relação da população com o rio ambígua no sentido de que há problemas de saúde, escassez de peixes e crustáceos antes abundantes no rio como parte dos efeitos da poluição sobre a população enquanto esta mesma população acentua constantemente a poluição com esgotos residenciais, lançamento de lixos e aterramento das margens dos rios para ocupação com novas unidades de habitação e derrubada dos mangues para transformarem em carvão comercializado nos quintais. As unidades habitacionais são de baixo padrão construtivo, em sua maioria construída sobre aterros às margens do rio em condições de precariedade infraestrutural. As transformações da paisagem por constantes intervenções nas edificações e pelo movimento do rio são outros aspectos observados. As alterações nas residências são constantes. Observam-se mudanças constantes na paisagem edificada em um curto espaço de tempo. Para tanto, utilizam vários tipos de materiais. A expansão da casa para adaptação das necessidades da família e a forma de implantação no “lote”, gerando um “lote” poli nuclear, são características marcantes nas habitações do Porto do Capim e da Vila Nassau. As imagens que seguem exemplificam algumas destas mudanças no ambiente estudado.
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As margens do Rio Sanhauá, imagens das habitações precárias da favela Porto do Capim e o desmatamento e assoreamento do Rio Sanhauá. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia.
Demolição e construção de edificações na Vila Nassau, 2007. Fotos: Camila Leal e Tadeu Brito. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia.
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Inserção de novos elementos nas edificações, 2007. Fotos: Camila Leal e Tadeu Brito. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia.
Mudança na paisagem provocada pelo movimento do rio, 2007. Foto: Camila Leal e Tadeu Brito. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia
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Vista da Favela Porto do Capim, a partir do Rio Sanhauá em foto anterior a década de 1950 e em foto posterior a década de 1980. Em destaque a torre da Igreja de São Frei Pedro Gonçalves. Fonte: Acervo Humberto da Nóbrega e Jovanka Scocuglia, respectivamente.
Vista da Favela Porto do Capim e Vila Nassau, a partir do Rio Sanhauá, 2007. Em destaque a torre da Igreja de São Frei Pedro Gonçalves. Foto: Camila Leal. Acervo Jovanka Scocuglia.
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As alterações observadas na ocupação dos espaços foram, em geral, definidas em função do rio e do mangue, provocadas pela mudança do nível da maré que invade as casas, ruas e becos. O desmatamento de parte da vegetação de mangue por parte dos moradores das favelas é justificado como uma questão de segurança, como tentativa de impedir que seja utilizado como esconderijo por usuários de drogas e marginais. Entretanto, foi identificado o uso freqüente da madeira do mangue para a produção de carvão. Esta atividade se desenvolve nos quintais, espaços de fundas das casas, onde também ocorre parte dos conflitos entre vizinhos quando do acúmulo de lixo, da criação de porcos e galinhas, apontados como alguns dos motivos de discórdias.
Maré cheia inundando o quintal das casas e a produção de carvão no quintal, 2007. Foto: Acervo Jovanka Scocuglia - Pesquisa PIBIC 2007-2008.
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Lixo e entulho no quintal e encanamento de esgoto despejado no rio, 2007. Foto: Acervo Jovanka Scocuglia - Pesquisa PIBIC 2007-2008.
Os espaços de ruas, becos e vielas são aspectos peculiares da forma urbana desta favela. Fazem parte do caráter labiríntico na ocupação dos espaços desta favela. Foram identificados como público-privados, pois são utilizados como extensão das áreas de serviços das casas. São locais de lavagem e secagem de roupas, mas também como espaços de encontros, convivialidade e lazer, marcados ainda por hábitos associados à vida nas cidades interioranas do estado, a exemplo da colocação de cadeiras na frente das casas nos momentos de conversas nas calçadas e/ou enquanto cuidam das crianças. Os becos do Porto do Capim assumem também um caráter específico quando utilizados como acessos às casas
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que não possuem aberturas voltadas para as ruas principais. Alguns deles são fechados por portões e formam vilas internas, muitas vezes locais de coabitação de famílias de uma mesma descendência. Os espaços pequenos e apertados da favela induzem à proximidade física e à coabitação, criando uma espécie de casa coletiva onde os moradores participam direta ou indiretamente do cotidiano uns dos outros. Os conflitos são presentes e marcantes e identificados, sobretudo no discurso dos moradores sobre as relações de vizinhança. Os locais de lazer nos finais de semana são, em especial, o campo de futebol da Vila Nassau, o trapiche do Porto do Capim e a Praça do Quen-Quen, essa última freqüentada principalmente por homens. Na Rua Visconde de Inhaúma é o local onde se realizam as brincadeiras infantis enquanto a esquina da coca32 foi mencionada como espaço de encontro de adolescentes. Porém, de um modo geral, os terrenos vazios e as construções abandonadas são também utilizados como áreas de lazer pelas crianças indicando carências significativas de espaços públicos qualificados para tais atividades. Esses moradores das margens do Sanhauá possuem um espaço próprio para atividades religiosas: a Ilha da Santa33 identificada como uma extensão territorial do Porto do Capim. Anualmente, no dia 08 de dezembro, acontece uma procissão de canoas que sai do trapiche do Porto do Capim e conduz uma imagem de Nossa Senhora da Conceição até um pequeno santuário existente na referida ilha. Esse evento mobiliza grande parte dos moradores católicos que decoram as ruas com bandeiras, reformam o trapiche e pintam os postes de iluminação pública localizados no percurso da procissão.
32 Nesta esquina funcionava um depósito da Coca-Cola que fechou no final da década de 1970, mas ficou registrado no imaginário dos moradores das comunidades e aparece nos seus discursos como ponto de referência. 33 A Ilha da Santa está localizada no Rio Sanhauá, onde moravam anteriormente alguns dos atuais moradores do Porto do Capim e da Vila Nassau.
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Imagens dos usos cotidianos dos espaços pelos moradores (jogando futebol no campo da Vila Nassau, rapazes conversando na Praça do Quen-quen do porto do Capim e jogando vôlei em galpão abandonado) e da procissão de Nossa Senhora da Conceição saindo do atracadouro no Rio Sanhauá, 2007. Fotos: Acervo Jovanka Scocuglia - Pesquisa PIBIC 2007-2008.
A partir de conversas informais, das observações de campo e das análises dos espaços foram identificados referenciais, marcos territoriais para a população moradora do Porto do Capim e Vila do Nassau. Alguns deles, apesar de não existirem mais em termos físicos ou não exercerem mais as mesmas funções, permanecem no discurso dos moradores como são os casos da fábrica de gelo, da alfândega, da gameleira e da esquina da coca. Outras referências importantes para os moradores são as casas dos moradores mais antigos ou mais ativos dentro das comunidades. Os acessos às comunidades ribeirinhas ficam restritos a três pontos: o principal, pela Praça XV de Novembro, outro pelo Rio Sanhauá e o terceiro por meio do cruzamento da ferrovia, passando pela Vila Frei Vital (ver, na sequência, páginas 35-40, mapas indicativos de acessos, usos e ocupação solo e fotos identificando edificações que são referências importantes para os moradores destas comunidades). Essa configuração de acessos cria um tipo de comunidade cercada, uma separação em relação à cidade formal, aqui em especial em relação às demais áreas do bairro do Varadouro. Os moradores conseguem, assim, perceber com certa facilidade a entrada de pessoas estranhas o que foi identificado como certo sentimento de segurança entre os mesmos. Os limites entre a Comunidade do Porto do Capim e a Vila de Nassau são também fronteiras territoriais, marcadas em parte, desde a formação das mesmas, pelas atividades econômicas voltadas para o rio na primeira enquanto na Vila Nassau, mais recente, voltadas para os depósitos. Mesmo não havendo nenhum limite físico estabelecido, nenhuma barreira à circulação entre as duas comunidades, foi criada uma fronteira simbólica entre ambas refletindo certa animosidade entre os moradores.
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Mapa
de
uso
e
ocupação do solo do Porto do Capim e da Vila
Nassau
com
pontos de referências, elaborado a partir dos relatos dos moradores sobre
bases
cartográficas da cidade de João Pessoa de 2005 – Arquivo Público PMJP.
Elaboração:
Equipe Pesquisa PIBIC 2007-2008.
Acervo
Jovanka Scocuglia.
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As transformações da paisagem são relacionadas com as constantes intervenções nas edificações e pelo movimento das marés que alteram o volume do rio. É como se houvesse um movimento constante nos espaços. Muitas vezes as habitações sofrem expansões para adaptação às necessidades da família. Na expansão das casas, os “puxadinhos” são práticas recorrentes, construídos com restos de materiais de construção, associados à taipa e a outros como o latão aplainado que pouco a pouco são substituídos por alvenaria. Esses fatores, aliados às necessidades de crescimento das famílias são os principais motivos da constante transformação na paisagem. Começa com o barraco e vai evoluindo, em geral, passa pela casa de alvenaria, mas a construção não acaba nunca, continua sempre em obras. As informações apresentadas neste capítulo possibilitam a compreensão parcial de aspectos importantes das relações entre as comunidades Porto do Capim e Vila Nassau, bem como destas com o rio. Percebe-se, assim, a precariedade da moradia em área de ocupação ilegal, às margens de um rio, mas também a riqueza, a diversidade e a sobreposição no uso dos espaços públicos e privados, as formas de sociabilidade e de delimitação de fronteiras que marcam as relações residenciais neste trecho do bairro do Varadouro. Foram identificadas fronteiras simbólicas, marcos e referências espaciais cujos significados para os moradores são associados aos usos elaborados desde a formação dos primeiros núcleos de ocupação e aos hábitos cotidianos. As relações entre os moradores são entremeadas por elementos de religiosidade, pelas relações de parentesco, pelas dificuldades de sobrevivência e pela participação em associações. A coabitação se dá pela sobreposição de espaços e usos. Os laços são reforçados, sobretudo nos momentos de dificuldades e de ameaças externas como, por exemplo, quando houve tentativas de remoção dos mesmos para áreas afastadas do centro da cidade.
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CAPÍTULO IV Imagens atuais e memórias da moradia e do comércio nas ruas da Areia e Maciel Pinheiro no centro antigo de João Pessoa
Panorâmicas das fachadas das edificações da Rua Maciel Pinheiro em dois trechos urbanos marcados pelas mudanças significativas no plano marginal da rua e na imagem da cidade. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2005.
Serão apresentados neste capítulo os resultados das pesquisas desenvolvidas para o projeto intitulado: Revitalização urbana, cultura e espaço público: usos contemporâneos do patrimônio na cidade de João Pessoa (ago/2003 a jul/2005). Trata-se de um estudo das dinâmicas socioculturais e de moradia em duas ruas históricas, Rua da Areia e Rua Maciel Pinheiro, fundamentais para a análise da imagem, da formação urbana e da memória dos bairros antigos da cidade de João
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Pessoa, sobretudo relacionadas com as atividades de comércio e de moradia. Antigos espaços privilegiados de moradia e comércio, respectivamente, na cidade de João Pessoa, estas ruas simbolizam um período de prestígio e riqueza do bairro do Varadouro e centro antigo da cidade. Nos últimos vinte anos, estes espaços passaram por alterações significativas em termos de usos, ocupações e população, no sentido de mobilidade residencial e comercial e degradação patrimonial. As repercussões são visíveis nas imagens e nos discursos sobre estas ruas. 1 - Rua Maciel Pinheiro: comércio tradicional e cenário atual da degradação socioespacial
Panorâmicas das fachadas das edificações da Rua Maciel Pinheiro em alguns dos trechos mais descaracterizados pelas mudanças de usos (tipo de comércio instalado nas antigas edificações). Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2005.
A Rua Maciel Pinheiro teve designações anteriores que simbolizavam usos e momentos da história da cidade de João Pessoa: teve a denominação de Rua das Convertidas, quando em 1746 foi instalado em um dos imóveis desta rua um abrigo destinado a receber prostitutas arrependidas que ali se recolhiam para viver em orações e penitências. No Segundo Império,
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recebeu o nome de Conde d’Eu e, posteriormente, foi chamada de Rua do Comércio porque nela se instalaram várias lojas, por volta de 1903, um comércio em grosso e a varejo, inclusive as primeiras lojas de departamento e de moda para consumo das elites locais. E por fim, foi renomeada Rua Maciel Pinheiro em homenagem ao advogado Luís Ferreira Maciel Pinheiro que lutou pelas causas republicanas na Paraíba.
Localização da Rua Maciel no Bairro do Varadouro. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2005.
Situada no centro antigo da cidade de João Pessoa, nas proximidades da antiga área portuária conhecida como Porto do Capim, a antiga Rua das Convertidas abrigava a Fonte de Gravatá responsável pelo abastecimento d’água das redondezas na Cidade Baixa. Sua extensão compreendia o trecho entre a Rua Visconde de Inhaúma (atual João Suassuna)
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e a Rua da Imperatriz (atual Rua da República). Nestes dois extremos da Rua Maciel Pinheiro localizam-se duas praças: Praça Anthenor Navarro e Praça do Trabalho, respectivamente. Dois prédios são referências importantes na Rua Maciel Pinheiro: a Associação Paraibana de Comércio, inaugurada em 1919, e o imóvel do antigo Quartel de 1ª Linha, construído em 1810, local provável do antigo abrigo das convertidas.
As fotos acima são da Praça Anthenor Navarro e da Praça do Trabalho (conhecida como Praça da Pedra). Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2005.
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Nesta rua, os comerciantes mais abastados ergueram casas e sobrados. No térreo funcionavam as casas de negócio e no pavimento superior, moravam as famílias. Na sua maioria predomina a linguagem arquitetônica do ecletismo, embora estejam implantados em um parcelamento de lote típico das cidades coloniais. Outros imóveis merecem destaque a exemplo do prédio nº 206, construído entre os anos de 1916 e 1917, local da antiga loja “Rainha da Moda” onde eram vendidos artigos de luxo para senhoras vindos diretamente de Paris e de Londres. Por volta de 1922, o prédio nº 38 abrigou a loja de Sólon Martins de Mesquita, comerciante de miudezas e perfumaria. Construído por volta de 1920, o prédio de nº 172 abrigava a firma Reinaldo de Oliveira & Co. que vendia miudezas, perfumes e tecidos. Até a década de 1970, a Rua Maciel Pinheiro manteve o uso comercial com lojas de qualidade e escritórios de profissionais liberais. A partir de então, passou a sofrer um processo de esvaziamento e mudança de usos e atividades comerciais, predominando, hoje, as lojas de materiais de construção e autopeças. A Rua Maciel Pinheiro exibe, em parte, as conseqüências negativas de um processo de urbanização acelerado da cidade de João Pessoa em direção a novos eixos de expansão, sobretudo em direção à orla marítima, nos últimos quarenta anos. Apesar de conservar parte das atividades comerciais, estas últimas podem ser consideradas fatores de agressão ao patrimônio edificado no passado e à paisagem urbana. Na maioria, são lojas e depósitos de materiais de construção civil, peças e serviços para automóveis, gráficas e oficinas que procuram adaptar as características físicas das antigas edificações às necessidades de espaço para instalação de equipamentos e atendimento ao público.
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Além disto, as edificações da rua são mal ou subutilizadas refletindo o baixo nível de conservação e preservação do patrimônio arquitetônico e urbano. Em geral, seus proprietários (comerciantes entrevistados) não demonstraram preocupação em relação às questões de conservação e utilização dos seus imóveis. Em certos trechos há descaracterização total das edificações ocasionada pela substituição de um patrimônio histórico por uma edificação estranha a seu entorno, distante dos padrões das construções originais, apresentando, sobretudo materiais industrializados inadequados, volumetria e tipologia divergentes com o meio. Há, portanto, um processo acelerado e contínuo de destruição da paisagem urbana antiga e tradicional. São efetuadas demolições e alterações na escala das edificações bem como há o abandono seguido de invasões ao patrimônio, acentuando o fator de deterioração. As transformações nos usos dos espaços se intensificaram atreladas à progressiva migração das elites para novas áreas residenciais, em especial, em direção à orla marítima a partir da década de 1950 e 1960, passando a Rua Maciel Pinheiro a concentrar pensões e casas de prostituição. Dentro da dinâmica de deterioração dessas áreas, uma vez que as
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camadas mais ricas migraram em direção aos novos bairros, levaram consigo os investimentos públicos e os serviços, relegando a rua abandonada a uma reocupação sempre distanciada desse fluxo de recursos e melhoramentos.
Rua Maciel Pinheiro s/d. Foto: Acervo Humberto da Nóbrega
Rua Maciel Pinheiro 1929 – vendo-se à esquerda a primeira agência do banco do Brasil na cidade e a loja Rainha da Moda. Foto: Leonardo Stuckert.
Alguns trechos dos depoimentos dos comerciantes e moradores da Rua Maciel Pinheiro acentuam outras dimensões, narrativas, discursos, que fundamentam, em parte, a imagem de rua degradada e estigmatizada pela presença da prostituição e das drogas, o abandono do comércio de alto e médio padrão substituído pelo comércio de autopeças, pelas
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gráficas e lojas de material de construção em geral. Estes últimos também já em processo de migração para novas áreas comerciais da cidade. Vejamos alguns destes discursos na sequência: A rua hoje esta muito desprezada. Ela já foi um dos grandes comércios de João Pessoa. (...) A prostituição era feita aqui na Maciel Pinheiro. Quando foi vindo as lojas, acabou. Hoje o comércio aqui praticamente acabou e a prostituição está voltando novamente a ocupar os espaços que antigamente eram lojas. Eu fico até muito triste com isso porque a gente tem no centro da cidade um monte de prédios públicos, particulares, lojas, que estão fechando e se mudando do local porque a prostituição está tomando o lugar (Entrevista 19/04/2004 com LA, 48 anos). Antigamente moravam famílias aqui e agora com esses prefeitos surgiram casas de prostituição, comércio, violência. Agora eu tenho vergonha de dizer que moro na Rua da Areia, alguém deveria fazer alguma coisa por esta rua. A melhor lembrança que eu tenho da rua são dos meus vizinhos, mas agora todos eles se mudaram, ficou só a saudade (Entrevista em 27/10/2004 com ES). (...) quando dá dezessete, dezoito horas quando o estado pára... isso aqui fica um vazio (risos) é o que eu queria e outra coisa, aqui perto estão se construindo favelas por trás do nosso comércio com apoio eu não sei de quem, mas já esta existindo e as pessoas que frequentam, que moram ali são do pior nível e a gente sai do nosso estabelecimento, se agarrando com Jesus para que não aconteça nada. É porque o negócio de maconha aí atrás, está aí dentro publicamente(...)” (Entrevista em 15/04/2004 com WA) A Maciel Pinheiro, principalmente (...) no quarteirão da casa do artesão é o maior ponto de droga. E isso é visto pela Polícia Federal, Polícia Militar. Todos eles sabem que aqui nessa área é o maior ponto de drogas, tanto de maconha, de craque, como de cola, como de (...) comprimidos que dão para os clientes ficarem dopados. (Entrevista em 19/04/2004 com LA, 48 anos).
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Usos e ocupação do solo Em primeiro lugar cabe ressaltar que, segundo a Proposta para tombamento nacional do Centro Histórico de João Pessoa (IPHAN, 2006), os imóveis do Centro Histórico da cidade de João Pessoa são em cerca de 90% propriedade privada dificultando o trabalho dos órgãos de preservação: Em relação à propriedade da edificação, a quase totalidade dos edifícios – 93,92% são de propriedade privada, sendo somente 2,28% de propriedade municipal, 2,09% de propriedade estadual e 1,71% de propriedade federal. Este percentual de imóveis públicos corresponde a: 43,0% de prédios federais, 38,0% de prédios estaduais, e 100% municipais de toda a área de atuação do Projeto de Revitalização (IPHAN, 2006).
No intuito de conhecer melhor o quadro geral das alterações na paisagem da Rua Maciel Pinheiro foi elaborado um primeiro estudo dos usos atuais e ocupações do solo, identificando também parte do estado de conservação de suas edificações, em especial das fachadas, bem como as transformações ocorridas ao logo do tempo. Esta verificação foi realizada in loco e por meio de levantamento fotográfico e cartográfico, elaborando-se os percentuais segundo os usos identificados. Constatou-se que a Rua Maciel Pinheiro conserva seu caráter comercial apesar da concorrência dos novos centros de comércio existentes em outras áreas de expansão da cidade de João Pessoa como o bairro da Torre e a BR-230. Entretanto, ao Sul da Rua Maciel Pinheiro ainda há uma mescla de usos comercial e residencial. De acordo com a pesquisa de campo realizada em 2003, obtiveram-se os seguintes percentuais: 2,44% dos lotes eram terrenos vazios, 4,27% dos lotes imóveis fechados, sem uso definido, 1,22 % dos lotes utilizados como estacionamento, 3,05% dos lotes correspondendo a unidades habitacionais, 1,22% apresentando uso misto (residência + comércio), 2,44%
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dos imóveis ocupados com atividades institucionais, 85,36% dos imóveis utilizados para atividades exclusivamente comerciais (ver mapa 01 abaixo).
Verificou-se, assim, a concentração do uso para fins comerciais e institucionais (aproximadamente 88%). Ressalte-se que algumas das edificações identificadas como de uso comercial desenvolviam atividades agressivas às características históricas e arquitetônicas das edificações por provocarem a descaracterização das mesmas e a desvalorização da área. Em certos casos houve demolição de parte dos edifícios para atender as novas necessidades. São eles: oficinas mecânicas, depósitos de material de construção, serviços de autopeças, marcenarias e confecção de peças em gesso, dentre outras.
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A parcela residencial (3%) se concentra, sobretudo, nos trechos próximos à Praça do Trabalho ou “Praça da Pedra” como é popularmente conhecida. Em certos casos as edificações estavam sendo utilizadas para comércio e residência e/ou para habitações coletivas como é o caso da Vila Caiafu, cujas habitações em situação de precariedade física e social, estavam inseridas no interior de uma das quadras da Rua Maciel Pinheiro. A Vila apresentava um estado de degradação acentuado evidenciado pela precariedade das casas, da infra-estrutura do local em termos de iluminação, esgoto sanitário, estado da via de acesso etc. A referida Vila foi identificada pelos entrevistados como local inseguro, onde eram freqüentes os assaltos inviabilizando o fluxo de pessoas estranhas à comunidade residente tanto para realização de serviços quanto para visitação ou passagem. Os lotes que se encontravam vazios ou com imóveis fechados na Rua Maciel Pinheiro foram identificados em número reduzido, com utilização parcial das edificações em alguns casos, sobretudo com o uso comercial no térreo. Os lotes em geral seguiam o modelo característico do planejamento das cidades brasileiras no período colonial que se prolongou até meados do século XIX, estreitos na largura da testada e alongados em profundidade, com as edificações geminadas Apresentavam um número maior de sobrados em relação ao restante da cidade, evidenciando sua função comercial e mista (habitação e comércio) desde os primórdios. Registrou-se ainda uma transformação crescente de terrenos de antigos imóveis demolidos em estacionamentos privativos (1,22%). Neste sentido, eram demolidas edificações de valor histórico, arquitetônico e/ou paisagístico, algumas na calada da noite, acarretando a perda significativa à história/memória e à paisagem construída da cidade. No segundo levantamento de uso e ocupação do solo da Rua Maciel Pinheiro, realizado em 2005, foram registrados os seguintes percentuais: 2,44% dos lotes como terrenos vazios, 17,68% dos lotes com imóveis fechados, sem uso definido, 1,22 % dos lotes utilizados como estacionamento, 2,44% dos lotes correspondendo a unidades habitacionais, 0,61%
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apresentando uso misto (residência + comércio), 2,44% dos imóveis com atividades institucionais e 73,17% dos imóveis utilizados para atividades exclusivamente comerciais. A análise comparativa destes dois períodos (2004 e 2005) quanto ao uso do solo na Rua Maciel Pinheiro demonstrou o aumento considerável dos imóveis sem uso definido. De 4,27% passou a 17,68%, um aumento de 414%. Esses percentuais expressam o fechamento de atividades comerciais e o abandono de imóveis para moradia. Os problemas associados à segurança, à precariedade infraestrutural - visível na carência de mobiliário urbano e de iluminação pública adequados - e à prostituição no antigo centro da capital paraibana são alguns dos elementos identificados como justificadores destes dados, associados à ausência de incentivos ao comércio, agravados ainda pelos problemas de estacionamento. Com isso o uso comercial que ficava em torno de 85% em 2004 caiu para 73% em 2005, uma perda de aproximadamente 14% em apenas um ano. A parcela residencial que era de 3,05% passou para 2,44% tendendo a diminuir ainda mais devido às condições precárias de segurança que fazem com que os moradores mais antigos e afetivamente ligados ao bairro e à rua decidam morar em novas áreas da cidade melhor servidas de infraestrutura. Os imóveis da Rua Maciel Pinheiro em sua maioria apresentam estado péssimo estado de conservação acentuando a imagem de local abandonado e degradado. Em determinados pontos da rua as edificações estão totalmente descaracterizadas, substituindo o patrimônio histórico da cidade por uma edificação estranha a seu entorno, com padrões de construção totalmente diversos aos imóveis adjacentes. O processo acelerado e contínuo da destruição da paisagem urbana construída, através das demolições e alterações, bem como do abandono e das invasões do patrimônio, contribuem para a perda de importante referencial histórico, cultural e artístico de João Pessoa. Contudo, enquanto o uso e a ocupação do solo da Rua Maciel Pinheiro sofreram modificações em apenas um ano (2004-2005), o estado de conservação permaneceu praticamente inalterado. Na elaboração da classificação dos imóveis
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segundo o estado de conservação utilizou-se como referência o padrão estabelecido pelos órgãos oficiais do patrimônio histórico local, Instituto do Patrimônio Histórico Artístico do Estado da Paraíba – IPHAEP, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN e Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa – CPDCH quando do inventário para elaboração do Projeto de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa que mantém como único documento completo sobre a situação geral dos imóveis, espaços públicos e privados e da população do Centro Histórico. Em resumo, estes parâmetros para avaliação do estado de conservação podem ser entendidos por: Elemento Excepcional – Edificação que mantém preservados os elementos e detalhes, volumetria e envergaduras, e pouco ou nada dos originais foram alterados (esquadrias, telhados, varandas, platibandas e beirais). Valor Ambiental – Edificação que ainda guarda alguns elementos determinantes, entretanto, os elementos secundários estão alterados como esquadrias, etc. Descaracterizado – Edificação que tenha quase todos os seus elementos determinantes e secundários totalmente alterados mudando, assim, a sua identidade. Estranho à Ambiência – Edificação recente que não observa e segue os padrões ambientais de volumetria, revestimento, estilo arquitetônico, etc., podendo apresentar usos mais agressivos como estacionamentos para os quais foram fitas demolições de imóveis antigos. De acordo com as informações obtidas sobre os imóveis da Rua Maciel Pinheiro em 2003: 5,45% de elementos excepcionais, 26,06% elementos com valor ambiental, 41,82 % de imóveis descaracterizados, 23,64% de imóveis estranhos ao entorno, 3,03% de edificações demolidas. Segundo estes percentuais, cerca de metade dos imóveis da Rua Maciel Pinheiro encontram-se descaracterizados indicando ausência de incentivos e de políticas públicas que valorizem e promovam a inversão de recursos aplicados nas obras restauradas por entidades públicas e privadas, bem como a ausência de uma
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política de educação patrimonial eficiente. Entretanto, ainda há 31,51% das edificações com parte das características primordiais preservadas necessitando, sobretudo de pintura e/ou reconstituição dos materiais que compõem as esquadrias. A Rua Maciel Pinheiro possui um percentual de aproximadamente 24% de inserção de novas edificações com características totalmente divergentes ao entorno. No período pesquisado, cerca de 3% das edificações da rua foram demolidas para dar lugar às atividades de estacionamentos ou para servirem de acessos às vilas localizadas no logradouro. A Rua Maciel Pinheiro, antes, símbolo e suporte do comércio da cidade, local de trocas e sociabilidades, atualmente, apresenta as seqüelas de um crescimento urbano que privilegiou e segregou determinadas áreas da cidade em detrimento de outras, bem como vez tabula rasa do seu patrimônio arquitetônico, histórico e cultural.
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Contudo, de maneira geral, há ainda os problemas como a necessita de limpeza das calçadas, urbanização das mesmas com colocação de equipamentos adequados à ambiência e à arquitetura e aos usos coletivos, como a colocação de postes adequados à escala dos imóveis, retirada da fiação colocando-a subterrânea, posicionamento de lixeiras em pontos estratégicos, reformas em marquises que colocam em risco à vida de parcela da população que circula pelas calçadas entre outras medidas relativas à gestão dos espaços públicos e privados. As três primeiras imagens (fotos panorâmicas), apresentadas na sequência abaixo, mostram trechos mais descaracterizados em relação à arquitetura (eclética) característica da Rua Maciel Pinheiro, que mesclava comércio e habitação em seus primórdios e até meados do século XX. Enquanto as duas últimas imagens, todas montadas a partir de fotos individuais de cada imóvel da rua, identificam-se trechos nos quais ainda conservam-se características marcantes das edificações, na maioria, datadas do século XIX.
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As fotos acima dão uma noção da imagem da Rua Maciel Pinheiro, mostrando parte da situação das fachadas dos imóveis entre 2003-2005. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia.
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Análise de alguns imóveis em destaque Em termos arquitetônicos a Rua Maciel Pinheiro se caracterizada como um conjunto eclético com predominância de elementos de composição das fachadas com traços neoclássicos; em especial a edificação atualmente utilizada como sede da Casa do Artesão Paraibano, cuja fachada destaca-se por um frontão triangular central, pela simetria volumétrica, posição das aberturas em arcos plenos e alguns traços do art nouveau e art déco. Na forma de implantação da edificação no lote urbano há predominância do lote estreito, sobre o alinhamento da rua e sem recuos laterais. As platibandas nas fachadas escondem os telhados de duas águas que já não jogam mais as águas pluviais diretamente nas ruas ou nos quintais. As variações na implantação são os lotes com recuos laterais para jardins ou com portão de acesso lateral, pequenos alpendres ou ainda a presença de porões altos denunciados pela presença de óculos. Em termos de fachadas as edificações da rua apresentam cores e texturas fortes, as quais analisadas em conjunto evidenciam a ausência de regras claras quanto à conservação e uso permitidos pelos órgãos de preservação locais. Quanto à volumetria, apesar das intervenções ocorridas nas edificações, há um gabarito padrão sem grandes contrastes visuais e interferências na paisagem urbana. Na seqüência destacaremos o levantamento arquitetônico de algumas das edificações da Rua Maciel Pinheiro selecionadas por conservarem suas características originais e modo de ocupação, além de apresentarem fachadas em bom estado de conservação com características de época de construção preservadas. Esssses imóveis foram selecionados e catalogados pela Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa – CPDCH-JP durante as primeiras tentativas de elaboração do Projeto de Revitalização do Centro histórico de João Pessoa em 1987. Foram aqui registrados por meio de fotografias dos espaços internos e externos às edificações, mostrando o estado de conservação
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entre o período de 2003 e 2005 e, em determinados casos, imagens antigas que revelam algumas das alterações sofridas ao longo do tempo. Casa do Artesão Paraibano
A Casa do Artesão Paraibano é de propriedade do Governo do Estado, está localizada no setor 14 da quadra 64, lote 210 da Rua Maciel Pinheiro. A edificação data do século XIX (1810) e apresenta composição volumétrica simétrica. A fachada é composta por uma entrada central em arco pleno, colunas duplas, colunas adossadas a parede e janelas simétricas nas laterais. Apresenta um frontão triangular característico do neoclássico com cornijas, friso e entablamento.
Croqui e foto de Localização da Casa do Artesão Paraibano. Foto: Kelly C. Gomes. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia – Pesquisa PIBIC, 2003.
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Até 1945 o velho prédio abrigou o depósito das obras públicas, o antigo Quartel de Polícia, sendo posteriormente ocupado pelo Corpo de Bombeiros até sua mudança para Marés, em 1975. A ocupação com o Mercado Modelo, que deveria abrigar os feirantes da Feira da Primavera, não obteve o sucesso pretendido sendo criada no local, em 1984, a Casa do Artesão Paraibano. Quando foi criada a Casa do Artesão, esta se mantinha e se consolidava como espaço oficial de produção e venda de artesanato na cidade. Promovia feiras e eventos que chegavam a reunir o artesanato produzido no estado (Feira dos Municípios). A edificação encontra-se hoje bastante descaracterizada, apresentando vestígios de diferentes momentos, sendo praticamente impossível à reconstituição de seu partido original. O provável é que a edificação original possuísse quatro águas e ocupasse apenas a parte Sul. Em dado momento sofreu a construção ou anexação da parte Norte, sendo também posterior à construção da água furtada e do frontão. De qualquer modo, o pátio central descoberto é atípico às construções residenciais e mais adequada à edificação para usos institucionais como o Quartel de Polícia ou outro uso de caráter público. Com o acesso principal voltado para o interior do lote, e estando cercada por muros, a Casa do Artesão deixa de se comunicar funcional e visualmente com os terminais, sofrendo com o anonimato e a falta de visitação pública, se refletindo no desinteresse dos artesãos pela área que resulta numa área bruta disponível, mas subutilizada, de 95 m2 para cada um dos 45 artesãos cadastrados. A Casa do Artesão enfrentou ainda problemas que vão desde a simples falta de manutenção (como infiltração de água por entupimento de calha e depósitos ao ar livre) até problemas de infra-estrutura como subutilização do lote pela tipologia inadequada dos ateliês externos – cuja tipologia foi criada originalmente para abrigar a feira tradicional, resultando num excesso de circulação convertida em depósito ao ar livre -, a falta de iluminação natural e arejamento nas unidades internas ou a construção de banheiros no salão Sudoeste da edificação. A rígida modulação adotada para construção dos ateliês no bloco Norte levou à inexistência de janelas em algumas unidades. Em função disso, foram feitas
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aberturas nas paredes que datam de aproximadamente dois anos, tentando resolver problema de mofo e de iluminação natural.
Associação Comercial do Estado da Paraíba Um exemplar marcante do ecletismo na Rua Maciel Pinheiro é a Associação Comercial. Localizada no lote 325, quadra 10 da Rua Maciel Pinheiro, esta edificação – Associação Comercial – foi inaugurada pelo então presidente da República, o paraibano Epitácio Pessoa, em 17 de julho de 1919.
Croqui de Localização da Associação Comercial. Fonte: Acervo Jovanka Scocugali, 2003
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Esta edificação foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico do estado da Paraíba – IPHAEP – em 26 de agosto de 1980 pelo Decreto nº 8.661 e de acordo com a Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa é classificada como de conservação total devido ao seu valor histórico tradicional e estético formal, de acordo com as normativas elaboradas em 1987.
Imagem da Rua Maciel Pinheiro com destaque para a Associação Comercial do Estado da Paraíba em meados da década de 1930. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia.
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Imóvel nº 276
Croqui de localização e imagem atual da Casa nº 276, sobrado de dois pavimentos, utilizado como edificação comercial, mesma função dos primórdios. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2003.
O sobrado de dois pavimentos (térreo + um) encontra-se localizado no lote 270 da quadra 36 da Rua Maciel Pinheiro. Sua implantação é típica dos sobrados magros recifenses citados na obra de Gilberto Freyre. Não possuem recuos laterais e se posicionam diretamente sobre o alinhamento da rua. Sua construção data do século XIX. A fachada apresenta misturas de elementos de épocas diferentes com platibanda composta por detalhes geométricos e frisos. As portas e janelas possuem
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vergas em arcos abatidos. As esquadrias de madeira foram substituídas por outras do tipo “rolo” que, segundo o proprietário do imóvel, se justificam pela falta de segurança à noite. O edifício possui a classificação de Conservação Total de acordo com a normativa da CPDCH – JP. Encontra-se já alterado em suas características originais como é o caso das esquadrias. A edificação encontra-se ainda em uso e apresenta alterações nos elementos de composição internos para atender as necessidades do uso comercial. Foram demolidas todas as paredes internas da edificação, sendo a mesma composta por dois vãos, a primeira forma um grande salão e o outro um banheiro. Imóvel nº 279
Croqui de localização com destaque para o lote 130. Fonte: Kelly C. Gomes (2004) e foto da edificação nº 279 de uso comercial. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2003.
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Edificação de um único pavimento é de propriedade de Manoel Martins Porto é utilizada para fins comerciais e se localiza no lote 130 da quadra 37. Apresenta o mesmo tipo de implantação típica de grande parte das edificações da Rua Maciel Pinheiro, sem recuos laterais e no alinhamento frontal. É uma edificação térrea comercial e, durante a pesquisa, estava sendo utilizada para revenda de peças de automóveis – Comercial Moura. Sua construção data do Século XIX e apesar de ser um edifício com valor estético formal, histórico tradicional e tipo de conservação total pela CPDCH-JP, sofreu graves alterações ao longo dos anos. Dentre as alterações estão: substituição das esquadrias e aumento da abertura dos vãos. Para atender as necessidades do comercial foram demolidas as paredes internas. Possui a coberta em duas águas que se encontra encoberta pela platibanda ornamentada por frisos, pequenos detalhes geométricos e vergas retas. Imóvel nº 285
Croqui de localização com destaque para o lote 125 e foto da edificação nº 285 durante a pesquisa encontrava-se fechada e sem grandes alterações na composição da fachada, porém em estado de abandono. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2003.
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O imóvel de propriedade do Sr. Targino Virgolino localiza-se no lote 125 da quadra 37 da Rua Maciel Pinheiro. Sua implantação típica das edificações comerciais da Rua Maciel Pinheiro. Sua construção data do século XIX com elementos de composição de fachada caracterizados como ecletismos. A edificação possui apenas um pavimento e apresenta abertura em madeira e ferro em arcos plenos, típicas dos antigos armazéns comerciais, e molduras em arcos ogivais. A platibanda é composta apenas por frisos. De acordo com a classificação da CPDCH-JP o edifício é considerado em regime de conservação total devido ao seu valor histórico tradicional e estético formal, o que não evitou que a construção entrasse em acelerado processo de degradação. Tal estado do imóvel, que tem por tipologia original o uso comercial, se intensificou após o abandono de sua função e fechamento a mais de cinco anos. Internamente, se apresenta em ruínas com parte da coberta desmoronada e o piso em processo de esfacelamento. Imóvel nº 764 A partir da segunda metade do Século XIX surgiu um novo tipo de residência: a casa de Porão Alto. Aparece como uma transição entre os sobrados e as casas térreas. Esse tipo representava uma renovação em relação aos velhos moldes construtivos e foi bastante difundido a partir de 1850 no Brasil como um todo. O imóvel pertence à Terezinha Borges Moreira está localizado no lote 350 da quadra 05 da Rua Maciel Pinheiro. Apesar de implantada no alinhamento da rua, sem recuo frontal, possuía o estilo das edificações residenciais com entrada e jardins laterais. Foi alterada após a década de 1990 para adaptação ao uso misto (residencial + comercial). A edificação também sofreu alterações com relação ao porão alto onde foram fechados os “óculos” (aberturas para iluminação natural) que marcavam a presença do porão.
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Croqui de Localização da edificação do lote 350 e planta Baixa da edificação Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2004.
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Por conservar parte de seu uso original e pelo interesse do proprietário, foram conservadas algumas de suas características arquitetônicas. Entretanto, a coberta original encontrava-se em estado precário, com necessidade de manutenção. As esquadrias foram conservadas, algumas datam do século XIX, mas com várias pinturas superpostas ao longo do tempo. O edifício possui sete ambientes, sendo um deles utilizado como mercearia, três quartos, uma cozinha, sala e depósito. Na parte externa do lote encontra-se um bloco com dois banheiros. O edifício possui classificação de conservação total feita pela CPDCH-JP no ano de 1987.
Acima, à esquerda detalhe da coberta da edificação. À direita imagem das esquadrias da casa com detalhe para os alisares de madeira com pintura azul. Foto: Kelly C. Gomes.Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2005.
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A edificação apresenta ainda a tipologia de planta com uma circulação lateral e todos os ambientes voltados este corredor. Estes espaços são, em geral, sem aberturas para ventilação e circulação do ar. Os cômodos são, portanto, escuros e se caracterizam como alcovas.
À esquerda foto do quintal da edificação. À direita uma das alcovas com sua configuração original sem janelas para iluminação ou ventilação.Foto: Kelly C. Gomes. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2005.
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Imóvel nº 776 O localizado no lote 370 da quadra 05 da Rua Maciel Pinheiro é de propriedade de Jaime Caetano. Apresenta implantação típica do período colonial sem recuo frontal, apesar de possuir entrada e jardins laterais. A edificação sofreu várias alterações ao longo dos anos: fechamento dos “óculos” que explicitavam a presença de porão alto.
Croqui de Localização da edificação do lote 370 e foto da edificação nº 776. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2004.
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Devido às várias mudanças sua arquitetura original encontra-se quase que totalmente destruída. Foi demolida praticamente toda a edificação para a construção de uma pousada que funciona como um ponto de prostituição. Apesar de possuir classificação de conservação (CPDCH-JP, 1987), todo o interior da edificação foi alterado e em seu lugar os espaços foram agenciados com fins puramente comerciais. Imóvel nº 788 O imóvel de propriedade de Tereza de Lima Araújo é habitado pela sua filha Yolanda de Araújo Borges há cerca 60 anos. Localizado no lote 375 da quadra 05 da Rua Maciel Pinheiro, o imóvel conserva grande parte das suas características originais.
Croqui de Localização da edificação do lote 375 e foto da Residência da Sra. Yolanda Araújo e família. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2003.
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A edificação apresenta implantação sem recuos laterais e diretamente sobre o alinhamento da rua. Na fachada destaca-se uma platibanda trabalhada em motivos geométricos. O imóvel possui seis ambientes: sala, dois quartos, copa, cozinha e banheiro, este último incorporado mais recentemente. O quintal conserva sua função antiga de espaço de lazer e local para plantação de hortifrutas. Na entrada principal, uma escadaria com piso cimentado dá acesso à circulação para onde se abre a sala, os quartos e a cozinha. Em geral os ambientes não possuem aberturas para ventilação e circulação do ar, são alcovas. São em geral escuros tendo quer ser iluminados através de luz artificial.
1
2 3
4 5 LEGENDA 01 – Quintal 02 – Banheiro 03 – Copa 04 – Cozinha
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05 – Quarto 06 – Quarto 07 – Sala
Croqui 7 da planta baixa da casa nº 788. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, Pesquisa PIBIC (2005)
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As esquadrias e a coberta são originais, mas em péssimo estado de conservação. Entretanto, o edifício possui classificação de conservação (CPDCH-JP, 1987). Imóvel nº 792 Localizada na Rua Maciel Pinheiro lote 380 da quadra 05, o imóvel de propriedade da senhora Bernadete Franca de Araújo data do século XIX e conserva praticamente todas suas características originais de construção de acordo com informações fornecidas pelos vizinhos.
Croqui de Localização da edificação do lote 380 e imagem atual da edificação nº 792 de propriedade de Bernadete Franca. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2003.
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A fachada apresenta platibanda trabalhada em motivos geométricos e possui apenas um pavimento com porão alto. De acordo com entrevistas realizadas com vizinhos, a edificação mantém uso o residencial. Conserva ainda parte de suas características arquitetônicas com pequenas alterações nas esquadrias. A planta baixa possui fortes semelhanças com a edificação do lote 375 de propriedade da senhora Yolanda de Araújo Borges.
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2 - Rua da Areia: moradia, memória e imagens recentes
Localização da Rua da Areia no bairro do Varadouro. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, 2005
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Sendo em declive, as enxurradas dos tempos chuvosos juntavam no sopé vasto lençol de areia, e disto resultou seu nome. Já foi Barão da Passagem, em homenagem a Delfim de Carvalho, herói da guerra do Paraguai, mas esta designação não vingou e a velha artéria voltou a ter seu primitivo nome. No mapa executado pelo Capitão Manuel Francisco Grangeiro, em 1692, consta o traçado desta via, referida como a “estrada ou caminho do carro para a cidade, e da cidade para o Varadouro”, sendo representada sem haver uma ocupação significativa em suas margens. Por sua vez, Vicente Gomes Jardim, ao descrever a cidade em 1889, registrou a existência de 114 prédios na Rua da Areia, entre os quais havia oito sobrados. Portanto, sendo uma das principais ruas do Varadouro, possuía um grande número de edificações, onde habitavam as famílias de destaque social, até as primeiras décadas do século XX. Pela Rua da Areia circularam os bondes puxados à tração animal. Em dezembro de 1859, foi palco para o cortejo conduzindo D. Pedro II e a imperatriz Tereza Cristina, por ocasião da visita dos soberanos à cidade. E ainda em meados do século XIX foi uma das primeiras ruas da cidade a abrigar as festividades do Carnaval de rua.
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Rua Barão da Passagem em 1903 e 1908 segundo dois pontos extremos (um abaixo e outro acima) do trecho que corresponde à atual Rua da Areia. Fotos: Leonardo Stuckert.
A partir, sobretudo, da década de 1970 a Rua da Areia passou por um processo gradativo e crescente de abandono e consequente decadência física e funcional dos imóveis residenciais. Embora tenham sido mantidos alguns edifícios representativos de seu passado de riqueza, a exemplo do sobrado de n.º 366, onde residiu o Barão da Passagem, veterano da Guerra do Paraguai. Neste edifício teria funcionado também um teatro, uma cadeia e, posteriormente, um prostíbulo.
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Fotos do casario da Rua da Areia em 2005. Imagens do processo de descaracterização das fachadas. Acervo: Jovanka Scocuglia.
As pesquisas realizadas na Rua da Areia se concentraram na análise de informações sobre uso e ocupação do solo na Rua da Areia e na elaboração de cartografias sobre estes usos e ocupações e sobre o estado de conservação das fachadas dos imóveis. Aliado a estas análises foram realizadas entrevistas semiestruturadas com moradores e comerciantes da Rua da Areia, incluindo as prostitutas. As entrevistas foram realizadas no período de outubro de 2004 a fevereiro de 2005 enquanto as observações de campo se estenderam de julho de 2004 a agosto de 2005. Durante estas visitas foram realizadas contagens referentes aos tipos de usos predominantes nos imóveis naquele período e elaborados registros fotográficos da rua em geral e de todos os imóveis isoladamente. Estas observações de campo juntamente com as fotografias e as entrevistas gravadas e transcritas compõem um arquivo documentando imagens e narrativas sobre a Rua da Areia durante este período.
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Comparando as observações de campo e as fotografias da Rua da Areia em 2004 e 2005, pode-se afirmar que o estado de conservação dos imóveis permaneceu, na maioria dos casos, estável, enquanto a situação do uso e ocupação do solo sofreu alterações, indicando o fechamento de imóveis comerciais e de serviços, a diminuição do número de edificações com uso residencial e o aumento do número de prostíbulos. Ver distribuição espacial e diferenças nos percentuais de usos e ocupações do solo nas páginas seguintes (mapas 01 e 02 referentes ao uso e ocupação do solo e mapas 03 e 04 sobre o estado de conservação dos imóveis da Rua da Areia). Os mapas de uso e ocupação do solo apresentados na sequência, páginas seguintes, sintetizam as informações obtidas in loco e mostram o processo de crescimento da prostituição na Rua da Areia. No ano de 2004 quando foi realizado o primeiro levantamento chegou-se à porcentagem de 9,09% de casas de prostituição, quando repetido este levantamento neste ano de 2005, observou-se o crescimento de 4,96 % de casas de prostituição em um período de um ano, chegando a um total de 16 cabarés representando 16,05 % dos imóveis da rua. Este crescimento também foi confirmado através das entrevistas realizadas com os grupos específicos. Fecha um hoje, amanhã abre de novo, amanhã mais outro e assim. (JC – Comerciante há seis anos na Rua da Areia em entrevista a pesquisadora – 12/02/2005). Olha aqui, se um cabaré fecha, outro dia já tem outra pessoa abrindo. Então o que acontece é surgir mais e pelo jeito que estou vendo, está aumentando, viu? (JM – Morador da Rua da Areia há 45 anos em entrevista a pesquisadora – 14/10/2004).
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Nos depoimentos dos moradores e comerciantes da Rua da Areia reforçam as informações resultantes das observações de campo relativas à diminuição do número de residências na Rua da Areia. Constatou-se que em 2004 havia um percentual de 18, 18 % de uso residencial, passando em 2005 para 15,7%, uma diminuição de 2,48 %. Esta redução no uso das edificações para moradia aparece nas entrevistas associada à crescente instalação dos cabarés, considerados como agressões à imagem e à reputação da Rua e dos seus moradores. A presença dos prostíbulos é apontada ainda como responsável pelo alto índice de violência na Rua da Areia. Vejamos alguns trechos destes depoimentos: Com esse aumento de cabarés, ninguém mais quer vir morar aqui, até quem tem comércio não quer vir para cá. Os que tentam, acabam fechando ou vivem reclamando. (BS – Moradora da Rua da Areia há 25 anos em entrevista a pesquisadora, 15/10/2004).
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Antes, era um lugar bom para se morar. Só tinha pessoas importantes, gente bacana e muitas amizades, mas tornou-se a derrota. É morte toda semana. Semana passada, mataram dois aí embaixo... Embaixo do viaduto (...) (PA – Comerciante e morador da Rua da Areia há 39 anos em entrevista a pesquisadora, 09/03/2005).
Identificaram-se ainda durante a pesquisa de campo a diminuição do comércio e o crescimento dos imóveis fechados, sem uso. Houve uma diminuição de 10,74 % do uso comercial nas edificações da Rua da Areia entre 2004 e 2005. Alguns comerciantes entrevistados atribuíram tal fato a imagem gerada pela presença dos prostíbulos. Eu não tenho cliente mulher, elas não têm coragem de vir aqui na Rua da Areia porque todo mundo sabe que aqui é rua de cabaré (...) (JP – Comerciante da Rua da Areia há 08 anos, entrevista concedida em 05/02/2005). É uma rua que tem cabaré, é uma rua que tem morte, entendeu? Quer dizer que uma rua assim dá má impressão, não é? (SM – Comerciante da Rua da Areia, entrevista concedida em 09/03/2005).
No levantamento realizado para a investigação da degradação dos imóveis existentes na Rua da Areia, os resultados foram semelhantes quando comparamos as informações obtidas em 2004 e em 2005. Entretanto, não significa dizer os imóveis da Rua da Areia e seus espaços públicos estejam em bom estado de conservação. Constatou-se exatamente o contrário: o percentual de imóveis descaracterizados chegou a 40,8% das edificações existentes. Os mapas 03 e 04, na sequência, resumem estas informações, bem como as análises das imagens e os trechos das entrevistas em destaque, inseridos logo em seguida aos mapas.
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Na leitura do espaço da Rua da Areia por meio das fotos acima se identifica facilmente o rompimento dos enfiamentos de rua e a destruição de sua perspectiva causada pelo Viaduto Miguel Couto, construído na década de 1970 para facilitar o fluxo de veículos entre Cidade Alta e Cidade Baixa. Usos indevidos dos espaços públicos e ausência de conservação das fachadas são outros aspectos. Fotos: Acervo Jovanka Scocuglia - Pesquisa PIBIC, 2005.
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Tem pouca gente aqui... assim... grande parte do Centro Histórico, que é a maioria dessas casas, a maioria não, todas são tombadas, não é? Pouquíssima gente conhece, aí continua mexendo, modificando, fazendo umas coisas que não pode. (JC – Comerciante da Rua da Areia há 6 anos. Entrevista concedida em 12/02/2005).
A revolta da rua na situação em que ela está aqui quase não tem mais residência, é tudo comércio, isso me incomoda muito. Você vai dormir e às vezes nem consegue por causa do barulho, vai reclamar e não consegue porque é todo mundo bêbado (...) (Entrevista em 27/10/2004 com SD). (...) Eu sou revoltada com a praça em frente aos correios [Praça Pedro Américo] aquela praça ali poderia ser um ambiente para uma mãe de família sentar. Era para ser um ambiente para uma pessoa que está caminhando no centro parar e descansar. Mas aquela praça é um ambiente onde ninguém pode para, somente passar. É um ambiente do centro da cidade que envergonha a gente, eu moro aqui e não posso ter nenhum lazer aqui por perto. (Entrevista em 27/10/2004 com SD) Antigamente a gente botava as cadeiras na porta e ficava conversando, agora se a gente ficar na calçada os carros páram pensando ser uma casa de prostituição.(Entrevista em 27/10/2004 com ES)
No item seguinte serão apresentadas informações gerais sobre as edificações da Rua da Areia, como por exemplo: localização de lotes, quadras e fachadas de alguns imóveis da Rua da Areia, características arquitetônicas, período de construção e estado de conservação no momento de realização da pesquisa.
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Imóvel nº 708 O Imóvel nº 708 está situado na Rua da Areia no lote 367 da quadra 42.
Foto: Roberta Paiva (2004). Acervo Jovanka Scocuglia – Pesquisa PIBIC, 2005-2006
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O Imóvel n º 708 apresenta composição eclética conjugada com cornijas interrompidas por arcos semicirculares recheados com altos relevos e marcação das aberturas das fachadas coroadas com guirlandas em argamassa. Encontravase alugada há 18 anos para Eunice Jales, que atualmente reside sozinha. Classificado como imóvel de grande valor histórico e arquitetônico pela Comissão Permanente de Desenvolvimento do Centro Histórico de João Pessoa – CPDCH-JP, em 1987, possui fachada com elementos de composição eclética. A edificação apresenta implantação aos moldes predominantes no período colonial, sem recuos laterais e diretamente sobre o alinhamento da rua. Na fachada foi introduzido gradil de ferro em portas e janelas indicando os problemas de segurança já mencionados anteriormente. Apesar da introdução do gradil e das cores berrantes na fachada, havia conservação das características arquitetonicas ecléticas bem como de implantação no lote urbano. O imóvel 708 representa uma das poucas edificações em conservação do uso residencial na Rua da Areia. Possui 7 (sete) ambientes : 3 (três) quartos, sala, cozinha, copa, banheiro e quintal. Foram elaboradas algumas imagens internas (isto foi feito sempre que permitido pelos moradores e/ou comerciantes) que indicam manutenção das caracteristicas construtivas embora sem conservação adequada.
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À esquerda, detalhe do forro de madeira parcialmente destruído pela falta de manutençãoe à direita foto da circulação, detalhe o forro e das esquadrias originais. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, Pesquisa PIBIC - 2005.
Portanto, embora tenha sido classificado pela CPDCH-JP como um imóvel de valor histórico e arquitetônico, seu estado de conservação durante o período da pesquisa era ruim, pois os proprietários alegavam não possuir poder aquisitivo suficiente para a realização das reformas necessárias nem para serviços de manutenção.
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Imagem da empena da fachada dos fundos em péssimo estado de conservação. Foto: Acervo Jovanka Scocuglia - Pesquisa PIBIC, 2005.
Imóvel nº 507
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Imóvel nº 507 localizado na Rua da Areia no lote 155 da quadra 43. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia – Pesquisa PIBIC, 2005
Este imóvel encontrava-se alugado para fins comerciais há três anos a Jailson do Castro que montou neste local uma gráfica. A fachada possui platibanda de inspiração eclética, aberturas em arcos plenos. A planta baixa foi totalmente modificada para adaptação de seu uso como gráfica, tendo parte de seus cômodos destruídos para abertura de um grande vão necessário para abrigar máquinas.
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Croqui da planta baixa do imóvel 507
apresentando
características
tipológicas
suas quase
que totalmente alteradas. Fonte: Acervo
Jovanka
Scocuglia
–
Pesquisa PIBIC - 2005.
A falta de manutenção e conservação da edificação era nítida, o telhado encontrava-se em estado de risco de desabamento e havia necessidade de retelhamento. Durante a pesquisa parte do telhado estava sendo coberto por uma grande lona.
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Foto à esquerda do vão que abriga a gráfica com parte do telhado coberto com lona. À direita, o quintal observando-se com escada que dá acesso ao galpão na parte superior. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia, Pesquisa PIBIC – 2005.
Imóvel nº 16 Localizado na Rua da Areia no lote 415 da quadra 26 este imóvel representa uma edificação peculiar em termos da ocupação do lote por encontrar-se num lote de esquina, ocupando uma cabeça de quadra. No decorrer dos anos teve diversos tipos de ocupação: residência, pousada, entre outros.
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Destaque do lote 415 da quadra 26 localizado na rua da Areia. Fonte: Acervo
Jovanka
Scocuglia
–
Pesquisa PIBIC, 2005.
Embora tenha sido classificado pelo CPDCH-JP no ano de 1987 como um imóvel de importância histórica e arquitetônica da Rua da Areia, durante a pesquisa, constatou-se que o mesmo encontrava-se abandonado pelo proprietário e em estado total de degradação e ruínas.
Croqui da planta baixa do imóvel 16. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia – Pesquisa PIBIC, 2005.
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Devido ao abandono, o imóvel tornou-se cenário para tráfico de drogas, prostituição e assassinato, tendo sido encontrado no dia 26 de fevereiro de 2005 o corpo de um jovem esfaqueada no local.
Imagem da empena lateral do imóvel nº 16 apresentando apenas as aberturas das esquadrias e total estado de degradação. Acervo Jovanka Scocuglia – Pesquisa PIBIC, 2005.
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Imóvel nº 373 O Imóvel 373 está localizado na Rua da Areia no lote 140 da quadra 27.
Destaque do imóvel 373 localizado na rua da Areia. Acervo Jovanka Scocuglia – Pesquisa PIBIC, 2005.
Possui fachada com platibanda de inspiração eclética e aberturas envoltas por cercaduras retas. Durante a fase de observação de campo, este imóvel encontrava-se fechado. Entretanto, a partir de contatos com responsáveis pelo imóvel, foi possível fazer o levantamento da planta baixa quando identificou-se que as mesma apresenta diversas alterações, com subtração de cômodos visando sua utilização para fins não residenciais.
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Croqui da planta baixa do imóvel 373.
Fonte:
Acervo
Jovanka
Scocuglia, Pesquisa PIBIC – 2005.
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Imóvel nº 155
Destaque do lote 74 localizado na rua da Areia e foto da fachada do imóvel nº 155. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia - Pesquisa PIBIC, 2005.
Localizado na Rua da Areia no lote 74 /setor 14 é um dos poucos sobrados restantes na paisagem da Rua da Areia. Possui implantação sem recuos laterais no lote e sobre o alinhamento da rua remonta ao período colonial, entretanto, conforme demonstram as referências iconográficas, sua construção data de fins do século XIX. A fachada a peculiaridade de
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ser totalmente revestida de azulejos portugueses e possuir platibanda cortada em ameias. Existem apenas dois exemplares de edificações revestidas por azulejos portugueses na cidade de João Pessoa, este sobrado de nº 155 da Rua da Areia e o “Casarão dos Azulejos” ou Sobrado Santos Coelho, na Rua Conselheiro Henrique. O abandono por parte do proprietário do imóvel conduziu a degradação acentuada deste belíssimo imóvel da Rua da Areia. Tal situação foi acentuada com um incêndio (que não se sabe se foi intencional ou acidental) anos anteriores a realização da pesquisa, deixando-o com apenas uma fachada frontal e outra de fundos. As paredes internas foram todas praticamente destruídas. A coberta caiu, sendo possível perceber a inclinação do telhado por meio da empena lateral. A foto interna do imóvel, reproduzida abaixo, registra a destruição das divisórias internas, do piso do pavimento superior (assoalho de madeira). As esquadrias de madeira foram perdidas com o incêndio e o reboco desprendidos das paredes.
Foto da degradação interna do sobrado, restando apenas o plano da fachada frontal e dos fundos da edificação. Fonte: Acervo Jovanka Scocuglia – Pesquisa PIBIC, 2005.
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3 – Degradação patrimonial, segregação e violência: imagens das ruas analisadas no contexto de planejamento e das estratégias de requalificação
O padrão de segregação espacial do tipo centro-periferia (CALDEIRA, 2000) consolidou-se em João Pessoa ao longo das décadas de 1970 e 1980. Este processo foi favorecido pela ação do Estado por intermédio do BNH que financiou a construção de residências de classes médias, sobretudo na parte Leste da cidade, e de grandes conjuntos habitacionais na periferia longínqua, os quais foram ocupados, em grande parte, por moradores de favelas removidas para dar lugar a obras de infraestrutura viária. Também neste período, ocorreu a consolidação da orla litorânea Leste como centro de lazer, processo este iniciado ainda no início dos anos 1950 com a abertura da Avenida Epitácio Pessoa. Em um contexto de segregação social, mesmo a praia, espaço aberto e favorável a sociabilidade entre as classes sociais, acaba configurando-se em território segregado, em função tanto da maior ou menor acessibilidade quanto da ocupação da orla por bares e restaurantes (em parte por “barracas”). Neste mesmo período, verificou-se ainda o deslocamento de parte do comércio e dos serviços localizados no centro para outros bairros, principalmente para o bairro da Torre e outros próximos às grandes artérias de transporte centro/orla. Prejudicado pelo sistema viário formado por ruas estreitas e espaços insuficientes para estacionamento, bem como pela ausência de transporte coletivo de qualidade, o trânsito na área central tornou-se caótico, afugentando consumidores com maior poder aquisitivo. A partir da construção do Shopping Center Manaíra, na década de 1980, cresceu o número de edificações comerciais deste tipo na cidade estendendo-se, posteriormente para a direção Sul (Shopping Sul) e no centro antigo (Shopping Tambiá). Na mesma época, ocorreu um crescimento vertiginoso das favelas e assentamentos periféricos.
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Ressalte-se que a segregação espacial não diz respeito apenas à habitação e equipamentos urbanos correlatos: enquanto as classes médias e altas são os principais freqüentadores dos shoppings centers e do comércio e serviços localizados nas áreas Leste e Sudeste, a presença dos pobres, seja como trabalhador, seja como consumidor é massiva na área central. Atualmente, o centro antigo da cidade de João Pessoa é um espaço deteriorado. Apresenta problemas que caracterizam um quadro de degradação urbana e social. Aos problemas de trânsito somam-se a poluição, a sujeira, ao mobiliário urbano danificado e inadequado, a pavimentação destruída e ao elevado número de mendigos, “meninos de rua” e camelôs, apesar das ações recentes da Prefeitura Municipal na Gestão do Prefeito Ricardo Coutinho que vêm contribuindo para redução destes problemas, em especial, ao normatizar usos em áreas públicas e criar espaços específicos para vendedores ambulantes. A semelhança do que ocorre em outras capitais, como Rio de Janeiro, Recife e Salvador, a área central de João Pessoa conta com conjuntos arquitetônicos de valor histórico tombados pelos órgãos estaduais de patrimônio e pelo IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Os exemplares individuais, remanescentes da arquitetura colonial barroca, da arquitetura militar e religiosa, sobretudo, e da arquitetura eclética do final do século XIX e das primeiras décadas do século XX, foram objeto de inventário, e um número significativo de edificações de caráter monumental encontra-se protegido por tombamento. Enquanto a arquitetura civil (habitações, casas de comércio etc.) juntamente com as praças e a memória de seus habitantes e usuários permanece pouco analisada e a espera de um inventário mais completo, atualizado e detalhado da situação atual no Centro Histórico de João Pessoa. Em 1987 foi realizado um amplo levantamento dos principais monumentos e áreas urbanas do Centro Histórico de João Pessoa, dentro do Projeto de Revitalização/ Convênio Brasil-Espanha, porém não se promoveu uma atualização contínua destes dados, necessária tendo em vista as alterações
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ocorridas nestes espaços desde então e considerando-se a mobilidade de usos e usuários, bem como as novas formas de gestão do patrimônio cultural. Pode-se afirmar a partir das pesquisas empreendidas que a capital paraibana teve sua centralidade praticamente esvaziada, no sentido de que a área de ocupação histórica inicial não mais concentra atividades e equipamentos relevantes para o conjunto da população. Não se trata, aqui, de negar a vitalidade da área, cujas ruas e praças são locais de trabalho, consumo, lazer e circulação para vastos contingentes de pessoas. Os impostos fiscais também são altos nesta área colocando-a como um dos campeões em arrecadação fiscal na cidade. O esvaziamento econômico, porém, evidencia-se na grande quantidade de imóveis fechados e na mobilidade dos pequenos negócios, enquanto que a perda simbólica da centralidade se expressa na mobilidade residencial acentuada dos segmentos de classes médias, que abandonaram esta parte da cidade gradativamente após a década de 1960 em direção aos bairros da orla marítima. Porém o que chamou a atenção mais fortemente durante nossas pesquisas, em especial na Rua Maciel Pinheiro e Rua da Areia, foi a imagem destas ruas e do centro antigo para os moradores e usuários. Uma imagem negativa marcada pela idéia de abandono, degradação, esvaziamento, prostituição e violência. Embora as iniciativas de dinamização cultural realizadas entre 1998 e 2002 venham tendo continuidade, mesmo que com caráter intermitente e com menor intensidade do que nos períodos imediatamente posteriores à requalificação da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves, a imagem de degradação continua nas narrativas e no cotidiano daqueles que vivenciam os espaços e as sociabilidades no bairro do Varadouro. As festas, bares e shows quando atraíram segmentos de classe média e alta nos finais da década de 1990 e primeiros anos do século XXI tiveram um impacto reduzido ou não tiveram impacto no restante do bairro e na imagem do Centro Histórico de João Pessoa ao longo dos anos seguintes.
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Assim, se no final da década de 1990, com as obras de requalificação da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves, numa parceria entre órgãos públicos e a iniciativa privada, houve um intenso processo de transformação do centro antigo e de sua imagem, não foi suficiente para manter uma vida urbana dinâmica seja em termos culturais seja em termos econômicos. Houve, no primeiro momento, houve substituição de moradias de famílias de renda média e baixa, bem como alguns bares freqüentados por intelectuais boêmios deram lugar a usos comerciais e turísticos: bares, casas de show, boates e, em menor escala, equipamentos culturais como antiquários, editoras, ateliês e lojas de artesanato. Nas proximidades da Praça e do Largo reabilitados, o tipo de renovação de usos que ocorreu inicialmente com a multiplicação de bares, restaurantes e casas de show, levou a uma “revitalização diurna” pelas organizações nãogovernamentais e visitas de turistas e de excursões escolares, e pelo menos durante os primeiros anos após a reabilitação destas áreas houve uma “revitalização noturna”, segundo depoimentos de moradores, produtores culturais e freqüentadores daquela área. Sobretudo nas noites em que ocorriam grandes shows em praça pública ou nas casas de shows situadas nas adjacências o trânsito se tornava problemático, gerando conflitos entre os usuários, sobretudo entre os antigos e os novos comerciantes das ruas Maciel Pinheiro, Cardoso Vieira e da Praça Anthenor Navarro. Para os moradores das favelas Porto do Capim e Nassau, localizadas às margens do rio Sanhauá permanecia a rotina de contínua precariedade social e de falta de infraestrutura básica e serviços urbanos. Para estes moradores a requalificação do entorno da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves não os atingiria, restrita às áreas da Praça e do Largo, ao contrário, para eles pairavam e recrudesciam as ameaças de remoção do local, embora também trouxessem algumas possibilidades de obtenção de fontes alternativas de recursos para as famílias ali residentes. Note-se que a Comissão de Revitalização do Centro Histórico de João Pessoa e parte dos novos comerciantes ali instalados fizeram esforços no sentido de estabelecer uma relação positiva com os moradores das favelas, seja dando-lhes preferência para
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trabalharem como guardadores de carro ou vendedores ambulantes durante os shows, seja facilitando-lhes o acesso a atividades culturais, como oficinas de arte e exposições dos museus. Contudo, a persistência de carências básicas evidencia que a transcendência da questão do âmbito de uma política cultural e urbanística localizada e de medidas paliativas. A atuação dos proprietários e gerentes de casas noturnas contribuiu em alguns momentos para privatizar o acesso às ruas e praças supostamente abertas ao público em geral, ocupando calçadas com mesas, cercando-as com cordas ou cavaletes, além de provocarem poluição sonora. Após a fase inicial de maior euforia em torno da dinâmica cultural na Praça e no largo, na falta de um programa de financiamento para a aquisição de imóveis ou de incentivos para a ocupação dos mesmos para usos diversificados, a área sofreu uma perda de dinâmica e o seu caráter de pólo cultural, transformando-se em mais uma iniciativa dos órgãos públicos locais que têm apoio inicial e depois são relegadas, não havendo continuidade das ações públicas e privadas, nem sua inserção em políticas amplas de desenvolvimento urbano. Entretanto, iniciativas de produtores culturais, artistas e intelectuais apoiadas por movimentos da sociedade civil como a ACEHRVO – Associação Centro Histórico Vivo e o Projeto Folia Cidadã representou avanços na negociação de soluções para os problemas acima mencionados. Desde o ano 2000 realizam-se debates e reuniões, nos quais se discute estratégias para a revitalização da área, programa de financiamento para aquisição de imóveis pelos inquilinos que os utilizam para fins culturais (ateliês, galerias, teatros e outros) e urbanização para a favela Porto do Capim e Nassau. Enfrentando, entre outras dificuldades, a falta de interesse dos órgãos públicos e a oposição de interesses comerciais e imobiliários, o movimento refluiu. Adotar medidas visando intervir nas áreas centrais degradadas física e socialmente e possuidoras de atividades produtivas em decadência ou de pouca vitalidade, tende a adquirir um papel cada vez mais importante na gestão urbana das
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cidades e do seu patrimônio cultural, enquanto medidas inerentes à programação de políticas sociais inclusivas. Isto pode vir a se concretizar desde que não se busque tão somente resolver problemas de deterioração e abandono de edifícios de maior ou menor valor arquitetônico, mas persiga uma melhor gestão do espaço urbano disponível e dos recursos urbanísticos existentes, como infraestrutura, rede viária, equipamentos coletivos, cultura etc. Também se aplica quanto à utilização racional de um escasso recurso como é o solo urbano e do estoque habitacional deteriorado ora subtilizado ora transformado em cortiços insalubres. Nesse processo de reabilitação urbana e as referências culturais locais devem também ser consideradas variáveis determinantes para o estabelecimento de iniciativas de reanimação cultural, pois o sítio histórico deve ser compreendido em sua vertente tanto física quanto sociocultural e econômica. Nesse sentido, os estudos e pesquisas sobre a história, a memória e as imagens dessas áreas urbanas devem ser incentivados enquanto fatores importantes para a orientação dos projetos urbanos a serem desenvolvidos, dentro de um processo de reconhecimento e de valorização da memória urbana da cidade. A integração dessas áreas urbanas ao resto da cidade, reconhecendo os seus valores, seja cultural como econômico, é um princípio a ser adotado nesse processo conjugado de recuperação física e de reabilitação sociocultural e econômica dessas áreas. Entendidas não apenas como um conjunto de monumentos, mas como parte de um tecido urbano e social, para além de bens culturais, que deve ser valorizado como bem social e econômico da cidade. Não apenas por sua potencialidade urbanística frente aos investimentos que ao longo da história urbana das cidades foram realizados e que, portanto, devem ser considerados e reaproveitados pelo seu papel funcional urbano, mas também enquanto núcleos que agregam atividades econômicas, sociais e culturais relevantes para as cidades em seu conjunto e, portanto, para o seu desenvolvimento local.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
As reflexões e resultados de pesquisas apresentados neste livro são marcados pelo esforço de entender o caráter estruturado ou ordenado dos cenários e das práticas sociais sem se deter, por um lado, na concepção subjetivista segundo a qual essas práticas e cenários seriam organizadas de forma autônoma, conscientes e deliberadamente pelos sujeitos sociais e, por outro lado, na perspectiva objetivista que as reduziria à execução mecânica de estruturas externas e reificadas. Para alcançar uma forma de compreensão articulada destas perspectivas recorre-se a conceitos e abordagens metodológicas que destacam a dimensão simbólica e cultural na produção e circulação da vida social, sem deixar de entender que estas articulam estruturas sociais e econômicas. Conectam-se estes fundamentos e concepções sociais às análises de diferentes autores e a conceitos que são complementares às referências já indicadas ao longo deste livro como, por exemplo: socialização, sociabilidades, cultura objetiva e cultura subjetiva em Georg Simmel (2000); concepções de espaço social, campo e capital (simbólico, cultural, econômico e social) e de habitus em Pierre Bourdieu (1979, 1983, 2000); as reflexões de Henry Pierre Jeudy (2005) sobre a alteridade, a reflexividade patrimonial, os espelhos da cidade, numa crítica à virtualização das riquezas simbólicas das sociedades e aos processos de patrimonialização, espetacularização e estetização das cidades. Portanto, se as imagens e os cenários são constitutivos da vida social assim como as ideologias com as quais as representamos, podem ser também vistos como práticas empregadas nas estratégias e decisões de planejamento do território por meio de signos, significados e representações que mobilizam um imaginário coletivo/social na produção do espaço. Dessa forma, os efeitos do turismo nos possibilitam uma compreensão da valorização do patrimônio no planejamento
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dos espaços urbanos e uma renovação da concepção de espaço geográfico como portador de representações, de imagens e de narrativas estruturantes. No caso analisado do centro antigo da cidade de João Pessoa, a seleção do patrimônio cultural a ser preservado e requalificado segundo novas funcionalidades, escolhido como uma marca para reinventar a imagem dessa cidade e do seu centro tradicional, exclui a diversidade da memória de outras identidades culturais que não contribuiriam para a construção de uma imagem de beleza e prestígio, entre outros atributos que conferem segundo afirmam os especialistas em marketing turístico e planejamento urbano, positividade à imagem da cidade. No caso da Praça Anthenor Navarro e do Largo de São Frei Pedro Gonçalves houve uma estetização dos traços arquitetônicos e culturais, dos bens ou artefatos a serem revalorizados na formação de cenários para o turismo, palcos para a teatralização e a realização de shows, festas populares e ritualização de aspectos da tradição local. Este tipo de reabilitação volta-se para a valorização estética das paisagens e da cultura com intenção de atrair capital, prestígio e competitividade para a cidade, levando em consideração a dinamização do turismo e a inserção do patrimônio histórico e arquitetônico como estratégias importantes na produção de espaços, de cenários e na valorização de imagens homogêneas. Essa homogeneização das imagens se constitui em detrimento das identidades culturais variadas que convivem nos espaços públicos urbanos. Os espaços públicos constituídos desta forma reduzem as narrativas e eliminam as diversidades de símbolos e significados culturais existentes nas cidades e que fazem a riqueza da vida urbana. Os efeitos das intervenções em centros antigos que se estruturam segundo uma perspectiva de construção de cenários homogêneos e de redução das narrativas para a promoção de um marketing turístico e da patrimonialização tendem a manipulação de suas formas e usos conduzindo a expulsão da maioria dos moradores. A perspectiva de incorporação da idéia de conservar uma parte da população residente é muito recente nos programas de recuperação do patrimônio cultural e,
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sobretudo, nos casos estudados no Brasil, indicando um caminho a ser percorrido e discutido, embora as expectativas e as pesquisas realizadas até o momento indiquem muito mais no sentido da patrimonialização gerar o efeito oposto, ou seja, a gentrification a despeito da população mais antiga. Assim, os efeitos da segregação social e espacial parecem acompanhar a revalorização patrimonial em bairros de centros históricos acentuada pela redução narrativa das políticas de imagem desenvolvidas pelos poderes públicos, sem uma compensação que poderia ser desenvolvida dentro de um projeto de planejamento que agisse respeitando a diversidade e os múltiplos usos sociais que caracterizam o meio urbano. A partir deste exemplo de uma cidade de Porte Médio do Nordeste brasileiro podemos inferir que a patrimonialização de centros históricos deve se inscrever numa abordagem de planejamento urbano mais abrangente e integrada. A promoção de imagens voltadas para o turismo, homogeneizadas e não diversificadas reduzem as possibilidades de participação e apropriação pela população, não apenas moradora, mas também de turistas, impedindo as manifestações identitárias e os cenários múltiplos. As possibilidades de interpretações do patrimônio se empobrecem e as próprias concepções de cidade e de urbanidade se enfraquecem. As construções de narrativas dos usuários e habitantes, bem como a dinâmica social, devem ser privilegiadas enquanto cenários possíveis da cidade Atentos às novas práticas culturais e dinâmicas de moradia e uso dos antigos bairros centrais alvos de políticas de requalificação urbana, os esforços de pesquisa e de reflexão continuam no sentido de ampliar os debates relativos às formas de participação dos agentes, às ações e políticas mais recentes desenvolvidas pelas municipalidades brasileiras voltadas para moradia em centros urbanos; para os usos/revalorização dos espaços públicos; para as formas de resistência dos setores populares à reapropriação dos centros pelas camadas médias e elites; aos processos de patrimonialização e
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estetização das paisagens; para os modos de representação e recursos de promoção da cidade em contextos de requalificação urbana.
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