Revista laboratorial A Ponte nº 17

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UNIFOR Universidade de Fortaleza Comunicação Social

Jornalismo

Revista do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza N° 17 - ANO VII Semestre 2011.2 Agosto/Setembro 2011

Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz CEP 60.811-905 - Fortaleza-CE, Brasil Fone 55 (85) 3477.3105 equipelabjor@gmail.com

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Ex-namorados se reencontram três décadas depois

04

UNIDAS POR UM IDEAL Três irmãs lembram da luta contra a ditadura militar

DIREÇÕES

FOTOS: MAHAMED PRATA

D

OLHARES CRUZADOS

A

PÉ NA ESTRADA

12

18

Mochileiras contam suas andanças pelo mundo em busca de aventuras

RUMOS INTERROMPIDOS História de três jovens cujos destinos mudaram abruptamente

38

CAPA

ACASOS

SINAIS VERMELHOS A mudança de vida de dois homens soropositivos

EU NASCI DE NOVO Jovem médica relata seu recomeço, após grave acidente de carro

CARTAS

EDITORIAL

ENSAIO

ENTREVISTA

>>> P.2

>>> P.26

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46 60

>>> P.3

>>> P.68

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2 Outubro 2012

CARTAS

Revista do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza N° 16 - ANO VII Semestre 2011.1 Agosto/Setembro 2011

EXPEDIENTE

EDIÇÃO N° 17 >>> EDIÇÃO ANTERIOR

REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA

N° 16

UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS DIRETORA DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS: Erotilde Honório COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Wagner Borges

Prende a atenção

COODENADORA DO NÚCLEO INTEGRADO DE COMUNICAÇÃO (NIC) :

Alessandra Oliveira Araújo

Adorei essa ultima edição da revista A Ponte. Textos maravilhosos e

CONSELHO EDITORIAL: Erotilde Honório, Wagner Borges e Alejandro

bem escritos, fotos lindas e o melhor de tudo, um ótimo conteúdo. As

Sepúlveda

matérias são interessantes e prenderam tanto minha atenção, que o

COORDENAÇÃO EDITORIAL E DE PRODUÇÃO: Alejandro Sepúlveda

tempo passou e não percebi. Parabéns aos bons jornalistas que fazem

GERENTE DO LABORATÓRIO DE JORNALISMO: Joana Darc Dutra

essa revista existir.

SUPERVISÃO DE PRODUÇÃO GRÁFICA: Eduardo Nunes Freire

Patricia Karen Linharesa

SUPORTE TÉCNICO: Aldeci Tomaz

Estudante de Jornalismo/Unifor

SUPERVISÃO DE FOTOGRAFIA: Júlio Alcântara e Jari Vieira COORDENAÇÃO E ORIENTAÇÃO DA AGÊNCIA DE PUBLICIDADE - NIC :

Alberto Dias Gadanha Junior PROJETO GRÁFICO: Felipe Goes

Presente

DIAGRAMAÇÃO E TRATAMENTO DE IMAGENS: Fernanda Carneiro EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA: Marina Duarte

Sem dúvidas, essa edição foi feita com muito carinho. É tão

REVISÃO: Antônio Celiomar Pinto de Lima

delicada que parece um presente. O tema vai fundo até nas

SECRETÁRIO DO LABORATÓRIO DE JORNALISMO: Luiz Bastos Sales Neto

coisas invisíveis que existem dentro da gente.

SUPERVISOR DA GRÁFICA: Francisco Roberto

Camila Távora

IMPRESSÃO: Gráfica da UNIFOR

Estudante de Jornalismo/Unifor

ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - UNIFOR EDITORES ASSISTENTES: Marília Pedroza e Giselle Nuaz CAPA E FOTO DA CAPA: Mahamed Prata

Visões

LOGOTIPO: Vicente Valdevino Leite Neto FOTOGRAFIAS DAS REPORTAGENS: Ana Lívia Monteiro Gomes, Helena

O que mais chamou-me a atenção na última edição d’A Ponte,

Tofeti Nogueira, Júlia Norões, João Paulo de Freitas, Marina Solon,

foi a variedade de visões e discussões sobre um mesmo tema:

Melina Menezes, Maíra Braga Pontes Cordeiro e Thalyta Martins

“Invisíveis”. Ampliar horizontes para não envelhecer as ideias. Ler

REDAÇÃO: Ana Lívia Monteiro Gomes, Camila Lopes Cavalcante, Camila

sobre essa temática me abriu possibilidades e isso é incrível.

Silveira, Géssica Pereira Saraiva, Helena Tofeti Nogueira, João Paulo de Freitas, Júlia Norões, Luana Benício, Marina Solon, Melina Menezes,

Antonio Tiago de Lima Batista

Maíra Braga Pontes Cordeiro e Manoela Cavalcanti

Estudante de Jornalismo/Unifor

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3 Outubro 2012

EDITORIAL

Bicampeã

O Devir

Caro leitor(a),

V

ocê tem em mãos uma revista premiada! A Ponte é bicampiã nacional. No último dia 7 de Setembro (Dia da Independência do Brasil) ganhou o prêmio de Melhor Revista Laboratorial Impressa do Brasil, conquistado na XIX Expocom 2012, durante o XXXV Congresso Brasileiro de Ciênas da Comunicação, realizado pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Em 2010, no Intercom Nacional, realizado em Caxias do Sul (RS), a revista com o tema “Memória” também foi premiada. A edição vencedora deste ano, que tinha como tema “Invisíveis”, estreiou uma nova logomarca e trazia um selo comemorativo dos 10 anos de criação do Curso de Jornalismo da Unifor. A revista já havia sido premiada em junho na Expocom Regional, que aconteceu em Recife (PE), assim se tornando a melhor do Nordeste. Esta edição é a primeira a ser impressa com um novo projeto gráfico, adaptado de uma proposta formulada por Felipe Goes, em 2009, quando era bolsista do Labjor. “O que este novo projeto traz de mais marcante é uma maior visibilidade, valorização do espaço branco e modelos que agilizam a produção”, diz Eduardo Freire, designer gráfico e professor da Unifor. Nós, alunos que fazemos parte desta revista e da sua história, estamos felizes com o nosso trabalho e com o reconhecimento que veio por parte da Intercom. O Congresso Nacional do próximo ano acontece em Manaus, capital do Amazonas. Rumo ao tri!

Giselle Nuaz Estudante bolsista do Laboratório de Jornalismo/NIC

A

Ponte No. 17 aborda um tema curioso: os rumos inesperados que a vida pode tomar. Como o destino é um roteiro desconhecido, ao acaso, por mais que procuremos controlá-lo, nunca saberemos ao certo o que nos espera no dia de amanhã. Podemos, quanto muito, intuir, mas o devir é um dos grandes mistérios insondáveis da vida. Nesta edição, contamos as histórias de pessoas que, em algum momento de suas vidas, foram arrastadas pelo destino para outros rumos. Como aconteceu com a jovem fisioterapeuta Ticiana, que teve a sua vida totalmente mudada depois de sofrer um grave acidente de carro, em uma manhã de domingo. Ou como aconteceu com Renê e Carlinhos, quando descobriram que eram soropositivos. Ou ainda as histórias de Anna Luiza, que enfrentou uma gravidez inesperada; de Danielle, que lutou contra o câncer; ou de Vlademir, que cometeu um crime para pagar uma dívida com traficantes de drogas. O engajamento na luta contra a ditadura militar também mudou os rumos das vidas das irmãs Serra Azul, militantes de esquerda, e de Pádua Barroso, advogado que arriscou a vida para defender presos políticos. Já os rumos de Luzia e Daniel se entrecruzaram por outras vias. Eles se conheceram e namoraram nos EUA, em 1976, quando ela fez intercâmbio cultural para estudar inglês. Depois, cada um seguiu o seu caminho. Passadas três décadas, eles se reencontraram no Facebook, voltaram a namorar e hoje estão casados. Também a revista conta as aventuras vividas pela francesa Martine, nos anos 1970, quando viajou de mochila nas costas pelo Brasil; e de Mayra, que encarnou o mesmo espírito aventureiro pelas estradas da Europa, em 2010. Todas essas histórias nos fazem lembrar da famosa frase do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.

Alejandro Sepúlveda Coordenação da revista A Ponte Professor do Curso de Jornalismo da Unifor

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4 Outubro 2012

D

DIREÇÕES

Alianças de Noivado contendo as inscrições: Luzia: Always and Forever e Daniel: Forever and Always

Olhares cruzados TEXTO

Camila Lopes Cavalcante e Géssica Pereira Saraiva

FOTOS

Arquivo pessoal

O texto que leva esse título é uma história de amor escrito na forma de um “romance-reportagem”. Luzia e Daniel se conheceram muito jovens nos Estados Unidos, namoraram, passaram momentos inesquecíveis juntos, mas o destino acabou por separálos. Depois de mais de três décadas sem notícias um do outro, os dois se reencontraram no Facebook em um momento difícil para Daniel, e descobriram que ainda estavam apaixonados

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5 Outubro 2012

L

uzia Antunes não devia ter mais do que 14 anos quando seu pai lhe comprou um rádio-gravador. Ela passava

horas de seu dia ouvindo músicas e cantarolando letras em inglês, embora não dominasse a língua. Talvez tenha sido esse o motivo que a levou a se matricular em um curso de inglês na cidade em que morava, Teresina, capital do Piauí. De família classe média, estudava em boas escolas e tinha o apoio de seus pais para realizar seus pequenos caprichos e fazer alguns gastos extras, como com seus discos. Na época, o único que a magoava eram as indiscrições do seu pai. Ele possuía uma outra família, fato que aborrecia profundamente a sua mãe, por quem Luzia fazia de tudo para protegê-la, pois sabia de sua constituição frágil. Desde muito cedo, ela tomou para si a responsabilidade de cuidar desse e de outros assuntos desagradáveis com seu pai, o que a fez amadurecer mais cedo. Foi por isso que, quando surgiu a chance de se afastar dessa confusão emocional, ela a agarrou imediatamente. Luzia já cursava inglês havia um ano quando, um dia, um amigo do colégio comentou com ela sobre os programas de intercâmbio nos Estados Unidos. Luzia se empolgou, mas guardou a animação para si, pois sabia que seus pais não concordariam. Prestou os testes necessários de pré-seleção para o intercâmbio sem o conhecimento da família e, somente depois de aprovada, ela se preparou para conversar com a mãe. Sabia do apego que a mãe tinha por ela e que não a deixaria ir fácil, mas também sabia que o seu pai apostava no apego entre as duas como garantia para que ela não deixasse Teresina. Porém, depois de desenvolver uma verdadeira estratégia emocional para convencer a mãe, e assim deixar o pai sem argumentos contra a viagem, finalmente Luzia conseguiu a autorização de ambos. Passo seguinte, começou a preparar a papelada da viagem. Passaria 6 meses

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6 Outubro 2012

D 1

FICHA

nos Estados Unidos morando na casa de uma família tipicamente americana.

RUMO A UMA NOVA VIDA Em 14 de janeiro de 1976, Luzia embarcou em um voo fretado exclusivamente para levar os estudantes brasileiros inscritos no programa. Ao chegar nos Estados Unidos, no dia seguinte, os jovens do programa foram sepaCOLÉGIO

rados, cada um seguindo para a cidade de

Central Catholic

sua escolha. Luzia foi para Toledo, em Ohio,

High School - CCHS

onde moraria com a família constituída por Sr. Warren Layman, Sra. Henrietta e os qua-

FUNDAÇÃO

tro filhos, Patricia, Ronald, Charles e Lorrie.

1920

No início, não foi fácil se adaptar. Além do idioma, o que mais a incomodava era o frio,

LOCAL

embora estivesse ansiosa para ver neve.

Toledo, OHIO,

Uma semana depois da sua chegada, Luzia

United States

foi para o Central Catholic High School, uma escola particular onde foi bem recebida pelos alunos e professores. Ela passou a cumprir a grade de matérias oferecida como podia, algumas disciplinas opcionais como a chamada Ciências Físicas. No primeiro dia de aula dessa matéria, uma das freiras do colégio levou Luzia para se

2

apresentar ao professor, Sr. Momenee, e aos seus colegas. Enquanto a freira e o professor faziam as devidas apresentações, o olhar de Luzia se deteve em um rapaz que estava sentando na última fileira. Era Daniel Kent Skellie, ou simplesmente Dan, um jovem com olhos de um intenso azul, belos e inesquecíveis. Ele também olhou atentamente para os grandes olhos castanhos da bela jovem. Esses olhares cruzados perturbaram a ambos. O pretexto para a aproximação entre os dois veio das dificuldades de Luzia com o idioma e as matérias. Encantado com a jovem bra-

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1. Daniel no campo

sileira, Daniel logo se ofereceu para ajudá-la.

do Central Catholic

Muito prestativo e educado, no início Luzia ti-

High School

nha dúvidas se ele estava mesmo interessado

2. Luzia e Daniel no

nela, pois não conseguia decifrar os sentimen-

dia em que ficaram

tos do rapaz. Ele queria ser somente seu amigo

noivos no corredor

ou estava apenas esperando a ocasião certa

do colégio

para chamá-la para saírem? Era um mistério.

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7 Outubro 2012

O FLORESCER DE UM ROMANCE

mais importante, privacidade. A noite passou

“A Noviça Rebelde” seria encenada na escola

Na ocasião, Luzia tinha 16 anos e Daniel,

rápida. Quando Dan precisou ir embora, Luzia

e vários alunos estavam envolvidos nos pre-

18. Ela nunca tinha namorado, nem mesmo

o acompanhou até o carro. Foi nesse momen-

parativos, inclusive Dan. Os arranjos estavam

beijado alguém. Mas, antes do encontro, a

to, em baixo de um poste de luz, como em

sendo feitos no ginásio, e ele era responsável

sua mãe americana deu-lhe algumas reco-

um filme antigo, que eles se beijaram pela

pelo som. Luzia, de longe, na arquibancada,

mendações sobre o comportamento dos

primeira vez. Após o beijo, veio a confirmação

observava atenciosamente a movimentação

jovens americanos em um primeiro encon-

do namoro.

dos alunos. De repente, ouviu: “Araujo, Luzia”.

tro, alertando-a para um possível primeiro

Apaixonados, aproveitavam qualquer tem-

Era Dan que, sorrindo para ela, fazia o teste de

beijo. Foi uma conversa que ela sempre re-

po livre para ficarem juntos. Daniel mostrava

som chamando seu nome pelos alto-falantes.

cordaria com carinho.

a Luzia todos os seus lugares favoritos na ci-

Em abril, uma peça baseada no musical

Um pouco envergonhada, ela correu para perto

Quando Dan chegou na casa dos Layman

dade e tentava se manter criativo nos inúme-

da mesa e os dois conversaram por um tempo.

apresentou-se formalmente e desceu com Luzia

ros encontros que marcavam. Eles saiam para

Mais tarde, Luzia receberia um bilhete de Daniel

e Lorrie ao porão, local onde havia uma espécie

jogar boliche, andar de patins e se divertir no

convidando-a para um primeiro encontro.

de sala de jogos e um aparelho de som. E, o

mini-golf, em um lugar chamado Putt-Putt. Dan dividia seu tempo entre seus estudos,

Daniel e Luzia, no

seu trabalho no Farrell’s Ice Cream Parlour

Blendon Woods

Restaurant e seus encontros com Luzia.

Metropolitan Park

Quando a gente ama alguém, tem medo de que aquela pessoa seja magoada

Luzia

“Certa vez, a escola onde a gente estudava organizou um passeio com alguns alunos para o Cedar Point, um dos parques mais importantes da região, e o Dan tentou ter autorização da escola para eu ir ao parque de carro com ele, ao invés de ter que pegar o ônibus com todo mundo. Ele não conseguiu e fomos separados mesmo, ele de carro, e eu de ônibus. Quer dizer, quase separados, porque o Daniel foi o caminho inteiro ou atrás ou do lado do ônibus, acelerando e freando. E passamos o caminho todo dando tchau um pro outro, e mandando beijos e sorrindo,” lembra hoje Luzia. Apesar do apego que sentia por Dan, Luzia tinha plena consciência que em breve precisaria retornar ao Brasil e Daniel ficaria para trás, em Toledo. Os dois evitavam falar sobre o as-

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sunto. Mas também evitavam falar sobre suas famílias. Daniel tinha vergonha do pai alcoólatra e da casa humilde em que vivia com seus oito irmãos. Luzia jamais comentara sobre as indiscrições de seu pai, que atormentavam a sua mãe. Ele nada sabia sobre a família brasileira de sua namorada e ela jamais foi convidada para conhecer a casa do namorado. Mas, mesmo sabendo que ela um dia precisaria partir, por duas vezes Daniel a pediu em casamento. Luzia sempre foi a mais realista dos dois e, por mais romântico que fossem os dias que estavam vivendo, sabia que não tinha futuro. De coração apertado, recusou os dois pedidos. Ela queria dizer sim, queria casar com ele, mas sabia que o pai dela não concordaria. “Quando a gente ama alguém, tem medo de que aquela pessoa seja magoada, e como eu tinha problemas em casa com

Luzia e Daniel,

meu pai, eu tinha muito medo que ele des-

no Scotty’s Bar

tratasse Daniel. Então preferi acabar com

& Grille

qualquer possibilidade de um encontro entre os dois”, lembra ela. Mas, mesmo antes de ela ter que partir, Dan recebeu um convite do gerente do restaurante onde trabalhava para ir morar em

DE VOLTA PARA CASA

Columbus, capital de Ohio. Era uma boa

O dia que Luzia tanto temia acabou chegan-

oportunidade de emprego que ele demo-

do. Era hora de fazer as malas e deixar Daniel

rou para aceitar, mas que, afinal, aceitou

para sempre.

pensando no seu futuro, o que o distancia-

“Eu não estava lá quando ela partiu. Não

ria mais cedo de Luzia. Embora Columbus

tivemos um adeus. Eu já estava em Columbus,

ficasse a duas horas de carro, o namoro fi-

começando uma vida nova e bem sucedida.

cou reduzido a troca de cartas e algumas

Escrevi cartas para ela, mas ela parou de res-

conversas telefônicas.

ponder”, lamenta hoje Dan. Ao retornar, Luzia

Eu não estava lá quando ela partiu. Não tivemos um adeus

Daniel

“Certa vez, já depois da mudança de

tentou esquecer Daniel para poder lidar com

mada Louise, em 1981. Ela tinha quatro filhos

Daniel para Columbus, ele ligou e disse

os problemas familiares e se concentrar nos

de um casamento anterior e tentou engravidar

que tinha uma encomenda para mim e

estudos, pois não queria depender de um ma-

novamente, mas seu corpo não deixava os be-

que ela seria uma ‘Special Delivery’. Pou-

rido para nada na vida.

bês sobreviverem.

co tempo depois, ele apareceu em frente

Aos 26 anos de idade, já formada e traba-

Os anos se passaram e, volta e meia, Luzia

à minha porta com uma carta na mão. Foi

lhando, Luzia casou-se e teve dois filhos. Mas a

pensava em Dan e se perguntava como teria

nesse dia que eu aprendi o que a palavra

relação não deu certo e acabou separando-se.

sido a sua vida se ela tivesse respondido “sim”

‘delivery’ queria dizer. Nunca vou esque-

Por sua parte, nos Estados Unidos, sem jamais

às suas propostas de casamento. Em algumas

cer”, recorda Luzia. Foi a última vez que

ter tido notícias de Luzia depois de sua partida,

ocasiões, ela tentou entrar em contato com ele,

os dois se viram.

Dan também casou-se com uma mulher cha-

mas não teve sucesso. Inclusive enviou uma

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carta para o endereço antigo que tinha da épo-

recursos do Facebook para localizar Dan? Logo

não tinha certeza absoluta de que o homem

ca do namoro, mas a carta voltou. Em 2005, se

que encerrou a conversa com a amiga, digitou

que aparecia no Facebook fosse mesmo o

cadastrou em um site de procura por antigos

o nome dele completo, Daniel Kent Skellie, mas

seu namorado americano dos tempos de

colegas de colegial, mas também não obteve

não obteve sucesso. Nova tentativa: digitou so-

colegial e, mesmo que fosse ele, pensava,

resultado. Decidiu, então, que deveria esquecer

mente o sobrenome, Skellie. Apareceram mais

poderia estar muito bem casado e com famí-

e seguir em frente.

de mil resultados. impossível achá-lo no meio

lia. Para sair da dúvida, resolveu mandar-lhe

de tanta gente. Por fim, tentou Dan Skellie.

uma mensagem. Com o coração batendo for-

TECNOLOGIA A FAVOR DO AMOR

“Para minha surpresa, apareceu uma pes-

te, foi se ocupar de arrumar a mala e ajeitar a cozinha que estava desarrumada.

Em 2010, Luzia começou a se familiarizar com

soa muito parecida com ele, lindo e charmoso,

o Facebook por causa dos contatos que manti-

com os cabelos agora grisalhos e com aqueles

“Em 2010, eu recebi uma mensagem no

nha via Internet com uma amiga portuguesa.

olhos que eu nunca esqueci. Eu pensei comi-

Facebook de Luzia, dizendo que ela tinha estu-

Um dia de junho, ela estava arrumando as ma-

go: ‘Meu Deus, é ele!’”, lembra Luzia.

dado com um cara que tinha o meu nome no co-

las para uma viagem que faria a Florianópolis,

Ela ficou imensamente feliz, mas ao mes-

legial e ela pensava que eu poderia ser ele. Eu

enquanto conversava com sua amiga lusitana,

mo tempo começou a fazer um esforço da-

já estava em depressão, e minhas energia e for-

quando de súbito teve uma ideia. E se usasse os

nado para se manter calma, afinal ela ainda

ça já tinham quase se esvaído completamente devido à constante preocupação e raiva porque ela estava morrendo e eu não podia fazer mais nada, e dos dias exaustivos de cuidados que eu dedicava a minha esposa. Eu estava quase dormente em minhas emoções, mas a visão do meu amor perdido há tanto tempo encheu meu coração de calor”, recorda Daniel. Um ano antes, Louise, a esposa de Daniel, descobriu que estava com câncer e o prognóstico atual não era nada bom. Uma longa e incansável luta vinha sendo travada, e Daniel ficou ao lado de Louise durante todo o tratamento, se exaurindo emocionalmente. Minutos depois, quando já havia arrumado a cozinha, Luzia resolveu dar uma checada no computador. Levou um susto quando viu que a sua mensagem já havia sido respondida. Não podia acreditar, a imagem no Face era mesmo a de Dan. Então começaram a conversar, ansiosos para saber o que tinha acontecido nas vidas deles durante os anos em que ficaram separados. Passaram a madrugada trocando men-

Casamento no Brasil, após ficarem noivos nos Estados Unidos

sagens, enquanto a mala de Luzia continuava aberta em cima da cama. Daniel contou para Luzia que estava teclando de um hospital, onde a sua esposa se encontrava já em estado terminal. Eu pensei: “o nome dela é Louise, um pouco parecido com o meu”. “Ele estava no hospital ao lado de Louise, e eu fiquei pensando na vida. Por que o encontrei

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justo naquele momento? Talvez a minha missão fosse essa, confortá-lo em um momento tão difícil. Eu não lutei por nós dois quando devia, desisti fácil, fugi, não respondi as cartas que ele mandou para o Brasil. Talvez agora seja o momento em que podia reparar o modo como o tratei no passado”, pensou Luzia.

CHEGADAS E PARTIDAS Era uma sexta-feira, dia 10 de junho de 2010, quando Luzia, já em Florianópolis, recebeu, com pesar, a notícia de que Louise havia falecido. Naquele momento, pensou em como Daniel estaria sofrendo depois de perder a esposa que esteve ao seu lado por quase 30 anos. Consciente da situação de Daniel, Luzia silenciou seu amor e se tornou a amiga que ele tanto precisava naquele difícil momento.

Finalmente, depois de todo esse tempo, o primeiro beijo como marido e mulher

Nós nunca pensamos que teríamos a chance de nos encontrar novamente, mas, quanto mais a gente conversava, mais aumentava o nosso desejo de estarmos de novo um com o outro

Daniel

acontecendo. O amor que ela sentia por Daniel

de três décadas, na aula de Ciências Físicas.

estava guardado em respeito ao difícil momen-

Antes mesmo de Daniel sair do saguão de

to que ele estava vivendo. Mas o tempo passou

desembarque, entre as grades que separam

e a amizade entre os dois foi se fortalecendo.

os passageiros das pessoas que aguardam,

Logo sentiram a necessidade de se encontrar

os dois se beijaram. Até esse instante, ela

pessoalmente. Era chegada a hora de retomar

estava sentindo mil coisas ao mesmo tem-

o que ficara parado havia 35 anos.

po. Sentia-se nervosa, ansiosa, excitada, fe-

“Nós nunca pensamos que teríamos a

liz e receosa. Tinha esperado muito por esse

chance de nos encontrar novamente, mas,

dia. E se não desse certo? Mas agora não

“Durante o período do funeral e dos dias que

quanto mais a gente conversava, mais aumen-

havia mais o que temer, Daniel estava em

se seguiram, quando eu precisei de força para

tava o nosso desejo de estarmos de novo um

seus braços novamente e ela estava exul-

lidar com todos os detalhes e complicações, e

com o outro. E nós sabíamos que nos amáva-

tando de felicidade.

para manter minha vida em ordem, Luzia me

mos agora bem mais do que quando éramos

Em outubro de 2011, Luzia e Dan fizeram

deu essa força. Ela me deu conforto e espe-

jovens. Nós precisávamos estar juntos. Nós

uma rápida viagem a Toledo, Ohio, e visitaram,

rança de que tudo ficaria bem de novo algum

planejamos por meses e fizemos com que se

além de alguns lugares onde haviam passado

dia. Eu tenho muitos amigos e todos me deram

tornasse realidade,” conta Daniel.

momentos inesquecíveis, a Central Catholic

apoio, mas ter a Luzia para conversar foi a ân-

Um dia de fevereiro de 2011 Luzia foi para

High School, a escola onde se conheceram e

cora que me fez acreditar que eu ficaria bem”,

o Aeroporto Pinto Martins esperar por ele. As-

se apaixonaram na juventude. Enquanto pas-

recorda Daniel.

sim que Dan passou pelo portão de desem-

seavam por um dos corredores da escola, Dan

Eles passaram a trocar mensagens e a se

barque, os olhares dos dois se cruzaram da

aproveitou a ocasião para pedir Luzia em casa-

falar constantemente. Luzia sabia o que estava

mesma forma como havia ocorrido há mais

mento pela terceira e última vez.

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12 Outubro 2012

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DIREÇÕES

Unidas por um ideal TEXTO E FOTOS

Ana Lívia Monteiro Gomes e Júlia Norões

As irmãs Helena, Maria do Carmo e Iracema Serra Azul cresceram em uma casa em que o pai era apaixonado pela Revolução Francesa, o avô era poeta, as estantes viviam cheias de livros e a leitura era uma prática constante. Elas cresceram ouvindo as discussões políticas na hora do almoço, aprendendo os valores cristãos e o sentimento de solidariedade entre as pessoas. Quando os militares tomaram o poder em 31 de março de 1964, as irmãs Serra Azul engajaram-se na luta contra a opressão e em defesa da liberdade, conscientes dos riscos que corriam

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13 Fevereiro Outubro 2010 2012

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uando veio o golpe militar, apenas Helena já tinha idade suficiente para entender o que estava acontecen-

do, embora as três participassem de encontros políticos promovidos pela Juventude Estudantil Católica (JEC), um dos movimentos políticos da ala progressista da Igreja. Elas iam com a irmã, que então tinha 15 anos, apenas para fazer-lhe companhia, mas, com o tempo, Maria do Carmo e Iracema também entraram para a luta política. Em 1966, Helena cursou o terceiro científico no Colégio Castelo, onde aprendeu muito sobre a ditadura, pois muitos dos seus professores eram militantes políticos, além do contato que mantinha com estudantes mais velhos, que faziam cursinho. Um ano depois, Helena entrou na Faculdade de Medicina e suas irmãs ingressaram no Centro dos Estudantes Secundaristas (CESC), do qual Maria do Carmo chegaria a ser diretora. Quando o regime militar entrou na sua fase mais escura com a implantação do AI-5, em 1968, Maria do Carmo e Iracema decidiram mudar-se do Colégio Imaculada Conceição para uma instituição pública onde pudessem militar com mais liberdade. Foram para o Colégio Estadual Justiniano de Serpa e, lá, envolveram-se nos protestos, primeiro contra o acordo MEC-USAID (programa entre o Ministério da Educação e a agência norte-americana United States Agency for International Development para realizar uma reforma no ensino brasileiro, que visava, entre outras medidas, privatizar escolas públicas e tornar obrigatório o ensino da língua inglesa) e depois contra a proposta do governo de pagamentos de taxas nas universidades públicas. Também participavam intensamente fazendo panfletagens pelas ruas e pichando os muros da cidade com frases de ordem, além das realizações de pedágios para arrecadar fundos e passeatas-relâmpago. Foi nesse mesmo ano convulsionado que Helena se casou com Francisco Monteiro,

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14 Outubro 2012

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Juventude Estudantil Católica

1. No calor das lutas políticas, Iracema conheceu Fonseca, com quem se casou aos 16 anos 2. Maria do Carmo diz que elas escolheram lutar

No começo dos anos 1960, o Concilho

por aquilo que

Vaticano II engendrou uma cisão política

acreditavam

da Igreja no Brasil. De um lado, um segmento mais à esquerda, liderada por Dom Hélder Câmara, e, outra à direita, ligada a Dom Jaime de Barros Câmara e Dom Vicente Scherer. A Ação Católica era constituída na época de cinco organizações destinadas aos mais jovens: a Juventude Agrária Católica (JAC), que reunia os jovens do campo;

2

a Juventude Estudantil Católica (JEC), que agrupava os jovens estudantes secundaristas; a Juventude Operária Católica (JOC), que agia no meio operário; a Juventude Universitária Católica (JUC), formada por estudantes do ensino superior; e a Juventude Independente Católica (JIC), organizada por jovens que não pertenciam às outras agremiações. A participação do movimento dos estudantes nas questões dos principais problemas nacionais, como a reforma agrária, acabou por dar origem a uma organização política desvinculada da Igreja e que ficou conhecida com a sigla AP (Ação Popular), constituída por antigos militantes da JUC.

conhecido como Chico Passeata (médico sa-

tentativa de evitar que a família e os amigos

No calor das lutas e manifestações políti-

nitarista, poeta e militante de esquerda fa-

corressem perigo por abrigá-los. Helena e

cas dos estudantes secundaristas e universi-

lecido em agosto de 2011 vítima de câncer).

Francisco trabalhavam como camponeses tan-

tários, Iracema conheceu Fonseca, por quem

Os dois ficaram conhecidos do aparelho de

to para fugir da repressão quanto para levar os

se apaixonou e se casou aos 16 anos. Na mes-

repressão do regime, o que os obrigava a

ideais revolucionários aos moradores do cam-

ma época, a prisão da sua cunhada foi decre-

mudar constantemente de endereço. Em

po. Eles moraram na casa de trabalhadores

tada após ela ter discutido com o Ministro da

1969, decidiram ir para o Recife, em uma

rurais e aprenderam a trabalhar nos canaviais.

Educação, o então coronel Jarbas Passarinho.

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15 Outubro 2012

A prisão de Fonseca também foi decretada.

Ditadura Militar no Brasil

Por esse motivo, eles também tiveram que

FOTO: INTERNET

sair de Fortaleza. Helena acabou sendo presa junto com o marido quando saiam do campo para visitar amigos no Recife. Ela tinha 20 anos e estava grávida. O marido temeu o pior e avisou aos policiais da situação da mulher, mas de nada adiantou: ambos foram torturados. Algum tempo depois, no dia do seu aniversário, Helena foi transferida para o Presídio Feminino Bom Pastor, onde foi bem tratada pelas freiras e o ambiente era limpo e bem cuidado. Lá, Helena teve seu primeiro filho. Ela e o marido foram julgados e condenados a cinco anos de prisão pelos crimes de panfletagens e pichações. Apenas metade da pena foi cumprida e, em 1971, os dois puderam voltar para Fortaleza. Já Iracema e o marido, após partirem de Fortaleza, trabalharam como operários no Recife, da mesma forma que a irmã e o cunhado. Quando Iracema já tinha dois filhos, também acabou sendo presa junto com as crianças. Eles passaram 40 dias presos e foram soltos graças aos esforços da advogada Mércia Albuquerque. Apenas Fonseca con-

Ela começou com um golpe de Estado, na

5 (AI5), em 1968, que dava amplos poderes

tinuou preso por causa de uns processos que

noite do dia 31 de março de 1964, quando o

ao presidente Arthur da Costa e Silva para

já tinha antes. Assim eles tiveram que espe-

presidente João Goulart foi afastado do

fechar o Congresso Nacional, cassar o

rar terminar sua pena para voltar a Fortaleza.

poder. Ranieri Mazzilli, presidente da

mandato de políticos, suspender por dez

Em 1972 foi a vez de Maria do Carmo.

Câmara dos Deputados, assumiu

anos os direitos políticos de qualquer

Ela foi delatada por um colega, mas con-

provisoriamente, sendo depois substituído

cidadão, intervir em Estados e municípios

seguiu fugir. Porém, quando soube que a

pelo Marechal Castelo Branco. O golpe,

ou suspender o direito de habeas corpus

sua irmã Helena havia sido presa pela se-

segundo os militares, foi uma ação para

para crimes políticos. Na década de 70,

gunda vez e que só seria solta depois que

proteger o País de uma ameaça comunista,

a Ditadura passou a adotar meios ilegais

ela se entregasse, Maria resolveu se en-

Durou 21 anos (1964-85). No período, o Brasil

de repressão, como seqüestros, cárceres

tregar imediatamente. Para Maria, a irmã

foi governado por Castelo Branco (1964-1967),

privados, torturas e assassinatos.

ser torturada era muito pior do que se fos-

De acordo com o livro “Direito à

se ela. E Maria do Carmo foi muito tortu-

Junta Governativa (1969), Emílio Garrastazu

memória e à verdade”, publicado pela

rada. As duas permaneceram presas ainda

Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979),

Secretaria Especial dos Direitos Humanos

por algum tempo e viram muitos colegas

e João Baptista Figueiredo (1979-1985).

do governo Lula, 475 pessoas morreram

sendo torturados. Depois elas foram sol-

A repressão aumentou com a

ou desapareceram por motivos políticos

tas. Maria do Carmo acredita que foi solta

naquele período.

porque não falou nada e não puderam lhe

Arthur da Costa e Silva (1967-1969), uma

implantação do Ato Institucional número

atribuir nenhuma culpa.

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16 Outubro 2012

D

DIREÇÕES

“Helena nos ensinou o caminho” Conversar com as irmãs Serra Azul foi voltar no tempo, lembrar de companheiros que não estão mais aqui, dos compromissos da luta pela liberdade. Mas também recordaram das conversas à mesa entre o pai defensor da democracia e o avô poeta, um artista. Foi através deles que a ditadura entrou em suas vidas. A família, que desde cedo incentivou muito a solidariedade e o amor ao próximo, logo fez com que percebessem o que estava errado e não ficassem de braços cruzados. Helena foi a precursora. Maria do Carmo e Iracema concordam: “Já havia a preocupação social, mas Helena nos ensinou o caminho”.

Helena tinha 20 anos e estava grávida quando foi presa junto com o marido, no Recife

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Ao se engajarem na luta contra o regime, elas sabiam dos perigos, mas lutavam pelo que acreditavam e não tinham medo. Assim, se arriscavam distribuindo panfletos, fugindo da polícia, realizando passeatas-relâmpago. Estas consistiam na estratégia de dividir o grupo próximo do lugar onde seria realizada a passeata-relâmpago. Em um dado momento, quando alguém dava um sinal, todos imediatamente se juntavam, um deles pronunciava algumas palavras de ordem ao megafone, ou no grito, e, em cinco minutos, todos se dispersavam, não dando tempo para a repressão policial agir. Maria do Carmo lembra de quantas vezes conseguia fugir da polícia quando era surpreendida distribuindo panfletos, embora não tivesse tido nenhum treinamento. Tudo aprendido na prática. Os panfletos eram importantes mídias alternativas. Elas também recordam de como os cidadãos comuns eram solidários com os militantes, sempre oferecendo-lhes abrigo ou algum tipo de ajuda para fugir da repressão. Foram momentos difíceis, lembra Helena, que aos 15 anos teve que entrar na clandestinidade para lutar pelos seus ideais. “Aquilo não era guerra, era um Estado contra os cidadãos inocentes”. Para Maria do Carmo, as decisões eram tomadas à medida que a repressão aumentava. “É como se fosse uma estrada, em que você começa no asfalto, depois passa para uma estrada de terra e acaba em uma estrada cheia de buracos”. Mas as três são unânimes em dizer que o período foi um processo de “luta, consciência e superação”. Lutavam porque tinham consciência de que as coisas não deviam ser nem permanecer como estavam, mas também tinham consciência das consequências. E as consequências não desapareceram com fim da ditadura. Mesmo após o fim da ditadura, as Serra Azul não conseguiam empregos públicos e, quando conseguiam participar de concursos públicos, não eram chamadas quando aprovadas. Inclusive descobriram que estavam sendo vigiadas pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em 1999. Mas Maria do Carmo diz que elas não poderiam se fazer de vítima, pois escolheram lutar por aquilo em que acreditavam. E, se fosse preciso, fariam tudo de novo.

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Publicidade

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18 Outubro 2012

D

DIREÇÕES

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N

ascida na França, em 28 de feve-

As duas amigas já possuíam experiências na

reiro de 1949, Martine Kunz é da

estrada, pois haviam feito várias viagens pela

geração “20 anos em 1968”, con-

Europa, sobretudo para os países mediterrâne-

siderado o “ano mágico da história” por ser

os. Era comum para as duas, principalmente de-

marcado por acontecimentos como a Guerra

vido ao curto orçamento, viajar de carona. “Era

do Vietnã, a morte de Martin Luther King,

uma prática muito corriqueira na nossa época

o movimento hippie, revoluções estudan-

em Paris”. O principal meio de transporte esco-

tis no mundo todo como “Maio de 68”, na

lhido para a aventura no Brasil foi o mesmo.

França, e muitos outros. Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Martine, hoje uma “brasileira com sotaque diferente”, morava em Paris e era bolsista no mestrado em literatura que cursava na Sorbonne. O dinheiro, que era pouco, ela ganha-

Era assim que se desenrolava a viagem, ao sabor dos encontros

va posando como modelo nas academias de de-

Martine

senho, o que fez na época como um “bico permanente”. Foi nessa ocasião, no ano de 1976, que resolveu que era tempo de dar uma pausa

Helena Tofeti Nogueira

em sua trajetória acadêmica.

TEXTO E FOTOS

Pé na Estrada

Movimento continua sendo a palavra-chave da cultura mochileira, mas, com mais de meio século de distância da geração beat dos anos 50, os mochileiros de hoje não podiam ser exatamente iguais àqueles que deram origem a ideia. Ainda existe quem coloque o pé na estrada de uma forma mais parecida com o que era feito na época de Jack Kerouac. Hoje, no entanto, a tecnologia, a praticidade e algum planejamento são parte das viagens da maioria dos mochileiros. De 1976 para 2010, duas personagens contam suas experiências como mochileiras e ajudam a traçar um paralelo entre o que era um mochileiro nos anos 70 e o que é ser um mochileiro hoje

A viagem não era barata, mas a intenção

A decisão de dar uma pausa, apenas, era

era reduzir ao máximo os custos. A primei-

um pouco vaga, e Martine ainda não havia deci-

ra parte, da França para o Brasil, foi pelo

dido qual seria o formato dessa interrupção até

mar. As duas amigas embarcaram com nada

conversar com Florida. A amiga argelina que

além das mochilas que carregavam nas cos-

estudava as línguas espanhola e portuguesa

tas em um navio italiano que levava tanto

propôs uma viagem ao Brasil, pois tinha alguns

pessoas quanto mercadorias, e, depois do

contatos no país e falava um pouco do idioma.

que pareceu bastante tempo no oceano,

Diferentemente de Florida, Martine não fa-

chegaram ao Rio de Janeiro em pleno carna-

lava uma palavra de português, mas aceitou a

val. Ainda um pouco perdidas e sem um pla-

proposta. A verdade é que, àquela altura, o país

nejamento, ficaram hospedadas na casa de

de destino não importava tanto assim para a jo-

um francês que conheceram no navio e que

vem de 27 anos; o que realmente lhe agradava

possuía uma residência em Santa Teresa.

era a ideia de aventura. “Poderia ter sido qual-

“Era assim que se desenrolava a viagem, ao

quer outro país, inicialmente”.

sabor dos encontros”.

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19 Outubro 2012

Do Rio, as duas viajantes foram subindo por Minas Gerais e seguindo para a região nordeste, onde tiveram dias em Salvador e em Fortaleza. Quando chegaram à capital cearense, o dinheiro já estava bem escasso, e como a intenção era seguir para a Amazônia, passaram poucos dias, durante os quais conseguiram abrigo primeiro na Aliança Francesa e depois em uma república. Após conseguirem duas passagens de ônibus, uma doada pela empresa e outra presente de um amigo, a próxima parada, já com cinco meses de viagem, foi Belém, de onde Florida voltou para a França devido ao que mais tarde descobriu ser uma hepatite.

SOZINHA, RUMO A MANAUS Já sem a amiga e companheira de viagem, Martine seguiu sozinha para Manaus em um barco, no mínimo, pouco aconchegante. As pessoas comiam em cuias e dormiam de rede, todas amontoadas, numa “confusão de corpos” que dividiam os espaços com baratas e outras coisas, enquanto o barco não parava de chacoalhar. Sem rede ou cuia, Martine dormia no saco de dormir embaixo das redes de onde as pessoas cuspiam e comiam em cuias gentilmente cedidas por outros passageiros. “Era tudo meio precário, mas no tempo eu adorava, porque eu tinha uma prática dessa precariedade de viajante, então não me assustava. Além disso, eu era bastante destemida... Bastante essa mistura de despojamento e curiosidade. O que importa é não ter medo”. Martine sabia que a precariedade de sua situação era relativa, pois era temporária e também uma aventura, mas lembra que a miséria que via nas ruas de alguns lugares Professora

do Brasil causou um impacto muito grande,

Martine Kunz

pois, apesar de haver pobreza na França tam-

em sua casa

bém, lá não estava presente de forma tão escancarada. “Eu não tinha uma visão política articulada do mundo e do que liga as coisas entre si. Através do Brasil eu fiz essa aprendizagem de uma visão mais integrada.”

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20 Outubro 2012

D 1 Era tudo meio precário, mas no tempo eu adorava

Martine

Depois de Manaus, Martine, dentre outras pequenas viagens e aventuras, voou em um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) e passou um tempo num campo militar em Boa Vista, onde muitas pessoas trabalhavam em condições precárias na construção da estrada BV-8. “Chamaram um índio que já havia sido pacificado, como dizem, e eu ali de espectadora. Que vergonha a minha”. De Boa Vista voltou a Manaus onde reencontrou um amigo e morou por um mês numa palafita com oito janelas. O amigo pescava, e ela

2

3

conta que passaram o mês comendo sardinhas. De Manaus voltou à Belém e foi de lá que pegou outro navio para retornar à França.

“O BRASIL ME PEGOU DE JEITO” Ainda na França, Martine pensava em um meio de retornar ao Brasil de maneira mais voltada à sua formação acadêmica em literatura. Fez, então, uma licenciatura em português para se aperfeiçoar na língua e acabou voltando ao País em 1979 para estudar a literatura de cordel. A professora conta que um fator muito importante para a sua ligação com as terras bra1. Professora

sileiras foi a experiência que teve em Calumbi,

Martine em sua

município do estado de Pernambuco, quando

biblioteca

conheceu pela primeira vez a literatura de

2. Em seu jardim, ao

cordel. Foi lá que ouviu uma leitura tradicio-

lado dos cataventos

nal e viu cantadores chegando pela estrada

feitos por ela

para fazer uma cantoria.

3. O corredor da

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Mais que o cordel, a cativou a “nobreza natu-

casa lembra uma

ral das pessoas do interior, e sua elegância em

galeria de arte.

receber as pessoas e serem gentis sem cobran-

Todas as obras

ças”. Em 2009, a professora visitou a casa em

foram presente

que se hospedara nos anos 70 e revela que ficou

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21 Outubro 2012

Viajologia

A vista da cidade de

O conceito de Viajologia, que reconhece

Ganada

a viagem como uma escola dinâmica, foi criado por Haroldo Castro, jornalista, fotógrafo, diretor de documentários e estrategista de comunicação. Haroldo morou no Brasil, na França e nos Estados Unidos; trabalha em quatro idiomas e conhece 162 países. Hoje possui uma coluna e um blog na revista época, ambos sobre viagens. Do conceito de viajologia (travology) de Haroldo surgiu também um clube que considera a experiência da viagem comparável a obter um diploma convencional de estudo, por isso, o Clube de Viajologia confere aos seus alunos diplomas que reconhecem diferentes níveis de expertise, segundo o princípio de que “viajar é aprender”.

surpresa ao ser recebida pelos moradores com FOTO: ARQUIVO PESSOAL

um sorriso de quem já a esperava mesmo que sem data certa. “O Brasil me pegou de jeito”. Aqui, casou-se com “o seu grande amor”, o jornalista cearense Cláudio Pereira, falecido em 2010. Naturalizada brasileira em 1991, Martine recebeu o Título de Cidadã Brasileira em maio de 2011 e na oportunidade agradeceu ao marido a homenagem: “É ao Cláudio que eu devo a honra

Essa é uma cena que, com certeza, não era

bem curtas pela Europa e uma um pouco mais

de hoje me tornar uma cidadã de todos vocês”.

sequer imaginável para os viajantes beatnicks

longa para o Marrocos, mas ainda teria um mês

e algumas gerações que se seguiram; muito

e meio para viajar e muitos lugares que queria

UMA AVENTURA PLANEJADA

menos podia tal situação ser, para eles, a des-

conhecer. Foi quando decidiu que era hora para

Uma estação de trem cheia de gente falando

crição de um momento comum em uma viagem

sua primeira experiência como mochileira.

línguas estranhas e, em sua maior parte, incom-

de mochileiro. Uma prova das mudanças ocor-

A ideia original era ir acompanhada de

preensíveis. Pendurada nas costas, a mochila le-

ridas durante mais de meio século de história

pelo menos um amigo, mas ninguém tinha

vava, além de roupas e afins, o celular, o iPod

do “mochilão” é que essa é sim uma cena bem

disponibilidade para viajar com ela naquele

e um cartão de crédito. Os braços seguravam

normal para muitos mochileiros de hoje. Um

momento. “Então eu tinha duas opções: ou

firme o notebook, enquanto os olhos atentos

exemplo é a estudante Mayra Hartz, de 21 anos.

eu ia sozinha ou não ia de jeito nenhum”.

No final de seu intercâmbio de seis meses na

Ela decidiu ir sozinha e, depois de escolher o

Espanha, Mayra já havia feito algumas viagens

caminho no mapa, começou o planejamento

procuravam o guichê em que pudesse ser reservada a passagem de trem pelo Europass.

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22 Outubro 2012

D

para a viagem que aconteceu durante junho e julho de 2010. Mayra reservou pela Internet todos os albergues (hostels) em que iria ficar e calculou quanto tempo podia passar em cada lugar, de acordo com o que mais gostaria de conhecer.

ALBERGUE

As passagens de trem só podiam ser reser-

Meio de

vadas nos próprios países de onde os trens

hospedagem

partiam, mas o Europass facilitava a parte de

de baixo-custo

transporte também.

frequentado,

Passando por seis países (Portugal, Espanha,

na maior parte,

Itália, França, Alemanha e Holanda) e 16 cida-

por estudantes

des, a estudante de publicidade começou a via-

ou viajantes.

gem por Lisboa, onde ficou hospedada na casa

Normalmente

de uma amiga de sua família. “Como na pri-

possuem quartos

meira cidade eu tinha uma pessoa, um centro

coletivos, dotados

de apoio, só senti a viagem começar mesmo

de camas ou

na segunda parada, Cades, na Espanha. Foi

beliches, e muitos

quando caiu a ficha de que estava realmente

tem uma cozinha

viajando sozinha”.

equipada

Mesmo viajando desacompanhada, Mayra diz nunca ter se sentido realmente solitária,

e banheiros também coletivos

pois quando não estava “curtindo” sua própria companhia para se conhecer melhor, estava

TURISTEIRO

aproveitando a oportunidade de conhecer pes-

Pessoa que

soas novas com uma cultura diferente da sua.

viaja de formas

Uma grande parte do aprendizado durante a

baratas e fica em

viagem veio da convivência de Mayra com ou-

albergues, mas

tros mochileiros. Foi uma forma não só de co-

não compartilha

nhecer mais do país que estava visitando, mas

das ideias do

de aprender também sobre lugares por onde os

mochilão

outros mochileiros haviam passado e sobre os países de origem deles. “Poxa, se eu não tivesse viajado sozinha talvez não tivesse ouvido e aprendido nada disso”, comenta. Além de “trocar figurinhas” com outros viajantes, conhecer pessoas locais também faz parte da experiência de viajar como mochilei-

FLASHPACKER

ro, pois uma das características da “classe” é

Mochileiro que

a vontade, ou mesmo necessidade, de expe-

dispõe de uma

rimentar um pouco da “vida real” de cada lu-

verba maior e,

gar por onde passa, e absorver um pouco das

na maioria das

diferentes culturas que encontra pelo caminho.

vezes, de um

“Acho que essa é uma das grandes diferenças

cartão de crédito

entre fazer turismo e fazer mochilão, sabe? O

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23 Outubro 2012

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4

4. Em seu quarto, Mayra fica a vontade em meio às lembranças do “mochilão” 5. Além das fotos, ela só conseguiu guardar o mapa que usou para traçar seu trajeto e alguns cartões. Era o que cabia na mochila 6. O notebook que a acompanhou na viagem ainda guarda todas as fotos e vídeos da

6

experiência como mochileira

mochileiro não quer só ver o que existe em ou-

“É claro que às vezes tudo que eu queria era ter

tros lugares; ele quer viver outras culturas”.

o poder de teletransportar para poder ter meus amigos comigo naqueles momentos”.

SAUDADES

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A saudade apareceu também em momen-

Durante a viagem, apesar de todo o entusiasmo

tos mais difíceis e Mayra conta que uma das si-

e a satisfação de estar viajando sozinha e de po-

tuações inusitadas que a levaram a desejar um

der conhecer novos países, pessoas e culturas,

amigo por perto (ou pelo menos saber alemão)

Mayra se lembra de chegar em alguns lugares

aconteceu quando ia de Berlim para Roterdã. Já

e descobrir algo tão lindo e interessante, que

sentada no trem, depois de ter problemas para

batia a saudade de um amigo ou de vários, que

conseguir a passagem, começou a perceber

não podiam compartilhar aquilo tudo com ela.

uma movimentação estranha. Nos alto-falantes

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24 Outubro 2012

D várias coisas eram ditas em alemão, fazendo

e tecnologia de que dispomos hoje, mas não é

as pessoas se levantarem e começarem a sair

difícil perceber que todas as novidades que sur-

do trem agitadas. Sem entender o que estava

giram durante os mais de cinqüenta anos que

acontecendo, Mayra tentou pedir explicações

separam a geração dos jovens beatnik da gera-

em inglês a um funcionário do trem, mas não

ção jovem de hoje fizeram com que “mochilar”

funcionou. “Eu não entendia o que ele falava

ficasse bem mais viável.

EUROPASS

e ele olhava pra mim como se não entendesse

Passe simplificado

MOCHILEIRAS

para viajar de

Só depois de muito nervosismo, Mayra en-

Em 1976 ou em 2011, tanto a professo-

trem por vários

controu um rapaz, de pais brasileiros, que falava

ra Martine Kunz quanto a estudante Mayra

países da Europa

um pouco de português e pôde explicar que ela

Hartz são mochileiras, mas muitas coisas

precisava trocar de trem e que ele iria ajudá-la

mudaram entre uma viagem e outra, não só

GAP-PACKER

a chegar ao seu destino. O que na hora a levou

na mochila, mas, também e mais ainda, na

Jovem que viaja

quase ao desespero, hoje Mayra conta aos risos:

mentalidade dos viajantes, da juventude e

por vários países

“Cheguei a pensar que alguma coisa ia explodir

do mundo de forma geral.

em um curto

porque eu não entendia.”

naquele trem”.

Um fator importante na mudança entre as

espaço de tempo,

As dificuldades e situações inusitadas sem-

duas viagens são as novas tecnologias, não

normalmente no

favoritas, em Paris

pre existem, mesmo com todas as facilidades

apenas quanto aos aparelhos, mas também na

intervalo (gap)

maneira como influem na forma de nos relacio-

entre a escola e

narmos com o mundo e com as pessoas. Hoje,

a faculdade ou

com qualquer aparelho conectado à Internet

a graduação e o

nas mãos, mesmo parados, nunca ficamos

primeiro emprego

FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Uma de suas fotos

em um lugar só, e, consequentemente, nunca estamos, completamente, em qualquer lugar. Segundo a professora Martine, uma geração não é melhor que a outra, mas hoje a nossa forma de lidar com o mundo virtual interferiu também na maneira de lidarmos com o corpo. “Existe a necessidade de restabelecer o corpo.

VÔOS LOW COST

O corpo fala”. Para ela as gerações mais novas,

Vôos de baixo

talvez devido a toda a comunicação virtual, dei-

custo, possíveis

xaram de ter tanto contato com o outro e tentar

porque as

descobri-lo à surpresa dos encontros “Nós nos

companhias

comunicamos com todos os sentidos. Não dá

reduzem os gastos

para colocar o corpo no computador”. O au-

com medidas

mento da violência também é um fator impor-

como operar em aeroportos secundários, vender passagens através da

Eu não faria mais e se tivesse uma filha não queria que ela fizesse

Internet, e cobrar a parte itens não essenciais como o

Martine

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serviço de bordo

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25 Outubro 2012

Mayra com uma amiga em Amsterdã

Não sei se eles eram tão corajosos. Talvez a gente é que tenha ficado meio fraco

Mayra

tante de mudança, e mesmo Martine diz que a viagem que fez em 76 provavelmente não é mais viável hoje, pelo menos não da mesma maneira. “Eu não faria mais e se tivesse uma filha não queria que ela fizesse”. Para Mayra também existe hoje um certo medo do contato. Ela afirma que atualmente é FOTO: ARQUIVO PESSOAL

muito mais difícil achar pessoas que se arriscam a “ir e ver qual é”, ou seja, viajar de carona e sem planejamento não é muito comum. “Não sei se eles eram tão corajosos. Talvez a gente é que tenha ficado meio fraco”.

CERTAS COISAS CONTINUAM Com tantos anos de mudanças na cultura mochileira, corremos o risco de ignorar as ideias compartilhadas por todas as gerações herdeiras dos viajantes beatniks, mas os mochileiros ainda compartilham de um ideal de liberdade e

Beatniks on the Road

aventura, assim como se mantém o sentimento de comunidade e autenticidade entre os viajantes, que é uma forma de aprendizado e economia, palavras importantes no vocabulário de quem quer colocar o “pé na estrada”. Ainda hoje, o mochileiro se diferencia do turista por querer conhecer os lugares por onde passa e saber como as pessoas vivem fora dos pontos turísticos. Ele quer se transformar e crescer a cada novo rumo. Essa é a ideia que ajuda o “viajante de mochila” a lidar com a contradição de estar aberto para vivenciar novas culturas e se entregar na experiência, porém sem esquecer que vai partir para o próximo destino. Sentir e se entregar, mas não se prender, pois como

Existe mais de uma teoria para o surgimento da cultura mochileira, e uma das mais aceitas é a de que ela surgiu da chamada Geração Beatnik (Beatnik Generation), nascida nos Estados Unidos. Os Beats eram um grupo de jovens intelectuais americanos que, em meados dos anos 50, cansados da vida suburbana do pós-guerra, encontraram sua ideia de liberdade fazendo uma revolução cultural através da literatura. A palavra-chave dos beatniks era “movimento”, e no pacote estavam incluídos jazz, sexo livre, drogas e “pé na estrada”, tradução do título de “On The Road” (romance de Jack Kerouak considerado como bíblia da geração beat). O livro “On The Road” e os beatniks de forma geral acabaram influenciando muitas gerações além da sua própria e foram fortemente vinculados aos hippies e outros movimentos dos anos 60. O “On The Road”, de Kerouak ganhou uma versão no cinema. O filme, do diretor brasileiro Walter Salles (Diários de Motocicleta) teve estreia em junho deste ano.

diz Mayra “o mochileiro é transitório”.

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26 Outubro 2012

ENSAIO

Rumos do A leitura do tema Rumos pode levar a diversas interpretações, tanto em palavras quanto em imagens. Com esta proposta, fragmentos de quatro ensaios compõem as fotografias desta edição. Entre caminhos e deslocamentos, os rumos aparecem nos ônibus da cidade, no trem, na religiosidade da procissão e outras paisagens.

Helena Tofeti Nogueira E editora de imagens e fotógrafa

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HELENA TOFETI NOGUEIRA

Outubro 2012

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HELENA TOFETI NOGUEIRA

Outubro 2012

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29 Outubro 2012

FOTO > HELENA TOFETI NOGUEIRA

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30 Outubro 2012

FOTO > HELENA TOFETI NOGUEIRA

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HELENA TOFETI NOGUEIRA

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MARINA DUARTE

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ACASOS

Rumos Interrompidos TEXTO E FOTOS

Marina Solon e Melina Menezes

A vida nos direciona a situações insuspeitadas. Nossos sonhos, metas e planos muitas vezes podem fugir ao nosso controle. Há quem pense que o redirecionamento dos nossos caminhos é um castigo, e situações como essas são provações da vida. No entanto, esses percalços nem sempre nos trazem saldos negativos. É o que nos mostram as histórias de três jovens que tinham suas vidas planejadas, mas que ao sabor do acaso vivenciaram situações completamente diferentes das idealizadas. Situações que funcionaram como um descortinar de uma nova perspectiva do futuro

A

nna Luiza, Vladimir e Danielle são

ções sexuais sem contracepção com o na-

três jovens que têm em comum o

morado. Ao saber da gravidez, Anna Luiza

fervilhar de sonhos para o futuro.

se deu conta de que tudo que havia plane-

Sonhos que hoje não são os mesmos de

jado para si sofreria mudanças drásticas.

alguns anos atrás. Os três passaram por

Por imposição dos pais, casou-se com o

situações inesperadas que foram determi-

namorado tão jovem quanto ela e assumiu

nantes para a formação de um novo pano-

responsabilidades que não estava pronta

rama da realidade que os cerca.

para assumir tão cedo e de maneira tão abrupta. De repente ela tinha se tornado

AS GRANDES SURPRESAS DE ANNA LUIZA

esposa, mãe e dona de casa. A conclusão

À primeira vista, as feições juvenis e os tre-

um futuro intercâmbio tornaram-se sonhos

jeitos delicados de Anna Luiza Magalhães

distantes. A prioridade agora era outra.

não denunciam os acontecimentos já vividos por esta jovem de apenas 23 anos.

da faculdade de jornalismo e os planos de

Anna Luiza não estava preparada para ser mãe. Nunca havia sequer trocado uma

Não fugindo à regra de tomar atitudes

fralda ou segurado um recém-nascido no

inconsequentes que é própria da juven-

colo. Tudo aconteceu numa rapidez tão

tude, Anna Luiza viu seu destino mudar

grande quanto era a necessidade de adap-

quando engravidou do namorado aos 18

tar-se à sua nova realidade. A rotina im-

anos. “Nunca imaginei que fosse aconte-

posta pelo nascimento de sua filha Anna

cer comigo”, foi o que ela pensou quando

Clara era permeada de cuidados e exigia

descobriu-se grávida após manter rela-

muita dedicação. Além disso, tinha que se

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A

atender aos afazeres e obrigações domésticas, sem esquecer de suas responsabilidades como esposa. A imaturidade do casal era evidente nas situações cotidianas. Enquanto Anna Luiza se desdobrava para exercer a contento todas as atividades impostas pelo casamento, seu jovem marido preocupava-se em não desfazer-se da rotina que levava enquanto solteiro. Anna Luiza estava sobrecarregada. Nem um ano havia se passado desde a data do casamento e um divórcio já era uma possibilidade real para ela. Ao fim de dois anos, a situação mostrava-se insustentável, e Anna Luiza decidiu finalmente retornar à casa dos pais. “O divórcio foi o desfecho de um casamento que não precisava ter ocorrido. Tudo foi rápido demais. Não houve tempo para ponderamos muita coisa. Acho que a primeira reação da minha família, tão tradicionalista, foi pensar que o casamento seria o primeiro passo para resolver toda aquela situação que ninguém esperava e com a qual não sabia lidar direito”. Mais uma vez os rumos da vida de Anna Luiza teriam que ser modificados. Diante de tantas mudanças, ela não conseguia mais vislumbrar tão facilmente seu futuro. As alterações em sua vida esfacelaram suas perspectivas, e ela já não sabia como definir seu próximo passo. “Foi uma época muito difícil. Todas as mudanças que tinham surgido e eu consegui me adaptar de repente mudaram mais uma vez. E isso tudo num espaço de tempo de somente uns dois anos. Era muita informação, muita mudança, pra tão pouco tempo. Não sabia como reagir. Sabia que teria que re-

ajuda de um psicólogo que a ajudou a en-

começar, mas dessa vez não sabia como,

contrar novas diretrizes para sua vida.

Todos os momentos vividos nos últimos anos permitiram que Anna Luiza alcan-

ou por onde”. A faculdade de jornalismo

Foi através da ajuda de um profissional

çasse maturidade e crescimento jamais

que outrora a encantava, não lhe propor-

que ela descobriu a paixão pelo curso de

esperados. Antes da gravidez, a vida era

cionava mais a mesma satisfação. Havia

Direito, o que a levou a abandonar o curso

ilimitada e utópica, e todos os dias deve-

o medo e a insegurança com relação aos

de jornalismo, e dar início a uma nova em-

riam ser vividos intensamente. Hoje, com

dias que viriam. Decidiu, então, procurar

preitada profissional.

um sorriso estampado no rosto, ela tem

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1

MARINA SOLON

2

1. Anna Clara e Anna Luiza em um desconstraído 2. A chegada da filha ensinou novos rumos à mãe

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MARINA SOLON

momento

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42 Outubro 2012

A

FOTOS > MARINA SOLON

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Corro atrás dos meus sonhos e sou otimista quanto à vida, mas sei que nem tudo é como a gente quer. Talvez certos desencantos que a vida nos traz sejam justamente pra nos aperfeiçoar e fazer crescer

Anna Luiza

uma visão mais realista e concreta do mundo que a cerca, e encara tudo que viveu como fator determinante para o rumo que segue hoje. “Eu não posso me arrepender de uma coisa que me fez o que eu sou hoje. Ter vivido tudo isso, assim, dessa forma me fez ver as coisas de modo mais claro. Hoje encaro a vida de forma muito realista. Não idealizo mais casamento, nem sonho demais. Trabalho com perspectivas reais. Corro atrás dos meus sonhos e sou otimista quanto à vida, mas sei que nem tudo é como a gente quer. Talvez certos desencantos que a vida nos traz sejam justamente pra nos aperfeiçoar e fazer crescer”. Ela acredita que tudo que viveu a tornou mais madura, otimista e contente com as situações boas ou ruins da vida. “A Anna Clara hoje é minha vida, não consigo me imaginar sem ela. Não existem arrependimentos. Aprendi a ser feliz desse jeito, tendo passado por tudo o que passei. Decidi colher os frutos bons disso tudo”.

AS LIÇÕES DE DANIELLE

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A pequena Anna

Assim como Anna Luiza, a bacharel em Direito

Clara entre seus

de 25 anos Danielle Pires viu-se vítima do acaso

brinquedos:

ao descobrir um câncer na mama esquerda. Em

uma gravidez

meio à rotina de trabalho intensa e desgastan-

inesperada trouxe

te em um escritório de advocacia, ela pratica-

novas pespectivas a

mente não tinha tempo para pensar em si mes-

Anna Luiza

ma, e deixava sua própria saúde e bem estar

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A

em segundo plano. Recém-formada, sua única

outras doenças ou que meu caso fosse muito

preocupação era ser aprovada no Exame da Or-

mais grave. Tinha medo de descobrir uma me-

dem dos Advogados do Brasil. Mas, a despeito

tástase, tinha medo que o tratamento não me

da vontade de Danielle, essa rotina extenuante

curasse. Acho que medo é a melhor palavra pra

chegaria ao fim. Uma noite, enquanto estuda-

definir tudo o que eu senti naquela época”.

va, ela sentiu dores que mudariam para sempre

Ela achava que não teria forças para en-

sua vida: pontadas forte no seio esquerdo se-

frentar a doença. Mas, diante da rapidez com

riam os primeiros indícios do que ela mais tarde

que se sucediam os acontecimentos, Danielle

descobriria ser um câncer.

não teve alternativa a não ser encarar seus

Coloquei a peruca e me senti ‘eu’ novamente. Vi que ainda estava viva e que a minha vida não podia acabar por conta do câncer. Se ele era forte, eu deveria ser mais forte do que ele

Diante da dor, a primeira providência foi pro-

medos e enfrentar a situação. Encontrou na fa-

curar um médico, profissional que diagnosticou

mília e nos amigos um apoio para os momen-

a doença e a informou da urgência necessária

tos difíceis que estava enfrentando. Com base

para a realização da cirurgia que retiraria o tu-

nesse apoio foi que ela se submeteu a uma

mor. “Por que isso está acontecendo comigo?”,

quadrantectomia, procedimento que retirou o

queria se ver no espelho. “Me achava horrível,

era o que Danielle mais pensava na época. “Eu

tumor maligno e um pouco de seu seio, totali-

me sentia um monstro. Minhas maiores crises

chorava de medo e desespero. Sentia raiva de

zando um quarto de sua mama esquerda. Um

de choro eram quando eu passava a mão pelo

Deus, da vida, de tudo. Tinha medo de morrer,

mês após a cirurgia, seria iniciado o tratamen-

meu cabelo e ele caía aos montes. Sempre tive

de ficar feia quando meu cabelo caísse, sentia

to quimioterápico e radioterápico.

muito apego ao meu cabelo. Ele era grande e

Danielle

medo do tratamento, da cirurgia, das dores que

Depois da décima quarta sessão de qui-

liso. E vê-lo caindo aos mínimos toques me fazia

sabia que sentiria. Cada exame que fazia era

mioterapia, o cabelo de Danielle começou a

sentir-me horrível. Eu arrancava tufos de cabelo

uma tortura diferente. Tinha medo de descobrir

cair. Ela repudiava a própria aparência e não

com as mãos aos prantos”. Ela sentia dores pelo

Danielle em sua casa. Depois da sua vitória, ela vive um FOTOS > MARINA SOLON

dia de cada vez e mantém a sua qualidade de vida

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Danielle renasce após vencer o câncer que mudou a sua vida e seus planos aos

MARINA SOLON

24 anos

corpo todo, além de náuseas e desconforto. Ti-

e me deixar ser cuidada sem saber do que seria

tava adaptada a todas as mudanças. Aguen-

nha medo de como as pessoas olhariam para

de mim amanhã. Era desesperador”.

tava firme as dores e os efeitos colaterais e

ela, não queria que os outros sentissem pena

Em meio à queda dos cabelos e às constan-

tentava encarar a situação de forma otimista.

ou a julgassem como “coitada”. Ela emagre-

tes crises de choro, a avó de Danielle resolveu

“Depois da químio, meus cabelos começaram

cia a olhos vistos e estava cansada de receber

presenteá-la com uma peruca muito parecida

a crescer novamente. Uns fios bem ralos e frá-

tanta atenção e cuidado. “Naquela época, tudo

com seu cabelo antes do tratamento. Foi en-

geis, mas que foram suficientes pra me fazer

me revoltava. Minha aparência repugnante, a

tão que ela começou a ter coragem de sair de

ver que pelo menos a primeira etapa de tudo

atenção excessiva de todos, tudo. Eu sempre

casa. “Coloquei a peruca e me senti ‘eu’ nova-

eu tinha vencido. Eu não estava morta, e aos

fui muito independente, muito proativa, e de re-

mente. Vi que ainda estava viva e que a minha

poucos tudo voltaria para o lugar”. As náuseas

pente estava frágil e dependente de todos para

vida não podia acabar por conta do câncer. Se

cessaram e ela voltou a sentir fome. Mas ainda

as mínimas coisas. Sempre levei a vida com ve-

ele era forte, eu deveria ser mais forte do que

não era o fim. Era chegada a hora de enfrentar

locidade e intensidade, e agora tinha que parar

ele, então”. Ao fim da quimioterapia, ela já es-

o tratamento de radioterapia.

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A

O tratamento de rádio foi composto de trinta sessões de laser sobre a área atingida

uma situação de caráter trágico que ele perce-

apenas um banho por dia. A água que bebia era

beu que precisaria dar um sentido à sua vida.

do próprio chuveiro. “Nada do que tinha vivido

pelo câncer. “Comparado com a quimioterapia,

Vladimir era viciado em cocaína, e, com

se parecia com aquilo. Era terrível. Só conseguia

a radioterapia é quase indolor. Como meu ca-

dinheiro conseguido ilicitamente por meio da

chorar e me arrepender. Eu não precisava viver

belo já estava crescendo e eu já tinha sinais

clonagem de cartões de crédito, ele conseguia

nada daquilo. Foi então que percebi o quanto

de saúde pelo corpo, encarar a radio foi bem

sustentar seu vício. Não tardou a chegar o dia

não sabia para onde estava indo. Eu não tinha

mais fácil. Eu sempre mentalizava que o pior

em que o dinheiro que ele ganhava não fosse

rumo nenhum na vida, achava que tudo era só

já tinha passado”. Danielle tinha melhorado

mais suficiente para manter seu vício. Vladimir

prazer e diversão e que nada do que eu faria

sua alimentação, agora praticava exercícios

começou a somar dívidas com o traficante que

teria consequências assim tão drásticas”.

físicos, bebia mais água, preocupava-se mais

lhe repassava a droga. E foi para saldar essas

Vladimir estava arrependido e depressivo

consigo mesma e estava aprendendo a dimi-

dívidas que ele foi ameaçado pelo traficante

com a abstinência do uso de drogas. Seus olhos

nuir o ritmo de trabalho. “Durante o tratamen-

e obrigado a matar uma pessoa. “O traficante

lacrimejavam, e, frequentemente, seu nariz

to, quando passei a me sentir melhor, voltei a

disse que não mataria só a mim, mas também

sangrava. Ele achava que era o fim de tudo. Na

trabalhar. Não queria me sentir inútil em casa,

meus dois filhos, caso eu não cometesse o cri-

delegacia, ele ainda descobriu que a pessoa a

não queria que a doença ‘achasse’ que estava

me. Era minha família que estava em jogo. Não

quem tentou matar era um grande traficante e

me vencendo. Com câncer ou sem, eu estava

pensei duas vezes, não tinha alternativa”.

começou a receber muitas ameaças de morte.

viva e a vida devia continuar, mas de outra for-

Foi então que, na tentativa de preservar sua se-

ma, de uma forma mais consciente do que é

gurança, o delegado responsável pela sua pri-

importante. Acho que o câncer veio para me

são decidiu que Vladimir não iria para o presídio

dizer que eu estava vivendo um ritmo muito

e aguardaria o julgamento do seu processo em

maluco. Hoje priorizo mais minha qualidade de vida. A vida não é só trabalho”. Quase um ano depois do câncer, Danielle vê a vida de uma forma diferente. “Agora eu sou uma mulher. Me descobri forte, descobri quem são meus amigos e como eles são valiosos”. Ela aprendeu a ter gratidão pela vida e a dar valor às pequenas coisas. Hoje vive

Ler a Bíblia me fazia sentir que eu não estava sozinho, que naquela situação toda havia um ensinamento pra mim e que Deus estava cuidando de mim. Foi então que eu vi que tudo aquilo era uma forma que Deus tinha de chamar minha atenção

Com o decorrer dos dias, Vladimir começou a receber visitas da família. Em uma delas, ele ganhou de presente uma Bíblia, presente de sua madrinha. “Nos primeiros dias de prisão, chorei muito. Me sentia sozinho e desamparado. O ambiente da prisão era muito degradante. Não poderia estar mais arrependido de tudo que fiz. Só queria encontrar

um dia de cada vez. De três em três meses faz exames de rotina, e cada boa notícia dada

uma das celas da delegacia.

Vladimir

uma forma de reescrever minha história e de

pelo médico é considerada uma vitória. “Sou

preencher o vazio que havia dentro de mim e

muito mais forte do que qualquer doença. E o

acabar com toda a angústia que estava sentindo. Foi aí que comecei a ler a Bíblia que

cabelo caindo é o mínimo diante da força que

Munido de um revólver calibre 38, Vladimir

você descobre ter para enfrentar qualquer di-

disparou cinco tiros à queima roupa da pessoa

ficuldade da vida”.

indicada pelo traficante. Mas aconteceu justo

Vladimir viu nas palavras da Bíblia uma for-

o que Vladimir temia e não queria que fizesse

ma de encontrar sua redenção. Ele pedia força a

O TORTUOSO CAMINHO DE VLADIMIR

parte do seu plano. Não só a vítima não faleceu,

um Deus, até então, desconhecido. “Ler a Bíblia

O acaso também reservava ao jovem de 28

como ele foi preso em flagrante pela polícia e

me fazia sentir que eu não estava sozinho, que

anos Vladimir Bezerra uma grande surpresa.

enquadrado no crime de homicídio duplamente

naquela situação toda havia um ensinamento

Ele, que não tinha grandes pretensões da vida

qualificado, conforme o artigo 129 do Código

pra mim e que Deus estava cuidando de mim.

ou do futuro, vivia cada dia como se fosse o últi-

Penal Brasileiro. Começaria o inferno. Após três

Quase cinco meses depois de preso, eu tive um

mo. “Minha vida era uma eterna festa. Só queria

dias de interrogatório, ele foi colocado em uma

sonho com uma passagem bíblica. Nele, Deus

saber de beber, sair e curtir”. E foi numa dessas

cela onde por 89 dias dormiu no chão. Durante

me mostrava o capítulo oito do livro de Roma-

saídas que Vladimir conheceu o mundo das dro-

os três primeiros dias, sua alimentação foi limi-

nos. Nos versículos de 31 a 39, o apóstolo Pau-

gas, do crime e do dinheiro fácil. E foi vivendo

tada a caldo de feijão, e ele tinha direito a tomar

lo fala sobre as provas e certezas do amor de

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ganhei da minha madrinha.”

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MELINA MENEZES

Outubro 2012

Deus. Foi então que eu vi que tudo aquilo era uma forma que Deus tinha de chamar minha atenção, e entreguei a minha vida a Jesus e decidi que serviria a Deus para sempre”. O Código Penal Brasileiro prevê que o preso por mais de 90 dias sem julgamento tem direito a liberdade provisória. Foi baseado nesses ditames que o advogado de defesa de Vladimir conseguiu que ele saísse da cadeia após seis meses e oito dias de prisão. Uma vez fora do cárcere, ele decidiu procurar uma igreja para continuar o que ele acreditava ser a missão de sua vida: servir a Deus e fazer sua obra. “Um encontro com Deus e você não é mais a mesma pessoa. O que aconteceu me fez encontrar Deus, paz, e um sentido para minha vida, que hoje é buscar as coisas do céu. Aqui a gente só está de passagem. Antes eu não tinha objetivo nenhum, vivia só por viver. Agora eu tenho uma razão pra viver”. Atualmente, a rotina de Vladimir é repleta de atividades eclesiásticas. Longe das drogas e do crime, ele sonha em ser pastor. Fez amigos na Igreja e é lá onde passa boa parte do seu tempo. Ainda aguardando o julgamento do seu processo, ele confia que Deus dará um bom desfecho ao acontecido. “Nada acontece por acaso. Deus fez com que isso acontecesse comigo para que eu parasse e percebesse Ele. Mas ainda não acabou. Ele ainda vai fazer grandes coisas em mim e através de mim, tenho certeza. Não me preocupo com o processo, sei que ele é propósito de Deus também”. A vida é cheia de ensinamentos. Uns vem de forma agradável; outros, nem tan-

Vladimir diz que

to. O que histórias como a de Vladimir, Da-

a prisão foi a

nielle e Anna Luiza nos mostram é que nem

forma que Deus

sempre as surpresas ruins geram resulta-

encontrou de se

dos ruins. Viver é um eterno aprendizado.

aproximar dele

O que importa é saber que cada dia é uma oportunidade de encher nossa bagagem para continuar a jornada da vida de forma cada vez mais consciente.

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ACASOS

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49 Outubro 2012

Sinais Vermelhos TEXTO E FOTOS

João Paulo de Freitas

Os dados surpreendem: mais de 250 mil brasileiros têm o vírus da Aids e não sabem. O Ministério da Saúde divulga anualmente novas pesquisas que comprovam o crescimento da transmissão do vírus. De 1980 a 2010, 592.914 casos foram notificados no País. Até setembro de 2011, estima-se que 630 mil soropositivos já tenham sido registrados. Após três décadas da descoberta da doença, a pessoa que recebe o diagnóstico de HIV Positivo sofre um choque que transforma a sua vida, obrigando-a a encarar o preconceito e o medo da morte. Foi o que aconteceu com Renê e Carlinhos, depois de descobriram que eram soropositivos

E

ra o ano de 2000. A “peste gay”

liberar seus instintos sexuais. Nada de

relações homoafetivas sempre foram bem

estava entrando em um processo

sentimentos. Amor, ele sentia pela mulher

estruturadas, conversava bastante com

de desmistificação. Nessa época,

e pelos filhos.

seus parceiros a fim de manter uma relação de confiança.

as mulheres heterossexuais já faziam par-

Com o tempo, ele começou a se envol-

te dos índices elevados de contaminação,

ver cada vez mais com homens. Aquela

O começo de 2001 veio cheio de so-

os laboratórios foram obrigados a baixar

ideia de que sentimento era só pela fa-

nhos, objetivos e sorte. O século 21 estava

o preço dos remédios em países do Ter-

mília começou a mudar. Agora, ele sentia

começando, novos ares e oportunidades

ceiro Mundo, e o Brasil já somava 220 mil

algo muito mais intenso que o sexo. “Foi

estavam por vir. Ele vivia uma ótima fase

soropositivos. Manuel Herculano, ou Renê,

quando eu me vi capaz de gostar de al-

no amor. Há algum tempo namorava um

como era chamado pelos amigos, sabia,

guém do mesmo sexo, que eu decidi me

rapaz de 27 anos, atraente, de boa família

assim como qualquer outro brasileiro, que

separar”, lembra. A separação aconteceu

e que trabalhava como auxiliar adminis-

a Aids ainda era a doença mais enigmáti-

no final de 2000, e Renê estava gostando

trativo em um escritório de contabilidade.

ca que existia, mas não se sentia amea-

da nova fase da sua vida. Um, dois, três

çado, pois, segundo ele, não estava entre

relacionamentos. Agora ele sabia que es-

ANGÚSTIA E MEDO

o grupo de risco. Casado, 30 anos, pai de

tava sendo verdadeiramente feliz. Suas

Depois de cinco meses de namoro, mu-

quatro filhos, ele cumpria com todas as

danças aconteceram na vida do seu com-

obrigações de um pai de família. Era co-

panheiro. Manchas e feridas começaram

ordenador de uma empresa de laticínios e

a aparecer espontaneamente. Preocupa-

sempre se mostrou um pai presente, mas algo o preocupava: ele sentia dúvidas sobre a sua sexualidade. Gostava da esposa, mas sentia atração sexual por homens. Porém, não se considerava gay. Um dia tomou a decisão de experimentar. Tomava todos os cuidados para que ninguém soubesse dos seus casos extraconjugais. Seu objetivo era sexo, nada além disso. O que ele queria era apenas

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do, Renê questionou seu parceiro: “Você

Desde 2007, bairros da Regional V como Mondubim, Bom Jardim e Siqueira apresentam o maior índice de soropositivos, com 346 casos. Bairros como Benfica, Fátima e Montese, que compõem a Regional IV, apresentam os menores índices, somando 199 casos

sabe de onde vieram essas manchas e feridas?”, “Você já foi ao médico?”, “Já fez exame de Aids?”. “Não”, “não”, e “não”. O fato de o namorado nunca ter feito exames de HIV levou Renê a tomar a decisão de que deveriam fazer um exame de sorologia. O resultado do exame do companheiro saiu 40 dias após a coleta de sangue. Os

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Outubro 2012

A

ACASOS

FABIANE DE PAULA

50

FORTALEZA (dados até novembro de 2011)

6.643 casos na cidade

84

homens foram infectados, enquanto mulheres foram 34 entre pessoas de 20 a 34 anos. No ano de 2011

dois foram até o posto de saúde buscar o

vírus. Ou seja, não precisaria fazer o tra-

teste. Renê ficou esperando na recepção,

tamento. Três meses após a descoberta do

enquanto o namorado se dirigiu até o bal-

vírus, eles decidiram terminar o relaciona-

casos de mulheres

cão para retirar o exame. Passaram-se lon-

mento, que rapidamente se desgastou.

heterossexuais, não

gos minutos e nada de ele voltar. A demo-

contabilizando

ra, segundo lembra, era um sinal de que

REERGUENDO-SE

nenhum caso de

o diagnóstico poderia ser positivo. “Ele

O diagnóstico não foi motivo para que ele de-

contágio entre

estava com medo, receoso, por isso não

sistisse dos seus objetivos. “Foi aí que eu tive

lésbicas

teve coragem de voltar logo. Se ele estava

que estudar mais e aproveitar mais a vida”. Ele

com o vírus HIV, eu, consequentemente,

sabia que não podia esconder o diagnóstico. O

também estaria infectado”.

receio de dizer para as pessoas o acompanhou

12

07

Quando o namorado retornou e reve-

por muito tempo. Os primeiros a saberem foram

casos de homens

lou o resultado, Renê foi imediatamente

a ex-mulher e os filhos. Depois ele contou para

heterossexuais e 06

conversar com uma psicóloga. A angústia

o restante da família e amigos. “Foi um choque,

de homens gays

tomou conta dos dois. Ele, que acreditava

eles não estavam preparados. No início, até se-

ter tomado as devidas precauções e cui-

paravam pratos e alguns irmãos não queriam

dados, se viu perdido, pois não entendia

dividir o mesmo copo comigo. Levou muito

como tinha adquirido o vírus. “Ele, apa-

tempo para eles se conscientizarem de que eu

casos de crianças

rentemente, era saudável, tinha um ótimo

podia ter uma vida normal ao lado deles. Fiz

infectadas foram

corpo. Eu conheci a família dele, e sabia

questão de conversar com cada um e orientá-

registrados de 2000

com quem estava me envolvendo. Confiei

-los sobre a forma de transmissão, e que eu não

a 2011. Neste ano,

demais, esse foi o erro”, lamenta.

iria acarretar nenhum problema à saúde deles.

96

10 casos já foram

Como o parceiro de Renê já estava com

Com o tempo, tudo melhorou”, conta.

a imunidade muito baixa, logo começou o

Em novembro de 2001, através de um ami-

tratamento. As idas ao hospital começa-

go, Renê conheceu uma ONG que trabalha com

Fonte: Secretaria

ram a virar rotina para os dois. Ele ainda

soropositivos, a Rede de Solidariedade Positiva

Municipal da Saúde

tinha uma alta imunidade, e, depois de

(RSP). O objetivo da instituição é desenvolver

de Fortaleza

exames, foi diagnosticado que ele não ti-

no indivíduo a autoestima, com atividades mos-

nha a doença (Aids), mas era portador do

trando exemplos de superação. “Quando eu

contabilizados

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51 Outubro 2012

Todo mundo, independente de sexo, que transa sem camisinha está correndo risco, por isso a importância do exame

Renê

que, se não se cuidar, a doença pode levá-

começando, mas Carlinhos já havia bebido

-lo à morte mais rapidamente. “Eram oito

e fumado bastante. Os amigos chegaram

comprimidos todo dia, maluco. Isso dá um

cedo, e foram em busca do que eles que-

trabalho danado. E outra, aqui em Iguatu,

riam de imediato: sexo. A casa de diversão

pra pegar um medicamento é uma novela.

era conhecida em Iguatu. Mulheres fáceis,

Tem que fazer exame com o médico toda

cheirosas e que topavam tudo. Havia loiras,

vez que vai fazer um pedido de remédio. É

morenas, de cabelos curtos, compridos, li-

muito complicado”, justifica.

sos ou cacheados. Era só escolher.

Há oito anos Carlinhos vive com o ví-

Ele diz que consegue lembrar do ros-

rus da Aids. Mesmo vulnerável às doenças

to da mulher com quem ficou naquela

oportunistas, ele não largou seus vícios.

noite. “Rapaz, eu lembro quando aquela

cheguei na RSP e me deparei com gente viven-

Fuma cerca de vinte cigarros por dia e bebe

loira chegou em mim, e perguntou se eu

do com Aids há quinze anos, eu acreditei que

três ou quatro vezes por semana. “Tudo o

não queria ‘tirar um barato’ com ela, ali

poderia viver muito mais que eles”.

que eu faço é porque gosto. Eu sei o que

no quarto. É claro que eu fui. Ora, se eu

O contato com outras histórias e experiên-

estou fazendo. Ninguém nunca me obrigou

ia perder a oportunidade de pegar aquela

cias de vida diferentes fez com que ele pudes-

a nada, pelo contrário, todo mundo aqui

dona. Fui, não tive sorte, e paguei um pre-

se também ajudar outras pessoas. A facilidade

gosta de mim e quer me ajudar. Mas, malu-

ço alto por isso”.

para se comunicar foi um fator essencial para

co, é que eu já me acostumei com isso”, diz

que ele pudesse promover encontros e pales-

erguendo o cigarro com prazer.

Carlinhos nunca usou preservativo. Ele diz que não gostava porque o incomodava

tras para discutir o tema HIV/Aids. Hoje, Renê

Esse homem loiro de cavanhaque mal fei-

e lhe tirava o prazer. “Nem o gosto daque-

tem 41 anos, trabalha como assessor adminis-

to começou a trabalhar muito jovem. Sempre

le bicho eu sei. Eu nunca usei camisinha

trativo da Coordenadoria da Diversidade Sexual

demonstrou disposição na sua profissão de

porque não achava que era tão importante

da Prefeitura de Fortaleza, é o vice-coordenador

moto-taxista. Não era estranho ver Carlinhos

e pensava que estava transando com gen-

da RSP e promove debates sobre o tema em

acordar cedo para trabalhar, e chegar tarde

te que não tinha doença. Ilusão, maluco”.

congressos e escolas. Após dez anos da desco-

da noite por conta das corridas.

Na época da transmissão do vírus

berta do vírus, a Aids não se manifestou em seu

Durante cinco anos, quando ainda toma-

ele era casado, não tinha filhos e mora-

organismo, a sua imunidade continua alta. É ca-

va o coquetel de remédios, ele mantinha dis-

vam na casa dos seus pais. Dias depois

sado há oito anos com outro soropositivo que

posição para trabalhar e era considerado um

da noitada, ele transmitiu a doença para

também não tem a doença. Seu companheiro

exemplo de coragem e determinação pelos

sua esposa, e ainda a engravidou. Assim

tem 32 anos e convive com o vírus há seis anos.

cidadãos da cidade. Carlinhos era convidado

que descobriu a doença, na mesma época

pelas escolas para contar a sua história aos

que Carlinhos, ela se separou dele, e foi

O AVESSO DOS PONTEIROS

jovens que estavam iniciando a vida sexual.

embora de Iguatu com a filha. Hoje, sua

A 400 quilômetros da capital cearense, na ci-

Em 2008, uma escola particular da cida-

ex-mulher mora em Fortaleza, e toma o

dade de Iguatu, vive Carlos Rogério Diniz, o

de concedeu-lhe o título de “Homem de

Carlinhos, 37 anos. O homem sério, de apa-

fibra”, pela sua transparência e pela cora-

rência cansada, passa a maior parte do dia

gem de enfrentar as situações de precon-

sentado na calçada observando o vaivém dos

ceito. Carlinhos garante não ter medo de

carros e pedestres. A imagem desgastada é

nada, nem da morte, tão associada à Aids.

visível para todos os que passam pela rua.

“A morte é um passado, meu irmão, já foi.

Soropositivo, Carlinhos desistiu de fazer o tra-

Se ela voltar com orgulho, ela me derruba,

tamento há três anos, e hoje divide seu dia

se não, não tem quem faça eu cair”.

entre apreciar o movimento da rua e saciar seus desejos em tabaco e bebida alcóolica.

NOITADA INESQUECÍVEL

Transmitindo lucidez, diz que o trata-

Tudo aconteceu em um dia de diversão

mento é trabalhoso e demorado. Mas sabe

como outro qualquer. A noite estava apenas

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Iguatu não possui serviço ambulatorial especializado em HIV devido a dificuldade de profissionais especializados e da distancia de 378km da capital. Os medicamentos solicitados para a região chegam em até 03 dias

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52 Outubro 2012

A IGUATU (dados até novembro de 2011)

104

casos registrados

09

Eu nunca usei camisinha porque não achava que era tão importante, e pensava que estava transando com gente que não tinha doença. Ilusão, maluco

Carlinhos

casos foram registrados no ano de 2011, até outubro,

coquetel. A filha do casal não é portadora

05 homens e 04

do vírus devido aos tratamentos no pré-

mulheres

-natal. Eles não se relacionam há mais de

56,5%

dois anos, desde quando Carlinhos parou de vir a Fortaleza se consultar.

dos casos ocorre

“VOCÊ ESTÁ COM AIDS”

entre a faixa etária

Diarreia e febre foram os primeiros sinais,

de maior contágio:

após três meses daquela noite de farra.

de 20 a 34 anos

Todos os dias, às 16h da tarde, ele tinha di-

38

senteria que se prolongava por quase toda a noite, o que não o deixava dormir direito. O médico, ao ver a magreza de Carlinhos,

óbitos já foram

e saber quais eram os sintomas que ele es-

registrados. No ano

tava sentindo, disse sem hesitar: “Você está

de 2010, 04 casos

com Aids”. Carlinhos ficou descontrolado:

de morte foram

“Que é isso, rapaz, você não tem cerimô-

notificados

nia pra me dizer um negócio desses”. O

1.500

médico respondeu: “Faça o exame, e vamos começar o tratamento”. Assim que saiu da clínica, Carlinhos foi imediata-

a média anual

mente ao hospital público fazer o exame.

Soropositivo,

de exames de HIV

Dito e feito: o exame deu reagente ao HIV.

Carlinhos vive há

para gestantes e

oito anos com o

200 a 250 para não

rus, aos 29 anos, entrou em desespero. O

vírus da Aids

gestantes

impacto o levou a tentar suicídio por en-

Ele conta que, quando descobriu o ví-

forcamento seis vezes. “Foi um choque, eu Fonte: Secretaria Munici-

não conseguia acreditar que estava com

pal da Saúde de Iguatu

Aids. Não tive estrutura. Mesmo não sabendo o que a doença era capaz de provocar, eu tinha muito medo, porque isso não tem cura, e assusta todo mundo. Queria morrer, e por isso tentei me matar algumas vezes”.

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53 Outubro 2012

PARCIAL Iguatu

51%

do contágio é entre heterossexuais

12%

do contágio é entre homossexuais Fonte: Secretaria Municipal da Saúde de Iguatu

Hoje, ele pesa sessenta e oito quilos,

Ao contrário do seu ídolo, Freddie Mercury,

nue a mesma. O desejo de cura, mesmo não

em 1.75 de altura. Antes dos primeiros

que há 20 anos foi vítima da Aids – e que achava

fazendo o tratamento, não o faz menos cora-

sintomas, ele tinha noventa quilos. A diar-

perda de tempo ficar na cama o dia todo sem

joso. A autenticidade de Carlinhos é a qualida-

reia provocou-lhe a perda de mais de vinte

fazer nada, – Carlinhos leva uma vida tranquila,

de que mais se mantém firme. E, em meio à

quilos em um mês. Em 2009, todos seus

em que o ócio se mistura às feridas em seu cor-

cobranças e julgamentos, tudo o que ele quer

dentes caíram e também perdeu parcial-

po provocadas pela falta de tratamento.

é sentar na calçada de concreto, ter o cigarro

mente a visão. Hoje, após um tratamento, a recuperou por total.

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Carlinhos não pratica sexo há oito anos, embora a sua atração pelas mulheres conti-

do lado e contemplar a rua tão movimentada nesses dias de calor no interior do Ceará.

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54 Outubro 2012

A 1

Dica de filme: A Cura Imagine que a cura da Aids foi definitivamente encontrada. Agora imagine uma criança que tem um grande amigo que é portador do vírus. A força de vontade e o amor fazem com que haja luta para que o amigo possa encontrar o medicamento e prolongar a relação de fraternidade. Isso que acontece no filme de Peter Horton, lançado em 1995. Uma união incomum entre dois amigos que quebra barreiras e preconceitos. Uma das grandes características de Erik, vivido por Brad Renfro, é ser solitário. Sua mãe, Gail, inter-

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pretada por Diana Scarwid, não o dá muita atenção, e negligencia suas atitudes. Erik conhece Dexter, personagem de Joseph Mazzello, um menino de 11 anos que tem Aids. Eles sempre foram unidos, e gostavam de compartilhar momentos bons e ruins de ambos. A trama começa a tomar rumos diferentes quando eles leem uma notícia em que um médico de outra cidade descobriu a cura da Aids. A pressa de encontrar esse profissional une-se à esperança, para que, enfim, Dexter se cure e Erik possa ter seu amigo saudável e longe dos medos que a doença traz.

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55 Outubro 2012

2

FICHA The Cure (A Cura)

DIRIGIDO POR Peter Horton PRODUZIDO EM Estados Unidos (EUA) ANO 1995 DURAÇÃO 110min GENÊRO Drama COM > Brad Renfro > Aeryk Egan > Delphine French > Joseph Mazzello > Annabella Sciorra

1. Carlinhos com seu pai 2. E recebendo um beijo afetuoso de sua mãe

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56 Outubro 2012

A

RESENHA

Depois daquela viagem Valéria Piassa Polizzi

A

os 16 anos, Valéria Piassa Polizzi fez uma viagem de navio para a Argentina com seu pai

e irmã para comemorar o Natal. Na viagem fez amizade com um rapaz brasileiro. De volta ao Brasil, após se conhecerem melhor, começaram a namorar. Ela era virgem na época. Seis meses depois, eles transaram no apartamento do rapaz, em São Paulo. Preservativo e Aids ainda não eram uma preocupação. “E, além do mais, segundo meu namorado, camisinha era coisa de ‘puta’. Eu não era ‘puta’; logo, não precisava de camisinha”, relata no livro. A adolescente tinha 18 anos quando começou a sentir

fortes dores no estômago. Eram os primeiros sintomas. No início, Valéria escondeu o diagnóstico para seus amigos e uma parte da família por conta do preconceito. Por muito tempo, desistiu de fazer planos, pois acreditava que logo iria morrer. Decidiu ir estudar nos Estados Unidos, onde conheceu os avançados tratamentos voltados para soropositivos. Mas teve que retornar ao Brasil devido a uma tuberculose renal, ocasião em que contou que tinha Aids para toda a família e amigos. Engajou-se, então, com atividades e projetos referentes às pessoas que vivem com HIV, e também decidiu escrever um livro contando a sua história. Lançado em 1997, está em sua 19° edição e já vendeu mais de 300 mil exemplares. A obra é mais que um ótimo livro para ser lido nas férias, ou um paradidático para avaliações no colegial. É uma experiência forte registrada em 279 páginas. Ficam nas entrelinhas ideias de respeito, amor, compreensão, tolerância e esperança, não só para quem é portador do vírus HIV, mas para todos, de uma forma geral. O preconceito é, sem dúvida, a maior causa de debilidade e morte entre os soropositivos. “Mais difícil do que ter o vírus da Aids era ter que fingir que não tinha”. Hoje, a autora é conhecida nacionalmente e sempre procura conscientizar as pessoas da necessidade do uso do preservativo nas relações sexuais.

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Quando uma pessoa é infectada pelo vírus HIV, ela pode passar anos sem sentir os sintomas, isso porque o vírus pode ter um longo período de incubação no organismo humano. Até então, o sujeito não está doente, pois o vírus ainda não se manifestou nas células sadias. Quando as células começam a serem invadidas pelo vírus HIV, os primeiros sintomas aparecem e a pessoa se debilita, ficando doente. Nesse estágio se constitui a Aids, que é a imunodeficiência do sistema de defesa do organismo. Não há prazo definido para os sintomas da doença se manifestarem. Há pessoas que passam dez anos somente com o vírus, assim como os sintomas da doença podem aparecer nos primeiros meses depois da infecção.

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57 Outubro 2012

JOGO RÁPIDO Primeira vez, 16 anos, Aids

V

aléria Piassa Polizzi foi infectada aos 16 anos, em sua primeira relação sexual, porque não usou camisinha. Ela conta sua história de como aprendeu a conviver com o vírus no livro “Depois daquela

viagem – Diário de bordo de uma jovem que aprendeu a viver com a Aids”. Hoje, aos 40 anos, ela é escritora, jornalista e está casada. Quer escrever mais livros, além de

outros dois já publicados, Papo de garota e Enquanto estamos crescendo. O primeiro livro ganhou uma versão no teatro. Em entrevista, defende a educação sexual nas escolas como prevenção.

A Ponte – Receber o diagnóstico HIV Positivo traz mudanças psicossociais. Há casos de suicídio, depressão, e até mesmo abandono de lar. Qual foi a sua reação quando descobriu que era portadora do vírus HIV? Valéria Piassa – Ficamos atônitos, eu e minha família. Isso foi em 89 e não havia muita informação sobre Aids. AP – Você adquiriu o vírus na adolescência. Uma fase de transição, de muitas descobertas e sonhos. O que mudou na sua vida depois que descobriu a Aids? VP – Durante um tempo, acabei me isolando. Mas isso mudou com uma viagem que fiz à Califórnia, onde fui estudar inglês numa universidade por 6 meses. Nessa época, enquanto no Brasil a Aids era tratada como sinônimo de morte, lá já se falava em “pessoas vivendo com HIV e Aids”. Foi lá que conheci, pela primeira vez, grupos de apoio a soropositivos e ativistas que lutavam pelos seus direitos. Isso me fez crer que era uma questão cultural e, se lá havia mudado, aqui poderia ser mudado também. Quando voltei ao Brasil achei que deveria fazer alguma coisa e aí surgiu a ideia de escrever um livro.

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AP – O livro “Depois Daquela Viagem” virou peça teatral em São Paulo. O que você sente ao saber que sua obra ainda está viva, depois de 14 anos do lançamento? Você pretende lançar um filme contando a sua história? VP – O tema continua atual, porque fala de preconceito, adolescência, vida, família... E a Aids, apesar de otratamento ter avançado muito, continua aí. E o adolescente vai continuar tendo todos os problemas da adolescência até o fim do mundo. Por isso, fico feliz com o fato de o livro ainda ser muito lido. Não tenho projetos para cinema. AP – O Ministério da Saúde lança campanhas publicitárias e atua em programas de combate à Aids. O Programa Saúde na Escola ajuda crianças e adolescentes a se prevenirem contra os diversos tipos de doenças. Você concorda com a forma como são feitos os trabalhos sobre Aids pelo órgão, e o que você daria como sugestão ao Ministério? VP – Educação sexual contínua nas escolas, desde cedo. Acho que campanha esporádica é muito pouco.

AP – Pesquisas apontam que um número de infectados que cresce atualmente está relacionado aos idosos. Segundo o Ministério da Saúde, os casos de Aids em pessoas acima de 60 anos dobraram entre 1997 e 2007. Dados do Boletim Epidemiológico de 2009 mostram que os casos registrados dessa época passaram de 497 para 1.263. No entanto, as campanhas ainda são voltadas para jovens e homossexuais, aqueles considerados “grupos de risco” em outras décadas. Por que você acha que não houve ainda uma adequação a essa nova realidade? VP – O governo já fez sim várias campanhas para esses públicos, mas como eu disse é uma questão de educação, mudança de comportamento e não se resolverá com um comercial de 30 segundos ou um panfleto nas ruas. Pode até ajudar. Mas resolver, mesmo, só educação. AP – Muito se fala na cura da Aids. Há ideias de que os remédios que curam a doença já existem, e que só não foram propagados por comprometer a base financeira da indústria farmacêutica que produz os remédios. O que você pensa sobre isso? Você acredita que a cura para a Aids está próxima? VP – Não acredito nisso. A ideia de que temos a cura para tudo é muita prepotência do ser humano. A gripe está aqui há milhares de anos e não temos a cura. Lido com o HIV como uma doença crônica. Hoje sei que tenho que tomar vários comprimidos ao dia, lidar com efeitos colaterais, controlar a alimentação e fazer exercícios físicos, mas apesar disso levo uma vida com qualidade.

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58 Outubro 2012

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59 Outubro 2012

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60 Outubro 2012

A

ACASOS

“De tudo ficaram três coisas: A certeza de estarmos sempre começando A certeza de que é preciso continuar E a certeza de que podemos ser Interrompidos antes de terminarmos. Portanto: Fazer da interrupção um caminho novo, Da queda um passo de dança, Do medo uma escada, Do sonho uma ponte, Da procura um encontro”

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61 Outubro 2012

“Eu nasci de novo” TEXTO

Luana Benício e Maíra Braga Pontes Cordeiro

FOTOS

Maíra Braga Pontes Cordeiro

Esses versos de Fernando Sabino passaram a fazer parte da vida da fisioterapeuta Ticiana Torres de Melo, desde a manhã do dia 1° de maio de 2011. Aos 25 anos, trabalhava dando plantões em hospitais. Durante a semana, seus dias eram ocupados com o trabalho. Levantava cedo para cuidar dos seus pacientes e retornava para casa por volta das 21h. Apesar de muitas vezes trabalhar também nos fins de semana, sempre dava um jeito de se divertir com seus amigos. Em casa, gostava de dormir na cama dos pais, mania que trouxe da infância. Nesse dia, acordou cedo como de costume. Atipicamente, não havia saído no dia anterior. Levantou-se, tomou o café e pegou a Blazer preta de seu pai em direção ao trabalho. No caminho, sofreu um acidente de carro que mudaria o rumo da sua vida. Ela mesma conta como foi que tudo aconteceu

FOTO > DANIELLE ROTHOLI

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62 Outubro 2012

A

“E

ra um domingo de manhã, eu estava indo trabalhar. Fui em direção ao primeiro

hospital dos três em que ia dar plantão naquele dia. Tinha que estar no hospital às 8h da manhã, por isso nem pensei em sair no dia anterior. Fiquei em casa, dormi com minha mãe e com meu pai, adorava dormir no meio deles. Acordei, tomei café, me aprontei, nada fora do costume. Peguei a BR-116 por volta das 7h30, caminho que sempre fazia, quando ia trabalhar no hospital da Messejana. Logo após o Makro, um carro me fechou. Na tentativa de desviar, puxei a direção para a esquerda. Mas à minha esquerda havia um poste. Para evitar que fosse de encontro ao poste, virei a direção no sentido contrário e perdi o controle do carro, que bateu no meio fio e capotou três vezes. Eu fui arremessada a 13 metros pelo pára-brisa traseiro do carro. A todo momento fiquei consciente. Me lembro de tudo. Assim que eu fui jogada do carro, já não sentia mais minhas pernas. Logo pensei: ‘Meu Deus, fraturei minha co-

Ticiana e sua

luna, não posso de jeito nenhum tentar me

ex-chefe, Maria

movimentar’. Então eu fiquei parada. Pouco

Tereza

tempo depois, apareceram muitas pessoas querendo ajudar. E, assustada, eu só repetia: ‘Não toquem em mim, me deixem do jeito que eu estou!’. Uma senhora se aproximou de mim e perguntou um telefone para con-

coincidentemente, saindo do plantão. Então

No dia da minha operação, eu fiquei de

tato. Eu dei o telefone do meu pai, mas com

ele ficou comigo, me acompanhou todos os

8h da manhã até 19h numa tábua de ma-

muita dificuldade de falar. Minha respiração

momentos em que fiquei internada. No hos-

deira. Como eu não podia fazer movimento

estava ofegante e eu sentia muita dor. Mas

pital, fui levada para a UTI e fiz uma série

nenhum, tiveram que cortar toda a minha

consegui falar mesmo assim e, em cinco mi-

de exames. Eu estava tranquila, tentava não

roupa. Na hora da cirurgia, eles abriram mi-

nutos, meu pai chegou junto com o SAMU

me desesperar. Olhava para minha mãe e

nha coluna e puderam ver que eu não havia

[Serviço de Atendimento Móvel de Urgên-

dizia: ‘Mãe, vou precisar muito de você’. O

secionado a medula. Meu tio, que acompa-

cia], que também foi muito rápido. Eles me

resultado da tomografia mostrou que minha

nhou a operação, saiu da sala chorando. Mui-

levaram direto para o hospital da Unimed.

coluna estava com um trauma muito grande

to emocionado, compartilhou a notícia com

Eu ainda sentindo muita dor. Estava com três

e o médico já estava preparando meus pais,

minha família, que estava lotando a sala de

costelas fraturadas e o osso do braço estava

acreditando que eu realmente havia seciona-

espera do hospital. Todos choraram muito,

dividido em três partes.

do a medula e ia ficar paraplégica. Ficaram

sensibilizados, gritando de felicidade. Eu

todos na espera para que a cirurgia apenas

tenho uma família muito grande e conheço

confirmasse o quadro.

muita gente, então eram muitas pessoas co-

Quando eu cheguei no hospital, meu tio, que é medico, chefe de emergência, estava,

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memorando no hospital por ainda haver uma esperança, por não ser algo definitivo. Ainda tinha chance de voltar a andar”. O motorista do carro que fechou Ticiana na BR não prestou socorro e nunca apareceu. Para ela, aquela manhã foi o início de uma nova vida, com novos valores. “Eu nasci de novo, faço aniversario duas vezes por ano agora”.

“NÃO É UMA PESSOA, É UM ANJO” A entrevista que faríamos com Ticiana estava marcada para as 8h30, na sua casa, em um condomínio no bairro Cidade dos Funcionários. Quando chegamos, a sua mãe nos levou até o quarto da filha, que já estava quase pronta, apenas ajeitando os cabelos e se maquiando. “Antes do acidente, eu adorava maquiagem. Mas, depois do que aconteceu, eu não tinha vontade de me maquiar. Me sentia feia, perdi a vaidade. Essas coisas mexem muito com a autoestima da gente”, conta. Depois de um certo tempo, com muita insistência da família e dos amigos, Ticiana foi recuperando a vaidade feminina.

Olhava para minha mãe e dizia: ‘Mãe, vou precisar muito de você’

Ticiana

No seu quarto há várias fotografias

Em sua casa,

de anos anteriores. Em algumas, ela está

conversando com

com as irmãs; em outras, sozinha. Há tam-

mãe e irmã sobre

bém uma cama bastante espaçosa e um

a viagem para São

televisor. O banheiro passou por algumas

Paulo

adaptações. A pia, por exemplo, foi rebaixada. “Meu quarto era lá em cima. Aqui antes era um escritório, mas tivemos que adaptá-lo”, explica.

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64 Outubro 2012

A Resolvemos acompanhá-la para o hospital onde faz tratamento. “Era um dos locais onde eu trabalhava”, informa. Antes do acidente, costumava trabalhar de domingo Ticiana e sua

a domingo, entre plantões em hospitais e

pequena cadela

trabalhos sociais. A mãe de Ticiana a ajuda

da raça Poodle

a subir no carro. Ela nos ensina a dobrar a cadeira. “Ela é desmontável. Uma das mais leves e modernas”, afirma. Preocupada com a filha, nos dá uma série de conselhos. “Cuidado ao sair do carro, ele é alto demais. Afasta mais o banco, tá muito apertada. Quando vocês chegarem lá, depois que ela sentar na cadeira, ajeita ela, tá?”. Assim que paramos no estacionamento do hospital, Ticiana passou do carro para a cadeira com uma agilidade surpreendente. Ajeitou-se na cadeira, cruzou as pernas, sempre preocupada com a aparência. “Como estou? Estou direita?”, perguntou. As pessoas que passavam ao nosso lado olhavam de um modo diferente, mas isso visivelmente não a incomodava mais. “No começo, eu não saía de casa porque as pessoas ficavam olhando. Eu chorava”, lembra. No percurso entre o carro e a entrada no hospital, vimos como um cadeirante enfrenta limitações de mobilidade na nossa cidade. O acesso pelo estacionamento é complicado. O chão pedregoso e cheio de buracos dificulta a chegada até a rampa que dá acesso ao hospital. A rampa, inclinada demais, é outro grande desafio. Já dentro do hospital, Ticiana nos leva para conhecer a sala onde trabalhava antes do acidente. Lá, ela cuidava de um grupo de tabagistas que lutam contra o vício. Em seguida, ela fez alongamento com os pacientes. Eles faziam exercícios de respiração e alongamento com os braços. Todos ficaram muito felizes com a sua chegada. Em especial, dona Francisca Monteiro, 48 anos. “Minha mãe foi muito bem recebida pela Ticiana. Quando chegou aqui no hospital, o médico anterior dela havia dito que não tinha mais jeito, que ela já

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65 Outubro 2012

to. E a esperança se renova a cada dia”,

tava morta. Ele disse que ela só tinha 2 me-

Quanto mais pessoas encontrava no

ses de vida, por isso nem valia a pena fazer

hospital, tanto mais era perceptível o

tratamento. Mas eu não desisti. Trouxe o diag-

quanto Ticiana é uma pessoa querida.

Perto do meio-dia fomos para casa. Duran-

nóstico para cá e, assim que viram, disseram:

“Ela sempre é assim. A gente não acredi-

te o caminho de volta, ela falou de Marcelo,

‘Vamos começar o tratamento dela hoje, sua

ta onde é que ela encontra forças, porque

com quem está namorando há um mês. “É

mãe vai ficar boa’. No começo, ela não queria

a gente sempre imagina uma situação

bom para aumentar a nossa autoestima. A

beber nem comer, tava ficando muito fraca.

dessas com a gente e é muito difícil. E ela

gente se sente desejada, bonita”, comenta.

Mas a Tici conversava com ela, dizia que era

não. Toda vida que ela chega aqui, a gen-

Ela admite que não estava esperando por algo

importante ela comer pra se recuperar logo,

te pergunta: ‘E aí, Tici, como é que tá?’.

assim nesse momento. “Eu tinha comentado

pra ficar bem. Já faz um ano que ela tá aqui,

‘Melhor que ontem, e amanhã vai ser me-

com minhas amigas que não queria me envol-

e hoje em dia ela voltou a comer, voltou a

lhor ainda’. Então ela é super assim. A

ver com ninguém agora, mas ele apareceu”.

ter vida. A Ticiana não é uma pessoa, é um

gente só tem a agradecer, porque a gen-

Ela o conheceu há alguns anos, mas não

anjo. O trabalho que ela faz aqui é muito im-

te nunca imagina uma coisa dessas com

se interessou por ele. Mas, segundo suas

portante e, hoje, eu acredito que ela tinha

a gente ou com amigos próximos. Mas ela

amigas lhe contaram, ele já era interessado

que passar por isso. Ela está recebendo de

veio para mostrar pra gente que isso é

por ela. O reencontro aconteceu em uma fes-

volta todo o amor que ela dedicou para essas

mais um obstáculo que ela vai vencer, e

ta na casa de Ticiana. Ela não sabe explicar

pessoas”, diz emocionada.

ela está aí firme e forte, e vai dá tudo cer-

por que, naquele dia, ela passou a vê-lo com

desabafa Layane Lima, 22 anos.

olhos diferentes, e não se esquivou quando Com suas antigas

ele veio conversar com ela. “Uma amiga dis-

colegas de trabalho

se que o comentário dele quando me viu foi: ‘Ticiana, linda como sempre’. Eu pensei: ‘Rapaz, o Marcelo. Tá mudado, não é? Se formou, tá mais maduro, tá diferente. Por que não?”, revela com um sorriso nos lábios. Ticiana descreve o namorado como alguém encantador, que a carrega nos braços, empurra a cadeira, cuidando dela como se fosse a coisa mais preciosa que ele tivesse naquele momento. Se diz feliz, gosta do relacionamento dos dois, mas quer ir com calma, não quer apressar nada, até mesmo porque dia 31 de outubro ela estará indo para São Paulo para fazer um tratamento. “A gente se gosta. É legal tá com ele, mas o que for de ser, será”, afirma confiante.

FISIOTERAPEUTA: A PACIENTE Após o acidente, muita coisa mudou na vida de Ticiana. O primeiro mês foi o mais difícil. Ela passou por todas as fases pelas quais normalmente se passa em uma situação dessas: depressão, revolta contra Deus, o típico questionamento: “Por que eu? Sempre fui tão boa. Boa pessoa, boa filha”. Mas, como toda fase, as coisas foram mudando, e ela foi enxergando sua nova situação com outros

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66 Outubro 2012

A

olhos. Passou a dedicar cada minuto de seu

paralelas e órteses em suas pernas, o que,

dia a voltar a andar. Reconhece que teve sor-

de acordo com o educador, pode ser consi-

te pelo fato de a lesão não ser maior, o que

derado um grande avanço.

lhe dá esperanças de voltar a andar.

“A força de vontade dela era 100%.

Ticiana fez tratamento de reabilitação

Para ela, não tem essa de ‘não vou conse-

fisioterapêutica e acompanhamento psico-

guir, não vai dar’. Por mais que eu dissesse

lógico por um mês no Hospital Sarah. “No

‘Olha, vamos tentar um exercício, é difícil’,

começo, é muito difícil. Vem a fase da revol-

ela dizia ‘Não, vamos lá. Não tem isso não,

ta, da depressão. Eu era uma pessoa feliz,

a gente tenta’. Se depender da força de

realizada profissionalmente. Não conseguia

vontade dela, rapidinho ela tá andando”,

entender por que isso tinha acontecido comi-

afirma Euller.

go”. Por ser fisioterapeuta, ela sabe que, no seu caso, se trata de uma recuperação lenta.

“ANDA LOGO, TICIANA!”

Ela também fez tratamento na acade-

Um dia, navegando pela Internet, Ticiana

mia Personal Care, que pertence ao fisio-

descobriu um tratamento em São Paulo que

terapeuta Helder Montenegro. Ele ficou

não existe em outro lugar do Brasil, o Acre-

sensibilizado com a campanha “Anda logo,

ditando. Trata-se de um programa de exer-

Ticiana!” (veja quadro ao lado) realizada

cícios focado em estímulos abaixo do nível

para arrecadar fundos para seu tratamen-

da lesão e em posturas de desenvolvimento,

to em São Paulo. Ele ofereceu o tratamento

que tem mostrado muitos resultados positi-

de graça. “Eu me sensibilizei pelo fato de

vos. O problema é o valor. A sessão de 1 hora

ela ser fisioterapeuta. Quando vi a campa-

custa R$ 115,00. Mas o recomendável é um

nha, entrei em contato com ela e disse que

tratamento de 2 horas diárias, de 3 a 5 vezes

ela podia fazer o tratamento aqui. Sem ne-

por semana. Total: R$ 1.115,00 por semana.

nhum custo”, conta.

Como os gastos da família triplicaram após o acidente, não teriam como arcar com mais esse valor. Então a família e os amigos criaram a campanha “Anda logo, Ticiana”. A mobilização foi geral. Ticiana entrou em

A força de vontade dela era 100%. Para ela, não tem essa de ‘não vou conseguir, não vai dar’

contato com amigos que trabalham em jornais da cidade e uma TV local. A divulgação foi grande, o que fez com que mais pessoas entrassem na campanha. “Cadeirantes de vários lugares

Euller Almeida

me ligaram, entraram em contato comigo. Al-

Educador físico

guns me desejando forças, outros compartilhan-

ratória, ministrado voluntariamente por profes-

do histórias”, recorda Ticiana. Muitas pessoas

sores, cuja verba foi revertida para a campanha.

doaram dinheiro, outras disseram que, naque-

O hospital também ajudou vendendo blusas da

Os dois meses de tratamento na aca-

le momento, não poderiam ajudar, mas que,

campanha. Funcionários mobilizaram suas fa-

demia resultaram em uma significativa

quando ela estivesse perto de viajar, poderia

mílias para doarem dinheiro para Ticiana. Pro-

evolução. Euller Almeida, 31, o educador

ligar, que eles ajudariam como pudessem.

moveram reuniões para contar a história de Ticiana e as pessoas decidiam ajudar.

físico que a acompanhou em seu trata-

No Hospital de Messejana, onde trabalhava,

mento, lembra que, ao final do tratamen-

Ticiana recebeu muitos apoios. Colegas monta-

No final, a campanha conseguiu arreca-

to, Ticiana já estava realizando pequenos

ram um bazar, que durou mais de uma semana,

dar fundos suficientes para Ticiana e sua

movimentos com as pernas. Ela chegava a

venderam rifas, ofereceram até mesmo um cur-

mãe conseguirem passar cerca de 6 meses

caminhar devagar, com a ajuda de barras

so de atualização em Fisioterapia Cardiorrespi-

em São Paulo. “A campanha mexeu muito

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67 Outubro 2012

Acidentes de trânsito: Brasil é o 5°

Dando aula de alongamento

com o coração das pessoas aqui, no Ceará. Fiquei impressionada como ela conseguiu que a gente levantasse fundos e almas, que talvez já estivessem adormecidas. Mas a campanha não para, não existe um tempo determinado para a recuperação da Tici, e os custos são altos. Ela irá continuar até que a Tici consiga alcançar seu objetivo maior: voltar a andar”, garante Maria Tereza, coordenadora de Ticiana no Hospital de Messejana.

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Campanha “Anda logo, Ticiana” Informações: Agencia: 0713-7 Conta: 0005627-8 Bradesco Titular: Ticiana Pinto Torres de Melo Contato: (85) 8833-2340 / (85) 86818757 / (85) 9675-1057 e-Mail: tici_torresdemelo@ hotmail.com

De 2002 para 2010, o Brasil saltou de 32.753 registros para 40.160 ocorrências do gênero, o que o posiciona em quinto lugar mundial em número de casos. O Ceará é um dos estados onde mais ocorrem acidentes de transito no País. De acordo com dados do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura do Transporte), a média mensal de acidentes varia de 247 a 365. A maioria, causada pelo consumo do álcool. Apesar de o número de apreensões e atuações ter aumentado com a implantação da Lei Seca há exatos quatro anos, no dia 19 de junho de 2008, o número de mortes e acidentes não seguiu a mesma tendência em oito das maiores capitais brasileiras, segundo levantamento feito pela reportagem do Terra. E uma delas foi Fortaleza. Fazendo um comparativo do número de mortos por acidente desde 2007 até 2009 na Capital, a melhoria foi relativamente baixa em relação ao que se esperava. O total de vítimas fatais baixou de 1.437 (2007), para 1.405 (2008) e 1.153 (2009). Só no ano passado, os acidentes provocaram o registro de 145 mil feridos em hospitais do sistema público no Brasil, o que custou ao Estado R$ 190 milhões. O número de hospitalizações em 2010 por acidentes foi 15% maior que em 2009.

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ENTREVISTA

“Eu não tinha medo... TEXTO

Camila Silveira e Manoela Cavalcanti

FOTOS

Thalyta Martins

“As prisões eram cercadas de um clima de terror, do qual não se poupavam pessoas isentas de qualquer suspeita, conforme carta, anexada aos autos, do estudante de Medicina Adail Ivan Lemos, de 22 anos, encaminhada à Justiça Militar carioca, em 1970. ‘(...) Quando entrei na sala de jantar, minha mãe, sentada escrevendo à máquina, chorava em silêncio. Um pouco antes, por volta das 15h30, meu irmão tinha sido preso enquanto estudava. Minutos depois começou a ser agredido fisicamente, no quarto de minha mãe, levando, segundo suas palavras, ‘um pau violento’. Socos, cuteladas, empurrões, seriam ‘café pequeno’ perto do que viria mais tarde. Mais ainda ali, separado da mãe por alguns metros, teve sua cabeça soqueada contra a parede (...)”. (Trecho extraído do livro “Brasil Nunca Mais – Um relato para a história”)

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...denunciava a tortura” C

asos similares a este aconteceram

os homens. De tudo, o que mais surpreende, é

com centenas de pessoas, duran-

a sua memória impecável.

te os anos da ditadura militar bra-

sileira. Muitos militantes políticos de esquerda ou simpatizantes destes foram ameaçados, torturados, sequestrados ou “presos por ‘suspeita de subversão’”, como se costumava acusar indiscriminadamente. Mas houve muitas formas de resistência, mesmo diante dos riscos que significava opor-se ao que foi chamado de “revolução”. Alguns davam asilo em suas casas a perseguidos políticos, outros engrossavam as passeatas de protesto nas ruas, cada um combatia como podia. Pádua Barroso, 82 anos, advogado criminalista, fez a sua parte representando legalmente presos políticos no tribunais. Tomar um partido que desfavorecesse ou denunciasse falhas do governo militar, podia ter funestas consequências. Nesta entrevista, ele nos conta como foi defender perseguidos políticos, quando outros optaram por abster-se e preservar-se. Ao entrar em seu escritório, chama a atenção um relógio grande e pendular, que marca as horas num tique-taque intermitente e sonoro, e que nos acompanhou durante toda a conversa. As estantes cheias de livros de capas coloridas e, em especial, a sua vistosa mesa do escritório, feita com a madeira de um extinto cinema fortalezense, sobre a qual repousam um castiçal e um cinzeiro de bronze, prestam um ar de seriedade à sala. O escritório possui dois quadros. Um enorme painel colorido, logo na entrada, e um quadro em branco e preto, que simboliza a opressão sobre

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A Ponte – Foi o senhor que escolheu a decoração do seu escritório? Pádua Barroso – Tudo que tenho aqui, eu ganhei. Essa madeira (apontando para a madeira que reveste o escritório) vem do Cine Moderno. Eu era advogado da Companhia de Cinema Severiano Ribeiro, na mesma época em que comecei a montar meu escritório. Iam demolir o Cine Moderno. Eu não gostava de filar nada de ninguém, e acompanhei tudo interessado na madeira. Eles venderam a madeira a uma serraria. Encontrei e fui lá, porque não queria falar com Severiano, pois eu era advogado deles e ele ia me dar se eu pedisse. Então, fui ao rastro da madeira. Quando cheguei lá, o dono da serraria era meu amigo. O dono perguntou o que eu queria e falei que era a madeira. Aqui você está vendo a sala do Cine Moderno. A madeira foi trazida, em 1927, do Recife para ser montado o Cine Moderno. Esse estilo ainda é muito usado na Inglaterra. Depois de montada a sala, eu precisava de um colorido para quebrar a monotonia da madeira. A doutora Wanda Sidou [parceira de Pádua na defesa de presos políticos] deu o quadro, mas eu não entendia nada, só sabia que o tema era justiça. (Leia box ao lado).

Quadro Justiça O quadro é a Justiça com três caras. Ela está usando uma venda transparente, ela não é cega. Tem três caras, dois olho e um nariz. Cada olho retrata uma situação. Um olho mostra a situação dos presos políticos. No outro, há crianças abandonados e órfãos, e mães desesperadas e pessoas desesperadas. As cores que a artista usou não existem mais. A meia-lua presente em todos os olhos indica a esperança, a inspiração do povo. No espaço entre um olho e outro está a balança, que representa o sonho de justiça. A balança deveria pender a favor do povo, mas ela pesa sobre o povo, indicando a opressão e, do outro lado, é favor de poucos. Os doutores, minoria, lá em cima, e a multidão, lá embaixo, suportando o peso da balança. Os cravos da balança provocando a desigualdade. O cravo da balança quando gera a igualdade, forma a foice e o martelo (símbolo do comunismo).

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AP – O senhor é a favor do socialismo? Barroso – Acredito no socialismo porque não tem outra via. Não através da ditadura, mas com muito esforço da humanidade no decorrer dos anos. Tem que haver uma via, não pode ficar o capitalismo. O capitalismo transformou o universo em um lugar que ninguém pode viver nele. O arsenal atômico das grandes potências é bastante para destruir 72 planetas e nos só temos 1 planeta. A natureza está acabando. O homem está destruindo tudo. E por que o homem quer viver mais, se não vai ter onde viver? O capitalismo criou essa situação. Tudo virou produto.

PERFIL Pádua Barroso NACIONALIDADE Brasileiro IDADE 82 ATIVIDADES Advogado criminalista RESUMO Nasceu no município de São Gonçalo

AP – Alguma vez foi interrogado pelos militares? Barroso – Quando deram o golpe, fui chamado ao quartel general para prestar declaração no processo estourado no serviço público. Fui chamado porque tinha uma ação contra mim, pois eu havia assinado um abaixo-assinado pedindo o registro para o Partido Comunista. O capitão perguntou quem tinha pedido para eu assinar e eu respondi que tinha sido o Soldado. O capitão ficou sem entender nada. O Soldado era apelido. O nome eu não lembro direito, era um rapaz que trabalhava na oficina mecânica de automóveis, na Rua Governador Sampaio. O capitão, ele não me conhecia, também freqüentava a oficina. O capitão perguntou onde fica a oficina. Acabei falando o nome do soldado e o capitão balançou a cabeça e ficou repetindo: “O Soldado!” Isso foi depois do Carnaval. O Soldado tinha morrido numa barroada de jipe, na Duque de Caxias. Não havia soldado nenhum. Soldado era meu amigo, eu tinha escondido ele na minha casa. O capitão agradeceu e continuou conversando, dizendo que queria fazer um pedido. Falou que o governo precisava de gente como

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do Amarante. Veio para Fortaleza em 1947. Na década de 50 entrou no curso de direito da UFC. Defendeu o primeiro preso político julgado do estado do Ceará, João Farias de Sousa. E atualmente continua trabalhando no mesmo escritório no Palácio do Progresso no Centro da Cidade

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a maioria não queria o meu sequestro, a minoria roubou meu carro para me assustar.

Eu não tenho raiva de militares. Eu gosto deles. Eles são honestos

eu. Fiquei sem entender como precisava de gente como eu. Ele respondeu: “De gente honesta”. E perguntou como era o socialismo. Eu respondi dizendo que era a favor do socialismo, admitindo nele o nacionalismo. Quando falei nacionalismo, percebi que tocou o capitão e ele começou a rir. AP – E foi perseguido? Barroso – Eu sabia que eles me perseguiam. Os militares pensavam que eu não sabia. Eu sempre os vi, mas eles não sabiam que eu os via. E sempre tinha alguém que contava as coisas pra mim. Teve um boicote para o meu sequestro. Um tenente-coronel, amigo meu, me informou. Eu era amigo da maioria que fazia parte do Exército, eles me conheciam bem. Eu sei que eles não admitiram o sequestro porque sabiam que eu era um advogado intransigente e era bastante profissional. Isso era opinião deles da minha pessoa. Eu não tinha medo de nada. Dizia tudo, denunciava a tortura. Lembro que um dia eu estava indo para faculdade com meu carro, era um Corcel lindo, procurar um amigo. Isso era mais ou menos 6 horas da tarde. Estacionei o carro ali perto e fui atrás desse meu amigo. Estava carregando uma capanga, é um tipo de pasta para guardar documentos e dinheiro. Quando eu voltei, não encontrei mais o carro. Perguntei para algumas pessoas que estavam ali perto se tinham visto alguma coisa. Falaram que tinham sido eles. Como

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AP – E qual foi o seu primeiro caso de defesa? Barroso – Foi de João Farias de Sousa. Todos o conheciam por Caboclinho e ele era aposentado da Estrada de Ferro daqui, de Camocim. Ele foi acusado de que era comunista, pois esteve em Cuba e trouxe um boné de Cuba. Ele era um comunista histórico, já velho. Foi condenado a 10 anos de prisão. No começo, não havia auditoria militar no Ceará, era em Recife. Depois foi instalada a auditoria aqui e ninguém mais foi julgado em Pernambuco. Alguns casos começaram lá, como de alguns políticos que tiveram o mandato cassado. Aníbal Bona-

vides e Blanchard Girão, por exemplo. Desses fizeram o inquérito policial militar aqui e mandaram para Recife. O primeiro julgamento que aconteceu, aqui, foi o do João Farias. O auditor militar é juiz togado. É um juiz técnico na composição do Conselho Militar. Doutor Arnaldo Carnachiale, que era do Paraná, saiu do julgamento chorando. Porque, como relator, não conseguiu convencer os juízes militares da acusação a João Farias. Ele foi vencido por quatro votos contra um dele. Eu apelei no dia 18 de abril de 1966 e ele foi absolvido em 1° de agosto de 1966 pelo Superior

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72 Outubro 2012

Tribunal Militar (STM). Só teve um voto contra.

Pintura na sala do escritório de Pádua Barosso

AP – Alguma vez conseguiu comprovar que um preso tinha sido torturado? Barroso – Tem o caso do Fabiane Cunha. Ele tinha, se me lembro, sete processos. Torturaram o Fabiane e o deixaram no quartel da Polícia Militar, na Praça José Bonifácio [atual 5° Batalhão Policial Militar]. A tortura aconteceu pouco antes da instrução de um processo. Aí, o Fabiane me mostrou os roxos nas pernas, coxas, lesões nos pulsos decorrentes de pau-de-arara. No dia da auditoria militar, orientei o Fabiane para ir com um calção de praia, ao invés de cueca, e na hora que tivesse terminando o interrogatório dissesse que havia sido torturado. Eu iria bater na mesa, como sinal, e ele deveria tirar a roupa, baixar as calças. Assim foi feito. Eu queria que constasse no depoimento tudo que foi mostrado lá pelo preso e o auditor recusou. Então, por uma questão de ordem, pedi a palavra para fazer um protesto. [Pádua sorri ao lembrar do fato] Protesto não pode ser indeferido e aí ele teve de narrar na ata da audiência todos os detalhes.

E por que o homem quer viver mais, se não vai ter onde viver?

AP – Como era atuação da imprensa naquela época? Barroso – Lembro de uma vez, era o julgamento de Frei Geraldo Vieira Bonfim. Na época, o comandante da região era meu parente e permitiu que a rádio Dragão do Mar transmitisse o julgamento. O Tribunal Militar é como um júri, formado

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que representa a opressão na época da ditadura

por 4 militares oficias e 1 juiz. Aberta a sessão, o Procurador Militar, papel similar ao do promotor, pediu à Junta Militar a fotografia do Frei no aeroporto recebendo uma encomenda de uma pessoas suspeita. O procurador deu a palavra à defesa e abri o Código da Justiça Militar, o código antigo, e comecei a falar: “Me limito a ler o artigo tal do código da Justiça Militar. É inadmissível usar o documento até 3 dias antes da sessão em julgamento”. O auditor colocou em votação, chegou o capitão Cesar, nunca me esqueci o nome dele, deu um murro em cima da mesa e disse: “Assim não dá. Nos fizemos uma revolução para implantar um regime democrático autêntico. Mas não para cometer a ilegalidade. Eu voto contra”. O capitão bateu em cima da mesa com tanta força, que acabou desligando a rádio Dragão do Mar. Nunca mais permitiram a transmissão novamente. Eu dizia tudo. Eles que

não faziam publicar. Dei entrevista sobre prisão perpétua. Até ironizei dizendo que, aqui no Brasil, o condenado a morte ia ser executado por quem? Prisão perpétua é igual o amor, só dura quanto é. Olha, é o seguinte, a ditadura foi feita e mantida por uma minoria. Eu não tenho raiva de militares. Eu gosto deles. Eles são honestos. AP – Como o senhor sobreviveu defendendo presos políticos gratuitamente? Barroso – Eu já fazia advocacia geral, mas sempre gostei mais da parte criminal. Tinha meus clientes fixos. Eu defendia os presos políticos, mas sempre atendia meus clientes. Era dessa maneira que eu sobrevivia e os militares não entendiam como eu podia ter dinheiro naquela época. Eu não cobrava nada para defender os presos, eram eles que me procuravam porque já sabiam da minha fama..

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UNIFOR Universidade de Fortaleza Comunicação Social

Jornalismo

Revista do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza N° 17 - ANO VII Semestre 2011.2 Agosto/Setembro 2011

Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz CEP 60.811-905 - Fortaleza-CE, Brasil Fone 55 (85) 3477.3105 equipelabjor@gmail.com

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