UNIFOR Universidade de Fortaleza Comunicação Social
Jornalismo
Revista do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza N° 17 - ANO VII Semestre 2011.2 Agosto/Setembro 2011
Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz CEP 60.811-905 - Fortaleza-CE, Brasil Fone 55 (85) 3477.3105 equipelabjor@gmail.com
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Ex-namorados se reencontram três décadas depois
04
UNIDAS POR UM IDEAL Três irmãs lembram da luta contra a ditadura militar
DIREÇÕES
FOTOS: MAHAMED PRATA
D
OLHARES CRUZADOS
A
PÉ NA ESTRADA
12
18
Mochileiras contam suas andanças pelo mundo em busca de aventuras
RUMOS INTERROMPIDOS História de três jovens cujos destinos mudaram abruptamente
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CAPA
ACASOS
SINAIS VERMELHOS A mudança de vida de dois homens soropositivos
EU NASCI DE NOVO Jovem médica relata seu recomeço, após grave acidente de carro
CARTAS
EDITORIAL
ENSAIO
ENTREVISTA
>>> P.2
>>> P.26
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46 60
>>> P.3
>>> P.68
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2 Outubro 2012
CARTAS
Revista do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza N° 16 - ANO VII Semestre 2011.1 Agosto/Setembro 2011
EXPEDIENTE
EDIÇÃO N° 17 >>> EDIÇÃO ANTERIOR
REVISTA-LABORATÓRIO DO CURSO DE JORNALISMO DA
N° 16
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS DIRETORA DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS: Erotilde Honório COORDENADOR DO CURSO DE JORNALISMO: Wagner Borges
Prende a atenção
COODENADORA DO NÚCLEO INTEGRADO DE COMUNICAÇÃO (NIC) :
Alessandra Oliveira Araújo
Adorei essa ultima edição da revista A Ponte. Textos maravilhosos e
CONSELHO EDITORIAL: Erotilde Honório, Wagner Borges e Alejandro
bem escritos, fotos lindas e o melhor de tudo, um ótimo conteúdo. As
Sepúlveda
matérias são interessantes e prenderam tanto minha atenção, que o
COORDENAÇÃO EDITORIAL E DE PRODUÇÃO: Alejandro Sepúlveda
tempo passou e não percebi. Parabéns aos bons jornalistas que fazem
GERENTE DO LABORATÓRIO DE JORNALISMO: Joana Darc Dutra
essa revista existir.
SUPERVISÃO DE PRODUÇÃO GRÁFICA: Eduardo Nunes Freire
Patricia Karen Linharesa
SUPORTE TÉCNICO: Aldeci Tomaz
Estudante de Jornalismo/Unifor
SUPERVISÃO DE FOTOGRAFIA: Júlio Alcântara e Jari Vieira COORDENAÇÃO E ORIENTAÇÃO DA AGÊNCIA DE PUBLICIDADE - NIC :
Alberto Dias Gadanha Junior PROJETO GRÁFICO: Felipe Goes
Presente
DIAGRAMAÇÃO E TRATAMENTO DE IMAGENS: Fernanda Carneiro EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA: Marina Duarte
Sem dúvidas, essa edição foi feita com muito carinho. É tão
REVISÃO: Antônio Celiomar Pinto de Lima
delicada que parece um presente. O tema vai fundo até nas
SECRETÁRIO DO LABORATÓRIO DE JORNALISMO: Luiz Bastos Sales Neto
coisas invisíveis que existem dentro da gente.
SUPERVISOR DA GRÁFICA: Francisco Roberto
Camila Távora
IMPRESSÃO: Gráfica da UNIFOR
Estudante de Jornalismo/Unifor
ESTUDANTES DE COMUNICAÇÃO SOCIAL - UNIFOR EDITORES ASSISTENTES: Marília Pedroza e Giselle Nuaz CAPA E FOTO DA CAPA: Mahamed Prata
Visões
LOGOTIPO: Vicente Valdevino Leite Neto FOTOGRAFIAS DAS REPORTAGENS: Ana Lívia Monteiro Gomes, Helena
O que mais chamou-me a atenção na última edição d’A Ponte,
Tofeti Nogueira, Júlia Norões, João Paulo de Freitas, Marina Solon,
foi a variedade de visões e discussões sobre um mesmo tema:
Melina Menezes, Maíra Braga Pontes Cordeiro e Thalyta Martins
“Invisíveis”. Ampliar horizontes para não envelhecer as ideias. Ler
REDAÇÃO: Ana Lívia Monteiro Gomes, Camila Lopes Cavalcante, Camila
sobre essa temática me abriu possibilidades e isso é incrível.
Silveira, Géssica Pereira Saraiva, Helena Tofeti Nogueira, João Paulo de Freitas, Júlia Norões, Luana Benício, Marina Solon, Melina Menezes,
Antonio Tiago de Lima Batista
Maíra Braga Pontes Cordeiro e Manoela Cavalcanti
Estudante de Jornalismo/Unifor
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3 Outubro 2012
EDITORIAL
Bicampeã
O Devir
Caro leitor(a),
V
ocê tem em mãos uma revista premiada! A Ponte é bicampiã nacional. No último dia 7 de Setembro (Dia da Independência do Brasil) ganhou o prêmio de Melhor Revista Laboratorial Impressa do Brasil, conquistado na XIX Expocom 2012, durante o XXXV Congresso Brasileiro de Ciênas da Comunicação, realizado pela Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Em 2010, no Intercom Nacional, realizado em Caxias do Sul (RS), a revista com o tema “Memória” também foi premiada. A edição vencedora deste ano, que tinha como tema “Invisíveis”, estreiou uma nova logomarca e trazia um selo comemorativo dos 10 anos de criação do Curso de Jornalismo da Unifor. A revista já havia sido premiada em junho na Expocom Regional, que aconteceu em Recife (PE), assim se tornando a melhor do Nordeste. Esta edição é a primeira a ser impressa com um novo projeto gráfico, adaptado de uma proposta formulada por Felipe Goes, em 2009, quando era bolsista do Labjor. “O que este novo projeto traz de mais marcante é uma maior visibilidade, valorização do espaço branco e modelos que agilizam a produção”, diz Eduardo Freire, designer gráfico e professor da Unifor. Nós, alunos que fazemos parte desta revista e da sua história, estamos felizes com o nosso trabalho e com o reconhecimento que veio por parte da Intercom. O Congresso Nacional do próximo ano acontece em Manaus, capital do Amazonas. Rumo ao tri!
Giselle Nuaz Estudante bolsista do Laboratório de Jornalismo/NIC
A
Ponte No. 17 aborda um tema curioso: os rumos inesperados que a vida pode tomar. Como o destino é um roteiro desconhecido, ao acaso, por mais que procuremos controlá-lo, nunca saberemos ao certo o que nos espera no dia de amanhã. Podemos, quanto muito, intuir, mas o devir é um dos grandes mistérios insondáveis da vida. Nesta edição, contamos as histórias de pessoas que, em algum momento de suas vidas, foram arrastadas pelo destino para outros rumos. Como aconteceu com a jovem fisioterapeuta Ticiana, que teve a sua vida totalmente mudada depois de sofrer um grave acidente de carro, em uma manhã de domingo. Ou como aconteceu com Renê e Carlinhos, quando descobriram que eram soropositivos. Ou ainda as histórias de Anna Luiza, que enfrentou uma gravidez inesperada; de Danielle, que lutou contra o câncer; ou de Vlademir, que cometeu um crime para pagar uma dívida com traficantes de drogas. O engajamento na luta contra a ditadura militar também mudou os rumos das vidas das irmãs Serra Azul, militantes de esquerda, e de Pádua Barroso, advogado que arriscou a vida para defender presos políticos. Já os rumos de Luzia e Daniel se entrecruzaram por outras vias. Eles se conheceram e namoraram nos EUA, em 1976, quando ela fez intercâmbio cultural para estudar inglês. Depois, cada um seguiu o seu caminho. Passadas três décadas, eles se reencontraram no Facebook, voltaram a namorar e hoje estão casados. Também a revista conta as aventuras vividas pela francesa Martine, nos anos 1970, quando viajou de mochila nas costas pelo Brasil; e de Mayra, que encarnou o mesmo espírito aventureiro pelas estradas da Europa, em 2010. Todas essas histórias nos fazem lembrar da famosa frase do poeta espanhol Antonio Machado: “Caminante, no hay camino, se hace camino al andar”.
Alejandro Sepúlveda Coordenação da revista A Ponte Professor do Curso de Jornalismo da Unifor
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4 Outubro 2012
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DIREÇÕES
Alianças de Noivado contendo as inscrições: Luzia: Always and Forever e Daniel: Forever and Always
Olhares cruzados TEXTO
Camila Lopes Cavalcante e Géssica Pereira Saraiva
FOTOS
Arquivo pessoal
O texto que leva esse título é uma história de amor escrito na forma de um “romance-reportagem”. Luzia e Daniel se conheceram muito jovens nos Estados Unidos, namoraram, passaram momentos inesquecíveis juntos, mas o destino acabou por separálos. Depois de mais de três décadas sem notícias um do outro, os dois se reencontraram no Facebook em um momento difícil para Daniel, e descobriram que ainda estavam apaixonados
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uzia Antunes não devia ter mais do que 14 anos quando seu pai lhe comprou um rádio-gravador. Ela passava
horas de seu dia ouvindo músicas e cantarolando letras em inglês, embora não dominasse a língua. Talvez tenha sido esse o motivo que a levou a se matricular em um curso de inglês na cidade em que morava, Teresina, capital do Piauí. De família classe média, estudava em boas escolas e tinha o apoio de seus pais para realizar seus pequenos caprichos e fazer alguns gastos extras, como com seus discos. Na época, o único que a magoava eram as indiscrições do seu pai. Ele possuía uma outra família, fato que aborrecia profundamente a sua mãe, por quem Luzia fazia de tudo para protegê-la, pois sabia de sua constituição frágil. Desde muito cedo, ela tomou para si a responsabilidade de cuidar desse e de outros assuntos desagradáveis com seu pai, o que a fez amadurecer mais cedo. Foi por isso que, quando surgiu a chance de se afastar dessa confusão emocional, ela a agarrou imediatamente. Luzia já cursava inglês havia um ano quando, um dia, um amigo do colégio comentou com ela sobre os programas de intercâmbio nos Estados Unidos. Luzia se empolgou, mas guardou a animação para si, pois sabia que seus pais não concordariam. Prestou os testes necessários de pré-seleção para o intercâmbio sem o conhecimento da família e, somente depois de aprovada, ela se preparou para conversar com a mãe. Sabia do apego que a mãe tinha por ela e que não a deixaria ir fácil, mas também sabia que o seu pai apostava no apego entre as duas como garantia para que ela não deixasse Teresina. Porém, depois de desenvolver uma verdadeira estratégia emocional para convencer a mãe, e assim deixar o pai sem argumentos contra a viagem, finalmente Luzia conseguiu a autorização de ambos. Passo seguinte, começou a preparar a papelada da viagem. Passaria 6 meses
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D 1
FICHA
nos Estados Unidos morando na casa de uma família tipicamente americana.
RUMO A UMA NOVA VIDA Em 14 de janeiro de 1976, Luzia embarcou em um voo fretado exclusivamente para levar os estudantes brasileiros inscritos no programa. Ao chegar nos Estados Unidos, no dia seguinte, os jovens do programa foram sepaCOLÉGIO
rados, cada um seguindo para a cidade de
Central Catholic
sua escolha. Luzia foi para Toledo, em Ohio,
High School - CCHS
onde moraria com a família constituída por Sr. Warren Layman, Sra. Henrietta e os qua-
FUNDAÇÃO
tro filhos, Patricia, Ronald, Charles e Lorrie.
1920
No início, não foi fácil se adaptar. Além do idioma, o que mais a incomodava era o frio,
LOCAL
embora estivesse ansiosa para ver neve.
Toledo, OHIO,
Uma semana depois da sua chegada, Luzia
United States
foi para o Central Catholic High School, uma escola particular onde foi bem recebida pelos alunos e professores. Ela passou a cumprir a grade de matérias oferecida como podia, algumas disciplinas opcionais como a chamada Ciências Físicas. No primeiro dia de aula dessa matéria, uma das freiras do colégio levou Luzia para se
2
apresentar ao professor, Sr. Momenee, e aos seus colegas. Enquanto a freira e o professor faziam as devidas apresentações, o olhar de Luzia se deteve em um rapaz que estava sentando na última fileira. Era Daniel Kent Skellie, ou simplesmente Dan, um jovem com olhos de um intenso azul, belos e inesquecíveis. Ele também olhou atentamente para os grandes olhos castanhos da bela jovem. Esses olhares cruzados perturbaram a ambos. O pretexto para a aproximação entre os dois veio das dificuldades de Luzia com o idioma e as matérias. Encantado com a jovem bra-
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1. Daniel no campo
sileira, Daniel logo se ofereceu para ajudá-la.
do Central Catholic
Muito prestativo e educado, no início Luzia ti-
High School
nha dúvidas se ele estava mesmo interessado
2. Luzia e Daniel no
nela, pois não conseguia decifrar os sentimen-
dia em que ficaram
tos do rapaz. Ele queria ser somente seu amigo
noivos no corredor
ou estava apenas esperando a ocasião certa
do colégio
para chamá-la para saírem? Era um mistério.
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7 Outubro 2012
O FLORESCER DE UM ROMANCE
mais importante, privacidade. A noite passou
“A Noviça Rebelde” seria encenada na escola
Na ocasião, Luzia tinha 16 anos e Daniel,
rápida. Quando Dan precisou ir embora, Luzia
e vários alunos estavam envolvidos nos pre-
18. Ela nunca tinha namorado, nem mesmo
o acompanhou até o carro. Foi nesse momen-
parativos, inclusive Dan. Os arranjos estavam
beijado alguém. Mas, antes do encontro, a
to, em baixo de um poste de luz, como em
sendo feitos no ginásio, e ele era responsável
sua mãe americana deu-lhe algumas reco-
um filme antigo, que eles se beijaram pela
pelo som. Luzia, de longe, na arquibancada,
mendações sobre o comportamento dos
primeira vez. Após o beijo, veio a confirmação
observava atenciosamente a movimentação
jovens americanos em um primeiro encon-
do namoro.
dos alunos. De repente, ouviu: “Araujo, Luzia”.
tro, alertando-a para um possível primeiro
Apaixonados, aproveitavam qualquer tem-
Era Dan que, sorrindo para ela, fazia o teste de
beijo. Foi uma conversa que ela sempre re-
po livre para ficarem juntos. Daniel mostrava
som chamando seu nome pelos alto-falantes.
cordaria com carinho.
a Luzia todos os seus lugares favoritos na ci-
Em abril, uma peça baseada no musical
Um pouco envergonhada, ela correu para perto
Quando Dan chegou na casa dos Layman
dade e tentava se manter criativo nos inúme-
da mesa e os dois conversaram por um tempo.
apresentou-se formalmente e desceu com Luzia
ros encontros que marcavam. Eles saiam para
Mais tarde, Luzia receberia um bilhete de Daniel
e Lorrie ao porão, local onde havia uma espécie
jogar boliche, andar de patins e se divertir no
convidando-a para um primeiro encontro.
de sala de jogos e um aparelho de som. E, o
mini-golf, em um lugar chamado Putt-Putt. Dan dividia seu tempo entre seus estudos,
Daniel e Luzia, no
seu trabalho no Farrell’s Ice Cream Parlour
Blendon Woods
Restaurant e seus encontros com Luzia.
Metropolitan Park
Quando a gente ama alguém, tem medo de que aquela pessoa seja magoada
Luzia
“Certa vez, a escola onde a gente estudava organizou um passeio com alguns alunos para o Cedar Point, um dos parques mais importantes da região, e o Dan tentou ter autorização da escola para eu ir ao parque de carro com ele, ao invés de ter que pegar o ônibus com todo mundo. Ele não conseguiu e fomos separados mesmo, ele de carro, e eu de ônibus. Quer dizer, quase separados, porque o Daniel foi o caminho inteiro ou atrás ou do lado do ônibus, acelerando e freando. E passamos o caminho todo dando tchau um pro outro, e mandando beijos e sorrindo,” lembra hoje Luzia. Apesar do apego que sentia por Dan, Luzia tinha plena consciência que em breve precisaria retornar ao Brasil e Daniel ficaria para trás, em Toledo. Os dois evitavam falar sobre o as-
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sunto. Mas também evitavam falar sobre suas famílias. Daniel tinha vergonha do pai alcoólatra e da casa humilde em que vivia com seus oito irmãos. Luzia jamais comentara sobre as indiscrições de seu pai, que atormentavam a sua mãe. Ele nada sabia sobre a família brasileira de sua namorada e ela jamais foi convidada para conhecer a casa do namorado. Mas, mesmo sabendo que ela um dia precisaria partir, por duas vezes Daniel a pediu em casamento. Luzia sempre foi a mais realista dos dois e, por mais romântico que fossem os dias que estavam vivendo, sabia que não tinha futuro. De coração apertado, recusou os dois pedidos. Ela queria dizer sim, queria casar com ele, mas sabia que o pai dela não concordaria. “Quando a gente ama alguém, tem medo de que aquela pessoa seja magoada, e como eu tinha problemas em casa com
Luzia e Daniel,
meu pai, eu tinha muito medo que ele des-
no Scotty’s Bar
tratasse Daniel. Então preferi acabar com
& Grille
qualquer possibilidade de um encontro entre os dois”, lembra ela. Mas, mesmo antes de ela ter que partir, Dan recebeu um convite do gerente do restaurante onde trabalhava para ir morar em
DE VOLTA PARA CASA
Columbus, capital de Ohio. Era uma boa
O dia que Luzia tanto temia acabou chegan-
oportunidade de emprego que ele demo-
do. Era hora de fazer as malas e deixar Daniel
rou para aceitar, mas que, afinal, aceitou
para sempre.
pensando no seu futuro, o que o distancia-
“Eu não estava lá quando ela partiu. Não
ria mais cedo de Luzia. Embora Columbus
tivemos um adeus. Eu já estava em Columbus,
ficasse a duas horas de carro, o namoro fi-
começando uma vida nova e bem sucedida.
cou reduzido a troca de cartas e algumas
Escrevi cartas para ela, mas ela parou de res-
conversas telefônicas.
ponder”, lamenta hoje Dan. Ao retornar, Luzia
Eu não estava lá quando ela partiu. Não tivemos um adeus
Daniel
“Certa vez, já depois da mudança de
tentou esquecer Daniel para poder lidar com
mada Louise, em 1981. Ela tinha quatro filhos
Daniel para Columbus, ele ligou e disse
os problemas familiares e se concentrar nos
de um casamento anterior e tentou engravidar
que tinha uma encomenda para mim e
estudos, pois não queria depender de um ma-
novamente, mas seu corpo não deixava os be-
que ela seria uma ‘Special Delivery’. Pou-
rido para nada na vida.
bês sobreviverem.
co tempo depois, ele apareceu em frente
Aos 26 anos de idade, já formada e traba-
Os anos se passaram e, volta e meia, Luzia
à minha porta com uma carta na mão. Foi
lhando, Luzia casou-se e teve dois filhos. Mas a
pensava em Dan e se perguntava como teria
nesse dia que eu aprendi o que a palavra
relação não deu certo e acabou separando-se.
sido a sua vida se ela tivesse respondido “sim”
‘delivery’ queria dizer. Nunca vou esque-
Por sua parte, nos Estados Unidos, sem jamais
às suas propostas de casamento. Em algumas
cer”, recorda Luzia. Foi a última vez que
ter tido notícias de Luzia depois de sua partida,
ocasiões, ela tentou entrar em contato com ele,
os dois se viram.
Dan também casou-se com uma mulher cha-
mas não teve sucesso. Inclusive enviou uma
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carta para o endereço antigo que tinha da épo-
recursos do Facebook para localizar Dan? Logo
não tinha certeza absoluta de que o homem
ca do namoro, mas a carta voltou. Em 2005, se
que encerrou a conversa com a amiga, digitou
que aparecia no Facebook fosse mesmo o
cadastrou em um site de procura por antigos
o nome dele completo, Daniel Kent Skellie, mas
seu namorado americano dos tempos de
colegas de colegial, mas também não obteve
não obteve sucesso. Nova tentativa: digitou so-
colegial e, mesmo que fosse ele, pensava,
resultado. Decidiu, então, que deveria esquecer
mente o sobrenome, Skellie. Apareceram mais
poderia estar muito bem casado e com famí-
e seguir em frente.
de mil resultados. impossível achá-lo no meio
lia. Para sair da dúvida, resolveu mandar-lhe
de tanta gente. Por fim, tentou Dan Skellie.
uma mensagem. Com o coração batendo for-
TECNOLOGIA A FAVOR DO AMOR
“Para minha surpresa, apareceu uma pes-
te, foi se ocupar de arrumar a mala e ajeitar a cozinha que estava desarrumada.
Em 2010, Luzia começou a se familiarizar com
soa muito parecida com ele, lindo e charmoso,
o Facebook por causa dos contatos que manti-
com os cabelos agora grisalhos e com aqueles
“Em 2010, eu recebi uma mensagem no
nha via Internet com uma amiga portuguesa.
olhos que eu nunca esqueci. Eu pensei comi-
Facebook de Luzia, dizendo que ela tinha estu-
Um dia de junho, ela estava arrumando as ma-
go: ‘Meu Deus, é ele!’”, lembra Luzia.
dado com um cara que tinha o meu nome no co-
las para uma viagem que faria a Florianópolis,
Ela ficou imensamente feliz, mas ao mes-
legial e ela pensava que eu poderia ser ele. Eu
enquanto conversava com sua amiga lusitana,
mo tempo começou a fazer um esforço da-
já estava em depressão, e minhas energia e for-
quando de súbito teve uma ideia. E se usasse os
nado para se manter calma, afinal ela ainda
ça já tinham quase se esvaído completamente devido à constante preocupação e raiva porque ela estava morrendo e eu não podia fazer mais nada, e dos dias exaustivos de cuidados que eu dedicava a minha esposa. Eu estava quase dormente em minhas emoções, mas a visão do meu amor perdido há tanto tempo encheu meu coração de calor”, recorda Daniel. Um ano antes, Louise, a esposa de Daniel, descobriu que estava com câncer e o prognóstico atual não era nada bom. Uma longa e incansável luta vinha sendo travada, e Daniel ficou ao lado de Louise durante todo o tratamento, se exaurindo emocionalmente. Minutos depois, quando já havia arrumado a cozinha, Luzia resolveu dar uma checada no computador. Levou um susto quando viu que a sua mensagem já havia sido respondida. Não podia acreditar, a imagem no Face era mesmo a de Dan. Então começaram a conversar, ansiosos para saber o que tinha acontecido nas vidas deles durante os anos em que ficaram separados. Passaram a madrugada trocando men-
Casamento no Brasil, após ficarem noivos nos Estados Unidos
sagens, enquanto a mala de Luzia continuava aberta em cima da cama. Daniel contou para Luzia que estava teclando de um hospital, onde a sua esposa se encontrava já em estado terminal. Eu pensei: “o nome dela é Louise, um pouco parecido com o meu”. “Ele estava no hospital ao lado de Louise, e eu fiquei pensando na vida. Por que o encontrei
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justo naquele momento? Talvez a minha missão fosse essa, confortá-lo em um momento tão difícil. Eu não lutei por nós dois quando devia, desisti fácil, fugi, não respondi as cartas que ele mandou para o Brasil. Talvez agora seja o momento em que podia reparar o modo como o tratei no passado”, pensou Luzia.
CHEGADAS E PARTIDAS Era uma sexta-feira, dia 10 de junho de 2010, quando Luzia, já em Florianópolis, recebeu, com pesar, a notícia de que Louise havia falecido. Naquele momento, pensou em como Daniel estaria sofrendo depois de perder a esposa que esteve ao seu lado por quase 30 anos. Consciente da situação de Daniel, Luzia silenciou seu amor e se tornou a amiga que ele tanto precisava naquele difícil momento.
Finalmente, depois de todo esse tempo, o primeiro beijo como marido e mulher
Nós nunca pensamos que teríamos a chance de nos encontrar novamente, mas, quanto mais a gente conversava, mais aumentava o nosso desejo de estarmos de novo um com o outro
Daniel
acontecendo. O amor que ela sentia por Daniel
de três décadas, na aula de Ciências Físicas.
estava guardado em respeito ao difícil momen-
Antes mesmo de Daniel sair do saguão de
to que ele estava vivendo. Mas o tempo passou
desembarque, entre as grades que separam
e a amizade entre os dois foi se fortalecendo.
os passageiros das pessoas que aguardam,
Logo sentiram a necessidade de se encontrar
os dois se beijaram. Até esse instante, ela
pessoalmente. Era chegada a hora de retomar
estava sentindo mil coisas ao mesmo tem-
o que ficara parado havia 35 anos.
po. Sentia-se nervosa, ansiosa, excitada, fe-
“Nós nunca pensamos que teríamos a
liz e receosa. Tinha esperado muito por esse
chance de nos encontrar novamente, mas,
dia. E se não desse certo? Mas agora não
“Durante o período do funeral e dos dias que
quanto mais a gente conversava, mais aumen-
havia mais o que temer, Daniel estava em
se seguiram, quando eu precisei de força para
tava o nosso desejo de estarmos de novo um
seus braços novamente e ela estava exul-
lidar com todos os detalhes e complicações, e
com o outro. E nós sabíamos que nos amáva-
tando de felicidade.
para manter minha vida em ordem, Luzia me
mos agora bem mais do que quando éramos
Em outubro de 2011, Luzia e Dan fizeram
deu essa força. Ela me deu conforto e espe-
jovens. Nós precisávamos estar juntos. Nós
uma rápida viagem a Toledo, Ohio, e visitaram,
rança de que tudo ficaria bem de novo algum
planejamos por meses e fizemos com que se
além de alguns lugares onde haviam passado
dia. Eu tenho muitos amigos e todos me deram
tornasse realidade,” conta Daniel.
momentos inesquecíveis, a Central Catholic
apoio, mas ter a Luzia para conversar foi a ân-
Um dia de fevereiro de 2011 Luzia foi para
High School, a escola onde se conheceram e
cora que me fez acreditar que eu ficaria bem”,
o Aeroporto Pinto Martins esperar por ele. As-
se apaixonaram na juventude. Enquanto pas-
recorda Daniel.
sim que Dan passou pelo portão de desem-
seavam por um dos corredores da escola, Dan
Eles passaram a trocar mensagens e a se
barque, os olhares dos dois se cruzaram da
aproveitou a ocasião para pedir Luzia em casa-
falar constantemente. Luzia sabia o que estava
mesma forma como havia ocorrido há mais
mento pela terceira e última vez.
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12 Outubro 2012
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DIREÇÕES
Unidas por um ideal TEXTO E FOTOS
Ana Lívia Monteiro Gomes e Júlia Norões
As irmãs Helena, Maria do Carmo e Iracema Serra Azul cresceram em uma casa em que o pai era apaixonado pela Revolução Francesa, o avô era poeta, as estantes viviam cheias de livros e a leitura era uma prática constante. Elas cresceram ouvindo as discussões políticas na hora do almoço, aprendendo os valores cristãos e o sentimento de solidariedade entre as pessoas. Quando os militares tomaram o poder em 31 de março de 1964, as irmãs Serra Azul engajaram-se na luta contra a opressão e em defesa da liberdade, conscientes dos riscos que corriam
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uando veio o golpe militar, apenas Helena já tinha idade suficiente para entender o que estava acontecen-
do, embora as três participassem de encontros políticos promovidos pela Juventude Estudantil Católica (JEC), um dos movimentos políticos da ala progressista da Igreja. Elas iam com a irmã, que então tinha 15 anos, apenas para fazer-lhe companhia, mas, com o tempo, Maria do Carmo e Iracema também entraram para a luta política. Em 1966, Helena cursou o terceiro científico no Colégio Castelo, onde aprendeu muito sobre a ditadura, pois muitos dos seus professores eram militantes políticos, além do contato que mantinha com estudantes mais velhos, que faziam cursinho. Um ano depois, Helena entrou na Faculdade de Medicina e suas irmãs ingressaram no Centro dos Estudantes Secundaristas (CESC), do qual Maria do Carmo chegaria a ser diretora. Quando o regime militar entrou na sua fase mais escura com a implantação do AI-5, em 1968, Maria do Carmo e Iracema decidiram mudar-se do Colégio Imaculada Conceição para uma instituição pública onde pudessem militar com mais liberdade. Foram para o Colégio Estadual Justiniano de Serpa e, lá, envolveram-se nos protestos, primeiro contra o acordo MEC-USAID (programa entre o Ministério da Educação e a agência norte-americana United States Agency for International Development para realizar uma reforma no ensino brasileiro, que visava, entre outras medidas, privatizar escolas públicas e tornar obrigatório o ensino da língua inglesa) e depois contra a proposta do governo de pagamentos de taxas nas universidades públicas. Também participavam intensamente fazendo panfletagens pelas ruas e pichando os muros da cidade com frases de ordem, além das realizações de pedágios para arrecadar fundos e passeatas-relâmpago. Foi nesse mesmo ano convulsionado que Helena se casou com Francisco Monteiro,
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14 Outubro 2012
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Juventude Estudantil Católica
1. No calor das lutas políticas, Iracema conheceu Fonseca, com quem se casou aos 16 anos 2. Maria do Carmo diz que elas escolheram lutar
No começo dos anos 1960, o Concilho
por aquilo que
Vaticano II engendrou uma cisão política
acreditavam
da Igreja no Brasil. De um lado, um segmento mais à esquerda, liderada por Dom Hélder Câmara, e, outra à direita, ligada a Dom Jaime de Barros Câmara e Dom Vicente Scherer. A Ação Católica era constituída na época de cinco organizações destinadas aos mais jovens: a Juventude Agrária Católica (JAC), que reunia os jovens do campo;
2
a Juventude Estudantil Católica (JEC), que agrupava os jovens estudantes secundaristas; a Juventude Operária Católica (JOC), que agia no meio operário; a Juventude Universitária Católica (JUC), formada por estudantes do ensino superior; e a Juventude Independente Católica (JIC), organizada por jovens que não pertenciam às outras agremiações. A participação do movimento dos estudantes nas questões dos principais problemas nacionais, como a reforma agrária, acabou por dar origem a uma organização política desvinculada da Igreja e que ficou conhecida com a sigla AP (Ação Popular), constituída por antigos militantes da JUC.
conhecido como Chico Passeata (médico sa-
tentativa de evitar que a família e os amigos
No calor das lutas e manifestações políti-
nitarista, poeta e militante de esquerda fa-
corressem perigo por abrigá-los. Helena e
cas dos estudantes secundaristas e universi-
lecido em agosto de 2011 vítima de câncer).
Francisco trabalhavam como camponeses tan-
tários, Iracema conheceu Fonseca, por quem
Os dois ficaram conhecidos do aparelho de
to para fugir da repressão quanto para levar os
se apaixonou e se casou aos 16 anos. Na mes-
repressão do regime, o que os obrigava a
ideais revolucionários aos moradores do cam-
ma época, a prisão da sua cunhada foi decre-
mudar constantemente de endereço. Em
po. Eles moraram na casa de trabalhadores
tada após ela ter discutido com o Ministro da
1969, decidiram ir para o Recife, em uma
rurais e aprenderam a trabalhar nos canaviais.
Educação, o então coronel Jarbas Passarinho.
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A prisão de Fonseca também foi decretada.
Ditadura Militar no Brasil
Por esse motivo, eles também tiveram que
FOTO: INTERNET
sair de Fortaleza. Helena acabou sendo presa junto com o marido quando saiam do campo para visitar amigos no Recife. Ela tinha 20 anos e estava grávida. O marido temeu o pior e avisou aos policiais da situação da mulher, mas de nada adiantou: ambos foram torturados. Algum tempo depois, no dia do seu aniversário, Helena foi transferida para o Presídio Feminino Bom Pastor, onde foi bem tratada pelas freiras e o ambiente era limpo e bem cuidado. Lá, Helena teve seu primeiro filho. Ela e o marido foram julgados e condenados a cinco anos de prisão pelos crimes de panfletagens e pichações. Apenas metade da pena foi cumprida e, em 1971, os dois puderam voltar para Fortaleza. Já Iracema e o marido, após partirem de Fortaleza, trabalharam como operários no Recife, da mesma forma que a irmã e o cunhado. Quando Iracema já tinha dois filhos, também acabou sendo presa junto com as crianças. Eles passaram 40 dias presos e foram soltos graças aos esforços da advogada Mércia Albuquerque. Apenas Fonseca con-
Ela começou com um golpe de Estado, na
5 (AI5), em 1968, que dava amplos poderes
tinuou preso por causa de uns processos que
noite do dia 31 de março de 1964, quando o
ao presidente Arthur da Costa e Silva para
já tinha antes. Assim eles tiveram que espe-
presidente João Goulart foi afastado do
fechar o Congresso Nacional, cassar o
rar terminar sua pena para voltar a Fortaleza.
poder. Ranieri Mazzilli, presidente da
mandato de políticos, suspender por dez
Em 1972 foi a vez de Maria do Carmo.
Câmara dos Deputados, assumiu
anos os direitos políticos de qualquer
Ela foi delatada por um colega, mas con-
provisoriamente, sendo depois substituído
cidadão, intervir em Estados e municípios
seguiu fugir. Porém, quando soube que a
pelo Marechal Castelo Branco. O golpe,
ou suspender o direito de habeas corpus
sua irmã Helena havia sido presa pela se-
segundo os militares, foi uma ação para
para crimes políticos. Na década de 70,
gunda vez e que só seria solta depois que
proteger o País de uma ameaça comunista,
a Ditadura passou a adotar meios ilegais
ela se entregasse, Maria resolveu se en-
Durou 21 anos (1964-85). No período, o Brasil
de repressão, como seqüestros, cárceres
tregar imediatamente. Para Maria, a irmã
foi governado por Castelo Branco (1964-1967),
privados, torturas e assassinatos.
ser torturada era muito pior do que se fos-
De acordo com o livro “Direito à
se ela. E Maria do Carmo foi muito tortu-
Junta Governativa (1969), Emílio Garrastazu
memória e à verdade”, publicado pela
rada. As duas permaneceram presas ainda
Médici (1969-1974), Ernesto Geisel (1974-1979),
Secretaria Especial dos Direitos Humanos
por algum tempo e viram muitos colegas
e João Baptista Figueiredo (1979-1985).
do governo Lula, 475 pessoas morreram
sendo torturados. Depois elas foram sol-
A repressão aumentou com a
ou desapareceram por motivos políticos
tas. Maria do Carmo acredita que foi solta
naquele período.
porque não falou nada e não puderam lhe
Arthur da Costa e Silva (1967-1969), uma
implantação do Ato Institucional número
atribuir nenhuma culpa.
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DIREÇÕES
“Helena nos ensinou o caminho” Conversar com as irmãs Serra Azul foi voltar no tempo, lembrar de companheiros que não estão mais aqui, dos compromissos da luta pela liberdade. Mas também recordaram das conversas à mesa entre o pai defensor da democracia e o avô poeta, um artista. Foi através deles que a ditadura entrou em suas vidas. A família, que desde cedo incentivou muito a solidariedade e o amor ao próximo, logo fez com que percebessem o que estava errado e não ficassem de braços cruzados. Helena foi a precursora. Maria do Carmo e Iracema concordam: “Já havia a preocupação social, mas Helena nos ensinou o caminho”.
Helena tinha 20 anos e estava grávida quando foi presa junto com o marido, no Recife
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Ao se engajarem na luta contra o regime, elas sabiam dos perigos, mas lutavam pelo que acreditavam e não tinham medo. Assim, se arriscavam distribuindo panfletos, fugindo da polícia, realizando passeatas-relâmpago. Estas consistiam na estratégia de dividir o grupo próximo do lugar onde seria realizada a passeata-relâmpago. Em um dado momento, quando alguém dava um sinal, todos imediatamente se juntavam, um deles pronunciava algumas palavras de ordem ao megafone, ou no grito, e, em cinco minutos, todos se dispersavam, não dando tempo para a repressão policial agir. Maria do Carmo lembra de quantas vezes conseguia fugir da polícia quando era surpreendida distribuindo panfletos, embora não tivesse tido nenhum treinamento. Tudo aprendido na prática. Os panfletos eram importantes mídias alternativas. Elas também recordam de como os cidadãos comuns eram solidários com os militantes, sempre oferecendo-lhes abrigo ou algum tipo de ajuda para fugir da repressão. Foram momentos difíceis, lembra Helena, que aos 15 anos teve que entrar na clandestinidade para lutar pelos seus ideais. “Aquilo não era guerra, era um Estado contra os cidadãos inocentes”. Para Maria do Carmo, as decisões eram tomadas à medida que a repressão aumentava. “É como se fosse uma estrada, em que você começa no asfalto, depois passa para uma estrada de terra e acaba em uma estrada cheia de buracos”. Mas as três são unânimes em dizer que o período foi um processo de “luta, consciência e superação”. Lutavam porque tinham consciência de que as coisas não deviam ser nem permanecer como estavam, mas também tinham consciência das consequências. E as consequências não desapareceram com fim da ditadura. Mesmo após o fim da ditadura, as Serra Azul não conseguiam empregos públicos e, quando conseguiam participar de concursos públicos, não eram chamadas quando aprovadas. Inclusive descobriram que estavam sendo vigiadas pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin), em 1999. Mas Maria do Carmo diz que elas não poderiam se fazer de vítima, pois escolheram lutar por aquilo em que acreditavam. E, se fosse preciso, fariam tudo de novo.
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DIREÇÕES
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N
ascida na França, em 28 de feve-
As duas amigas já possuíam experiências na
reiro de 1949, Martine Kunz é da
estrada, pois haviam feito várias viagens pela
geração “20 anos em 1968”, con-
Europa, sobretudo para os países mediterrâne-
siderado o “ano mágico da história” por ser
os. Era comum para as duas, principalmente de-
marcado por acontecimentos como a Guerra
vido ao curto orçamento, viajar de carona. “Era
do Vietnã, a morte de Martin Luther King,
uma prática muito corriqueira na nossa época
o movimento hippie, revoluções estudan-
em Paris”. O principal meio de transporte esco-
tis no mundo todo como “Maio de 68”, na
lhido para a aventura no Brasil foi o mesmo.
França, e muitos outros. Professora da Universidade Federal do Ceará (UFC), Martine, hoje uma “brasileira com sotaque diferente”, morava em Paris e era bolsista no mestrado em literatura que cursava na Sorbonne. O dinheiro, que era pouco, ela ganha-
Era assim que se desenrolava a viagem, ao sabor dos encontros
va posando como modelo nas academias de de-
Martine
senho, o que fez na época como um “bico permanente”. Foi nessa ocasião, no ano de 1976, que resolveu que era tempo de dar uma pausa
Helena Tofeti Nogueira
em sua trajetória acadêmica.
TEXTO E FOTOS
Pé na Estrada
Movimento continua sendo a palavra-chave da cultura mochileira, mas, com mais de meio século de distância da geração beat dos anos 50, os mochileiros de hoje não podiam ser exatamente iguais àqueles que deram origem a ideia. Ainda existe quem coloque o pé na estrada de uma forma mais parecida com o que era feito na época de Jack Kerouac. Hoje, no entanto, a tecnologia, a praticidade e algum planejamento são parte das viagens da maioria dos mochileiros. De 1976 para 2010, duas personagens contam suas experiências como mochileiras e ajudam a traçar um paralelo entre o que era um mochileiro nos anos 70 e o que é ser um mochileiro hoje
A viagem não era barata, mas a intenção
A decisão de dar uma pausa, apenas, era
era reduzir ao máximo os custos. A primei-
um pouco vaga, e Martine ainda não havia deci-
ra parte, da França para o Brasil, foi pelo
dido qual seria o formato dessa interrupção até
mar. As duas amigas embarcaram com nada
conversar com Florida. A amiga argelina que
além das mochilas que carregavam nas cos-
estudava as línguas espanhola e portuguesa
tas em um navio italiano que levava tanto
propôs uma viagem ao Brasil, pois tinha alguns
pessoas quanto mercadorias, e, depois do
contatos no país e falava um pouco do idioma.
que pareceu bastante tempo no oceano,
Diferentemente de Florida, Martine não fa-
chegaram ao Rio de Janeiro em pleno carna-
lava uma palavra de português, mas aceitou a
val. Ainda um pouco perdidas e sem um pla-
proposta. A verdade é que, àquela altura, o país
nejamento, ficaram hospedadas na casa de
de destino não importava tanto assim para a jo-
um francês que conheceram no navio e que
vem de 27 anos; o que realmente lhe agradava
possuía uma residência em Santa Teresa.
era a ideia de aventura. “Poderia ter sido qual-
“Era assim que se desenrolava a viagem, ao
quer outro país, inicialmente”.
sabor dos encontros”.
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Do Rio, as duas viajantes foram subindo por Minas Gerais e seguindo para a região nordeste, onde tiveram dias em Salvador e em Fortaleza. Quando chegaram à capital cearense, o dinheiro já estava bem escasso, e como a intenção era seguir para a Amazônia, passaram poucos dias, durante os quais conseguiram abrigo primeiro na Aliança Francesa e depois em uma república. Após conseguirem duas passagens de ônibus, uma doada pela empresa e outra presente de um amigo, a próxima parada, já com cinco meses de viagem, foi Belém, de onde Florida voltou para a França devido ao que mais tarde descobriu ser uma hepatite.
SOZINHA, RUMO A MANAUS Já sem a amiga e companheira de viagem, Martine seguiu sozinha para Manaus em um barco, no mínimo, pouco aconchegante. As pessoas comiam em cuias e dormiam de rede, todas amontoadas, numa “confusão de corpos” que dividiam os espaços com baratas e outras coisas, enquanto o barco não parava de chacoalhar. Sem rede ou cuia, Martine dormia no saco de dormir embaixo das redes de onde as pessoas cuspiam e comiam em cuias gentilmente cedidas por outros passageiros. “Era tudo meio precário, mas no tempo eu adorava, porque eu tinha uma prática dessa precariedade de viajante, então não me assustava. Além disso, eu era bastante destemida... Bastante essa mistura de despojamento e curiosidade. O que importa é não ter medo”. Martine sabia que a precariedade de sua situação era relativa, pois era temporária e também uma aventura, mas lembra que a miséria que via nas ruas de alguns lugares Professora
do Brasil causou um impacto muito grande,
Martine Kunz
pois, apesar de haver pobreza na França tam-
em sua casa
bém, lá não estava presente de forma tão escancarada. “Eu não tinha uma visão política articulada do mundo e do que liga as coisas entre si. Através do Brasil eu fiz essa aprendizagem de uma visão mais integrada.”
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D 1 Era tudo meio precário, mas no tempo eu adorava
Martine
Depois de Manaus, Martine, dentre outras pequenas viagens e aventuras, voou em um avião da FAB (Força Aérea Brasileira) e passou um tempo num campo militar em Boa Vista, onde muitas pessoas trabalhavam em condições precárias na construção da estrada BV-8. “Chamaram um índio que já havia sido pacificado, como dizem, e eu ali de espectadora. Que vergonha a minha”. De Boa Vista voltou a Manaus onde reencontrou um amigo e morou por um mês numa palafita com oito janelas. O amigo pescava, e ela
2
3
conta que passaram o mês comendo sardinhas. De Manaus voltou à Belém e foi de lá que pegou outro navio para retornar à França.
“O BRASIL ME PEGOU DE JEITO” Ainda na França, Martine pensava em um meio de retornar ao Brasil de maneira mais voltada à sua formação acadêmica em literatura. Fez, então, uma licenciatura em português para se aperfeiçoar na língua e acabou voltando ao País em 1979 para estudar a literatura de cordel. A professora conta que um fator muito importante para a sua ligação com as terras bra1. Professora
sileiras foi a experiência que teve em Calumbi,
Martine em sua
município do estado de Pernambuco, quando
biblioteca
conheceu pela primeira vez a literatura de
2. Em seu jardim, ao
cordel. Foi lá que ouviu uma leitura tradicio-
lado dos cataventos
nal e viu cantadores chegando pela estrada
feitos por ela
para fazer uma cantoria.
3. O corredor da
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Mais que o cordel, a cativou a “nobreza natu-
casa lembra uma
ral das pessoas do interior, e sua elegância em
galeria de arte.
receber as pessoas e serem gentis sem cobran-
Todas as obras
ças”. Em 2009, a professora visitou a casa em
foram presente
que se hospedara nos anos 70 e revela que ficou
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Viajologia
A vista da cidade de
O conceito de Viajologia, que reconhece
Ganada
a viagem como uma escola dinâmica, foi criado por Haroldo Castro, jornalista, fotógrafo, diretor de documentários e estrategista de comunicação. Haroldo morou no Brasil, na França e nos Estados Unidos; trabalha em quatro idiomas e conhece 162 países. Hoje possui uma coluna e um blog na revista época, ambos sobre viagens. Do conceito de viajologia (travology) de Haroldo surgiu também um clube que considera a experiência da viagem comparável a obter um diploma convencional de estudo, por isso, o Clube de Viajologia confere aos seus alunos diplomas que reconhecem diferentes níveis de expertise, segundo o princípio de que “viajar é aprender”.
surpresa ao ser recebida pelos moradores com FOTO: ARQUIVO PESSOAL
um sorriso de quem já a esperava mesmo que sem data certa. “O Brasil me pegou de jeito”. Aqui, casou-se com “o seu grande amor”, o jornalista cearense Cláudio Pereira, falecido em 2010. Naturalizada brasileira em 1991, Martine recebeu o Título de Cidadã Brasileira em maio de 2011 e na oportunidade agradeceu ao marido a homenagem: “É ao Cláudio que eu devo a honra
Essa é uma cena que, com certeza, não era
bem curtas pela Europa e uma um pouco mais
de hoje me tornar uma cidadã de todos vocês”.
sequer imaginável para os viajantes beatnicks
longa para o Marrocos, mas ainda teria um mês
e algumas gerações que se seguiram; muito
e meio para viajar e muitos lugares que queria
UMA AVENTURA PLANEJADA
menos podia tal situação ser, para eles, a des-
conhecer. Foi quando decidiu que era hora para
Uma estação de trem cheia de gente falando
crição de um momento comum em uma viagem
sua primeira experiência como mochileira.
línguas estranhas e, em sua maior parte, incom-
de mochileiro. Uma prova das mudanças ocor-
A ideia original era ir acompanhada de
preensíveis. Pendurada nas costas, a mochila le-
ridas durante mais de meio século de história
pelo menos um amigo, mas ninguém tinha
vava, além de roupas e afins, o celular, o iPod
do “mochilão” é que essa é sim uma cena bem
disponibilidade para viajar com ela naquele
e um cartão de crédito. Os braços seguravam
normal para muitos mochileiros de hoje. Um
momento. “Então eu tinha duas opções: ou
firme o notebook, enquanto os olhos atentos
exemplo é a estudante Mayra Hartz, de 21 anos.
eu ia sozinha ou não ia de jeito nenhum”.
No final de seu intercâmbio de seis meses na
Ela decidiu ir sozinha e, depois de escolher o
Espanha, Mayra já havia feito algumas viagens
caminho no mapa, começou o planejamento
procuravam o guichê em que pudesse ser reservada a passagem de trem pelo Europass.
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para a viagem que aconteceu durante junho e julho de 2010. Mayra reservou pela Internet todos os albergues (hostels) em que iria ficar e calculou quanto tempo podia passar em cada lugar, de acordo com o que mais gostaria de conhecer.
ALBERGUE
As passagens de trem só podiam ser reser-
Meio de
vadas nos próprios países de onde os trens
hospedagem
partiam, mas o Europass facilitava a parte de
de baixo-custo
transporte também.
frequentado,
Passando por seis países (Portugal, Espanha,
na maior parte,
Itália, França, Alemanha e Holanda) e 16 cida-
por estudantes
des, a estudante de publicidade começou a via-
ou viajantes.
gem por Lisboa, onde ficou hospedada na casa
Normalmente
de uma amiga de sua família. “Como na pri-
possuem quartos
meira cidade eu tinha uma pessoa, um centro
coletivos, dotados
de apoio, só senti a viagem começar mesmo
de camas ou
na segunda parada, Cades, na Espanha. Foi
beliches, e muitos
quando caiu a ficha de que estava realmente
tem uma cozinha
viajando sozinha”.
equipada
Mesmo viajando desacompanhada, Mayra diz nunca ter se sentido realmente solitária,
e banheiros também coletivos
pois quando não estava “curtindo” sua própria companhia para se conhecer melhor, estava
TURISTEIRO
aproveitando a oportunidade de conhecer pes-
Pessoa que
soas novas com uma cultura diferente da sua.
viaja de formas
Uma grande parte do aprendizado durante a
baratas e fica em
viagem veio da convivência de Mayra com ou-
albergues, mas
tros mochileiros. Foi uma forma não só de co-
não compartilha
nhecer mais do país que estava visitando, mas
das ideias do
de aprender também sobre lugares por onde os
mochilão
outros mochileiros haviam passado e sobre os países de origem deles. “Poxa, se eu não tivesse viajado sozinha talvez não tivesse ouvido e aprendido nada disso”, comenta. Além de “trocar figurinhas” com outros viajantes, conhecer pessoas locais também faz parte da experiência de viajar como mochilei-
FLASHPACKER
ro, pois uma das características da “classe” é
Mochileiro que
a vontade, ou mesmo necessidade, de expe-
dispõe de uma
rimentar um pouco da “vida real” de cada lu-
verba maior e,
gar por onde passa, e absorver um pouco das
na maioria das
diferentes culturas que encontra pelo caminho.
vezes, de um
“Acho que essa é uma das grandes diferenças
cartão de crédito
entre fazer turismo e fazer mochilão, sabe? O
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4
4. Em seu quarto, Mayra fica a vontade em meio às lembranças do “mochilão” 5. Além das fotos, ela só conseguiu guardar o mapa que usou para traçar seu trajeto e alguns cartões. Era o que cabia na mochila 6. O notebook que a acompanhou na viagem ainda guarda todas as fotos e vídeos da
6
experiência como mochileira
mochileiro não quer só ver o que existe em ou-
“É claro que às vezes tudo que eu queria era ter
tros lugares; ele quer viver outras culturas”.
o poder de teletransportar para poder ter meus amigos comigo naqueles momentos”.
SAUDADES
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A saudade apareceu também em momen-
Durante a viagem, apesar de todo o entusiasmo
tos mais difíceis e Mayra conta que uma das si-
e a satisfação de estar viajando sozinha e de po-
tuações inusitadas que a levaram a desejar um
der conhecer novos países, pessoas e culturas,
amigo por perto (ou pelo menos saber alemão)
Mayra se lembra de chegar em alguns lugares
aconteceu quando ia de Berlim para Roterdã. Já
e descobrir algo tão lindo e interessante, que
sentada no trem, depois de ter problemas para
batia a saudade de um amigo ou de vários, que
conseguir a passagem, começou a perceber
não podiam compartilhar aquilo tudo com ela.
uma movimentação estranha. Nos alto-falantes
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D várias coisas eram ditas em alemão, fazendo
e tecnologia de que dispomos hoje, mas não é
as pessoas se levantarem e começarem a sair
difícil perceber que todas as novidades que sur-
do trem agitadas. Sem entender o que estava
giram durante os mais de cinqüenta anos que
acontecendo, Mayra tentou pedir explicações
separam a geração dos jovens beatnik da gera-
em inglês a um funcionário do trem, mas não
ção jovem de hoje fizeram com que “mochilar”
funcionou. “Eu não entendia o que ele falava
ficasse bem mais viável.
EUROPASS
e ele olhava pra mim como se não entendesse
Passe simplificado
MOCHILEIRAS
para viajar de
Só depois de muito nervosismo, Mayra en-
Em 1976 ou em 2011, tanto a professo-
trem por vários
controu um rapaz, de pais brasileiros, que falava
ra Martine Kunz quanto a estudante Mayra
países da Europa
um pouco de português e pôde explicar que ela
Hartz são mochileiras, mas muitas coisas
precisava trocar de trem e que ele iria ajudá-la
mudaram entre uma viagem e outra, não só
GAP-PACKER
a chegar ao seu destino. O que na hora a levou
na mochila, mas, também e mais ainda, na
Jovem que viaja
quase ao desespero, hoje Mayra conta aos risos:
mentalidade dos viajantes, da juventude e
por vários países
“Cheguei a pensar que alguma coisa ia explodir
do mundo de forma geral.
em um curto
porque eu não entendia.”
naquele trem”.
Um fator importante na mudança entre as
espaço de tempo,
As dificuldades e situações inusitadas sem-
duas viagens são as novas tecnologias, não
normalmente no
favoritas, em Paris
pre existem, mesmo com todas as facilidades
apenas quanto aos aparelhos, mas também na
intervalo (gap)
maneira como influem na forma de nos relacio-
entre a escola e
narmos com o mundo e com as pessoas. Hoje,
a faculdade ou
com qualquer aparelho conectado à Internet
a graduação e o
nas mãos, mesmo parados, nunca ficamos
primeiro emprego
FOTO: ARQUIVO PESSOAL
Uma de suas fotos
em um lugar só, e, consequentemente, nunca estamos, completamente, em qualquer lugar. Segundo a professora Martine, uma geração não é melhor que a outra, mas hoje a nossa forma de lidar com o mundo virtual interferiu também na maneira de lidarmos com o corpo. “Existe a necessidade de restabelecer o corpo.
VÔOS LOW COST
O corpo fala”. Para ela as gerações mais novas,
Vôos de baixo
talvez devido a toda a comunicação virtual, dei-
custo, possíveis
xaram de ter tanto contato com o outro e tentar
porque as
descobri-lo à surpresa dos encontros “Nós nos
companhias
comunicamos com todos os sentidos. Não dá
reduzem os gastos
para colocar o corpo no computador”. O au-
com medidas
mento da violência também é um fator impor-
como operar em aeroportos secundários, vender passagens através da
Eu não faria mais e se tivesse uma filha não queria que ela fizesse
Internet, e cobrar a parte itens não essenciais como o
Martine
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serviço de bordo
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Mayra com uma amiga em Amsterdã
Não sei se eles eram tão corajosos. Talvez a gente é que tenha ficado meio fraco
Mayra
tante de mudança, e mesmo Martine diz que a viagem que fez em 76 provavelmente não é mais viável hoje, pelo menos não da mesma maneira. “Eu não faria mais e se tivesse uma filha não queria que ela fizesse”. Para Mayra também existe hoje um certo medo do contato. Ela afirma que atualmente é FOTO: ARQUIVO PESSOAL
muito mais difícil achar pessoas que se arriscam a “ir e ver qual é”, ou seja, viajar de carona e sem planejamento não é muito comum. “Não sei se eles eram tão corajosos. Talvez a gente é que tenha ficado meio fraco”.
CERTAS COISAS CONTINUAM Com tantos anos de mudanças na cultura mochileira, corremos o risco de ignorar as ideias compartilhadas por todas as gerações herdeiras dos viajantes beatniks, mas os mochileiros ainda compartilham de um ideal de liberdade e
Beatniks on the Road
aventura, assim como se mantém o sentimento de comunidade e autenticidade entre os viajantes, que é uma forma de aprendizado e economia, palavras importantes no vocabulário de quem quer colocar o “pé na estrada”. Ainda hoje, o mochileiro se diferencia do turista por querer conhecer os lugares por onde passa e saber como as pessoas vivem fora dos pontos turísticos. Ele quer se transformar e crescer a cada novo rumo. Essa é a ideia que ajuda o “viajante de mochila” a lidar com a contradição de estar aberto para vivenciar novas culturas e se entregar na experiência, porém sem esquecer que vai partir para o próximo destino. Sentir e se entregar, mas não se prender, pois como
Existe mais de uma teoria para o surgimento da cultura mochileira, e uma das mais aceitas é a de que ela surgiu da chamada Geração Beatnik (Beatnik Generation), nascida nos Estados Unidos. Os Beats eram um grupo de jovens intelectuais americanos que, em meados dos anos 50, cansados da vida suburbana do pós-guerra, encontraram sua ideia de liberdade fazendo uma revolução cultural através da literatura. A palavra-chave dos beatniks era “movimento”, e no pacote estavam incluídos jazz, sexo livre, drogas e “pé na estrada”, tradução do título de “On The Road” (romance de Jack Kerouak considerado como bíblia da geração beat). O livro “On The Road” e os beatniks de forma geral acabaram influenciando muitas gerações além da sua própria e foram fortemente vinculados aos hippies e outros movimentos dos anos 60. O “On The Road”, de Kerouak ganhou uma versão no cinema. O filme, do diretor brasileiro Walter Salles (Diários de Motocicleta) teve estreia em junho deste ano.
diz Mayra “o mochileiro é transitório”.
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ENSAIO
Rumos do A leitura do tema Rumos pode levar a diversas interpretações, tanto em palavras quanto em imagens. Com esta proposta, fragmentos de quatro ensaios compõem as fotografias desta edição. Entre caminhos e deslocamentos, os rumos aparecem nos ônibus da cidade, no trem, na religiosidade da procissão e outras paisagens.
Helena Tofeti Nogueira E editora de imagens e fotógrafa
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HELENA TOFETI NOGUEIRA
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HELENA TOFETI NOGUEIRA
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FOTO > HELENA TOFETI NOGUEIRA
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ACASOS
Rumos Interrompidos TEXTO E FOTOS
Marina Solon e Melina Menezes
A vida nos direciona a situações insuspeitadas. Nossos sonhos, metas e planos muitas vezes podem fugir ao nosso controle. Há quem pense que o redirecionamento dos nossos caminhos é um castigo, e situações como essas são provações da vida. No entanto, esses percalços nem sempre nos trazem saldos negativos. É o que nos mostram as histórias de três jovens que tinham suas vidas planejadas, mas que ao sabor do acaso vivenciaram situações completamente diferentes das idealizadas. Situações que funcionaram como um descortinar de uma nova perspectiva do futuro
A
nna Luiza, Vladimir e Danielle são
ções sexuais sem contracepção com o na-
três jovens que têm em comum o
morado. Ao saber da gravidez, Anna Luiza
fervilhar de sonhos para o futuro.
se deu conta de que tudo que havia plane-
Sonhos que hoje não são os mesmos de
jado para si sofreria mudanças drásticas.
alguns anos atrás. Os três passaram por
Por imposição dos pais, casou-se com o
situações inesperadas que foram determi-
namorado tão jovem quanto ela e assumiu
nantes para a formação de um novo pano-
responsabilidades que não estava pronta
rama da realidade que os cerca.
para assumir tão cedo e de maneira tão abrupta. De repente ela tinha se tornado
AS GRANDES SURPRESAS DE ANNA LUIZA
esposa, mãe e dona de casa. A conclusão
À primeira vista, as feições juvenis e os tre-
um futuro intercâmbio tornaram-se sonhos
jeitos delicados de Anna Luiza Magalhães
distantes. A prioridade agora era outra.
não denunciam os acontecimentos já vividos por esta jovem de apenas 23 anos.
da faculdade de jornalismo e os planos de
Anna Luiza não estava preparada para ser mãe. Nunca havia sequer trocado uma
Não fugindo à regra de tomar atitudes
fralda ou segurado um recém-nascido no
inconsequentes que é própria da juven-
colo. Tudo aconteceu numa rapidez tão
tude, Anna Luiza viu seu destino mudar
grande quanto era a necessidade de adap-
quando engravidou do namorado aos 18
tar-se à sua nova realidade. A rotina im-
anos. “Nunca imaginei que fosse aconte-
posta pelo nascimento de sua filha Anna
cer comigo”, foi o que ela pensou quando
Clara era permeada de cuidados e exigia
descobriu-se grávida após manter rela-
muita dedicação. Além disso, tinha que se
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atender aos afazeres e obrigações domésticas, sem esquecer de suas responsabilidades como esposa. A imaturidade do casal era evidente nas situações cotidianas. Enquanto Anna Luiza se desdobrava para exercer a contento todas as atividades impostas pelo casamento, seu jovem marido preocupava-se em não desfazer-se da rotina que levava enquanto solteiro. Anna Luiza estava sobrecarregada. Nem um ano havia se passado desde a data do casamento e um divórcio já era uma possibilidade real para ela. Ao fim de dois anos, a situação mostrava-se insustentável, e Anna Luiza decidiu finalmente retornar à casa dos pais. “O divórcio foi o desfecho de um casamento que não precisava ter ocorrido. Tudo foi rápido demais. Não houve tempo para ponderamos muita coisa. Acho que a primeira reação da minha família, tão tradicionalista, foi pensar que o casamento seria o primeiro passo para resolver toda aquela situação que ninguém esperava e com a qual não sabia lidar direito”. Mais uma vez os rumos da vida de Anna Luiza teriam que ser modificados. Diante de tantas mudanças, ela não conseguia mais vislumbrar tão facilmente seu futuro. As alterações em sua vida esfacelaram suas perspectivas, e ela já não sabia como definir seu próximo passo. “Foi uma época muito difícil. Todas as mudanças que tinham surgido e eu consegui me adaptar de repente mudaram mais uma vez. E isso tudo num espaço de tempo de somente uns dois anos. Era muita informação, muita mudança, pra tão pouco tempo. Não sabia como reagir. Sabia que teria que re-
ajuda de um psicólogo que a ajudou a en-
começar, mas dessa vez não sabia como,
contrar novas diretrizes para sua vida.
Todos os momentos vividos nos últimos anos permitiram que Anna Luiza alcan-
ou por onde”. A faculdade de jornalismo
Foi através da ajuda de um profissional
çasse maturidade e crescimento jamais
que outrora a encantava, não lhe propor-
que ela descobriu a paixão pelo curso de
esperados. Antes da gravidez, a vida era
cionava mais a mesma satisfação. Havia
Direito, o que a levou a abandonar o curso
ilimitada e utópica, e todos os dias deve-
o medo e a insegurança com relação aos
de jornalismo, e dar início a uma nova em-
riam ser vividos intensamente. Hoje, com
dias que viriam. Decidiu, então, procurar
preitada profissional.
um sorriso estampado no rosto, ela tem
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1. Anna Clara e Anna Luiza em um desconstraído 2. A chegada da filha ensinou novos rumos à mãe
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MARINA SOLON
momento
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Corro atrás dos meus sonhos e sou otimista quanto à vida, mas sei que nem tudo é como a gente quer. Talvez certos desencantos que a vida nos traz sejam justamente pra nos aperfeiçoar e fazer crescer
Anna Luiza
uma visão mais realista e concreta do mundo que a cerca, e encara tudo que viveu como fator determinante para o rumo que segue hoje. “Eu não posso me arrepender de uma coisa que me fez o que eu sou hoje. Ter vivido tudo isso, assim, dessa forma me fez ver as coisas de modo mais claro. Hoje encaro a vida de forma muito realista. Não idealizo mais casamento, nem sonho demais. Trabalho com perspectivas reais. Corro atrás dos meus sonhos e sou otimista quanto à vida, mas sei que nem tudo é como a gente quer. Talvez certos desencantos que a vida nos traz sejam justamente pra nos aperfeiçoar e fazer crescer”. Ela acredita que tudo que viveu a tornou mais madura, otimista e contente com as situações boas ou ruins da vida. “A Anna Clara hoje é minha vida, não consigo me imaginar sem ela. Não existem arrependimentos. Aprendi a ser feliz desse jeito, tendo passado por tudo o que passei. Decidi colher os frutos bons disso tudo”.
AS LIÇÕES DE DANIELLE
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A pequena Anna
Assim como Anna Luiza, a bacharel em Direito
Clara entre seus
de 25 anos Danielle Pires viu-se vítima do acaso
brinquedos:
ao descobrir um câncer na mama esquerda. Em
uma gravidez
meio à rotina de trabalho intensa e desgastan-
inesperada trouxe
te em um escritório de advocacia, ela pratica-
novas pespectivas a
mente não tinha tempo para pensar em si mes-
Anna Luiza
ma, e deixava sua própria saúde e bem estar
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em segundo plano. Recém-formada, sua única
outras doenças ou que meu caso fosse muito
preocupação era ser aprovada no Exame da Or-
mais grave. Tinha medo de descobrir uma me-
dem dos Advogados do Brasil. Mas, a despeito
tástase, tinha medo que o tratamento não me
da vontade de Danielle, essa rotina extenuante
curasse. Acho que medo é a melhor palavra pra
chegaria ao fim. Uma noite, enquanto estuda-
definir tudo o que eu senti naquela época”.
va, ela sentiu dores que mudariam para sempre
Ela achava que não teria forças para en-
sua vida: pontadas forte no seio esquerdo se-
frentar a doença. Mas, diante da rapidez com
riam os primeiros indícios do que ela mais tarde
que se sucediam os acontecimentos, Danielle
descobriria ser um câncer.
não teve alternativa a não ser encarar seus
Coloquei a peruca e me senti ‘eu’ novamente. Vi que ainda estava viva e que a minha vida não podia acabar por conta do câncer. Se ele era forte, eu deveria ser mais forte do que ele
Diante da dor, a primeira providência foi pro-
medos e enfrentar a situação. Encontrou na fa-
curar um médico, profissional que diagnosticou
mília e nos amigos um apoio para os momen-
a doença e a informou da urgência necessária
tos difíceis que estava enfrentando. Com base
para a realização da cirurgia que retiraria o tu-
nesse apoio foi que ela se submeteu a uma
mor. “Por que isso está acontecendo comigo?”,
quadrantectomia, procedimento que retirou o
queria se ver no espelho. “Me achava horrível,
era o que Danielle mais pensava na época. “Eu
tumor maligno e um pouco de seu seio, totali-
me sentia um monstro. Minhas maiores crises
chorava de medo e desespero. Sentia raiva de
zando um quarto de sua mama esquerda. Um
de choro eram quando eu passava a mão pelo
Deus, da vida, de tudo. Tinha medo de morrer,
mês após a cirurgia, seria iniciado o tratamen-
meu cabelo e ele caía aos montes. Sempre tive
de ficar feia quando meu cabelo caísse, sentia
to quimioterápico e radioterápico.
muito apego ao meu cabelo. Ele era grande e
Danielle
medo do tratamento, da cirurgia, das dores que
Depois da décima quarta sessão de qui-
liso. E vê-lo caindo aos mínimos toques me fazia
sabia que sentiria. Cada exame que fazia era
mioterapia, o cabelo de Danielle começou a
sentir-me horrível. Eu arrancava tufos de cabelo
uma tortura diferente. Tinha medo de descobrir
cair. Ela repudiava a própria aparência e não
com as mãos aos prantos”. Ela sentia dores pelo
Danielle em sua casa. Depois da sua vitória, ela vive um FOTOS > MARINA SOLON
dia de cada vez e mantém a sua qualidade de vida
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Danielle renasce após vencer o câncer que mudou a sua vida e seus planos aos
MARINA SOLON
24 anos
corpo todo, além de náuseas e desconforto. Ti-
e me deixar ser cuidada sem saber do que seria
tava adaptada a todas as mudanças. Aguen-
nha medo de como as pessoas olhariam para
de mim amanhã. Era desesperador”.
tava firme as dores e os efeitos colaterais e
ela, não queria que os outros sentissem pena
Em meio à queda dos cabelos e às constan-
tentava encarar a situação de forma otimista.
ou a julgassem como “coitada”. Ela emagre-
tes crises de choro, a avó de Danielle resolveu
“Depois da químio, meus cabelos começaram
cia a olhos vistos e estava cansada de receber
presenteá-la com uma peruca muito parecida
a crescer novamente. Uns fios bem ralos e frá-
tanta atenção e cuidado. “Naquela época, tudo
com seu cabelo antes do tratamento. Foi en-
geis, mas que foram suficientes pra me fazer
me revoltava. Minha aparência repugnante, a
tão que ela começou a ter coragem de sair de
ver que pelo menos a primeira etapa de tudo
atenção excessiva de todos, tudo. Eu sempre
casa. “Coloquei a peruca e me senti ‘eu’ nova-
eu tinha vencido. Eu não estava morta, e aos
fui muito independente, muito proativa, e de re-
mente. Vi que ainda estava viva e que a minha
poucos tudo voltaria para o lugar”. As náuseas
pente estava frágil e dependente de todos para
vida não podia acabar por conta do câncer. Se
cessaram e ela voltou a sentir fome. Mas ainda
as mínimas coisas. Sempre levei a vida com ve-
ele era forte, eu deveria ser mais forte do que
não era o fim. Era chegada a hora de enfrentar
locidade e intensidade, e agora tinha que parar
ele, então”. Ao fim da quimioterapia, ela já es-
o tratamento de radioterapia.
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O tratamento de rádio foi composto de trinta sessões de laser sobre a área atingida
uma situação de caráter trágico que ele perce-
apenas um banho por dia. A água que bebia era
beu que precisaria dar um sentido à sua vida.
do próprio chuveiro. “Nada do que tinha vivido
pelo câncer. “Comparado com a quimioterapia,
Vladimir era viciado em cocaína, e, com
se parecia com aquilo. Era terrível. Só conseguia
a radioterapia é quase indolor. Como meu ca-
dinheiro conseguido ilicitamente por meio da
chorar e me arrepender. Eu não precisava viver
belo já estava crescendo e eu já tinha sinais
clonagem de cartões de crédito, ele conseguia
nada daquilo. Foi então que percebi o quanto
de saúde pelo corpo, encarar a radio foi bem
sustentar seu vício. Não tardou a chegar o dia
não sabia para onde estava indo. Eu não tinha
mais fácil. Eu sempre mentalizava que o pior
em que o dinheiro que ele ganhava não fosse
rumo nenhum na vida, achava que tudo era só
já tinha passado”. Danielle tinha melhorado
mais suficiente para manter seu vício. Vladimir
prazer e diversão e que nada do que eu faria
sua alimentação, agora praticava exercícios
começou a somar dívidas com o traficante que
teria consequências assim tão drásticas”.
físicos, bebia mais água, preocupava-se mais
lhe repassava a droga. E foi para saldar essas
Vladimir estava arrependido e depressivo
consigo mesma e estava aprendendo a dimi-
dívidas que ele foi ameaçado pelo traficante
com a abstinência do uso de drogas. Seus olhos
nuir o ritmo de trabalho. “Durante o tratamen-
e obrigado a matar uma pessoa. “O traficante
lacrimejavam, e, frequentemente, seu nariz
to, quando passei a me sentir melhor, voltei a
disse que não mataria só a mim, mas também
sangrava. Ele achava que era o fim de tudo. Na
trabalhar. Não queria me sentir inútil em casa,
meus dois filhos, caso eu não cometesse o cri-
delegacia, ele ainda descobriu que a pessoa a
não queria que a doença ‘achasse’ que estava
me. Era minha família que estava em jogo. Não
quem tentou matar era um grande traficante e
me vencendo. Com câncer ou sem, eu estava
pensei duas vezes, não tinha alternativa”.
começou a receber muitas ameaças de morte.
viva e a vida devia continuar, mas de outra for-
Foi então que, na tentativa de preservar sua se-
ma, de uma forma mais consciente do que é
gurança, o delegado responsável pela sua pri-
importante. Acho que o câncer veio para me
são decidiu que Vladimir não iria para o presídio
dizer que eu estava vivendo um ritmo muito
e aguardaria o julgamento do seu processo em
maluco. Hoje priorizo mais minha qualidade de vida. A vida não é só trabalho”. Quase um ano depois do câncer, Danielle vê a vida de uma forma diferente. “Agora eu sou uma mulher. Me descobri forte, descobri quem são meus amigos e como eles são valiosos”. Ela aprendeu a ter gratidão pela vida e a dar valor às pequenas coisas. Hoje vive
Ler a Bíblia me fazia sentir que eu não estava sozinho, que naquela situação toda havia um ensinamento pra mim e que Deus estava cuidando de mim. Foi então que eu vi que tudo aquilo era uma forma que Deus tinha de chamar minha atenção
Com o decorrer dos dias, Vladimir começou a receber visitas da família. Em uma delas, ele ganhou de presente uma Bíblia, presente de sua madrinha. “Nos primeiros dias de prisão, chorei muito. Me sentia sozinho e desamparado. O ambiente da prisão era muito degradante. Não poderia estar mais arrependido de tudo que fiz. Só queria encontrar
um dia de cada vez. De três em três meses faz exames de rotina, e cada boa notícia dada
uma das celas da delegacia.
Vladimir
uma forma de reescrever minha história e de
pelo médico é considerada uma vitória. “Sou
preencher o vazio que havia dentro de mim e
muito mais forte do que qualquer doença. E o
acabar com toda a angústia que estava sentindo. Foi aí que comecei a ler a Bíblia que
cabelo caindo é o mínimo diante da força que
Munido de um revólver calibre 38, Vladimir
você descobre ter para enfrentar qualquer di-
disparou cinco tiros à queima roupa da pessoa
ficuldade da vida”.
indicada pelo traficante. Mas aconteceu justo
Vladimir viu nas palavras da Bíblia uma for-
o que Vladimir temia e não queria que fizesse
ma de encontrar sua redenção. Ele pedia força a
O TORTUOSO CAMINHO DE VLADIMIR
parte do seu plano. Não só a vítima não faleceu,
um Deus, até então, desconhecido. “Ler a Bíblia
O acaso também reservava ao jovem de 28
como ele foi preso em flagrante pela polícia e
me fazia sentir que eu não estava sozinho, que
anos Vladimir Bezerra uma grande surpresa.
enquadrado no crime de homicídio duplamente
naquela situação toda havia um ensinamento
Ele, que não tinha grandes pretensões da vida
qualificado, conforme o artigo 129 do Código
pra mim e que Deus estava cuidando de mim.
ou do futuro, vivia cada dia como se fosse o últi-
Penal Brasileiro. Começaria o inferno. Após três
Quase cinco meses depois de preso, eu tive um
mo. “Minha vida era uma eterna festa. Só queria
dias de interrogatório, ele foi colocado em uma
sonho com uma passagem bíblica. Nele, Deus
saber de beber, sair e curtir”. E foi numa dessas
cela onde por 89 dias dormiu no chão. Durante
me mostrava o capítulo oito do livro de Roma-
saídas que Vladimir conheceu o mundo das dro-
os três primeiros dias, sua alimentação foi limi-
nos. Nos versículos de 31 a 39, o apóstolo Pau-
gas, do crime e do dinheiro fácil. E foi vivendo
tada a caldo de feijão, e ele tinha direito a tomar
lo fala sobre as provas e certezas do amor de
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ganhei da minha madrinha.”
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MELINA MENEZES
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Deus. Foi então que eu vi que tudo aquilo era uma forma que Deus tinha de chamar minha atenção, e entreguei a minha vida a Jesus e decidi que serviria a Deus para sempre”. O Código Penal Brasileiro prevê que o preso por mais de 90 dias sem julgamento tem direito a liberdade provisória. Foi baseado nesses ditames que o advogado de defesa de Vladimir conseguiu que ele saísse da cadeia após seis meses e oito dias de prisão. Uma vez fora do cárcere, ele decidiu procurar uma igreja para continuar o que ele acreditava ser a missão de sua vida: servir a Deus e fazer sua obra. “Um encontro com Deus e você não é mais a mesma pessoa. O que aconteceu me fez encontrar Deus, paz, e um sentido para minha vida, que hoje é buscar as coisas do céu. Aqui a gente só está de passagem. Antes eu não tinha objetivo nenhum, vivia só por viver. Agora eu tenho uma razão pra viver”. Atualmente, a rotina de Vladimir é repleta de atividades eclesiásticas. Longe das drogas e do crime, ele sonha em ser pastor. Fez amigos na Igreja e é lá onde passa boa parte do seu tempo. Ainda aguardando o julgamento do seu processo, ele confia que Deus dará um bom desfecho ao acontecido. “Nada acontece por acaso. Deus fez com que isso acontecesse comigo para que eu parasse e percebesse Ele. Mas ainda não acabou. Ele ainda vai fazer grandes coisas em mim e através de mim, tenho certeza. Não me preocupo com o processo, sei que ele é propósito de Deus também”. A vida é cheia de ensinamentos. Uns vem de forma agradável; outros, nem tan-
Vladimir diz que
to. O que histórias como a de Vladimir, Da-
a prisão foi a
nielle e Anna Luiza nos mostram é que nem
forma que Deus
sempre as surpresas ruins geram resulta-
encontrou de se
dos ruins. Viver é um eterno aprendizado.
aproximar dele
O que importa é saber que cada dia é uma oportunidade de encher nossa bagagem para continuar a jornada da vida de forma cada vez mais consciente.
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ACASOS
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Sinais Vermelhos TEXTO E FOTOS
João Paulo de Freitas
Os dados surpreendem: mais de 250 mil brasileiros têm o vírus da Aids e não sabem. O Ministério da Saúde divulga anualmente novas pesquisas que comprovam o crescimento da transmissão do vírus. De 1980 a 2010, 592.914 casos foram notificados no País. Até setembro de 2011, estima-se que 630 mil soropositivos já tenham sido registrados. Após três décadas da descoberta da doença, a pessoa que recebe o diagnóstico de HIV Positivo sofre um choque que transforma a sua vida, obrigando-a a encarar o preconceito e o medo da morte. Foi o que aconteceu com Renê e Carlinhos, depois de descobriram que eram soropositivos
E
ra o ano de 2000. A “peste gay”
liberar seus instintos sexuais. Nada de
relações homoafetivas sempre foram bem
estava entrando em um processo
sentimentos. Amor, ele sentia pela mulher
estruturadas, conversava bastante com
de desmistificação. Nessa época,
e pelos filhos.
seus parceiros a fim de manter uma relação de confiança.
as mulheres heterossexuais já faziam par-
Com o tempo, ele começou a se envol-
te dos índices elevados de contaminação,
ver cada vez mais com homens. Aquela
O começo de 2001 veio cheio de so-
os laboratórios foram obrigados a baixar
ideia de que sentimento era só pela fa-
nhos, objetivos e sorte. O século 21 estava
o preço dos remédios em países do Ter-
mília começou a mudar. Agora, ele sentia
começando, novos ares e oportunidades
ceiro Mundo, e o Brasil já somava 220 mil
algo muito mais intenso que o sexo. “Foi
estavam por vir. Ele vivia uma ótima fase
soropositivos. Manuel Herculano, ou Renê,
quando eu me vi capaz de gostar de al-
no amor. Há algum tempo namorava um
como era chamado pelos amigos, sabia,
guém do mesmo sexo, que eu decidi me
rapaz de 27 anos, atraente, de boa família
assim como qualquer outro brasileiro, que
separar”, lembra. A separação aconteceu
e que trabalhava como auxiliar adminis-
a Aids ainda era a doença mais enigmáti-
no final de 2000, e Renê estava gostando
trativo em um escritório de contabilidade.
ca que existia, mas não se sentia amea-
da nova fase da sua vida. Um, dois, três
çado, pois, segundo ele, não estava entre
relacionamentos. Agora ele sabia que es-
ANGÚSTIA E MEDO
o grupo de risco. Casado, 30 anos, pai de
tava sendo verdadeiramente feliz. Suas
Depois de cinco meses de namoro, mu-
quatro filhos, ele cumpria com todas as
danças aconteceram na vida do seu com-
obrigações de um pai de família. Era co-
panheiro. Manchas e feridas começaram
ordenador de uma empresa de laticínios e
a aparecer espontaneamente. Preocupa-
sempre se mostrou um pai presente, mas algo o preocupava: ele sentia dúvidas sobre a sua sexualidade. Gostava da esposa, mas sentia atração sexual por homens. Porém, não se considerava gay. Um dia tomou a decisão de experimentar. Tomava todos os cuidados para que ninguém soubesse dos seus casos extraconjugais. Seu objetivo era sexo, nada além disso. O que ele queria era apenas
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do, Renê questionou seu parceiro: “Você
Desde 2007, bairros da Regional V como Mondubim, Bom Jardim e Siqueira apresentam o maior índice de soropositivos, com 346 casos. Bairros como Benfica, Fátima e Montese, que compõem a Regional IV, apresentam os menores índices, somando 199 casos
sabe de onde vieram essas manchas e feridas?”, “Você já foi ao médico?”, “Já fez exame de Aids?”. “Não”, “não”, e “não”. O fato de o namorado nunca ter feito exames de HIV levou Renê a tomar a decisão de que deveriam fazer um exame de sorologia. O resultado do exame do companheiro saiu 40 dias após a coleta de sangue. Os
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ACASOS
FABIANE DE PAULA
50
FORTALEZA (dados até novembro de 2011)
6.643 casos na cidade
84
homens foram infectados, enquanto mulheres foram 34 entre pessoas de 20 a 34 anos. No ano de 2011
dois foram até o posto de saúde buscar o
vírus. Ou seja, não precisaria fazer o tra-
teste. Renê ficou esperando na recepção,
tamento. Três meses após a descoberta do
enquanto o namorado se dirigiu até o bal-
vírus, eles decidiram terminar o relaciona-
casos de mulheres
cão para retirar o exame. Passaram-se lon-
mento, que rapidamente se desgastou.
heterossexuais, não
gos minutos e nada de ele voltar. A demo-
contabilizando
ra, segundo lembra, era um sinal de que
REERGUENDO-SE
nenhum caso de
o diagnóstico poderia ser positivo. “Ele
O diagnóstico não foi motivo para que ele de-
contágio entre
estava com medo, receoso, por isso não
sistisse dos seus objetivos. “Foi aí que eu tive
lésbicas
teve coragem de voltar logo. Se ele estava
que estudar mais e aproveitar mais a vida”. Ele
com o vírus HIV, eu, consequentemente,
sabia que não podia esconder o diagnóstico. O
também estaria infectado”.
receio de dizer para as pessoas o acompanhou
12
07
Quando o namorado retornou e reve-
por muito tempo. Os primeiros a saberem foram
casos de homens
lou o resultado, Renê foi imediatamente
a ex-mulher e os filhos. Depois ele contou para
heterossexuais e 06
conversar com uma psicóloga. A angústia
o restante da família e amigos. “Foi um choque,
de homens gays
tomou conta dos dois. Ele, que acreditava
eles não estavam preparados. No início, até se-
ter tomado as devidas precauções e cui-
paravam pratos e alguns irmãos não queriam
dados, se viu perdido, pois não entendia
dividir o mesmo copo comigo. Levou muito
como tinha adquirido o vírus. “Ele, apa-
tempo para eles se conscientizarem de que eu
casos de crianças
rentemente, era saudável, tinha um ótimo
podia ter uma vida normal ao lado deles. Fiz
infectadas foram
corpo. Eu conheci a família dele, e sabia
questão de conversar com cada um e orientá-
registrados de 2000
com quem estava me envolvendo. Confiei
-los sobre a forma de transmissão, e que eu não
a 2011. Neste ano,
demais, esse foi o erro”, lamenta.
iria acarretar nenhum problema à saúde deles.
96
10 casos já foram
Como o parceiro de Renê já estava com
Com o tempo, tudo melhorou”, conta.
a imunidade muito baixa, logo começou o
Em novembro de 2001, através de um ami-
tratamento. As idas ao hospital começa-
go, Renê conheceu uma ONG que trabalha com
Fonte: Secretaria
ram a virar rotina para os dois. Ele ainda
soropositivos, a Rede de Solidariedade Positiva
Municipal da Saúde
tinha uma alta imunidade, e, depois de
(RSP). O objetivo da instituição é desenvolver
de Fortaleza
exames, foi diagnosticado que ele não ti-
no indivíduo a autoestima, com atividades mos-
nha a doença (Aids), mas era portador do
trando exemplos de superação. “Quando eu
contabilizados
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Todo mundo, independente de sexo, que transa sem camisinha está correndo risco, por isso a importância do exame
Renê
que, se não se cuidar, a doença pode levá-
começando, mas Carlinhos já havia bebido
-lo à morte mais rapidamente. “Eram oito
e fumado bastante. Os amigos chegaram
comprimidos todo dia, maluco. Isso dá um
cedo, e foram em busca do que eles que-
trabalho danado. E outra, aqui em Iguatu,
riam de imediato: sexo. A casa de diversão
pra pegar um medicamento é uma novela.
era conhecida em Iguatu. Mulheres fáceis,
Tem que fazer exame com o médico toda
cheirosas e que topavam tudo. Havia loiras,
vez que vai fazer um pedido de remédio. É
morenas, de cabelos curtos, compridos, li-
muito complicado”, justifica.
sos ou cacheados. Era só escolher.
Há oito anos Carlinhos vive com o ví-
Ele diz que consegue lembrar do ros-
rus da Aids. Mesmo vulnerável às doenças
to da mulher com quem ficou naquela
oportunistas, ele não largou seus vícios.
noite. “Rapaz, eu lembro quando aquela
cheguei na RSP e me deparei com gente viven-
Fuma cerca de vinte cigarros por dia e bebe
loira chegou em mim, e perguntou se eu
do com Aids há quinze anos, eu acreditei que
três ou quatro vezes por semana. “Tudo o
não queria ‘tirar um barato’ com ela, ali
poderia viver muito mais que eles”.
que eu faço é porque gosto. Eu sei o que
no quarto. É claro que eu fui. Ora, se eu
O contato com outras histórias e experiên-
estou fazendo. Ninguém nunca me obrigou
ia perder a oportunidade de pegar aquela
cias de vida diferentes fez com que ele pudes-
a nada, pelo contrário, todo mundo aqui
dona. Fui, não tive sorte, e paguei um pre-
se também ajudar outras pessoas. A facilidade
gosta de mim e quer me ajudar. Mas, malu-
ço alto por isso”.
para se comunicar foi um fator essencial para
co, é que eu já me acostumei com isso”, diz
que ele pudesse promover encontros e pales-
erguendo o cigarro com prazer.
Carlinhos nunca usou preservativo. Ele diz que não gostava porque o incomodava
tras para discutir o tema HIV/Aids. Hoje, Renê
Esse homem loiro de cavanhaque mal fei-
e lhe tirava o prazer. “Nem o gosto daque-
tem 41 anos, trabalha como assessor adminis-
to começou a trabalhar muito jovem. Sempre
le bicho eu sei. Eu nunca usei camisinha
trativo da Coordenadoria da Diversidade Sexual
demonstrou disposição na sua profissão de
porque não achava que era tão importante
da Prefeitura de Fortaleza, é o vice-coordenador
moto-taxista. Não era estranho ver Carlinhos
e pensava que estava transando com gen-
da RSP e promove debates sobre o tema em
acordar cedo para trabalhar, e chegar tarde
te que não tinha doença. Ilusão, maluco”.
congressos e escolas. Após dez anos da desco-
da noite por conta das corridas.
Na época da transmissão do vírus
berta do vírus, a Aids não se manifestou em seu
Durante cinco anos, quando ainda toma-
ele era casado, não tinha filhos e mora-
organismo, a sua imunidade continua alta. É ca-
va o coquetel de remédios, ele mantinha dis-
vam na casa dos seus pais. Dias depois
sado há oito anos com outro soropositivo que
posição para trabalhar e era considerado um
da noitada, ele transmitiu a doença para
também não tem a doença. Seu companheiro
exemplo de coragem e determinação pelos
sua esposa, e ainda a engravidou. Assim
tem 32 anos e convive com o vírus há seis anos.
cidadãos da cidade. Carlinhos era convidado
que descobriu a doença, na mesma época
pelas escolas para contar a sua história aos
que Carlinhos, ela se separou dele, e foi
O AVESSO DOS PONTEIROS
jovens que estavam iniciando a vida sexual.
embora de Iguatu com a filha. Hoje, sua
A 400 quilômetros da capital cearense, na ci-
Em 2008, uma escola particular da cida-
ex-mulher mora em Fortaleza, e toma o
dade de Iguatu, vive Carlos Rogério Diniz, o
de concedeu-lhe o título de “Homem de
Carlinhos, 37 anos. O homem sério, de apa-
fibra”, pela sua transparência e pela cora-
rência cansada, passa a maior parte do dia
gem de enfrentar as situações de precon-
sentado na calçada observando o vaivém dos
ceito. Carlinhos garante não ter medo de
carros e pedestres. A imagem desgastada é
nada, nem da morte, tão associada à Aids.
visível para todos os que passam pela rua.
“A morte é um passado, meu irmão, já foi.
Soropositivo, Carlinhos desistiu de fazer o tra-
Se ela voltar com orgulho, ela me derruba,
tamento há três anos, e hoje divide seu dia
se não, não tem quem faça eu cair”.
entre apreciar o movimento da rua e saciar seus desejos em tabaco e bebida alcóolica.
NOITADA INESQUECÍVEL
Transmitindo lucidez, diz que o trata-
Tudo aconteceu em um dia de diversão
mento é trabalhoso e demorado. Mas sabe
como outro qualquer. A noite estava apenas
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Iguatu não possui serviço ambulatorial especializado em HIV devido a dificuldade de profissionais especializados e da distancia de 378km da capital. Os medicamentos solicitados para a região chegam em até 03 dias
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A IGUATU (dados até novembro de 2011)
104
casos registrados
09
Eu nunca usei camisinha porque não achava que era tão importante, e pensava que estava transando com gente que não tinha doença. Ilusão, maluco
Carlinhos
casos foram registrados no ano de 2011, até outubro,
coquetel. A filha do casal não é portadora
05 homens e 04
do vírus devido aos tratamentos no pré-
mulheres
-natal. Eles não se relacionam há mais de
56,5%
dois anos, desde quando Carlinhos parou de vir a Fortaleza se consultar.
dos casos ocorre
“VOCÊ ESTÁ COM AIDS”
entre a faixa etária
Diarreia e febre foram os primeiros sinais,
de maior contágio:
após três meses daquela noite de farra.
de 20 a 34 anos
Todos os dias, às 16h da tarde, ele tinha di-
38
senteria que se prolongava por quase toda a noite, o que não o deixava dormir direito. O médico, ao ver a magreza de Carlinhos,
óbitos já foram
e saber quais eram os sintomas que ele es-
registrados. No ano
tava sentindo, disse sem hesitar: “Você está
de 2010, 04 casos
com Aids”. Carlinhos ficou descontrolado:
de morte foram
“Que é isso, rapaz, você não tem cerimô-
notificados
nia pra me dizer um negócio desses”. O
1.500
médico respondeu: “Faça o exame, e vamos começar o tratamento”. Assim que saiu da clínica, Carlinhos foi imediata-
a média anual
mente ao hospital público fazer o exame.
Soropositivo,
de exames de HIV
Dito e feito: o exame deu reagente ao HIV.
Carlinhos vive há
para gestantes e
oito anos com o
200 a 250 para não
rus, aos 29 anos, entrou em desespero. O
vírus da Aids
gestantes
impacto o levou a tentar suicídio por en-
Ele conta que, quando descobriu o ví-
forcamento seis vezes. “Foi um choque, eu Fonte: Secretaria Munici-
não conseguia acreditar que estava com
pal da Saúde de Iguatu
Aids. Não tive estrutura. Mesmo não sabendo o que a doença era capaz de provocar, eu tinha muito medo, porque isso não tem cura, e assusta todo mundo. Queria morrer, e por isso tentei me matar algumas vezes”.
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PARCIAL Iguatu
51%
do contágio é entre heterossexuais
12%
do contágio é entre homossexuais Fonte: Secretaria Municipal da Saúde de Iguatu
Hoje, ele pesa sessenta e oito quilos,
Ao contrário do seu ídolo, Freddie Mercury,
nue a mesma. O desejo de cura, mesmo não
em 1.75 de altura. Antes dos primeiros
que há 20 anos foi vítima da Aids – e que achava
fazendo o tratamento, não o faz menos cora-
sintomas, ele tinha noventa quilos. A diar-
perda de tempo ficar na cama o dia todo sem
joso. A autenticidade de Carlinhos é a qualida-
reia provocou-lhe a perda de mais de vinte
fazer nada, – Carlinhos leva uma vida tranquila,
de que mais se mantém firme. E, em meio à
quilos em um mês. Em 2009, todos seus
em que o ócio se mistura às feridas em seu cor-
cobranças e julgamentos, tudo o que ele quer
dentes caíram e também perdeu parcial-
po provocadas pela falta de tratamento.
é sentar na calçada de concreto, ter o cigarro
mente a visão. Hoje, após um tratamento, a recuperou por total.
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Carlinhos não pratica sexo há oito anos, embora a sua atração pelas mulheres conti-
do lado e contemplar a rua tão movimentada nesses dias de calor no interior do Ceará.
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A 1
Dica de filme: A Cura Imagine que a cura da Aids foi definitivamente encontrada. Agora imagine uma criança que tem um grande amigo que é portador do vírus. A força de vontade e o amor fazem com que haja luta para que o amigo possa encontrar o medicamento e prolongar a relação de fraternidade. Isso que acontece no filme de Peter Horton, lançado em 1995. Uma união incomum entre dois amigos que quebra barreiras e preconceitos. Uma das grandes características de Erik, vivido por Brad Renfro, é ser solitário. Sua mãe, Gail, inter-
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pretada por Diana Scarwid, não o dá muita atenção, e negligencia suas atitudes. Erik conhece Dexter, personagem de Joseph Mazzello, um menino de 11 anos que tem Aids. Eles sempre foram unidos, e gostavam de compartilhar momentos bons e ruins de ambos. A trama começa a tomar rumos diferentes quando eles leem uma notícia em que um médico de outra cidade descobriu a cura da Aids. A pressa de encontrar esse profissional une-se à esperança, para que, enfim, Dexter se cure e Erik possa ter seu amigo saudável e longe dos medos que a doença traz.
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2
FICHA The Cure (A Cura)
DIRIGIDO POR Peter Horton PRODUZIDO EM Estados Unidos (EUA) ANO 1995 DURAÇÃO 110min GENÊRO Drama COM > Brad Renfro > Aeryk Egan > Delphine French > Joseph Mazzello > Annabella Sciorra
1. Carlinhos com seu pai 2. E recebendo um beijo afetuoso de sua mãe
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A
RESENHA
Depois daquela viagem Valéria Piassa Polizzi
A
os 16 anos, Valéria Piassa Polizzi fez uma viagem de navio para a Argentina com seu pai
e irmã para comemorar o Natal. Na viagem fez amizade com um rapaz brasileiro. De volta ao Brasil, após se conhecerem melhor, começaram a namorar. Ela era virgem na época. Seis meses depois, eles transaram no apartamento do rapaz, em São Paulo. Preservativo e Aids ainda não eram uma preocupação. “E, além do mais, segundo meu namorado, camisinha era coisa de ‘puta’. Eu não era ‘puta’; logo, não precisava de camisinha”, relata no livro. A adolescente tinha 18 anos quando começou a sentir
fortes dores no estômago. Eram os primeiros sintomas. No início, Valéria escondeu o diagnóstico para seus amigos e uma parte da família por conta do preconceito. Por muito tempo, desistiu de fazer planos, pois acreditava que logo iria morrer. Decidiu ir estudar nos Estados Unidos, onde conheceu os avançados tratamentos voltados para soropositivos. Mas teve que retornar ao Brasil devido a uma tuberculose renal, ocasião em que contou que tinha Aids para toda a família e amigos. Engajou-se, então, com atividades e projetos referentes às pessoas que vivem com HIV, e também decidiu escrever um livro contando a sua história. Lançado em 1997, está em sua 19° edição e já vendeu mais de 300 mil exemplares. A obra é mais que um ótimo livro para ser lido nas férias, ou um paradidático para avaliações no colegial. É uma experiência forte registrada em 279 páginas. Ficam nas entrelinhas ideias de respeito, amor, compreensão, tolerância e esperança, não só para quem é portador do vírus HIV, mas para todos, de uma forma geral. O preconceito é, sem dúvida, a maior causa de debilidade e morte entre os soropositivos. “Mais difícil do que ter o vírus da Aids era ter que fingir que não tinha”. Hoje, a autora é conhecida nacionalmente e sempre procura conscientizar as pessoas da necessidade do uso do preservativo nas relações sexuais.
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Quando uma pessoa é infectada pelo vírus HIV, ela pode passar anos sem sentir os sintomas, isso porque o vírus pode ter um longo período de incubação no organismo humano. Até então, o sujeito não está doente, pois o vírus ainda não se manifestou nas células sadias. Quando as células começam a serem invadidas pelo vírus HIV, os primeiros sintomas aparecem e a pessoa se debilita, ficando doente. Nesse estágio se constitui a Aids, que é a imunodeficiência do sistema de defesa do organismo. Não há prazo definido para os sintomas da doença se manifestarem. Há pessoas que passam dez anos somente com o vírus, assim como os sintomas da doença podem aparecer nos primeiros meses depois da infecção.
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JOGO RÁPIDO Primeira vez, 16 anos, Aids
V
aléria Piassa Polizzi foi infectada aos 16 anos, em sua primeira relação sexual, porque não usou camisinha. Ela conta sua história de como aprendeu a conviver com o vírus no livro “Depois daquela
viagem – Diário de bordo de uma jovem que aprendeu a viver com a Aids”. Hoje, aos 40 anos, ela é escritora, jornalista e está casada. Quer escrever mais livros, além de
outros dois já publicados, Papo de garota e Enquanto estamos crescendo. O primeiro livro ganhou uma versão no teatro. Em entrevista, defende a educação sexual nas escolas como prevenção.
A Ponte – Receber o diagnóstico HIV Positivo traz mudanças psicossociais. Há casos de suicídio, depressão, e até mesmo abandono de lar. Qual foi a sua reação quando descobriu que era portadora do vírus HIV? Valéria Piassa – Ficamos atônitos, eu e minha família. Isso foi em 89 e não havia muita informação sobre Aids. AP – Você adquiriu o vírus na adolescência. Uma fase de transição, de muitas descobertas e sonhos. O que mudou na sua vida depois que descobriu a Aids? VP – Durante um tempo, acabei me isolando. Mas isso mudou com uma viagem que fiz à Califórnia, onde fui estudar inglês numa universidade por 6 meses. Nessa época, enquanto no Brasil a Aids era tratada como sinônimo de morte, lá já se falava em “pessoas vivendo com HIV e Aids”. Foi lá que conheci, pela primeira vez, grupos de apoio a soropositivos e ativistas que lutavam pelos seus direitos. Isso me fez crer que era uma questão cultural e, se lá havia mudado, aqui poderia ser mudado também. Quando voltei ao Brasil achei que deveria fazer alguma coisa e aí surgiu a ideia de escrever um livro.
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AP – O livro “Depois Daquela Viagem” virou peça teatral em São Paulo. O que você sente ao saber que sua obra ainda está viva, depois de 14 anos do lançamento? Você pretende lançar um filme contando a sua história? VP – O tema continua atual, porque fala de preconceito, adolescência, vida, família... E a Aids, apesar de otratamento ter avançado muito, continua aí. E o adolescente vai continuar tendo todos os problemas da adolescência até o fim do mundo. Por isso, fico feliz com o fato de o livro ainda ser muito lido. Não tenho projetos para cinema. AP – O Ministério da Saúde lança campanhas publicitárias e atua em programas de combate à Aids. O Programa Saúde na Escola ajuda crianças e adolescentes a se prevenirem contra os diversos tipos de doenças. Você concorda com a forma como são feitos os trabalhos sobre Aids pelo órgão, e o que você daria como sugestão ao Ministério? VP – Educação sexual contínua nas escolas, desde cedo. Acho que campanha esporádica é muito pouco.
AP – Pesquisas apontam que um número de infectados que cresce atualmente está relacionado aos idosos. Segundo o Ministério da Saúde, os casos de Aids em pessoas acima de 60 anos dobraram entre 1997 e 2007. Dados do Boletim Epidemiológico de 2009 mostram que os casos registrados dessa época passaram de 497 para 1.263. No entanto, as campanhas ainda são voltadas para jovens e homossexuais, aqueles considerados “grupos de risco” em outras décadas. Por que você acha que não houve ainda uma adequação a essa nova realidade? VP – O governo já fez sim várias campanhas para esses públicos, mas como eu disse é uma questão de educação, mudança de comportamento e não se resolverá com um comercial de 30 segundos ou um panfleto nas ruas. Pode até ajudar. Mas resolver, mesmo, só educação. AP – Muito se fala na cura da Aids. Há ideias de que os remédios que curam a doença já existem, e que só não foram propagados por comprometer a base financeira da indústria farmacêutica que produz os remédios. O que você pensa sobre isso? Você acredita que a cura para a Aids está próxima? VP – Não acredito nisso. A ideia de que temos a cura para tudo é muita prepotência do ser humano. A gripe está aqui há milhares de anos e não temos a cura. Lido com o HIV como uma doença crônica. Hoje sei que tenho que tomar vários comprimidos ao dia, lidar com efeitos colaterais, controlar a alimentação e fazer exercícios físicos, mas apesar disso levo uma vida com qualidade.
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A
ACASOS
“De tudo ficaram três coisas: A certeza de estarmos sempre começando A certeza de que é preciso continuar E a certeza de que podemos ser Interrompidos antes de terminarmos. Portanto: Fazer da interrupção um caminho novo, Da queda um passo de dança, Do medo uma escada, Do sonho uma ponte, Da procura um encontro”
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“Eu nasci de novo” TEXTO
Luana Benício e Maíra Braga Pontes Cordeiro
FOTOS
Maíra Braga Pontes Cordeiro
Esses versos de Fernando Sabino passaram a fazer parte da vida da fisioterapeuta Ticiana Torres de Melo, desde a manhã do dia 1° de maio de 2011. Aos 25 anos, trabalhava dando plantões em hospitais. Durante a semana, seus dias eram ocupados com o trabalho. Levantava cedo para cuidar dos seus pacientes e retornava para casa por volta das 21h. Apesar de muitas vezes trabalhar também nos fins de semana, sempre dava um jeito de se divertir com seus amigos. Em casa, gostava de dormir na cama dos pais, mania que trouxe da infância. Nesse dia, acordou cedo como de costume. Atipicamente, não havia saído no dia anterior. Levantou-se, tomou o café e pegou a Blazer preta de seu pai em direção ao trabalho. No caminho, sofreu um acidente de carro que mudaria o rumo da sua vida. Ela mesma conta como foi que tudo aconteceu
FOTO > DANIELLE ROTHOLI
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62 Outubro 2012
A
“E
ra um domingo de manhã, eu estava indo trabalhar. Fui em direção ao primeiro
hospital dos três em que ia dar plantão naquele dia. Tinha que estar no hospital às 8h da manhã, por isso nem pensei em sair no dia anterior. Fiquei em casa, dormi com minha mãe e com meu pai, adorava dormir no meio deles. Acordei, tomei café, me aprontei, nada fora do costume. Peguei a BR-116 por volta das 7h30, caminho que sempre fazia, quando ia trabalhar no hospital da Messejana. Logo após o Makro, um carro me fechou. Na tentativa de desviar, puxei a direção para a esquerda. Mas à minha esquerda havia um poste. Para evitar que fosse de encontro ao poste, virei a direção no sentido contrário e perdi o controle do carro, que bateu no meio fio e capotou três vezes. Eu fui arremessada a 13 metros pelo pára-brisa traseiro do carro. A todo momento fiquei consciente. Me lembro de tudo. Assim que eu fui jogada do carro, já não sentia mais minhas pernas. Logo pensei: ‘Meu Deus, fraturei minha co-
Ticiana e sua
luna, não posso de jeito nenhum tentar me
ex-chefe, Maria
movimentar’. Então eu fiquei parada. Pouco
Tereza
tempo depois, apareceram muitas pessoas querendo ajudar. E, assustada, eu só repetia: ‘Não toquem em mim, me deixem do jeito que eu estou!’. Uma senhora se aproximou de mim e perguntou um telefone para con-
coincidentemente, saindo do plantão. Então
No dia da minha operação, eu fiquei de
tato. Eu dei o telefone do meu pai, mas com
ele ficou comigo, me acompanhou todos os
8h da manhã até 19h numa tábua de ma-
muita dificuldade de falar. Minha respiração
momentos em que fiquei internada. No hos-
deira. Como eu não podia fazer movimento
estava ofegante e eu sentia muita dor. Mas
pital, fui levada para a UTI e fiz uma série
nenhum, tiveram que cortar toda a minha
consegui falar mesmo assim e, em cinco mi-
de exames. Eu estava tranquila, tentava não
roupa. Na hora da cirurgia, eles abriram mi-
nutos, meu pai chegou junto com o SAMU
me desesperar. Olhava para minha mãe e
nha coluna e puderam ver que eu não havia
[Serviço de Atendimento Móvel de Urgên-
dizia: ‘Mãe, vou precisar muito de você’. O
secionado a medula. Meu tio, que acompa-
cia], que também foi muito rápido. Eles me
resultado da tomografia mostrou que minha
nhou a operação, saiu da sala chorando. Mui-
levaram direto para o hospital da Unimed.
coluna estava com um trauma muito grande
to emocionado, compartilhou a notícia com
Eu ainda sentindo muita dor. Estava com três
e o médico já estava preparando meus pais,
minha família, que estava lotando a sala de
costelas fraturadas e o osso do braço estava
acreditando que eu realmente havia seciona-
espera do hospital. Todos choraram muito,
dividido em três partes.
do a medula e ia ficar paraplégica. Ficaram
sensibilizados, gritando de felicidade. Eu
todos na espera para que a cirurgia apenas
tenho uma família muito grande e conheço
confirmasse o quadro.
muita gente, então eram muitas pessoas co-
Quando eu cheguei no hospital, meu tio, que é medico, chefe de emergência, estava,
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memorando no hospital por ainda haver uma esperança, por não ser algo definitivo. Ainda tinha chance de voltar a andar”. O motorista do carro que fechou Ticiana na BR não prestou socorro e nunca apareceu. Para ela, aquela manhã foi o início de uma nova vida, com novos valores. “Eu nasci de novo, faço aniversario duas vezes por ano agora”.
“NÃO É UMA PESSOA, É UM ANJO” A entrevista que faríamos com Ticiana estava marcada para as 8h30, na sua casa, em um condomínio no bairro Cidade dos Funcionários. Quando chegamos, a sua mãe nos levou até o quarto da filha, que já estava quase pronta, apenas ajeitando os cabelos e se maquiando. “Antes do acidente, eu adorava maquiagem. Mas, depois do que aconteceu, eu não tinha vontade de me maquiar. Me sentia feia, perdi a vaidade. Essas coisas mexem muito com a autoestima da gente”, conta. Depois de um certo tempo, com muita insistência da família e dos amigos, Ticiana foi recuperando a vaidade feminina.
Olhava para minha mãe e dizia: ‘Mãe, vou precisar muito de você’
Ticiana
No seu quarto há várias fotografias
Em sua casa,
de anos anteriores. Em algumas, ela está
conversando com
com as irmãs; em outras, sozinha. Há tam-
mãe e irmã sobre
bém uma cama bastante espaçosa e um
a viagem para São
televisor. O banheiro passou por algumas
Paulo
adaptações. A pia, por exemplo, foi rebaixada. “Meu quarto era lá em cima. Aqui antes era um escritório, mas tivemos que adaptá-lo”, explica.
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64 Outubro 2012
A Resolvemos acompanhá-la para o hospital onde faz tratamento. “Era um dos locais onde eu trabalhava”, informa. Antes do acidente, costumava trabalhar de domingo Ticiana e sua
a domingo, entre plantões em hospitais e
pequena cadela
trabalhos sociais. A mãe de Ticiana a ajuda
da raça Poodle
a subir no carro. Ela nos ensina a dobrar a cadeira. “Ela é desmontável. Uma das mais leves e modernas”, afirma. Preocupada com a filha, nos dá uma série de conselhos. “Cuidado ao sair do carro, ele é alto demais. Afasta mais o banco, tá muito apertada. Quando vocês chegarem lá, depois que ela sentar na cadeira, ajeita ela, tá?”. Assim que paramos no estacionamento do hospital, Ticiana passou do carro para a cadeira com uma agilidade surpreendente. Ajeitou-se na cadeira, cruzou as pernas, sempre preocupada com a aparência. “Como estou? Estou direita?”, perguntou. As pessoas que passavam ao nosso lado olhavam de um modo diferente, mas isso visivelmente não a incomodava mais. “No começo, eu não saía de casa porque as pessoas ficavam olhando. Eu chorava”, lembra. No percurso entre o carro e a entrada no hospital, vimos como um cadeirante enfrenta limitações de mobilidade na nossa cidade. O acesso pelo estacionamento é complicado. O chão pedregoso e cheio de buracos dificulta a chegada até a rampa que dá acesso ao hospital. A rampa, inclinada demais, é outro grande desafio. Já dentro do hospital, Ticiana nos leva para conhecer a sala onde trabalhava antes do acidente. Lá, ela cuidava de um grupo de tabagistas que lutam contra o vício. Em seguida, ela fez alongamento com os pacientes. Eles faziam exercícios de respiração e alongamento com os braços. Todos ficaram muito felizes com a sua chegada. Em especial, dona Francisca Monteiro, 48 anos. “Minha mãe foi muito bem recebida pela Ticiana. Quando chegou aqui no hospital, o médico anterior dela havia dito que não tinha mais jeito, que ela já
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to. E a esperança se renova a cada dia”,
tava morta. Ele disse que ela só tinha 2 me-
Quanto mais pessoas encontrava no
ses de vida, por isso nem valia a pena fazer
hospital, tanto mais era perceptível o
tratamento. Mas eu não desisti. Trouxe o diag-
quanto Ticiana é uma pessoa querida.
Perto do meio-dia fomos para casa. Duran-
nóstico para cá e, assim que viram, disseram:
“Ela sempre é assim. A gente não acredi-
te o caminho de volta, ela falou de Marcelo,
‘Vamos começar o tratamento dela hoje, sua
ta onde é que ela encontra forças, porque
com quem está namorando há um mês. “É
mãe vai ficar boa’. No começo, ela não queria
a gente sempre imagina uma situação
bom para aumentar a nossa autoestima. A
beber nem comer, tava ficando muito fraca.
dessas com a gente e é muito difícil. E ela
gente se sente desejada, bonita”, comenta.
Mas a Tici conversava com ela, dizia que era
não. Toda vida que ela chega aqui, a gen-
Ela admite que não estava esperando por algo
importante ela comer pra se recuperar logo,
te pergunta: ‘E aí, Tici, como é que tá?’.
assim nesse momento. “Eu tinha comentado
pra ficar bem. Já faz um ano que ela tá aqui,
‘Melhor que ontem, e amanhã vai ser me-
com minhas amigas que não queria me envol-
e hoje em dia ela voltou a comer, voltou a
lhor ainda’. Então ela é super assim. A
ver com ninguém agora, mas ele apareceu”.
ter vida. A Ticiana não é uma pessoa, é um
gente só tem a agradecer, porque a gen-
Ela o conheceu há alguns anos, mas não
anjo. O trabalho que ela faz aqui é muito im-
te nunca imagina uma coisa dessas com
se interessou por ele. Mas, segundo suas
portante e, hoje, eu acredito que ela tinha
a gente ou com amigos próximos. Mas ela
amigas lhe contaram, ele já era interessado
que passar por isso. Ela está recebendo de
veio para mostrar pra gente que isso é
por ela. O reencontro aconteceu em uma fes-
volta todo o amor que ela dedicou para essas
mais um obstáculo que ela vai vencer, e
ta na casa de Ticiana. Ela não sabe explicar
pessoas”, diz emocionada.
ela está aí firme e forte, e vai dá tudo cer-
por que, naquele dia, ela passou a vê-lo com
desabafa Layane Lima, 22 anos.
olhos diferentes, e não se esquivou quando Com suas antigas
ele veio conversar com ela. “Uma amiga dis-
colegas de trabalho
se que o comentário dele quando me viu foi: ‘Ticiana, linda como sempre’. Eu pensei: ‘Rapaz, o Marcelo. Tá mudado, não é? Se formou, tá mais maduro, tá diferente. Por que não?”, revela com um sorriso nos lábios. Ticiana descreve o namorado como alguém encantador, que a carrega nos braços, empurra a cadeira, cuidando dela como se fosse a coisa mais preciosa que ele tivesse naquele momento. Se diz feliz, gosta do relacionamento dos dois, mas quer ir com calma, não quer apressar nada, até mesmo porque dia 31 de outubro ela estará indo para São Paulo para fazer um tratamento. “A gente se gosta. É legal tá com ele, mas o que for de ser, será”, afirma confiante.
FISIOTERAPEUTA: A PACIENTE Após o acidente, muita coisa mudou na vida de Ticiana. O primeiro mês foi o mais difícil. Ela passou por todas as fases pelas quais normalmente se passa em uma situação dessas: depressão, revolta contra Deus, o típico questionamento: “Por que eu? Sempre fui tão boa. Boa pessoa, boa filha”. Mas, como toda fase, as coisas foram mudando, e ela foi enxergando sua nova situação com outros
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A
olhos. Passou a dedicar cada minuto de seu
paralelas e órteses em suas pernas, o que,
dia a voltar a andar. Reconhece que teve sor-
de acordo com o educador, pode ser consi-
te pelo fato de a lesão não ser maior, o que
derado um grande avanço.
lhe dá esperanças de voltar a andar.
“A força de vontade dela era 100%.
Ticiana fez tratamento de reabilitação
Para ela, não tem essa de ‘não vou conse-
fisioterapêutica e acompanhamento psico-
guir, não vai dar’. Por mais que eu dissesse
lógico por um mês no Hospital Sarah. “No
‘Olha, vamos tentar um exercício, é difícil’,
começo, é muito difícil. Vem a fase da revol-
ela dizia ‘Não, vamos lá. Não tem isso não,
ta, da depressão. Eu era uma pessoa feliz,
a gente tenta’. Se depender da força de
realizada profissionalmente. Não conseguia
vontade dela, rapidinho ela tá andando”,
entender por que isso tinha acontecido comi-
afirma Euller.
go”. Por ser fisioterapeuta, ela sabe que, no seu caso, se trata de uma recuperação lenta.
“ANDA LOGO, TICIANA!”
Ela também fez tratamento na acade-
Um dia, navegando pela Internet, Ticiana
mia Personal Care, que pertence ao fisio-
descobriu um tratamento em São Paulo que
terapeuta Helder Montenegro. Ele ficou
não existe em outro lugar do Brasil, o Acre-
sensibilizado com a campanha “Anda logo,
ditando. Trata-se de um programa de exer-
Ticiana!” (veja quadro ao lado) realizada
cícios focado em estímulos abaixo do nível
para arrecadar fundos para seu tratamen-
da lesão e em posturas de desenvolvimento,
to em São Paulo. Ele ofereceu o tratamento
que tem mostrado muitos resultados positi-
de graça. “Eu me sensibilizei pelo fato de
vos. O problema é o valor. A sessão de 1 hora
ela ser fisioterapeuta. Quando vi a campa-
custa R$ 115,00. Mas o recomendável é um
nha, entrei em contato com ela e disse que
tratamento de 2 horas diárias, de 3 a 5 vezes
ela podia fazer o tratamento aqui. Sem ne-
por semana. Total: R$ 1.115,00 por semana.
nhum custo”, conta.
Como os gastos da família triplicaram após o acidente, não teriam como arcar com mais esse valor. Então a família e os amigos criaram a campanha “Anda logo, Ticiana”. A mobilização foi geral. Ticiana entrou em
A força de vontade dela era 100%. Para ela, não tem essa de ‘não vou conseguir, não vai dar’
contato com amigos que trabalham em jornais da cidade e uma TV local. A divulgação foi grande, o que fez com que mais pessoas entrassem na campanha. “Cadeirantes de vários lugares
Euller Almeida
me ligaram, entraram em contato comigo. Al-
Educador físico
guns me desejando forças, outros compartilhan-
ratória, ministrado voluntariamente por profes-
do histórias”, recorda Ticiana. Muitas pessoas
sores, cuja verba foi revertida para a campanha.
doaram dinheiro, outras disseram que, naque-
O hospital também ajudou vendendo blusas da
Os dois meses de tratamento na aca-
le momento, não poderiam ajudar, mas que,
campanha. Funcionários mobilizaram suas fa-
demia resultaram em uma significativa
quando ela estivesse perto de viajar, poderia
mílias para doarem dinheiro para Ticiana. Pro-
evolução. Euller Almeida, 31, o educador
ligar, que eles ajudariam como pudessem.
moveram reuniões para contar a história de Ticiana e as pessoas decidiam ajudar.
físico que a acompanhou em seu trata-
No Hospital de Messejana, onde trabalhava,
mento, lembra que, ao final do tratamen-
Ticiana recebeu muitos apoios. Colegas monta-
No final, a campanha conseguiu arreca-
to, Ticiana já estava realizando pequenos
ram um bazar, que durou mais de uma semana,
dar fundos suficientes para Ticiana e sua
movimentos com as pernas. Ela chegava a
venderam rifas, ofereceram até mesmo um cur-
mãe conseguirem passar cerca de 6 meses
caminhar devagar, com a ajuda de barras
so de atualização em Fisioterapia Cardiorrespi-
em São Paulo. “A campanha mexeu muito
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Acidentes de trânsito: Brasil é o 5°
Dando aula de alongamento
com o coração das pessoas aqui, no Ceará. Fiquei impressionada como ela conseguiu que a gente levantasse fundos e almas, que talvez já estivessem adormecidas. Mas a campanha não para, não existe um tempo determinado para a recuperação da Tici, e os custos são altos. Ela irá continuar até que a Tici consiga alcançar seu objetivo maior: voltar a andar”, garante Maria Tereza, coordenadora de Ticiana no Hospital de Messejana.
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Campanha “Anda logo, Ticiana” Informações: Agencia: 0713-7 Conta: 0005627-8 Bradesco Titular: Ticiana Pinto Torres de Melo Contato: (85) 8833-2340 / (85) 86818757 / (85) 9675-1057 e-Mail: tici_torresdemelo@ hotmail.com
De 2002 para 2010, o Brasil saltou de 32.753 registros para 40.160 ocorrências do gênero, o que o posiciona em quinto lugar mundial em número de casos. O Ceará é um dos estados onde mais ocorrem acidentes de transito no País. De acordo com dados do DNIT (Departamento Nacional de Infraestrutura do Transporte), a média mensal de acidentes varia de 247 a 365. A maioria, causada pelo consumo do álcool. Apesar de o número de apreensões e atuações ter aumentado com a implantação da Lei Seca há exatos quatro anos, no dia 19 de junho de 2008, o número de mortes e acidentes não seguiu a mesma tendência em oito das maiores capitais brasileiras, segundo levantamento feito pela reportagem do Terra. E uma delas foi Fortaleza. Fazendo um comparativo do número de mortos por acidente desde 2007 até 2009 na Capital, a melhoria foi relativamente baixa em relação ao que se esperava. O total de vítimas fatais baixou de 1.437 (2007), para 1.405 (2008) e 1.153 (2009). Só no ano passado, os acidentes provocaram o registro de 145 mil feridos em hospitais do sistema público no Brasil, o que custou ao Estado R$ 190 milhões. O número de hospitalizações em 2010 por acidentes foi 15% maior que em 2009.
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ENTREVISTA
“Eu não tinha medo... TEXTO
Camila Silveira e Manoela Cavalcanti
FOTOS
Thalyta Martins
“As prisões eram cercadas de um clima de terror, do qual não se poupavam pessoas isentas de qualquer suspeita, conforme carta, anexada aos autos, do estudante de Medicina Adail Ivan Lemos, de 22 anos, encaminhada à Justiça Militar carioca, em 1970. ‘(...) Quando entrei na sala de jantar, minha mãe, sentada escrevendo à máquina, chorava em silêncio. Um pouco antes, por volta das 15h30, meu irmão tinha sido preso enquanto estudava. Minutos depois começou a ser agredido fisicamente, no quarto de minha mãe, levando, segundo suas palavras, ‘um pau violento’. Socos, cuteladas, empurrões, seriam ‘café pequeno’ perto do que viria mais tarde. Mais ainda ali, separado da mãe por alguns metros, teve sua cabeça soqueada contra a parede (...)”. (Trecho extraído do livro “Brasil Nunca Mais – Um relato para a história”)
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...denunciava a tortura” C
asos similares a este aconteceram
os homens. De tudo, o que mais surpreende, é
com centenas de pessoas, duran-
a sua memória impecável.
te os anos da ditadura militar bra-
sileira. Muitos militantes políticos de esquerda ou simpatizantes destes foram ameaçados, torturados, sequestrados ou “presos por ‘suspeita de subversão’”, como se costumava acusar indiscriminadamente. Mas houve muitas formas de resistência, mesmo diante dos riscos que significava opor-se ao que foi chamado de “revolução”. Alguns davam asilo em suas casas a perseguidos políticos, outros engrossavam as passeatas de protesto nas ruas, cada um combatia como podia. Pádua Barroso, 82 anos, advogado criminalista, fez a sua parte representando legalmente presos políticos no tribunais. Tomar um partido que desfavorecesse ou denunciasse falhas do governo militar, podia ter funestas consequências. Nesta entrevista, ele nos conta como foi defender perseguidos políticos, quando outros optaram por abster-se e preservar-se. Ao entrar em seu escritório, chama a atenção um relógio grande e pendular, que marca as horas num tique-taque intermitente e sonoro, e que nos acompanhou durante toda a conversa. As estantes cheias de livros de capas coloridas e, em especial, a sua vistosa mesa do escritório, feita com a madeira de um extinto cinema fortalezense, sobre a qual repousam um castiçal e um cinzeiro de bronze, prestam um ar de seriedade à sala. O escritório possui dois quadros. Um enorme painel colorido, logo na entrada, e um quadro em branco e preto, que simboliza a opressão sobre
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A Ponte – Foi o senhor que escolheu a decoração do seu escritório? Pádua Barroso – Tudo que tenho aqui, eu ganhei. Essa madeira (apontando para a madeira que reveste o escritório) vem do Cine Moderno. Eu era advogado da Companhia de Cinema Severiano Ribeiro, na mesma época em que comecei a montar meu escritório. Iam demolir o Cine Moderno. Eu não gostava de filar nada de ninguém, e acompanhei tudo interessado na madeira. Eles venderam a madeira a uma serraria. Encontrei e fui lá, porque não queria falar com Severiano, pois eu era advogado deles e ele ia me dar se eu pedisse. Então, fui ao rastro da madeira. Quando cheguei lá, o dono da serraria era meu amigo. O dono perguntou o que eu queria e falei que era a madeira. Aqui você está vendo a sala do Cine Moderno. A madeira foi trazida, em 1927, do Recife para ser montado o Cine Moderno. Esse estilo ainda é muito usado na Inglaterra. Depois de montada a sala, eu precisava de um colorido para quebrar a monotonia da madeira. A doutora Wanda Sidou [parceira de Pádua na defesa de presos políticos] deu o quadro, mas eu não entendia nada, só sabia que o tema era justiça. (Leia box ao lado).
Quadro Justiça O quadro é a Justiça com três caras. Ela está usando uma venda transparente, ela não é cega. Tem três caras, dois olho e um nariz. Cada olho retrata uma situação. Um olho mostra a situação dos presos políticos. No outro, há crianças abandonados e órfãos, e mães desesperadas e pessoas desesperadas. As cores que a artista usou não existem mais. A meia-lua presente em todos os olhos indica a esperança, a inspiração do povo. No espaço entre um olho e outro está a balança, que representa o sonho de justiça. A balança deveria pender a favor do povo, mas ela pesa sobre o povo, indicando a opressão e, do outro lado, é favor de poucos. Os doutores, minoria, lá em cima, e a multidão, lá embaixo, suportando o peso da balança. Os cravos da balança provocando a desigualdade. O cravo da balança quando gera a igualdade, forma a foice e o martelo (símbolo do comunismo).
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AP – O senhor é a favor do socialismo? Barroso – Acredito no socialismo porque não tem outra via. Não através da ditadura, mas com muito esforço da humanidade no decorrer dos anos. Tem que haver uma via, não pode ficar o capitalismo. O capitalismo transformou o universo em um lugar que ninguém pode viver nele. O arsenal atômico das grandes potências é bastante para destruir 72 planetas e nos só temos 1 planeta. A natureza está acabando. O homem está destruindo tudo. E por que o homem quer viver mais, se não vai ter onde viver? O capitalismo criou essa situação. Tudo virou produto.
PERFIL Pádua Barroso NACIONALIDADE Brasileiro IDADE 82 ATIVIDADES Advogado criminalista RESUMO Nasceu no município de São Gonçalo
AP – Alguma vez foi interrogado pelos militares? Barroso – Quando deram o golpe, fui chamado ao quartel general para prestar declaração no processo estourado no serviço público. Fui chamado porque tinha uma ação contra mim, pois eu havia assinado um abaixo-assinado pedindo o registro para o Partido Comunista. O capitão perguntou quem tinha pedido para eu assinar e eu respondi que tinha sido o Soldado. O capitão ficou sem entender nada. O Soldado era apelido. O nome eu não lembro direito, era um rapaz que trabalhava na oficina mecânica de automóveis, na Rua Governador Sampaio. O capitão, ele não me conhecia, também freqüentava a oficina. O capitão perguntou onde fica a oficina. Acabei falando o nome do soldado e o capitão balançou a cabeça e ficou repetindo: “O Soldado!” Isso foi depois do Carnaval. O Soldado tinha morrido numa barroada de jipe, na Duque de Caxias. Não havia soldado nenhum. Soldado era meu amigo, eu tinha escondido ele na minha casa. O capitão agradeceu e continuou conversando, dizendo que queria fazer um pedido. Falou que o governo precisava de gente como
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do Amarante. Veio para Fortaleza em 1947. Na década de 50 entrou no curso de direito da UFC. Defendeu o primeiro preso político julgado do estado do Ceará, João Farias de Sousa. E atualmente continua trabalhando no mesmo escritório no Palácio do Progresso no Centro da Cidade
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a maioria não queria o meu sequestro, a minoria roubou meu carro para me assustar.
Eu não tenho raiva de militares. Eu gosto deles. Eles são honestos
eu. Fiquei sem entender como precisava de gente como eu. Ele respondeu: “De gente honesta”. E perguntou como era o socialismo. Eu respondi dizendo que era a favor do socialismo, admitindo nele o nacionalismo. Quando falei nacionalismo, percebi que tocou o capitão e ele começou a rir. AP – E foi perseguido? Barroso – Eu sabia que eles me perseguiam. Os militares pensavam que eu não sabia. Eu sempre os vi, mas eles não sabiam que eu os via. E sempre tinha alguém que contava as coisas pra mim. Teve um boicote para o meu sequestro. Um tenente-coronel, amigo meu, me informou. Eu era amigo da maioria que fazia parte do Exército, eles me conheciam bem. Eu sei que eles não admitiram o sequestro porque sabiam que eu era um advogado intransigente e era bastante profissional. Isso era opinião deles da minha pessoa. Eu não tinha medo de nada. Dizia tudo, denunciava a tortura. Lembro que um dia eu estava indo para faculdade com meu carro, era um Corcel lindo, procurar um amigo. Isso era mais ou menos 6 horas da tarde. Estacionei o carro ali perto e fui atrás desse meu amigo. Estava carregando uma capanga, é um tipo de pasta para guardar documentos e dinheiro. Quando eu voltei, não encontrei mais o carro. Perguntei para algumas pessoas que estavam ali perto se tinham visto alguma coisa. Falaram que tinham sido eles. Como
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AP – E qual foi o seu primeiro caso de defesa? Barroso – Foi de João Farias de Sousa. Todos o conheciam por Caboclinho e ele era aposentado da Estrada de Ferro daqui, de Camocim. Ele foi acusado de que era comunista, pois esteve em Cuba e trouxe um boné de Cuba. Ele era um comunista histórico, já velho. Foi condenado a 10 anos de prisão. No começo, não havia auditoria militar no Ceará, era em Recife. Depois foi instalada a auditoria aqui e ninguém mais foi julgado em Pernambuco. Alguns casos começaram lá, como de alguns políticos que tiveram o mandato cassado. Aníbal Bona-
vides e Blanchard Girão, por exemplo. Desses fizeram o inquérito policial militar aqui e mandaram para Recife. O primeiro julgamento que aconteceu, aqui, foi o do João Farias. O auditor militar é juiz togado. É um juiz técnico na composição do Conselho Militar. Doutor Arnaldo Carnachiale, que era do Paraná, saiu do julgamento chorando. Porque, como relator, não conseguiu convencer os juízes militares da acusação a João Farias. Ele foi vencido por quatro votos contra um dele. Eu apelei no dia 18 de abril de 1966 e ele foi absolvido em 1° de agosto de 1966 pelo Superior
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Tribunal Militar (STM). Só teve um voto contra.
Pintura na sala do escritório de Pádua Barosso
AP – Alguma vez conseguiu comprovar que um preso tinha sido torturado? Barroso – Tem o caso do Fabiane Cunha. Ele tinha, se me lembro, sete processos. Torturaram o Fabiane e o deixaram no quartel da Polícia Militar, na Praça José Bonifácio [atual 5° Batalhão Policial Militar]. A tortura aconteceu pouco antes da instrução de um processo. Aí, o Fabiane me mostrou os roxos nas pernas, coxas, lesões nos pulsos decorrentes de pau-de-arara. No dia da auditoria militar, orientei o Fabiane para ir com um calção de praia, ao invés de cueca, e na hora que tivesse terminando o interrogatório dissesse que havia sido torturado. Eu iria bater na mesa, como sinal, e ele deveria tirar a roupa, baixar as calças. Assim foi feito. Eu queria que constasse no depoimento tudo que foi mostrado lá pelo preso e o auditor recusou. Então, por uma questão de ordem, pedi a palavra para fazer um protesto. [Pádua sorri ao lembrar do fato] Protesto não pode ser indeferido e aí ele teve de narrar na ata da audiência todos os detalhes.
E por que o homem quer viver mais, se não vai ter onde viver?
AP – Como era atuação da imprensa naquela época? Barroso – Lembro de uma vez, era o julgamento de Frei Geraldo Vieira Bonfim. Na época, o comandante da região era meu parente e permitiu que a rádio Dragão do Mar transmitisse o julgamento. O Tribunal Militar é como um júri, formado
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que representa a opressão na época da ditadura
por 4 militares oficias e 1 juiz. Aberta a sessão, o Procurador Militar, papel similar ao do promotor, pediu à Junta Militar a fotografia do Frei no aeroporto recebendo uma encomenda de uma pessoas suspeita. O procurador deu a palavra à defesa e abri o Código da Justiça Militar, o código antigo, e comecei a falar: “Me limito a ler o artigo tal do código da Justiça Militar. É inadmissível usar o documento até 3 dias antes da sessão em julgamento”. O auditor colocou em votação, chegou o capitão Cesar, nunca me esqueci o nome dele, deu um murro em cima da mesa e disse: “Assim não dá. Nos fizemos uma revolução para implantar um regime democrático autêntico. Mas não para cometer a ilegalidade. Eu voto contra”. O capitão bateu em cima da mesa com tanta força, que acabou desligando a rádio Dragão do Mar. Nunca mais permitiram a transmissão novamente. Eu dizia tudo. Eles que
não faziam publicar. Dei entrevista sobre prisão perpétua. Até ironizei dizendo que, aqui no Brasil, o condenado a morte ia ser executado por quem? Prisão perpétua é igual o amor, só dura quanto é. Olha, é o seguinte, a ditadura foi feita e mantida por uma minoria. Eu não tenho raiva de militares. Eu gosto deles. Eles são honestos. AP – Como o senhor sobreviveu defendendo presos políticos gratuitamente? Barroso – Eu já fazia advocacia geral, mas sempre gostei mais da parte criminal. Tinha meus clientes fixos. Eu defendia os presos políticos, mas sempre atendia meus clientes. Era dessa maneira que eu sobrevivia e os militares não entendiam como eu podia ter dinheiro naquela época. Eu não cobrava nada para defender os presos, eram eles que me procuravam porque já sabiam da minha fama..
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UNIFOR Universidade de Fortaleza Comunicação Social
Jornalismo
Revista do curso de Jornalismo da Universidade de Fortaleza N° 17 - ANO VII Semestre 2011.2 Agosto/Setembro 2011
Av. Washington Soares, 1321, Edson Queiroz CEP 60.811-905 - Fortaleza-CE, Brasil Fone 55 (85) 3477.3105 equipelabjor@gmail.com
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