1 |P รก g i n a
"Sobre tudo o que se deve guardar, guarda o teu coração, porque dele procedem as saídas da vida." Provérbios 4:23
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Sim, diz-se o contrário, fala-se do quanto é lindo poder se deixar arrastar pelos sentimentos, que se deixe agir o coração, e não a mente, mas se guiar pelas emoções em um mundo onde tudo parece corrompido pode lhe custar muito mais do que a própria alma. Aqui, a lealdade ou o amor parecem relativos; a imortalidade os torna efêmeros. O que hoje é bonito, amanhã parece murcho. De modo que pensar no futuro se torna inútil e irresponsável. Fica apenas a mente, a fria e calculista mente, endurecendo o coração e sem confiar em nada nem ninguém. Afinal, do amor ao ódio… Não há mais do que um passo.
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O amor é o princípio do fim.
Pequei. Não posso dizer que seja cristã ou que acredite em algum tipo de religião, porque a verdade é que ainda não sei. Ninguém parou para me perguntar, nem é algo sobre o qual eu tenha pensado. Suponho que ter acabado nesta “vida” torna tudo um pouco mais complicado, mas as concepções do bem e do mal costumam ser universais; por isso, sei que estou agindo mal. Ouvir que alguém faz coisas más e tentar ignorar torna-o igualmente responsável por tais ações. Contemplar o que provoca danos e não mexer um só dedo para evitar o transforma em um monstro. Não sei se existe o céu ou se este é o fim de toda vida, mas às vezes, flagrome desejando que exista algo além de tudo isso. Preciso acreditar nisso. Adoraria ter a certeza de que existe alguém lá em cima capaz de perdoar todas as ações terríveis que cometemos, e capaz de me perdoar; porque, se não for assim, se não existe nada mais do que isso, vou condenar minha alma à tortura eterna. Quando tem que escolher qual alma deseja salvar, não há muitas possibilidades. Não costuma haver tempo para dúvidas. Não sabe como deve ou pode se sentir. Há apenas uma inquietação. Uma terrível sensação que o inunda por dentro, que o destroça; e o certo é que ninguém lhe prepara para algo assim. Não é uma disciplina que se ensina nas salas de aula, nem algo que se aprende com o decorrer da vida. Isso é o que me faz pensar em tudo o que mudou, pois realmente já não pertenço a este mundo. Não importa o calor, o coração, a
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respiração, nem sequer o fato de nunca envelhecer. Aqui se pede mais, muito mais do que posso dar, e isso me assusta quase tanto quanto ter a obrigação de escolher. Se fosse um filme, o mais provável é que soassem violinos ao fundo interpretando uma peça que faria chorar todos os que me ouvissem. Se fosse um filme, eu também choraria. No cinema, os protagonistas sempre tomam as decisões adequadas, aconteça o que acontecer, porque são heróis, e esse é o papel deles; mas eu já disse que não sou precisamente uma heroína, e, se existe uma coisa que sei com certeza, é que meus olhos não derramarão uma só lágrima. Não. Só existe algo que posso fazer: escutar. Ouvir esses hipnóticos e potentes batimentos dos quais tanto depende minha felicidade. Admirá-los, gravá-los a fogo na minha memória e no meu coração, porque logo eles vão parar. Isso, e tentar viver uma eternidade sabendo que serei eu quem vai pará-los. Porque eu vou matar Christian Dubois.
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PRIMEIRA PARTE Súbitos Batimentos.
Fortes batimentos penetraram na minha cabeça. Eram rápidos e profundos, muito mais do que o normal para um coração como o meu. Isso só podia significar uma coisa: ia parar de um momento para outro. Algo se retorceu dentro do meu peito e uma onda de medo me invadiu. Abri os olhos, sobressaltada, e contive o fôlego. Passei a mão pelo rosto e olhei em volta. Não estava consciente de quando tinha dormido, nem de onde estava. Tinha muito, muito barulho; e era incrível que somente aqueles batimentos tivessem me despertado. Baixei o olhar e descobri que estava apoiada contra o ombro de Christian. Pouco a pouco, voltei a me endireitar. Fechei os punhos com força; meus dedos começaram a tremer. Minha mente não estava muito lúcida, mas meu corpo continuava se lembrando de tudo o que acontecera. Então, uma mão fria, e quente ao mesmo tempo, cobriu a minha e a apertou, para me infundir ânimo. — Já chegamos. — Sussurrou no meu ouvido. Ergui o olhar para ele e sua imagem me obrigou a sair da bruma e voltar para a realidade. Não tinha bom aspecto; jamais teria acreditado que poderia dizer algo assim dele, mas era verdade. Os olhos estavam inchados e irritados, e as pupilas extremamente dilatadas, até o ponto de não se poder diferenciá-las da íris; a pele estava ainda mais pálida do que o normal, e a cor dos lábios passara
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de um tom intenso e tentador para um apagado e sem vida. Obriguei-me a recordar a tortura à qual ele estava se submetendo por mim, e o fato de que, se não se controlasse, poderia acabar comigo e com toda aquela gente sem vacilar um segundo. — Como você está? — Perguntei-lhe com cautela. — Está brincando comigo? — Murmurou com um fio de voz, virando a cabeça devagar para mim e arqueando uma sobrancelha. Inclusive no tom dele podia se notar a dor que estava suportando. — Não, desculpe-me. — Enruguei o cenho. — Foi uma pergunta estúpida. — Voltei a ouvir. — Seu coração está… — ...Parando — Ele terminou. — De um momento para outro, assim que desaparecer o último vestígio de sangue guardião das minhas veias. — Quanto tempo você acredita que resta? — Perguntei preocupada. Apertou a mandíbula com força e inspirou, fazendo com que as narinas se dilatassem, outorgando-lhe, por um segundo, o rosto feroz de um animal selvagem. — Não muito. Voltei a olhar ao meu redor. Havia várias pessoas sentadas ali dentro, possíveis candidatas a se converterem em vítimas de um Christian descontrolado, inclusive eu. Não passei por cima do fato de que muitos nos observavam, talvez pelo nosso aspecto. Não tivemos tempo para nos trocar ou nos refrescar durante a fuga da casa dos Lavisier. Nossa roupa estava manchada de terra, e a de Christian, inclusive, apresentava manchas de sangue, e a mesma fuligem que a cobria sujava nossos rostos e mãos. Também podia ser porque, apesar dessa imagem deteriorada e do corte sangrando no pescoço produzido pelas garras de Silvana, inclusive com aquele ar moribundo, selvagem e perigoso, ainda parecia igualmente cativante para os humanos. Certo, não tinha bom
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aspecto comparado à aparência normal, mas afinal, continuava sendo Christian Dubois e, assim como pude experimentar na própria carne, possuía um encanto e aparência arrebatadores, um tipo de atração impossível de se combater. Então, certamente, não podia culpá-los; fosse pelo que fosse, tinham motivos para tanto. Sentia-me culpada por ser a razão do sofrimento dele. Foi ele quem mais se sacrificou por mim, torturou-se e se expôs a uma infinidade de perigos para evitar que me fizessem mal, e conseguiu, mas o preço por me manter a salvo tinha sido alto. Sem dúvida, ignorava que fim teve os De Cote, e inclusive Helga Lavisier; todos eles se colocaram em perigo por mim. A única lesão que sofri correspondia a um corte no ombro, produzido pela afiada lâmina ensanguentada de Silvana. Doía, ardia de frio e calor ao mesmo tempo, mas sinceramente, depois de vê-lo sem pronunciar uma palavra sobre a própria dor, como eu poderia me queixar de um ridículo e insignificante corte? Por mais que me doesse o sangue de guardião, eu não merecia emitir nem um leve gemido. Incômoda, tentei evitar os curiosos e, ao mesmo tempo, os reprovadores olhares das pessoas, e me centrei no que aparecia do outro lado da janela. Um segundo depois, acendeu a luz que indicava que tínhamos que colocar o cinto de segurança, e começamos a descida para a terra. O que aconteceu desde que a casa dos Lavisier tinha começado a queimar era confuso. Tudo parecia longínquo e envolto em uma densa névoa, apesar de não ter transcorrido muitas horas desde então. Senti o estômago meio pesado quando o avião inclinou a asa para a direita, oferecendo um amplo panorama do lugar ao qual nos dirigíamos. Era noite, e noite sem lua. A cidade lá embaixo estava repleta de pequenas luzinhas que começaram a ficar cada vez maiores, até que pude distinguir com clareza os carros circulando pela estrada.
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Sentimos algumas pequenas sacudidas e, pouco depois, aterrissamos. Christian vigiava, atento, mas com o rosto impassível, todo o movimento ao nosso redor, pendente do momento em que parássemos. As pessoas começaram a conversar, entusiasmadas, e muitos despertaram, retorcendo-se e se alongando, doloridos pelas incômodas posturas. O avião começou a frear. Christian se virou para mim com um olhar eloquente, e levou com cuidado minhas mãos à boca, beijando-as sem afastar os olhos dos meus. O coração dele pulsava descontrolado. Então, uma pequena sacudida deu a entender que tínhamos parado. Ele ficou de pé imediatamente, com os dedos entrelaçados aos meus, e saímos para o corredor muito antes que as pessoas tivessem tempo sequer de reagir. As pessoas nos observavam com estranheza enquanto avançávamos entre as fileiras de assentos. Christian se esquivou com facilidade da aeromoça que ia em direção dele para detê-lo, e abriu a porta sem esforço. —
Vamos,
Lena.
—
Apressou
com
voz
profunda
enquanto
atravessávamos a passarela que conduzia ao terminal. — Estão nos esperando. — Quem? — Perguntei confusa. — Quem está nos esperando? — Uma família que vive em um povoado perto daqui. — Explicou-me. — Vou levá-la até eles. — Vai me levar até eles? — Parei em seco. — E o que você vai fazer? — O sangue de guardião deixará de fazer efeito em breve. — Disse com voz grave, e se virou um segundo para mim. — Devo passar esta noite sozinho. Havia injetado sangue de guardião para atrasar o efeito que a ausência de lua tinha sobre ele, aquilo que o transformava em um autêntico monstro. Naquele momento vi que era impossível contar seus batimentos cardíacos, pela velocidade desenfreada do coração dele. Tinha os olhos avermelhados e caminhava depressa, apertando muito a mandíbula. Passamos longe do controle
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e saímos pela porta de “Entrada”. Uma vez mais, novos olhares se chocaram contra nós, os das pessoas que esperavam familiares ou seres queridos atrás de uma faixa. Abrimos caminho entre eles sem nenhum tipo de delicadeza. Notei as intenções deles de se queixarem ou inclusive proferir algum tipo de insulto contra nós, mas por alguma razão, calavam-se ao nos ver. Saímos e nos deparamos com uma grande fileira de táxis que esperavam para transportar os recém-chegados. Sob a escura noite, o aspecto de Christian piorou ainda mais. De repente ele parou em seco, segurando o peito com uma mão ao mesmo tempo em que um bramido brotava de dentro dele. Retrocedi um passo ao ver como hiperventilava. Tentei escutar sua pulsação, mas não consegui, tinha parado de forma tão brusca quanto ele. — Christian? — Perguntei com medo. — Afaste-se! — Ele gemeu entre dentes. Teria me encantado não fazê-lo, ficar ao lado dele e tentar reconfortá-lo, mas as coisas são mais complicadas do que parecem com Christian Dubois. Mesmo assim, não me afastei muito, não mais do que alguns passos. O ar estava frio e, graças a isso não havia muitas pessoas em volta de nós, embora tivesse vários taxistas que olhavam intrigados a forma como ele se retorcia de dor. Então, para minha grande surpresa e, por que negá-lo, consolo, escutei uma potente batida retumbar em seu interior. Passaram-se vários segundos e soou outra. Eram lentas, entretanto ali estavam, o coração dele não tinha parado. Aliviada, voltei para o lado dele, mas fiquei congelada ao ver seus olhos: tudo o que antes fora branco e imaculado estava agora sulcado por milhares de vasinhos vermelhos. — Christian? — Repeti. Respirou fundo repetidas vezes. As veias do pescoço saltavam de maneira incrível pelo esforço que estava fazendo para controlar a dor.
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— Já não resta nenhuma só gota de guardião no meu corpo. — Anunciou, retorcendo-se de novo. — O que vai acontecer agora? — Balbuciei com medo. Ele me olhou nos olhos por um instante de forma loquaz. “Catástrofe”, essa foi a primeira palavra que me veio à mente. Endireitou-se e pegou minha mão com firmeza. — Vamos, resta pouco tempo. Evitei perguntar “para que?” Porque estava certa a que se referia. Só o vi uma vez em noite de lua nova e não podia dizer que se tratasse de um dos melhores momentos que tinha passado com ele. — Boa noite! — Um taxista saudou ao ver que nos aproximávamos. Era um homem baixinho, de olhos cansados, com bigode e densa cabeleira coberta por abundantes faixas grisalhas. — Posso levá-los a algum lugar? — Para o lugar mais afastado da cidade. — Ordenou de forma brusca, ajudando-me a entrar no carro. — Para algum lugar abandonado nos subúrbios, qualquer lugar. — Há um antigo polo industrial. — Hesitou, olhando-nos pelo espelho retrovisor ao entrar no carro, analisando que tipo de pessoa pediria algo assim. — Não é usado há pelo menos uma década. — Voltou a nos dar a mesma olhada de desconfiança. — Então, leve-nos para lá imediatamente! — Christian mandou. Entretanto, o motorista não pôs o carro em marcha, virou-se completamente para mim e com voz muito séria me perguntou: — Está tudo em ordem, senhorita? Pisquei duas vezes, sem entender, será que ele não se dava conta do quão importante era o tempo? Da pressa que tínhamos? Não demorei a compreender o que ele estava imaginando. A julgar pelo nosso aspecto, minha expressão, o rosto
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feroz e ameaçador de quem me acompanhava, a maneira como ele agarrava minha mão e a pressa para irmos para um lugar suficientemente afastado para que ninguém ouvisse os gritos dele… Bom, não precisava ser um gênio para saber que nenhum humano procura um lugar assim com boas intenções, devia pensar que ele me levava a força, ou algo parecido. — Sim. — Apressei-me a dizer — Depressa, por favor! Christian arqueou as costas, inclinando-se para trás com um espasmo e apertando os dentes com força. Fechou o punho até que a pele dos nódulos se tornou completamente branca, e notei também certa tensão na mão que envolvia a minha. — Pode fazer a gentileza de arrancar de uma vez? — Rugiu entre dentes, sem conseguir abrir os olhos. O motorista nos deu uma última olhada. Eu assenti com avidez e ele, por fim, pisou no acelerador e entrou na estrada. Prestei atenção ao coração dele: batida, silêncio, batida, silêncio, batida… Olhei para Christian, que continuava sem abrir os olhos. Tinha todo o rosto concentrado em uma careta violenta e feroz. Tentei não pensar no quão arriscado era para o motorista e para mim estar ali dentro, encerrados com uma fera sedenta de sangue a ponto de despertar. Notei todos meus músculos tensos, pendentes de cada minúscula mudança nele. Ainda me lembrava de como reagira na outra vez na qual eu ainda não era exatamente uma caçadora. Eu pensei que iria acabar comigo, mas não fez. Recordar me aliviava um pouco, mas de repente, ele abriu os olhos e todas as minhas vísceras se retorceram de pavor. Não era um olhar furioso, irritado ou dolorido, nem mesmo cruel ou horrível; simples e relaxado, carregado de uma escuridão maior do que qualquer pessoa possa imaginar. Não importava o que eu tentasse dizer a mim mesma, devia temê-lo e me afastar um pouco dele. Sentia autêntico pânico por estar sentada ali. Observei o motorista com horror, e depois,
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a trava fechada da porta. Depois me virei lentamente para ele, com todos os músculos rígidos pelo pânico. Haveria alguma forma de saber em qual momento ele deixaria de ser o Christian que eu conhecia para se converter no grande predador sobre o qual tantas vezes me preveniram? Se a besta despertasse nele, poderia acabar com o pobre taxista e comigo com um único movimento. Mas, e se já não fosse ele? E se seu plano fosse nos afastar das pessoas para poder acabar conosco? Batida… Silêncio… Silêncio… Batida… Silêncio… Silêncio… Batida… Eu tinha certeza se ele não queria me machucar, mas não sabia o efeito que aquele sangue tinha provocado no corpo dele. Ter atrasado o processo o convertia em um ser muito mais perigoso, agora. Minha mão ficou tensa sob a dele, ardia cada vez mais. Apesar disso, tampouco estava disposta a afastar a mão e que ele pensasse que eu estava com medo dele… Embora no fundo fosse assim. Notei o olhar do taxista através do espelho retrovisor, observando como Christian abria e fechava o punho com força, ainda com aquela expressão. Estava a ponto de lhe gritar que parasse o carro e que nos deixasse sair correndo dali, antes que fosse tarde demais, mas Christian voltou a fechar as pálpebras e a afundar em uma nova onda de dor. Com aquele jeito de olhar oculto sob as pálpebras ficaria mais fácil raciocinar. Concentrei-me durante todo o caminho em contar os segundos entre cada batida: cinco… Sete… Quem iria primeiro: o pobre humano ou a inexperiente e ingênua caçadora? Oito… Nove… Apavorada, lembrei-me de que ele tinha consciência de que um humano duraria muito menos do que alguém como eu. Quando já tinham transcorrido dez segundos entre uma batida e outra, o carro parou. — Chegamos.
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Pela primeira vez, afastei a atenção dele e me concentrei no que nos rodeava. Christian abriu os olhos de repente, endireitou-se e saiu do carro. Eu o segui. Estávamos em um beco escuro, e, assim como havia dito o taxista, abandonado. Não tinha nenhum rastro de vida humana, nem sequer as luzes estavam acesas; era tão somente uma fábrica abandonada. Não entendia qual a razão para ele ter me levado para lá. Christian tirou a carteira do bolso e tirou um pequeno maço de notas. Os olhos do taxista e os meus próprios se desviaram inconscientemente para ele. Christian colocou as notas na mão do taxista com brutalidade e com voz grave acrescentou: — Não se mova daqui. Espere até que ela saia. Esse dinheiro deve bastar. “Até que ela saia? Talvez não quisesse acabar com nenhum dos dois, afinal.” Pensei. Depois ele se virou para mim, pegou minha mão de novo e me conduziu para dentro. — Senhorita. — O taxista murmurou. — Venha comigo, não fique com ele. — Espere por mim, voltarei em seguida — Pedi confusa. Quando estávamos fora da vista do taxista, Christian agarrou uma porta blindada de metal e, com um só movimento, arrancou-a da parede. — O que estamos fazendo aqui? — Balbuciei ao entrar. — Preciso da sua ajuda. — Ele me disse. — Para que? — Perguntei surpresa de que pudesse precisar de mim para algo. Ele olhou em volta, procurando algo. Um instante depois caminhou com passo decidido até uma máquina e arrancou dela duas grandes correntes. Ele as enrolou com certo estrondo e se aproximou de mim. — Para isto. — Anunciou.
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— Correntes? — Retrocedi. Aproximou-se de uma coluna e tentou sacudi-la, mas não parecia muito estável. Foi comprovando-as uma por uma até encontrar o que procurava, quase do outro lado da sala na qual tínhamos entrado. — Quero que me acorrente. — Soltou de repente. — O que? — Depressa! — Apressou com dificuldade. — Por quê? — O tempo está acabando. Estendeu-me as correntes com olhos suplicantes emoldurando aquele rosto feroz. Não queria acorrentá-lo, mas me aproximei e as peguei. Ele retrocedeu até chocar as costas contra a superfície rugosa. — Tem certeza de que elas vão aguentar? — Indaguei enquanto rodeava o corpo dele várias vezes com elas. Minhas mãos tremiam de medo. — Não tenho certeza, não sei quanta força terei esta noite. — Quero ficar com você. — Murmurei a um palmo do rosto dele, quando ficamos frente a frente. — De jeito nenhum. — O corpo dele se retorcia. — O tempo está acabando. — Anunciou. — Coloque a mão no meu bolso. — Obedeci e tirei dali um pequeno papel dobrado em dois. — É o endereço de onde Gareth a espera. Deixei dinheiro suficiente com o taxista para tirá-la do país, se for preciso, mas nenhum humano é de confiança, têm muito medo, então deve procurá-lo o quanto antes. — Vou cuidar de você. — Insisti, encerrando o papel no punho. — Não quero me separar de você, sei que não vai me machucar.
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— É muito perigoso. — Negou com a cabeça. — Voltarei a vê-la logo, mas precisa sair já daqui, Lena. Não vou conseguir me controlar por mais tempo. Eu me aproximei dele e o beijei com cuidado na face. O coração dele estava a ponto de parar. — Saia, por favor! — Retrocedi até a porta sem afastar o olhar dele. — Saia! — Rugiu. — CORRA! Cheguei junto à saída, dei a volta e apertei o passo até a rua. Quando cheguei ali, o táxi já não estava. Olhei em volta; Christian tinha razão, o taxista tinha ido embora. Escutei ruídos que vinham lá de dentro, eram as correntes se agitando. Obriguei-me a não me perguntar quanto tempo ele iria demorar a se livrar delas. Dei uma volta por ali, sem saber para aonde ir. Estávamos no subúrbio, não tinha pessoas por ali, nem sequer luz! Tampouco parecia que pudesse encontrar civilização no mínimo a vários quilômetros de onde estava. Precisava reconhecer, eu estava metida em uma grande confusão. Nesse instante, escutei um forte estrondo metálico acompanhado por um tremendo alarido de dor, e, horrorizada, compreendi que ele já tinha se libertado. Devia correr. Não importava a direção nem o lugar onde fosse parar. Entrei na primeira rua que encontrei; era estreita e longa. Foi um erro, mas não me dei conta até que estava completamente dentro: se ele aparecesse me veria sem problemas. Tampouco era uma opção retroceder, pelo risco de me encontrar cara a cara com ele. Tudo estava cinzento, havia muito pó, e tinha começado a levantar uma ligeira névoa. Parei um segundo para analisar o silêncio. Em situações normais, meus agudos sentidos me permitiriam saber quando ele estava perto, em especial o olfato e o ouvido; mas agora eu tinha o cheiro dele em cada célula do meu corpo, e o coração dele não emitia som algum. Olhei em volta, tentando encontrar uma
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maneira de perceber a aproximação dele, mas ele era silencioso pela própria natureza, o que o tornava ainda mais difícil e... Perigoso. Devagar, e tentando não fazer ruído, aproximei-me da parede e me apoiei contra ela, escondendo-me pouco a pouco, e fiquei escondida atrás de enormes contêineres. Nem sequer me atrevia a respirar, fiquei completamente imóvel, confiando em que meu cheiro ficasse camuflado entre todos os que inundavam aquele lugar. Se eu agisse bem, talvez pudesse esperar ali até que o sol saísse e pusesse fim a esta tormentosa noite. De repente, senti que algo passava veloz sobre minha cabeça e, de forma instintiva, olhei para o telhado. Saí correndo na direção contrária, tentando por todos os meios ser silenciosa, mas havia muita água no chão. Sem dúvida, essa era uma das razões pelas quais Christian tinha preferido ir pelo alto. Entrei na primeira ruela que encontrei para despistá-lo. Depois de vários minutos, parei por um momento para me dar ao luxo de analisar uma vez mais o silêncio. Então, do outro lado, divisei, um pouco afastada, uma estrada iluminada. Por ali passavam carros em grande velocidade. Um pequeno começo de alegria invadiu meu corpo. Dirigi-me para lá tão rápido quanto me permitiram as pernas, e sem pensar, sem olhar para trás, sem pegar nenhum outro caminho... Segundo erro. Por fim, saí da ruela. Ainda havia uma pequena planície até chegar à estrada. Os carros eram muito pequenos para que pudessem me ver se eu fizesse um sinal, embora não soubesse qual direção devia tomar. Continuei correndo, mas naquele momento, senti algo nas minhas costas. Parei pouco a pouco, sem me atrever a olhar para trás. Como se o mundo inteiro tentasse anunciá-lo, o ar mudou de direção, transportando o cheiro dele, um cheiro único e maravilhoso, para mim. Muito devagar, eu me virei para ele e fiquei cara a cara com a fera, a
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outra metade dele. O rosto e o corpo eram os mesmos, mas a besta dentro dele o dominava, apoderara-se dele. Tentei retroceder um passo, mas ele saltou sobre mim e não pude fazer nada para evitar. Tentei correr, sem êxito, mas ele me segurou por uma perna e me atirou no chão. Com um ágil movimento se lançou sobre meu corpo para me prender contra a terra, embora, de novo graças aos meus reflexos, conseguisse me esquivar. Ele se virou para mim e fiz algo horrível: golpeei-o forte para afastá-lo o máximo possível de mim. Demorei um pouco para me lembrar de que esse não era o Christian que eu amava, mas um monstro que não vacilaria em acabar comigo. Consegui empurrá-lo antes que conseguisse me prender de novo e ele foi lançado para trás. Durante um momento não se moveu, então me levantei devagar e me aproximei dele com cautela. Começou a se retorcer no chão, com a cabeça inclinada para trás e os músculos do pescoço marcados mais do que poderia ser considerado normal. Senti uma súbita dor no peito ao vê-lo estendido ali, sofrendo. Estendi a mão para ele com cuidado, sem me atrever ainda a me ajoelhar ao lado dele, mas ele abriu os olhos com um rápido movimento e os cravou em mim. Dei um salto para trás pelo susto. Não esperei nem um segundo mais, eu me virei e comecei a correr pela planície acima das minhas possibilidades, consciente de que pouco importava que eu fosse mais forte e que isso me permitisse maior velocidade, porque a agilidade dele era muito maior e sabia empregar seus poderes mil vezes melhor do que eu. Não tinha conseguido percorrer nem a metade da distância quando senti que algo me lançava de bruços contra a areia. Tentei afastá-lo, gritei com desespero, lutando para impedir a todo custo que ele me imobilizasse, mas foi inútil. Sujeitou com força meus braços com uma só mão, enquanto com a outra rasgava a gola da minha camiseta, tentando ter acesso ao meu coração.
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— Não! — Balbuciei fraca. Será que tínhamos escapado de toda aquela tortura na cidade para acabar assim? — Sou eu! — Supliquei. — Por favor... Com um doloroso arranhão abriu minha pele. Gritei de dor, retorcendome e lutando até que consegui livrar uma das mãos. Levada pelo desespero fiz a primeira coisa que me ocorreu para afastá-lo de mim: apertei a palma com força contra a pele do peito dele, sob a roupa. Ele soltou um grande grito. Se algo estava claro era que algumas zonas dos nossos corpos tinham se acostumado ao contato de um com o outro, e essa não era uma delas. Assustada, descobri que não consegui o efeito que esperava, pois ele não se afastou, continuava ali, mas agora a sede de sangue tinha aumentado. — Christian! — Gaguejei tentando me arrastar para trás. Ele ergueu os olhos e cravou o penetrante e sinistro olhar durante uns instantes em mim. Meu corpo tremia cada vez mais, conforme sentia aumentar a raiva no dele. Minha mão continuava apoiada no peito dele, acrescentando dor, mas eu não a afastei. De repente ele juntou nossas testas e os olhos dele começaram a mudar; uma neblina ambarina os cobria. Sabia o que significava aquilo e senti pânico ao vê-lo. Desejava com todas as minhas forças fechar as pálpebras e me salvar daquele mortal escrutínio, mas não conseguia. Era bonito demais contemplar como aquela voluta amarelada ia fundindo-se com a íris, com as pupilas… Era hipnotizador. Naquele momento, uma espantosa dor sacudiu todo meu corpo. Surpresas desagradáveis. O tempo pareceu parar enquanto meu coração ficou carregado de uma profunda e insuportável dor, mas nenhum gemido saiu da minha boca; não podia, só conseguia me deleitar com aquela maravilhosa visão. Nem sequer me dei conta de que um carro acabara de sair da estrada e bateu de forma brusca em Christian, afastando-o de mim. A força que me unia aos olhos dele minguou
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até quase desaparecer, mas minha consciência ainda estava muito longe da realidade. — Lena, vamos! — Disse uma voz poucos segundos depois, sacudindome com pressa. — Vamos! — Repetiu. Pisquei umas quantas vezes. Um rosto redondo, moreno e extremamente atraente me observava com atenção, com olhos enormes e escuros, embora não fosse nada comparado com o que eu acabara de presenciar. O recém-chegado me ajudou a ficar de pé a toda velocidade e me levou até o carro. — Sou Gareth. — Ele se apresentou enquanto eu me sentava no banco do passageiro e afivelava o cinto; eu ainda estava como uma drogada. Era tão bonito o que tinha contemplado, tão extraordinariamente devastador… — Não se preocupe, vamos sair daqui imediatamente. — Arrancou com o carro e voltou para a autoestrada, mas eu nem sequer estava consciente de que estávamos em movimento. — Vai ficar tudo bem. — Tentou me tranquilizar. — Lena? — Olhoume impaciente ao se dar conta de que eu não tinha pronunciado uma só palavra. O carro parou em seco e o homem chamado Gareth se virou completamente para mim. — Lena! Sabe onde está? — De novo não respondi. — Lena! Tirou o cinto de segurança, baixou a manivela da minha janela para que eu recebesse ar fresco e colocou ambas as mãos no meu rosto, dando-me leves tapinhas para que reagisse. Depois abriu minhas pálpebras para observar minhas pupilas e as soprou. Não sei por que razão ele fez aquilo, mas foi o que bastou para me fazer sair do estupor. A sensação era parecida com a que se tem quando acaba de dormir e cai em um buraco. Eu o contemplei, confusa, e observei como o repentino relaxamento do seu rosto durou alguns segundos apenas. Cravou os olhos no retrovisor e, acossado por uma angustiosa pressa, voltou a colocar o carro em marcha, muito mais tenso do que antes. Dirigi o olhar para lá e vi com clareza uma figura escura que vinha até nós a toda velocidade.
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O veículo deu uma sacudida e se internou de novo no tráfego. — Você está bem? — Perguntou sem afastar os olhos do retrovisor. — Sim. — Minha voz soou estranha — Creio que sim. — Vou levá-la para casa. Ainda ausente, deixei cair a cabeça contra o assento com o olhar perdido no espelho retrovisor e nos numerosos faróis que passavam a toda velocidade à minha direita. Christian já não nos seguia. Então, dei-me conta de que estava com os punhos fechados com tanta força que as unhas se cravavam nas palmas das mãos. Eu as abri para tentar fazer com que a dormência passasse, sem prestar muita atenção. Olhei de novo para o retrovisor e o que vi ali refletido me horrorizou. Pouco a pouco, levei os dedos trêmulos ao peito, onde a roupa estava destroçada. Ali, iluminado pela luz da rua que piscava, havia um horrível corte. Tentei roçar a ferida com os nós dos dedos, mas por alguma razão, não me atrevi a tocá-la. Observei de soslaio o recém-chegado, cobri o local com o cabelo e me encolhi, dando-lhe um pouco as costas, como se quisesse protegê-la do olhar dele. Gareth se manteve em silêncio e eu fiquei profundamente grata; suponho que ele adivinhou que o que eu menos necessitava naquele momento eram palavras, mesmo que fossem de consolo. Só conseguia pensar em Christian se retorcendo de dor no chão, no pânico que senti ao saber que ele ia me matar e no que iria acontecer amanhã. Meus olhos se fecharam e senti a cabeça pesada. Gareth parou em um semáforo e voltou a analisar minhas pupilas com a testa franzida. — Como está se sentindo? Melhor? Não tive tempo para responder, pois ouvi um ruído surdo sobre o carro e, do nada, mãos apareceram pela janela ao meu lado e se aferraram em mim com força. Gareth só teve tempo de tentar me segurar pelas sapatilhas antes que me tirassem por completo do carro, mas não teve força suficiente para evitar que eu
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fosse jogada na calçada. Aturdida, tentei me reerguer, justamente a tempo de ver que Christian se lançava de novo sobre mim. Gareth conseguiu descer do carro e lhe dar um golpe, bem a tempo para que eu conseguisse me esquivar e correr para um parque vazio. Avancei alguns passos e parei. Aquele homem tinha salvado minha vida há apenas alguns instantes, não podia abandoná-lo. Voltei para lá, mas não encontrei nenhum rastro de nenhum dos dois; apenas o carro, ainda com as luzes acesas e as portas abertas era testemunha de que alguém estivera ali. Tentei respirar fundo e captar o cheiro dele, mas meus sentidos ainda estavam muito adormecidos para conseguir algum resultado. Retornei ao parque, com cautela e apavorada. Não tinha ideia do que podia fazer. E só a possibilidade de sussurrar o nome dele na escuridão me fazia tremer de pavor. O vento balançava as copas das árvores e varria as folhas do chão, embora nada disso fosse arrepiante, a não ser a certeza de que estavam me vigiando. — Lena! — Ouvi de repente de algum lugar afastado. — Lena! — Sem pensar duas vezes me pus a correr até lá. Sentia cada membro do corpo tremer com o movimento, mas encontrar Gareth era a única coisa que podia fazer. — Lena! — Ouvi de novo. Desta vez o som estava mais próximo. Internei-me em uma zona ajardinada com muitas árvores e arbustos e procurei. — Lena! — Agora vinha dali, eu tinha certeza. Olhei em volta, procurando-o. — Olá? — Atrevi-me a sussurrar com voz angustiada. De repente, Christian caiu sobre mim, aprisionando-me contra o chão. Bati nele com força, gritei, mas ao ver os olhos dele de novo, emudeci. Gareth apareceu atrás dele. Tive tempo de ver resplandecer um líquido esbranquiçado exatamente antes que o cravasse diretamente no pescoço do outro. Ele se virou e bateu de tal forma no desconhecido que este caiu a vários
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metros de distância. Em seguida se afastou de mim, retorcendo-se de dor e me olhando fixamente. Fiquei imóvel, apavorada, enquanto contemplava o sofrimento dele ao cair no chão. Quis ajudá-lo, mas nesse momento, Gareth voltou para o meu lado, obrigou-me a me levantar e me levou de novo até o carro. Quando retornamos à estrada não prestei atenção no caminho. Gareth não disse nada, nem sequer me perguntou se eu estava bem. Poucos minutos mais tarde chegamos, pelo menos foi isso que supus, porque ele abriu a porta e me ajudou a sair. Não pude prestar atenção aos detalhes, nem em nada que me rodeava. Só me limitei a andar em silêncio, atenta ao eco dos nossos passos. A porta da casa aonde nós chegamos era rente ao chão, sem escadas nem nada parecido. Gareth pegou na aldrava de metal e bateu duas vezes. Segundos depois, um postigo se abriu e enormes olhos negros nos percorreram com rapidez. Sem dizer nada, fechou de novo a abertura e ouvi os pesados ferrolhos sendo abertos. A madeira girou sobre as dobradiças, dando passagem a um pequeno pátio interno. Gareth colocou a mão nas minhas costas e me convidou a entrar. — Lena? — Perguntou uma voz suave, e eu me virei para a entrada. Quando a porta se fechou, vi uma moça loira, de altura média, vestida com uma roupa que era mais apropriada para filmes como Greese e o penteado à Audrey Hepburn. Aproximou-se de mim e me abraçou. — Como está, querida? Afastei-me dela sem responder. As palavras que ela usou me incomodaram. Não é nada agradável a sensação de que alguém conheça mais você do que você a ele. Tinha um aspecto amável e maternal, apesar da evidente juventude, então supus que era uma forma de tentar me reconfortar, mas conseguiu o efeito contrário, como se tivesse invadido minha intimidade. Não consigo imaginar minha expressão naquele momento, enquanto debatia todas aquelas coisas dentro de mim, mas serviu para que Gareth fosse me ajudar.
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— Gaelle, será melhor que Lena entre para descansar, foi uma longa noite. — “Longa” dizia muito pouco. “Longa” seria uma noite sem Christian, por exemplo, mas essa… Essa tinha sido “eterna”. — Alguma notícia de Liam e Lisange? — Balbuciei. — Eles já chegaram? — Não, ainda não. Gaelle me fez cruzar o pequeno pátio interno. Vi as estrelas refletidas na superfície lisa de uma fonte desligada. O firmamento claro e quase transparente me lembrou da minha casa, a dos De Cote, e um forte nó se instalou na minha garganta. Quando entrei, um forte cheiro de incenso misturado com curry me invadiu. Curry? Ouvi ruídos à minha esquerda. Uma garotinha recolhia os pratos espalhados sobre uma mesa. Era magra e, pela estatura, não devia ter mais de sete anos. Tinha uma espessa juba loira, tão loira que parecia grisalha, e vestia um delicado vestidinho de cor bordô, como uma boneca de porcelana. Eu me virei para Gareth. Uma menina humana convivendo com caçadores? A garota interrompeu o trabalho, devagar, como se acabasse de perceber algo e, muito lentamente, virou-se para onde eu estava. Retrocedi um passo pelo susto ao ver que uma membrana esbranquiçada cobria os enormes olhos escuros; ela era cega. As pupilas giravam tentando encontrar a origem de algo, e esse “algo” devia ser eu, porque de repente, os olhos se detiveram em mim. Escutei a respiração dela se agitar de forma impossível, as pálpebras se abriram mais do que o normal, e então, a pilha de pratos que segurava entre as pequenas mãos se precipitou no chão, provocando um grande estrondo, seguido de um grito agudo que rasgou em dois a calma da noite. — O QUE ELA ESTÁ FAZENDO AQUI? — Gritou. — O QUE ESSA ODIOSA HUMANA ESTÁ FAZENDO NA MINHA CASA? — Eu recuei, pela força e ferocidade daquela voz.
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— Valentine, Lena vai ficar um tempo com a gente. — Gareth respondeu, tentando parecer autoritário, enquanto colocava a mão no meu ombro. — NÃO! — Ela voltou a gritar, aproximando-se e jogando em mim o primeiro copo que encontrou. — FORA! FORA! EXPULSEM-NA DAQUI! — Mas o que… — Eu me abaixei a tempo de evitar que outro copo me atingisse na cabeça. — O que foi que fiz? — Protestei me escondendo atrás do corpo de Gareth, mas emudeci ao ver a expressão de fúria e terror das pequenas e delicadas feições dela. — Gareth, acompanhe Lena até o quarto, vou tentar acalmar Valentine. —Gaelle pediu, apressando-se a segurar aquela a quem tinha chamado de “Valentine”, antes que ela se lançasse diretamente à minha jugular. — Vamos, Lena. — O homem parecia resignado, assentiu e me indicou uma porta lateral. — O que foi que eu fiz? — Insisti sem me mexer do lugar. — Lena… — NÃO, NÃO, NÃO! — Ela voltou a gritar. — NÃO QUERO ESSE MONSTRO NA MINHA CASA. Levem-na daqui! Gareth puxou meu braço, tirando-me do lugar no qual eu tinha ficado grudada. Atravessamos a porta e subimos por uma escada com degraus desgastados. Cheirava a umidade e madeira velha. Os degraus rangiam a ponto de quase romper-se. Estava certa de ter visto marcas de cupim em algumas áreas, mas não podia pensar nisso agora. Vigiava minhas costas, temerosa de que aquela menina surgisse da escuridão e se lançasse contra mim. Para que tipo de lugar Christian tinha me mandado? — Por que ela me chamou de monstro? — Eu quis saber com voz trêmula.
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Ele inspirou profundamente. — Não deve dar importância ao que ela lhe disser. Percorremos quartos que estavam às escuras, iluminados somente pela luz de um pequeno candelabro que ele segurava no alto com firmeza. Os gritos daquela menina continuavam ressoando, inclusive do outro lado da casa. — Ela me conhecia? — Voltei a perguntar, atônita ante a possibilidade. — Creio que não. — Parou em frente a uma porta de madeira quadriculada. — Então… — Já é tarde, Lena, e você precisa descansar. — O que preciso é compreender o que acaba de acontecer. — Não aconteceu nada, Lena, absolutamente nada. Agora, procure dormir. Amanhã será outro dia. — Abriu a porta frente à qual tínhamos parado. — Este será seu quarto, se precisar de algo, basta nos chamar. Quis insistir no assunto, mas havia algo que me preocupava muito mais. — O que você injetou no Christian? — Perguntei antes de entrar. — Sangue de guardião — Respondeu. — O suficiente para limitar as capacidades dele e nos permitir escapar. Fiquei parada no lugar sem saber o que dizer, preocupada, mas Gareth manteve-se junto à porta, esperando pacientemente que eu entrasse. Não sei se foi pela expressão dele ou pelo fato de que eu não o conhecia, mas não me atrevi a dizer mais nada, e entrei. — Ele vai ficar bem. Pela manhã já terá retornado, mas não abra a janela. Os cristais são feitos à prova de grandes predadores. Apenas para o caso de... Dirigiu-me um pequeno sorriso de ânimo e me deixou sozinha. Procurei o interruptor na parede, mas não havia nenhum. Antes que tivesse tempo de perguntar a Gareth onde acendia a luz, ele já havia desaparecido.
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— Maravilha… Fechei a porta e enfrentei a solidão daquelas quatro paredes. Já não se ouviam os gritos, apenas um penetrante silêncio. A falta de som era sempre muito mais insuportável que uma habitação abarrotada de gente gritando; era aquele tipo de silêncio que assobia, que entranha nas vísceras e nos inquieta. A grande janela estava fechada, como era esperado pelas palavras de Gareth, mas embora não viesse sequer um traço de brisa por ela, pelo menos contribuía com espaço e quebrava a asfixiante sensação de encerramento que provoca esse tipo de escuridão claustrofóbica. Eu me inclinei para olhar para fora, mas dali só se via a rua pela qual tínhamos entrado. Meu corpo ainda tremia de cima a baixo. Eu era incapaz de assimilar que há apenas algumas horas eu ainda estava com Christian, Liam e Lisange. Notei uma pesada sensação no peito, como se algo estivesse me apertando com muita força. A um lado da cama, em uma mesinha, vi uma pequena vela perto de um pacote de fósforos. Tentei
acender
uma
delas,
mas
minhas
mãos
tremiam
descontroladamente. Apertei os dentes para tentar conferir firmeza aos meus movimentos, mas se passaram o que me pareceram vários minutos de desespero antes de conseguir. Aquela luz tampouco fez maravilhas, apenas serviu para que eu visse um pouco o que me rodeava. Deixei a vela ali, em um pequeno recipiente sobre a mesinha, e me sentei na cama sobre um colchão bastante rígido. Abracei os joelhos e contemplei durante as longas horas seguintes o pequeno pavio se consumindo. O silêncio ficava cada vez mais penetrante. A luz projetava sombras bruxuleantes pelas paredes do quarto. Encolhi-me, abraçando ainda mais as pernas com os braços, e senti algo agudo no bolso da calça. Coloquei a mão e o
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tirei. A chama se refletiu sobre a polida superfície de uma pequena ampola transparente. Eu a girei entre os dedos, contemplando o conteúdo se deslocando de um lado para o outro, e outro, e outro, e outro… Não entendia por que não a tinha dado ao Christian. Supunha-se que teria sido o correto. O sangue de guardião que circulava dentro dele atrasava o efeito da falta de lua nos grandes predadores, mas tinha visto o que essa coisa provocava no corpo dele. Ele já tinha se torturado muito por mim. Pensei em destruí-la, então, mas em troca, fechei-a na palma da mão, apertei-a com força e a guardei na gaveta da mesinha. Ato contínuo, eu me encolhi na cama e fiquei contemplando as sombras com o olhar perdido, e jurando a mim mesma que esta seria a última vez que permitiria que Christian sofresse por minha causa.
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Contradição
O novo dia chegou sem que eu me desse conta. Tinha passado a noite em vigília, ou, melhor dizendo, em um estado de semi-inconsciência durante o qual a única coisa que me lembrava de que eu continuava neste mundo era a sequência de imagens que surgiam em minha mente, fazendo-me reviver tudo o que tinha acontecido. Não conseguia respirar nem me mexer, nem sequer piscar; só conseguia me aferrar com desespero a cada pequeno detalhe daquelas lembranças, na esperança de encontrar neles a maneira pela qual todos tinham conseguido escapar. Eu me obrigava a acreditar que estavam bem, que tinham conseguido ficar a salvo, mas sabia que não podia ser tão simples assim. Esqueci-me da última vez que tinha visto Helga, não me lembrava de nenhuma imagem de Liam depois que ele se embrenhou entre os escombros da casa e Lisange… Bom, ela tinha desaparecido, sem mais nem menos. Era injusto que eu ficasse ali, deitada, a salvo, em uma cômoda cama enquanto eles podiam ter morrido ou pior ter acabado nas mãos da Ordem de Alfeo. As imagens da cabana ensanguentada e de Caín, aberto e pendurado na parede do saguão me golpearam com força, e senti vontade de vomitar. Não tinha nenhuma garantia de que os De Cote não jazessem assim naquele preciso momento, e tudo por minha causa. De forma inconsciente, levei a mão ao peito. A ferida de Christian ainda
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estava ali, embora já não doesse. Percorri com a polpa do dedo a fenda, já que sentia que voltava a me faltar o ar. Minha mente tinha tentado bloquear o acontecido com ele, mas àquela altura, fracassou de forma estrepitosa. O medo, a solidão da rua, os olhos dele... Minha respiração se agitava cada vez mais até que, de repente, retumbaram por toda a casa as badaladas de alguma igreja próxima e voltei à realidade de forma brusca. Respirei fundo, pisquei e olhei ao meu redor. Estava sozinha, completamente sozinha. Tinha perdido todos eles. Desci da cama de um salto. Esse pensamento tinha me alarmado tanto que senti necessidade de sair correndo para procurá-los. Dirigi-me velozmente para a porta, mas parei ao sentir alguém do outro lado. Meu coração deu um salto, desesperado. Girei a maçaneta justamente quando a abriam, e... — Vejo que já acordou. O fôlego me faltou; era Gaelle. Estava com uma pilha de tecido esponjoso e uma bandeja com algo que parecia… Comida? — Tem notícias de Christian? — Perguntei impaciente, aproximando-me dela e passando por cima do detalhe nutritivo. — Ele já chegou? E os De Cote? — Receio que ainda não, meu bem. — A jovem mulher sorriu de leve — E creio que Christian não vai chegar até amanhã. — Amanhã? — Repeti com um nó na garganta. — Você passou uma noite ruim, precisa se recuperar. — Viu minha expressão abatida e acrescentou: — Mas não tenho dúvida alguma de que ele está bem. É um grande predador e muito forte. — E Liam e Lisange? Quando vão voltar? — Ainda é cedo para termos notícias, mas tenho certeza de que eles também estão perfeitamente bem. — Temos que ir buscá-los! Podem estar em perigo! Ela pegou meu braço e me obrigou a me sentar de novo na cama.
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— Você está fraca. Foi uma noite dura. Agora deve descansar. — Não posso descansar com eles lá fora! — Exclamei me levantando. — Podem estar mortos! — Lena, precisa se acalmar, ou vai fazer com que Valentine venha e se exalte de novo. — Agradeço-lhes muito por me ajudarem ontem, de verdade, mas preciso encontrá-los. — Eles confiam em nós a sua segurança. Tal e qual foi dito, puseram-se em perigo para que você pudesse chegar aqui. Você quer mesmo que tudo o que aconteceu seja em vão? — Detive em seco os pensamentos. — Eles sabem onde encontrá-la agora. Virão atrás de você e se não a encontrarem, sairão para procurá-la, expondo-se de novo ao perigo. Nisso ela tinha razão, não tinha como negar. — Como Gareth me encontrou ontem à noite? — Não foi tão difícil, querida. — Sorriu. — Eu lhe trouxe toalhas. — Ela continuou, mudando de assunto. — Imaginei que depois de tudo o que passou ontem, você gostaria de tomar um banho frio. — Obrigada. — Minha voz soou mais áspera do que teria desejado. — Também lhe trouxe o café da manhã. — Mas… — Só se você gostar. — Colocou as toalhas sobre uma cadeira junto à entrada e a bandeja sobre a mesa, em seguida foi em direção à porta. Naquele momento, uma tênue risada infantil penetrou no quarto. Um estranho calafrio percorreu meu corpo. Ela ficou um instante com o olhar perdido e se virou para mim com expressão preocupada. — Perdoe Valentine. — Sussurrou com ar maternal. — Às vezes ela fica... Complicada de se lidar. — Estou bem — Assegurei-lhe, embora sem olhá-la aos olhos.
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Pus-me de pé incômoda e me aproximei da janela. Não havia ninguém na rua, tudo estava tão deserto quanto na noite anterior. Senti que meu moral ia decaindo pouco a pouco. Mordi o lábio, preocupada e me apoiei contra o marco de madeira. — Ele virá logo, não se preocupe. — Fez uma pausa e acrescentou: — Nós cuidaremos bem dele. Virei-me para ela, mas não respondi. Gaelle sorriu e deu meia volta para sair do quarto, enquanto eu contemplava o vazio com pesar. Enquanto a porta se fechava, inclinei a cabeça para trás e fechei os olhos por alguns minutos. Respirei fundo, segurei o ar durante alguns segundos e o deixei sair. A luz que já se filtrava pela vidraça me permitiu distinguir com mais clareza o quarto no qual estava. A luz do sol não era muita, apesar de já ter amanhecido por completo, porque os edifícios em frente faziam sombra. Imagino que essa fosse uma forma de manter a casa fria. À primeira vista, podia-se dizer que era um quarto como outro qualquer, sim, com mobiliário mais antigo e sem tecnologia de última geração, mas mais ou menos normal. Não havia muitos elementos de decoração, mas certamente não parecia um quarto de hóspedes, a não ser que fosse mais pessoal, seguindo um gosto específico, embora não houvesse suficientes detalhes para defini-lo. Aproximei-me de um grande armário de carvalho e o abri, confirmando minhas suspeitas. Ainda havia roupas ali, impecavelmente arrumadas, em uma grande variedade de tons azuis, cinzas, tom de terra… Passei um dedo pelo tecido de uma simples camisa branca, perdendo-me na suavidade da malha, mas esse movimento fez com que o cheiro de Christian, impregnado em meu corpo, penetrasse através dos meus sentidos. Bastou aquilo para me lembrar do quanto eu estava só. Fechei o armário com determinação e passeei de um lado para o outro, incômoda e impaciente, até que uma ideia cruzou minha mente.
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Não. Eu não podia ficar ali dentro esperando, tinha que fazer algo! Esfreguei o rosto com as mãos e com renovada energia, dirigi-me de novo para a janela, tirei meio corpo para fora e dei uma olhada; continuava tudo deserto. Em seguida olhei para baixo, calculando a altura e hesitando por uma fração de segundo. Entretanto, sabia o que NÃO queria fazer: ficar ali, então eu saltei. A aterrissagem foi bastante decente, levando-se em conta que, naquele momento, Christian não estava ali para me acolher com seus fortes braços. Levantei-me e avancei pela estreita ruela a passo acelerado. Sob a luz do sol, aquele lugar era tão velho e solitário como tinha imaginado na noite anterior. Eu não estava acostumada àquele tipo de pavimento, com grossas e enormes pedras que provocavam certa instabilidade. Os edifícios de ambos os lados, eram altos, embora não muito, e todos correspondiam ao mesmo padrão; portas ao rés do chão, janelas largas com minúsculos balcões e fachadas terrosas. Parecia um daqueles antigos e diminutos povoados quase abandonados. Daqueles que deviam ser habitados por pessoas com idade suficiente para estar aposentada. Um bom lugar para se esconder. Continuei andando apressada, inspecionando cada esquina. Christian podia ter acabado em qualquer uma daquelas ruas de pedra. Eu estava impaciente, precisava comprovar que ele estava bem e aquela necessidade aumentava a cada segundo que passava. Não sabia se buscá-lo era o mais correto, ou se, por fim, tinha ficado louca. Eu não tinha esquecido do fato de que ele tinha tentado me matar, mas eu o conhecia o suficiente para saber que o fato devia-se ao efeito provocado pelo sangue de guardião no corpo dele. E de repente, fui parar em uma pracinha. Atravessei-a rapidamente, contornando uma fonte em ruínas e uns quantos bancos maltratados e oxidados. A um lado, velhos balanços no mesmo estado de decomposição se balançavam com suavidade, chiando de forma fraca sobre os suportes.
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Continuei avançando até que me vi no alto de uma enorme escadaria, justamente no final da praça. De ambos os lados, descendo, também era campo. Era a zona sem edificações da colina sobre a qual fora construído aquele povoado fantasma, que descia até uma enorme planície. Ao contemplar aquilo, meu coração falhou. Não tinha nada, absolutamente nada mais à minha frente por vários quilômetros, apenas um amplo terreno infestado de arbustos baixos, pedras e matagais e cruzado por uma pequena estrada que conduzia a um povoado bem maior e mais moderno, embora fosse apenas pelas paredes de tijolos vermelhos que vislumbrava com muita dificuldade daquela posição. Estávamos isolados do mundo. Não parecia ter nada mais que campo para qualquer parte que olhasse. Sabia que ainda tinha a outra parte do povoado, mas não pude evitar me sentir decepcionada. Fiquei por um momento ali, em pé, contemplando aquela vasta extensão, enquanto uma ligeira brisa emaranhava meu cabelo. Sentia um enorme nó na garganta e uma grande impotência. Queria gritar, ou chorar, ou... Alguma coisa, qualquer coisa que não fosse aquela passividade à qual me obrigavam a me submeter. Dei uma última olhada e me dispus a continuar procurando em outro lugar, mas então, vi uma pequena mancha escura entre os baixos arbustos da planície. Foquei a atenção nela com certo interesse. Não conseguia distinguir o que era, mas devia ser algum animal, provavelmente algum que fora atropelado na estrada, embora não imaginasse um carro trafegando por aqueles lados. Estava disposta a deixar para lá, mas algo naquela sombra me impedia de afastar o olhar. Vacilei por um instante, mas por fim, a curiosidade foi maior e desci para o campo. As ervas e os cardos ficavam enganchados em meu jeans. Àquela altura não era fácil ver aquele borrão escuro, então, decidi ir até a estrada e procurar por ali. Nisso, uma ligeira brisa bateu no meu rosto, transportando sementes de
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dente de leão e um cheiro que despertou todos os meus sentidos. Meu corpo parou, tenso e alerta durante um segundo que pareceu eterno e um instante depois, pus-me a correr. — Christian! — Chamei. — Christian! Com renovada força, corri através da planície, mas assim como tinha surgido, a brisa se esfumou e com ela o rastro. Freei em seco, olhei com ansiedade ao meu redor procurando com desespero aonde ir. O capim era muito mais alto do que parecia e ficou difícil distinguir alguma coisa. Adiantei-me e analisei o silêncio com cuidado, até que captei um som. Corri de novo. Mas não precisei avançar muito para encontrar o lugar onde eu o vira. O capim estava dobrado, esmagado, como se alguém tivesse se cansado de repente e deitado sobre ele, mas não havia rastro dele. — Lena… — Murmurou uma voz sufocada atrás de mim, ao mesmo tempo em que escutava uma amortecida batida de coração. Eu me virei, sobressaltada e o vi. Quis me lançar sobre ele para abraçá-lo, mas naquele exato momento ele ergueu os olhos para mim e fiquei paralisada. O aspecto dele estava horrível: a roupa destroçada sobre uma grande variedade de ferimentos, o cabelo desgrenhado e o corte do pescoço causado pelas garras de Silvana pareciam ter enegrecido. Tentava manter-se em pé, enquanto apertava com força a mão contra o coração, fraco. Entretanto, nada daquilo tinha me impedido de abraçá-lo, a não ser os olhos. Enquanto ele fixava os olhos nos meus, senti que todas as minhas vísceras se revolviam e a lembrança da noite anterior aflorou de tal maneira em mim que meu corpo começou a tremer. Os olhos dele estavam formosos, mais do que jamais vi. O simples fato de contemplá-los me fez desejar com veemência voltar para aquelas impressionantes íris ambarinas. — O que está fazendo aqui?
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— Eu o vi da colina — Respondi com cautela. Aquele desejo que crescia não era a única coisa que tinha despertado em meu corpo. — Não podia ficar naquela casa, esperando. — Sabe de Gareth? — Perguntou com dificuldade. Ele também mantinha distância de mim. Hesitei um instante antes de responder. — Não… — Ninguém sabe que você está aqui? — Deu um passo em minha direção, cravando ainda mais os olhos em mim, mas eu afastei o olhar e retrocedi. Ele soltou uma risada forçada, acompanhada de uma careta de dor. — Perfeito, Lena. Joguei você em segredo para bisbilhotar um lugar que nem sequer sabemos se é seguro… Olhei-o de novo, meu corpo se esticou e dei outro passo para trás. Ele cambaleou um pouco, mas se manteve no mesmo lugar. Fechou os olhos e inalou o ar com força para poder combater a dor. — Não escapei... — Defendi-me. — Eu precisava saber se você estava bem. Sinto muito se foi uma irresponsabilidade, mas... — Que não lhe reste a menor dúvida — Interrompeu muito sério. — Foi. — E o que você queria que eu fizesse? Sentar e esperar? Me deixou sozinha e estava mal! Eu... — Detive-me para tentar serenar um pouco. — Eu... Não posso... Meus olhos tremiam, ardendo, enquanto tentava me conter, mas de repente, ele esticou um braço e me aproximou do corpo dele para me abraçar e com tanta força que poderia ter quebrado meus ossos se quisesse. — Não posso permitir que lhe aconteça algo ruim. — Sussurrou ao meu ouvido. — Não quero que volte a se arriscar por mim. — Você está mal. Vamos, vou levá-lo para casa.
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O caminho de volta foi lento; muito, muito lento. Se quando eu o encontrei ele estava mal, não havia nem como comparar com o aspecto que tinha quando por fim chegamos diante da porta da casa. Mas, encontrar Christian foi um alívio indescritível para mim. Acostumada à postura dos De Cote com relação a Christian, surpreendeu-me que Gareth e Gaelle não pusessem nenhum inconveniente em acolhê-lo. Tentaram curar as feridas dele e o deixaram descansar em um quarto diferente sem mais preocupações. Assim que pude escapulir do interrogatório de Gaelle a respeito da minha fuga, fui para seu quarto. Quando entrei, ele estava recostado na cama, com as mãos entrelaçadas sobre o ventre e os olhos fechados. Avancei sem fazer barulho e deixei-me cair ao lado dele. Sentia-me muitíssimo mais forte sabendo que ele estava ali, que tinha se salvado e que estávamos juntos, mas não poderia descansar até saber algo mais sobre os De Cote. Retirei uma mecha de cabelo que caía sobre o rosto dele e o observei com atenção. Apesar de não conseguir dormir, mantinha os olhos fechados. Sentia seus músculos tensos, contraídos, e o rastro que a noite tinha deixado por toda a pele. Sob os olhos, a pele estava cor violácea: inícios de incipientes olheiras. — Não devia estar aqui. — Ele disse sem me olhar. Não pude evitar dar um pulo. — Queria saber como você estava. — Aleguei, aconchegando-me um pouco a ele, de modo que ficamos a centímetros de distância. — Estou bem. — Mentiu, inclinando a cabeça na outra direção. Por que estava sendo tão cortante? Tentei me aproximar dele, mas ele ergueu o corpo e saiu da cama com o olhar fixo no lado de fora. — Você devia descansar, não está com bom aspecto. — Você tampouco. — Respondi. Virou-se para mim e vi os enormes cortes na garganta dele. Fiquei horrorizada. Assim que se deu conta do que eu olhava,
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apressou-se a abotoar por completo a camisa. — Pensei que nossas feridas cicatrizavam rápido. — Comentei. — Silvana tinha sangue entre as unhas, cicatrizará quando meu coração combatê-lo. — Observou-me franzindo o cenho durante um instante. — Seus cortes curaram? — Não. — Eu respondi me sentando na cama. A ferida que Christian havia provocado em meu peito quase tinha desaparecido, mas meu ombro continuava intacto desde nossa fuga. — Não tiver oportunidade. — Não pode deixar esse sangue aí! — De repente parecia muito zangado. — Não disse que vou deixá-lo aí por toda a eternidade! — Defendi-me. — Mas tampouco há pressa, não há perigo de que acabe comigo, meu coração não pulsa. — Mas poderia. Você não tem a mais remota ideia de quantos caçadores morreram porque tinham sangue de guardião no corpo quando… — Quando os torturaram. — Terminei. — Não é isso? — Mostre-me a ferida. — Pediu com voz grave. — Prefiro mostrá-la ao Gareth. — Levantei-me e retrocedi um passo. Estava magoada pelo modo como ele estava me tratando. Ele enrijeceu. Notei no olhar dele algo estranho, meio parecido à dor, mas não entendi por que. Virou-se de novo para a janela e me deu as costas. — Então, faça isso. Contemplei-o, atônita. Não sendo capaz de compreender por que ele estava se comportando daquele jeito. Quis dizer alguma coisa, mas as palavras não saíram da minha boca, ao invés, notei um enorme nó na garganta. Assim sendo, saí do quarto sem dizer nada, absolutamente nada mais, doída e com um grande vazio no coração.
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Conforme havia dito, desci para procurar Gareth e lhe pedir que me curasse. Ele sugou o sangue de Silvana, limpou a ferida e nĂŁo fez perguntas. Depois, subi de novo direto para o meu quarto, sem me deter frente Ă porta de Christian.
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Sentimento de culpa
Por acaso aquilo poderia ser real? Já não era suficiente tudo o que tinha acontecido? Era incapaz de compreender o que tinha feito de errado para que o destino zombasse de mim daquela maneira. A quem eu tinha ofendido tanto para que nada pudesse sair bem? Eu estava cansada. Cansada e farta, porque já não conseguia lutar com nada mais. Apenas queria chorar, ou talvez rir, pelo surrealista que parecia aquilo tudo. Sim, sem dúvida tinha que ter feito alguma coisa muito ruim para alguém em vida, e o carma estava me fazendo pagar muito caro por tudo aquilo, porque se não houvesse uma razão lógica que explicasse tudo o que me rodeava, então eu não entendia absolutamente nada. O que eu tinha feito de errado agora? Sair para procurá-lo? Por me preocupar com ele? Será que ele não se dava conta de tudo o que tinha acontecido? Cobri o rosto com as mãos e apertei com força as palmas contra os olhos. — Tenho um talento natural para lhe causar dano. — Ele disse na entrada. Tirei as mãos do rosto e o olhei; ele permanecia rígido junto à porta. — Perdoe-me. — “Ele, desculpando-se?” Pensei em me levantar, mas fiquei ali. Ao invés de me pôr de pé, rodeei os joelhos com os braços e concentrei a atenção na rua. — Como você está? — Perdi os De Cote. — Respondi, sem me virar para ele. — E você não sabe o quanto isso me dói; mas não posso perder você. — Cobri a boca com a mão, minha voz vacilava. — Perder você, não. Não sei o que se passa com você, não sei se está arrependido por ter deixado a “família” lá ou se… — Acredita mesmo que passei a noite lutando contra mim mesmo para não arrancar seu coração, apenas por pura e simples diversão? — Interrompeu. — É isso o que você acredita? — A voz dele estava dura. — Nem sei o que pensar. — Por fim, inclinei o olhar de novo para ele, mas não pude ver-lhe o rosto porque ele estava oculto na escuridão do quarto. — Tampouco está muito comunicativo, então… — Respirei fundo. — Sei que se zangou porque saí desta casa, mas isso não explica porque está assim. — Sua saída foi soberanamente irracional. — Aproximou-se de mim até que a luz da rua iluminou parte do rosto dele, mas continuou em pé. —
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Imprópria de alguém que acaba de ver o que há lá fora. — Voltou a dizer com voz dura. — Mas posso quase entender por que você fez isso. — Então, qual é o problema? — Olhei-o sem entender. Ele ficou em silêncio por um instante e se ajoelhou ao meu lado, de modo que ficamos cara a cara. A dor no rosto dele me comoveu. Ergueu uma mão para mim, devagar, como se pensasse que eu ainda tinha medo dele, e a pousou sobre meu peito, bem em cima do coração. — Tentei matar você. — Sussurrou, sem afastar os olhos do lugar onde, na noite anterior, esteve a ponto de me arrancar o coração. — Aquilo foi um acidente. — Aleguei confusa. Estava bastante convencida de que ambos sabíamos que aquilo não tinha sido intencional. — Não foi. — Revelou com tom mortiço. — Eu queria causar-lhe dano, Lena. Desejava com todas minhas forças, com cada parte de meu corpo, acabar com você. Nunca tinha sentido uma necessidade tão forte. Era normal que ele não titubeasse nem uma vez para dizer isso? Que nem sequer sentisse a necessidade de afastar o olhar de mim? — Não era você. — Minha voz tremeu. — Não havia lua, você se transformou em algo diferente e eu era a única que estava ali. Agora sim ele afastou o olhar, parecia zangado de novo. — Pare de tentar me consolar. Jamais poderá entender! — Então, explique-me! Ele esticou a mandíbula durante alguns segundos antes de continuar. Intuía que ele não queria falar sobre o assunto, mas eu precisava saber; se não tinha sido acidente, então tinha que averiguar o que tinha acontecido. — Nessas noites continuamos sendo nós mesmos e não existe nenhuma força sobrenatural que desperte outros instintos. A ausência de lua apenas os libera, deixa que se apoderem de nós, mas tudo o que sentimos e desejamos é real. — Fez uma breve pausa. — Eu tentei acabar com você e não foi a primeira vez. — Você me salvou de Hernan. — Recordei-lhe. — Mas desta vez não. O que teria sido de você se Gareth não tivesse aparecido? — Você teria me soltado. — Não pude esconder a hesitação na voz. — Igual àquela noite. — Não. Eu a teria matado e teria desfrutado ao matá-la — Soltou. Fiquei imóvel durante um instante. Aquelas não eram precisamente palavras de amor. Ele, pelo contrário, fez uma nova pausa e continuou. — O que senti ontem à noite foi mil vezes mais forte; a ânsia que sinto de acabar com você está crescendo. Sei que viu isso nos meus olhos.
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Ele se calou para me observar. Uma sensação estranha me percorreu todo o corpo ao me lembrar das fascinantes, mesmo que aterradoras, volutas amareladas nos olhos dele. Por um instante senti que me transportava de novo àquele momento, àquela maravilhosa visão. Nunca antes, em todo o tempo que podia recordar, tinha contemplado algo similar, algo tão… Belo e enganador. Tive que piscar repetidas vezes para me desfazer desse pensamento. — Eu vi. — Reconheci afastando o olhar, em parte envergonhada pela forma como tinha me sentido ao vê-los e ao recordar agora, mas sobre tudo, porque sentia uma poderosa necessidade de voltar a contemplá-los. — Fui testemunha do pânico refletido em seu rosto… — Ele continuou. — E não parei, nem sequer isso bastou para me frear. — Não tenho medo de você, Christian. — Não quis que te curasse. — Recordou-me com voz gelada. — Foi pelo seu comportamento, não porque tivesse medo de você. — Defendi-me. Finalmente tinha certeza de algo e isso deu força às minhas palavras. — Christian... — Respirei fundo e peguei a mão dele com cuidado. — Você se injetou sangue de guardião por mim, para me salvar; seu coração passou muitas horas combatendo-o. Se essa vontade de acabar comigo fosse tão forte, nunca teria se torturado dessa maneira por mim. Ele negou com a cabeça, fazendo com que lhe caíssem várias mechas de cabelo sobre os olhos. — Estou perdendo o controle. Não está segura ao meu lado. — Não, nem pense em fazer isso! — Falei, pondo-me de repente em pé. — Sei o que vai dizer, sei o que quer e não, nem me passa pela cabeça aceitar. Não vai se afastar de mim. — Senti que me faltava o ar. — Não vai fazer isso, você não… — Meu lábio começou a tremer. Ele se levantou e me puxou, atraindo-me para ele e me abraçando. — Não sei o que vou fazer com você, mas não penso em deixá-la, Lena — Sussurrou ao meu ouvido. — Você é das poucas coisas que tenho claro em mim. Fechei as pálpebras com força e me apertei contra o ombro dele. Pouco a pouco comecei a sentir que todo o medo daquelas últimas vinte e quatro horas ia fluindo para fora, deixando uma sensação de vazio e uma estranha tranquilidade dentro de mim. Ele balançou-me entre os braços até que minha respiração voltou ao normal e nesse momento, por fim, senti-me bem ou, pelo menos, tão tranquila quanto podia naquela situação. — O que sabe sobre os De Cote? — Perguntei com voz afogada, erguendo a cabeça para olhá-lo. — O que quer dizer? — Pôde ver o que ocorreu com eles? O que aconteceu depois que a casa foi derrubada? Vi você entre as chamas…
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— Saltei antes que o fogo pudesse me alcançar. O guardião também, e logo desapareceu. — Franziu o cenho, pensativo. — Liam foi ajudar você e ficou ferido. — Lembrei-lhe. — Ele me viu saltar, então não entrou. A ferida não vai acabar com ele; vai doer, mas não fará mal um pouco de sofrimento àquele caçador. — Não me passou despercebido que o rosto dele endureceu. — Isso é um tanto ingrato. — O corpo dele ficou mais tenso. — Não acredito em atos altruístas. — Disse com um toque de sarcasmo. Afastei-me um pouco dele. — Perdi algo? Sei que vocês não se davam bem, mas parece que agora... É como se o odiasse. Poderia mostrar um pouco de compaixão. — A compaixão não é uma das minhas maiores virtudes. — Mas poderia tentar. — Não nesta noite. Nesta e em nenhuma outra. — Respirei fundo e baixei o olhar. Ele se deu conta do meu repentino abatimento. — Lamento decepcionála. Tudo isto é por você, embora eu continue sendo o vilão da história. — Não é. Você apenas se empenha para que pareça. Ele bufou e me estreitou ainda mais entre os braços. — Velhos costumes, suponho... — Pelo menos viu Lisange? — Perguntei, tentando fazer com que o assunto se desviasse um pouco de Liam. — Lisange? — Hesitou por um segundo. — Não. Quando consegui escapar, segui lhe o rastro, mas quando encontrei você, só você estava ali e Silvana a arrastava pelo chão. Me pareceu ser prioridade salvar você. — Ela desapareceu um pouco antes de você chegar. — Afastei o olhar. — Estou muito preocupada. — Ela sabe se defender. Nenhum De Cote é ancião por mera casualidade. — E por que não a chamaram? — Porque é perigoso. Deve estar preparada para não receber notícias a qualquer hora, pelo menos, não até que tudo volte ao normal. “Normalidade… Que grande palavra e quão pouco se podia relacionar, contudo, ao que eu conhecia!” — Pensei que chegariam logo. — Reconheci desanimada. Tinha a esperança de voltar a vê-los logo e me assegurar de que todos estavam bem, e poder abraçá-los. — Imagino que tampouco sabe de Helga. — Eu não abrigaria esperanças em relação a ela. — Fiquei em silêncio durante uns dois segundos. — Ela só queria nos ajudar… — Murmurei. — Eu gostaria de falar com ela de novo. — Ainda não está preparada para me contar o que lhe disse?
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— Não. — Respondi. Ele baixou o olhar para mim. — Você me preocupa. — Christian. — Isso tinha me levado a outra pergunta. — Você conhece Valentine? — Você a viu? — Perguntou, contrariado por eu ter mudado de assunto. — Ela vive aqui. Assim que me viu começou a gritar como se tivesse ficado louca. — O que ela lhe disse? — O corpo dele se esticou. — Chamou-me de monstro. E nem sequer me conhece. Queria que eu fosse embora. — O coração de Christian acelerou. — Tem alguma coisa acontecendo? De onde você a conhece? — Não se preocupe, amanhã vou falar com ela. — Por que não agora? — Perguntou uma vozinha atrás de nós. Ambos viramos imediatamente e vimos a menina na porta, com a mão apoiada contra um dos batentes. Estiquei-me imediatamente, temendo que ela voltasse a gritar comigo, mas não parecia ter intenção de fazê-lo. — Fora! — Ordenou, tranquila, cravando os esbranquiçados olhos nos meus, como se pudesse vê-los. Por um momento fiquei sem saber o que fazer. Olhei para Christian, mas ele estava muito concentrado, contemplando-a. — Eu a mandei sair! — Repetiu. — Valentine... — Ele disse devagar— Lena vai ficar. — Eu a odeio! — Avançou com calma para nós. Era alarmante. — Você odeia todo mundo. — Você me ensinou isso. — Não sei por que me impactava tanto que alguém tão pequeno falasse daquele jeito. — Eu também senti sua falta, pequena. Nesse momento, a menina sorriu e para minha surpresa, ele também. Então, pôs-se a correr para os braços dele. Christian se moveu para que ela pudesse encontrá-lo e eu me afastei ao mesmo tempo em que ela se aferrava ao corpo dele. Minha cara de perplexidade rompeu naquele momento algum recorde mundial. — Você se esqueceu de mim! — Reprovou. Ele a afastou um pouco pelos ombros e se ajoelhou para ficar da mesma altura que ela. — O passar dos anos começou a nublar seu juízo, Valentine. — Franziu o cenho e torceu um sorriso. — Cheguei a pensar que isso nunca aconteceria. — Tenho razão. Você me abandonou por essa… Por essa… Humana — Cuspiu a palavra, como se lhe desse asco. — Lena é caçadora, Valentine. — Isso é ainda pior... Deixei escapar um pouco bufo de indignação. Era muito injusto que se referisse a mim com aquele desprezo todo, sendo ela mesma igual a mim. A
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menina não se deu conta, ou não quis, mas foi o suficiente para que Christian desviasse o olhar para mim. — Consta-me que Gareth e Gaelle lhe tratam muito bem. — Ele disse. — E pelo que sei, fez grandes progressos. — Não foram suficientes para evitar que você me abandonasse. Comecei a me sentir uma invasora naquela situação, como se estivesse presenciando algo muito privado entre os dois. Estava dando meia volta para deixá-los sozinhos, mas a voz de Christian me deteve: — Não se vá. — Pediu justo antes de me olhar e depois se virou para a menina. — Valentine, apresento-lhe Lena De Cote. — Ela se virou para mim e me dedicou um sorriso; um perfeito, ameaçador e falso sorriso, carregado de um matiz estranho. Por um instante senti que estava me advertindo de algo. Christian fez um gesto para que eu me aproximasse. — Ajoelhe-se. — Disse-me. Inspirei uma grande quantidade de ar e me ajoelhei. Ele pegou com cuidado a diminuta mão da menina e a pousou sobre o meu rosto. — Quero que a veja, Valentine. — Sussurrou. A contra gosto, ela foi medindo minhas feições. Tentei não me fixar nas membranas esbranquiçadas que ocultavam os olhos dela, mas era impossível. De perto pareciam ainda mais inquietantes e perigosos. Tive a sensação de que os olhos dela estavam ainda mais ameaçadores do que antes. — Vê? — Sussurrou de novo ao ouvido dela, com voz suave. — Depois de você, é a mais bela que já conheci. Senti como se ruborizasse, então tive que afastar o olhar. Ela deixou cair as mãos, afastando um passo de mim. — Já a tinha visto. — Disse com desdém. — Não é verdade. — Ele riu. — É verdade. Crianças não mentem. — Olhei Christian de forma interrogativa. — O futuro muda. — Ele assegurou, tenso de repente. — Sei o que e quem ela é e não a quero perto de você, nem de mim. Você vai me prometer que vai levá-la embora daqui. — Lena ficará uma temporada nesta casa e você vai cuidar dela como se cuidasse de mim. Ela soltou uma pequena gargalhada infantil. — Não! — Ela disse sem rodeios. — Vai fazer sim, por mim. — Ele ordenou cortante. — Estou unido a Lena, Valentine, muito mais do que um dia possa compreender. E não há nada que possa fazer a respeito. Isso foi uma revelação para mim, mas minha expressão de surpresa foi superado mil vezes por Valentine. Ela retrocedeu um passo, com cara de terror e me apontou de forma acusatória.
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— A culpa é dela, fez de você um fraco! Se não tivesse me deixado aqui sozinha, teria continuado sendo o grande predador que foi. — As pessoas mudam. — Soltei, e ambos me olharam. — Cale-se! — Ela cuspiu. — Você não sabe de nada! — Valentine, volte para o seu quarto. — Gareth disse de repente, aparecendo no quarto. Ela contorceu a cara com expressão indignada, mas não disse mais nada. Inclinou a cabeça para mim e se dirigiu para a porta. — Você está equivocado. — Replicou, virando-se para nós antes de sair. — Ela não chega nem aos meus pés. Nem sequer da ruiva. — Discutiremos isso em outra ocasião. — Não há nada a discutir. Virou-se de novo e se perdeu na escuridão do corredor. Todos nós ficamos em silêncio até que a ouvimos longe dali. — Christian... — Gareth interveio. — Se você está melhor, deve partir. Meus olhos foram de um para o outro. — Partir? — Perguntei confusa. — Para onde? — Não posso ficar aqui, sou um grande predador. — Ele me explicou. Olhei-o sem entender; não tinham posto nenhum inconveniente a que ficasse ali durante o dia todo. — Então, leve-me com você. — Aqui você está a salvo. — Explicou colocando as mãos sobre meus ombros. — Aonde vai? — Gareth perguntou. — Para os subúrbios. — Respondeu sem afastar o olhar de mim. — Junto ao escarpado. Vou me instalar lá. — Bem. — Ele concordou. — Vai ser melhor. — Mas está ferido! — Repliquei. — Não pode ir! — Os grandes predadores saram rápido. — Respondeu tentando sorrir. — Não se preocupe. — Quero ir com você! — Insisti. Ele virou os olhos para Gareth por uma fração de segundo e depois pegou minhas mãos entre as suas. — Lena, isto é pela sua própria segurança. Levá-la comigo seria um risco desnecessário. — Não me importa. — Guiou-me até a cama e ambos nos sentamos. — Não quero que aconteça nada de ruim com você. — Ninguém mata grandes predadores. — Recordou, curvando os lábios em um sorriso. — Não foi isso o que vi em La Ciudad.
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— Me viu sair triunfal de um três contra um. — Apontou. — Isso tem que lhe inspirar segurança. — Não quero ficar aqui. — Abaixei a cabeça. — Quero voltar por causa de Liam e Lisange. Pode ser que estejam precisando de nós. — Não vou levá-la de novo àquele lugar, Lena. Se você voltar, tudo o que fizemos não terá servido de nada. Gareth e Gaelle cuidarão de você como uma filha. São boas pessoas, até com quem não deviam ser. — Como pode ter certeza? Já viu Valentine, ela faria qualquer coisa para se desfazer de mim e nem sequer sei o que foi que lhe fiz. De onde você a conhece? — Lena. — Puxou minhas mãos. — Eles estão passando por muita coisa. Não é o momento de histórias de terror. Não hoje. Precisa descansar. — Eu ia dizer algo, mas ele selou meus lábios com um dedo. — Voltarei assim que o sol sair, nem sequer notará minha ausência. — Já estou notando. — Respondi resignada. Ele beijou minha testa, de forma lenta e suave. — Vou sentir sua falta. — Confio nisso. — Olhou-me de novo e torceu um enorme sorriso.
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Questão de segurança No dia seguinte, eu mal consegui me levantar. Sentia o corpo todo pesado, como se tivesse passado a noite inteira transportando algo soberanamente grande de um lugar para outro, ou como se tivesse passado o dia todo correndo uma maratona. Entreabri um pouco os olhos e dirigi o olhar para a janela e pela quantidade de luz, o dia já devia estar bem avançado. Minha vista se cravou então na pequena bandeja de comida que descansava na mesinha de noite e na poltrona que sustentava uma pequena pilha de roupa perfeitamente dobrada. Levantei-me e me aproximei dela para examiná-la. Alegrou-me comprovar que era roupa atual, jeans e camisetas; ao contrário do que Gaelle estava acostumada a vestir. Nesse momento, captei o timbre de voz de Christian vindo do andar inferior, então me vesti depressa e desci pela irregular escada até chegar ao salão. Ali estava ele junto a Valentine, sentados em um sofá, muito concentrados em um papel que tinham nas mãos. Hesitei se devia entrar, mas nem sequer se deram conta da minha presença. — Muito profissional, quem irá acreditar que você fez isso? — Ele comentou. — Odeio fingir, odeio este lugar. Por que não posso ficar aqui com você? — Gaelle quer que você seja uma menina normal. — Respondeu sem olhá-la. — Mas eu não sou. Aborreço-me, quero ser como você.
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— Eu aposto que há algo lá que você gosta. — Não reclamaram. — Soltou como se não o ouvisse. — Mas minha professora me repugna. Você me trata como se necessitasse de ajuda, inspiro-lhe pena! — Prometeu não lhe causar dano nenhum, deve manter a palavra. — Eu não toquei nela… Nela. — O que você fez? — Parecia interessado, mais do que preocupado. — Matei um pássaro e o coloquei na comida dela. — Abriu muito os olhos, feliz. — E ela o comeu! Christian soltou uma gargalhada alegre. — Verdade? — Agarrou-a pelos braços e a abraçou, sem conseguir parar de rir. — Minha pequena Tine… Você é brilhante! — Felicitou. Essa visão de Christian no papel de paizão me desconcertava. Era a versão macabra de uma família feliz, cujo tema do dia é: “como uma menina de sete anos torturou a professora do colégio!” Arrepiante, mas devia reconhecer que vê-lo tão contente com ela, fez com que algo se encolhesse dentro de mim. — Entretanto, sei que pode fazer melhor do que isso. — Vou surpreendê-lo na próxima vez. — Muito bem. Agora... — Disse pegando de novo o desenho. — Faça isso de novo. — Quer que o faça mal? — Assim sua professora néscia se dará por satisfeita. Se ela estiver contente, Gaelle também ficará e sei que quer que assim seja. — Ela fez uma careta, enrugando o nariz. — Eu preciso. Você gosta muito de me lembrar disso. — É minha pequena tortura pessoal. — Amanhã sairemos de novo para caçar? — Perguntou emocionada.
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— É possível. — Ele sorriu e se virou para mim. “Por que Christian Dubois mostrava aquele sorriso feliz e olhos inocentes?”. — Bom dia! Valentine também se virou, e toda emoção se transformou em aborrecimento. — Não sabe que não se interrompe os mais velhos enquanto estão conversando? — Ela inquiriu com sarcasmo, descendo do colo dele com o desenho na mão. — Valentine… — Christian repreendeu em tom carinhoso. Ela bufou, levantou-se totalmente majestosa e partiu para o outro extremo da sala. Christian me estendeu os braços para que eu fosse até ele e desorientada, fui. — Você está bem? — Perguntei. — Parece… Contente. Não saberia definir direito. — Ele entreabriu os olhos, analisando-me enquanto rodeava minha cintura com os braços. — Você e eu, em um povoado que nem sequer aparece nos mapas, longe dos guardiões, da Ordem, dos De Cote… — Os De Cote? — Perguntei, esticando-me. — Relaxe! — Sussurrou com um sorriso, beijando meu pescoço. — Sei que você não vai gostar, mas não consigo evitar me alegrar de que não possam nos ver agora. — Se eu pedir de novo que me leve até lá, acabaria com esse arrebatamento de bom humor, não é? — Procure não fazê-lo. — Eu suspirei. — Vamos, vai lhe fazer bem um pouco de ar fresco. Saímos, mas não caminhamos muito. Ficamos no pequeno parque que havia no final da rua e do povoado. A amplitude panorâmica de todo o campo sob nossos pés estava emoldurada naquele momento por horríveis e pesadas nuvens
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negras. Sentei-me em um velho balanço, contemplando o horizonte e o outro povoado que se erguia do outro lado do prado. — Era quase verão em La Ciudad, para onde você me trouxe? — Perguntei angustiada. A ideia de estar tão longe da minha casa e dos De Cote me fazia sentir extremamente pequena e vulnerável. — Do outro lado do mundo. Olhei-o, sem compreender. — Como é possível que você tenha aguentado tantas horas de voo? — Por causa do sangue das unhas de Silvana e uma única ampola que consegui guardar na casa. Voltei a centrar minha atenção no horizonte. Milhares de quilômetros nos separavam dos De Cote e de tudo o que tinha conhecido. — Christian… Não quero ficar aqui. Não suporto isso. Não consigo deixar de pensar em Liam e Lisange, no fato de que podem precisar de ajuda; e enquanto isso eu estou nesta casa. E nem sequer posso ficar com você! — É difícil para ambos, mas minha prioridade neste momento é proteger você, Lena, inclusive de mim mesmo. Não quero lembrá-la do que aconteceu quando chegamos aqui. Uma convivência continuada seria muito perigosa. — Não me importa! — Aleguei depressa, virando-me para ele. — Por sorte, a mim sim. — Por acaso acredita que estou mais segura nessa casa? Não os viu? — São boas pessoas. Excêntricos, talvez, pelo fato de fazerem três refeições diárias, mas o trabalho deles também é louvável. Para eles a adaptação é extremamente importante, tenha isso em conta enquanto estiver aqui. — Se queriam adaptar-se utilizariam lâmpadas e não vela do Período Paleolítico...
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— Não havia velas no Período Paleolítico. — Riu. — Não lhe disse que eles eram perfeitos. Jamais o serão. São caçadores, portanto, custa-lhes acostumar-se às mudanças, mas pelo menos eles tentam. Não encontrará nada elétrico, exceto um telefone que aprenderam a usar faz algum tempo, e o carro, a grande provocação de Gareth. — Aquela menina me odeia. Não sei de onde ela me conhece, mas me menospreza apenas porque é um pouco mais velha que eu, e em contrapartida, adora você. Ele inspirou o ar de forma pesada. — Não é por isso. Valentine é uma grande predadora, Lena. — Revelou com voz sombria. — Uma grande predadora? — Pus os pés na areia e me levantei do balanço. — E o que faz lá? Não o deixaram ficar. — É diferente. Ela é vulnerável. É apenas uma criança. — Tem certeza que lhe parece seguro compartilhar o mesmo teto com uma grande predadora que me odeia? — Não deve preocupar-se por ela. É inofensiva. Faz muitíssimos anos que não leva uma vida de grande predadora. Por isso está nesta casa. — Como sabe? — Com tantos séculos de existência, não é difícil encontrar-se com todos os grandes predadores. Em especial com os que são do mesmo tipo dela. Eu a conheci na forma mais decadente desta existência, uma depravação de toda forma de vida. Fui eu quem a trouxe para cá. Os Johnson têm certa fama de querer ajudar grandes predadores a reformular o caminho para a forma de vida do caçador. — Riu. — Com ela, inclusive, conseguiram que o coração dela não bata. Eram uma família e Valentine precisava de uma desesperadamente. Deram-lhe o que ela precisava e a ajudaram a controlar as visões.
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— Visões? Pensei que ela fosse cega. — E é, mas tem a capacidade de ver como vai morrer qualquer um de nossa espécie. Senti um mau pressentimento… — Disse que me viu. Chamou-me de monstro e humana. Ele negou com a cabeça, tirando-lhe a importância. — Gareth falou de você para ela, que temeu deixar de ser o centro de todos os cuidados. Disse-lhe aquilo para que se sentisse mal. Eu devia ter falado com ela antes de vir, foi um engano não fazê-lo. — Parecia muito real. — Insisti, preocupada. — E ela me dá medo. Não sei como eles conseguem viver tranquilos sob o mesmo teto que ela. — Sabem controlá-la. — De qualquer forma, é estranho, não é? Caçadores ajudando grandes predadores… — Não é algo comum, mas tampouco fazem isso com qualquer um. Têm condições. Não lhe permitem ser como o resto, deve se comprometer a não torturar nenhum caçador nem voltar a matar enquanto esteja sob este teto. — E tem grandes predadores que aceitam isso? — Perguntei surpresa. — Não muitos, por sorte. É uma mostra imperdoável de fraqueza. — Mas deixaram-no entrar… Também vai tentar? — Não estou vivendo com eles. — Lembrou-me. — Mas prometi que nenhum grande predador lhes fará mal algum. — Fez uma breve pausa. — Também tive que dar minha palavra de que vou ser moderado enquanto frequentar a casa. — Então… Vai fazer o que? Vai levar vida de caçador? — Um grande predador fraco não é o que precisamos agora, Lena.
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Fiquei em silêncio. Triste. Pensar em Christian tentando deixar a natureza sombria de lado era muito bonito para ser verdade. — Eu só preciso de você. — Disse com voz apagada. — Sem ter que me sentir culpado por isso. — Não deve se sentir culpado de nada. É o estranho senso de humor do destino que nos colocou nesta situação. — Maldito destino… — Não. — Sorriu. — Maldito e ditoso por encontrar uma maneira de cruzar nossos caminhos. Ele não disse nada. Apenas me abraçou, tentando me animar. Percorremos com lentidão os arredores. Christian fingia calma, mas eu sabia que na realidade, estava aproveitando a ocasião para poder inspecionar a segurança da zona pela milionésima vez; sem levantar suspeitas, nem em mim, nem nos habitantes do lugar. Quando retornamos, Valentine se atirou ao chão, cruzando os braços, zangada. Christian a levantou, deu-lhe um beijo na face e a sentou no sofá. Depois, puxou-me pela mão para me conduzir escada acima. Não me passou despercebida a maneira como Valentine nos cravava as membranas. Christian fechou a porta assim que chegamos ao quarto. — Ela me odeia! — Repeti. — Não se preocupe. — Beijou minha testa e foi verificar a janela. — Claro que me preocupo. Será que poderíamos convencê-los para que pelo menos lhe permitam vir aqui à noite? — Mesmo com eles aqui seria muito perigoso. — Você veio morar na casa do De Cote e nada aconteceu. — Lembrei-lhe me aproximando dele.
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— Podemos debater sobre muitos e variados assuntos, mas este não é um deles. Não posso viver aqui e não estou disposto a deixar você sem o amparo desta família. Não penso deixá-la se arriscar. — Talvez eu queira. — Insisti. — Pode ser que esteja cansada de que nada seja normal. — Não há nada normal em nós, Lena. Cedo ou tarde você vai entender isso. — Cedo ou tarde. — Repeti, arregalando os olhos e me afastando dele para me deixar cair na cama. — Ou nunca. — Essa é uma palavra muito grande. — Caminhou devagar para mim, tomou minhas mãos entre as suas, aproximou-as da boca e as beijou. — Podemos criar nossa própria normalidade. — E isso inclui o que? — No momento, só você e eu. — Rodeou minha cintura e me empurrou um pouco para trás, torcendo um sorriso, como se nada tivesse acontecido e acrescentou: — Não soa tentador, por acaso? — Só durante algumas horas. — Vamos investir bem, então. Voltou a sorrir daquele jeito tão impactante, que fazia com que meus joelhos tremessem. Passei a mão pelo seu rosto e acariciou-o, mas de repente, as velas se apagaram e um intenso assobio chegou aos meus ouvidos, o som do silêncio. Christian levantou-se e olhou para o pavio fumegante. — O que foi? — Perguntei confusa. — Algo não está bem. Venha. — Sussurrou, pegando minha mão outra vez. — Não faça barulho nenhum. Saímos do quarto com cuidado e descemos silenciosamente pelas escadas até chegar ao salão. Ali, todos estavam imóveis. Ninguém nos viu, e Gareth se
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juntou a nós. Christian e ele trocaram um olhar que não consegui decifrar, mas tampouco tive tempo de tentar, porque algo captou por completo minha atenção. A casa inteira começava a tremer. Um estranho calafrio gelado percorreu meu corpo. Sabia o que isso significava. Todos os outros tinham notado também. Abracei Christian. Seus músculos ficaram extremamente tensos e ele rodeou-me com os braços quase com excessiva força. Nesse momento o tremor aumentou e senti como uma dolorosa mão cobrindo minha boca. Nem sequer me dera conta de que tinha parado de respirar. Ficamos assim, imóveis, com o corpo rígido, gelado e dolorido pela tensão até que, sem aviso prévio, os sons retornaram. Tal como havia chegado, foi embora. Gaelle se apressou a acender as velas. Gareth foi ajudá-la. — Isso acontece com frequência? — Christian perguntou com tom áspero. — Não. — Gareth respondeu. A voz estava rouca e preocupada. — Nunca, se não houver uma razão para tal. — Tudo isso é culpa dela! — Gritou a menina, ficando em pé e apontando para mim. — Ela os trouxe para cá! — Valentine… — Por que vocês a protegem? — Começou a chiar, exatamente igual à primeira vez em que a vi. Gaelle foi até ela e a abraçou. — Levem-na daqui. — Calma, fique tranquila! — A mulher sussurrava, enquanto a aconchegava nos braços. — Vamos para o seu quarto. — NÃO! Solte-me! LEVEM-NA DAQUI! LEVEM-NA DAQUI! Rapidamente, Gaelle levou Valentine escadas acima. Os gritos ainda ressoavam. Meu corpo estava rígido por causa do pânico pelo que acabara de acontecer, pela nova reação da menina e pelo fato de que os gritos dela pudessem atrair de novo os guardiões. — Você está bem? — Christian me perguntou.
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— Sim. — Balbuciei. As palavras ficaram presas na minha garganta. Christian me abraçou. Gareth se aproximou da janela, deu uma olhada para fora e depois se virou de novo para nós. — Logo vai anoitecer. — Anunciou. — Sinto muito, filho, mas você precisa ir. — Co… Como? — Gaguejei, afastando-me um pouco dele. — Tem guardiões lá fora! — Já não há perigo. Lamento, Lena, mas são as normas. Volte quando o sol sair, ficaremos encantados em recebê-lo. — Mas… — Tentei protestar. — De acordo. — Christian me soltou. — De acordo? Não pode ir agora! — Pela manhã volto para buscá-la. — Christian… — Até daqui algumas horas. — Sussurrou e pegou meu rosto nas mãos, depositando um beijo em minha testa. Em seguida se afastou e se virou para Gareth. — Se acontecer alguma coisa, avise-me. — Certamente. — Fez uma leve inclinação de cabeça e saiu para o pátio. Tentei segui-lo, mas Gareth pôs a mão no meu ombro, detendo-me. — É melhor que vá para a cama, já é tarde. Olhei-o com o intuito de lhe mostrar toda minha dor, queria que visse o quanto tudo aquilo me parecia injusto, mas não funcionou. De fato, duvidava até que ele tivesse percebido. Continuava com a vista cravada no lugar pelo qual Christian tinha saído. Sem dizer mais nada, dei a volta, subi de novo para o quarto e me joguei sobre a cama.
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Horas mais tarde, não sabia se estava tendo algum tipo de sonho, quando uma forte pressão no pescoço me obrigou a despertar bruscamente. Abri os olhos de repente e assustada, descobri Valentine em cima de mim, vestida de camisola, os olhos arregalados de forma exagerada e segurando a pequena ampola de sangue de guardião na mão erguida acima de mim. Só tive tempo suficiente para frear o golpe dirigido ao meu coração. — Morra! — Ela gritou tentando cravar de novo a ampola. — Deixe-nos em paz de uma vez! —Solte-me! — Chiei eu também, aterrada. — Não! — Solte-me! — Não permitirei que o faça! — Ela disse. —Não vou permitir! A porta se abriu de repente. — Valentine! — Ouvi Gaelle chiar com voz alarmada. — Tem que morrer! Ela tem que morrer! — Solte-a! — Gareth ordenou, aparecendo atrás dela e puxando-a. A ampola caiu no chão. — Não! Eu vi. EU VI! — A voz dela se quebrou como se começasse a chorar. Gareth deu um último puxão e a pequena mão libertou meu pescoço. — EU A ODEIO! — Gaelle, leve-a e fica com ela esta noite — Pediu, passando a menina para os braços dela. — Agora! — ELA VAI MATÁ-LO! — Gritou de novo. — ELA VAI ACABAR COM TODOS! Gareth acompanhou Gaelle até o corredor e fechou rapidamente a porta atrás delas. Em seguida se virou para mim, alarmado e com gesto urgente. — Você está bem?
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Eu me virei para ele, aterrorizada, levando a mão ao pescoço. Não sabia o que fazer, nem o que dizer, só pude lhe dirigir um terrível olhar justo antes que na minha mente, se formasse a última revelação da Helga Lavisier. “Férias” “Também vi morte! Você precisa esquecer-se dessa absurda ideia mortal sobre o amor… Ou vai acabar com ele… Fuja para longe, Lena De Cote, fuja antes que seja tarde demais… Para ambos…” Não consegui dormir à noite inteira, embora tampouco me atrevesse e tinha muito medo de tentar. Não foi senão quando apareceu o sol que, de repente, assimilei o que tinha acontecido e descobri que meu temor não se devia ao que Valentine pudesse me fazer. O que de verdade me deixava paralisada como estátua na cama era que as palavras dela pudessem estar certas. Quando apareci na janela, Christian já estava lá, esperando-me no final da rua. Assim que saí, meus olhos se cravaram nele de forma automática e imediatamente, retrocedi um passo. “Ela vai matá-lo! Matará a todos!” As palavras de Valentine penetraram de tal forma na minha mente e no meu corpo que senti que ia desfalecer. Por um momento, desejei voltar correndo para dentro da casa, trancar-me e atirar a chave em algum abismo profundo e impossível de ser encontrada. Queria que tudo não tivesse passado de um sonho, mas ao vê-lo, soube que era tudo real e que cada uma das palavras de Valentine, que me lembrava, tinham sido pronunciadas realmente. — Está acontecendo alguma coisa? — Dei um pulo para trás. Christian estava a um escasso metro do meu rosto e nem sequer tinha me dado conta. Ergui os olhos até os dele e algo obscureceu- lhe o olhar, apagando a pouca jovialidade que lhe restava. — O que houve? — A voz agora estava grave e preocupada.
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Devia lhe contar? Devia lhe dizer que Valentine havia dito que eu mataria a todos? Até mesmo ele? — Não quero ir. — Soltei como única resposta. — O que? — Seja onde for que queira me levar. — Minha voz tremeu. — Não quero ir. Prefiro ficar aqui. A ideia da chave caindo no abismo, que tinha passado pela minha cabeça há apenas um minuto, era tremendamente tentadora, assim pelo menos poderia assegurar-me de que não faria mal a ninguém. — O que há com você? — Vá embora, por favor! Sem dizer nada mais, saí correndo para a casa. Entrei no quarto e fechei a porta, mesmo sabendo que isso não deteria Christian. — Lena! — Ele disse aparecendo pela porta poucos segundos mais tarde. — Chega de brincadeira, conte-me o que está acontecendo. Virei-me para ele, esfregando as mãos de forma compulsiva, nervosa e aterrorizada. — Não posso! — Soltei. Pelo menos isso era totalmente honesto. Ele arqueou as sobrancelhas. — O que é o que não pode me dizer? — A voz era calma e suave, como se tentasse me relaxar dessa maneira, mas podia ouvir o coração dele mais acelerado do que o normal para um grande predador. Olhei-o durante breves instantes e neguei com a cabeça. Não conseguia e sentia-me um ser horrível por isso. Deixei-me cair no chão e apoiei as costas contra a cama, cobrindo o rosto com as mãos. — Vá embora, por favor! — Supliquei.
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Mas, como era habitual nele, não foi. Ajoelhou-se ao meu lado e com cuidado afastou minhas mãos do rosto. Pensei que diria algo, mas apenas ficou em silêncio, observando-me, paciente e imperturbável, à espera que eu dissesse alguma palavra. — Não quero te machucar. — Choraminguei por fim. — Mas eu faço. Todos os que se aproximaram de mim terminaram mal. — Isso não é verdade. — Flávio e Helga morreram; Liam estava ferido e Lisange foi levada por um guardião. — Inspirei de forma pesada. — Então, pode ser que eles também estejam mortos. Sinto-me um monstro, Christian! É só uma questão de tempo para que aconteça algo a você também, que lhe aconteça algo… Por minha culpa. Ele me puxou para perto dele e me abraçou. Eu me aferrei a ele e afundei o rosto no seu peito. — Não há culpados, Lena. — Disse ao meu ouvido. — Todos nós tomamos as decisões que consideramos adequadas. Os De Cote não são caçadores recém nascidos, nem eu um simples e grande predador. — Ergueu a mão e acariciou meu rosto com o dorso do dedo. — Tem ideia de como é difícil nos matar? — Flávio morreu. — Lembrei. — Flávio era muito jovem, Liam e Lisange são anciões. Além disso, ele estava sentenciado. Não digo que nós não estejamos também, mas isso não quer dizer que vamos deixar que nos destruam. Se cairmos, Lena, podemos nos tornar vulneráveis e neste mundo, no nosso... — Ressaltou. — A fraqueza é um risco que não podemos nos permitir. Outra coisa é a culpa. Você é caçadora, a dor a faz forte, aproveite para crescer, transforme-o em poder e deixe a culpa para os guardiões. Você só é responsável por suas decisões e atos. Só você decide o que quer fazer e a boa notícia é que pode fazer o que quiser. — Pegou minhas mãos
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entre as dele. — O que lhe peço que faça agora é que venha comigo e se esforce para tirar esses pensamentos da cabeça. Os guardiões sentem o cheiro da culpa, então, não permita que nos encontrem. — E como faço isso? — Baixei o olhar. — Não sou o mais indicado para responder a essa pergunta. — Acreditava que evitar a culpa era sua especialidade. — Pensei no que disse ontem. Quero que seja feliz, então vou levá-la comigo por alguns dias, enquanto Gareth e Gaelle inspecionam a zona e se asseguram de que a Ordem não está por perto. Venha comigo e vou tentar fazê-la se esquecer do que passou, pelo menos durante algum tempo. A ideia soava tentadora. Sabia o esforço que devia ser para o instinto protetor dele, mas por mais atraente que parecesse, as palavras de Valentine continuavam sendo um problema que não podia revelar. — Acha que é sensato esquecer isso? — Não para sempre. Mas deixe que seja eu a lembrar. — Beijou com delicadeza minha testa e ficou em pé, comigo nos braços. — Então, vem comigo? Por acaso eu tinha escolha? O que eu podia fazer? Ficar ali me lamentando, e atrair toda a Ordem de Alfeo? Ele me pousou no chão, peguei a mão dele e juntos, retornamos à rua. — Carro novo? — Perguntei a alguns metros de distância, ao ver o robusto, mas elegante veículo cinza metalizado tentando sem sucesso roubar os holofotes de Christian. — Suponho que não esperava que fôssemos na velha sucata do Gareth. — Respondeu com total tranquilidade. — Sabe? Há quem aprecie os clássicos. — Comentei enquanto chegávamos junto dele.
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— Lena... — Franziu o cenho. — Esse automóvel não é um clássico, é a ovelha negra de toda a indústria automobilística. — E sua alternativa é… Isto? Pensei que não devíamos chamar a atenção. — É apenas temporário, até que possa trazer o meu. Vamos. — Abriu a porta do assento dianteiro. — Está ficando tarde. O interior desprendia um forte cheiro de tapeçaria nova. Um cheiro muito forte para o meu gosto. Ele acelerou o carro, fazendo aquele peculiar som dos carros esportivos; suponho que para desfrutar, ou esperando que eu saltasse com algum tipo de galanteio para o brinquedo novo e muito caro. Mas não fiz nada, então, finalmente pôs o veículo em marcha. — É difícil impressioná-la. — Comentou. — Você não precisa do traste de uma lataria para isso. — Apontei. — Muito considerada. — Sorriu, colocando os óculos escuros. — Posso saber aonde vamos? — Você já vai ver. — Em dois segundos aumentou a velocidade. Eu suspirei e me concentrei na paisagem. Christian estendeu um braço para me aproximar dele, apertou os lábios contra minha têmpora e deu-me um beijo, com o intuito de me reconfortar. Em seguida ligou o rádio e começou a soar uma música suave. Meu olhar se perdeu entre as árvores que passavam a toda velocidade pela janela. — O que acontece se Gareth disser que o local não é seguro? — Vamos ter que procurar outro. — Respondeu sem rodeios, enquanto trocava de pista. — Mas Liam e Lisange… — Comecei a me queixar. — Não poderão nos encontrar, então.
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— Acreditava que era eu quem subestimava a sua espécie, mas você tem um talento especial para isso. Você já viu como eles sabem se defender. Eles confiam na própria experiência. — Não me passou despercebido o fato de que também apertava o volante com mais força do que o necessário. — Não pode preocupar-se com todo mundo. — Eles não são “todo mundo”! — Protestei. — Sei o que quer, Lena e se fosse seguro eu garanto que lhe daria isso, mas não vou levá-la para lá de novo. Procure esquecer o que passou. — Esquecer?! — Soltei pasmada. — Os De Cote são a minha família! — Pode ser que eu não sinta um amor desenfreado por cada alma desventurada que cruza meu caminho, como você, mas sou capaz de entender muito bem o laço que tem com os De Cote. — Como o que você tem com Valentine? — Perguntei de repente. — Menos do que o que tenho com você. É suficiente? — Não sei. — Reconheci. — Você é o professor. — Terá que confiar em minha palavra, então. Eles estão bem. Se não fossem caçadores, apostaria a eternidade nisso. — Se não confia nos caçadores, por que está tão seguro? — Porque se tivessem caído nas mãos deles, teriam sido torturados de tal maneira que teriam revelado nossa posição. — Fez uma pausa e me olhou com seriedade. — A esta altura, é provável que já estivéssemos mortos. É a única garantia que precisa. Olhei-o aterrorizada. — Acredito que preferia a dúvida… — Você é teimosa, mas pelo menos agora sabe por que lhe asseguro que estão bem.
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Pouco depois, a paisagem começou a ficar branca e o termômetro do carro desceu bruscamente a temperatura. — Já estamos chegando. — Anunciou com voz suave. — Neve? — Perguntei me endireitando no assento. — Liam disse que as zonas frias não eram seguras. — Lembrei inquieta. — Os guardiões pensarão que você se escondeu em algum lugar quente para despistá-los. Nesse momento, saiu da estrada, abrindo caminho entre a neve para estacionar sob os ramos de vários pinheiros e abetos. Desligou o motor, saiu do carro, pegou uma mochila do porta-malas e observou à distância, enquanto rodeava o carro para chegar à minha porta. Abriu-a e me estendeu a mão para me ajudar a sair, mas uma pesada sensação se assentou em meu estômago ao ver aquele enorme manto esbranquiçado. — Isto não está certo. — Olhei-o impaciente. — Temos que ir. Temos que sair daqui imediatamente! — Está acontecendo algo? — Algo? — Repeti procurando nervosamente ao meu redor. — Liam disse… Disse que… — Não o procurassem aqui. — Repetiu com calma. — Flávio morreu em um lugar como este! — Soltei. — Como… Como pôde me trazer aqui? — Jamais o teria feito se não estivesse completamente seguro de que não há perigo para você. — Replicou me olhando muito sério. — Estou tentando protegê-la, não matá-la, Lena. Venha aqui. Abraçou-me e não tive remédio senão afundar o rosto no casaco de tecido negro. — Christian, por favor…
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— Você é parte de mim. Não vou permitir que nada aconteça a você. — Continuou assim, abraçando-me, até que notou que minha respiração estava voltando ao normal. — Está melhor? — Creio que sim. — Que bom. — Sorriu e sem prévio aviso, pegou-me nos braços e começou a andar através da neve, afastando, por um momento, todos aqueles pensamentos. — Ei! — Me queixei. — Não, não, ponha-me no chão! — Então me obrigue! — Riu. — Christian! — Receio que acaba de cair nas garras de um grande predador faminto. Agora é minha pequena prisioneira. — Os prisioneiros são levados com correntes e não nas asas. — Apontei. — Posso conseguir algumas, se for o caso. — Disse de forma tão séria que estremeci, mas um instante depois me dedicou um sorriso muito travesso e eu lhe dei uma batidinha no peito a título de protesto. — Hoje não me sinto muito tolerante com esse seu humor tão sarcástico. Ele se pôs a rir. O peito vibrou junto ao meu corpo e senti o calor do dele. De repente, já não me importava que me carregasse assim, tão perto dele, embora essa proximidade fizesse com que o cheiro dele me embriagasse de novo e me fizesse esquecer do resto. — Olhe. — Ele sussurrou junto ao meu ouvido. Ergui os olhos para ele e segui a direção dos olhos dele. Acabávamos de sair do bosque e diante de nós, estendia-se uma imensa esplanada com um pântano gelado. O manto que o cobria por inteiro era branco imaculado, sem nenhum rastro. O céu estava brilhante e corria uma suave brisa. — Oh! — Foi a única coisa que consegui dizer.
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— É todo seu durante este fim de semana. — Nosso. — Corrigi e olhei o lugar com receio. — Não tem animais selvagens por aqui? — O único com o qual deve se preocupar sou eu, nenhum outro lhe faria mal. — Assinalou com a cabeça para um lado. — É aqui. — O que é aquilo? — Vi algo nas árvores, mas eu não conseguia identificálo claramente, até chegarmos mais perto. — Uma caverna… — Um segundo depois não pude evitar rir. — Fazia muito tempo que você não ria. — Ele recordou me olhando de maneira estranha. — Senti falta disso. — Não tive muitas oportunidades ultimamente. — Reconheci. — Devia parar de franzir tanto o cenho. — Por quê? Vão surgir rugas? — Brinquei. — Não acredito que tenha que se preocupar com isso. — Sorriu, soltoume com cuidado e me puxou pela mão, conduzindo-me para dentro. — O que lhe parece? A verdade é que imaginava um pequeno oco na rocha com teto baixo e bastante fundo, mas me surpreendeu descobrir que era bastante grande, alta e com o chão mais ou menos plano. Não parecia tão tenebrosa como podia ter imaginado. Quando me virei para Christian descobri que ele já tinha aproveitado para tirar da mochila uma grossa manta cinza e estendeu-a no chão. — Você é uma caixa de surpresas, Sr. Dubois. — Zombei. — Ainda tem muita coisa a aprender sobre mim. — Sorriu levantando-se do chão e limpando as mãos. — Estou querendo começar. Aproximou-se de mim e me abraçou, acariciando meu cabelo.
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— Não tenha pressa. — Sussurrou com voz muito baixa, de tal forma que não pude adivinhar se estava dizendo para mim ou se só estava pensando alto. Em seguida me beijou no cocuruto e me levou de novo para fora. — Quero saber mais sobre Valentine. — Pedi. — Por que se interessa tanto por ela? É apenas uma criança. Apenas uma criança? Sim, uma criança que tinha tentado me matar. Uma criança que havia revelado de novo que eu ia matá-lo. Por acaso o sexto sentido dele não o advertia de nada? Mordi o lábio tentando me conter. Estava a ponto de lhe dizer o que tinha acontecido à noite e não podia fazê-lo. Não podia, pelo menos até que soubesse o que fazer. Não estava preparada para lhe explicar que eu ia matá-lo, embora todos já parecessem sabê-lo. Todas as minhas vísceras se encolheram com esse último pensamento. — Porque ela me odeia. — Respondi sem mais aquela. — E também porque é pequena. Parece-me estranho que alguém assim possa ser… Isso. — São boas razões. — Apoiou. — Então, estou certa? Não é normal que haja caçadores, ou grandes predadores tão pequenos, verdade? — Correto. Tentaram-no muitíssimas vezes, mas não é fácil, porque a alma das crianças é inocente. Supõe-se que não conhecem a maldade, nem a dor. — Mas Valentine… — A alma dela não era pura como a das outras crianças, sempre teve um coração sádico e masoquista. — Olhei-o confusa. — A mãe e a irmã gêmea dela morreram quando ela nasceu. O pai ficou louco e começou a torturar o meioirmão mais velho. Valentine cresceu vendo isso, sem saber o que era amor e rodeada de todo aquele ódio e crueldade. Teve que viver na rua. Ninguém quis acolhê-la. Temiam-na porque estava obcecada com a morte e porque desenvolveu
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um instinto que a advertia onde ia acontecer: em um bosque, em um caminho abandonado… Procurava-os e não apartava a vista deles até que exalassem o último suspiro. Muitos teriam podido salvar-se se ela tivesse pedido ajuda, mas ela nunca pediu. — Por quê? — De algum modo, ela sabia que ia morrer em breve. Foi uma criança doente desde os primeiros anos de vida. Sentava-se e ficava contemplando a morte para aprender com ela. — Fez uma pausa. — Só uma criança assim poderia suportar o primeiro ano de agonia dos grandes predadores. Uma caçadora a encontrou e a viu como um prêmio, um objeto único. Uma criança imortal. Assim, aguardou durante meses, até que Valentine não pôde suportar a chegada do inverno. — Riu para si mesmo. — Quando morreu, não pronunciou nenhuma palavra, não soltou nem um gemido de dor. Ficou com os olhos abertos, serena, esperando que chegasse a hora dela. Depois a converteram no que é hoje. — Um caçador pode transformar um humano? — Uma grande predadora fez isso. Matou a caçadora e ficou com Valentine. A menina sentiu rancor e vingança suficientes para tornar possível a transformação. — É horrível… — De qualquer forma, aquela caçadora teria morrido nas mãos dela cedo ou tarde. Valentine matou muitos grandes predadores antes de completar um mês de nascida. — Fazer isso com uma criança é uma monstruosidade. — Crianças ou adultos, Lena, aqui não há diferenças. A única coisa que importa é o coração e o de Valentine nunca foi puro. — Pensa que teria se transformado nisso, de qualquer forma?
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— Quem sabe? Ela tinha esse instinto, mas nunca saberemos se foi acrescentado pela constante presença da caçadora ou se era assim por si mesma. Aquela mulher esteve presente na vida dela durante muitos anos, cuidava dela para assegurar-se de que estaria ali quando chegasse o momento. Um caçador ou um grande predador muito presente na vida de um humano enfraquece lhe o coração, corrompe-o pouco a pouco. De modo que fica difícil saber como era na realidade. Não obstante, aquela caçadora foi a coisa mais próxima a uma família que ela teve na vida. — Valentine gostava dela? — Aquilo parecia estranho, apesar de haver notado o apego que sentia por Christian. — Precisava dela. Era a única pessoa que a amara da forma mais próxima à dos humanos. Despertou nesta vida chorando por ela, portanto deduzo que sim. — Espere aí, nós podemos chorar? — Tendo em conta a quantidade de vezes que eu tinha tentado, era bastante impactante. — Uma ou duas lágrimas a cada século, mas nem todos são capazes de chorar. — O que quer dizer? — Não é fácil e ninguém quer isso. Derramar uma lágrima é pior que morrer, Lena, é uma dor que, literalmente, vai matando partes da sua alma. Muito poucos sobrevivem a isso, é preciso ter uma força ou uma frieza sem limites. Por isso dizem que aqueles que conseguem chorar são os mais perigosos. Embora, nesse momento, enquanto a alma está se partindo, perdem toda a invulnerabilidade. Eles ficam tão frágeis quanto uma criança. — Você… — Tinha um nó na garganta. — Você já… Alguma vez já… Chorou?
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Ele ficou em silêncio durante alguns segundos que pareceram horas. Pensava que não ia responder quando disse: — Uma vez, quando me dei conta de que tinha me transformado nisto. Pude sentir que ainda lhe doía e me senti culpada por fazê-lo se lembrar. O fato de que ainda lhe causasse dano deixava claro que o sentimento continuava ali e que, portanto, cabia a possibilidade de que mudasse. Apoiei-me contra um tronco, observando Christian com atenção. — Sua alma está partida? — Minha alma morreu faz tempo. — Anunciou, juraria que incomodado pelo novo prisma sob o qual eu o estava observando. — Mas, vamos mudar de assunto. Devia descansar. — Por que diz isso? — Insisti, ignorando a última sugestão. — Não que isso me importe. Se continuarmos neste mundo é porque não parece necessário. — Como pode ter certeza? — Lembra-se quando lhe disse que não era de bom tom sair por aí perguntando às pessoas como elas morreram? Tem só uma coisa pior que isso. — E quanto a mim? — Perguntei, captando a indireta. — Como vou saber se tenho ou não? — Sua constante preocupação se é mortal ou imortal deixa patente sua existência. — Riu, deixando a preocupação de lado. — Mas você se preocupa comigo. — Apontei. — Lena, eu vivi o suficiente para notar a diferença entre tê-la ou não. — Notei a impaciência refletida na voz dele. — Agora, vamos mudar de assunto e retornemos. — Não quero ir lá para dentro. — Reconheci. — Podemos ficar aqui? — O céu estava impressionante. — Nunca tinha visto nada igual. — Reconheci.
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— De acordo. — Sentou-se na neve e fez um gesto para que eu me sentasse ao lado dele. Sentei-me e ele me rodeou com os braços. Apoiei as costas contra o peito dele e me acomodei olhando o imenso céu. — É bom saber que, por mais que o mundo mude, sempre haverá algo que se mantém igual. — Comentou atrás de mim. A respiração dele acariciou meu pescoço. — Por que diz isso? Apontou o céu com os olhos e me estreitou um pouco mais contra o corpo. — Se for viver uma eternidade, Lena, será melhor que procure algum mistério sem solução e que não tente entendê-lo. Do contrário, se um dia se der conta de que não há nada para descobrir, perderá o juízo. — Como seus olhos. — Soltei. — Meus olhos? — Olhou-me com uma estranha expressão. — Sempre me pareceu que há algo mais neles, desde que o conheço quis saber do que se trata, mas você nunca permitiu. — Deve esquecer o que viu. — Não é apenas pelo que vi naquela noite, é pelo que vejo todo dia. Sei que esconde ou protege algo. — Tinha captado a atenção dele. — Ainda não sei o que é, mas não me deixa ver dentro de você. É como se tivesse levantado um muro entre nós. — Para sua própria segurança. — Esse assunto o deixa um pouco obcecado. — Toda proteção que eu possa lhe brindar será pouca. — Eu não gosto que faça isso. Seja lá o que for, essa barreira nos mantém separados. — Precisa ser assim. — Sentenciou.
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— Do que tem medo? — Incorporei-me. — Teme ficar vulnerável se abrirse para mim? — Não. Embora a ideia de que o resto do mundo saiba que você é meu ponto fraco não me entusiasma. Não quero que me veja fraco, embora tampouco queira assustá-la. A lembrança da fuga com Gareth em nossa primeira noite ali ainda me fazia retorcer de pavor, mas não podia culpá-lo, por que ele não estava em condições normais naquele momento. Ainda podia sentir aquela sensação de pânico me invadindo sem piedade, então, fiquei em silêncio. Quis tranquilizá-lo, mas não consegui. Só consegui me aconchegar contra o peito dele e ouvir-lhe o coração. — Cada vez tem mais pessoas que se arriscam por mim. — Asseguro-lhe que não são mais perigosas do que Valentine, ou os grandes predadores instáveis que Gareth e Gaelle acolheram. — Riu. — Touché. — Admiti meio preocupada pelo que implicava aquele comentário. — E quanto a você? Ele me acariciou a face e beijou minha testa. Depois, abraçou minha cabeça contra seu peito. O coração dele pulsava com força. — Às vezes eu me esqueço do que sou quando estou com você. — Afasteime um pouco dele e o olhei nos olhos. — Mas é a única à qual devo me obrigar a recordá-lo. — Eu o coloco em perigo, não é? Por isso Valentine me odeia. — Ela pensa que você me deixa fraco. — E é verdade… — Você me deixa fraco, sim, vulnerável, mas não haveria calvário maior para mim do que não estar com você.
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— Até que ponto isso é ruim? Diga-me a verdade. Quero saber o que esperar. Ele suspirou de forma lenta e profunda. — Você me faz sentir respeito pela vida, inclusive pela dos humanos e isso é um problema. — Isso é perigoso para você? — Lena, é isso que eu sou. Matar é o meu trabalho. Um grande predador fraco é uma ameaça, uma vergonha para toda a raça. Quanto tempo acredita que me deixarão existir, sabendo que não faço o que se supõe que devo fazer? — Então, para viver deve continuar acabando com as pessoas… Concedeu-se uns dois segundos antes de responder. — Não é um problema para mim, não me importa ter que fazê-lo, mas sei que para você não é assim. — Quer que eu tenha uma ideia sobre isso, não é? — Ele continuou em silêncio. — Disse uma vez que não faziam do ato de matar um modo de vida. — Não é assim tão simples. Falei-lhe do silêncio que se segue à morte de alguém. Isso nos tortura sem descanso, os últimos gritos, os últimos olhares de desespero nos perseguem até que aprendemos a esquecer, se tivermos sorte… — Sorte? — Interrompi. — Alguns nunca esquecem. — A voz dele ficou mortiça. — Aquelas que são pegas de surpresa, na confusão ou as que nos perdoam pelo que lhes estamos fazendo. Quando voltam a nos perseguir, devemos acabar com alguém de forma cruel, para camuflá-las, até que retornam outra vez. Aí é quando tudo volta a começar. Digamos que escolher a pessoa errada, aquela que lhe devolve o último olhar, é o maior temor de um grande predador. Certo número delas pode chegar a nos matar, lentamente, até que por fim arrancamos nosso coração. Combatemos dor com mais dor.
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— E quanto à tortura aos caçadores? — Por esse motivo desfrutamos tanto torturando-os. É fácil e o risco de matá-los não é tão alto. Voltei a respirar e olhei para frente, com os braços cruzados sobre o peito. — É horrível. Devia odiá-lo, a você e a mim mesma por não me opor ao que faz, por tentar ignorá-lo e até por sentir lástima pelo que são... — Jamais a perdoaria se sentisse lástima por mim. — Mas eu sinto e isso não tem sentido para mim. — Fiquei pensativa. — No trato que me propôs, disse que o faria quando eu não soubesse, que faria de surpresa. — Bom, não me parecia bem marcar dia e hora. — Zombou sorrindo de forma um tanto amarga. — Se fosse planejado, seu último olhar teria sido de perdão, de complacência. Não podia me arriscar. — Poderia tê-lo feito de forma que não visse meu rosto. — Eu teria sentido seu perdão da mesma maneira, inclusive seu agradecimento. Se tivesse sentido medo desde o começo, como de um grande predador normal, teria sido mais fácil, mas você não me temia. — Embora não deixasse de tentar. Passou um dedo pelos meus lábios e respirou com dificuldade junto ao meu ouvido. — Trocaria toda minha eternidade para poder ser normal por apenas um dia. — Aproximou os lábios dos meus. — E poder estar com você. — Roçou-os com delicadeza. — Só com você. — Apoiou a testa contra a minha e fechou os olhos com força. A respiração dele se misturava à minha. Então, voltou a falar: — Mas nem sequer isso é suficiente. — Afastou-se um pouco de mim, abriu os olhos e desviou o olhar para o céu. — Está se preparando uma tormenta, devemos retornar.
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O gelo também queima.
Na manhã seguinte, quando despertei, não senti Christian perto de mim. Sentei-me no meio da manta e olhei em volta, mas não tinha ninguém. Suaves e longínquas pisadas chegaram aos meus ouvidos: a neve rangia sob o peso de alguém. O dia estava nublado, embora de vez em quando o sol se filtrasse com força entre as nesgas das nuvens. Internei-me no bosque em busca de Christian, tentando averiguar onde ele estava, e ali, não muito longe, eu o vi, caminhando descalço na neve. Segui-o entre as árvores e pela ladeira, até que parou diante do pântano gelado. Em algum momento durante a noite o gelo se abrira, deixando a descoberto a água fria em um pequeno buraco. Aproximei-me mais, em silêncio, e observei-o, mas então, tirou a camisa, obrigando-me a contemplar aquele perfeito corpo esculpido. Não me passou despercebido uma marca no peito dele, mas não pude prestar muita atenção nela. Ele inclinou um instante a cabeça para o buraco, como se quisesse comprovar que ainda não estava em pé, e em seguida ergueu os braços e se lançou à água, com tal elegância e precisão que seria bem merecida uma medalha de ouro nas Olimpíadas. Avancei alarmada e esperei que ele voltasse à superfície, mas não voltou. Era absurdo, posto que ele não precisava respirar, mas eu me assustei, então corri até lá e me debrucei sobre o buraco. Ajoelhei-me no gelo tentando ver através da água, mas tudo estava exageradamente calmo lá embaixo, como se não tivesse recebido a visita de
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nenhum estranho. Olhei em volta pensando a toda velocidade se devia ou não entrar para buscá-lo, mas justo naquele momento, algo surgiu das águas e me agarrou pelos pulsos. — Vem comigo, quero lhe mostrar uma coisa. Não sabia se era por alguma má experiência em vida ou porque meu instinto de sobrevivência humana funcionava em estranhas ocasiões, mas as profundezas de um pântano gelado me infundiam bastante respeito. No entanto, pensar no corpo dele quase nu perto de mim o transformava em uma ideia bem mais tentadora. Senti que com esse pensamento havia começado a sorrir de forma estúpida, então neguei com a cabeça e retrocedi um passo. Voltava a me custar uma barbaridade manter a cabeça fria e conter meus impulsos. — Não creio que seja uma boa ideia. — Verdade? — Pôs as mãos sobre o gelo e me olhou com uma expressão travessa. De repente compreendi o que ele ia fazer. Com uma insignificante amostra de força, arrancou um pedaço do gelo sobre o qual eu estava, fazendo-me perder o equilíbrio e cair. Em décimos de segundo, a água gelada percorreu meu corpo, afundando na escuridão do fundo. Os batimentos do coração de Christian retumbavam intensos e profundos lá embaixo, mas não via nada mais que a capa azulada que cobria a superfície. Então, braços me puxaram pela cintura. Virei-me e o vi, com um resplandecente sorriso. Dirigi-lhe um olhar assustado, mas ele me puxou pela mão. Nesse momento, descobri que ali o toque dele não queimava, e isso bastou para me deixar levar. Começamos a descer, penetrando cada vez mais no negrume. Durante alguns segundos não pude ver nada em volta além da cor da pele dele em contraste com a escuridão das profundezas, mas depois, meus olhos se acostumaram à ausência de luz e pouco a pouco pude penetrar a bruma que
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ocultava o fundo. Descobri o que era que ele queria me mostrar. O pântano ocultava um pequeno povoado. Um antigo povoado da montanha que decerto fora alagado ao transbordar alguma represa próxima. Tinha certo ar fantasmagórico, mas era precioso. As casas, camufladas pelo musgo aquático, agora estavam habitadas por uma grande variedade de peixes que entravam e saíam pelas janelas e portas. Passamos pelo que um dia devia ter sito a praça principal. Aí havia uma antiga fonte da qual já não saía água, a não ser alguma borbulha extraviada. Tudo era antigo, e eu tinha certeza de que as edificações de hoje em dia não aguentariam algo assim. Continuamos mergulhando até que chegamos a uma grande planície. Parecia coberta por grama suave e rangente, apesar de tratar-se de algum tipo de alga. Um raio de sol se filtrou através do buraco que Christian tinha aberto no gelo, e iluminava o lugar de forma tênue. Quando tocamos o fundo, ele se virou para mim e soltou minha mão. Deu-me um novo sorrisinho, afastou-se para a luz e se jogou sobre aquele curioso tapete. A densidade da água não o impediu, porque era menor que a força dos nossos músculos. Eu avancei para ele, deleitando-me com a imagem, mas assim que cheguei perto, ele ergueu os braços e aferrou minha cintura, virando-me com um movimento ágil para me segurar contra o fundo. Ali, olhou-me bem nos olhos, afastando meu cabelo com a mão, que subia em coluna, atraído pela superfície. Enterrou o braço esquerdo na areia até a altura do cotovelo para que a água não conseguisse nos puxar para cima e, com a outra mão, acariciou-me o rosto. Todo rastro de sorriso tinha desaparecido repentinamente do rosto dele. O meu também se desvanecera. A luz o fazia brilhar por cima de qualquer outra coisa. Meu corpo inteiro estremeceu quando ele roçou o rosto contra o meu, mas continuava sem nem um leve sinal da sensação de ardor. Então, voltou a sorrir, fazendo com que os dentes perfeitos ressaltassem contra a escuridão do fundo. Deslizou a boca pelo meu rosto até
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que, por fim, roçou meus lábios e naquele momento, no fundo daquele lago, beijou-me. Não foi um beijo curto e temeroso e sim, prolongado e doce, mas o mundo ainda não criou uma palavra suficientemente boa para lhe fazer justiça. De qualquer forma, ninguém poderia ser capaz de descrevê-lo com palavras tão banais como “perfeito” ou “voraz”. A única coisa que estava clara era que superou todos e cada um dos beijos que tinha imaginado. Com apenas o primeiro toque conseguira deter o tempo, prender meu coração e reviver cada pequena parte do meu corpo. Devagar e muito a contragosto de minha parte, ele se afastou de mim. Demorou vários segundos para abrir os olhos, mas assim que os abriu, sorriu. Eu o imitei e um segundo mais tarde, lancei-me de novo sobre os lábios dele, envolvendo o seu pescoço com meus braços. Ele desenterrou o dele da areia e impulsionou a nós dois para cima. Muito antes do que poderia ser considerado justo, voltamos à superfície. Christian se assegurou de separar a boca da minha antes que o ar voltasse a nos tocar. — Sabia que você ia gostar. Eu ia responder, mas ao invés, lancei-me sobre ele e o afundei de novo na água. Christian me puxou, afundou-me e me arrastou sob o gelo. Uma vez ali, beijou-me de forma repetida, com beijos curtos, mas suficientes para alimentar as mariposas que voavam furiosas no meu estômago, até que, de repente, tudo ficou muito mais intenso. Tão intenso quanto a ferocidade com a qual um faminto come depois de dias sem comer. — Creio que vou ter que abordá-lo com mais frequência. — Ri minutos mais tarde enquanto ele me levava à superfície para me sentar no gelo. — Você adora brincar com fogo. — Apontou a água. — Agora prefiro o gelo. — Brinquei. — E aprendi com o melhor.
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— Não me lembro de ter lhe ensinado nada parecido. — Provavelmente, não conscientemente. — Então... — Beijou-me o joelho esquerdo. — Já não está zangada por têla trazido para este lugar? — Não muito. — Bem… — Sorriu e se afastou um pouco de mim, saindo da água. Tive que afastar o olhar para evitar me ruborizar, embora soubesse que o contrário não era possível. Morria de vontade de me jogar sobre ele e beijá-lo de novo, pois não sabia quando teríamos outra oportunidade como esta, mas a vergonha foi maior. Peguei um pouco de água com uma mão e a passei na nuca, respirando algumas vezes, sem que isso servisse absolutamente de nada. — Você vem? Ergui a vista para ele, que me estendia a mão, em pé ao meu lado. As gotas que se desprendiam do cabelo dele caíam sobre meu ombro nu, provocando-me algo parecido a um calafrio. Estava com a camisa dobrada sobre um ombro, de modo que mesmo assim pude contemplá-lo. Aceitei a ajuda e ele me puxou. Depois, manteve nossos dedos entrelaçados e avançamos de novo através do gelo. A pele dele voltou a arder e isso me fez descobrir que não teria me importado de passar o resto da eternidade debaixo daquelas águas. — O que vai acontecer com a gente? — Vamos voltar. — Respondeu de forma quase imperceptível. — Vai aguardar notícias do De Cote e fugir. Começar de novo, sem perigo. Assenti lentamente enquanto meus olhos, de repente, ficaram fixos em um lugar. — O que é isso que tem no peito? — O que? — Perguntou olhando para si mesmo. Ali, reluzente sob a luz do sol, havia um longo sinal, como de um corte. — Essa cicatriz?
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— Sim. — Disse, observando-a, agora com mais atenção. — Acreditava que nossas feridas se curavam sozinhas... — Esta é anterior a tudo isto. — O que aconteceu? — Morri. — Respondeu sem rodeios. — A serpente? — Olhei-o com estranheza. — Sim, creio que podemos dizer que sim. — Fiz uma nota mental para procurar algum tipo de cicatriz em meu corpo. Por que não tinha me ocorrido antes? Talvez assim descobrisse algo novo sobre minha própria morte… Fiquei contemplando-a por tanto tempo que Christian perguntou: — Ela a desagrada? — Não. — Eu respondi, saindo do estupor. — Mas é estranho encontrar algum defeito no seu corpo. — Não é defeito, Lena. — Alegou meio carrancudo. — É uma honra. Ela me faz lembrar de que meu coração arde a cada pulsação e que tenho poder suficiente para suportar isso. — Os guardiões também têm um coração que pulsa e dói. — Apontei. — Sim, mas a culpa é uma fraqueza. — Não há maneira de fazer parar de doer? Consertando o que fez de ruim, ou vingando-se, ou algo assim? — Não no nosso caso; pelo menos, não por completo. Só pode ser atenuado. Ignoro o que acontece com eles, mas tampouco me interessa. Com um ligeiro tremor aproximei um dedo e toquei a cicatriz, percorrendo-a de um extremo ao outro. Era estranhamente suave e cálida. O peito dele estremeceu ao meu toque. Não pude evitar e aproximei os lábios para depositar um beijo ali. Confusa com minha reação, ergui o olhar para ele, pensando que riria de mim, mas me surpreendeu comprovar que me contemplava de uma forma muito estranha. Ficou de joelhos e empurrou um
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pouco meus ombros, até que fiquei estendida sobre a rangente capa de neve. Cravou os olhos em mim de forma muito intensa, mas eu lhe devolvi o olhar. Parecia que nenhum dos dois compreendia o que estava acontecendo, que nossa vontade tinha ficado bem trancada debaixo dos nossos corpos. Com a respiração agitada, beijou minha testa. Depois desceu, com os olhos muito perto de meus e sussurrou lentamente. — Você sabe que eu a amo. — Sei. Então, começou a beijar minha pele, acendendo todos os meus sentidos até níveis insuspeitados. Afundei os dedos na neve para tentar apagar o fogo que ardia dentro de mim, mas era inútil, sentia como se cada vez me consumisse mais o contato da pele dele. Voltou a me olhar, com um sorriso torcido que conseguiu me deixar tonta e se dirigiu para o meu ombro. Acariciei lhe o cabelo e tentei beijar-lhe o pescoço, mas nesse instante, Christian se deixou cair por completo sobre mim e a pele do torso dele ficou em contato com a minha. Todos os meus músculos se contraíram: era uma dor insuportável. — Pare, pare! — Ele parou imediatamente e se afastou com um único movimento. — Perdoe-me, não queria lhe machucar. — Fiquei de pé e acariciei minha pele no intuito de acalmar a dor, mas sem muito êxito. — Você está bem? — Perguntou com ansiedade. Ia pôr a mão no meu ombro, mas no último momento, arrependeu-se e a afastou, temendo me machucar mais. Não gostei daquilo. — Só foi um contato muito direto. — Tentei tranquilizá-lo. — Estou bem. — Não devia me deixar levar. — Não foi só você. — Lembrei-lhe, um pouco envergonhada.
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Ele ia dizer algo, mas… — Se já não estivesse morta, isto me mataria. — Interrompeu uma terceira voz. Christian se levantou de um salto. — O que está fazendo aqui, Elora? — Inquiriu, repentinamente furioso. — Seu querido irmão se perguntava se você tinha desertado. — Olhou-o e em seguida, dirigiu os olhos para mim. — O que pensa que devo lhe dizer? — Que viva sua imortalidade e deixe a minha tranquila. — Ele afirmou. — Isso não vai lhe cair nada bem. — Ela respondeu sorrindo. — Como nos encontrou? — Perguntei me levantando e me colocando junto dele. — Não que fosse um mistério. — Riu. — Bastou fazer uma pequena visita aos De Cote e cumprimentar a pequena Tine. — Os de Cote?! — Exclamei. — O que você fez com eles? — Quer que lhes dê lembranças? — Sorriu-me. — Ela está mentindo. — Christian disse para me tranquilizar. — Quem sabe? — Ela riu para si mesma. — Por que você veio, Elora? — Há guardiões por perto. — O rosto dela ficou sombrio. — Três no Leste e dois no sul. — Nós viemos do Sul. — Ele informou. — Eu sei. — Disse, erguendo ligeiramente o queixo e colocando a mão sobre o quadril. — Eles sabem que estamos aqui? — Duvido. Eles não pertencem à Ordem. Três deles, pelo menos, não. — Como sabe? — Perguntei a Christian, sussurrando. — Não há lembranças da Ordem na mente deles. — Ela respondeu. — Mas devemos ir.
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— Não vamos voltar ainda. — Vai permitir que um caçador inspecione a zona? Estará morto antes que possa descobrir algo. — Se isto for uma brincadeira, vai pagar caro. — Christian a fulminou com o olhar e me levou de volta à caverna. A brisa pareceu ficar mais forte. — Ela não estava falando sério, não é? Gareth não está…? — Perguntei enquanto a perdíamos de vista. — Não. — Ele interrompeu antes que eu pudesse terminar a frase. — Ela está querendo alguma coisa. Chegamos ao lugar sem dizer nenhuma só palavra mais. Entramos e Christian se apressou a guardar tudo. — Não quero ir. — Reconheci, surpresa pela minha repentina mudança de parecer. — Tampouco me agrada a ideia, Lena, mas é perigoso ficarmos aqui. — Como sabe que é verdade? Ela pode estar mentindo. — Não vamos ficar para comprovar. — Ela só quer afastar você de mim. — Se eu quisesse afastá-lo de você, bastaria que eu acabasse com você, Lena De Cote. — Ela disse com um sorrisinho, aparecendo na entrada. — Embora não possa negar que essa ideia rondou minha mente algumas vezes em centenas de ocasiões. — Elora! Já chega! Ela arqueou uma sobrancelha de forma cética e depois arregalou os olhos. — Vou esperá-los no carro. De repente, um vento repentino adentrou a caverna. Christian se afastou de mim e se dirigiu para a entrada. Permaneceu ali alguns poucos segundos,
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olhando para fora enquanto o ar lhe alvoroçava com violência algumas mechas de cabelo. Então, virou-se para mim e terminou de arrumar tudo. — O que há? — Perguntei. — Tem razão. O tempo mudou. Pouco depois, subi no carro de Christian sem muito entusiasmo, apesar de me sentir incômoda ali fora, sob o vento forte. Christian, pelo contrário, parecia acossado por uma estranha pressa. Sentou-se ao meu lado no assento dianteiro e alguns segundos depois já estávamos a caminho, a poucos metros de distância do esportivo de Elora. Ela dirigia de forma mil vezes mais temerária. Havia algo estranho no ambiente: na tensão, na forma como Christian franzia os lábios e entrecerrava os olhos, nos olhares de soslaio que desviava para ambos os lados da estrada. Era medo, podia senti-lo por todo meu corpo. De repente descobri que estava querendo chegar logo. Voltar para aquela casa estranha não me iludia de forma especial, mas a viagem de volta estava sendo suficientemente silenciosa, para não dizer incômoda, para querer escapar daquela situação. Não falei durante todo o trajeto, não sei muito bem por que, mas sentia que, se falasse, seria apenas para dizer alguma estupidez e Christian estava naquele estado meio ausente, no qual parecia que pensava que qualquer coisa que fizesse ou dissesse poderia me assustar, então ele também tinha optado pelo silêncio. Apoiei-me contra a janela e observei a paisagem, ou, pelo menos, tentei. Tinha começado a chover. A quantidade de água que caía por segundo era incrível, muito mais que qualquer chuva que me lembrasse de La Ciudad. As gotas batiam com força contra os vidros e o limpador de para-brisas lutava com veemência para livrar-se delas, mas era em vão… Em seguida já não se podia ver nada lá fora, no entanto, não foi o suficiente para que Christian fosse mais devagar.
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De repente, algo caiu contra o vidro do para-brisa dianteiro, quebrando-o. Deixei escapar um grito. As rodas patinaram de repente, e Christian, dando uma guinada no volante, pisou com força no freio, precipitando-me violentamente para um lado e depois para frente. Os freios chiaram até parar por completo e um forte cheiro de pneu queimado começou a encher o interior do carro. Durante alguns segundos, ambos ficamos em silêncio, com o olhar fixo na estrada e o som do para-brisas retumbando nos ouvidos. — Não saia do carro. — Disse com voz grave, enquanto abria a porta. A voz dele me sobressaltou. A tormenta se introduziu no interior do veículo através da porta aberta. Pelo espelho retrovisor, vi-o atravessar a chuva, iluminado pelas lanternas traseiras do carro, e acocorar-se junto a algo a um lado do asfalto. Em frente, através das gotas do para-brisa, divisei os faróis do carro de Elora. Ela e alguém, que supus que fosse Lester, aproximaram-se de Christian. Devia ter prestado atenção, mas não foi assim e em um ato involuntário, saí do carro. A chuva me ensopou em poucos segundos. Tive que pôr uma mão à guisa de viseira para evitar que a água me caísse nos olhos. Estávamos em algum lugar entre as montanhas, rodeados por um frondoso bosque e a neve tinha desaparecido. A estrada estava deserta, parecia que não tinha mais ninguém ali por vários quilômetros em volta. Reuni-me a eles justamente quando Christian mexia no objeto com um pé. — Bom... — Ouvi dizer a Elora com um ligeiro tom de satisfação. — Não posso dizer que sinto pena. Esperava encontrar uma pedra, um ramo ou algo parecido, mas assim que ele se virou, retrocedi e gritei histericamente até quase sentir que meus
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pulmões sangravam. O rosto de Christian endureceu enquanto empalidecia. Não era uma pedra, nem um galho, mas sim, uma cabeça… A cabeça de Lisange.
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Pesadelos
O sangue de Lisange escorria pelo para-brisa do carro. Minha vista estava cravada na pequena trilha avermelhado que descia, mesclando-se às gotas de água e riscando atalhos irregulares por causa da velocidade. Senti que Christian me olhava, certamente preocupado se por acaso eu voltasse a ter um novo ataque de histeria, mas já não conseguia, embora não desejasse outra coisa. Tinha gritado muito quando a tinha visto lá, com os olhos negros apagados, a boca escancarada e a expressão ausente e dolorida… Christian não tinha conseguido me controlar. Lester e ele tiveram que me segurar e me enfiar no carro à força enquanto Elora ria, mas naquele momento, toda minha força se foi e a única coisa que ficara era a casca vazia daquilo que eu costumava ser. Tinha sido duro perder Flávio, mas eu não conseguia imaginar a existência sem ela, sem o mais parecido a uma família que tinha conhecido nesta vida. Com a pressa para me tirar dali, ninguém tinha limpado aquela mostra tão evidente do que tinha acontecido e agora minhas tripas se revolviam e meu corpo se encolhia com a lembrança. As imagens das árvores passando velozes pela janela se misturavam com o sangue de Flávio na cabana, com Caín na parede do saguão, com Liam ferido e com a enorme cicatriz no pescoço com a
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qual Christian tinha chegado àquele lugar, mas sobre tudo, com ela, com Lisange e senti que algo se rompia dentro de mim. — Não se afaste de mim. — Christian pediu com voz grave quando chegamos, desligando o motor e olhando em todas as direções. Estava nervoso e carrancudo. Senti que a qualquer momento algo maior despertaria lá dentro e se apoderaria dele. A veia da têmpora pulsava com força. O coração estava acelerado… Tirou as chaves do contato e saiu do carro. Eu o vi passar diante do carro e abrir minha porta, vigiando tudo ao nosso redor. Em seguida, pôs as chaves na minha mão e sussurrou: — Se eu lhe disser para correr, quero que volte para o carro imediatamente e que se tranque dentro. Caminhava tão depressa que parecia que corríamos pela estreita rua até que chegamos à entrada, justo quando a porta se abria precipitadamente e Valentine pulava para a calçada para abraçá-lo. — Você voltou! — Ela cantarolou, aferrando-se com força ao corpo dele. Se lhe agradou vê-la ou não, ou se ele se alegrava por estar de volta, era algo que ninguém podia adivinhar. Limitou-se a beijar a cabeça loira da menina e a afastou para entrar na casa, sem dizer uma palavra e com minha mão bem segura na dele. Virei-me um pouco, a tempo de ver a expressão de desconcerto de Valentine se transformando em raiva a passos acelerados. — Gareth! — Ele gritou enquanto entrava depressa na sala. — GARETH! Valentine entrou correndo, afastando-nos do caminho sem nenhuma delicadeza e subiu como um furacão ao andar superior. — O povoado está limpo. — Gareth disse descendo pelas mesmas escadas pelas quais tinha desaparecido Valentine um segundo antes. — Não há mais que dois guardiões na cidade vizinha, mas…
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— Houve um contratempo. — Ele soltou interrompendo-o. Minhas pernas se dobraram e Christian me abraçou para que eu não caísse. — Preciso que Gaelle coloque algumas roupas em uma sacola. — O que aconteceu? — Ela perguntou, saindo da cozinha. — Lisange. — Tentou fazer com que eu não o escutasse, mas não tinha como evitar. Gareth passeou o olhar de um para o outro, incrédulo, mas entendendo tudo. — É verdade? — A voz dela tremia tanto quanto os meus joelhos, minhas mãos ou meus lábios. — Não sei, mas não podemos nos arriscar para averiguar. — É uma tragédia. — Comentou consternado. — Ela sempre foi uma das melhores, como terá permitido que a capturassem? — Já era hora de que alguém acabasse com aquela ruiva. — Valentine apontou tranquilamente, aparecendo na escada e sentando-se em um dos degraus com uma boneca. As palavras dela foram suficientes para que, de repente, eu explodisse. — Cale-se! — Gritei, por fim. Christian me segurou para que eu não me lançasse contra ela. — Lena, tranquilize-se. — Sussurrou. — NÃO! — Voltei a chiar fora de mim. — Com toda certeza foi ela! — Não tive essa sorte. — A menina respondeu com ironia. Lutei contra Christian. Retorci-me, tentei me desfazer dos braços dele, mas ele conseguiu me imobilizar. — Vou levá-la até seu quarto. — Disse-me. — Não! Solte-me! FOI ELA! Com cuidado, Gaelle se aproximou de mim e me abraçou.
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— Aqui vocês estão a salvo. — Pronunciou com voz tranquilizadora. — Você precisa relaxar, não trará benefício a nenhum dos dois se tiver uma crise de nervos. — Ninguém está a salvo, Gaelle. — Christian respondeu com voz gelada. Ela se retirou imediatamente. — Ninguém, senão averiguarmos o que está acontecendo. — Você dá muita importância a algo que devia ter acontecido há muito tempo. — A menina sorriu. Christian lançou um olhar gelado para Valentine. Foi tão frio que ela se levantou e partiu de novo. Ele aproveitou para me levar até o sofá e me sentar. — Foi ela! — Exclamei. — Ela a matou! — Gaelle? — Christian perguntou. — Não, ela não saiu de casa o dia todo. Eu afundei a cabeça entre os braços, agarrando o cabelo com força. — Aonde vão? — Gareth perguntou preocupado. — Para qualquer lugar. Não podemos ficar aqui. — Tampouco é prudente que partam esta noite. Ela não está bem. — Pobre criatura. — Gaelle murmurou me observando. — Esta manhã chegou isto para você. — Com um movimento lento, entregou-me um pequeno envelope. Nele distingui com clareza a pulcra caligrafia de Lisange. Meus olhos ameaçaram virar chamas e ao invés de pegá-lo, abracei-me mais a Christian. Ele, pelo contrário, esticou-se ainda mais ao meu lado, pegou-o, rompeu o lacre, o envelope e tudo o que ficou no caminho até que ficou com a pequena nota bem em frente aos nossos rostos. — O que é que diz aí? — Gareth perguntou.
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Não pude evitar. Li e reli as escassas cinco linhas pelo menos três vezes antes que um novo espasmo percorresse meu corpo. — Que estão bem. — Ele respondeu, confuso. — E que Lena foi aprovada nos exames. Virei a cabeça. Christian observava a carta com o olhar cristalizado, mas não disse nada mais. — Maravilhoso! — Gaelle exclamou sorrindo de repente. — Muitas felicidades, meu bem! Christian e eu nos viramos para ela ao mesmo tempo, perplexos pela reação inoportuna dela. Senti que um peso subia pela minha garganta, mas justamente quando ia desandar a gritar de novo, Christian me tirou dali. Levou-me devagar até o quarto e me obrigou a me deitar na cama. Eu me aferrei ao travesseiro, enquanto ele acendia uma vela com cuidado. — Não era Lisange. — Soltou virando-se para mim e sentando-se na cama. — O que? — Incorporei-me devagar e olhei-o como se ele tivesse ficado louco. — Elora a viu em La Ciudad. Viu a lembrança da conversa com Gareth; foi assim que nos encontrou. Não posso explicar porque ainda tenho que dar um sentido a tudo isso, mas posso lhe assegurar que não era ela. — Então, por que não parece aliviado? — Se a Ordem tivesse capturado Lisange, teria se enfurecido com a morte dela. — Estava decapitada. — Lembrei-lhe. — A decapitação é uma morte com honra. — Com honra? — Não entendia nada.
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— Ou um selo muito pessoal. — Fez uma pausa. — Não quero alarmá-la mais esta noite, mas existem duas possibilidades: ou não era Lisange, ou foi o Ente que fez aquilo. Mas a carta deixa claro que ela estava viva até recentemente. Minha teoria é que só pretendem nos assustar. — Por que não disse isso a eles? — A ignorância é uma poderosa arma. Estarão mais protegidos quanto menos os envolvamos nisto. — E o que vamos fazer? — Ele me obrigou a deitar de novo e me cobriu com uma manta. — Duvido que exista um lugar seguro. — Pegou minhas mãos entre as dele. — Mas vou protegê-la, Lena, de todos. Seja onde for. — E se na verdade for mesmo Lisange? — Murmurei angustiada. — Nesse caso, por fim estará em paz. Senti que meus olhos ardiam. — Fique comigo, por favor. — Ninguém vai me tirar daqui esta noite. Eu juro. — Levou minhas mãos à boca e as beijou. Depois se deitou ao meu lado e me rodeou com os braços. — Conseguiremos, Lena. De um modo ou de outro, nós vamos conseguir. Nem que fiquemos somente você e eu neste mundo. Tudo estava deserto. Caminhava através de La Ciudad vazia. Não havia carros, nem gente, nada que pudesse demonstrar que ali havia vida; apenas edifícios que, de repente, tinham perdido a cor. Um penetrante silêncio envolvia tudo, inquietante, como se alguém tivesse metido uma horripilante e macabra banda sonora baseada em subgraves que me arrepiavam a pele. Então, cheguei a casa, a dos De Cote, a minha. As grades se abriam e se fechavam sozinhas, mas não havia nenhuma leve brisa que explicasse aquilo. Como se tivesse pensado em voz alta, um repentino vento surgiu do nada, violento, fazendo ranger tudo no
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caminho. As grades chiaram, as copas das árvores balançaram e as folhas do chão foram varridas, guiando-me até o enorme portão da entrada. Atravessei a soleira, mas ali não havia nada de novo, nada. Então, ouvi algo, uma vozinha que cantava uma canção de ninar, mas a canção era horripilante. Avancei para a escada e à direita, na sala vazia onde costumava ser o salão, havia uma menina pequena de cabelo grisalho girando sobre si mesma, dançando com um esponjoso vestido da cor do céu. De repente, parou, olhou-me e pude ver que inquietantes membranas brancas cobriam-lhe os olhos. Riu de forma infantil, mostrando uma horrível dentadura de guardião, e voltou a entoar a canção. Essa imagem sobressaltou meu corpo. Passei longe dela enquanto ela voltava a girar e subi as escadas. A porta do meu quarto se abriu, mas não tinha ninguém por trás dela. Vacilei, uma força estranha me afastava e me atraía para dentro ao mesmo tempo, mas finalmente, entrei. Este tampouco parecia meu quarto, estava vazio, à exceção de uma cama que não era como a minha. Estava coberto por pesadas cortinas e uma retorcida trepadeira velha. Rodeei-a, tentando ver através das dobras cor de sangue. Aproximei-me dela, afastei o veludo para um lado e um grito agudo invadiu tudo. Caí para trás enquanto a cabeça inerte de Christian saltava do leito ensanguentado e caía em minhas putrefatas mãos. Então, aqueles olhos vazios se abriram de par em par e cravaram o olhar em mim. Os lábios se curvaram, iam dizer algo, mas ao invés, exalaram o último suspiro. Os olhos se apagaram e a pele começou a transformar-se em pó. Meu corpo inteiro estremeceu, a cabeça escorregou entre meus dedos e caiu fazendose em mil pedacinhos, enquanto milhões de rostos desfigurados me olhavam e me apontavam como culpada… Abri os olhos, sobressaltada, e procurei em volta. Estava de novo naquele povoado abandonado. Virei-me para o lado, mas Christian não estava. A vela,
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agora apagada, ainda fumegava, então não devia ter passado muito tempo desde que partira. Levei a mão ao peito e tentei respirar com normalidade, apesar do meu coração não palpitar. Sentia-me exausta, como se tivesse passado horas correndo. Sentei-me na cama e me cobri com as mantas, não porque tivesse frio, mas sim, porque me sentia mais protegida, mas não me deitei, apoiei-me contra a cabeceira da cama e rodeei os joelhos com os braços, muito temerosa de voltar a dormir, de voltar a sonhar. Só de pensar naquilo me provocou uma grande inquietação, não conseguia me lembrar bem do que acontecera, mas me vinha à cabeça seguidamente a mesma imagem: ele, pálido, não estava branco, mas sim, mortiço, com os olhos abertos, o olhar congelado e… Sem vida. Os olhos não tinham brilho, a boca não se torcia em nenhum sorriso e os lábios estavam arroxeados. O som de um gemido chegou à minha mente; era um gemido de dor, com o qual desaparecia o último suspiro. Ao chegar a esse ponto, minhas unhas se cravaram com ferocidade em minhas palmas, meu corpo inteiro tremeu e uma profunda e inexplicável dor se apoderou do meu coração. — Você está bem? — Christian perguntou saindo de entre as sombras do quarto. Sufoquei um grito de susto. — Pensei que você tinha ido embora. — Eu lhe disse que não iria a parte alguma. Aproximou-se e se sentou ao meu lado, mas eu recuei um pouco. Não conseguia ver a realidade, o rosto “vivo” e atraente me perguntando várias vezes o que estava acontecendo. Não, estava vendo-o ali, mais pálido do que o normal, com aquela cor marfim no rosto que não mostrava expressão alguma, tão inexpressiva quanto uma rocha fria, tão inerte quanto ela. Helga, Valentine e agora eu. E se fosse um sinal? Elas me haviam dito, tinham deixado bem claro. Não importava a forma ou o nível de prudência,
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porque havia verdade nos olhos. Olhei-o e senti espasmos de dor nas vísceras. E se fosse verdade que eu terminaria com a vida dele? — Lena? — Estou bem. — Menti, mas mal conseguia falar, de tanto medo e angústia. Ele procurou meus olhos para me obrigar a olhá-lo e pegou minhas mãos com cuidado. Tentei me controlar para que ele não notasse que elas tremiam, mas fracassei. — Não, não está. Observei as mãos dele entrelaçando as minhas e inspirei fundo. — Não quero falar sobre isso. — Confessei — Por favor! Christian respirou fundo e franziu o cenho. Parecia debater algo importante em seu interior. — Lena, tem algo sobre o qual devemos falar. — Olhei-o com atenção e cautela ao mesmo tempo. Não podia ser algo bom. — Estou em uma encruzilhada. Jamais nesta vida ou em qualquer outra eu a deixaria sozinha, mas os últimos acontecimentos não têm sentido e tem coisas que devo fazer para poder protegê-la. — O que quer dizer? — Vou voltar a La Ciudad por alguns dias, para verificar se os De Cote estão a salvo e para averiguar tudo o que precisamos saber, mas é muito perigoso levá-la comigo. — Está pensando em voltar a La Ciudad sem mim? — Abri muito os olhos. — Vai me abandonar neste lugar? — É muito perigoso. — Repetiu. — Perigoso! — Exclamei. — Ontem a cabeça de Lisange ricocheteou contra o carro, aqui! Neste lugar!
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— Gareth e Gaelle vão protegê-la, Elora e Lester vão se assegurar de que os guardiões não se aproximem. — Elora e Lester? Eles vão me matar assim que tiverem uma oportunidade! — Não, eles não vão matá-la. Não a deixaria com eles se tivesse a mínima dúvida a respeito disso. “Sim, exatamente igual com Valentine…” — Vou voltar para La Ciudad com você, Christian. Não pense que vai me deixar aqui. — Só quero sua segurança, não estou tentando fugir de você. — Isso me deixou bastante dividida. — A Ordem não é o que mais me preocupa neste instante. — O que é então? — O Ente. — Olhou-me diretamente aos olhos. — Esse é nosso maior problema. Revolvi-me inquieta. — Por quê? — O Ente pode tudo, Lena. Destrói tudo o que vê e neste momento está com o olhar cravado em nós. Se apareceu em La Ciudad foi porque era o lugar mais tranquilo e despercebido para eles. Até a morte de Caín, estava completamente seguro de que desconheciam sua existência, mas seja como for, depois da aparição da Ordem de Alfeo não duvido que tenham descoberto o engano. Vão querer remendar antes que corra o boato. — Engano? Está se referindo a mim? Que eu não devia estar aqui? — Sim. — E portanto, a você também... Ele se aproximou e se sentou ao meu lado.
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— Este lugar é como La Ciudad, muito inativo para atrair a atenção deles. Podemos enfrentar a Ordem, Lena, mas não o Ente. — E o que posso fazer? — Manter-se a salvo. — Soltou com total seriedade. — Não faça nenhuma loucura. Duvido que tenham sido eles, mas devemos ser precavidos. Torci o gesto. — Se não era Lisange, por que alguém tentaria nos fazer pensar que era? E quem faria isso? — Isso é algo a mais que devo averiguar. — Quero que me diga a verdade. O que está acontecendo? — Não vou permitir que ninguém lhe faça mal. Isso é a única coisa que posso lhe dizer. Desejava tanto poder ajudar, ser capaz de perceber se o perigo estava perto antes de tê-lo em cima. — Não é justo que me afaste disso. Eu também quero saber se eles estão bem. — Ele afastou uma mecha de cabelo do meu rosto. — Eu apenas me preocupo com você; o resto do mundo pode apodrecer, se assim o desejar. — Está mentindo. Sei que se preocupa com Lisange. Você não acredita, mas eu sei que não é como diz ser. Ele ficou em silêncio. Esperava que ele negasse, mas não o fez. Sem dizer nada mais me deitei na cama e lhe dei as costas. Durante alguns minutos ele não fez nada, mas então, senti o braço dele rodeando minha cintura e a voz junto ao meu ouvido. — Você é a única que ocupa meus pensamentos. — Sussurrou. — Por que sempre temos que fazer as coisas do seu jeito? Por acaso o que eu quero não importa?
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— O que você quer é irracional. Tenho um pouco mais de experiência que você, Lena. Entendo sua frustração, mas voltarmos juntos apenas nos deixaria mais vulneráveis. Essa frase foi o suficiente para me fazer lembrar o meu sonho, as palavras de Helga e Valentine, e um de meus mais profundos medos. Eu era um perigo para ele, e também para todos os outros. — Oxalá não tivesse que depender sempre da proteção de alguém. Se eu pudesse me defender por mim mesma… — Você ainda é jovem. — Para que? A idade aqui não serve de nada. — Normalmente ninguém aprende a se defender até que passe a primeira década. Virei-me para ele. — Normalmente, aqueles que são como eu, não são perseguidos por um grupo de sádicos guardiões antes de completar um ano. — Não quero que se veja obrigada a lutar, a que perca a inocência ao acabar com alguém. — Inclusive havendo o risco de que eles acabem comigo? Ou… Com você? — Ninguém voltará a lhe machucar, isso eu lhe garanto. — Não é isso que eu quero. Não quero ter que viver preocupada, temendo o tempo todo que possa acontecer alguma coisa com você. — Nem eu quero que você tente me salvar, Lena, porque você já faz isso. — Baixei o olhar, abatida. — Mas se isso a faz se sentir mais segura. — Continuou. — Vou lhe ensinar algumas coisas quando retornar. Voltei a erguer os olhos para ele, mas em vez de contemplar seu belo rosto, só consegui ver a mortiça máscara de pedra do meu sonho. Eu era um perigo, e, por mais que me custasse assimilá-lo, se essa era a única maneira que tinha de
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protegê-lo de mim, então, devia retroceder um passo e deixá-lo partir. Abracei o corpo dele e apertei os lábios com força, desejando ser mais forte. Ele me estreitou contra o peito e nós dois contemplamos, em silêncio, a noite dando passagem ao novo dia.
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Amizades perigosas
Christian e eu caminhávamos abraçados pelo chão pavimentado da estreita rua. Vários metros mais atrás Gareth e Gaelle nos seguiam de mãos dadas. Quando chegamos junto ao carro, ele se virou para mim, colou a testa à minha e pegou meu rosto com as mãos. — Jure para mim que vai ficar bem. Jure que não vai sair daqui. — Não o olhei. — Lena! — Ele ergueu minha cabeça para me obrigar a olhar nos olhos dele. — Jure para mim! — Me disse com os dentes apertados. — Ou eu não vou me mexer daqui. — Não me peça isso! — Murmurei. — Sabe que não quero que vá sem mim. Ele suspirou e me abraçou. — Deixo-a com as únicas pessoas nas quais posso confiar agora. — Sussurrou contra o meu cabelo. — Prometa-me que vai se cuidar para que nada lhe aconteça. Christian apertou os lábios, apertou ainda mais a testa à minha e soltou meu rosto para pegar minhas mãos e levá-las à boca. — É tudo que me importa. — Beijou-as com força. — Só lhe peço que continue aqui até eu voltar.
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Soltou-as lentamente e se afastou. Nesse preciso momento em que a pele dele deixou de fazer contato com a minha, senti como se toda a vida em mim se esvaísse. Uma força brotou dentro de mim, desejando gritar-lhe que ficasse, mas eu o queria muito; o suficiente para permitir que se afastasse, se isso o mantivesse a salvo de mim. Isso era, na realidade, a única coisa boa que eu podia fazer por ele. Gaelle se despediu de Christian e depois rodeou meus ombros com um braço, suponho que tentando me reconfortar. Gareth lhe dedicou um aperto de mãos e uma palmada nas costas. — Ela ficará bem conosco. — Tranquilizou-o. — Cuide-se. De repente, algo bateu em mim com força e abriu caminho para chegar até Christian. Não demorei nem um segundo para distinguir uma pequena cabecinha loira sobre um corpo que se aferrou com demência a ele. — Não se vá! — Suplicou a vozinha. — Não me deixe de novo! — Tem… — Christian estava tenso, mas se ajoelhou até ficar à altura da menina. — Será por alguns dias apenas. Esperava que julgasse desnecessária essa despedida. Ambos sabemos que sou bom. — O melhor! — Ela corrigiu e ele sorriu. — Então, lembre-se disso. Não tem com que se preocupar. — Mas vai… Está indo embora por causa dela! — Os olhos de Christian se desviaram para mim, que contemplava a cena incômoda. — Vou porque é o que devo fazer. — Que ódio! — Gritou. — Você vai protegê-la. — A voz dele ficou muito mais severa. — Se causar algum machucado a ela, vai machucar a mim. — Vai deixar de gostar de mim se o fizer? — Murmurou com voz magoada.
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Ele inspirou forte e colocou uma mecha de cabelo para trás da orelha dela, de forma paternal. — Se alguma coisa acontecer a ela, eu vou voltar e acabar com você. — Ela abaixou a cabeça, abatida. Eu o olhei, incrédula, como podia falar com ela assim, com tanta crueldade? — Ficou claro, Valentine? — Assentiu zangada e se afastou dele até ficar perto de Gareth. Christian voltou a ficar em pé, ergueu-se e contemplou a nós quatro. — Acabaram-se os sentimentalismos. Voltem, a noite está caindo. Observou-me uma última vez e sem dizer mais nada, deu meia volta e foi até o carro. Não me deu nenhuma outra olhada, nem pronunciou nenhuma só palavra, entrou no veículo, ligou o motor e desapareceu. Assim. Eu fiquei ali, contemplando a esteira de pó que se levantara e se dispersava, desvanecendo-se no ar. — Se eu fosse você, não voltaria a dormir no que lhe resta de eternidade. O que não é muito. Baixei o olhar. Valentine também ficou cravada onde estava, com os olhos cravados no horizonte. — Sei o que viu. — Virou-se para mim. — Viu que eu matava Christian. Diga-me como posso evitar isso. Eu faço qualquer coisa. — Por que deixar nas mãos de um caçador aquilo que é trabalho de um grande predador? — Para minha surpresa, sorriu. — Eu farejo seu medo. Você vai atrair todos os predadores deste lugar. Não seria uma lástima se a encontrassem e que Christian não estivesse aqui para protegê-la? Gaelle nos chamou da porta. Valentine deu a volta e retornou saltitando. Eu fiquei ali, como uma estátua, pensando nas palavras daquela menina. Um minuto mais tarde, a mulher voltou a me chamar e tive que voltar. Por sorte, nenhum deles disse nada, permitiram que eu subisse para o meu quarto e me
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trancasse lá. Caída na cama, com o travesseiro apertado contra o peito e o olhar perdido na pequena fresta de céu que via pela janela, tentava, com todas as minhas forças, não me perguntar a mim mesma se tinha feito o correto ao deixálo correr diretamente para a boca do lobo. — Foi muito nobre da sua parte. — Disse uma voz da janela. Levantei os olhos, alarmada, e, ali, na janela, vislumbrei uma silhueta recortada contra a escassa luz da rua. Não precisei de mais nada para ver quem era, os batimentos do coração dele, a voz e o cheiro me bastaram para reconhecêlo. Como era possível que não tivesse percebido antes? Levantei-me da cama de um salto e retrocedi até grudar as costas à porta. — Eu posso gritar! — Adverti. — E ninguém chegaria a tempo. — Ele respondeu. Fechei o punho em torno do respaldo de madeira da cadeira que tinha ao lado, para me assegurar de que tinha algo com o que me defender. — Solte isso. — Disse. — Seria uma autêntica lástima desperdiçar tão belo mobiliário em uma causa perdida. Não lhe dei atenção, fiquei ali, imóvel. Ele entrou ainda mais no quarto e se sentou na poltrona, cruzando as mãos diante do rosto. — Como me encontrou? — Quando as pessoas fogem, deixam um rastro ainda maior do que em situações normais. — E o que você quer? Estalou a língua. — Está sendo muito injusta comigo, Lena De Cote. A única coisa que fiz foi reconhecer o valor da sua decisão. — O que quer dizer? — Entreabri os olhos. — Falo de aceitar que ele se afastasse de você.
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—É apenas temporário. — Estava a par do que eles pensavam sobre minha relação com Christian. Ele ficou em pé e se aproximou de mim. Conforme avançava, os traços do rosto dele ficavam cada vez mais nítidos. — Posso perguntar o que vai fazer quando ele voltar? — Não. — As histórias que tinham chegado aos meus ouvidos referentes a ele eram as mesmas a respeito de Christian, mas com Hernan Dubois, tudo o que tinham me advertido me parecia pouco. Não sabia o que ia fazer, mas se soubesse, jamais diria. Hernan riu forte, como se tivesse escutado meus pensamentos. Tateando com os dedos consegui chegar ao trinco da porta. Em um movimento rápido, abri-a e me dispus a sair, mas antes que pudesse sequer dar um passo, a madeira se chocou contra o marco diante do meu rosto estupefato, e uma mão cobriu bruscamente minha boca, empurrando minha cabeça para trás e colando meu corpo contra o dele. — Muita consideração da sua parte querer me oferecer a todo esse clã para meu próprio deleite, mas quer saber? Hoje não vim para me divertir, embora fique tentado por algo assim, mas lhe asseguro que vou obrigá-la a contemplar enquanto acabo com eles, um a um. Eu não gosto que ponham em dúvida minhas intenções, ficou claro? — Todo meu corpo se retorcia de pavor naquele momento, ao sentir a pele dele contra a minha. — Lena… — Cantarolou com voz aveludada. — Se tiver a bondade, responda quando eu lhe fizer uma pergunta. Assim vamos nos dar melhor. — Assenti devagar com a cabeça. — Boa garota! — Silvou junto ao meu ouvido, mas não me soltou. — Interessante... — Sussurrou de repente, sobressaltando-me. — Tão doce e ingênua, tão… — Eu o ouvi inspirar contra o meu cabelo. — Inocente. Creio que subestimei todo este tempo o estranho gosto do meu irmão. — Liberou
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lentamente minha boca. Eu inclinei a cabeça, mas ele se aproximou ainda mais da minha orelha e, com voz lenta e melodiosa, sussurrou contra o meu pescoço. — Não sabe o quanto desfrutaria fazendo-a ver o lado cruel deste mundo. — Pousou as mãos sobre os meus ombros. Esse contato provocou um calafrio por todo meu corpo. — Quanto você acredita que meu amado irmão estaria disposto a dar para evitar que eu a corrompesse? — Inclinei o rosto, de modo que ficamos cara a cara, a menos de um palmo de distância. — Sei que esse é o seu maior temor. — Confessou. — Que você se corrompa; seja por sua culpa, pela minha ou pela de qualquer outro. — Isso não é da sua conta! — Balbuciei. — Conheço mais segredos dele do que jamais poderia imaginar. Coisas que a assustariam muito mais que o meu toque. — Não me interessa! — Sussurrei. — Menina tola… — O que você quer de mim? Estalou a língua de novo e sorriu. — Enganou-se de novo quanto às minhas intenções. Não quero nada de você, vim para ajudá-los. —Ajudar-nos? — Não me incomodei em esconder o tom confuso na voz. — Ajudar Christian e você. — Não sou tão inocente para acreditar nisso. — Olhei-o suspicaz. — Eu sempre falo a verdade, Lena De Cote. Sei por que você o afastou, conheço seu medo. — Eu não o afastei, ele partiu por causa de Lisan... — Parei. Não tinha certeza sobre o quanto devia contar, embora imaginasse que Elora e Lester já tivessem dito.
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— Lisange... — Riu. — Eu não me preocuparia com ela. Embora mereça tudo o que lhe aconteça. Aquela caçadora. — Pronunciou esta última palavra com ironia. — Jamais se deixaria decapitar. Foi tudo arrumado só como uma brincadeira de bom gosto para lhes dar as boas-vindas a este lugar. — Seria muito retorcido. — E isso é incomum? — Sorriu. — Da mesma forma, não vim aqui esta noite para tratar de assuntos de tal trivialidade. Sei o que pediu a Christian; eu posso ajudar você. — Não sei do que está falando. — Não me lembrava de nada naquele momento, exceto a imagem daquela cabeça sob a chuva. Christian tampouco acreditava que fosse ela. Seria verdade? Será que Lisange continuava viva? — Posso ensiná-la a enfrentar o que a persegue. Posso ajudá-la a se defender, a não ser nunca mais o membro fraco. Estou falando de começar a ser útil para evitar, acima de tudo, que meu irmão morra ao protegê-la. Fiquei gelada, ele também pensava que Christian morreria por mim? — Por que você ia querer me ajudar? — Nenhum grande predador deve morrer por proteger um caçador, e não posso tolerar semelhante vergonha em um dos nossos. Levei anos velando por aquele néscio, não vou permitir que ele caia em tal desonra por alguém como você. — Pouco a pouco, todo o temor que me invadia foi se transformando em desprezo, misturado à humilhação, pela forma como ele estava se referindo a mim. Dirigi-lhe o olhar mais duro que fui capaz de canalizar. — Como vê, nós três saímos beneficiados. — Não acredito em você! — Insisti. — Sabe que ele nunca vai levá-la ao limite para aprender o que você realmente precisa. Sei que você gosta de acordos, mas se atrever-se a me
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enganar, conhecerá na própria carne o que é vingança. — Dito isto, afastou-se de mim. — Voltaremos a nos ver. Pisquei e um segundo mais tarde, Hernan já não estava mais ali. Nesse momento, alguém bateu na porta. Pulei de susto. — Lena, está tudo bem? — Abri a porta com cuidado e ali no corredor, estava Gaelle. Nas mãos trazia um pequeno montinho de roupas. Limpei a garganta antes de responder, mas não consegui dizer nada. Levei a mão à têmpora, interiorizando o que acabara de acontecer. — Subi para lhe trazer isto. Comprei uma coisa para você e supus que teria que fazer alguns ajustes. Não é muito alta e não ficaria bem que ficasse grande. Lisange nunca teria deixado que eu vestisse aquilo, mas era só um detalhe da parte dela. Pensar nela me encolheu o estômago. Gaelle deve ter interpretado meu gesto dolorido como desgosto, porque acrescentou: — Nas aulas normais pode vestir o que quiser, mas não acredito que queira fazer esporte com essa roupa que está vestindo agora. — Aulas normais? — A frase tinha captado toda minha atenção. Ela deixou a pilha na cadeira, junto à porta. Senti que farejava um pouco o ar. — O instituto. Começa daqui a poucos dias. — Revelou. — As aulas recém terminaram. — Aleguei incrédula, até me deu vontade de rir de tão absurda que era a ideia. — No lugar onde você vivia antes, sim, mas aqui, receio que não. — Gaelle... — Eu disse, tentando soar amável. — Agradeço-lhe por tudo, mas não vou. — Como não vai? — Enrijeceu, esquecendo-se do irresistível cheiro que tinha captado, e se virou para mim. — É obvio que você vai, educação é uma coisa muito importante. — Do que me vai servir agora?
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— Ser o que é não lhe brinda nenhuma desculpa. — O que? Estar morta? — Ela fez uma careta. — Nesta casa nunca nos referimos a nós mesmos desse modo e lhe agradeceria que não repetisse isso, muito menos em nossa presença. Respirei fundo tentando me tranquilizar. — Não, não podem me obrigar. Lisange… Christian… — Qual é exatamente o seu plano, então? Passar o dia encerrada neste quarto até que ele volte? Por desgraça, Lisange não será a única a perder nesta existência e não pode pretender que o mundo pare de girar porque um homem a deixou sozinha por alguns dias. — Que espécie de monstro é você? — Soltei do mais profundo da alma. — O mesmo que você, jovenzinha, nem mais nem menos, mas com muito mais experiência e por isso lhe digo que deve se adaptar aos humanos. Isso se quiser sobreviver entre eles. — Nem sequer sei me controlar bem ainda, poderia usar mais força do que a devida ou me alimentar sem querer de algum deles e nos expor a todos. — Então já está na hora de aprender. Deve voltar a se comportar como um ser humano. — Não sou como eles e nunca mais serei! — Não vamos discutir, Lena. Se Valentine, como a grande predadora que é, conseguiu, você também conseguirá. É apenas temporário. Acredite ou não, isto é pelo seu bem. Vai ajudá-la a não pensar em tudo que está acontecendo. Christian e os De Cote estavam de acordo conosco. — Deu meia volta e se afastou, mas no último momento, quando ia fechar a porta, virou-se, avançou para mim e me beijou na face. — Boa noite, querida! Descanse, você está precisando. — Depois saiu, fechou a porta e voltou a me deixar sozinha.
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Em um único dia, Christian tinha partido, o grande predador mais perigoso que se conhecia tinha me abordado para me propor um estágio avançado de autodefesa e indiretamente, tinham me informado de que estava obrigada a frequentar aulas e não só isso, mas que estas começariam em dois dias. Dois! Como eu iria enfrentar tudo aquilo? Como ia conseguir andar entre eles sendo o que eu era? Sempre pendente de não me deixar levar, sempre tentando ser consciente de que eles eram a presa e eu o predador. Como eu ia viver uma mentira? Só podia pensar na quantidade de olhos que me observariam, todos eles possíveis testemunhas de qualquer imprudência minha, e, ao mínimo descuido… Suponho que é ruim pensar assim deles, porque não fazia muito tempo eu pertencia a esse mundo, mas a verdade é que os seres humanos não têm fama de serem pormenorizados com as coisas que não entendem. Primeiro condenam, e depois, talvez uns dois séculos mais tarde, pensam. A história está infestada de provas. Não queria nem pensar no que poderiam fazer se soubessem que há seres capazes de lhes absorver os sentimentos, as emoções. Duvidava que entendessem o tema do equilíbrio, porque a verdade é que não se trata de algo fácil de assimilar, nem eu mesma entendia! Mas eu tive escolha? Christian voltaria dentro de poucos dias. Talvez pudesse aguentar até a volta dele. Tinha certeza de que ele, longe de apoiar essa loucura, enumeraria até não poder mais os mil e um riscos que supõe algo assim para as pessoas normais, e, já que estou falando de Christian, para minha própria pessoa. Ele tendia a exagerar sempre essa última parte. De modo que minha única opção era aguentar e esperar. Mas, por outro lado, sabia o que seria para mim assim que ele retornasse. As imagens daquele pesadelo voltaram à minha cabeça intercaladas com um rosto… O rosto de Hernan.
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Retorno ao Instituto
Sentia a chuva cair sobre minha pele, mas não em mim mesma. Avançava sem caminhar. Tudo dava voltas e mais voltas. Meus olhos não focavam. Estava escuro e algo parecido a brilhos envolvia aquilo que me rodeava. Ao longe divisei uma sombra no chão, sobre um atoleiro. Parecia inerte, ou, pelo menos, não se mexia. Tentei me aproximar para vê-lo melhor, mas então, descobri que não conseguia avançar. Um repentino medo começou a me sacudir por dentro. Quis gritar, mas era incapaz de emitir som algum. Então, vi algo mais, uma figura esfumaçada e ajoelhada ao lado, rígida e irreconhecível. O medo bateu em mim com mais violência e eu quis fugir dali, mas de repente, a figura ergueu o rosto escuro para mim e todo o meu corpo se retorceu de pavor. E vi que aqueles imensos, irreconhecíveis e tenebrosos olhos, estavam cravados diretamente em mim. Despertei sentada no meio da cama no quarto às escuras, rígida e assustada. O pânico percorria meu corpo sem saber por que. Sentia uma intensa e aguda dor no peito e todos os meus músculos se contraíam com força. Girei os olhos ao meu redor. A vela se apagara e pela janela se filtravam já os primeiros raios de luz. Pouco a pouco voltei a respirar. Tudo tinha sido um sonho. Estava na casa, segura e nada turvava a tranquilidade da “noite”. Puxei uma grande golfada de ar e recostei-me contra o travesseiro, abraçando as mantas e com o
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olhar perdido. Se pelo menos Christian estivesse ali… Ele acabara de partir e já me parecia impossível suportar a ausência dele. Tremi ao recordar seus braços rodeando meu corpo, a voz sussurrando ao meu ouvido que ele me protegeria de tudo… Aqueles dias, até o retorno dele, seriam uma eternidade. Um sentimento de solidão me invadiu e me angustiou. Christian tinha… — Lena! — Então Gaelle gritou do andar de baixo. — Está na hora de se levantar, vamos chegar tarde. Virei-me na cama e bufei. Havia centenas, inclusive milhares de razões para considerar um perigo aquela absurda ideia de Gaelle. Mas de nada me serviram aqueles dois últimos dias tentando convencê-la, insistindo nos riscos e no fato de que eu não estava disposta a confrontar uma vida normal, simplesmente porque já não o era. Era injusto e irracional, depois de tudo o que tinha acontecido, ter que acrescentar outra preocupação a mais. A única coisa que eu queria era me plantar junto à porta e esperar que Lisange, Christian e Liam aparecessem, a salvo e em paz. De fato, jamais teria acesso se não fosse por Gareth. Não tinha tido tempo de me dar conta do quanto sentia saudades de Flávio até aquele momento e Gareth era o mais parecido a ele que poderia encontrar em qualquer lugar. De todos eles, era com ele que me sentia mais tranquila. Gaelle me punha nervosa e Valentine… Soava covarde que uma menina que aparentava sete anos me assustasse, mas tinha certeza de que ela era tão inocente e frágil quanto eu era independente, segura ou valente, quer dizer, absolutamente nada. Mas Gareth não, ele parecia ter sempre um minuto para mim. No dia anterior, compadecido de mim, tinha entrado no meu quarto e me convenceu a tentar e tinha me dado um valioso conselho para suportar os que moravam naquele lugar: “passar despercebida”.
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E, duas horas mais tarde, o temido primeiro dia tinha chegado. De nada servia tentar atrasar o momento, embora vadiasse na cama até levar Gaelle, virtualmente, à histeria. Não tive muito trabalho para descobrir que era do tipo de pessoa que adora ter tudo bem planejado e meu absoluto desinteresse em participar de forma ativa ameaçava aquela sua manhã com elaborado plano da jornada. O primeiro dia de aula parecia um evento de vital importância para ela, apesar do curso já ter começado. Minha estratégia era me negar a seguir o horário com a esperança de que desistisse, mas em seguida, decidi que era uma postura muito infantil, e por azar do destino, senti que, se quisesse que todo mundo estivesse bem, devia colaborar. Então me levantei para começar a me preparar. Aquele povoado não era grande o bastante para ter nem sequer um pequeno colégio, então devíamos atravessar o prado e ir até a outra cidade. Por aqueles dias descobri também que nem Gareth nem Gaelle trabalhavam. Ele havia optado por semear cevada no campo que havia atrás da casa e se dedicava exclusivamente ao seu cuidado e Gaelle cozinhava e doava comida a um centro próximo. A procedência do dinheiro com o qual sobreviviam era um mistério, como de hábito. Gareth levou Valentine e a mim ante a mesma porta do centro. O colégio de Valentine era um edifício antigo e elegante e a julgar pelo aspecto e pelo uniforme que usavam (chapéu, inclusive), caro. Os terrenos se limitavam com os do instituto, mais moderno, pequeno e sem dúvida, muito mais acessível em nível econômico. Gareth se despediu e se foi e então, durante um momento ficamos as duas sozinhas ali, paradas. Não sabia muito bem o que fazer, deixá-la ali e partir? Isso seria uma crueldade, levando-se em conta o estado dela. Não me esqueci de todas as ameaças que ela fez, nem da nossa última conversa, mas me sentia no dever moral de ajudá-la. Talvez não pudesse encontrar o caminho sozinha...
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— Quer que a acompanhe? — Ofereci-me em uma tentativa, incômoda, de ser amável. Ela se virou para mim e me deu de presente um amplo sorriso, claro e sincero, próprio de uma menina de verdade. — Sei o caminho de cor. — Respondeu com voz doce e inocente. — Você está nervosa, prefere que eu a acompanhe? Olhei-a sem compreender, estava sendo agradável comigo? — Já não me odeia? — Vi sua morte. — Deu de ombros. — Não vou ter que fingir por muito tempo. Nem sequer terei que matá-la eu mesma. — O que você disse? — Minha voz soou angustiada. Fiquei cravada no lugar. — Logo ele voltará a ser o que era e tudo será como antes. — Deu um pequeno pulinho para recolocar a mochila. — Adeus! — Deu meia volta e pôs-se a correr, roçando com a mão a elaborada grade negra do centro, mas não tinha dado nem três passos quando acrescentou: — Oh! Eu me esqueci. — Virou-se para mim. — Vai doer. — Riu e tornou a correr, afastando-se pela rua e me deixando petrificada. “Ela está mentindo!” Eu disse a mim mesma. “Ela só quer torturar você um pouco mais.” Nesse momento comecei a ouvir o barulho de pessoas, então respirei fundo e fui para a entrada. Embora fosse menor que o colégio contíguo, continuava sendo bastante grande. Era construído de tijolo branco até a altura de dois andares e o rodeava um grande pátio com várias pistas de esporte. Ao entrar me vi em um enorme corredor abarrotado de gente; garotos e garotas parecendo despreocupados, dezenas de corações batendo com violência os meus sentidos. Não me lembrava de ter visto tantas pessoas reunidas. Tentei retroceder para sair dali, mas um
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grupo de estudantes entrou parecendo uma bola e ao me adiantar, um deles bateu no meu ombro, lançando-me deliberadamente para frente. Não caí, por sorte, pois se assim fosse, teria saído correndo para me esconder no primeiro lugar que encontrasse. O fato de ter morrido e de viver uma existência um pouco precária não significava que o primeiro dia de aula não me intimidasse. Não passou muito tempo desde que entrei ali até que descobri que tinha razão; era como se algo lhes advertisse de que eu era diferente. Avancei com acanhamento pelo corredor, tentando não me perguntar a mim mesma o que teria sido capaz de evitar todos aqueles olhares e comentários que, sem dúvida eu ouvia. Aquele negócio de tentar parecer uma adolescente normal ia resultar muito mais complicado sem Lisange… Esse pensamento me fez cambalear; queria acreditar em Christian e em Hernan, queria acreditar que não era verdade, mas isso não fazia desaparecer o medo de que ele tivesse mentido e que ela realmente estivesse… Estivesse… Não, sacudi a cabeça e rechacei a ideia, respirei fundo e procurei me concentrar no que tinha pela frente. Gaelle tivera a gentileza de guardar uma cópia do horário entre as minhas coisas. O mais seguro era que tivesse imaginado que inclusive a secretária me olharia da mesma forma que os outros. Teria entendido perfeitamente que Christian ou Lisange atraíssem toda aquela atenção, mas eu não parecia diferente do resto dos alunos que cruzavam por mim. Embora fosse possível que seu instinto de sobrevivência os advertisse sobre mim. Em todo caso, faziam bem. Eu continuava pensando que não era boa ideia me misturar com tanta gente; o que eu menos queria naquele momento era fazer mal a alguém. Ainda me lembrava do que tinha acontecido em La Ciudad. Parei para respirar fundo antes de entrar na sala de aula. “Passar despercebida”, repeti para mim mesma, mas assim que entrei, foi como se todas as luzes se apagassem e incidisse um foco de luz sobre minha cabeça. Todos se
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viraram para mim, cochichando. Divisei um lugar livre, apesar de tudo, junto à porta traseira. Caminhei decidida para o fundo, ignorando os olhares, os dedos que me apontavam e sobre tudo, os cochichos. Dei uma olhada no relógio, ainda faltavam cinco minutos para começar a aula: cinco sofridos minutos por toda aquela atenção em torno de mim. Cobri os olhos com as mãos, começava a ficar enjoada: havia muitos cheiros e ruídos concentrados naquele cubículo. Respirei fundo e tentei pensar em Christian. Em ocasiões assim, a imagem dele tinha um efeito balsâmico sobre mim, embora agora parecesse provocar justamente o contrário. De repente, senti que alguém ocupava a mesa do lado. Ergui a vista. Era um rapaz; mas não me atrevi a olhá-lo tempo suficiente para analisá-lo. Sentia que, se me fixasse muito em alguém, ou se alguém me observasse muito, terminariam descobrindo que eu não era como eles. A única coisa que pude identificar nele era um gorro negro de lã que lhe cobria parte do rosto e o cheiro da loção corporal. — Bom dia! — Disse uma voz masculina, elevando-se sobre os cochichos. Gaelle tinha me assegurado que, para que ficasse mais fácil, tinha pedido expressamente não ter que me apresentar diante de toda a classe, mas mesmo assim me encolhi um pouco, temendo que o professor passasse esse detalhe por alto. — Espero que tenham desfrutado do fim de semana, porque hoje nos espera muito trabalho. — Os murmúrios foram se apagando. O homem, que devia ter seus cinquenta anos, manteve-se calado até que a classe voltou a prestar atenção. — Obrigado! — Disse com voz grave. — Como eu dizia, este é o último curso, assim chegou a hora de deixar de… Não conseguia me concentrar no que ele dizia, apesar de lhe agradecer pelo “silêncio” que tinha provocado. Tinha o escasso cabelo penteado para trás, as
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pálpebras ligeiramente cansadas, o nariz adunco e um pouco de papada. Me chamou muito a atenção o fato de que falava empinando a mandíbula inferior. Nesse momento, os olhos dele se cravaram nos meus enquanto continuava falando e pouco a pouco, a voz foi enfraquecendo, acompanhada por uma ligeira gagueira. — Esta... Esta semana… Esta… Senti medo, o medo dele, escondido sob uma frágil armação de autoridade. Ali havia insegurança, solidão, tristeza. Os sussurros me tiraram da minha concentração. As pessoas murmuravam e riam baixo. Ele parecia desconcertado, já não falava. Então, envergonhada e assustada ao mesmo tempo, baixei a vista para minha carteira. O professor continuou falando ainda um pouco perturbado, mas não voltou a me olhar durante todo o tempo que durou aquele interminável dia... Ao sair, estava cruzando a rua para voltar para a casa quando vi algo que me obrigou a parar. Era Valentine; aquele pequeno monstro falava ao pé do ouvido de uma mulher que eu também conhecia: Elora. Ambas sorriam e pareciam desfrutar do relato da menina. Não precisei me esforçar para adivinhar do que estavam falando. Tinha certeza de que estava lhe contando sobre a visão que tivera. Não sabia se devia acreditar nela. Talvez fosse verdade o ciúme, mas parecia muito feliz para ser apenas uma invenção. Em todo caso, vi Lester do outro lado da rua me vigiando e soube que estava na hora de partir. A última coisa que eu queria eram três grandes predadores ansiosos para acabar comigo rondando perto de mim. Embora Christian os tivesse deixado ali para me proteger, eu não pensava cair no engano de acreditar nele. Quando retornei a casa fiquei no pequeno jardim para fazer um balanço do primeiro dia: Valentine havia predito minha morte (dolorosa, por certo), tinha ganhado de mim o primeiro posto no pódio dos mais raros, e “atacado” o meu
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professor. Respirei fundo devagar e fechei os olhos, desejando estar em qualquer outro lugar. Entretanto, havia algo no qual lutava para não pensar naqueles dois últimos dias, desde que Christian se fora: a proposta de Hernan. Aquela proposta estava diretamente relacionada com as palavras de Valentine, e essas sim, eu não conseguia tirar da cabeça. Temia que Christian morresse por me proteger, esse era meu maior medo; e embora me desse certo pânico e um estranho sentimento de culpa só de considerar a oferta, tinha que reconhecer que o que ele tinha me proposto era justamente o que eu estava procurando. Talvez por essa razão eu tentasse evitar o assunto, por isso ou porque meu instinto suicida parecia entusiasmado com a ideia. Não conseguia evitar o fato de que, por fim, alguém se oferecia para me ajudar dessa maneira. Não lhe importaria dotar o treinamento de um realismo que nenhum dos De Cote, Christian ou os Johnson ofereceriam nunca. Ele não se incomodaria em me causar dano. De fato, o perigo que ele contribuía aumentava de forma considerável as possibilidades de que, afinal, aprendesse a enfrentar uma ameaça real. Embora, claro, o outro lado, aquele que só aparecia de vez em quando, aquele ao qual estava acostumado a chamar de instinto de sobrevivência, não era muito partidário de que aceitasse, sem mais aquela, a ajuda do “irmão” de Christian e não duvidava em gritar ou em agitar todas as minhas vísceras para me fazer ver a loucura de semelhante ideia. Era incapaz de culpar àquela diminuta parte razoável de mim mesma, mas devia reconhecer que era muito pequena para exercer suficiente influência na minha capacidade de decisão. — Eu disse para Gaelle que era inútil pôr bancos. Virei imediatamente, como se me tivessem surpreendido fazendo algo que não devia. Era Gareth e trazia um grande copo de água com gelo.
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— Sinto muito. — Desculpei-me, pondo-me de pé e limpando de forma nervosa as mãos na calça jeans. Ele se sentou perto do lugar que pouco antes eu ocupava, ao meu lado, então, relaxei um pouco e voltei a me sentar. — Que tal o primeiro dia? Como se sente? Era incrível que uma pessoa que passava a maior parte do dia trabalhando no campo tivesse aquele aspecto tão bem cuidado e elegante. Como era possível que não chamasse a atenção de ninguém? — Não muito normal. — Reconheci, erguendo as sobrancelhas a título de resignação. — É muito cedo ainda. — Vai demorar, isso é algo que deve estar ciente, mas mais cedo ou mais tarde, você vai agradecer. — Não estou tão certa disso. Hoje estive a ponto de me alimentar do meu professor. De fato, pode até ser que eu tenha chegado a fazê-lo. — Quando foi a última vez que você se alimentou? — Em La Ciudad. — Disse para mim mesma. Tinha certeza de que, se olhasse com atenção, encontraria aquelas horríveis manchas cinzentas sob a minha roupa. Hesitei por um instante, pensando no que tinha visto. — Ouça, Gareth… Valentine continua juntando-se com grandes predadores? — Faz anos que não. — Respondeu interessado, surpreso pela mudança de assunto. — Por que pergunta? — Porque eu a vi. — Hesitei. — Supõe-se que Elora e Lester estejam aqui para me proteger, mas eu os vi com ela. — Analisou-me com aqueles escuros olhos durante um instante. Tinha tentado soar despreocupada, mas não acredito que tenha atuado bem. — Agradeço-lhe que tenha me informado disso. Isso, na verdade, preocupa.
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— Não seria nada se eu não precisasse da proteção de alguém, se soubesse me defender por mim mesma… — Não se torture pensando nisso. Consta-me que Christian prometeu lhe ensinar a se defender. — Sorriu. — Como sabe? — Perguntei surpresa. — Ele pode ter mencionado antes de partir, para assegurar-se de que não cairíamos em tentação se você nos pedisse a mesma coisa. — Não me ensinariam? — Não seria uma ideia absurda? O que poderíamos lhe ensinar diante do que ele pode lhe instruir? — Riu. — Não se precipite, ele voltará dentro de pouco tempo e me consta que é um grande professor. Pensei imediatamente em Hernan. Gareth tinha razão, por que eu iria me expor a aceitar a ajuda dele se Christian iria me ensinar quando voltasse? Ele se estirou um pouco e contemplou o céu. Eu me concentrei na ponta das minhas sapatilhas, pensando. — Está um dia agradável. — Comentou. — Sim. — Respondi um pouco ausente. — E esta grama é incrível. — Gaelle cuida muito bem dela. — Sorriu. — Faz tempo que renunciou à ideia de nos manter afastados do gramado. Ela queria tê-lo perfeito, sempre, mas você vê, também eu adoro ficar aqui e ver acontecer a eternidade. — Riu para si mesmo. — É a única coisa viva dentro desta casa. É… O culto dela à vida, ou assim eu acreditei sempre. — Ofereceu-me o copo. — Pegue, pode tomar só os cubos de gelo, se quiser. — Sussurrou piscando um olho. Peguei o copo, mas o deixei de lado. — Você não parece tão obcecado quanto Gaelle com o assunto da normalidade. — É isso que você pensa? — Perguntou de forma amável.
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— Não sei. — Encolhi os ombros. — É mais uma sensação. — Gaelle é feliz assim, de modo que eu também. Somos todos tão felizes quanto podemos ser. — Esboçou um sorriso. — Nós nos alegramos muito de têla aqui. Algo se remexeu dentro de mim, um sentimento de culpa. — Ainda não agradeci vocês por me acolherem. Estão se arriscando por mim e nem sequer lhes disse obrigado. Isso não está certo. — Não procuramos agradecimentos, Lena, de fato, não queremos nada. Apenas a tranquilidade de ter tentado ajudar alguém. — Por quê? — Perguntei, olhando-o com renovado interesse. — Porque é o que eu estava acostumado a fazer em vida, suponho. — Você se dedicava a isso? A ajudar as pessoas? — É uma forma de se ver. Eu era pastor, não de ovelhas. — Riu. — Mas sim de pessoas. — E por que já não o é? — Nossa situação é complicada. Não poderia fazer sabendo que existe este tipo de vida. — Como alguém que fala do céu e da vida eterna pode acabar aqui? — Perguntei. — Sei que ainda há esperança… — Os caminhos do Senhor são inescrutáveis, mas temo ter perdido a fé. Todo meu mundo se desfez. Daí a dor e o ter acabado aqui. — Foi assim como...? — Oh, não, não. Assaltaram-me para roubar o que tínhamos arrecadado. Assim terminou tudo, ou começou. — Riu de forma amarga. — Eu ainda não sei nada de mim, de quem era ou de como acabei aqui. Tenho muito tempo para descobrir, uma eternidade. — Riu. Eu bufei.
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— Valentine me disse que viu como vou acabar, então, talvez não fique tanto tempo. Esperava que ele ficasse sério ou que fizesse alguma careta de espanto, mas ao invés, olhou-me de forma pormenorizada e ergueu um pouco a comissura dos lábios. Nesse momento, dei-me conta de que nas bochechas dele também se formavam umas covinhas, muito parecidas com as de Flávio. Talvez por isso me sentisse mais tranquila com ele do que com nenhum outro membro daquela família. — Valentine faz a mesma coisa cada vez que se zanga. Ela predisse o fim de Gaelle e o meu de formas diferentes. Para ela é um jogo, não deve levá-la em conta. Nunca se cumpriu nenhuma das predições dela. As autênticas sim. — Corrigiu. — Mas ela mente muito. — As autênticas? — Me mexi inquieta. — Uma ou duas vezes por século. — Quais, por exemplo? Ficou pensativo por um instante antes de responder. — Predisse que você viria. — E que acabaria com todos vocês, não é? Foi isso o que ela disse. — Aqui você está a salvo. Gaelle a trancou no quarto. Só pode sair quando você não estiver na casa, ou quando tiver alguém com ela, então, não deve se preocupar. — Beijou minha testa e se levantou. — Não fique aqui fora por muito tempo.
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Era uma vez um anjo chamado Jerome
Cheguei cedo. Não queria provocar outro encontro com Valentine. Tinha saído da casa antes mesmo que Gaelle tivesse oportunidade de colocar um daqueles “maravilhosos” cafés da manhã na minha mochila, então supus que era cedo, mas assim que pus o pé na sala de aula, descobri que já tinha gente ali. Três cabeças se viraram para mim, analisando-me de cima abaixo sem nem sequer se incomodarem em dissimular. Avancei sem saber muito bem onde olhar, enquanto eles observavam cada um dos meus movimentos, até que, finalmente, decidi dar marcha à ré e sair dali o quanto antes. Não tinha forças para entrar. Retrocedi até a metade do corredor e me afastei. Havia muita, muita gente andando de um lado para o outro, com mochilas, pastas e conversas alegres. A mistura de cheiros, loções de barba e demais produtos higiênicos me enjoaram mais do que eu nunca teria podido imaginar. Pisquei com força, contive a respiração e continuei quebrando aquela onda de gente. Não conhecia aquele lugar, mas tampouco importava. A única coisa que eu precisava era de um pouco de paz. Um lugar onde ninguém pudesse me olhar, nem me julgar. Dobrei uma esquina e encontrei uma porta dupla. Apoiei a orelha contra ela e escutei durante alguns segundos, mas não se ouvia nada que pudesse significar que ali dentro tinha alguém, assim, não pensei mais e entrei. Fechei a porta atrás de mim e me deixei cair no chão, contra ela, afundando a cabeça entre os braços.
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Nunca, nunca, nunca conseguiria me adaptar a toda aquela animação. Por que Gaelle não conseguia dar-se conta disso? — Dia difícil? Afastei as mãos que cobriam meus olhos para voltar de novo à realidade. Um par de enormes olhos verdes olhava-me com atenção. Era um rapaz, devia ter minha idade, mas era muito mais alto do que eu, ou talvez fosse apenas o fato de parecer enorme devido à minha posição, sentada no chão. A pele era perfeita, nariz aquilino e cabelo castanho muito claro, ao menos pela cor das sobrancelhas, porque o cabelo estava completamente coberto por um gorro de lã negra. Por algum motivo, parecia-me familiar. — Quer alguma coisa? — Perguntei-lhe com voz mais seca do que pretendia. — Se não me engano... — Deu de ombros. — É você quem acaba de entrar aqui. Procurei em volta e descobri que ali não era uma sala de aula. Tinha ido parar no teatro do instituto, escuro a essas alturas, e o rapaz que falava comigo estava vestido de… Anjo? Devia estar preparando algum tipo de peça teatral no momento em que eu tinha irrompido naquele lugar. Fiquei olhando-o por alguns segundos, analisando a estranha mistura de túnica branca, asas e gorro de lã negra. Sem contar o pequeno brinco prateado que atravessava um dos lados do generoso lábio inferior. — Sinto muito. — Murmurei pondo-me de pé imediatamente. — Não queria incomodar. — Você não incomodou. Até agora eu estava sozinho. — Sorriu e me estendeu a mão. — Sou Jerome. — Observei a mão com receio, sem aceitá-la. — Lena. — Respondi pendurando a mochila no ombro, repentinamente impaciente para sair daí.
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— Sim, eu sei. — Sabe? — Sento-me ao seu lado na sala de aula. — Isso explicava por que ele me parecia familiar. — Posso ajudá-la em algo? — Não. Tenho que ir. — Respondi. Levantei o olhar para ele. Parecia… ofendido por algo. — Não é pessoal. Eu não devia estar aqui e você não deveria falar comigo. — Apresentação resumida. — Riu. — Tenho certeza de que não lhe custará fazer amigos. — Muito amável. Saí dali aborrecida e incômoda. Ele era o tipo de gente com as quais Gaelle queria que eu me relacionasse? Entrei depressa no banheiro. Entrei em um dos compartimentos e tranquei a porta. Ato contínuo, soltei a mochila sobre a tampa da privada e me apoiei contra a parede. Respirei fundo algumas vezes e joguei a cabeça para trás, contra os ladrilhos esbranquiçados. Não podia. Era uma loucura… O que eu estava fazendo? Tinha que me conter para não sair correndo. Embora talvez fosse isso o que eu devia fazer; talvez, fugir dali fosse o mais sensato. No fim das contas, era a única coisa que eu fazia o tempo todo: fugir. Então, fiquei imóvel. Senti que meus ouvidos se afiavam involuntariamente. Ali ao lado, no compartimento contiguo, tinha alguém chorando. Não parecia uma garota, mas tinha certeza de que não tinha me enganado de porta. Prestei mais atenção. Os gemidos eram sufocados, mas muito comovedores, e destilavam uma dor que eu nunca tinha percebido antes em outra pessoa. Uma dor muito, muito grande… Quis me levantar e consolá-la, mas não fui capaz. Um formigamento começou a percorrer as polpas dos meus dedos. Sabia o que isso significava, mas não entendia, não fazia sentido. Nem sequer podia vê-la! Fechei os punhos com força para parar aquilo, mas a
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sensação aumentava e ia tomando conta de mim cada vez mais. Resvalei até cair no chão. Minha respiração começou a agitar-se enquanto um estranho bemestar começava a invadir meu corpo.
Ela soluçou com mais intensidade,
incrementando a dor. Podia ouvi-la chorar com total clareza. Então, o medo começou a me sacudir. Consegui reagir a duras penas, peguei a maçaneta e abri a porta com força, fazendo a madeira se chocar contra a parede. Naquele momento, quem estava ali, assustou-se e tudo ficou em silêncio. Confusa, pus-me de pé, cambaleando. Peguei a mochila e a pendurei no ombro, sem ter consciência do que estava fazendo. Conseguia apenas prestar atenção àquela outra porta. Ela tinha chorado; aquela humana tinha chorado! E eu podia ter-lhe feito mal! Debati em minha mente a possibilidade de comprovar se ela estava bem, mas então, ouvi alguém rasgar um pedaço de papel e assoar o nariz. Ainda preocupada, quis esperar que ela saísse, mas o pânico que percorreu meu corpo ante a possibilidade de que me visse foi muito maior, e, aterrorizada, saí depressa para o corredor. Ao invés de ir para a sala de aula, dei meia volta, saí dali e atravessei a cidade correndo sem parar até chegar à casa. — NÃO PENSO EM VOLTAR ÀQUELE LUGAR! — Gritei assim que entrei. Subi para o meu quarto como um furacão e fechei a porta com uma pancada, enquanto soltava minhas coisas sobre a colcha. — Lena? — Gareth perguntou, abrindo a porta em silêncio. Virei-me para ele, ia gritar lhe algo, estava furiosa comigo mesma, mas não consegui articular uma palavra sequer. Ao invés, caí sobre a cama. — O que aconteceu? — Perguntou com cautela. — Ataquei alguém. — Murmurei, tentando soar um pouco mais calma. — Explique-se.
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— Nem sequer consigo! — Exclamei me pondo de novo em pé. — Não sei como nem por que aconteceu. — Ele me contemplava esperando que eu lhe desse algum tipo de informação. — Eu estava no banheiro, havia alguém sofrendo, ou seja lá o que for e comecei a sentir que estava me alimentando dela. — O que foi que notou? — Você sabe! Bem-estar, misturado com a dor dela. O mesmo formigamento nos dedos… Não sei como aconteceu, porque eu nem sequer estava olhando para ela. — Não houve contato visual? — Não! — Repeti levando uma mão à têmpora. — Quanto tempo durou? — Não muito, acredito. Não seio certo. — Respondi impaciente, cobrindo o rosto com as mãos. — Tranquilize-se, essas coisas acontecem. Voltei para a cama. — Ela começou a chorar mais forte e eu me assustei. — Chorou enquanto você se alimentava? — Agora sim ele parecia preocupado. — Já estava chorando… — Isso é muito perigoso, Lena, você poderia ter cruzado a linha. — Eu sei! Por que pensa que não quero voltar para lá? — Repreendi, erguendo as mãos com desespero e contemplando-o com ansiedade. Ele se sentou ao meu lado e pôs a mão no meu ombro. O rosto dele estava carrancudo, mas tentava manter a calma. Me olhou por um instante, inspirou lentamente e respondeu de forma grave: — Foram dias muito difíceis para você, Lena. Você precisa descansar. — Limitou-se a dizer. — Procuraremos ir mais devagar.
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Dito isso, foi embora, sem mais nem menos. Não que eu esperasse que ele ficasse ali o resto do dia para ouvir eu me lamentar, mas eu teria gostado ao menos de um pouco mais de conversa. Não sei por que, talvez porque Gareth fosse o único ali com o qual eu sentia que podia falar com mais ou menos confiança. Não o conhecia muito, mas me dava a sensação de que ele era daquele tipo de pessoa que precisa de um tempo para processar as coisas antes de chegar a uma conclusão. Talvez fosse isso, então, que ele precisava agora: tempo. Ele não voltou a tocar no assunto, apenas me perguntou em umas duas ocasiões como eu estava, mas pelo que parecia, o que tinha acontecido tinha servido para assustá-lo o suficiente para permitir que eu ficasse em casa alguns dias, inclusive apesar dos protestos de Gaelle. Isso me ajudou bastante, em especial naquelas horas nas quais Valentine estava no colégio e eu podia me sentir mais ou menos tranquila e tentar descansar. Embora não fosse tão incrível nem tão relaxante como teria imaginado. O silêncio e todo aquele tempo com o qual eu contava de repente para pensar começavam a me acossar e a preocupação com os De Cote e agora também com Christian, impedia-me de fazer praticamente tudo. Passaram-se mais dias do que eu gostaria de me lembrar desde que tinha aparecido a cabeça de Lisange e que Christian tinha partido. Ele já devia ter retornado e pelo contrário, não tive notícia nenhuma dele. Sentia vontade de descumprir minha promessa e sair para procurá-lo, mas me sentia responsável. A mesma razão que me forçou a permitir que ele se fosse me impedia de abandonar aquela casa. Uma conhecida sensação gelada começou a assentar-se em meu estômago, a mesma que sentia a respeito dos De Cote, de modo que, após três dias me surpreendi por não me queixar, enquanto Gaelle insistia em que já era hora de voltar às aulas.
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Eu não gostava daquele lugar, obrigava-me a estar atenta ao que fazia a todo o momento e a temer a mim mesma, mas sabia que não poderia suportar mais tempo sozinha com meus pensamentos. Assim, quatro dias depois do meu dramático abandono, voltei àquele lugar chamado instituto. — Você voltou! — Exclamou uma voz à minha direita. — Você, outra vez? — Perguntei enquanto avançava pelo corredor em direção à sala de aula. — Tinha começado a perder toda esperança de voltar a vê-la. — A educação escolar é obrigatória em minha família. — Resmunguei. — 99% dos que aqui estão compartilham desse mesmo problema. — E você faz parte desse afortunado 1%? — Não, simplesmente eu gosto da dor. Está bem, ouça, não fui justo com você no outro dia. — Estou de acordo. — Aceito suas desculpas. — Como é? — Parei de repente e o olhei confusa. Ele passou a mão pela cabeça, sobre o gorro, com gesto nervoso, e se aproximou mais de mim. — Pense, ambos sabemos que um curso inteiro aqui, ou o que restar, sem ninguém com quem falar, pode ser um pesadelo. — E você veio para me resgatar? — Soltei de forma irônica, erguendo uma sobrancelha; ele não tinha nem ideia do que era viver um pesadelo. — Ofereço-lhe ajuda mútua. — Não tem amigos? Ele sorriu e avançou dois passos. — Tenha um bom dia, Helena. Meditei um instante e o segui.
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— Por que pensa que preciso da sua ajuda? — Passei a mochila de um ombro para o outro, incômoda. — Porque sou o único aqui que não deixa os seus cabelos eriçados. — Sussurrou e continuou andando. Enruguei o cenho e dei uma dissimulada olhada em volta. Muitos nos observavam. — É verdade? — Perguntei, alcançando-o. — Você é estranha, é nova e vive do outro lado do campo. Misture isso com uma conduta um tanto antissocial e terá o que todos pensam de você. Eu teria ficado encantada em lhe dizer que já tinham me colocado aquela etiqueta enquanto punha um pé dentro: dizer-lhe que ninguém se esforçou em tentar me conhecer, mas ao invés, decidi atacá-lo. O único que, na realidade, tinha se incomodado um pouco em fazê-lo. — E por que você é diferente? — Porque sinto curiosidade. — Curiosidade? — Repeti, rogando para que não me fizesse sentir como uma atração de circo. — Quero saber por que a garota mais bonita de todo o instituto não quer se aproximar de ninguém. Desviei um pouco o olhar, agradecendo por não poder me ruborizar. Isso tinha me flagrado totalmente despreparada. O sorriso dele me deixou congelada por um instante, lembrou-me muito de Christian. Talvez porque ambos erguessem mais uma comissura da boca do que a outra. — Tenho que ir. — Mas acabou de chegar! — Alegou enquanto me desviava em outra direção.
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— Vou estudar por conta própria. — Disse me virando para ele. Em seguida, dei-lhe as costas e continuei andando. — A gente se vê por aí! — Gritou-me, dando-se por vencido. Saí antes que o rapaz, que dizia se chamar Jerome, pudesse acrescentar algo mais. Havia algo desconcertante no efeito que tinha sobre mim. Definitivamente, eu precisava de Christian com desespero. — Chegou cedo. — Gaelle saudou assim que me ouviu entrar pela porta. Apareceu no pequeno pátio interior com um avental de bico um tanto puído sobre a roupa e uma luva para tirar coisas do forno em uma mão. — O que aconteceu? — Não estava me sentindo bem. — Não pode ir só quando estiver boa. — Reclamou de forma autoritária. — Você precisa ser responsável. — Tenho toda a eternidade para fazer o último ano do instituto. — Soltei minhas coisas sobre a mesa. — O fato de eu ter faltado às duas últimas aulas não é um drama. — Eu não gosto dessa atitude. — Disse, fincando as mãos nos quadris. Era estranho, queria discutir. Estava desejando discutir, mas não com ela, não com Gaelle, que, afinal de contas, tinha-me acolhido. Respirei fundo e baixei a olhar. — Sinto muito. — Menti, embora não fosse de todo falso: lamentava decepcioná-los, mas não queria me perder naquelas fascinantes horas de aula. Duvidava que alguém, em seu juízo perfeito, despertasse nessa nova vida para se graduar. Talvez Lisange, mas ela era… Bom, ela era Lisange. O nó na minha garganta voltou a formar-se com força. — Isso é cheiro de que? — Perguntei, tentando analisar o cheiro que percebia. — Fiz biscoitos. — Sorriu, esquecendo-se da discussão. — Quer um?
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— Não, obrigada! Gaelle passava o dia na cozinha tentando, sem êxito, fazer com que eu provasse alguma coisa. No entanto, eu ainda me lembrava dos meus primeiros dias na casa dos De Cote, quando, ignorando o que tinha acontecido comigo, havia tentado provar algo em mais de uma ocasião e o que acontecia depois não era nada agradável. Parecia-me incrível que eles aguentassem tudo aquilo para aparentar serem normais, inclusive na intimidade da própria casa. — Venha comigo até a cozinha, preciso de ajuda. Eu fui. Era a primeira vez que eu entrava ali. O lugar parecia bom, mas bem pequeno e muito acanhado. Como tinha imaginado não se tratava de uma cozinha elétrica, mas de uma bem antiga, no mais puro estilo “casinha de bonecas”, com forno acoplado ao fogão, móveis de madeira envelhecida e o desnecessário, mas onipresente, montão de manchinhas brancas pulverizadas, da despensa até as almofadas das cadeiras. Toda a peça estava, naquele momento, invadida por uma grande variedade de cestinhas de palha adornadas com elaborados panos coloridos e delas saía grande variedade de biscoitinhos assados recém-preparados. — Pegue. — Pôs na minha mão vários moldes de madeira. — Preciso que vá recortando-os. Respirei fundo, lavei as mãos e comecei a trabalhar. Os moldes eram originais, tinham formas divertidas e infantis. — Continua tentando me tentar? — Perguntei enquanto sentia como a massa se moldava de forma graciosa sob a pressão de um molde na forma de estrela. — Gosta de alguma?
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Pôs um biscoito recém assado bem debaixo do meu nariz. Um intenso cheiro de amêndoa torrada penetrou até meu cérebro. Tentei sorrir de forma amável e a afastei um pouco de mim. — Por que está fazendo tudo isto? — É o início do ano escolar. Sempre organizam uma reunião de pais para dar as boas-vindas. — Voltou a sorrir. — E este ano, finalmente, será aqui, na nossa casa! Estes biscoitos são os preferidos de Valentine. Ela não sentiu a repentina tensão do meu corpo. Aproximou-se de uma cestinha e foi colocando os biscoitos com um gesto e uma precisão surpreendentes. Realmente, apaixonava-a fazer aquilo, eu não tinha a menor dúvida. — Nesta casa? Não é arriscado? — Não, estamos há anos tratando com humanos. — Sorriu. — Ninguém suspeita da idade de Valentine? — Bom, ninguém se surpreende pelo fato de ela demorar mais tempo do que as outras crianças para terminar um curso. Dizem que tem déficit de atenção por causa da cegueira. — Deve ser mortal para ela ter que ficar lá ano após ano. — Valentine sabe o que é e o que lhe convém. — Gaelle tinha parado o trabalho para prestar toda atenção em mim. — Nunca foi tão feliz como agora. — Sentenciou. — Pelo menos até eu chegar. — Comentei e ela afastou os olhos de mim. Não tinha voltado a falar com ninguém sobre Valentine desde que Christian se fora, à exceção daquele pequeno comentário com Gareth. Decidi que era o momento de todos enfrentarem o assunto, ou, pelo menos, que deixassem de fingir que não sabiam o que tinha acontecido. — Ela acredita que vou matar Christian, que vou matar todos vocês.
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— Mentira dela. — Gareth disse da porta da cozinha, estava cheio de terra. — Já lhe disse que ela mente muito. Ele entrou, deu um beijo na bochecha de Gaelle e depositou outro em minha testa; pegou-me despreparada. Era uma postura tremendamente paternal em alguém a quem eu não conhecia tanto. — Não acredito que seja capaz de interpretar tão bem como o fez naquela noite. — Reconheci me concentrando na massa que tinha sob as mãos. — Christian deve ter falado para você do tempo que ele passou nesta casa e da boa relação com Valentine. — Gareth aventurou. — Quase nada. — Reconheci. — Ela o quer mais que a qualquer um e acredita que você o roubou dela. — Disse sem vacilar. — Isso não me faz sentir mais segura. — Não, mas ele falou com ela antes de partir. — Gaelle assegurou. — Por isso, pelo menos aceitou deixá-la aqui. Se ele acreditasse de verdade que você é uma ameaça, jamais o teria feito. Já teria matado você, Lena. Valentine é totalmente letal. — Para falar a verdade... — Gareth continuou, pegando a cesta que Gaelle tinha nas mãos e levando-a até a mesa. Ela saiu um instante pela porta do fundo para o descampado. — Creio que deviam fazer alguma coisa juntas para se conhecerem melhor. Por que você também não desce para a reunião desta noite? — Eu? — Perguntei como se tivessem me batido com uma frigideira na cara. — Essa ideia é maravilhosa, Gareth! — Gaelle felicitou, entrando de novo e com os olhos iluminados, de repente. — Fará com que ela veja que você se preocupa em se encaixar neste lugar. — Meu desconcerto deve ter se refletido no rosto, porque acrescentou. — Valentine tenta constantemente contentar essa
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família, mas você, pelo contrário, não parece interessada absolutamente e isso também deve irritá-la ainda mais. Faça com que ela acredite que você está se sacrificando por ela. — Não sei se estou preparada para isso. — Neguei com a cabeça. — Nunca saberá se continuar encerrada aqui dentro. — Gareth se sentou ao meu lado. — Sei que se preocupa pelo que me contou, mas eu acredito de verdade que você precisa disso, de se acostumar, já não mais por Valentine, mas por você mesma. Deixei-me cair sobre a cadeira e me apoiei contra o respaldo, suspirando enquanto tentava pensar a toda velocidade. — Tenho a sensação de que vou me arrepender. — Sussurrei para mim mesma. Me arrepender era dizer pouco. Para não aceitar, já estava tentando encontrar uma maneira de escapulir, mas por mais desculpa que inventasse em minha cabeça, não consegui encontrar nenhuma. Ao que parecia, era algo que eu teria que fazer. Minha nova missão era contentar uma menina de sete anos que me odiava até desejar acabar comigo, porque tinha certeza de que eu roubara Christian dela, ou pior, porque pensava que eu ia matá-lo. Não tinha acreditado nas palavras de Gareth e Gaelle. Ela não estava fingindo naquela noite, tinha visto nos olhos dela que todas as palavras que dissera eram verdadeiras, ou, pelo menos, ela acreditava que eram. Mas parecia que eu era a única que pensava assim, nem sequer Christian tinha considerado que ela era perigosa para mim. Eles estavam enganados, eu tinha certeza disso. Quem sabe se, de repente, ela ia querer abandonar seu propósito e adotar a natureza mais feroz de grande predadora para lançar-se de novo ao meu pescoço? Já o tinha feito uma vez. Não podia evitar me sentir vulnerável naquela casa. Pelo menos, enquanto Christian não estivesse ali, devia dormir com um olho aberto.
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Sobressaltou-me sentir o estômago um pouco pesado. Me sentia culpada por desejar com cada célula do meu corpo que ele voltasse. Tinha medo de que as palavras daquela menina fossem verdadeiras, mas devia reconhecer que eu tampouco estava preparada para confrontar um futuro sem ele. Tinha me precipitado, sim. Devia tê-lo convencido para que me levasse com ele. Essa teria sido a solução para uma boa parte dos meus problemas. Já não estava aguentando a impaciência e a impotência de não tê-lo ali e de não saber de nada. A única coisa que me consolava, se é que se pode dizer assim, era a dor que eu sentia ao recordá-lo inerte. Era mil vezes mais suportável sentir saudade dele sabendo que ele continuava em alguma parte, a salvo de mim, do que me arriscar a vê-lo desaparecer para sempre.
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Loucuras variadas
Tentava não pensar nisso, mas não podia negar. Contava os dias, as horas e os minutos que faziam desde que Christian se fora. Sentir falta dele parecia ter-se convertido em uma obsessão, da qual eu não era capaz de me desfazer. Não parava de me perguntar uma e outra vez se ele estaria em perigo ou se continuava com vida, além de temer a certeza de que não devia ter partido ou de que, pelo menos, eu devia ter insistido tanto que não lhe restasse mais remédio do que me deixar ir com ele. Tinha passado toda a tarde atirada na cama pensando em Christian e meu moral tinha terminado no chão. Continuava sem gostar nada daquela atuação teatral que teria que improvisar me apresentando na ditosa reunião, mas pelo menos, obrigou-me a levantar. Gaelle tinha deixado no quarto um vestido novo, mais ou menos moderno, mas ele tinha ficado na mesma posição em que ela o tinha deixado. Em vez disso, vesti jeans, uma camiseta normal e corriqueira e o cabelo solto, livre, em suaves ondas de ambos os lados do rosto. Nada do outro mundo, para variar. Assim que entrei, soube que Gaelle ficaria deprimida. Não parecia haver mais de cinco convidados e estava claro que a maioria tinha comparecido por obrigação. A tonelada de aperitivos que Gaelle tinha preparado estava virtualmente intacta e ninguém, exceto ela, parecia relaxada.
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Não muito longe de onde eu estava, vi Jerome. Tive que fazer um movimento merecedor de alguma medalha de contorcionismo profissional para evitar que me visse e fugi para outro lugar antes que tivesse que enfrentá-lo. Então, encontrei Valentine. Estava sentada em uma mesa, sem nenhuma criança em volta, mas com um pequeno coelho pardo com muito mau aspecto entre os braços. Acariciava-o com ternura enquanto mantinha os olhos perdidos em algum lugar do espaço. Ao seu lado, uma mulher falava com ela, encantada, sorrindo de maneira antinatural, mas ela não prestava atenção. Devia ter captado meu cheiro nem bem eu entrei, porque assim que meus olhos se centraram nela, inclinou a cabeça para mim e de forma apenas visível, esboçou um ligeiro sorriso. Meu corpo inteiro estremeceu. Ela era um claro exemplo de que tais gestos nem sempre são alentadores. Não, ela me ameaçava com cada pequeno movimento que me dedicava, embora eu fosse a única capaz de perceber. Duvidava muito de que a razão que tinha para me odiar tivesse a ver com a “adaptação”. Tinha plena certeza de que se devia à minha relação com Christian. De nada servia que ele estivesse agora fora do nosso campo visual, pois sentia que ela não conseguia parar de me ameaçar. Um pouco mais à direita encontrei Gaelle, que falava de forma animada com um grupo de garotas tão jovens quanto ela, embora fosse notório que esse não era o lugar dela. À primeira vista ela parecia mais uma universitária do que uma mãe de colégio, algo assim como uma adolescente um pouco defasada, mas estava claro que agia como uma perfeita mãe dos anos 50 e não parecia nada deprimida pela escassa assistência. Não pude evitar me surpreender ante a facilidade e soltura que desprendia seu comportamento. Era incrível ver até que ponto podia se misturar entre os humanos sem afetá-los. Notei uma pontada por dentro ao vê-la rodeada de gente, como se ainda continuasse viva e naquele
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momento, desejei me sentir como uma pessoa normal; foi como se de repente entendesse qual a razão por se esforçarem tanto por parecê-lo. Devia ser incrível estar ali, sem ter que se preocupar com a quantidade de emoções e de vozes que a golpeavam. Para mim era algo impossível. Acabava de entrar e já queria sair… Trinta minutos mais tarde, equilibrei-me sobre o vaso sanitário e vomitei. Gaelle me obrigara a comer e meu corpo lutava agora para expulsar as escassas duas azeitonas que me atrevera a ingerir. Puxei água do poço e enchi a pia com água fria. Me sentia péssima. Comer era uma experiência horrível. Como eles conseguiam fazer isso todos os dias? Até onde podia chegar a obsessão deles em parecerem normais? Afundei o rosto na água até me sentir melhor. Devia estar com os De Cote, eles eram normais. A espera estava ficando eterna. Tirei o rosto da água e ergui os olhos para o espelho, mas ao invés de encontrar meu reflexo, encontrei o de Valentine, que sorria. Não me deu tempo nem sequer de me virar e antes que eu pudesse mexer um só músculo, agarrou-me pelos cabelos e afundou minha cabeça de novo na água, batendo meu rosto contra o fundo da pia. Lutei para tentar me livrar dela e me aferrei como pude à mão dela para que ela se afastasse de mim, mas a força não cedeu. Engoli e respirei água. Meu corpo se retorceu de dor até que, por fim, ela me soltou. Caí no chão, dobrada, tossindo, convulsionando... Meu corpo se retorceu até que a última gota de água saiu do meu organismo. — Você está bem? — Perguntou com fingida inocência. — Você está louca! — Exclamei assim que pude voltar a respirar. — Bem-vinda à família. — Riu, deu meia volta e saiu saltitando. Fiquei ali, de cócoras, tentando serenar. Que diabos eu estava fazendo? Eu não devia estar ali, devia estar em La Ciudad. Era tão absurdo ter aceitado
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sem rodeios ficar ali. Apalpei os bolsos comprovando que levava o cartão de crédito e a identificação. Era tudo o que eu precisava para retornar. Desci de novo e atravessei a casa fugindo de Gaelle até que cheguei à rua. Tentando parar de sentir a dor física e a fraqueza que Valentine tinha provocado em mim e como ainda me obcecava o medo de voltar a me alimentar de humanos perto de mim de forma descontrolada, atravessei o campo e tentei encontrar alguma alma corrompida que pudesse me servir. O chute funcionou, de fato, muito mais do que esperava. Embrenhei-me pela avenida principal com a clara intenção de procurar um táxi ou um ônibus que me levasse até o aeroporto. Não conhecia o suficiente aquele lugar para me aventurar a ir correndo. A única coisa que me lembrava dos subúrbios era aquele poligonal abandonado. A procura de um táxi me levou até o próprio centro. Era tarde e a vida noturna já começava a surgir. Sem saber como, de repente me vi rodeada de gente que se chocava em mim ao passar, rindo, conversando em um volume mais alto do que o normal e de uma mistura de músicas de discoteca começou a atordoar meus sentidos. Eu me sentia enjoada, os cartazes luminosos me deslumbravam, os carros passavam depressa pela rua, e parecia que as pessoas gritavam no meu ouvido, e o cheiro se tornou insuportável. Meu corpo entrou em pânico, uma sensação claustrofóbica pressionava meu peito. Apertei o passo, já não me importava o táxi, só queria ir para um lugar tranquilo. Corri, chocando-me com as pessoas, sem me incomodar em me desculpar, nem com aqueles que gritavam coisas para mim. Avancei pelo que devia ser a rua mais larga da história e inclusive causei um pequeno alvoroço na rua ao cruzar desesperada para o outro lado, até que por fim cheguei a um lugar tranquilo onde as luzes deixaram de me perseguir e me encarapitei nos degraus de pedra cinzenta da escada de um antigo portal.
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Era cansativo. Estava tão enjoada que pensei que ia desmaiar. Fiquei sentada ali e cobri com demência os ouvidos com as mãos. O volume suavizou um pouco, mas continuava sendo maior do que eu estava acostumada. Era um zumbido espantoso, ia me deixar louca! — Pare… — Pedi em voz baixa. — Por favor, parem já com isso! — Você está bem? — Perguntou uma voz amortecida ao meu lado. Dei um pequeno tranco, abrindo os olhos de repente. Com todo aquele alvoroço não tinha podido sentir ninguém perto de mim. — Você? — Perguntei incômoda para o recém-chegado. — Não está com bom aspecto. — Comentou. — Obrigada pela sinceridade. — Voltei a cobrir os ouvidos. — Você está bem? — Repetiu. — O que faz aqui? — Eu a vi escapar da casa e não parecia nada bem. — Inclinei a cabeça para ele, receosa. Jerome pegou minhas mãos e as tirou dos meus ouvidos, pelo que parecia, para que eu pudesse escutá-lo. Como se fizesse falta… Todos aqueles sons voltaram de repente, muito mais intensos do que antes. — Você está gelada. — Comentou um pouco alarmado. — Quer minha jaqueta? — Estou bem. — Respondi me afastando um pouco, incômoda. — Como queira. — Olhou-me por um instante e continuou. — O caso é que pensava fugir deste lugar. Eu gostaria de ir até o bosque para preparar uma fogueira, é mais tranquilo, gostaria de vir comigo? — Hesitei, pensando a toda velocidade em todos os perigos que supunha algo assim e no atraso que seria para a minha missão de fuga. Por outro lado, um bosque soava muito tentador. Tão tranquilo, relaxante… — Já tenho planos. — Aleguei.
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— Correr pelas ruas no meio da noite é um plano? Não que eu queira pôr em dúvida a forma como você passa o tempo livre, mas não é a mais segura. — Observei-o cética. Por um lado, ele tinha razão: por muito que tivessem inspecionado a zona, não era muito seguro vagabundear por aquele lugar. Parecia que minha fuga teria que ser adiada até o dia seguinte. O que supunha ter que explicar para Gaelle por que havia desertado da fantástica reunião dela. Ela nunca, jamais iria tolerar aquilo se não pensasse que eu estava me relacionando com humanos. Se analisasse bem, podia sair por um tempo e voltar para casa pouco depois. Assim eu a despistaria. Ou tentar encontrar um táxi depois. — E então? — Insistiu ao ver que eu não respondia. — Tem algum tipo de intenção oculta? Soltou uma alegre gargalhada. Pegou-me tão de surpresa que quase me fez sorrir. — Não, é por pura compaixão, acredite. — Compaixão? — Arqueei uma sobrancelha. — Alguém deve resgatá-la do que pode ser a noite mais aborrecida da história deste lugar. Cada vez se esforçam mais em bater o próprio recorde. Não estou lhe oferecendo uma panaceia, claro, mas qualquer coisa que façamos será mil vezes mais divertida do que essa escada. Não que eu não desfrute ao compartilhar este… — Olhou em volta. — Acolhedor portal com você. Sem dúvida poderia ser perfeito, mas pode ser melhorado. O que me diz? Sopesei durante um instante as possibilidades e surpreendentemente, não demorei mais que dois segundos para me decidir. — Não vou ficar muito tempo. — Avisei. — Como você quiser. — Sorriu, ficou em pé e me estendeu a mão. — Vamos.
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Eu rejeitei a ajuda. Ele já tinha se dado conta uma vez da baixa temperatura da minha pele, não queria voltar a me arriscar. Ele notou e a retirou quase que imediatamente. Chegamos pouco depois ao bosque na caminhonete de Jerome. Não parecia muito afastado, o que era bom, levando-se em conta que eu não pensava ficar muito tempo e logo teria que voltar sozinha para casa com os perigos que isso implicava. Guardiões, grandes predadores, Gaelle ou pior Valentine. — Então... — Ele começou enquanto terminava de avivar o fogo. — É verdade que vive com aquela família do outro lado do campo? — Você os conhece? — Perguntei surpresa. — Os Johnson? Conheço a filha deles. Era companheira da irmã de Víctor, um amigo meu. — Ele informou. — Dizem que aquele povoado está encantado. — Comentou com ar de mistério. — Ninguém costuma ir lá. — É porque parece abandonado? — Perguntei. — Não. — Fez um gesto estranho com o rosto. — As pessoas voltam confusas daquele lugar. É como se entrassem em depressão. — Isso são tolices. — Aleguei um pouco nervosa. — Você parece bastante deprimida… — Isso é culpa sua, não por causa de alguns edifícios decadentes. — Ah, vá, começo a me sentir importante... — Sorriu. — Não comece. — Zombei. — Uma amiga disse que, quando era pequena, ouviu o irmão falar daquele lugar. Ele e os amigos se desafiavam a entrar lá e dizia que, quando eles voltavam, muitos passavam vários dias encerrados no quarto deles até voltarem a serem eles mesmos.
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Ouvi-lo falar sobre o que nós fazíamos me pareceu estranho e confuso. Sentia que tinha que estar em completo alerta para não revelar nada que tivesse que me arrepender depois, então eu decidi não falar muito. — Você confia em tudo o que seus amigos dizem? — Posso confiar no que você me disser, se preferir. Ri para mim mesma, mas de repente, pus-me em pé de um salto. Pareceu-me ver algo entre as árvores. Senti um forte golpe no peito, como uma grande alegria contida e uma vontade enorme de chorar. Não era algo, mas sim, alguém. — Você está bem? — Perguntou-me. — Sim. — Apressei-me a responder, afastando a contra gosto os olhos do lugar. — O fogo está me afligindo um pouco, vou passear por aí. Antes que ele pudesse dizer alguma coisa, ou sugerir me acompanhar, saí dali. Subi a pequena colina e me internei entre as árvores. Tudo ali em cima estava escuro e mais ainda conforme ia me internando no bosque. — Christian? — Sussurrei. — Christian? Parei para analisar o silêncio, mas não havia nada, nada fora do normal. Continuei entrando cada vez mais entre as árvores, procurando-o. Tinha certeza de que o tinha visto, mas ao cabo de alguns minutos, dei-me conta de que estava completamente só no coração do bosque. Ali não tinha nenhum Christian. — Está procurando algo? — Perguntou alguém às minhas costas. Virei-me sobressaltada e dei de cara com Jerome. — Pensei ter visto algo. — Desculpei-me. — Algo? Que tipo de “algo”? — Entrecerrou os olhos e me olhou suspicaz. — Nada. — Menti, dando de ombros. — Não sei. — A “festa” é do outro lado. — Informou.
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— Eu sei, mas penso que preciso ficar um tempo sozinha. — Sentei-me sobre um tronco caído e suspirei. Ele fez o mesmo. — Perdoe-me por lhe dizer, mas já não está bastante sozinha? Girei a cabeça para ele e o contemplei com o cenho franzido, por que tinha que ser tão sincero? — É… Difícil de dizer. — Quem sabe você não se sente à vontade comigo. — Não, não. — Sacudi a cabeça. — Você me salvou daquele lugar. — Então, não sou eu? — Embora me custe acreditar, não. — Sorri. — Sou apenas eu. — Girei os olhos. — Sempre sou eu. — Lamento que não seja feliz. — Estalou a língua. — Pensa que não sou feliz? — Olhei-o sem conseguir ocultar minha preocupação. — Vê-se a quilômetros de distância. — Por quê? — Isso só você sabe. — Sorriu de forma cortês. — E você se importa? — Entreabri um pouco os olhos. — É complicado. — Fez uma careta. — Entendo… — Inspirei lentamente. — Não quero que se ofenda, Jerome, mas os problemas que eu possa ter são apenas da minha conta. — Não pretendo te tirar isso, já carrego os meus, mas eu entendo. Ser novo e diferente é duro. Você está falando com alguém que trocou de instituto mais vezes do que pode se lembrar. Se puder ajudá-la, o farei encantado. Faz bem ter um amigo e a você parece fazer mais falta do que pensa. Meditei naquelas palavras, preocupada porque, na verdade, ele tinha razão. Eu estava sozinha, era tão notório assim?
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— Creio que já está hora de ir. — Disse. Ele pareceu um pouco contrariado porque quase que acabamos de chegar, mas sorriu de forma amável. — Como queira. Posso levá-la se quiser. — Não, obrigada! — Soltei. — É perto, prefiro ir passeando. — Tem certeza? É tarde, talvez não seja muito prudente que uma garota sozinha perambule pelas ruas deste lugar. De forma instintiva, voltei os olhos para o céu. Tinha lua, então, a princípio, não tinha nenhum problema. Logo depois, a voz da minha consciência retumbou uma vez mais na minha mente, lembrando-me que os guardiões que me perseguiam não pretendiam alimentar-se de mim, mas me caçar, então eles podiam aparecer em qualquer noite. Por outro lado… A ideia de passar mais tempo ao lado daquele rapaz tão cruelmente sincero me fazia sentir muito mais incômoda. Preferia enfrentar um guardião às verdades que ele não deixava de recitar. Era-lhe tão fácil olhar dentro de mim. — Diz que dou medo às pessoas. — Sorri. — Talvez ninguém se atreva a aproximar-se de mim. — Boa observação. — Felicitou. — Vá lá, você e sua coragem. Se precisar de um anjo da guarda, é só gritar. Esse comentário me pegou um pouco de surpresa, mas concordei. — Vou ter isso em conta. Obrigada! — Foi um prazer. — Olhou-me diretamente nos olhos e durante um segundo, fiquei perdida naquelas enormes íris verdes. — Obrigada! — Repeti, piscando para sair de tal estupor. Um instante depois ele se virou e voltou para a fogueira. No entanto, notei uma fugaz olhada na minha direção, unido a uma pequena careta zombeteira. Ri para mim mesma e empreendi o caminho de volta através do campo.
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Conforme eu ia entrando no bosque em direção ao povoado, a noite foi me envolvendo. Pensava que, depois de tudo o que tinha me acontecido, seria muito mais difícil manter a compostura durante o caminho. Essa era a primeira noite que estava sozinha na rua. Tudo estava escuro, iluminado pela luz esbranquiçada da lua e em silêncio. Em um silêncio quase completo, exceto pelos grilos do campo e uma ou outra pequena rajada de vento que de vez em quando, açoitava o capim do campo. De qualquer forma eu procurava não fazer barulho e pisava com cuidado, punha um empenho quase antinatural para que a calça jeans não roçasse em nada ao andar e tinha deixado de respirar de forma regular para passar despercebida. Apenas muito de vez em quando inalava uma pequena golfada de ar para tentar captar se havia algum cheiro estranho no ambiente, mas não tinha nada. O que comecei a notar foi uma estranha sensação na nuca. Como se alguém estivesse me observando. Tinha tido essa sensação desde que estava no bosque, mas eu o relacionara à curiosidade de Jerome. A sensação ficava cada vez mais forte e incômoda conforme eu avançava. Apertei o passo, olhando nervosa em todas as direções, mas não havia nada fora do normal. É verdade que era perigoso voltar sozinha. Naquele momento senti uma horrível respiração em meu pescoço. Vireime e foi como se tudo parasse. Ali, com os olhos enormes e a expressão mais selvagem do que me lembrava, estava ela, Silvana. Sem hesitar, desandei a correr. Saí do bosque e só parei quando cheguei à rua. Corri rua abaixo, as luzes dos sinaleiros piscavam e começava a se elevar uma estranha névoa. Continuei correndo até sair no descampado que me separava da casa, atravessando-o tão rápido quanto conseguia. O vento agora batia no meu rosto e açoitava com força o capim. Então, de repente, dei de cara com ela. Gritei e virei à direita, saindo da
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estrada e começando a saltar sobre cardos, pedras e montículos de areia. Ela voltou a aparecer, cortando minha passagem. Consegui evitá-la e corri quase sem fôlego até a escada. Subi os irregulares degraus de dois em dois, mas ao chegar lá, ergui os olhos e dei de cara com ela de novo. Estendeu a mão para mim, para me pegar. Gritei, retrocedi e perdi o equilíbrio. A próxima coisa que me dei conta é que estava rolando escada abaixo acompanhada por um golpe atrás do outro, até que, pelo que parecia, aterrissei de novo no campo. Não me mexi, temendo que me doesse todo o corpo. Ao invés, tomei a postura mais “valente” e me encolhi, cobrindo a cabeça com os braços, aguardando que ela acabasse comigo. Esperei o que me pareceram os segundos mais intermináveis do mundo, mas nada aconteceu. Estava esperando que eu a olhasse para poder ver meu rosto quando me matasse? Ignorei o lado covarde e sensato, que me pedia que continuasse tal qual estava e afastei as mãos da cabeça lentamente. Não tinha ninguém ali, ela tinha se desvanecido. Com cuidado, incorporei-me, intumescida e confusa. — Não era real. — Sussurrou uma voz da escuridão. De repente, tudo estava calmo. — Mas ela vai voltar. Virei-me assustada e encontrei de novo Hernan Dubois, em pé, estático e imponente no alto da escada. — O que quer dizer? Eu a vi, eu a senti… — Incorporei-me depressa e procurei em volta, temendo que aparecesse de novo. — Estava apenas na sua mente. — Desceu os degraus majestosamente até parar na minha frente. — Às vezes essas coisas acontecem. — Não estou ficando louca. — Girei sobre mim mesma, impaciente e com brutalidade, observando a noite, ansiosa. — Parece que alguém tenta observar você com essas alucinações. Ou torturá-la, embora com um gosto questionável, para ser honesto. — Alucinações? — Ofeguei e o olhei interrogativamente.
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— Foi o que eu disse. — E é você que está fazendo isso? — Repreendi-lhe. — Não preciso disso para saber que sairia correndo, minha querida Lena. Além disso, prefiro o sangue na hora de torturar. — Então, quem? O que você estava fazendo aqui? — Não tenho certeza. É óbvio que alguém quer se certificar de que ninguém acabe com você enquanto Christian estiver fora. — Pensei que era isso que Elora e Lester estavam fazendo. — Receio que eles se aborrecem com pasmosa facilidade. — Está querendo me proteger? — Entrecerrei os olhos; aquilo não fazia sentido. — Não confunda as coisas. — Riu. — Estou convencido de que Christian vai acabar com você, só quero me assegurar de que ele terá essa chance. — Não faz muito tempo você disse que queria nos ajudar. — Lembrei. — E assim é. Quero que ele acabe com você, mas não quero que ninguém o mate por proteger você, ma petite. E sei que você também prefere que ele o faça. Guardei silêncio um momento. — De modo que você não quer acabar comigo… — Que diversão seria acabar com alguém tão indefeso? Pessoas como você morrem muito rápido. — Retrocedi um passo. — Eu a assustei? — Sorriu. — Não mais do que o normal. — Ela vai voltar, Lena. — Entrelaçou os dedos sobre o peito. — E sei que você gostaria de enfrentar essa batalha sozinha. — Cravei a vista naqueles olhos profundos. O rosto dele se alargou então em um sorriso. — Amanhã, à meianoite, na velha igreja. Se você é inteligente, não vai envolver ninguém mais nisto.
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Especialista em tratos suicidas.
Eu não iria comparecer; ainda não tinha perdido a cabeça o suficiente para confiar naquele grande predador. Sim, era tentador. A ideia de aprender a me defender revoava em minha cabeça como uma mosca no verão, mas Christian já tinha me prometido que me ensinaria quando voltasse. Era possível que, talvez, essa ideia descabida fosse a solução para todos os meus problemas, principalmente porque já não sabia como lidar com a preocupação com os De Cote e porque a cabeça de Lisange aparecia em minha mente quase que todas as vezes que eu fechava os olhos, mas era impossível que estivesse tão desesperada para ir até ele. Tinha certeza de que Christian ficaria louco se ficasse sabendo e além disso, aquilo cheirava mal. Elora e Lester me protegendo e Hernan Dubois oferecendo-se como alma caridosa para me ajudar, justamente no momento em que eu mais queria o que ele me oferecia? Não, não podia ser uma simples casualidade. Não, pelo menos em se tratando deles. Menos ainda, quando os tinha visto na companhia de Valentine. Sabia dos planos que aquela menina tinha para mim, que até a presente data sempre tinham coincidido com os da família de Christian e ele agora não estava aqui. Não podia confiar neles, de jeito nenhum. Jerome tinha razão. Eu estava sozinha, completamente sozinha. Nem sequer me atrevia a apagar a pequena vela que repousava junto à minha cama à noite. Sentia que me faltava o ar, como se nunca pudesse inspirar fundo o
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suficiente. Sim, eu me arrependia de não ter fugido, mas também era verdade que se eu pretendia ficar ao lado de Christian e ser útil, devia demonstrar que podia me defender. Uma palmada do professor no quadro me devolveu à realidade. Préhistória. O apaixonante mundo do homo sapiens… Quanto tempo mais Christian ia demorar a chegar? Negava-me a acreditar que ele também considerasse adequado aquele teatro todo. O curso ia ser longo. Peguei a agenda e dei uma olhada no calendário. Desde o acontecido no primeiro dia, eu evitava prestar atenção ao professor e a agenda era tudo que tinha naquele momento, além dos meus pensamentos. Contei os dias que faltavam até o final de mês. Depois contei de novo, subtraindo os fins de semana, para ver se desse modo a espera ficava mais curta, mas de repente, uma bolinha de papel aterrissou sobre a folha. Olhei em volta. A única pessoa que me olhava com atenção era Jerome, o rapaz do eterno sorriso. Apontou o papelzinho com o lápis, da mesa do lado. Peguei a pequena bola e a desdobrei com os dedos. Estava escrito “Bom dia!”, de forma cuidadosa. Ele sorriu para mim, respondi com um aceno de mão e voltei para o meu calendário. Um instante depois, caiu outra. “Convido você para comer.” Sorri ante a ingenuidade da proposta: não tinha nem ideia do que estava dizendo. Olhei-o e neguei com a cabeça. Ele enrugou o cenho e o vi escrevendo de imediato em outro pedaço de papel. Para minha sorte, soou o sinal. Não esperei que o professor nos desse permissão para sair, recolhi todas as minhas coisas e escapuli da sala de aula antes inclusive que alguém tivesse tempo de se levantar. Entretanto, ao sair, encontrei-me com uma surpresa nada agradável: Lester. — Tem notícias de Christian? — Perguntei sem rodeios.
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— Será que existe no mundo criatura mais néscia… — Sua voz era pausada e tranquila. — Não devia estar fugindo? — Sabem algo dele? — E você, sabe? — Sorriu. — Se não for assim, por que ia se incomodar em compartilhar minhas investigações? Olhei-o exasperada e confusa. — Christian dizia que você era o mais racional, mas são todos iguais. — A razão pouco tem a ver com isto. A razão só me faz comprovar que se não tem notícias dele, é porque sua segurança, talvez, não importe tanto. — O que quer dizer? — Que é possível que não haja sentido proteger você se não pudermos tirar algum proveito disso. — O corredor começava a encher de gente quando o atravessara correndo. — Como sou racional, sugiro que parta daqui antes que montemos um espetáculo que alerte todos esses humanos. Recuei, sem afastar os olhos dele, que me observava com o rosto afiado e tranquilo. Ao dobrar a esquina, choquei-me contra alguém e todas as minhas coisas se espalharam pelo chão. — A que se deve tanta pressa? — Era Jerome. “Perfeito...” — Estava fugindo de mim? — De todo o mundo em geral. — Eu respondi me abaixando para recolher de novo minhas coisas e olhando de esguelha para trás. Lester não tinha me seguido. — Não pense que é tão especial assim. — Se quiser posso ajudá-la. Conheço um lugar que… — Por que tenho a impressão de que está me perseguindo? — Cortei, pondo-me em pé. — Provavelmente porque é o que estou fazendo. — Sorriu.
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— Alguma vez já lhe disseram que isso é ruim? — Perguntei, passando ao largo. — É possível que comentassem de passagem algumas vezes. — Jerome. — Eu parei, depois me virei para ele e inspirei fundo. — Não é da sua conta se decido me manter afastada de todo o mundo, está bem? Não tem que sentir lástima por mim nem nada parecido. — Lástima? Não, não. — Deu de ombros, franzindo o cenho, confuso. — Já não é assim. — Que seja. Eu preciso ir. — Chocou-me um pouco, mas preferi ignorar o comentário. A única coisa que eu queria era voltar para casa. — Não quer saber por que me interessa? — Não. — Menti e me afastei em direção à porta. — Sei que esconde algo! — Gritou no meio do corredor. Eu me virei para ele, alarmada. Não fui a única, a maioria dos alunos nos olhava com atenção. — O que está fazendo? — Perguntei entredentes me aproximando dele. — Captar sua atenção. — A minha e a de todo o instituto! — Todos sabem, o que importa? — O que é o que todos sabem? — Que a única razão pela qual uma garota como você se manteria isolada é porque guarda um grande segredo. — Viu filmes demais... — Olhei-o com receio, estava tão evidente assim? — E você viu de menos. Não me julgue por isso. — É tarde para tanto. — Terei que consertar isso, então. Vou acompanhá-la até em casa. — E quanto às histórias de terror?
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— Eu gosto de aventura. — Vai me deixar em paz depois? — Podemos negociar. — Voltou a alargar o sorriso. Respirei fundo e comecei a andar de volta para casa. Ele me alcançou com duas pernadas. — Você é sempre assim… — …Difícil de lidar? — Riu. — Eu ia dizer “persuasivo”. — Aleguei. — Não, estou acostumado a me manter à sombra, mas tem alguma coisa diferente em você. — Isso é bom? — Não sei. Uma parte de mim quer se afastar de você, mas a outra só quer ajudá-la. — Por quê? — Olhei-o com especial atenção. — Porque sei como é difícil adaptar-se sendo diferente. — E você pensa que sou diferente? — Virei-me um pouco para ele. — Acredito que você pensa que é. — Ninguém se aproxima de mim, então não devo ser a única. — Bom, você vive com essas pessoas tão… — Fingiu um calafrio. Soltei uma gargalhada. Ele pareceu surpreso com minha reação. — Perdoe-me, não devia dizer essas coisas sobre sua família. — Na realidade não somos uma família. Nem sequer sabia quem eram faz apenas umas semanas. — “Estava dando muita informação?” — E como acabou aqui? — Faço-me essa pergunta frequentemente. — Pois me avise quando encontrar a resposta. — Pode ser que o faça. — Sorri surpresa. — E quanto a você?
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— Quer ouvir minha história? — Por que não? Você disse que sabe o que é sentir-se diferente… — Sentir-se diferente, não; ser diferente. Minha história é aborrecida, como é a da maioria, suponho. — Tem família aqui? — Meus amigos são minha família. Não acredito que esse nome deva referir-se unicamente a laços de sangue. — Sua história tem algo a ver com esse gorro que usa sempre? — Olhei-o com os olhos entreabertos. —Quer saber de verdade? — Claro. — Encolhi os ombros. Ergueu uma mão e retirou com cuidado o gorro, revelando a ausência de cabelo. A pele esbranquiçada refletia a luz do sol. — Oh! — Foi a única coisa que consegui dizer. — Consegui o papel de anjo na peça de teatro. — Ele riu. — Não pensa que tenha sido só pelo talento natural, não é? — Sorriu. — Pode ser, mas costumam usar mais os cachos dourados. — Não é a única a passar por maus bocados, Helena, mas você continua. — O sorriso foi desaparecendo aos poucos. — Algumas pessoas nascem diferentes, não é fácil ser aceito, ou permitir que outros queiram aceitar você. — Por que me chamou de Helena? — Perguntei de repente, parando. — Eu não gosto de diminutivos. Não é esse o seu nome? — Perguntou como se fosse a coisa mais normal do mundo. — Lena de... Helena? — Não. — Titubeei. — Não é diminutivo de nada. — Senti-me estranha, não era para eu saber isso? De repente me senti inquieta, realmente inquieta. Jerome notou, ia dizer algo, mas decidi continuar com a conversa antes que ele
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indagasse mais dentro de mim. — Você teve problemas por causa do seu aspecto? — O que quer dizer? Sou um rapaz normal. — Brincou. — O problema é que as pessoas não gostam daquilo que não conseguem entender. E de tudo aquilo que saia fora do padrão. Não me atrevi a lhe perguntar o que tinha acontecido com ele, se era alguma doença ou se tinha nascido assim. Talvez fosse cedo demais e supus que ele me diria se quisesse que eu soubesse. — Eu não o vejo diferente. — Certamente ele tampouco era normal, mas eu ganhava dele com folga. — Eu notei. Você não teve nenhuma reação. Manteve-se indiferente. — Quer dizer que isso é ruim? — Não, só que fica mais difícil surpreendê-la. — Vi muitas coisas incríveis, mas se lhe serve de consolo, acredito que tem olhos impressionantes. — São lentes de contato. — Disse com voz grave. — Oh! — Não é verdade. — Riu. — Também gosto dos seus, embora haja algo estranho neles. — Algo como o que? — É cedo para tentar adivinhar. Ainda preciso conhecê-la melhor. — Então está tirando informações de mim? — Só para uso pessoal. — Levantou a mão. — Palavra. Quero que me deixe ajudá-la. — Não sabe onde está se metendo. — Eu o adverti, parando junto à entrada. Tínhamos acabado ao chegar.
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— Talvez você tampouco. — Sorriu. — Posso ser muito persuasivo. — Devolveu-me a agenda, que devia ter me esquecido de recolher do chão. — Nós nos vemos amanhã. Procure ser feliz. Naquela noite… Olhei minhas mãos, tinha sangue nelas. Pouco a pouco o sangue foi se estendendo por todo meu corpo, manchando minha roupa e minha pele, mas não tinha ferimentos, não tinha dor. Corri assustada através do campo seco, mas minha visão estava imprecisa. Via tudo coberto por um espesso manto avermelhado. Levei a mão aos olhos e esfreguei com insistência, mas tudo continuava igual. Girei sobre mim mesma, observando, aterrorizada, o imenso prado de ervas e grama vermelhos. Ergui o olhar para o céu e vi um firmamento escuro, encapotado por horríveis nuvens negras. A chuva molhava meu rosto. Estendi os braços e quando baixei o olhar para eles, descobri que não era água que caía, mas sim, sangue. Aterrorizada, tentei retroceder, mas já não tinha caminho nenhum pelo qual retornar. Tudo estava mudado. Estava em uma cidade e ao longe, tinha um corpo estendido no chão. Corri para ele, mas não avançava, corri, corri muito, mas… Despertei com uma tremenda vontade de gritar. Outro pesadelo. Se continuasse assim, não voltaria a dormir em todo o resto da minha existência. Estirei-me, tentando desentorpecer os músculos e olhei o relógio, passava da meia noite. Hesitei pensando em Hernan. Não tinha nem ideia do que ia fazer, mas para minha surpresa, levantei-me e me vesti a toda pressa. O encontro em si não era a única coisa que me aterrorizava. Da última vez que tinha me atrevido a atravessar o descampado às escuras, inquietou-me a forma suave como se balançavam as ervas e a excessiva calma. Talvez porque me fizessem lembrar do silêncio que provocavam os guardiões. Entretanto, nessa
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noite, quando saí, tudo estava tranquilo. A infinidade de sons de pequenos insetos povoava o campo e isso me infundiu um pouco de coragem. Ao chegar ao outro lado, os sons da natureza foram substituídos pelos da civilização, mas a rua continuava deserta, salvo por pequenas exceções. Pode ser que eu não gostasse muito daquele lugar, mas pelo menos devia reconhecer que estava bem sinalizado e que o abandono dos habitantes até podia ser útil. Os desgastados cartazes que indicavam a direção da velha igreja continuavam no lugar, mais torcidos, porém estáveis. Alguns minutos mais tarde cheguei ao subúrbio, em frente ao único edifício que se erguia em um raio de menos de um quilômetro de distância. Era enorme e imponente, tanto que poderia parecer uma catedral. Fora construído justamente à beira de um precipício de vários metros de altura, com pedra, em forma de cruz e com grandes vitrais. Pelo que tinha estudado, podia dizer que era gótica, mas não parecia em uso. A majestade e solidão lhe conferiam um ar inquietante. Por que Hernan Dubois tinha me chamado para vir a um lugar assim? Subi pela escada que conduzia à entrada e me plantei frente à imensa porta. Recordei as dúvidas que tinham me invadido quando estive em um lugar assim em La Ciudad. Respirei fundo e empurrei os velhos portões. Assim que entrei, o intenso cheiro de incenso e umidade me envolveu em uma bruma. Por dentro, parecia ainda maior, gigante, até o ponto de me fazer sentir pequena. Caminhei devagar e temerosa entre os imensos pilares de pedra, sob os arcos e os enegrecidos afrescos do teto. Os bancos continuavam em rigorosa ordem, formando um corredor pela zona central. Conforme ia entrando mais, um sentimento de inquietação ia aumentando dentro de mim. Ali não havia calma, nem paz. Apenas um silêncio trêmulo. As paredes devolviam uma estranha quietude perturbadora que ricocheteava em cada canto, cada cristal, cada pedra.
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Como se falassem, como se sussurrassem. Quando saí do corredor, vi-me sob um enorme crucifixo de madeira pendurado graças a algumas cordas sobre os degraus que conduziam ao altar. A pouca distância dele e do chão havia uma incrível rosa enorme de cores. Os portões ressoaram ao se fechar e eu entrei ainda mais. Era assustador e inquietante estar naquele lugar. Não havia luzes, só as velas que os fiéis acendem e uns quantos círios. Tudo estava em silêncio, mas por alguma razão essa calma não tinha um efeito relaxante. A areia fina dos meus sapatos rangia contra a pedra do chão conforme eu avançava. Sem prévio aviso, o acorde grave e prolongado de um enorme órgão retumbou entre as paredes. Virei-me assustada. A esse acorde se seguiu outro e um segundo mais tarde, interpretou uma melodia linda e arrepiante que fez estremecer cada pequena víscera do meu corpo. Como que hipnotizada por aquele som, avancei pelo lugar até que cheguei ao altar. Entretanto, não prestei atenção ao órgão que rompia sem piedade a paz da noite. Imediatamente, meus olhos se cravaram no homem que seduzia as teclas. — Como algo tão bonito pode proceder de semelhante animal? — Balbuciei, quase sem ter consciência disso. Ele parou de tocar imediatamente, mas o eco dos sons ainda perdurou por alguns segundos no ar. — Ironias da vida. — Ele respondeu ficando de pé. — Ou da morte. Você demorou demais. Quase encheu minha paciência. — Aproximou-se de mim e de repente, sorriu. — Mas não importa. Agora você está aqui. — Por que você marcou comigo em uma igreja? — É aqui que vivemos. — Explicou sem rodeios. — Este lugar foi construído por grandes predadores. É minha mais querida residência há vários séculos. — Isso é uma aberração.
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O fato de que usassem um lugar, ao qual as pessoas vão em busca de alívio, como o lar do desespero, da tortura e da crueldade me parecia revoltante. Era como se o tivessem maculado e insultado. — É curioso. — Ele disse ao dar-se conta de que me afastava. — Que os humanos dediquem a vida a um único segundo, esse pequeno instante que separa a vida da morte. — Parei em seco. — Talvez sua sensibilidade esteja ferida, mas pense um pouco, não há maior ironia que nossa existência, e ambos sabemos que não há mais salvação nesta “não vida” do que a luta pela sobrevivência. Ninguém vai nos salvar. — Nem todo mundo termina aqui. — Um detalhe sem importância. — É cruel. — Mas não está aqui para julgar isso. — O que vai pedir em troca para me ajudar? — Hesitei. Os efeitos da música foram desaparecendo e minha mente voltava a ficar lúcida. — Piano, piano, minha querida Lena. — Ergueu um dedo e o pôs em meus lábios, selando-os. — Não se preocupe com isso agora. — Mas eu preciso saber. — Sussurrei contra a surpreendentemente cálida e suave pele do dedo dele. — Vou desfrutar com tudo isto, acredite. — Sorriu e afastou a mão do meu rosto. — Esse é o pagamento. — Não acredito em você. — Pois faz mal. — Cantarolou. — Inclusive nós sentimos pena de vez em quando pelos nossos indefesos irmãos. — Disse a mesma coisa na noite da festa dos Lavisier. — Recordei. — O que propôs aos que estavam lá?
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— Refere-se ao momento em que saiu correndo da sala alertando metade dos humanos? — Fiquei em silêncio. — É claro que sim. — Respondeu para si mesmo. — E por que não? — Riu. — O que lhes disse? — Insisti. — Ofereci-lhes a possibilidade de uma vida melhor. — Disse com voz amável. Virou-se, subiu os degraus para o altar e abaixou com delicadeza a tampa do piano. — Deixando de ser a escória de uma hierarquia pouco pormenorizada com os da sua classe. — Custa-me acreditar que se preocupe com nossa segurança. Até onde sei você se diverte nos torturando. — Espetei. — A uns mais que a outros. — Reconheceu sorrindo. — Mas, às vezes, posso chegar a ser… Compreensivo com sua situação. — Sou eu uma dessas ocasiões? — Ele me observou durante alguns instantes e se voltou para ficar ne minha frente. — Meu plano para você é diferente, mas não menor. — O que quer dizer? — Observei-a. Sei que deseja a dor, foi isso o que a trouxe aqui, por isso atendeu ao chamado de Christian, por isso venera a companhia dele… Você fica obcecada pelo perigo constante ao qual se entrega quando está ao lado dele. Não é a dor de um caçador, Lena, você procura algo mais poderoso, mais cativante e eu posso ajudá-la nisso. — Eu só quero poder ajudar, não ter que ficar olhando para ver se algo os ameaça. — Muito nobre da sua parte, mas eles não lhe ensinarão a fazê-lo. — E por que você sim? — Porque eu não vou cometer o engano de subestimar seu potencial. Você me fascinou desde o primeiro momento em que a vi, é minha próxima grande
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criação. Embora não me envolva em empreitadas inúteis e seja impaciente. Se ficar aqui esta noite, não permitirei que vá embora até que tenha terminado com você. Dou-lhe a oportunidade de escolher. — Vai me fazer mal… — Mais do que ninguém já lhe tenha feito algum dia, mas está aqui para aprender a combatê-lo. Quando terminarmos, ninguém poderá lhe causar dano algum e fique tranquila, não serei eu quem vai acabar com você. Já falamos sobre isso. — Voltei a retroceder um passo. — Ei, não, pequena. — Aproximou-se de mim e pegou meu rosto entre as mãos. — Nós dois vamos fazer com que isto termine bem. Ambos queremos proteger Christian, livrá-lo de uma morte que nenhum dos dois deseja. Não é mesmo? Não vai me ajudar? — Como posso saber que isto não é uma armadilha ou um jogo? — Não há nenhuma razão para não considerá-lo também como diversão. —Afastei-me por completo dele. — Sei que tem medo de mim, mas é assim que deve ser. — Hesitei. — Christian nunca lhe pediria que fizesse isso por ele, apesar de saber o quanto facilitaria as coisas. A absurda consciência dele não lhe permitiria, mas não é preciso que ele lhe diga isso, nem que eu o faça, você sabe. Não vou obrigá-la, Lena. Se aceitar, será por sua própria vontade. — Fiquei em silêncio durante um instante. — Shhh, ouve isso? — Gemeu de repente, aproximando-se muito de mim e prestando atenção a algo que eu desconhecia. — Ainda posso ouvir o eco do seu coração, como pulsava há pouco… É muito jovem, ainda resta vida dentro de você… — Com um movimento brusco e veloz, fez com que me chocasse contra a parede, apertando meu corpo contra o dele. — Fascinante. — Um pequeno rugido brotou de dentro dele. — Isso me faz perder a cabeça. Era verdade…. Não parecia o mesmo Hernan com o qual eu falava há apenas um minuto: os olhos estavam arregalados e o coração descompassado
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em comparação com a lenta e imperturbável velocidade à qual estava acostumado a pulsar; e a respiração irregular batia contra meu rosto; o hálito, extremamente doce e tentador, tão semelhante ao de Christian, penetrava de forma cruel em meus sentidos. Por um momento foi como se me abandonasse, como se perdesse todo controle sobre mim mesma e só quisesse me apoderar daquele cheiro doce, de atraí-lo para mim e beijá-lo até conseguir absorver o último fôlego da alma dele. Justo quando esse pensamento terminava de se formar na minha cabeça, abri os olhos, sobressaltada e o afastei com um empurrão. Acossada pelo terror e pela vergonha, saí dali correndo, enquanto as risadas de Hernan ricocheteavam como bofetadas no meu coração. O que é que eu estivera a ponto de fazer? Atravessei sem pensar todas as ruas sem parar, até chegar à segurança do meu quarto. Todo ele desprendia o cheiro de Christian e me fazia sentir muito culpada e enojada comigo mesma. Sem hesitar duas vezes, meti-me no chuveiro e não fiquei tranquila até que o último rastro de Hernan desaparecesse do meu corpo e da minha mente. Depois, enchi a banheira e afundei nela, rogando com desespero que o sol voltasse a aparecer logo no firmamento e levasse embora a lembrança daquela inquietante noite.
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Por fim, um sopro de ar fresco.
Cinco minutos… Eu me remexi na cadeira, incapaz de prestar atenção. Tinha certeza de que quando estava viva eu era uma boa estudante, ou pelo menos aceitável, porque de vez em quando fazia apontamentos sem ter consciência disso e sentia remorsos se não estudava ou se não apresentava os trabalhos no dia. Entretanto, eu já não era uma pessoa normal e era frustrante ter que estar ali, apesar de que, em algumas ocasiões, eu conseguisse me sentir bem graças a Jerome. Voltei a olhar o relógio. Três minutos… O professor continuava falando. Não entendia aquela necessidade de esgotar até o último minuto. O que estou dizendo? Segundo! Até o último segundo! Para mim, só veio a incompreensível disputa no qual, de vez em quando, sobressaíam palavras como “exame” ou “para amanhã”. Dois minutos… Olhei pela janela me esforçando para procurar alguma coisa lá fora que chamasse minha atenção por tempo suficiente para que acabasse aquela aula. O dia estava sendo especialmente interminável, não sei se porque as aulas eram aborrecidas ou porque Jerome não tinha comparecido. Então, ouvi o sinal e deduzi que a aula tinha terminado. Sem me incomodar em confirmar, joguei minhas coisas dentro da mochila e saí dali, até chegar lá fora.
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— Você se transformou em uma perfeita colegial. — Ouvi alguém dizer às minhas costas. Girei o corpo e gritei, deixando cair todas as minhas coisas no chão. Retrocedi assustada, a ponto de quase desandar a correr. — Quem é você? — Gaguejei. — Fique calma, Lena, sou eu. Gareth me contou o que aconteceu. Continuava a certa distância. Sentia como se estivesse vendo um fantasma. De repente ela percorreu-me com o olhar. — Por favor! — Fez uma estranha careta. — Diga-me que não foi você que escolheu essa roupa... Um ligeiro formigamento subiu por todo meu corpo. Era ela, sim, e estava diante de mim, tão resplandecente e alegre como há séculos não a via, mas sobre tudo, “viva” e em perfeito estado. — Christian disse que não podia ser você… — Devo reconhecer que ele tinha razão. — Ela sorriu. — Não vai me dar um abraço? Estava petrificada, mas de repente senti que começava a crescer uma emoção dentro de mim e um segundo depois me lancei sobre ela, abraçando-a tão forte que acreditei que ia machucá-la. — Você está bem! — Solucei contra o ombro dela. — Melhor do que nunca. — Ela riu. Neguei-me a me afastar dela. Abraceia mais forte e solucei contra ombro dela desconsoladamente. Tinha tido medo de não voltar a vê-la. — Calma! — Sussurrou dando tapinhas na minha cabeça. — Está tudo bem agora. — Quando você chegou? — Há alguns minutos. Não consigo acreditar que esteja frequentando aula. — Riu.
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— Por que demorou tanto para vir? — Por fim, afastei-me dela. — Tive que esperar. Não era seguro seguir vocês tão cedo. — Onde está Liam? — Olhei em volta. Ela franziu um pouco o cenho. As pessoas começaram a sair do centro e logo nos vimos rodeadas por todos os lados. — Vamos voltar para casa. — Sugeriu. Entrei rapidamente no carro, desejava saber tudo a respeito do que havia acontecido. Ela me imitou, ligou o motor, arrancou e fomos em direção ao pequeno povoado. — O que aconteceu? Você desapareceu… Demorou alguns segundos para responder. Eu a contemplava, impaciente e encantada por tê-la de novo ao meu lado. — Tinha mais guardiões do que esperávamos. Muito mais. — Explicou — Estavam por toda a cidade. Quando chegamos à ponte, um deles pairou sobre mim e me levou para longe. — Olhou-me. — Estavam tentando deixar você sozinha.
Sabiam que não podia se defender. Briguei com aquele guardião
durante horas. Você não faz ideia do quanto. Pensei que acabaria comigo. — Você o venceu? — Escapei. — Fez uma pequena pausa. — Quando retornei à ponte, captei o cheiro de Christian e soube que estava a salvo. — Por que não nos seguiram? — Porque estava cheio de guardiões. Não podíamos nos arriscar a que nos seguissem. — E Liam? — Tive que passar a noite inteira escondida até o sol voltar a aparecer. Quando o encontrei, tinha voltado para casa. — Mas estava ferido…
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— Sim. Quase acertaram-no no coração. Teve sorte, mas passou maus bocados. O carro parou ao chegar à rua. Gareth estava nos esperando. — Alegro-me por vê-la de novo. — Disse para Lisange antes de mostrar um resplandecente sorriso e abraçá-la com força. — E eu, Gareth, passou muito tempo. Deixei-os conversando e entrei correndo na casa, ansiosa por ver de novo Liam e Christian. — Liam? — Chamei. — Christian? — Procurei por toda a casa, mas não encontrei nenhum dos dois. De fato, estava vazia, nem Gaelle nem Valentine tampouco estavam lá dentro. Confusa, voltei para a rua, onde os dois continuavam conversando. — Onde está Liam? — Perguntei acelerada. — Receio que ele continua em casa, Lena. — Ela me olhou com o rosto ligeiramente entristecido. — Ainda não se sentia com forças para viajar, mas pediu-me que lhe mandasse lembranças e que você se lembrasse do cálido afeto dele. — Senti como se desinflasse. — Suponho que isso explica por que Christian não voltou. Vai ver está ocupado com ele. — Raciocinei, tentando me resignar. — Christian? — Ela fixou o olhar em mim, confusa. — Christian está na cidade? — Claro… — Respondi com cautela. — Ele foi procurar vocês. — Lena… — Ela se mexeu incômoda. — Se Christian estiver lá, certamente não passou por nossa casa. Apoiei-me no carro. Aquilo não fazia sentido. — Mas… Ele disse que ia averiguar se vocês estavam bem.
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— Vai ver ele teve que se ocupar de algum outro assunto antes, talvez tenha cruzado com alguém do clã dele e dificultaram-lhe a visita. — Sugeriu Gareth, numa tentativa de ajudar. — Mas com certeza ele está bem. — Sinto muito, Lena. — Lisange cobriu minha mão com a dela. — Se quiser posso voltar para procurá-lo. — Propôs. — Não, não. — Neguei com a cabeça. — Você acabou de chegar, não quero perdê-la de novo. Forcei um sorriso numa tentativa vã e desesperada para que parecesse que não havia problema algum, que eu não estava preocupada ou aterrorizada, mas para variar, fracassei. — Vamos entrar. — Gareth sugeriu. — A casa está vazia. — Foi à cozinha e trouxe para Lisange uma pequena terrina com cubos de gelo. — Obrigada, Gareth. A viagem foi longa e na cidade faz muito calor. — Você vai ficar? — Ele perguntou. — Vim para estar com Lena. Ainda não consigo acreditar que Christian partiu. Você soube alguma coisa dele? — Nada. — Murmurei com o olhar perdido. — Não se preocupe, Lena. — Rodeou-me com um braço e tirou o celular do bolso. — Vou ligar para ele. Ergui os olhos depressa para ela, como isso não tinha me ocorrido? Ela sorriu e digitou o número. Durante alguns instantes, a tranquilidade e o silêncio habitual da casa foram invadidos pelos tons de espera. Aguardei ansiosa para ouvir a voz dele, mas Christian não atendeu. Lisange tentou duas vezes mais sem que tivesse resultado. — Voltaremos a tentar mais tarde. — Ela me tranquilizou. — Eu já volto. — Pus-me em pé lentamente. De repente me sentia bastante mal.
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Subi para o quarto e me dirigi ao banheiro. Apoiei as mãos sobre a pia e tentei respirar fundo. Sentia-me muito enjoada, tinha uma incontrolável gana de chorar. Os olhos ardiam e um estranho remorso misturado com um mau pressentimento se apoderou de mim. Abri a torneira e lavei o rosto com água fria, mas isso não me ajudou absolutamente em nada. Voltei ao quarto e me sentei na cama, contemplando a janela com o olhar perdido e abraçando o travesseiro com força. Alguém bateu à porta. Limpei ligeiramente a garganta e fui até a porta. Ali estava Lisange me observando preocupada. — Lena… — Ela se aproximou e se sentou ao meu lado. — Eles estão bem. — Você fala como Christian. — Eu disse com dificuldade, através do nó na garganta. — Não faz muito tempo que vi Liam. — Recordou. — E Christian é um grande predador. De que garantia mais você precisa para saber que estão bem? — Já deviam ter voltado. — Não. É muito perigoso. — Pode ter acontecido alguma coisa. — Quem sabe eles querem reunir toda informação possível antes de voltar. Tiveram que partir de lá muito rápido. Embora, na verdade, custe-me acreditar que ele deixou você aqui sozinha. Tinha que estar realmente desesperado. — Não preciso que ninguém cuide de mim o tempo todo, não sou bebê. — Soltei, aborrecida. — Não foi isso o que eu quis dizer. Você sabe disso. — Alegou com voz suave. — Dá na mesma. Sei que é o que todos pensam. — Inspirei lentamente. — Só quero que eles voltem logo.
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— Tenho certeza de que Christian vai voltar logo, não se preocupe. Verá que tudo está bem e ele vai voltar. — E quanto a Liam? — Se Christian não o trouxer, ou se ele não vier pelos próprios meios, vamos visitá-lo no Natal. — Sorriu. — Terá passado tempo suficiente para que seja seguro retornar. — Ainda falta muito para isso. — Nem tanto. Além disso, agora que está no instituto, os dias vão passar muito mais rápido. — Vou deixar o instituto. — Anunciei. — Nem pense nisso, é uma grande oportunidade para você voltar a se sentir normal, Lena. Estou querendo que comece o curso que vem para ir à universidade. — Você passou, então. — Sorri. — Que nem você, mas com tudo o que aconteceu eu não pude me matricular. — Pensou um instante. — Talvez faça isso no próximo semestre. — Com seu encanto natural não terá nenhum problema. — Talvez seja hora de me aproveitar disso. — Riu e ficou em pé dirigindose ao armário. Abriu-o de par em par e deu uma olhada dentro, suspirando de forma dramática. — Lena, terá que fazer algo com isto. Pela primeira vez em muito tempo, soltei uma pequena gargalhada. Estava claro que Lisange havia retornado. A volta de Lisange supôs um sopro de ar fresco na minha deprimente rotina. Não podia evitar passar horas preocupada com Christian e Liam, mas ela fazia tudo que estava ao alcance dela para encher meu tempo com coisas nas quais eu não tivesse que pensar. Quando começava a anoitecer, ela desaparecia até a manhã seguinte. Sempre. Sabia que ela não dormia, mas evitava minhas
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perguntas a respeito. Insistia em que o fazia para que eu pudesse estudar tranquila e porque se sentia cansada. O primeiro era pouco provável, sabia perfeitamente que estaria mais que emocionada de fazer ela mesma a pilha de trabalhos que me davam nas aulas; mas a verdade é que a cada dia ela parecia mais pálida e apagada. Também ignorava minhas perguntas a respeito do aspecto dela, então, de repente, vi-me insistindo com ela que devia se alimentar de mim. O que era bastante irônico. De qualquer forma, embora passasse as manhãs nas aulas, as tardes com Lisange e de estudar à noite até cair rendida na cama, havia algo contra o qual nem ela nem eu podíamos lutar: os pesadelos. Eles eram cada vez mais e mais insistentes, até o ponto de começarmos a temer a hora de dormir. Sempre apareciam as mesmas figuras sombrias, os mesmos olhos e a mesma sensação no peito. Apesar da volta de Lisange, uma garota de brilhante cabeleira avermelhada penetrou também em meus sonhos. Parecia que o mundo inteiro tinha confabulado para me deixar louca, mas Lisange me pediu que eu não desse tanta importância. A única resposta que tinha encontrado é que estava tão aturdida, nervosa e preocupada, que estava começando a ficar louca e a espera de notícias do Christian e Liam tampouco ajudava. Cada dia que passava, a impotência aumentava. Podia entender que Liam não telefonasse nem que me escrevesse, porque, afinal de contas, não o tinha feito antes; mas Christian sabia do estado em que me encontrava, ele me conhecia o suficiente para adivinhar que passaria dia e noite preocupada, desejando receber notícias dele, e mesmo assim não dava sinais de vida. E isso terminou me levando a reviver meus maiores medos. — Sabia que você ia voltar. — Sorriu o grande predador quando parei diante dele. — Você sabia que Lisange estava bem.
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— De Cote retornou? — Sorriu. — Deve ser um momento de celebração para você. — Como sabia? Inspirou fazendo drama, parecia divertido. — Porque aquela cabeça pertencia a uma humana. Eu a joguei. — O que? Foi você? — Estava claro que alguém precisava afastá-la do meu irmão para que ambos pudessem refletir sobre... Algumas questões de considerável importância. — Que questões? — Vai aceitar o trato? Vacilei. — Não confio em você. — Mas está aqui. — Sorriu. — Porque não tenho escolha. — Ele riu para si mesmo. Postou-se atrás de mim, segurando-me com suavidade pelos braços. — Conheço a sedutora atração que exerce o lado sombrio em jovenzinhas como você. — Afastou meu cabelo para um lado e desceu a boca até o meu ouvido. — O suave ronronar que provoca o poder em seus dedos, como uma fina carícia no pescoço. — Eu não conseguia decidir se estava respirando ou se era só um produto da minha imaginação. — Não é a primeira nem será a última a sucumbir aos seus encantos. — Não é verdade. — Tentei enfrentar aquele tom suave, a presença agarradora e ao poder embriagador, mas não consegui me manter assim durante muito tempo. — Claro que é. — Sussurrou. — Todo mundo quer, até você. — Não é verdade. — Ergui os olhos para ele.
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— Você quer sim, até eu quero… Sei que você intuiu esse poder em nosso amado Christian. A única razão pela qual não o abraça. — Torceu um sorriso. — É você. — Voltou a colocar-se diante de mim, cara a cara. — Sei que ele tenta sua vulnerabilidade, o fato de saber que a qualquer momento pode mudar e torturála, saboreando o efeito da sua ingenuidade, desse olhar de desconcerto e de dor… Um efeito muito maior que qualquer outro, físico, que ele pudesse provocar em você. — Fixou o olhar em mim com intensidade, enquanto afastava uma mecha do meu rosto. — E isso, Lena, isso é que mais nos cativa. Ele fez bem ao escolher você, não sabe até que ponto, mas isso não é suficiente. — Você está tentando envenenar minha mente. — Afastei-me dele e daquele embriagante efeito. Minha cabeça começou a clarear um pouco. — E me pôr contra ele, que nem fez Elora há tempos, mas não vou acreditar em você. — Não acredite. — Voltou devagar para o assento. — Vá em frente, joguese nos braços dele, mas convém que eu lhe faça algumas perguntas, Lena. — O rosto dele voltou a ficar muito sério. — Até quando poderá suportar tudo isso? Quanto tempo vai demorar a se dar conta do quão insignificante você é? Vai suportar toda uma eternidade se questionado a cada instante se vai se converter no último momento com ele? — Jogou-se para trás na cadeira. — Não estou dizendo que não esteja interessado em você, mas desgraçadamente, os grandes predadores têm gostos mais... Sofisticados. E mais ainda meu amado irmão. — Notei como meu olhar se cristalizava e de repente me senti mal, muito mal. Ele se levantou de novo, avançou devagar para mim e pousou um dedo sob meu queixo, erguendo-o para cruzar nossos olhos. — Lena, Lena, sei que quer chorar. — Sussurrou com voz aveludada. — Mas precisa aprender a evitar demonstrar sua fraqueza. Qualquer um poderia se aproveitar disso. — Sorriu mostrando todos os dentes. — Não é mesmo? — O que quer de mim? — Perguntei sem forças.
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— Sua confiança. — Sussurrou. — Eu posso lhe dar o que tanto deseja. Força, controle, poder… Posso fazer com que, inclusive, volte a sentir o quente sopro da vida, equilibrando seu coração e sua alma entre meus dedos. — Acariciou com suavidade meus lábios, sem afastar o olhar deles. — Deixe-me prová-la… — Retrocedi um passo, negando com a cabeça. Tinha todos os músculos em tensão. — Christian nunca aprovaria algo assim. — Continuei retrocedendo. — Ele não está aqui agora. — Isso não importa. — Sem me dar conta eu me choquei contra a parede. Ele sorriu, pegou minha mão e se afastou um pouco de mim. — Assim não. — Guiou-me até me fazer sentar em um banco. Colei as costas contra o respaldo para me afastar o máximo possível dele, mas Hernan apoiou as mãos contra ele, aprisionando-me. O cheiro dele me pareceu muito intenso e cativante; cativante demais. Não poderia dizer se era mais embriagador ou não do que o de Christian porque eram diferentes, embora se parecessem surpreendentemente naquela tinta escura que os envolvia. O de Hernan era diferente, mais hipnotizador; se com Christian me custava tanto manter a compostura, nesta ocasião sentia que minha vontade se perdia cada vez mais e mais rápido. Nem sequer pude lhe dizer que me negava por completo a permitir semelhante invasão. Sabia o que eu mesma experimentava quando me alimentava de um humano, era como pinçar nos sentimentos mais profundos das pessoas. Não sabia o que experimentava um grande predador, mas não queria me arriscar. Entretanto, não fui capaz de freá-lo quando passou a mão pela minha bochecha para descer até o meu pescoço, nem quando, com um sutil movimento, jogou para trás minha cabeça e entreabriu minha boca. Nem sequer quando aproximou o rosto do meu, até que os lábios dele roçaram minha pele…
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— Vou fazer de você mais do que nenhum caçador sonhou jamais. — O hálito dele penetrou no meu corpo. — Você está disposta? Fiz um esforço sobre-humano para focar de novo o olhar e me encontrei com seus olhos. Os lábios dele continuavam acariciando os meus. Uma vez mais quis me negar, mas só consegui deixar escapar um pequeno gemido que pareceu mais uma afirmação, e minha vontade perdeu por completo toda a força. Ele sorriu, sujeitou meu queixo e aspirou.
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Nem sempre é fácil esquecer o passado
Vomitar, era a única coisa que eu queria naquele momento, mas meu estômago estava tão vazio e seco que não teria conseguido nem com a melhor das intenções. Havia se apoderado de mim aquela sensação incômoda que invade alguém depois de contar um segredo a alguém a quem não tinha certeza de querer revelar. Uma mistura de inquietação, remorso, vergonha e vulnerabilidade. Tinha-me exposto a ele, a alguém que, sem dúvida, usaria tudo aquilo contra mim. Ele se aproveitou da minha fraqueza para me controlar e agora eu me sentia suja, enojada e ainda pior, culpada e aterrorizada pela atração que a presença dele exercia em mim. Aquilo ia acabar comigo. — O que está fazendo aqui sozinha? Virei-me e vi Lisange. O vento fazia dançar a preciosa cabeleira de um lado para outro, como se o cabelo se movesse ao som de uma música imaginária. A pele continuava pálida, mas estava com melhor aspecto. — Está agradável. — Comentei. Agachou-se ao meu lado e se sentou sobre uma pedra. Olhou o horizonte, a estrada e depois para mim. — Está esperando que ele volte? — Perguntou.
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— Suponho que sim. — Reconheci. — Mas não apareceu nem uma alma. — Virei-me para ela. — Literalmente. Nunca vem ninguém a este lugar, e tampouco acredito que virá agora. — Então, por que está aqui? — Estou tentando averiguar se quero que ele venha. — Por que não iria querer? — Observou-me entreabrindo os olhos, preocupada. — Não sei. — Queria lhe contar meu sonho, todos aqueles horríveis pesadelos que me perseguiam toda noite, mas alguma coisa me impedia. — Talvez não devesse. Eu o ponho em perigo. — Ele é um grande predador, Lena. — Lembrou-me, tirando-lhe a importância. — Ninguém se atreveria a lhe causar dano. — Não sei nada sobre ele. Deve ter acontecido alguma coisa com ele. — Olhei-a com ansiedade. — E não me atrevo sequer a pensar no que aconteceria se isso acontecesse… Seria culpa minha. — Reconheci com o pânico refletido na voz. Ela pôs a mão no meu ombro. — Estou com medo. — Murmurei. — Entendo, mas ele vai voltar logo, talvez com Liam e tudo vai voltar ao normal. — Mas aconteceu há muito tempo. — Insisti. Ela demorou um pouco para responder. — Honestamente, Lena, tratando-se de Christian Dubois, terá vários assuntos pendentes lá, vai querer se certificar de que não vai ficar nenhum rastro, nem dele nem de você, antes de voltar. — Lisange, você… Você me treinaria? — Indaguei me virando para ela. O rosto dela escureceu e ela se remexeu, incômoda.
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— Não, então não me peça isso. — Mas por quê? — Perguntei desesperada. — Não vou ensiná-la a matar ninguém. — É… Para nos proteger. — Não precisa se proteger. — Pegou minha mão. — Nós protegeremos você. — Não estava falando apenas de mim. — Aleguei, soltando a mão. — Você tem bom coração. É sua obrigação conservá-lo. De repente, foi como se eu visse nela os longos séculos pelos quais ela havia passado. — O que está acontecendo com você? — Ela ergueu o olhar para mim. — Não está com bom aspecto. Pareceu surpresa. Estava claro que ninguém nunca lhe havia dito algo assim.
De repente, soltou uma gargalhada. O som daquela risada
despreocupada me lembrou da época em La Ciudad, e, por um momento, sentime bem. — Sou mais feliz agora do que já fui por muitos séculos. — Ela contemplava o horizonte. — Eu adoro este lugar. Não pude evitar me remexer um pouco, como podia ser feliz? Sem Liam e sem Christian? Para mim era algo incompreensível, pelo menos enquanto continuasse sem ver Liam com meus próprios olhos e tivesse aquele horrível dilema moral na cabeça a respeito de Christian, mas não consegui perguntar. Lisange era livre, podia defender-se sem problemas, podia voltar se assim o quisesse. Se ela era feliz, não queria estragar tudo. Além disso, por estranho que pareça, sabia que era verdade. Não muito debaixo daquela capa de cansaço e da palidez ainda mais antinatural, os olhos brilhavam febris. No céu, o sol já se pusera. O horizonte resplandecia com
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pequenos brilhos alaranjados enquanto a escuridão da noite começava a envolver tudo. — Está na hora de dormir. — Anunciou, e embora soubesse que isso fosse algo ao qual ela não estava acostumada a fazer, não comentei nada. Intuía que não só isso tinha mudado em Lisange De Cote, mas ela parecia feliz, e isso me reconfortava. Acordei no meio da noite por causa de um estranho fedor. Era tão intenso que podia sentir que penetrava com força pelo nariz e abria caminho até o meu cérebro. Parei de respirar e abri os olhos, tentando adivinhar de onde vinha aquele cheiro. Durante um instante, não percebi nada. Olhei um segundo em volta e inspirei de novo. O fedor era terrível. Tampei o nariz com o lençol e mudei de posição, mas ao fazê-lo, dei de cara com o corpo inerte de algum tipo de animal a milímetros do meu rosto. Sufoquei um grito, retrocedi e caí da cama com um ruído surdo. Assustada, engatinhei de costas com estupidez até me chocar contra a parede. Pus-me em pé e saí correndo do quarto à procura de Lisange, mas ela não estava no quarto. Procurei-a pela casa toda, sem encontrá-la. Confusa, saí na parte dos fundos, aquela que ia dar no vasto monte onde trabalhava Gareth, pondo especial atenção em não fazer nenhum som para não alertar ninguém. Ali, inspirei profundamente, deixando que o frescor da noite me invadisse por dentro e levasse para longe a lembrança daquele pestilento encontro. Lisange tampouco estava lá fora. Estava tudo tranquilo, em perfeita harmonia. Não havia mais luz do que as projetadas pelas estrelas, e uma ligeira brisa fazia balançar o capim do campo. Levei uma mão ao peito, que doía. Pensei em caminhar um pouco mais à frente, para explorar um pouco aquele lugar no qual nunca estivera, mas sabia que não podia me arriscar, e Lisange tampouco.
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Certamente estaria analisando o lugar, de modo que me deixei cair e fiquei sentada contra a fachada da casa. Pouco a pouco, os sons da noite começaram a exercer um efeito balsâmico em mim, e todo o mal-estar foi dando espaço a algo mais parecido à paz que não sentia há muito, muito tempo. Meu corpo relaxou e as pálpebras se fecharam aos poucos, mas de repente, todos os meus sentidos despertaram de forma tão brusca que acabou ficando dolorosa. Tinha percebido algo. Pisquei e procurei através da escuridão, sem me mexer, por causa do medo e do som de pisadas que chegavam até mim vindas do capim. Fiquei ali para não delatar minha posição, mas eles não estavam perto. Às pisadas se seguiram vozes, tão sutis que mal conseguia percebê-las. Devagar, pus-me em pé, sentindo que meu corpo e a parte sensata de mim mesma protestavam, mas uma vez mais, ignorei-os e avancei um pouco para o campo, agachada, por um local onde o capim era suficientemente alto para me ocultar. Olhei o céu, não tinha lua, era noite de guardiões. Meu corpo estremeceu de novo, mas eu me agachei e engatinhei até o local onde o terreno começava a descer, oferecendo uma ampla visão panorâmica. Então, eu vi. Havia duas figuras: uma alta, grande e esbranquiçada que imobilizava uma menor. Era um guardião, estava claro. Pensei em voltar para casa e pedir ajuda. De fato, levantei-me disposta a fazer uma incrível demonstração da minha grande velocidade, mas então, a própria claridade que oferecia a pele do guardião iluminou fracamente a extraordinária cabeleira avermelhada da presa dele. Um segundo, isso foi tudo o que precisei para me esquecer da absurda ideia de ir alertar os outros e me lançar colina abaixo em um resgate suicida. Nenhum deles teve tempo de reagir. Talvez o cansaço fizesse com que eu agisse de forma temerária, mas me lancei sobre ele. Ele se desequilibrou e ambos caímos no chão, forcejando. Lisange desapareceu do meu campo de visão. A
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criatura fez chiar os dentes pontiagudos, provocando o mesmo efeito se passasse as unhas em um quadro negro. Eu estava em minoria. Meu único plano de ataque consistia em lançar movimentos no ar, sem olhar para ele, na esperança de acertar algum golpe. Senti que a adrenalina canalizava toda preocupação e frustração daqueles dias em uma renovada força, mas algo deve ter falhado, porque, de repente, não conseguia mexer os braços. — Lisange, peça ajuda! — Gritei enquanto sentia que me arrastavam para trás. Não tinham me paralisado, alguém me segurava com força, impedindo que eu me defendesse. — LISANGE! A mesma pessoa que me imobilizava cobriu minha boca com a mão. — Shhhh! — Disse, com voz um pouco turvada e ansiosa. — Não grite, Lena, alguém poderia nos ouvir. — Lisange? — Perguntei atônita através dos dedos. O guardião parou e eu o contemplei, confusa. Ela passou a mão por baixo do meu braço e me obrigou a ficar em pé. Depois, muito devagar, liberou meus lábios. — Mas o que…? — Comecei a dizer me virando para ela. — Shhhh! — Voltou a me sossegar, vigiando, nervosa, a casa. — Abaixe a voz. — Quer que eu abaixe a voz? — Perguntei fora de mim. — O que está acontecendo? — Vá embora. — Ela disse para o guardião. — Lisange! — Eu estava atônita. O guardião pestanejou e desapareceu, não sem antes me dedicar um grunhido nada alentador. Imediatamente depois me virei para ela. — O que andou fazendo? Você ficou louca? — Inquiri. Ela inspirou profundamente e foi soltando o ar devagar, como se tentasse relaxar e pensar a toda velocidade ao mesmo tempo.
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— Há muito para explicar, Lena. — Sentou-se no chão e fez sinal para que eu a imitasse. — Você se aliou a eles? — Inquiri ainda sem me mexer de onde estava. — Sente-se, por favor. — Pediu, mas não lhe dei atenção. — Por que você o protegeu? — Não é um guardião qualquer. O nome dele é Reidar. — Começou. — Lembra-se do que aconteceu quando Christian salvou você de Silvana na ponte, pouco antes de vir para cá? — Foi ele que fez você desaparecer? — Ela assentiu com a cabeça. — Mas você disse que tinha acabado com ele. — Eu disse que consegui escapar. — Esclareceu e levou a mão à testa. Parecia realmente cansada. — Foi uma noite muito, muito difícil. — O tom de voz ficou mais grave. — Nunca tinha brigado durante tanto tempo. Ele me venceu, Lena, mas quando colocou a adaga contra o meu peito, eu o reconheci. Vi os olhos dele, e, apesar da aparência de guardião, descobri-o. — Não estou entendendo. — Reconheci me sentando ao lado dela, confusa. — Você o conhecia? — Na realidade, já lhe falei dele. Dele e de mim, em vida. — Foi então que entendi o que significavam aquelas palavras; arregalei os olhos e me pus em pé de um salto, com a boca aberta. — É difícil de acreditar, eu sei. Quando eu o chamei pelo nome ele me reconheceu também, e ao invés de me matar, ajoelhouse ao meu lado e me pediu perdão mil vezes. — Quer dizer que o homem que obrigou você a se matar é um guardião da Ordem de Alfeo? — Na teoria, sim. — E na prática! Tentou acabar com você de novo! — Recordei-lhe.
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— Poderia ter me matado naquele mesmo instante, Lena. — Franziu o cenho. — Mas não me matou. Além disso, havia muita dor nos olhos dele. — E você acreditou nele? — Perguntei atônita. Isso não era normal nela, não podia ter sido tão ingênua. — Está escondido desde que chegou. Eu não sabia, encontrei-o há apenas alguns dias. Ele traiu a Ordem inteira: a cabeça dele agora está a prêmio e ele fez isso por mim, para nos proteger. — E você acredita nele… — Voltei a repetir. Pouco a pouco começava a sentir que uma estranha força ia se apoderando de mim. — Eu não disse isso. — Ela se queixou, contrariada. — Mas ele é um guardião! — Exclamei. — E Christian Dubois, um grande predador, qual é a diferença, Lena? — Nenhuma, por isso mesmo. — A força crescia. — Por acaso você se esqueceu de quantas vezes me advertiu sobre ele? — Isto é diferente. Eu já o amava antes de me transformar nisto. — E ele traiu você. — Lembrei. — Ele está arrependido! — Três séculos mais tarde? — As pessoas erram! — Alegou. — AS PESSOAS NÃO MATAM A QUEM AMAM! — Gritei desesperada. O longo silencio se prolongou. Ela me olhava, magoada. — Não vê o quanto é perigoso? — Murmurei, tentando parecer mais calma. Sabia que a magoara. — Você, Lena? De todas as pessoas no mundo, precisamente você é quem me diz isso? — Afastei o olhar, franzindo os lábios com força. Sim, eu sabia que Christian era tão perigoso quanto, mas não sabia como fazer para que ela visse o quanto era diferente. — Lena... — Sussurrou. — Por acaso não se dá conta de que não tenho nada a perder? Passei três séculos sofrendo, esperando que a
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ferida cicatrizasse. Não me importa o que possa me acontecer se com isso ganho um só dia de felicidade. — Aquelas palavras bateram com força contra o meu peito, impregnando meu coração mais do que teria podido imaginar. — Você entende, Lena? Eu não disse nada. Ao invés, sentei-me no chão, abraçando os joelhos. Era tão injusto… Ela se aproximou mais de mim e me abraçou. — Tenho que voltar com ele. — Ela disse. — Por favor, volte para casa. Assenti de má vontade. Ela me olhou durante alguns segundos e em seguida, embrenhou-se no bosque para procurá-lo, de modo que me vi obrigada a voltar para casa. Quando entrei no quarto, o animal havia desaparecido. No dia seguinte, Lisange me arrastou até a rua principal do povoado. Ao que parecia, pouco importava a descoberta da noite anterior; ela havia assimilado o fato de que eu soubesse como se fosse algo normal, como se houvesse sido assim desde o começo. Tampouco lhe importou o fato de que estivéssemos no rincão mais escondido do mundo. Fazendo festa com o sobrenatural talento que tinha para essas coisas, localizou um pequeno centro comercial com duas lojas que eu nunca tinha visto antes. O rosto dela voltara a ser resplandecente, apesar do cansaço. Só a presença dela provocava engarrafamento, mesmo naquelas desabitadas estradas. Eu a sentia feliz, verdadeiramente feliz e isso conseguiu me animar um pouco. — Alegra-me poder compartilhar com você minha felicidade, Lena, mas preciso saber se você entende. — Lisange tinha insistido para que eu a acompanhasse para comprar tudo o que precisasse. — Você levou tempo para assimilar Christian, suponho que terei que me adaptar à ideia. — Asseguro-lhe que jamais o teria trazido. Você é minha prioridade, mesmo passando por cima de mim mesma.
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— Acredito em você. — Sorri incômoda. — O que não entendo é como não foge correndo cada vez que o vê. — Não é assim sempre! — Soltou uma gargalhada divertida. — Só quando há lua nova. Na realidade, tenho certeza de que você vai adorá-lo. Ele está um pouco mais velho do que quando o conheci, mas não mudou quase nada. — Gareth e Gaelle sabem? — Perguntei. — Gareth percebeu. Quanto a Gaelle, somos incompatíveis na forma de pensar, mas pelo que entendi, leva comida para ele diariamente, então não deve se importar. — Torci o gesto. — O que eu não entendo é por que não me contou antes. — Sentia-me um pouco magoada. — Não me parecia justo. Eu não fui muito compreensiva com sua relação com Christian, afinal de contas. — Ele é um guardião cujo grupo nos persegue. — Apontei. — Se Reidar quisesse nos matar, já o teria feito e a qualquer momento, mas ele não quer nos prejudicar. — Como sabe? — Como você sabia que podia confiar naquele grande predador? — Perguntou. Isso era golpe baixo. Limpei a garganta e olhei as pilhas de roupa que tinha diante de mim. — Não seria melhor que ele viesse? — Perguntei, mudando bruscamente de assunto. — Você sabe, para ver se gosta, essas coisas. — Ele não pode sair, Lena. Arrisca-se a ser descoberto por algum guardião. Além disso, ele parece encantado com a roupa de Gareth e isso eu não aguento. — Se não sai, como se alimenta?
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— Oh, olhe! Ali! Vamos ver o que tem ali. — Pegou minha mão e me puxou para o outro lado da loja. Tive que guardar a pergunta para mim mesma porque sabia que ela não responderia com humanos por perto. — Eu diria para você procurar algo para o Christian, mas o Sr. Dubois nunca permitiria que ninguém lhe dissesse o que vestir. Ri, era verdade. A verdade era que Lisange não tocara mais no nome dele. Entretanto, ouvir o nome dele agora tinha provocado de novo em mim aquele incômodo nó na garganta. — Vou lá fora. — Avisei. — Você está bem? — Focou a atenção em mim. — Preciso de um pouco de ar, continue você. — De acordo, já quase terminamos. Assenti e saí à rua. Sentei-me em um pequeno banco junto à entrada e tentei respirar fundo. Inclinei o corpo para trás e contemplei o céu, brilhante e espaçoso. Ainda não tinha assimilado o que tinha acontecido na noite passada. Nem o animal, nem o guardião de Lisange. Como ia explicar para Christian que vivia sob o mesmo teto que um guardião da Ordem de Alfeo? Então, um som potente me trouxe de novo à realidade: era de um motor que se aproximava, sem dúvida nenhuma. Meu coração deu um salto e levantei-me de um pulo. Movia-se rápido, e mudava de direção muito depressa para mim. Corri à procura dele, mas por mais rápido que eu fosse, era impossível competir contra a centena de cavalos que teria aquele veículo. Atravessei ruas e estradas até que me desorientei por completo. Não tinha como continuar seguindo-o e estava chamando muito a atenção. As pessoas me observavam com estranheza, e pude inclusive reconhecer algumas pessoas do instituto. Apoiei-me ligeiramente contra uma fachada, perguntando-me se talvez tivesse imaginado tudo. Suspirei resignada e já me dispunha a voltar quando, de repente, um brilhante e
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caríssimo carro negro apareceu na esquina, passou diante de mim e seguiu em frente até perder-se no tráfego da pequena cidade. Não foi mais do que um segundo, mas bastou para que eu pudesse vê-lo, para que pudesse confirmar que eu conhecia aquele carro e a pessoa dentro dele. Embora não fosse a única pessoa que reconheci. Tinha visto outra figura: uma mulher de longa cabeleira castanha e sorriso matreiro. — Lena! — Escutei Lisange atrás de mim. — Onde estava? Você me assustou. — Eu vi… — Gaguejei. — Acabei de ver… — Eu a olhei, confusa. — Christian.
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SEGUNDA PARTE Nada, absolutamente nada faz sentido.
— Gaelle! — Chamei assim que entrei pela porta. — O que houve? — Ela disse alarmada, saindo ao nosso encontro. — Viu Christian? — Perguntei impaciente, com um sorriso de orelha a orelha. — Ele veio aqui? — Não, querida. — Respondeu, limpando as mãos em um pano. — Ele já chegou? — Ela acredita que o viu. — Lisange explicou. — Talvez tenha passado por aqui enquanto eu fui buscar Valentine na escola. — Sugeriu. — Quer tomar alguma coisa? Como podia pensar nisso em um momento assim? Mas, então, algo chamou minha atenção: Valentine. Ela estava feliz, muito, muito feliz; embora à própria macabra maneira. Fiquei gelada e lentamente, aproximei-me dela. — Você também o viu, não é? — Perguntei, aproximando-me e me ajoelhando ao lado dela, junto à mesa.
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— Pode ser. — Cantarolou. A menina largou as pinturas e se virou para mim, sorrindo. Desta vez sim, parecia um autêntico sorriso. — Gaelle vai fazer um vestido novo para mim. — Não me importa o vestido. — Soltei impaciente. — Você o viu? — O vestido é para ele. — Soltou uma risadinha. — Ele me trouxe um presentinho e quer que eu o coloque para dá-lo para mim. — Ele lhe entregou alguma mensagem para mim? — Minha emoção começava a dissipar-se. — Nem sequer mencionou você. — Respondeu ampliando ainda mais o sorriso. Um mau pressentimento começou a apoderar-se de mim. — Eu sempre soube que continuava preferindo a mim. — Inclinou-se para frente e rodeou meu pescoço com os braços, abraçando-me. Senti o cheiro intenso e infantil, misturado com outro muito conhecido. Ela riu e se afastou. — Gaelle! — Diga, meu amor. — A mulher se aproximou às pressas pela porta. — Leve-me daqui. Quero o melhor vestido. — Claro, minha querida. Vamos. — Sorriu e tirou o avental. Valentine me dirigiu um último sorriso antes de sair à rua, guiada por Gaelle. Lisange se aproximou de mim e pôs um braço sobre o meu ombro. — Não acredite nela. Se Christian estivesse aqui, já teria vindo para vê-la. — Ela não mentiu. Estava com o cheiro dele. — Disse enquanto me deixava cair no sofá. — Que sentido tem isso? Por que não viria aqui? Ia responder, mas repentinos batimentos cardíacos me obrigaram a me pôr de pé de um salto. — Dubois voltou? Eu me virei, alarmada ao ouvir aquela voz desconhecida. — Calma, Lena... — Lisange disse, sorrindo. — É Reidar.
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— O que ele está fazendo aqui? — Perguntei me afastando. O homem se colocou junto a ela e beijou-lhe a mão. Era verdade, ele não se parecia em nada à figura esbranquiçada e atemorizante da outra noite. Era alto, corpulento e bastante atraente. Tinha cabelo castanho que caía ordenado para trás, e os olhos de um azul intenso. Não era belo como Christian ou como Lisange, mas possuía o tipo de beleza que, àquela altura, podia ser considerada humana. — Lisange fala constantemente em você. — Disse com voz grave. Havia algo na forma como ele sorria que lhe conferia certa calidez. — Não tenha medo de mim, sou eu quem está em desvantagem. — De onde ele saiu? — Perguntei a ela. — Reidar passou esta noite naquele quarto. — Apontou com os olhos uma porta fechada perto da cozinha. — Um guardião na despensa? — Arqueei muito as sobrancelhas. — Soa a filme de terror. — É o melhor lugar para camuflar o cheiro dele. — Ela explicou. — Não acredito que Gaelle tenha gostado da ideia. — Assegurei. — Vive cozinhando o tempo todo. — Pois é, mas não é Gaelle que me preocupa… A porta se abriu de repente. Gareth apareceu por ela. — O que está fazendo aqui? Valentine poderia farejar você. — Disse agitado. — Aconteceu alguma coisa? — Perguntei confusa ao ver o estado dele. — A saída está cheia de policiais. — Informou. — Encontraram o corpo de um humano perto do povoado. — O que aconteceu? — Lisange perguntou aproximando-se dele. — Não sei, mas não cheirava a sangue.
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— Grandes predadores? — Perguntou a voz grave de Reidar, provocando um formigamento que subiu pelas minhas costas. Lisange se apressou a ir até a janela e deu uma olhada para fora. — Vem vindo alguém. — Anunciou. Meu coração deu um pulo de emoção ao pensar em Christian. — Dois homens uniformizados, parecem policiais. — Afaste-se da janela. — Gareth ordenou, com repentina pressa. — Vocês dois e Lena, vão lá para baixo e se escondam. — Por quê? — Perguntei. — Obedeçam. — Disse, empurrando Reidar e a mim para aquela porta quase escondida. — Lisange, o que está esperando? Ela se juntou a nós depressa e a porta se fechou de repente. Do outro lado pude ouvir que chamavam do portão e Gareth que, um segundo depois, afastava a madeira para um lado. — Bom dia, senhor… — A voz do homem hesitou, decerto deslumbrado pela beleza sobre-humana de Gareth. — Por que eles não podem nos ver? — Perguntei enquanto os ouvia fazendo perguntas. — É melhor que ninguém saiba que estamos aqui. — Reidar respondeu. — Nossas cabeças estão a prêmio. — Está chovendo, importa-se que continuemos dentro da casa? — Certamente… — Gareth respondeu. Lisange subiu as escadas e se grudou contra a porta para escutar com mais clareza. Uma vez dentro, continuaram com as perguntas. Aqueles homens queriam saber tudo: quando tinha chegado, há quanto tempo estava ali, quantas pessoas viviam na casa, etc. Mas Gareth parecia que tinha tudo sob controle;
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respondia a todas as perguntas com total naturalidade, sem vacilar, como se as tivesse assimilado, em vez de tê-las memorizado. De repente minha mente deixou Gareth em segundo plano e se centrou em alguns passos lentos que percorriam a sala de um lugar para o outro, até que se detiveram frente à porta depois daquela onde estávamos escondidos. Foi apenas um gesto sutil, mas escutei com total clareza que cheirava o ambiente, que farejava o ar. Lisange levou a mão a uma perna e vi como seus dedos acariciavam o que, com total segurança, era o punho de uma adaga. Ela se virou e fez um sinal para que não fizéssemos barulho. Respirei fracamente tentando captar o cheiro dele, mas não consegui: chegavam-me centenas de outros cheiros de forma muito intensa. Ergui os olhos e olhei em volta, suspendendo qualquer ruído e tentando adivinhar se toda aquela comida seria suficiente para dissimular nosso cheiro. Um ligeiro chiado devolveu minha atenção para a porta e observei, horrorizada, que o trinco começava a girar. — Muito obrigado por sua atenção, se lembrar-se de algo mais ou vir algo incomum por aqui, informe-nos. — É obvio. — Ele respondeu de forma educada. Então, a sombra que produzia o homem debaixo da porta se moveu e os passos voltaram a ressoar contra o chão até desaparecer. O portão se abriu e se fechou de vez. Ao meu lado, Lisange e Reidar pareciam voltar a respirar. Novamente passos se aproximaram da porta e a abriram de repente. — Eles já se foram. — Gareth anunciou. Abandonaram a casa, mas não o local. Lisange e eu contemplamos desde a janela mais alta que davam voltas ao redor, vigilantes, encerrando-nos naquele povoado.
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— Começo a invejar Liam… — Pensa que irão embora logo? — Não sei. — Passou um braço pelo meu ombro e me abraçando. — Esperemos que sim. — Pensam que fomos nós, não é? Ela suspirou e fechou as cortinas. Ficamos de novo às escuras. — Vamos, Lena. Com certeza você tem coisas para fazer. Esperei que Christian viesse me ver, mas vi passarem os segundos, depois os minutos e finalmente as horas e isso não aconteceu. Não conseguia entender por que não aparecia na casa. Por mais argumentos que formulasse em minha imaginação, sempre havia algum detalhe tolo e sem importância que acabava desmontando toda a desculpa e me devolvendo à realidade. Devia estar zangado comigo, mas não me lembrava do que eu podia ter feito para ter semelhante castigo. O desespero e a impotência foram crescendo em mim e no segundo dia, saí para procurá-lo no único lugar que conhecia e no qual poderia estar: na igreja. Corri para lá com o coração na garganta, mas lá dentro não havia ninguém. O carro não estava estacionado na entrada, a porta principal estava fechada e não havia sinal de vida e no entanto, o cheiro dele impregnava tudo. Valentine não mentira, nem eu tinha ficado louca, ele tinha retornado e por alguma razão, tinha decidido me ignorar. Mais tarde, parei de procurá-lo. Sabia que se ele não queria ser encontrado, então eu não ia conseguir, por mais que investisse todas as minhas forças tentando. Continuava sem entender por que ele não queria me ver e por mais que repassasse minhas lembranças com ele não encontrei nenhuma só frase que fosse responsável pelo aborrecimento dele. À medida que os dias iam passando, a impotência se transformou em raiva. Era eu que devia estar zangada com ele por
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me abandonar no meio do nada com desconhecidos que estava claro, não gostavam muito dele. Ele que tinha desaparecido! Era absurdo tentar encontrar um responsável, ou simplesmente um por que, então logo me proibi de pensar nele, comecei a passar muitíssimo mais tempo com Lisange e Gaelle, falando, em separado, de coisas sem importância. Para minha surpresa, o enorme vazio que provocava a ausência de Christian foi ocupado por Liam; Liam, a falta de notícias sobre o estado dele e a tremenda vontade de ir procurá-lo. Para piorar a situação, as aulas, de repente, mudaram. Como norma geral as pessoas não estavam acostumadas a se aproximarem de mim, à exceção de Jerome, ao qual eu não via já há algum tempo, mas nos últimos dias, todos se viravam para me olhar e cochichar entre eles quando me viam passar. Eles procuravam não roçar em mim ao passar, alguns inclusive me olhavam assustados. Foi em meio a uma aula de literatura quando ouvi o rapaz à minha frente sussurrar com a companheira sobre mim. Tinha aparecido um novo humano, desta vez ainda vivo, mas aturdido e tinha revelado algo sobre o povoado onde eu vivia. Lembrei-me da história de Jerome, sobre o que se dizia do lugar e da família que me acolhera e o entendi: todos pensavam que eu tinha tido algo a ver com o fato. Ao voltar para casa, não conseguia tirar aquele pensamento da cabeça. Que nos acusassem de algo assim era horrível; horrível de verdade. Quando ergui a cabeça vi dois carros da polícia estacionados em meio ao descampado, junto com uma ambulância. O ar transportava cheiro de sangue. Fiquei nervosa e acelerei o passo para lá, queria ver o que tinha acontecido e me assegurar de que não tinha sido um de nós quem os estava atacando. Primeiro andei com certa tranquilidade, depois apertei o passo e finalmente, corri pela estrada, mas não consegui chegar ao outro lado. Um veículo bege saiu do nada e impediu minha passagem.
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— Lena, entre no carro. — Você viu aquilo? — Perguntei-lhe. — Entre no carro! — Repetiu. — Dê-me um segundo, preciso ver uma coisa. Pode ser que seja… — Lena! Entre! — Dei uma última olhada naquela direção e entrei no carro. Sem nada mais a fazer, Lisange nos tirou dali. — O que é que aconteceu? — Perguntei sem deixar de olhar pelo espelho retrovisor as pequenas cabeças que observavam algo no chão. — Outro ataque. Acabam de encontrar um humano. — Outro? — Já apareceram uns quantos, nos últimos dois dias. — Por que você não deixou eu me aproximar? — Duvido muito que sejamos os únicos que nos demos conta de tudo isto e se for assim, asseguro-lhe que haverá uma fileira de guardiões rondando o lugar. — Ao chegar ao outro lado, descobrimos algo novo; os carros de polícia virtualmente cercavam o povoado. — Abaixe-se. — Disse enquanto colocava os óculos de sol. Com a tensão do momento, não tinha prestado atenção que ela estava com o cabelo inteiro coberto com um lenço. Imaginava a razão. Lisange De Cote era única. Se houvesse guardiões por perto, não demorariam mais de um segundo para reconhecê-la. — Grandes predadores. — Gareth anunciou assim que entramos pela porta. — Grandes predadores descontrolados. — No instituto acreditam que fomos nós. — Confessei. — Sim, eu também notei. — Gaelle parecia consternada. — Será melhor que não voltem às aulas até que tudo se normalize. Ergui as sobrancelhas com surpresa, de forma involuntária: Gaelle sugerindo que NÃO fôssemos à aula? Pelo menos o dia tinha uma boa notícia!
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— E como vou me alimentar? — Valentine soltou zangada. — Encontraremos um jeito, meu anjo. — Não quero encontrar outra forma! — Mas você odeia aquele lugar. — Gareth recordou. — Não consigo me alimentar em outro lugar! — Todos nós devemos colaborar. — Gaelle tentou dizer. — NÃO, NÃO E NÃO! — Gritou fora de si e ficando em pé no sofá. Lisange, que tinha se mantido à margem igual a mim, aproximou-se dela e deu-lhe uma bofetada. Um intenso silêncio se estendeu na sala. — Colabore. — Disse-lhe com voz firme. Valentine levou uma mão à face e se deixou cair de novo no sofá. — Eu vou matá-la. — Assegurou, mas ficou tranquila. — Lisange, talvez devêssemos voltar para La Ciudad, com Liam. Se nos descobrirem, será o caos. — Não. Cedo ou tarde eles voltarão lá para nos procurar. Se formos, não poderemos voltar. — E quanto a Liam? — Ele vai nos encontrar. Quando vim para cá ele estava praticamente curado. — Ninguém vai partir. — Gaelle anunciou. — Este é o nosso lar. Nenhum de nós o abandonará. — Pode ser perigoso. — Lisange advertiu. — Essas são minhas últimas palavras a respeito deste assunto. — A voz dela soou muito firme. — Nesse caso iremos nós. — Não podem fazer isso. Seria muito ingrato. — O que quer dizer? — Perguntei.
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Gareth suspirou e disse: — Infelizmente, se vocês partirem, todos pareceremos culpados. Devem ficar até que fique provado que não fomos nós. É o mais prudente. — O prudente seria partir, Gareth. — Vocês aceitaram cumprir nossas normas, Lisange, então vou repetir: vocês devem ficar. — Ela lhes dirigiu um olhar severo e desapareceu na escada. — Valentine riu. — Espero que você entenda, Lena. Nós nos comprometemos a ajudar vocês, mas também devemos proteger nossa família. — Eu entendo, Gareth. Não se preocupe. Suponho que entendo… Lisange não reapareceu o resto do dia, então aproveitei a última hora da tarde para escapulir pela janela do meu quarto. Sair da casa às escondidas tinha se transformado em um costume. Todos davam por certo que eu passava horas encerrada no meu quarto, esperando Christian chegar. Certamente é o que eu deveria ter feito, não para esperá-lo, mas sim pela quantidade de vezes que tinham me advertido sobre o aumento de vítimas que estava havendo nesse lugar, em concreto, no descampado que eu tanto frequentava. Mas não dava; era desesperador passar as tardes encerrada entre aquelas quatro paredes ou, no melhor dos casos, vendo que Lisange e Reidar se davam de presente algo mais que mostras de afeto, e depois, claro, tinha Valentine. Aquela menina e aquele enorme sorriso que me anunciava “você está morta”, era o que me fazia querer escapar a todo o momento; cada vez que me via, não duvidava em relatar os contínuos encontros com o grande predador por quem eu estava dolorosamente apaixonada. Sem me dar conta, a noite caiu sobre mim. Suspirei e decidi dar a volta para retornar a casa. Não tinha perdido tanto o juízo para ficar perambulando por aquele lugar às escuras e menos ainda tendo que atravessar o prado. Entretanto, atravessei-o sem nenhum problema. Ri com amargura para mim mesma ao
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descobrir que eu já nem sequer interessava aos guardiões. Subi devagar a escada, mas ainda não me agradava voltar, então decidi dar uma volta pelas pequenas ruas do povoado e serpentear à procura de algum lugar que já não tivesse visto. Não havia nem uma alma nelas. Nunca, melhor dizendo. Surpreendeu-me descobrir que aquele lugar estava ligeiramente ladeira acima. Pelo que parecia, a casa em que eu estava ficava no subúrbio, porque, atrás dela não tinha nada. Nunca tinha percorrido o local totalmente. Conforme ia me afastando da casa onde eu “vivia”, os edifícios eram mais e mais abandonados, até o ponto de acabar em ruínas. Contemplei o teto caído de uma casinha. Não estranhava que pensassem que aquele lugar estava encantado. “Eu também pensaria.” Pequenos barulhos sacudiram, então, o silêncio que rodeava aquele lugar inteiro. Estranhando de verdade que houvesse gente ali, segui o rastro daquele som. Depois de tudo o que tinha acontecido comigo, estava bastante claro que embrenhar-me sozinha por aquelas ruas profundas era uma ação temerária, mas também tinha tido tempo suficiente para me conhecer e descobrir que não poderia evitar a curiosidade de averiguar se tinha mais gente ali, então escalei os escombros até chegar ao que parecia ser o telhado. As pedras balançaram um pouco e tive que fazer um pouco de equilibrismo, mas elas aguentaram. Uma vez lá em cima, voltei a sentir aqueles ruídos. As casas estavam tão perto umas das outras que podia saltar sem problemas de um telhado para o outro, apesar da minha aparente falta de agilidade. Continuei brincando de correr pelos telhados até que encontrei três figuras entre as sombras de uma ruela. Parei imediatamente, mas o que vi me deixou congelada no lugar e meu coração deu um pulo. Lá estava ele, sujeitando com força o pescoço de um homem contra a parede enquanto Elora fazia com ele exatamente o mesmo que eu vira Christian fazer naquela noite em La Ciudad.
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Não conseguia ver o rosto da pessoa porque ela o tampava, mas vi que, de repente, Christian deixou de apertá-lo e o corpo caiu inerte ao chão. Levei a mão à boca para sufocar um grito. — Precisamos de gente jovem. — Ela comentou. — Estes não duram o suficiente. Estou farta de ter que depender de gente velha. — Já chamamos a atenção o suficiente. Ninguém se lembra dos humanos que vivem aqui. Por algum tempo terá que se conformar. — Isso não me basta. — Ela sentenciou. — Eu sei. — Não, não sabe. Talvez eu também devesse procurar um caçador predisposto a sacrificar-se por mim. Eles ficaram se olhando de forma intensa. Meu coração se apertou com força contra o peito. — Mesmo que fosse assim. — Ele disse por fim. — Não me serve para nada. Apesar da iminente escuridão, pude ver que ela sorria. — Perdoe-me, que falta de delicadeza da minha parte me esquecer disso. — Deu um passo para ele e pegou-lhe a mão. — Eu posso aliviar isso. — Sussurrou e levou a mão dele ao peito. — O que está fazendo? — Ele perguntou com voz fria. Ela inclinou a boca. — Não deixei nada para você. — Mostrou com a cabeça o homem no chão. — Não foi justo da minha parte. — Os olhos dele deslizaram para o peito dela. — Vá em frente, sacie-se com minha dor. — Ele ergueu o olhar até os olhos dela e intercambiaram um olhar de cumplicidade. Elora passou a mão pela bochecha dele, acariciando-o. — Eu sei que você quer. — Sussurrou.
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De repente, a boca de Christian torceu em um irresistível sorriso. Ela apertou a mão com mais força. Ele fechou as pálpebras e entreabriu ligeiramente a boca, com a cabeça um pouco virada para trás, como se estivesse desfrutando com aquele contato. Então, abriu os olhos de repente e empurrou-a contra a parede, apertando-a com o próprio corpo. Ela riu e com um único movimento e ante meu horror e surpresa, vi a mão de Christian desaparecer no peito de Elora, que emitiu um gemido sufocado de dor. Enojada, retrocedi, tropecei em algumas pedras e caí para trás. Fugi dali, assustada se por acaso tivessem me escutado. Corri pelos telhados com todas as forças, sem me preocupar com o barulho, em ser silenciosa ou se por acaso estivessem me perseguindo. Não me virei para conferir, preferia não saber. Aterrissei na varanda do meu quarto e sem pensar duas vezes, entrei, fechei a janela e me afastei dela o máximo possível. Choquei-me de costas contra a parede oposta, com a respiração agitada e aquela repugnante imagem voltou à minha cabeça. Lentamente, deixei-me cair, abraçando os joelhos e me acocorando sem parar de olhar para fora. Não sei quanto tempo fiquei ali, escondida. O mais provável é que não fosse muito, porque, quando por fim recuperei o fôlego, ainda ouvia barulho no andar de baixo. Levantei-me do chão um pouco enjoada, apoiando-me na parede para não cair. Estava cansada, não sabia se o que tinha visto era real ou um produto da minha perturbada imaginação, mas uma olhada para minha roupa me lembrou de forma cruel o que tinha contemplado. Cheirava a cimento e terra. Eu mesma, ao cair no chão, fiquei coberta por uma leve capa esbranquiçada. Com cuidado, dirigi-me ao chuveiro e me coloquei sob a água geada. A imagem de Christian com a mão enterrada no corpo de Elora voltava à minha mente cada vez que fechava os olhos; também aquela expressão prazenteira, o sorriso macabro e o gemido de dor que ela soltara. Lisange tinha
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razão, ele era um dos causadores dos recentes ataques. Ele e a macabra família dele. Senti algo doloroso no peito. Não era a única coisa que tinha descoberto: agora também sabia por que razão ele não tinha voltado para me buscar, e isso tinha muito a ver com Elora e com a natureza dele de grande predador. Meus olhos começaram a arder de dor. Fechei a torneira de repente, peguei uma toalha para secar o excesso de água do cabelo, vesti-me e apaguei as velas com má vontade. Ao entrar no quarto, a toalha escorregou dos meus dedos e caiu no chão. Abaixei-me para recolhê-la e ao erguer os olhos, fixei-me na janela: estava aberta, a leve brisa vinda de fora acariciou minha pele de forma horripilante. Fiquei um instante ali, sem me mexer, certa de que a tinha fechado. De repente, a única vela que tinha no quarto apagou subitamente. Meus sentidos se aguçaram tentando captar algo fora do normal. Incorporei-me pouco a pouco, grudada à parede, tentando visualizar algo entre as sombras. Nesse momento, algo ou alguém cobriu minha boca e me empurrou para dentro do banheiro. Tentei gritar, mas nenhum som saiu da minha garganta. Choquei-me contra a parede, embora de forma menos brusca do que tinha esperado, mas o susto me cortou a respiração. Então, senti um hálito contra meu ouvido. — Amanhã de noite. — Sussurrou de forma acelerada. Todo meu corpo reagiu ao ouvir aquela voz. — Neste lugar. Deixou um papel entre meus dedos. Suguei o ar e o cheiro dele reavivou todos os meus sentidos. — Christian? — Balbuciei através daquela mão. Na realidade não sei por que perguntei, o doloroso contato com a pele dele já era suficiente para delatá-lo. — Não diga a ninguém aonde vai. — Voltou a dizer com voz profunda. Confusa, ia dizer algo, mas de repente, soltou-me e pelo rastro de ar que deixou ao passar, deduzi que já não mais estava ali. Assim que consegui reagir,
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saĂ depressa para o quarto e corri para a janela, mas era tarde, ele jĂĄ tinha partido.
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Amores que matam
Não consegui dormir à noite inteira, nem pensar em nada mais que não fosse ele durante o dia inteiro. O que estava acontecendo? Eu o vira atacar um humano e deleitar-se com Elora. Por que tinha que escolher justo aquele momento para vir me procurar? Acaso tinha me escutado? Sabia que eu o tinha visto? Tratava-se de uma nova estratégia? Por acaso a “família” tinha se virado contra ele e estavam vigiando-o? Minha mente lutava para averiguar se estava fingindo por nossa segurança ou se, na realidade, eu já não significava nada para ele. Havia algo naquela forma de me encontrar com ele que me provocava um mal pressentimento e pela primeira vez, hesitei em querer voltar a vê-lo. O Christian que eu havia encontrado não era o mesmo que eu conhecia e tudo isso me causava um pressentimento muito ruim, mas que outra coisa eu podia fazer? Tinha passado semanas desejando ter algum tipo de notícia dele, a impotência estava acabando comigo. Será que eu suportaria ficar em casa sabendo que ele, talvez, pretendesse me dar uma explicação? Passei a tarde toda tentando decidir o que é que eu devia fazer. Bom, estava bastante claro que me encontrar de noite na casa de um grande predador era algo que eu NÃO “devia” fazer se apreciava minha integridade, por mais que fosse Christian. Então, na realidade, o que devia descobrir era se eu “queria” ir lá de verdade. Esse era o autêntico problema: não estava nada claro. A atitude de
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Christian era muito suspeita, mas continuava sendo ele, aquele que tinha se sacrificado por mim sem vacilar. Assim, para minha surpresa, vi-me à meia noite diante da entrada do endereço que aparecia na nota. Senti como se algo pesado caísse sobre mim; era a igreja. Aquele enorme e velho edifício no qual tinha me encontrado com Hernan. Quase que podia ouvir meus músculos rangerem a cada movimento, pela tensão que os mantinha rígidos como pedras, enquanto subia a escada até a entrada. Inspirei forte, sentindo que algo me pressionava o peito, como se meu coração estivesse querendo pulsar de forma descontrolada. Tentei parar de respirar, mas não consegui controlar aquela acelerada parte tão emocional de mim mesma. Eu me enfureci: era ridículo. Por que tinha que me sentir assim? Era Christian. Ele me amava. Tinha me salvado! Apertei os dentes com força e empurrei a porta. Chiou, mas não tanto quanto poderia se esperar de algo tão antigo. Em seguida me invadiu de novo o cheiro de incenso queimado. Fechei a porta com cuidado e avancei pelo corredor de bancos, devagar, com o som de um coração batendo em meus ouvidos. Respirei de forma lenta e profunda para poder relaxar. Por um momento pensei que estava sozinha, que Christian não tinha comparecido, mas ao olhar para um lado, descobri-o na parte esquerda, ao fundo, em um local desprovido de qualquer tipo de mobiliário, exceto pelo enorme painel de velas acesas. Devia ter centenas delas e ali, no meio, desenhava-se uma silhueta. Uma figura masculina de cabelo negro, embelezada completamente pela roupa branca, do pulôver de colarinho alto que parecia uma segunda pele, até as calças, fazendo com que a pele dos pés descalços inclusive parecesse um pouco mais viva. Nunca tinha visto Christian vestir-se com aquela cor, mas era ele, teria reconhecido o cheiro dele em qualquer lugar. Parei a vários passos de distância, não sabia o que dizer. Então, devagar, ele se virou.
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— Christian… — Eu me esqueci dos medos e corri para ele, abraçandome contra seu peito. Apertei-me com força ao corpo dele. Tinha desejado tanto voltar a senti-lo. Mas o coração dele pulsava lento, pausado. Não acelerou com a minha presença. Além disso, os braços pendiam rígidos de ambos os lados do corpo. Lentamente, afastei-me dele. — O que foi? — Perguntei com medo. Uma pesada sensação estava se apoderando do meu corpo todo. — Agradeço-lhe que tenha vindo. — O rosto estava sério, impassível e sombrio; a voz sombria e profunda, e os olhos, frios. — Alguém sabe que está aqui? “Minta”, ordenou minha mente. — O que importa isso? — Alguém sabe? — Christian, o que é que está acontecendo? — Ele cravou em mim durante um instante seus profundos olhos. — Você nunca soube mentir, por isso não quer me responder. — Fez uma pequena pausa. — De qualquer forma, jamais teriam permitido que viesse se soubessem, então suponho que a resposta é óbvia. — Você está me assustando… — Murmurei recuando um passo. — Só lhe fiz uma pergunta. — Creio que devo ir embora. Dei meia volta para me dirigir à entrada, mas imediatamente descobri um enorme tronco de madeira cruzada contra a porta. — Está fechada, igual a todas as outras. — Virei-me de novo para ele. Meu corpo ficou rígido pelo crescente pânico. — Temos algo pendente. — Se isto for alguma brincadeira, asseguro-lhe que não estou me divertindo.
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Ele se aproximou de mim, lentamente, mas sem vacilar. O som da respiração compassada ressoou entre os muros, acompanhado pelo ritmo lento do coração dele. Parou a um palmo de distância de mim. — Mas você vai. — Passou uma mão gelada pelo meu pescoço e se colocou atrás de mim. Seu tato resultou terrivelmente desagradável. — Você nunca teve medo de mim. — Sussurrou junto ao meu ouvido, fazendo-me estremecer. — Por que iria começar agora? — Por que queria que eu viesse? — Perguntei de forma entrecortada. Ele ficou em silêncio antes de responder, afastando-se de mim. — O que é que você pensa que seja? — Pensava que queria me explicar o que está acontecendo. — Shhhh — Sussurrou, colocando-se de novo diante de mim e apoiando a testa contra a minha. — Quero sua vida, Lena, quero você. Afastei-me dele como se queimasse. Todo meu corpo se encolheu de terror. — Eu lhe disse que chegaríamos a tempo. — Interrompeu alguém do outro lado da igreja. Virei-me, e vi uma figura entre as sombras. Era alto, pálido, com o cabelo murcho emoldurando um rosto afilado e belo. — Deixe-o saborear a presa, Lester — Disse outra figura ao lado dele. Desta vez uma mulher. — Ele já esperou demais. — Do que estão falando? — Gaguejei. Ele torceu a boca em um sorriso e me deu as costas. — Devíamos deixar este assunto resolvido. — Está mentindo. — Titubeei. — Você nunca me deixaria nas mãos dessa mulher. — Essa brincadeira já durou muito tempo. — Disse tranquilo, virando-se para mim. — Será melhor para ambos
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— Como pode dizer isso? — Avancei para ele e peguei a mão dele. — Você não é como eles. — Tem razão. — Olhou-me com frieza. — Eu era mais forte e poderoso que eles, até que você chegou. — Soltou-se de forma brusca da minha mão. — Isto não é apenas algo que já devia ter permitido faz tempo. Olhei-o, incapaz de acreditar naquelas palavras. — Fique! — Soltei em um alarde de desespero. Tremia de acima a baixo. — Se vai me entregar, pelo menos tenha a coragem de ficar. — A verdade é que eu não sabia por que tinha dito isso. — Já vi isso antes. — Respondeu com frieza. — E o que importa? — Soltei, com a voz carregada de dor. — Por acaso não adora sangue? Você não é o temível grande predador? — Ele parou em seco. Virou-se de forma brusca e avançou para mim com duas pernadas. Com um movimento ágil me agarrou pelo pescoço e me ergueu do chão. A pele dele ardia. — Não tente me provocar, Lena. — Advertiu entre dentes. — Você é a única coisa que me deixa fraco e isso vai acabar esta noite. — Então, divirta-se você também. — Desafiei com voz sufocada. — Quem você pensa que vai matá-la? — Cravou as pupilas nas minhas. Afastou-se de mim e vi em seus olhos uma assustadora ferocidade. Não havia nem um pouco de humanidade, nem o mais leve rastro de compaixão. Aquele olhar brutal remexeu minhas vísceras e, sem dizer nada mais nada, soltou-me com brutalidade aos pés de Elora. — Bem-vinda ao mundo, Helena. — Soltou com desprezo e em seguida se virou para ela. — Comece de uma vez! — Um belo detalhe trazer uma caçadora e não me convidar para semelhante festim. — Hernan ronronou. Ninguém o vira chegar. — Hernan… — Elora saudou.
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— Ainda não começamos. — Lester informou. — Apenas um detalhe. — Repetiu. — Sabíamos que viria, Hernan. Você fareja carniça a quilômetros de distância. — Sinto-me lisonjeado, Elora. — Chegou perto de mim, deu-me um sorriso e se virou para Christian. — Essa não era sua encantadora caçadora? — Sim. — Elora apoiou. — Tenho certeza de que poderá encontrar algo especial para ela. — Aproximou-se dele e lhe sussurrou ao ouvido. — Alimente-se de sua própria dor e regozije-se na dela. Sei que desfrutará vendo-a sofrer. Beijou-o na face. Christian se virou para ela com expressão dura. — Se não, deixe-a para eles e vamos para outro lugar. Ele franziu o cenho, pensando. Afastou-se de Elora e me olhou de forma estranha. — Christian? — Perguntei atônita, incapaz de acreditar naquela cena. — Que eles comecem, mas eu a quero viva. — Respondeu sem afastar os olhos de mim. Nesse momento, pus-me a correr e entrei na única porta que encontrei: a sacristia. — Ei! — Elora gritou. Ali, descobri uma pequena escada a menos de um metro de distância de mim. Corri velozmente por ela, saltando os degraus de três em três. Não tinha alcançado nem a metade quando eles abriram a porta de repente. Apertei os dentes e lutei para ser mais rápida que eles. Saí da escada e entrei em uma peça que dava para um corredor com montes de portas. Devia ser uma casa anexada à igreja. Corri por ele e entrei em um dos primeiros aposentos. Peguei o primeiro que encontrei e tranquei o ferrolho. Podia escutá-los,
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inspecionando todas as peças. Era apenas questão de tempo que me encontrassem. Fui até a janela e a abri de par em par, mas as grades tornavam impossível sair por ela. Escutei uma batida e me virei em seco; já tinham chegado à peça contigua. De novo, meus músculos ficaram rígidos e comecei a sentir uma enorme pressão no coração. Tentei não fazer barulho, mas então, alguém tentou girar a maçaneta. Primeiro devagar, mas ao comprovar que estava trancada, com muito mais força. Levada pelo pânico, tentei encontrar algo útil ao meu redor. Tudo estava coberto por lençóis. Procurei e rebusquei até que, no último instante, encontrei um buraco na parede, oculto atrás de um imenso lençol, que conduzia através de uma escada muito estreita a algum lugar no andar superior. Sem pensar, joguei-me na escada justamente quando a porta vinha abaixo. Subi velozmente e fui parar em uma pequena água-furtada. Rapidamente analisei tudo ao meu redor, mas ali não tinha saída, estava presa. Se eles descobrissem aquela entrada, iriam me encontrar. Corri para a janela e meu coração deu um pulo ao ver que ali em cima não tinha grades. Desesperada, subi o vidro para abri-la, mas estava trancada. Voltei a tentar. Era impossível abrir de tudo, nem sequer até a metade. Nesse momento, pisaram no primeiro degrau da escada. — Por aqui! — Gritou alguém. Passei a toda velocidade através do pequeno buraco. O ar bateu com violência no meu rosto e várias telhas escorregaram assim que coloquei a mão sobre elas. Estava justamente na beira do precipício, com uma ampla visão panorâmica do abismo diante dos meus olhos. Saltar não parecia a solução mais sensata. — Volte aqui! — Ouvi gritarem. Tudo aconteceu em segundos. Lancei-me para fora, já quase tinha saído, mas uma pálida mão apareceu de dentro e me aferrou com força. Acossada pelo pânico, atraí-o para mim com força, para que me soltasse, mas em vez disso,
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começou a me arrastar para ele, para dentro. Aferrei-me com força a tudo que encontrei, tentando rebater seus músculos. Minhas unhas arranhavam a pedra, as telhas escorregavam e caíam. — NÃO! — Gritei com toda a ferocidade que pude desprender da garganta, e tentei lhe dar um pontapé. — SOCORRO! — Gritei para a noite. — SOCORRO! Um último puxão me devolveu bruscamente para o lado de dentro, fazendo-me cair com um forte golpe contra o chão. Em seguida, alguém me agarrou pelo cabelo e me pôs em pé. — Acabou-se a diversão. — Solte-me! — Gritei desesperada, dando arranhões em todas as direções. Arrastou-me sem nenhuma delicadeza por toda a casa até chegar de novo à enorme igreja. Ali, lançou-me sem nenhum tipo de cuidado contra o chão. Se pudesse, tinha certeza de que estaria sangrando. Remexi-me no chão; tinha consumido todas as forças ao tentar escapar dali, e tinha fracassado. Aquele último golpe tinha me reduzido por completo. Nem sequer tinha já algum sentido tentar resistir. Não queria nem abrir os olhos. Tentei ouvir as risadas, mas estavam calados. Apenas se ouviam batidas de coração acompanhadas pelos meus fracos gemidos. Então, passos retumbaram no silêncio e alguém se ajoelhou ao meu lado. A próxima coisa que senti foi uma mão deslizar até o meu ombro e puxa-lo com força para eu me virar. Deixei meu corpo inerte, para que fizessem o que quisessem com ele, mas me neguei a abrir os olhos. Se havia uma coisa que estava clara para mim, era que não pensava ver como se divertiam às minhas custas. Mas, nesse momento, alguém afastou com cuidado o cabelo do meu rosto. — Não lhe disse antes. — Sussurrou uma voz ao meu lado. — Mas está linda.
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Lentamente, abri os olhos enquanto ele continuava limpando meu rosto. Eu o olhei, confusa, sem compreender por que razão me dizia isso. A voz soava sincera e doída ao mesmo tempo. Passou um dedo pelo meu rosto, acariciando meu nariz, os lábios, o queixo, o pescoço… Mas, apesar de a voz ter mudado, o toque continuava sendo desagradável. Minha respiração se acelerou e meus olhos arderam como nunca. — Eu amo você. — Solucei entre murmúrios como última esperança, sabendo que essa verdade era muito mais dolorosa do que o que pudessem fazer comigo. Ele cravou os olhos em mim e voltou a tocar minha bochecha. — Sua teimosia sempre foi digna de admiração. — É isso que você quer? — Murmurei quase sem forças. — Por favor, deixe-me ir. Uma leve ruga sulcou a pálida testa, tão confuso pela minha reação quanto eu. Mas a dúvida não durou muito tempo. Soltou minha mão e estirou o pescoço. — Você já falou demais. — Disse com voz seca. — Guarde o fôlego para os gritos. — Não… — Supliquei, sem conseguir evitar que os soluços começassem a brotar da minha garganta. Não queria aquilo, não queria lhes dar de presente mostras do dano que estavam fazendo a mim, mas minha força de vontade caiu por completo ao ver seus olhos. — Christian… Alguém bufou e voltou a me agarrar pelo cabelo e me obrigou a ficar em pé.
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— É uma pena que Shakespeare não esteja aqui para contemplá-los. — Elora zombou. — Isto começa a deixar de ser divertido. — Com um empurrão me lançou nos braços de Christian. — Faça de uma vez ou passe-a para outro. — Christian… Por favor. — Supliquei de novo. — Entregue-a para mim. — Limite-se a fazer o que tem que fazer, Hernan. Você está pedindo por isto há muito tempo. — Ele alargou um enorme sorriso. Christian me soltou e eu caí no chão. — Mas não a deixe inconsciente. — É obvio que não. — Ele respondeu, luzindo ainda mais a dentadura. — Adoro os gritos. Não há expressão mais plena da dor e eu ardo de desejos de escutar os seus. — Em seguida se virou para mim e se aproximou lentamente. Tentei escapar, mas Lester me agarrou por trás e me obrigou a ficar em pé. — Tenho que dizer que será um prazer. — Pousou a mão sobre o meu peito. — Não é nada pessoal. — Lester, diga uma oração pela alma dela. — Elora sussurrou com ironia. — Que o Senhor tenha piedade da sua alma e da nossa. — Murmurou com voz gutural. — Assim seja. — Hernan respondeu. Dirigiu-me um último sorriso e desviou os olhos para o meu coração. Contemplei-o horrorizada, mal conseguia respirar. — Não tenha medo, serei muito piedoso com você. Lancei um último olhar para Christian. Meus olhos se encontraram com as dele e justamente nesse momento, todas as luzes se apagaram. — O que aconteceu? — Hernan perguntou. Exatamente naquele instante, tudo começou a tremer, cada vez com mais intensidade. Um elaborado lustre do teto começou a balançar perigosamente. Consegui me jogar para um lado meio segundo antes que o lustre caísse no chão, exatamente no lugar onde estávamos antes. Incorporei-me cambaleando e me vi
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cara a cara com Christian, quieto, em pé na escuridão e me observando, impassível. Vi-o aproximar-se de mim, andando decidido, com o rosto inexpressivo e com a mão estendida na minha direção, mas quando a pele dele estava a ponto de roçar a minha, alguém me agarrou pela cintura. Senti uma estranha pressão na nuca e o lugar inteiro desapareceu.
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Decepções
Um instante depois, perdi o equilíbrio e caí no chão. Por sorte, um braço segurou-me antes que eu batesse contra a fria calçada. — Você está bem? Ergui os olhos. Já não estávamos na igreja, mas em frente à porta de entrada da casa, de volta à colina. — Reidar! — Exclamei sem forças, abraçando-me a ele. — Você tem sorte por eu tê-la seguido. O que pensa que estava fazendo com aquele grupo de grandes predadores? — Perguntou com voz grave. — Eu… Não sei o que foi que aconteceu... — Gaguejei. — Mas tenho certeza que ele não queria… queria… Ele não… Ele não… — Levá-la à guarida dele, infestada de grandes predadores, não é a melhor maneira de demonstrar isso. Recordei o olhar cruel de Elora, o silvo na voz de Hernan… E meu corpo estremeceu. Mas, devia me negar a acreditar. Era Christian! Entretanto, senti algo enorme e doloroso dentro do meu corpo e me abracei a ele com força. Antes que eu pudesse fazer algo para evitar, já estava soluçando. — Obrigada. — Murmurei. — Lamento, sinto muito, de verdade.
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— Eu vou acompanhá-la até o seu quarto. — Eu não disse nada, apenas continuei abraçada a ele. Quando chegamos, depositou-me com cuidado sobre a cama. Soltei-me dele e me aferrei com força ao travesseiro, de cara para a janela. Não queria que ninguém me visse. — Posso ficar aqui com você essa noite, se quiser. — O que está acontecendo? — Lisange sussurrou da entrada. Reidar deve ter-lhe dirigido algum tipo de olhar secreto, porque ela não disse mais nada. Apenas se limitou a ocupar o lugar no qual ele estava, deitou-se ao meu lado e me abraçou. Apertei os dentes com força para não deixar escapar nenhum som. Todo meu corpo convulsionava de forma violenta. Pouco depois, Reidar se foi e ficamos sozinhas. — O que aconteceu? — Lisange sussurrou com voz preocupada. Eu neguei com a cabeça, não queria falar sobre aquilo. — Pode confiar em mim. Em um arrebatamento, desfiz-me do abraço dela e saí da cama. Deixei-me cair junto à janela cobrindo a boca com a mão enquanto soluçava de forma entrecortada. Sentia as costelas se abrirem e se fecharem bruscamente pelos espasmos. Minha respiração estava tão acelerada que, só por estar viva poderia desmaiar. Aconcheguei-me a mim mesma e escondi o rosto entre os joelhos. Lisange se sentou junto a mim e me abraçou de novo. Mas não disse nada mais, nenhuma só palavra, limitou-se a ficar ali, comigo, até que a derrota e o cansaço me venceram. Quando despertei no dia seguinte, Lisange continuava na mesma posição. Eu tinha certeza de que ela não dormira a noite toda, ao contrário de mim, que, ao cabo de algumas horas soluçando, afundei em uma letargia sem sonhos. — Como você está? — Perguntou-me, assim que abri os olhos. Estava com o corpo todo dolorido. Estava desorientada. De fato, não sabia por que me
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perguntava isso até que, de repente, as imagens de tudo o que tinha acontecido voltaram de repente à minha cabeça. — Reidar me contou. — Confessou. — Ele veio esta manhã para ver como você estava. Está preocupado. — Não quero falar sobre isso. — Reconheci. — Só estou preocupada com você, de como está. Não vou deixá-la, estou aqui com você. Meus olhos arderam de novo com uma terrível vontade de chorar. — Estou com medo! — Olhei-a suplicante. — Estou com muito medo, Lisange! — Ela me abraçou de novo e me balançou, mas não disse nada. — O que… O que foi que eu fiz de mal? — Não é culpa sua, Lena. Não se torture pensando nisso. Ele é um grande predador. Isso era algo que podia acontecer. Afastei-me dela e a olhei nos olhos. — Ele quer me matar. Como você supõe que vou superar isso? — Com você fazendo-se mais forte e não permitindo que ele lhe machuque mais. Ela não entendia. Não, nenhum deles poderia compreender o que eu sentia. Afastei-me dela e saí do quarto, ignorando seus lamentos. Corri, mas ninguém me seguiu. Era loucura, sim, sabia, mas precisava conferir que tudo aquilo tinha acontecido mesmo. Então, assim que tive oportunidade, saí correndo da casa e voltei àquele lugar. Fiquei em frente à velha igreja, incapaz de dar um passo mais adiante. Temia o que poderia encontrar se entrasse. Ninguém, em seu juízo perfeito, voltaria para se encontrar com alguém que tentou acabar com sua vida. Ninguém, suponho, exceto eu. Eu, porque sou odiosamente masoquista, mas me negava a acreditar, era como um daqueles horríveis pesadelos que a deixam marcada, mas que sabe que são apenas sonhos, que não aconteceram de verdade e isso a ajuda a esquecer, embora eu soubesse que tinha
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sido real. Tudo. Cada parte do meu ser me lembrava daquilo. Ainda podia vê-lo, tão perto, tão perigoso... Meu corpo ainda tremia só de lembrar. Mas o que mais eu podia fazer? Conformar-me? Acreditar sem rodeios que, de repente, ele tinha mudado? Já tinha muitas coisas que eu não entendia para suportar também a incerteza daquilo. Eu conhecia um Christian, aquele que era parte de mim, uma daquelas partes sem as quais não se pode viver e não ia me arriscar a perdê-la. — Não é de bom tom espiar casas alheias. — Voltei-me sobressaltada e me deparei com ele e com seus incríveis olhos. Estava muito perto de mim, tanto que seu cheiro voltou a me enjoar. — O que está fazendo aqui? — Perguntou. Não era o mesmo que eu tinha visto na noite anterior, mas tampouco aquele que eu conhecia. Não parecia frio, mas sim, distante e altivo. O rosto não era ameaçador, mas belamente aprazível e indiferente, e todo rastro de ódio e ira tinha desaparecido para deixar lugar a uma inquietante calma, o que era quase que pior. Embora vê-lo mais tranquilo me ajudasse a desentorpecer um pouco e a tomar de novo o controle sobre mim mesma. — Queria vê-lo. — Eu disse. — Aqui fora? — Arqueou uma sobrancelha. — Escondida entre as árvores? — Avançou um passo para mim, inclinando um sorriso. — E o que você quer? — Você tentou me matar. — Consegui avançar um passo para ele. — Não vai dizer nada? — Tenho boa memória, Lena. — Disse entrelaçando as mãos nas costas. — Eu me lembro. — Todos os pensamentos passavam a uma velocidade descontrolada pela minha cabeça. — Sei o que esperava voltando aqui. — A voz era grave e tranquila. — Mas não vai ouvir de mim palavras de arrependimento. Fiquei feito pedra. Onde estava o Christian que eu conhecia? Onde estava o cara ao qual devia consolar quando tentava me machucar?
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— Apenas me diga a verdade. Eu posso aguentar, mas não aja assim. Não é justo. — Não fale de justiça, Lena. Essa palavra não passa de uma utopia criada pelos humanos e pelos fracos, não para nós. — O que aconteceu com você? — Olhei-o, aniquilada e impotente. — Minhas prioridades mudaram, essa é a verdade. — Cravou o olhar em mim durante um instante. — A natureza é sábia, Lena, e pôs cada um em um lugar diferente. Os grandes predadores não amam e muito menos sentem respeito por qualquer outra forma de vida. Os grandes predadores torturam e submetem. É assim que eu sou. — Não, você não é assim. Você pode lutar contra esses impulsos. — Receio que não quero continuar fazendo isso. — Respondeu, frio e seco. — Tudo deve voltar a ser como antes. — Como antes de eu aparecer? — Fiquei gelada. — Cometi muitos enganos com você, mas o que aconteceu ontem à noite não foi um deles. — O que está querendo dizer? Vai me matar? — Minha voz ficou presa na garganta. — Vou fazer você sofrer, até que seu corpo não consiga suportar mais, — Estendeu uma mão e acariciou minha bochecha. — Aí, sim, vou acabar com você. É assim que deve ser. Retrocedi, doída. — Trouxe-me para este lugar só para isso? — Não, o irônico da situação é que fiz isso para salvá-la, mas receio que isso já não importa. — Por quê? — Ele não respondeu. — Por que já não importa? — Meu tom foi suplicante, sentia que começava a se abrir um buraco enorme no meu
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coração. Ele ficou em silêncio. — Diga-me! — Exigi, aproximando-me dele. — Você se sacrificou por mim! Injetou-se aquele sangue para me proteger! — Ele não pronunciou nenhuma palavra, limitou-se a me olhar fixamente. — O que aconteceu em La Ciudad para fazer você mudar assim? Christian, eu o amo. — Essa é a única coisa que lamento. Ter permitido que me amasse, mas esse problema agora é seu, Lena, não o transfira para mim. — Não, apenas tenta fazer com que me afaste de você. — Avancei para ele, mais segura agora, graças à minha nova descoberta. — Se você quisesse me matar, já teria feito. Ele baixou o olhar e de repente, pôs-se a rir. Aproximou-se de mim, agarrou-me pelo pescoço e me imprensou contra o tronco de uma árvore. — Quer que eu conserte isso? — Sua mão gelada ardia contra minha garganta, podia sentir os batimentos acelerados do coração dele contra o meu corpo. — Não tente me pôr à prova, Lena, me conhece o suficiente para saber que não estou brincando. — Não consegui dizer nada, limitei-me a manter o olhar, tentando averiguar o que se escondia por trás daquela máscara. Quando se deu conta do que eu estava fazendo, soltou-me sem nenhuma delicadeza e caí no chão. — A próxima vez que eu a vir. — Cravou os olhos em mim — Não terei piedade com você. Não é o que eu quero para mim. Retrocedi, magoada e pus-me a correr sem me deter nem um só momento até chegar à casa. Assim que Gareth me viu, saltou para me deter. — Onde você esteve? Estávamos preocupados! — Solte-me! — Gritei, desfazendo-me dele. Subi velozmente a escada rumo ao meu quarto. — O que houve? — Lisange perguntou da cama, com aspecto de quem estava me esperando ali há várias horas. — Foi ele? — Ele me odeia! Christian me odeia! — Detive-me, mas não a olhei.
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—Você foi lá procurá-lo? — Ela parecia atônita. — Não quero ficar neste lugar nem um minuto mais. Vou voltar para perto de Liam. — Ouça-me. — Aproximou-se de mim e me puxou pelos ombros. — Você não pode voltar. É perigoso. — Perigoso? — Olhei-a atônita e me desvencilhei dela. — Prefiro enfrentar a Ordem de Alfeo inteira do que ter que voltar a vê-lo! Não vou permitir que seja ele a me matar. — Você não está falando sério. — Como não? Ele vai, Lisange! ELE VAI ME MATAR! — Meu tom ficou desesperado. — Eu vi isso nos olhos dele! — Lena... — NÃO! Você, melhor do que ninguém, deve saber que não há nada pior que isso! Seus olhos ficaram cristalinos e os dedos se afrouxaram até me soltar. Sabia que tinha lhe causado mal, mas não podia ficar ali para consertar. Aproveitei aquele momento para escapulir dela e baixar a toda pressa para o salão. — Lena, Lena, pare. — Reidar me segurou pouco antes de chegar à saída. — Você não pode ir embora daqui. — Você também vai tentar me dizer que é perigoso? — Sim. — VOCÊ MATOU LISANGE! — Tudo sumiu em um repentino silêncio, só interrompido pelo som da minha respiração sufocada. — Decerto entende Christian melhor que ninguém. — Lena! — Ela exclamou atrás dele. Reidar e eu mantivemos o olhar fixamente.
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— Sinto muito, Lisange, mas preciso ir. Não quero acabar como você. Saí correndo para a rua. Chovia, mas era uma chuva fina e suave. Lisange me seguiu. — La Ciudad não é lugar para você, agora. — Tampouco este aqui é. — Se você for, vou com você. — Ela sentenciou. — Não, não vai. — Jurei que a protegeria. — Já não me importa o que possa acontecer comigo. — O que pensa que vai conseguir ao voltar? Parei e ela me alcançou. — Você não o viu. — Balbuciei sem me virar para ela. — Era… Era real. — Ele vai encontrá-la onde você estiver. — Eu sei, mas pelo menos, prefiro que seja onde tudo começou. — Então, faça pelo bem de Liam. Se for, vai colocá-lo em perigo e ele ainda está fraco. — Até onde sabemos, Liam pode até estar morto. — Liam De Cote não é nenhuma criança, Lena! Ele está bem, mas se você voltar e fazer com que Christian a siga, vai enfrentá-los e carregará a morte deles nas costas. Eu a protegerei dele, mas não ponha em perigo o que resta da nossa família. — Sempre ponho todos em perigo. Escuto esse mesmo argumento repetidas vezes. Não sei por que se empenham em me proteger. Christian tem razão, devia ter me matado logo na primeira vez. Soltei minhas coisas sobre o asfalto e, vazia, voltei para casa pela rua molhada. Ela tinha me colocado entre a espada e a parede. O que eu podia fazer?
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Ir embora, apesar do que ela dissera? Demonstrar que só me preocupava comigo mesma? Subi e me encerrei no quarto. Estava furiosa e magoada. Corri para o banheiro, enchi a banheira e entrei. Entre soluços, peguei a esponja e raspei toda a pele, para tirar até o mais mínimo rastro dele, ao ponto de chegar a descamá-la. Soltei um grito sufocado, atirei a esponja longe, abracei as pernas e apoiei a testa contra os joelhos, sentindo todo meu corpo se desfazer de dor.
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Um grito vale mais que mil palavras
Poderia unir centenas de palavras, construir milhares de frases, mas nem sequer isso seria suficiente para descrever a dor que se sente quando lhe partem o coração. Somos defeituosos, imperfeitos e mesmo assim, orgulhosos. Pensamos que as coisas vão ser para sempre. Que somos invencíveis e que, por isso, o que nos rodeia também é. Entretanto, um belo dia despertamos e descobrimos o engano, que o ontem dói e que o amanhã não existe. Já não há um “nós”, mas tão somente uma angustiosa e demolidora sensação de solidão que arrasta para o abismo mais profundo do seu ser. Para lugares sombrios e deprimentes que nem sequer sabia que existiam dentro de você. Não importa as palavras de consolo nem o fôlego que lhe oferecem para passar essa página porque, apesar de tão belo o passado e tão triste o presente, como deixá-lo partir? Eu vivia por ele, amanhecia por ele, continuava por ele. E agora era simplesmente como se tivesse morrido. Já não tinha sentido continuar existindo, porque sabia que nenhum dia dos que viessem a seguir se pareceria em nada à felicidade que sentia com um abraço dele, com a risada, com os olhos, o cheiro... Nenhum dia seria tão doce.
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Esse sentimento me quebrava por dentro, apertava meu peito sem parar, cada vez mais profundo, cada vez mais doloroso. Atirei-me da cama e saí correndo da casa até chegar ao alto da escada. O campo me sobressaltou com a imagem do aguaceiro. O céu resplandecia sobre um horizonte esfumado por causa dos numerosos relâmpagos que brotavam entre as nuvens cinza, quase negras. A cortina de chuva balançava de um lado para o outro à mercê do vento, e o capim e os arbustos no chão balançavam com força. O som do vento e a chuva era atraente, a água estava gelada, mas os trovões e relâmpagos refletiam de maneira tão assustadora o que estava acontecendo dentro de mim que, por um momento, foi como se me sentisse compreendida. Desci a pequena escadaria muito rápido, desesperada, respirando com dificuldade. Não sabia para onde ia, mas na metade do descampado senti que algo abria caminho vindo do peito e da garganta, com um grito dilacerador que atravessou o vento. Senti meus joelhos cavando na lama, ainda gritando. E, de repente, braços me rodearam pelas costas com força me apertando contra um peito firme, sustentando-me enquanto deixava que a dor se apoderasse do meu corpo, até que fiquei sem forças, empapada e fraca. — NÃO PARE! — Jerome gritou me apertando com mais força. — Grite até arrebentar os meus ouvidos! Mas eu já não conseguia gritar mais. Só soluçar. Jerome girou meu corpo e me estreitou nos braços, tentando me reconfortar, mas eu o rechacei e, com um movimento, desfiz-me do abraço. — Vá embora! — Gritei. — Deixe-me sozinha! — Não vou! — Isto não é assunto seu, Jerome. — Tentei me recompor e me pus em pé, disposta a fugir dele, como sempre. — Lena... — Agarrou-me pelo braço.
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— POR QUE NÃO ME DEIXA EM PAZ? — Exclamei fora de mim, virando-me para ele e me soltando com um safanão. — NÃO SEI! — Ele gritou também, perdendo o controle. — Não tenho nem ideia! Mas, aqui estou, embora você seja apenas uma garota malcriada, antipática e desprezível! — É isso que pensa? — Solucei. Virei-me para ele, sem forças. — O que importa? Só quero ajudar você. — Você é estúpido. Vou lhe fazer mal! — E que dano pode me fazer uma criatura de 17 anos? Por acaso pensa que acredito em tudo o que estão dizendo sobre você e os ataques? Pois bem, não acredito. E vou ficar aqui, embora você não queira. — Não posso acreditar que esteja me falando isso. Olhou-me confuso. — Não é isso o que você pensa? Apareceu o corpo de uma mulher. Ouvi algo e pensei que… — Senti vontade de desandar a rir. Como podia pensar que era isso? Oxalá fosse certo, oxalá fosse esse meu único problema… — Você me conhece muito bem. — Menti. — Não fomos nós. — Aleguei. Era melhor deixá-lo acreditar nisso antes de arriscar-me a que ele descobrisse algo mais. — Eu nunca acreditei no contrário. Vamos, vou acompanhá-la até a casa. — Você devia se afastar de mim. — Não pode me fazer nada. — Disse me ajudando a ficar em pé. — Sou seu anjo da guarda. — Por que diz isso? — Não me restavam forças para responder outra coisa. — Me conheceu vestido de anjo, isso tem que significar algo. — Não é verdade, no primeiro dia você se sentou ao meu lado.
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— Detalhes… — Sorriu para me reconfortar. Conduziu-me através de várias ruas. Acedi a contragosto, temendo que, se tentasse me soltar, pudesse fazer-lhe mal e rezando para que nem Valentine ou qualquer outro grande predador decidisse passar por ali naquele momento. Pensei na polícia e em quantos humanos tinham sido atacados e o pânico começou a invadir meu corpo. Tinha notado algo, mas minha mente nem sequer tinha assimilado o fato ainda. Um barulho: alguém pisava na rua molhada um pouco mais adiante. Afastei-me um pouco dele e avancei um passo, tentando focar o olhar. Meu corpo congelou nesse instante. Ali, no início da rua, estava Elora, contemplando-nos com os braços cruzados sobre o peito. Inclusive àquela distância pude ver o sorriso que desenhava seus lábios, mas não foi isso o que me perturbou, mas a figura escura de divina perfeição que permanecia estática um passo atrás dela, observando-nos com os olhos semicerrados e o queixo ligeiramente erguido, impassível. — Quem é? — Jerome perguntou junto a meu ouvido, com os olhos cravados no mesmo lugar que eu. Senti que todo o corpo dele se contraía. Inclusive os dentes pareciam estar apertados com força. — Oxalá soubesse. — Sussurrei mais para mim do que para ele. — Fique atrás de mim. — Ele disse, cuja voz tinha mudado. — Não. — Sussurrei depressa. Olhei-o apenas por um instante, e quando ambos voltamos a olhar para o fundo da rua, nenhum deles estava lá. Ficamos em silêncio, contrariados. — Vamos, vou acompanhá-la para fora deste lugar. — Você que vai me acompanhar? — Não respondi, continuava perdida naquela imagem. — Eu é que devia deixar você em casa.
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— Não, não. — Eu disse me virando de novo para ele. Só a ideia de que pudessem lhe fazer algo me provocou um nó na garganta. — Prefiro que não o vejam por aqui, se não se importar. Eu vou ficar bem. — Tem certeza? — Insistiu. — Sim. Até breve. Fiquei ali, quieta, durante uns dois minutos, observando Jerome descer a escada em direção à velha caminhonete, envolto pela violenta chuva que caía agora. Ainda não tinha começado a voltar para casa quando escutei outro som. Virei-me, pensando em Christian e Elora, mas era o miado de um gato. Olhei em volta algumas vezes, mas não ouvi mais nada. Dei de ombros e me encaminhei para casa. O som do miado voltou e desta vez de forma mais nítida. Dei a volta e vi, sentado sobre as patas traseiras, um pequeno gato pardo, ensopado. Voltou a miar e aperfeiçoou ainda mais a postura. Mesmo naquelas condições tinha um porte elegante e majestoso, apesar de não passar de um filhote. Continuei meu percurso, mas uma vez mais, parei. Eu me virei e o vi de novo, sentado e desta vez, muito mais perto de mim. — O que você quer? — Perguntei-lhe. O gato continuou na mesma posição, e quando fui dar um passo, ele se incorporou sobre as quatro patas. — Não tenho nada para lhe dar. — Eu lhe assegurei. Nesse momento, ele saltou para os meus braços. Eu retrocedi um passo, assustada, ao mesmo tempo em que o pegava entre as mãos. De repente, ao tê-lo tão perto, meu coração se encolheu: havia algo naquele animal, naqueles olhos tremendamente escuros, nos bigodes alaranjados e nas duas pequenas manchas que tinha de cada lado do focinho. Sobressaltou-me de tal maneira que quase deixei cair o pobre animal. Devagar, ajeitei-o no braço. Ele miou uma última vez e se enrolou como um novelo, ronronando. Com cuidado, cobri-o com a jaqueta e ambos nos dirigimos a casa.
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Subi para o meu quarto sem cumprimentar ninguém, fechei a porta e as janelas e coloquei o animal sobre a cama. Ato contínuo, acendi todas as velas ao meu alcance e voltei para junto dele com uma toalha. Tirei a jaqueta com cuidado. O pequeno animal me olhava majestoso sobre a colcha. Ajoelhei-me no chão e me apoiei contra o colchão, fincando os cotovelos sobre ele. — Sabe? Creio que posso lhe dar algo. — Abri a mochila e tirei de lá o pacotinho envolto em papel vegetal que Gaelle colocava cada manhã na minha mochila, embora esse estivesse ali há algum tempo já. Desembrulhei-o com cuidado e o pus junto ao animal. — Está com fome? — Perguntei, tentando-o com um pedaço de queijo. O pequeno felino nem se alterou, continuou na mesma posição erguida, autoritária e correta. Tão correta que, em um filhote como ele, tornava-se graciosa. Observei-o com atenção. — Água? — Estava indo ao banheiro para pegar uma vasilha quando me dei conta de algo. Sentei-me ao lado dele e o observei com atenção. — Você está seco… — Sussurrei. O gato ronronou com o meu toque. — Nem comida, nem água e esse porte e beleza únicos. Você não é um gato normal, é como Caín e Goliat. — Sua áspera língua lambeu meu dedo indicador. Peguei-o com ambas as mãos e o ergui no ar, para poder examiná-lo melhor. Depois me deitei na cama e o depositei com cuidado junto a mim. Finquei um cotovelo no travesseiro e continuei observando-o. — Você se parece tanto com... — Distraída, ergui os olhos para a janela e recuei, caindo no chão. Ali, na janela, havia uma nova sombra.
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Intrusos e outros animais
— A noite de ontem foi muito breve. — Advertiu a voz da janela. O gato saltou da cama e ficou diante de mim, em uma pose desafiante e mostrando garras e presas. — Um novo membro na família? — Riu. — É essa sua alternativa à proteção que lhe brindou meu querido irmão? — Veio por minha causa? Por alguma estúpida razão, sentia-me mais valente com aquele animalzinho cuidando de mim. Sim, era triste, mas melhor um felino que nada e não pensava em menosprezar o poder daquelas garras sobre a pele de Hernan. — Privou-nos de uma grande diversão. — Estalou a língua três vezes. — E isso não está certo. — É por isso que está aqui? Ele se deteve, guardou silêncio e sorriu, cruzando os braços. — Vi seu olhar. Enquanto ele a ameaçava, você ainda estava disposta a se sacrificar por ele, ainda o ama… Ou o que seja. — Você queria que ele voltasse para La Ciudad, o que fez com ele? — Seja o que for que aconteceu lá, não tem nada que ver comigo, embora tenha de admitir que sua nova atitude é uma grata surpresa para a família. Mas o interessante, Lena, é que mesmo com ele disposto a matá-la, você ia perdoá-lo. — Isso já não importa.
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— Não, não, não. — Riu. — A importância disso hoje é ainda maior. Podemos dar um bom uso a esse afã suicida. O gato rugiu para Hernan com a ferocidade de um tigre. — Para que? Para prolongar minha morte? — Eu adoraria brincar com você, Lena De Cote, mas não quero que morra, ainda não. — Disse que só queria esperar que Christian me matasse e ele já está decidido. — Mas não desta maneira. As intenções que o movem não me servem. — Razões? Que razões? — Pensa que vou revelar para alguém como você os segredos de um grande predador? — Sorriu. — Eu mereço saber. — Queixei-me. — O que a faz pensar assim? — Trata-se de mim. — Respondi, cruzando os braços. — Se revelássemos a cada um as razões pelas quais vamos acabar com ele, a diversão se perderia. — Fez uma breve pausa. — Minha oferta continua em pé. — Acredita mesmo que vou aceitar sua ajuda? Eu aprendi a lição. — Não tenho tanta certeza assim. Você não vai se arriscar a pôr a vida em perigo suspeitando que ele pode ter razões convincentes para querer acabar você. Sei que teme pela sua vida e não vai ignorar esse fato. Não se atreverá. — Pegou minha mão e a beijou. — E eu continuo sendo sua melhor garantia de êxito. A única, na realidade. Pense nisso. — Lena? — A voz de Gareth soou junto à porta. Hernan se inclinou, beijou os próprios dedos e estendeu-os para mim com um floreio.
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— Até logo. — Pronunciou sem emitir som algum. — Lena? — Gareth insistiu. Afastei o olhar dele só por um segundo, mas quando me virei, ele já tinha ido. Meio confusa, abri a porta. — Está acontecendo algo? — Perguntei ao rosto preocupado de Gareth. — Ouvi barulho, você está bem? — Sim, sim. — Menti, enquanto acariciava de forma inconsciente a pelagem do gato que acabava de saltar para o meu colo. — Estou sentindo o cheiro de Hernan Dubois. Ele esteve aqui? — Sim... — Respondi assombrada. — Como... Como conseguiu captar? — Conheço esse grande predador. — Seus olhos rodaram pelo quarto, como se esperasse encontrá-lo escondido por ali. — Ele lhe fez algo? — Não... — O gatinho ronronou. — Aumentaremos a segurança. — De repente, baixou os olhos e se fixou no que eu tinha entre as mãos. — Um novo amigo? Pisquei e saí do estupor. — Encontrei-o quando voltava para casa. — Afastei-me para que ele pudesse passar. — Acredito que ele não é normal. — Quer dizer que acredita que é um dos nossos? — Concedeu-lhe maior atenção. — Sei que soa como se eu tivesse ficado louca... — Reconheci, soltando o animal sobre a colcha. — Mas, acredito nisso de verdade. É… É possível? — Perguntei. — Tudo parece possível, ultimamente. — Assinalou e se aproximou devagar da cama. Ambos se olhavam sem vacilar. — Há alguma maneira pela qual se possa verificar? — Sabe algo sobre a procedência desses mascotes?
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— Não. — Reconheci, incômoda e apática. A única coisa que eu queria era voltar a ficar sozinha. Aquele gato era a única companhia que estava disposta a tolerar naquele momento. — Os de Cote tinham dois, mas nunca me ocorreu perguntar. Só sei que são como guardiões das famílias de caçadores. — Contam que... — Começou, ajoelhando-se perto do animal e observando-o de perto. — Em determinadas ocasiões, quando um caçador morre, a alma se divide em dois. Uma parte desaparece para aquilo que haja depois desta existência, mas a outra fica aqui e se personifica em um gato. Por isso eles sabem qual clã devem proteger, por isso vão até um caçador em concreto. Talvez alguém a quem lhe importava retornou para cuidar de você. — Pensa que poderia ser…? — Creio que essa pelagem parda, mais parecida ao alaranjado e essas duas manchas nas bochechas, recordam bastante o nosso querido Flávio. — Você o conhecia? — Os De Cote sempre foram bem-vindos a esta casa. — Sorriu. — Lamento muito o que aconteceu com você. — O pequeno animal passou por baixo da mão de Gareth, para que eu o acariciasse. — Talvez ele seja. — O gato saltou para os meus braços. — Com a Ordem me procurando, creio que vou ter que proteger a mim e a ele. Não quero que ele acabe como Caín e Goliat. — Fiz uma pausa ao me dar conta de um detalhe. — Vocês não têm gato. — Faz tempo, sim, mas todos foram embora. Nosso lar sempre esteve aberto para todo grande predador que desejasse represar sua vida e os gatos não conseguiram suportá-los. Está bem assim, porque os grandes predadores em certas ocasiões se entretinham com os pobres animais e isso era muito cruel.
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— O fato de que tentem fazer com que os grandes predadores mudem, não colocou o Ente contra vocês? — Joguei-me na cama e o observei dali. Com o mesmo ânimo que um cogumelo. — Esse é um assunto delicado. — Inspirou fundo. — O Ente deu essa oportunidade aos grandes predadores faz tempo. Ofereceu liberdade de decisão a todos eles. A maioria adora o que é, não há muitos que queiram mudar de verdade; e desses, alguns tentam, mas muito poucos conseguem. — Christian… — Ele nunca vai conseguir, Lena. A vingança e a crueldade que carrega no coração são fortes demais. Tem a fama bem merecida. Embora tenha que admitir que você mudou algo nele. Já não é, nem muito menos, a criatura que era antes. Isso não coincidia precisamente com os últimos acontecimentos. — Sim, ele é. Só estava fingindo. — Ele se sacrificou por você. — Recordou. — Por mais que ele quisesse jogar com você, Lena, ninguém merece a tortura à qual Christian se submeteu. Pode julgá-lo, se quiser, pelo que é agora, mas não se esqueça do que ele foi. — Por que está me dizendo isso? — Não falei com você antes sobre isso porque sabia que precisava de tempo, mas Lena conseguiu algo que toda criatura deseja. Tem a habilidade de amar, inclusive nesta deplorável forma de vida. O amor é o poder maior de todos. Não estrague tudo. — Quer que eu ame Christian? — Perguntei confusa. — Quero que proteja seu coração. Não o defendo, certamente que não, mas tampouco podemos culpá-lo, não é fácil ser um grande predador. Essa dor que sente no coração… Nenhum de nós poderia imaginar nunca, e muito menos suportá-la. Temos o exemplo de Valentine nesta mesma casa.
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— Sim, claro, Valentine… O que aconteceu com os olhos dela? — Essa dúvida ainda flutuava em minha mente. — Injetou neles o sangue de uma das vítimas dela. Afastei-me um pouco, impressionada. — Por que ela fez isso? — Perguntei aterrada. — Porque o sangue era tóxico e ela estava cansada de ver morrer cada pessoa que cruzava seu caminho. — Tóxica? — Perguntei sem entender. — Sim, o sangue de uma das vítimas pode causar grandes danos em um grande predador. — Mas ela continua tendo visões, não é? — Claro, mas só quando quer. Muito poucas vezes aparecem para ela sem que o queira. — Já ouviu o que ela disse sobre mim, sobre Christian, e sobre todos vocês. — Não é tão fácil para ela utilizar o dom. Ela o teme, teme o que possa encontrar, mas não deixa de ser uma criança. Por isso mente tanto nas predições. — Ela me odeia. — Gemi. — Aquela menina me odeia. — Não é uma menina, Lena. — O tom dele ficou sério. — Tenha muito cuidado com isso. Valentine se utiliza do próprio aspecto como um veneno. É uma anciã, possivelmente não no corpo ou na atitude, mas em pensamento e em frieza, na maneira de tramar as coisas. A pior coisa que você pode fazer é acreditar naquela imagem inocente, porque aí reside a maldade dela. No momento em que ceder e a vir como uma menina estará sob o poder dela. Foi o que aconteceu com Gaelle.
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— Por isso ela o respeita? — Perguntei. Era certo que só a tinha visto recuar diante de Gareth. — Não me respeita, vigia-me. Tenta me entender, usa a inteligência contra mim para descobrir como controlar me também. — Surpreende-me que Gaelle se deixe dirigir por ela. — Gaelle teve que acabar com os próprios filhos para que estes não morressem de fome — Revelou. — A dor do que fez a trouxe para esta existência. O afeto por Valentine é um reflexo do que lhe aconteceu. Nunca tive coragem para evitar essa relação. Valentine a conhece e conseguiu penetrar na mente dela graças a isso. Se permitir que ela veja sua fraqueza, vai acabar com você. — Você não faz aquelas comidas para se adaptar, não é? Você cozinha para ela. — Bom, eu era sacerdote, Lena. Viver no passado era uma parte implícita do meu trabalho. Se o fato de fazer três refeições diárias ajuda a mitigar a dor e o medo de Gaelle, não posso negar-lhe. Concedi-me um breve instante para pensar nisso, mas não tinha ânimos para continuar com o bate-papo. — Já está tarde. — Eu disse. Ele ficou de novo em pé. — Recomendo-lhe encarecidamente que mantenha essa pobre criatura longe do alcance de Valentine. Já sabe que ela não gosta de receber novos habitantes nesta casa. — Sim, eu sei. — Suspirei. Descobrir que havia uma pequena possibilidade de que aquele animalzinho fosse Flávio, deu-me mais felicidade do que acreditava ser capaz de sentir naqueles momentos. Esse fato tinha feito com que todo o resto desaparecesse durante um tempo da minha mente.
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Os De Cote, Christian, os grandes predadores… Tudo, exceto as palavras de Hernan. Tinham me perturbado muito para serem eclipsadas. Havia razões que explicassem a repentina mudança de Christian? Seriam razões suficientemente boas para que eu quisesse tentar protegê-lo ao invés de fugir dele? E se algo ou alguém estava obrigando-o? E se ele, na realidade, não queria me causar dano? Deus, ele sabia muito bem como interpretar o papel de grande predador! Algo saltou dentro de mim, como se uma força se apoderasse do meu ser. Tinha que conferir. Gareth tinha razão, nenhum grande predador desejava tanto uma presa para sacrificar-se da forma como Christian se sacrificara por mim. Certamente que não. Senti vontade de sair para procurá-lo, de ir e comprovar minha teoria, mas algo me freou. Se a interpretação havia sido tão brilhante, duvidava que fosse deixá-la se perder tão cedo. Se existiam essas razões, devia descobri-las para saber como enfrentá-las. Mas, nesse caso, quais eram as minhas opções? Aceitar a proposta de Hernan? Deixar que ele me moldasse ao seu bel prazer? Não, essa não podia ser uma possibilidade. Aquilo seria como meter-se em um ninho de serpentes ávidas para picar meu corpo. Mas, então, lembrei-me de Christian e a pálida e inerte imagem dos meus pesadelos. Talvez tivesse chegado a hora de procurar ajuda em outro lugar. Não havia ninguém na casa, exceto a única pessoa que parecia formar parte do mobiliário. Gaelle. Ela estava sentada diante de mim, bordando um belo desenho em um pequeno lenço. De vez em quando, erguia o olhar por cima dos óculos e sorria. Não precisava de nenhum tipo de correção visual, era apenas um elemento acrescentado à grande lista de coisas que fazia para parecer normal. Gareth estava fora, com Valentine. Sempre tentava que nós coincidíssemos o menor tempo possível sob o mesmo teto, algo pelo qual eu estava tremendamente agradecida. Entre outras coisas, porque assim podia soltar Flávio pela casa de vez em quando. Lisange, obcecada como sempre com minha segurança, tinha saído
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para comprovar que tudo continuava em ordem pelos arredores, e tinha deixado Reidar vigiando as pequenas ruas que rodeavam a casa, algo que, a meu ver, contradizia um pouco com seu afã protetor. Por mais que ela o amasse, eu não deixava de me sentir um tanto suscetível ante a ideia de que um membro da Ordem de Alfeo velasse por minha segurança a curta distância. Entretanto, naquele momento, ter Reidar tão perto oferecia uma nova possibilidade. Levantei-me e contemplei pela janela o pequeno jardim interior. O portão estava entreaberto. — Volto já. — Disse sem olhá-la. Abri a porta e saí à rua. Fora chovia uma grande quantidade de litros por metro quadrado. Quando fazia esse tempo não devia sair, porque o ruído minguava minha capacidade auditiva e era perigoso, mas precisava da intimidade da rua e do som incessante da água caindo contra o chão para que Gaelle não pudesse escutar o que eu ia dizer. Fiquei ensopada em questão de segundos. O cabelo grudou no meu rosto, as gotas inundaram minhas pestanas me fazendo perder visibilidade, mas lá estava Reidar, quase no final da rua. Andando devagar e o rosto erguido para o céu. Corri para ele, surpresa por não escorregar nos paralelepípedos. — REIDAR! — Chamei. Meu grito retumbou pelas paredes de toda a rua. Ele se virou devagar para mim. — Alegra-me ver que você voltou a ficar bem. Cortei os escassos metros que nos separavam. — Preciso lhe pedir algo. Ele jogou a cabeça alguns milímetros para trás. — Você pedindo para mim? Enterrou o machado de guerra? — Ela o ama. — Soltei. A chuva entrava em minha boca. — Enquanto você não pretender lhe machucar, estamos em paz.
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— “Paz” não é uma boa palavra, Lena. Só Lisange me importa; agradeço que Gareth e Gaelle tenham permitido que eu fique em volta da casa, mas não preciso da sua aprovação nem da sua estima. Não preciso da sua bênção. Durante um instante, meu incrível plano cambaleou. Acaso eu estava me metendo em uma confusão ainda maior ao pedir ajuda a um guardião, e da Ordem de Alfeo? — Então isso vai deixá-lo mais à vontade para me ajudar. — O que é que você quer de mim? Inspirei fundo. — Quero que me ajude a enfrentar a Ordem. Que me ajude a me defender. — Quer que a ensine a me matar? — Elevou uma sobrancelha. — Não perdi o juízo ainda. — Não. Quero aprender a vencer para nos proteger, não para acabar com você. — É perigoso demais. — Sentenciou, negando com a cabeça. — Posso confiar em você? — Deixei de lado a Ordem por viver virtualmente sob o mesmo teto com quatro caçadores e um grande predador que não desperdiçaria nenhuma ocasião para acabar comigo. Isso lhe inspira segurança? — Preciso aprender a me defender da Silvana e do resto dos guardiões. — Nunca conseguirá acabar com ela, Lena. Eu vi você se esquivar dos golpes dela na casa dos Lavisier, tem muito bons reflexos. Pode pedir a qualquer um que a ajude a potencializar essa habilidade para evitá-la, mas não para vencê-la. — Não me interessa aprender dessa forma. Preciso que você se transforme.
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— Nem pensar. — Sorriu. — Não pediria ajuda para realizar exercícios que posso fazer com qualquer outro. Preciso sentir o frio, o chiar de dentes... Tem que apresentar todas as suas habilidades. — Se eu me transformar, poderia matá-la. — Controlou-se com Lisange. — Aquilo foi diferente. Se eu me descuidar e matá-la, eles acabarão comigo, e nestes momentos aprecio bastante minha vida. — Ficou em silêncio e continuou, desta vez com ar paternal. — Eu só conseguiria machucá-la. Nunca a venceria, Lena. Nenhum caçador pode acabar com um membro de Alfeo. — Lisange e Liam conseguiram. — Insisti. — Eu também posso. — Você está a anos luz deles. — Inclinou-se um pouco para mim e me puxou pelos ombros. — Acredite em mim e eu lhe digo isso porque sei o que significa para Lisange; se alguma vez cair nas mãos dela, não tente resistir. A única coisa que conseguiria seria uma morte mais lenta. Te dar este conselho é o melhor que posso fazer por você. — Não vai me ajudar? — Afastei-me um passo dele. — Receio que não. — Endireitou-se. — Preciso de você de verdade, Reidar, por favor! — Olhei-o, magoada. Não se dava conta do quanto eu precisava dele? O que ia fazer se ele não me ajudasse? Pedir para Hernan? — Essa foi minha última palavra, Lena. Agora volte. Não é prudente que ande sozinha por ruas desertas em companhia de guardiões. Lentamente, e com os olhos ardendo, inspirei forte e dei meia volta com o coração encolhido pela perspectiva das longas horas em companhia do grande predador mais perigoso que jamais tinha conhecido.
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Criando laços com... A comida
Os dias se passaram sem que eu pudesse tirar Hernan da cabeça. Talvez porque parecia ser a única opção que eu tinha para aprender a me defender e de passagem, investigar as razões que Christian tinha para querer acabar comigo. Eu precisava de tempo e para isso, devia me manter neste mundo, embora temesse a ideia de que Hernan tivesse mentido e que, na verdade, a única razão que Christian tinha era que se cansara de mim. Hernan era um risco, sem dúvida, agora só me restava decidir se valia a pena tal risco ou não. Saí tarde, tão tarde que já não havia gente nas ruas. De fato, tinham tido que me expulsar da biblioteca para fechá-la. Sabia que Valentine estava em casa, então preferia ficar lá para pensar. Eu me sentia cômoda entre aquelas quatro paredes repletas de livros, talvez porque, em vida, eu passava muito tempo em uma delas, ou pode ser porque havia sido uma biblioteca o primeiro lugar à qual eu tinha ido quando despertei em La Ciudad. Olhei o relógio, esperava que Lisange passasse por ali, mas com certeza eu não a encontraria até o dia seguinte se ela fosse se encontrar com Reidar mais tarde. Suspirei e acomodei a mochila no ombro, disposta a empreender o caminho de volta. O céu continuava encapotado. Não tinha parado de chover desde a noite que tinha falado com Reidar, e isso já fazia três dias. As ruas estavam
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virtualmente alagadas. A água baixava como uma torrente pela calçada inclinada, o chão se tornara um grande atoleiro uniforme. Nem as galochas tinham conseguido salvar minhas meias três quarto... Os carros, que passavam salpicando água, tampouco ajudavam, mas eu tinha muitas coisas na cabeça para me preocupar com isso. Ia ensimesmada em meus próprios pensamentos, tentando dar-lhes algum tipo de sentido. Nem sequer reagi quando, do nada, uma mão me agarrou pelo braço e me colocou atrás de um muro. Ergui a vista e de repente, perdi por completo todo uso de razão. Christian cravava os olhos em mim a poucos centímetros. — Eu vou gritar. — Assegurei-lhe com um leve balbucio. — E quem você pensa que viria ajudá-la? — Sussurrou de forma ansiosa, olhando para a rua. — Um humano? — Virou-se de novo para mim, parecia nervoso. — Ainda a conheço o suficiente para saber que não quer envolver mais ninguém nisto. — O hálito dele bateu no meu rosto. Tive que me apoiar contra a parede, enjoada. Não tinha contado com isso, com aquele cheiro de novo tão perto de mim; aquele incrível cheiro derrubou todas as minhas defesas. Todo meu corpo reagiu ao voltar a senti-lo e uma pressão enorme encheu meu peito. Ele me soltou, mas não se afastou de mim. — O que está fazendo aqui? — Perguntou-me. — Isso não lhe importa. — Eu o desafiei, ainda enjoada. Minha respiração se acelerou em dois segundos. Então, comecei a notar seus batimentos do coração mais rápidos, o coração bombear com mais força e o peito se contrair com violência, como se estivesse acontecendo com ele a mesma coisa que comigo, como se seu corpo também tivesse reagido, alheio à própria vontade. — Este lugar é perigoso. — Advertiu, esquecendo-se da ansiedade inicial. — E o que você tem com isso?
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— Por que não teria que ser assim? — Perguntou descaradamente perto de mim. — Sua morte me pertence. — Voltou só para acabar comigo? — Cravei os olhos nos dele. — Não faça perguntas se não quer saber a resposta. Seria muito cruel da minha parte continuar lhe dando esperanças — Disse ele com voz gélida. — Muito, Lena, até para mim. Já menti o suficiente para você. Tentei olhar através de suas pupilas, queria saber, mesmo que fosse por um instante o que acontecia na mente dele, mas de novo aquele muro intransponível me impedia de ver através dele. — Foi tudo mentira? — O contato visual me fazia sentir exposta. Com ele diante de mim, com o rosto crispado pelo ódio, senti-me incapaz de manter a teoria de que ele, na verdade, não queria me machucar. Christian ergueu a mão para mim e acariciou minha bochecha com os dedos, muito devagar, despertando as mil e uma sensações que só ele provocava em mim. Tentei não respirar, não ceder, com o último ápice de vontade que me restava, mas como era normal em mim, fracassei estrepitosamente. Meu corpo reagia sozinho, desobedecia às minhas ordens. Ele se aproximou ainda mais, quase até o ponto de chegar a roçarmos um no outro. — Não faça isso. — Supliquei, sentindo que tudo dentro de mim se contraía com força, desejando, bem no fundo, que me ignorasse. Ele deslizou a mão até o meu pescoço, acariciou-o e aproximou a boca ainda mais, até chegar ao meu ouvido. — Eu devia ter acabado com você naquele dia. — Sussurrou. — Você tem que me odiar, Lena, deve me odiar. — Mas, naquele momento, soou mais como uma súplica do que uma ordem. O hálito dele penetrou nos meus sentidos e meus joelhos tremeram. Estava tão perto dele… Já não sabia qual era a respiração dele e qual era a
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minha. Ele mantinha uma expressão sombria, dolorida, mas mantinha as pálpebras fechadas e os lábios ligeiramente franzidos. Durante alguns segundos, fechei os olhos e me permiti o luxo de me concentrar tão somente naquele irresistível cheiro, no corpo dele roçando o meu, na calidez do hálito dele, em me fazer acreditar que nada de ruim tinha acontecido, que tudo estava como sempre. Podia sentir como seu peito inchava e desinchava se chocando contra o meu, cada vez mais acelerado e o coração palpitando com força contra os meus ouvidos. De repente, senti sua bochecha contra a minha e o ardor do seu contato sobressaltou meu coração. Abri os olhos só por um instante e olhei seus lábios acesos perto dos meus. — Deixe-me ajudá-lo. — Murmurei tremendo. — Eu sei que você não quer fazer isso. — Sim, eu quero, Lena, mais do que qualquer outra coisa. — A sinceridade impregnada em sua voz foi muito dolorosa. — Apenas me odeie e tudo vai acabar. — Não consigo! — Respondi com um fio de voz. Minha boca roçou dolorosamente a dele. — Pode fazer tudo o que quiser comigo, Christian, mas sou incapaz de odiar você. A expressão dele ficou sombria e ele apertou os lábios com força. — Torturei pessoas durante séculos. — Sussurrou contra o meu ouvido. — A tal ponto que eles mesmos se lançaram à morte. Consegui fazer com que irmãos se matassem entre si, que filhos acabassem com os próprios pais, contanto que eu me afastasse deles e mesmo assim, acredita ainda que não vou poder com você? — Suas palavras não soaram como uma ameaça. — Não é suficientemente bom para transformar amor em ódio. — Acredita mesmo nisso? Você poderia se surpreender ao saber o quanto eles estão perto um do outro. — A expressão dele estava torturada e a voz soava
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magoada. Apoiou a testa contra a minha e apertou os olhos com força. — Não tem por que passar por tudo isso. Podemos fazer com que acabe logo. — É tão fácil para você jogar comigo… — Sussurrei com voz sufocada. — Mas não penso em colaborar. — Tentei ser benévolo. — Afastou a testa da minha e arqueou bem as costas. — Lena, já não devo nada a você. — Benévolo? — Repeti, como se ele tivesse me insultado. Suas palavras serviram para me fazer reagir e poder sair do estupor no qual sua presença me envolvera. — Por desejar que eu o odeie para facilitar as coisas para você? — Afastei o olhar, não queria que ele visse a dor nos meus olhos naquele momento, mas ele puxou meu queixo e me obrigou a encará-lo. — Você não precisa que eu o odeie para acabar comigo. — Murmurei através do nó na garganta. — Não precisa ter medo de mim, juro que não voltarei a torturá-lo. — Volte, isto é uma insensatez. — Sua expressão foi mudando por completo e de repente, ele se afastou. Deu meia volta e desapareceu na primeira esquina. Eu fiquei ali, ausente, contemplando de novo enquanto ele se afastava e sentindo que meu coração continuava sangrando lentamente. — Lena? — Perguntou de repente alguém detrás de mim. Virei-me sobressaltada e me deparei com os enormes olhos de Jerome. Christian já tinha desaparecido. — O que está fazendo aqui? — Gaguejei tentando recuperar a compostura. — Estava passeando. Você está bem? — Sim… — Menti e pus-me a andar de novo pela rua. Alguma coisa me obrigava a querer tirá-lo dali.
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— Você está indo para casa? — Perguntou-me. Assenti com a cabeça, sem vontade nem forças para falar. — Você não está bem. — Avisou preocupado. — Não é da sua conta. — Aleguei acelerando o passo. — Lena! — Alcançou-me e me deteve por um braço. Voltei-me para encará-lo. — Pode me chamar de estúpido, se quiser, mas eu me preocupo com você. Qual é o problema que a faz afastar todo mundo de perto de você? — Não, Jerome, qual é o seu problema? Não devia se aproximar de mim, devia se afastar como todos os outros. — Sério? E por quê? Esclareça-me! — Era a primeira vez que Jerome não sorria. Olhava-me com verdadeira preocupação. — Está equivocado comigo, não sou como pensa. — Repliquei franzindo o cenho. — E como é que eu penso que você é? — Perguntou. Desviei os olhos em outra direção, muito alterada para manter o olhar nele durante mais de dois segundos. Devia me conter para não lhe dizer a verdade. — Pensa que preciso que me resgate, que sou boa pessoa... — E não é verdade? — Não, na realidade, só faço mal às pessoas e se você não se afastar de mim vou terminar fazendo mal a você também. — Mas, do que você está falando? — Parecia exasperado e confuso. Ele me observava, mas não respondi à pergunta. — Sabe o que mais? Não importa, cada pessoa é livre para correr os próprios riscos. — Mas eu não quero me arriscar com você. — Então, você se importa um pouco comigo. Não muito, porque mal nos conhecemos, mas um pouco sim. Não me conte nada, não confie em mim se não quiser. Tentar conhecê-la já é suficiente para me manter entretido, mas não me afaste de você.
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— Por quê? — Perguntei com autêntica sinceridade. Ele demorou alguns segundos para responder. — Porque nós dois estamos sozinhos. — Disse devagar. — E, embora não acredite nisso, precisamos um do outro. Enchi os pulmões de ar e o expulsei, devagar. Soltei a mochila debaixo de um portal, tirei o capuz e me acocorei junto a ele, segurando a testa com as mãos. — Você faz com que pareça impossível ficar contra você. — Murmurei. — Acredito que seja um talento natural. — Suspirou. — Deveria investir seu tempo em algo mais produtivo. — Eu adoraria saber quem você é. — Alegou sem rodeios. — Isso é produtivo. — Suponho que para mim também, mas não é tão fácil. — Está bem. Todos nós temos segredos. — Uns mais que outros… — O papel de misteriosa lhe cai bastante bem, não é? — Riu, soando de novo como o Jerome de sempre. — Assim você espanta as pessoas ou as atrai ainda mais? É só curiosidade minha, não se ofenda. — Eu gostaria que fosse mesmo um papel para o teatro, mas receio que não seja assim. — Ele se acocorou ao meu lado. — Não posso contar nada sobre mim porque não me lembro do meu passado. — Confessei. — Está falando sério? — Perguntou de repente, consternado. — Por quê? — É uma longa história. — E ninguém lhe contou nada? — Não, na realidade não. Foram os De Cote que me acolheram, por assim dizer. Não tenho nem ideia de onde está minha família legítima. — Alguma coisa se encolheu dentro de mim. — Sinto muito.
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— Sente o que? — Pus-me em pé de novo. — Você não tem culpa de nada. — Que você não seja feliz. Embora suponha que agora eu entendo. — Estou bem. Não se pode ter saudades de algo do qual não se lembra, é isso que penso. Sem aviso prévio, senti os braços dele em volta do meu corpo. — Tenho lembranças suficientes para encher sua cabeça e a minha. — Sussurrou. — Aposto que sim. — Ri. — Você nunca sente calor? — Comentou afastando-se de mim. Parecia que ele estava brincando, mas me deixou bastante tensa. — Você está gelada. — Está chovendo! — Recordei-lhe, incômoda. — O que esperava? — Há mais em você do que diz. — É isso que pensa? — Eu virei a cabeça para ele. — É como se desejasse saber tudo sobre você. — Não quero que você saiba. — Tem medo de que eu descubra alguma coisa? — Ele virou-se para mim. — Ou que perca todo o interesse. — Sorri. — E quem cuidaria de mim, então? — Eu cuidaria sempre. — Riu. — Você esconde tantas coisas que não acredito que pudesse perder o interesse por você nem em mil anos. — Isso é muito tempo. — Acredito que ambos passamos maus bocados, sabemos o que é a dor, mas isso nos faz diferentes do resto. Nós dois sofremos muito. — Cobriu minha mão com a dele. — Eu daria até o último fio de cabelo para que você recuperasse seu passado.
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Aquilo me fez rir, mas me sobressaltou ao mesmo tempo. Nesse instante, o potente rugido de uma moto me assustou. Olhei em direção à estrada e, segundos mais tarde, uma imponente moto negra passou como o vento por nós. — Você sim que é uma boa pessoa. — Reconheci, evitando, sem êxito, pensar em Christian. — Não, não sou. — É o menino do eterno sorriso. Todo mundo ama Jerome. — Isso inclui você? — Brincou. — Eu estava generalizando. Não vou facilitar as coisas para você. — Nunca duvidei disso nem por um momento. — Riu. — Ainda não sei se posso confiar em você. — Não confie. Não confie em mim ainda. Primeiro me conheça, depois pode se decidir. — Acredito que já sei como você é. — E como é que eu sou? — É de uma brutal sinceridade, que sempre está aí, muito embora não queira. — Vou aceitar isso como um elogio. — Soltou uma gargalhada. — Também é aquele que sempre me faz sorrir. E isso não é fácil ultimamente. — Tem gente por perto que se importa com você, Lena. Não se esqueça disso. — Ele se adiantou um passo e beijou-me na bochecha. — A gente se vê. — Prometeu. A relação com Jerome estava ficando cada vez mais próxima. Ele tinha um talento inato para adivinhar quando eu não me sentia bem. Ele sempre aparecia e tentava cuidar de mim. Íamos juntos fazer várias coisas. Levava-me para assistir jogos de hóquei, estudava comigo e conversávamos durante horas.
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Introduziu-me no mundo do cinema e da literatura. Converteu-se da noite para o dia no mais parecido a um amigo que eu podia me lembrar; e embora me parecesse estranho, consolava minha solidão. Logo comecei a notar o peso do meu segredo como uma enorme carga. Nunca consegui perceber o quanto era difícil escondê-lo, porque sempre tinha podido falar disso com todos os que me rodeavam. Além disso, outro sentimento começou a me invadir, um desejo impossível, motivado pela constante presença de Jerome em minha “vida”: a necessidade de voltar a ser normal. Pela primeira vez, desde que eu cheguei a este lugar, senti que podia chegar a entender Gaelle.
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Noite dos mortos-vivos Quando entrei, escutei barulho na casa. Assustei-me, mas em seguida compreendi que os sons vinham da parte de trás. Devagar, fui até lá e me aproximei de uma das janelas. A casa inteira estava às escuras, então era impossível que alguém descobrisse que eu estava ali.
Assomei através das
cortinas de renda e descobri do que se tratava. Eram Reidar e Lisange. Ela estava apoiada contra a parede com o rosto contraído pela dor e parecia fraca, sem forças. Diante dela, ajoelhado, estava Reidar, com a cabeça apoiada contra o umbigo dela. Levei a mão à boca e inspirei com força. Era a imagem mais incômoda, desagradável e horripilante que tinha visto em toda minha vida. — Lena… — Lisange murmurou de repente, olhando na minha direção. A cabeça de Reidar se virou para mim, com os lábios manchados de sangue. Dei um pulo e saí dali correndo. Subi velozmente para o quarto e fechei a porta, procurando me afastar dela o máximo possível. Corri para o banheiro enquanto horríveis ondas de náusea sacudiam meu corpo. Um segundo mais tarde, senti alguém do outro lado da porta. — Lena? — Era a voz de Lisange. Colei-me contra a parede, incapaz de abri-la, mas me esqueci de trancá-la à chave e ela entrou, de qualquer forma. Estava ainda mais pálida e cansada do que a tinha visto há apenas um minuto.
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— O que era aquilo? — Gaguejei, apontando com o braço esticado em direção ao corredor. — Por favor, deixe-me entrar. — Pediu. Eu não respondi, mas ela avançou até a cama e se deixou cair, não sem certa elegância, sobre ela. — Lisange… — Corri para me juntar a ela. — Eu estou bem, Lena. Isso é normal. — Normal? — Soltei como se, de repente, tivesse ficado louca. — O que ele estava fazendo com você? — Eu lhe disse que Reidar estava encerrado aqui. Ele não tem outra forma de se alimentar. — Ele estava… Alimentando-se de você? — Ela assentiu levemente. — Como? Ela fez um leve gesto de dor e ergueu um pouco o tecido da linda camiseta, expondo a pele do ventre. Então eu vi, avermelhado e ainda coberto por um pouco de sangue, o umbigo dela. Ergui o olhar para ela com expressão horrorizada e enojada. — É isso que nos conecta à vida desde que somos feitos. — Explicou. — O sangue concentrado aí é o alimento dos guardiões. E pelo que parece, o único sangue puro em nós. — Isso não faz sentido. — Tem, acredite. — Respondeu, cobrindo-se de novo. — Você está bem? — Sim, só preciso dormir. — Deitou o corpo para trás e se aconchegou na cama. — Pensei que não podíamos amar, e que Christian e eu fôssemos um estranho engano.
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— E assim é. — Olhou-me do travesseiro e esboçou um pequeno sorriso. — Mas Reidar e você... — Amar nem sempre é um sentimento, mas uma atitude. Eu não o amo, vivo da lembrança do que senti uma vez. Mas essa lembrança não vem do coração, e sim da mente. E prefiro assim. Amar é muito bonito, mas tremendamente doloroso. Já experimentei essa dor em vida, e tive a sorte de ter durado pouco. Não vou me arriscar tendo a eternidade pela frente. — Soltou uma pequena gargalhada de frustração. — Isso é a única coisa da qual tenho medo de verdade, como todos, suponho. — Como todos? Isso não é verdade. — Seu caso é diferente, Lena, mas nós somos feitos de tal maneira que não possamos amar, porque é uma fraqueza. Não temos medo de nada, porque, olhe onde estamos. A única coisa à qual temos medo é do amor, porque é uma dor da qual não podemos nos nutrir, é como uma bebida envenenada, e é a única coisa que não podemos controlar. — Não entendo… — Eu sei e ignoro se isso é bom ou ruim. — Fechou os olhos e inspirou devagar pelo nariz. — Estou esgotada. — Fique aqui e descanse. — Se você não se importa… Tampouco queria acrescentar nada mais, precisava de ar fresco para me afastar da cena que acabara de ver. Então eu a deixei lá e saí. Era noite, uma noite mais ou menos tranquila. Não havia vento, tão somente uma leve brisa balançando a palha. Estava sentada no alto da escada, observando a paisagem. Fazia mais de duas semanas que não via Christian e o vazio se tornou contínuo. Jerome se esforçava para ocupar quase todo meu tempo, rivalizando com Lisange, mas eu não podia evitar aqueles momentos em
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que ficava sozinha. Perguntava-me o que havia sido real e o que era um jogo, e continuava me culpando por não ter prestado mais atenção para me acautelar com o que tinha acontecido, mas eu sentia falta dele, muito mais do que podia suportar. Lisange se sacrificava por Reidar. Ele tinha renunciado a tudo, sem se importar que pusessem a cabeça dele a prêmio por estar junto dela. Gareth fingia levar uma vida humana para fazer Gaelle feliz. Esta se sacrificava por Valentine. A menina tentava contentar Christian. Meu grande predador suportava aqueles horríveis batimentos do coração só para poder ficar ao meu lado. E eu… Eu não tinha feito nada, nem sequer para evitar perdê-lo. Diziam que não havia amor nesta outra vida, que eu era a exceção, mas eu não tinha sacrificado nada, não tinha demonstrado de nenhuma maneira o quanto amava Christian, embora sentisse amor em cada pequena célula do meu corpo. Até onde estava disposta a chegar por ele? Até o ponto de me arriscar a acreditar que ainda havia algo nele que me amava? Até o ponto de lutar por ele? Sentia muita falta de tê-lo perto, sentia falta da certeza de que me amava de verdade… Embora Christian não fosse o único que eu sentisse falta; tinha saudade de tudo em La Ciudad. De algum jeito, Flávio e Lisange voltaram a conviver comigo, mas era diferente. Nenhum deles era tal e qual eu tinha conhecido. Liam também teria mudado? Eu continuava sem ter notícias dele, mas toda tentativa de fuga parecia suicida devido a tudo o que me rodeava. Além disso, se por acaso fosse pouco, continuavam aparecendo humanos sem vida nos arredores da casa, e a vigilância estava cada vez mais frequente, com o que isso supunha. A única coisa boa nisso tudo foi descobrir que eu não sentia nenhuma atração por Jerome, no sentido de que me agradava a ideia de me nutrir dele. Embora estivesse certa de que ele escondia muito dor, parecia muito feliz. Nós dois tínhamos concordado em não colocar nossos problemas
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para fora. Isso me beneficiava, porque, assim, eu protegia meu segredo e evitava alimentar-me dele. De repente, luzes apareceram às minhas costas e, um instante depois, um carro parou perto de mim. Eu me virei, protegendo os olhos para que os faróis não me cegassem. As luzes se apagaram e o vidro do condutor baixou devagar. Pus-me em pé. Não me lembrava de ter visto antes um veículo igual àquele, mas ele se parecia muito ao que Christian costumava usar, pelo menos na cor negra, e o alto valor que devia ter custado. — Entre no carro! — Disse lá de dentro uma voz conhecida. — Hernan? — Perguntei confusa. — Entre! — Repetiu. — Nem pensar! — Neguei recuando um passo. Eu podia ser louca, mas nem tanto. Escutei um suspiro impaciente e a porta se abriu, surgindo de dentro a figura alta e alinhada de Hernan. Surpreendeu-me comprovar que ele tinha trocado de roupa. Estava vestindo smoking, ou algo muito parecido, incluindo a faixa. O loiro platinado do cabelo e o aspecto de porcelana da pele pareciam ainda mais intensos do que de costume. — O que há com você? — Perguntou-me de forma brusca, parecia zangado. — Tinha entendido que você estava interessada no meu irmão. — A que vem isso? — Pergunto-me se sua atenção não se desviou. — A voz soou envenenada e ameaçadora. — Não sei do que você está falando. — O nome dele é Jerome. — Resumiu. — Não se aproxime dele. — Adverti, dando um passo adiante. — Então, comporte-se.
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— Christian não quer me ver. — Aleguei. — E não quero dar-lhe mais motivos para querer acabar comigo — Não me importa ele agora. Venha comigo. Quero lhe mostrar algo. — O que? — Perguntei desconfiada. — Uma motivação. — Voltou a entrar no carro. — Entre e não me faça perder mais tempo. — Não vou a lugar nenhum com você. — Nesse caso, vai ver como me divirto com seu novo amigo. — Sentenciou. — Ele não lhe fez nada. Não tem o direito de se aproximar dele. — Desde quando isso foi motivo para me aproximar de alguém? Sei que sua querida De Cote está no seu quarto, em condições muito pouco favoráveis para uma defesa decente. Aposto que você não quer que eu lhe faça uma visita. Aquilo não me deixava alternativa. — Aonde vamos? — Perguntei incômoda enquanto fechava a porta. — À igreja. — Respondeu arrancando o veículo. — Celebramos uma noite muito especial. — Sorriu. — Um aniversário. — Christian estará lá? — É bem provável, — Disse. — Mas não vai reconhecê-la. — Sorriu. — Haverá tantos predadores grandes soltos por lá que será complicado para ele prestar atenção em você. — Grandes predadores? — Balbuciei. — Vai escolher este preciso instante para despertar seu instinto de sobrevivência? — Zombou. — Lembro-me do que aconteceu na última vez que estive em companhia de mais de um grande predador. — Comentei, rígida no meu assento, avaliando a possibilidade de abrir a porta de repente e me jogar na estrada.
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— Mas que pouco senso de humor tem os De Cote. — Estalou a língua. — É uma autêntica lástima. Nenhum dos dois falou de novo até que ele parou o carro junto à entrada dos fundos. — Vamos. — Ainda não estou tão desesperada. — Assegurei-lhe. — Como posso ter certeza de que não vai me entregar àqueles grandes predadores para que me matem? — Como diria a pequena Tine, “eu não compartilho minhas bonecas.” Você não é precisamente a caçadora que tem mais amor a esta vida, por que então tem que preocupar-se com isso agora? — Não quero servir de diversão para eles. — Eu me divirto mais com você viva do que morta, e por mais tentadora que seja a ideia de entregá-la como entretenimento aos nossos convidados, não vou me arriscar a que acabem com você. Agora, teria a amabilidade de me acompanhar? Está ficando tarde e eu sou o anfitrião. — Acompanhou-me, às escondidas, até o piso superior, onde em outras épocas costumava ficar o coro, mas no momento parecia ser algum tipo de armazém. Tudo estava coberto por cinzentos lençóis cobertos por uma camada bastante grossa de pó. — Apresentolhe Miranda. Ela vai ajudá-la a se preparar. Não demore a descer. — A mulher não parecia especialmente emocionada com a ideia. Hernan se aproximou de uma elaborada caixa de madeira e tirou dela uma máscara, negra e prateada e voltou para perto de mim. — Isto é o mais importante, Lena. — Colocou-a em minhas mãos. — Não se esqueça. Dito isto, desapareceu. Virei-me para a mulher chamada Miranda e respirei fundo.
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Uns dez minutos mais tarde, desci para a entrada com um vestido comprido, cor salmão envelhecido, com inúmeras pregas na saia e apertada na cintura por um sutiã dourado. Não havia ninguém, exceto Hernan, esperando junto à porta. Assim que me viu se aproximou com as mãos entrelaçadas às costas. — Amarre bem a máscara. — Ele disse, atando-a de novo. — Parece que você não se dá conta do quão importante é que não a descubram. Não quero que meus convidados fiquem sabendo que trouxemos uma caçadora e não uma presa. Não acolherão com bom humor o fato de você ter se equiparado a eles. — Não é uma boa ideia. — Balbuciei. — Christian vai descobrir. Ele me conhece muito bem. — A máscara vai enganar os olhos, as luvas camuflarão o tato, evite falar e ele não vai reconhecer sua voz e, certamente, não o beije, não há jeito de disfarçar isso. — Colocou uma mão no bolso interior da jaqueta e tirou um pendente. No mesmo instante, invadiu-me o cheiro de uma flor que me pareceu muito familiar. Hernan se colocou detrás de mim e a prendeu sob o meu cabelo. — Isto vai disfarçar o seu cheiro. — Em seguida ficou de frente para mim. — Não tem como ele reconhecê-la, portanto, não se exponha. — Obrigada! — Reconheci. Ele ficou um instante parado, como se fosse a primeira vez que alguém lhe agradecesse algo. Depois, fez uma estranha careta de desagrado e estendeu o braço para mim. — Vamos entrar.
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A pequena açougueira
Assim que as portas se abriram, senti que meus joelhos tremiam. Não saberia dizer se era pânico, admiração ou ambas as coisas. Haviam preparado a sala principal para aquela noite. Não parecia certamente abandonada. Estava maior e mais bonita, tinham decorado cada canto com tecidos e cortinados, com fitas de cores e impressionantes velas e tochas. Os bancos tinham desaparecido para oferecer uma ampla pista de baile. Eu me assustei com aquela maravilhosa visão. Ao lado desta, a festa dos Lavisier tinha sido como um piquenique na piscina; com a diferença de que aqui tudo estava cheio de grandes predadores com máscaras, trajes e os ensurdecedores corações. Mais impressionantes ainda que a própria sala. Entramos devagar. As pessoas se viraram para olhar para Hernan e saudá-lo com uma leve inclinação de cabeça. Ninguém prestou atenção em mim, por sorte, pois minha expressão devia estar me delatando, sem dúvida nenhuma. Ouvi uma música e Hernan parou para que eu pudesse contemplar o baile. Era horrível que usassem um lugar assim para se reunirem. Eram assassinos, seres cruéis e desalmados que pareciam rir, dessa forma, de toda esperança humana. Era uma brincadeira, uma brincadeira de mau gosto, uma desprezível falta de escrúpulos. Mas também era hipnótico e incrível estar ali, vendo aqueles homens e mulheres, autênticas máquinas de matar,
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demonstrando o significado das palavras elegância e beleza tão sincronizados, tão devastadoramente perfeitos. Naquele momento compreendi por que diziam ser uma raça superior. Não que os caçadores não fossem bonitos, Liam e Lisange eram, sem dúvida, muito mais impactantes que a grande maioria deles, mas era aquele halo de mistério, talvez o fato de que estivessem com os rostos cobertos. O irônico da situação era que se supunha que aquelas pessoas se encarregavam de torturar pessoas inocentes ou, talvez, a periculosidade que a própria formosura despertava, o que os transformava em um ímã de desejo. Vê-los era enigmático, hipnótico, era… — Poder, Lena. — Hernan sussurrou ao meu lado, completando meu pensamento em voz alta. — Era isto que eu queria que você visse. Consegui afastar o olhar e observei os jogos que havia entre os demais. Sem dúvida, o espetáculo não estava apenas na pista, mas também na forma como falavam entre eles, distantes e ao mesmo tempo, atraentes, frios, mas enganadores, sedutores, irresistíveis, mesmo que inalcançáveis. Era uma trama impactante e precisa de linguagem não verbal, movimentos sutis e olhares. Vendo aquilo me dei conta do que Hernan tinha estado tentando me explicar. Como podia ser suficiente alguém como eu frente a toda aquela fascinação? — Nunca tinha visto nada igual. — Confessei. — Não há medo neles. — Ele continuou. — Não há hesitação. Apenas a segurança de estar no topo do mundo, de controlar a própria existência sem medo de nada, nem de ninguém. Ciumentos, protetores e donos do próprio território. Privilegiados, sem defeitos que os marquem. Grandes Predadores, Lena, a cúpula da cadeia alimentícia deste mundo. Meus olhos se cravaram então nos de uma figura do outro lado da sala. Reconheci-o imediatamente. A uma distância considerável, e ao lado de uma mulher cuja identidade também podia adivinhar, estava ele, Christian. Foi como
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se o mundo inteiro desaparecesse em volta dele, não conseguia prestar atenção a nada mais que não fosse ele. Estava com o mesmo tipo de traje negro de Hernan, com faixa e máscara dourados, e luvas de um branco impoluto. Vi-o entreabrir os olhos e inclinar apenas alguns milímetros a cabeça para um lado, mas Elora sussurrou-lhe algo ao ouvido e ele afastou por completo a atenção de mim. — É ele. — Murmurei. — E me reconheceu. — Não reconheceu. — Respondeu Hernan. Virou-se para mim, olhou-me e levou minha mão à boca para beijá-la. — Não dance, ele a reconheceria imediatamente. Dê uma volta, aproxime-se, observe-o, se quiser, e depois eu a tiro daqui. Ficou claro? — Assenti com a cabeça. — Bem, procure não desfrutar muito. Jamais me perdoaria por isso. Ato contínuo, ele desapareceu entre as pessoas. Eu me limitei a observar tudo o que havia ao meu redor. Por um momento eu me esqueci de Christian e meus olhos cravaram-se, contra minha vontade, no centro da sala, onde grandes predadores se divertiam, dançando. Tentei não pensar no que aconteceria se, de repente, alguém me descobrisse, mas era impossível não pensar naquilo. Era óbvio que alguém não demoraria a perceber que eu não me encaixava naquele ambiente. Era como um rato entre cisnes. E, quando isso acontecesse, todos se lançariam sobre mim e eu podia dizer adeus a esta outra vida em apenas alguns segundos. Retorci as mãos, nervosa. Se Lisange ficasse sabendo do que eu estava fazendo iria me odiar pelo resto da eternidade… Mas, um ligeiro comichão me fez esquecer Lisange. Senti um cheiro tentador e familiar e um fino hálito na nuca. Virei-me e dei de cara com ele, tão imponente e perfeito como sempre, mais ainda que todos os outros. Inclusive com a metade do rosto coberto ainda tinha aquela formosura dolorosa e letal que o caracterizava, mas não disse nada. Tudo, absolutamente tudo parou, nem um só pensamento cruzou minha mente, a não ser a imagem dele. Sem emitir nem um som, ofereceu-me a mão enluvada.
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Hesitei durante alguns segundos, mas quando quis me dar conta, meu lado irracional já tinha tomado a decisão por mim. Ele aproximou minha mão da boca e a beijou sem deixar de me observar por trás da máscara. Em seguida, começou a soar uma nova canção, mas ele não fez menção de querer aproveitála. Endireitou-se com calma e me observou. Nem sequer posso dizer como foi o baile, não podia fazer nada mais do que me perder naqueles olhos. Deixei que ele me rodeasse, espreitando-me com uma mistura de frieza e curiosidade, até que voltou a parar diante de mim. Só sei que, naquele momento, em que de novo parecia que estávamos sozinhos, consistia tão somente de uma fração de tempo proibido, no qual nossos olhares ficaram perdidos no outro. Nenhuma palavra, nenhum sorriso. Nada mais do que isso e meu corpo lutando para se aproximar dele a cada movimento. Então, um grupo começou a cumprimentá-lo e o afastaram vários metros de mim. Notei as tentativas que ele fazia para permanecer ao meu lado, mas alguém aferrou meu braço, afastando-me dos olhos dele. — Néscia estúpida, por acaso quer que ele a reconheça? — Sussurrou Hernan junto de mim, com um tom apenas audível. — Acredito que já é tarde para tanto. — Respondi, ainda ensimesmada. Ele me puxou e me levou para um lugar onde o outro não pudesse nos ver. — A festa terminou para você. A música cessou e Hernan me conduziu para a saída. — Hernan! — Chamou uma mulher. Ambos viramos para ela. — Falo com você em seguida. Tenho que escoltar essa jovem dama até a saída.
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— Com certeza você não consegue adiar o entretenimento nem por um instante. — Elora respondeu. — Preciso de você agora. — Intercambiaram um olhar loquaz que eu não consegui decifrar. — Voltarei em seguida. — Disse-me com voz dura. Saiu rapidamente e se perdeu entre as pessoas. Elora me avaliou com os olhos, esboçou um ligeiro sorriso e, um instante depois, seguiu Hernan. — O que pode ser tão importante para ele abandonar uma grande predadora tão especial? — Quase dei um pulo. Ali estava ele de novo, ao meu lado. Ele se aproximou um pouco mais de mim e notei as aletas do nariz dele ligeiramente dilatadas. — Perfume de lírio, a flor da realeza. — Adivinhou, inclinando-se para mim. — Muito apropriado. — Entrecerrou um pouco os olhos. — Não me lembro do seu nome. — Olhei em volta procurando Hernan. Christian ia a me descobrir! — Como é o seu nome mesmo? — Repetiu. — Eu não disse. — Balbuciei tentando disfarçar a voz. E Hernan, que não aparecia. — Então este é um bom momento para dizê-lo. — Pensei que as máscaras eram para ocultar nossa identidade. — Senti que a temperatura subia de forma abismal. — Aposto como você conhece a minha. — Igual a todos os outros. — Torceu um sorriso, avaliando-me. — Sinta meu coração, então. Antes que eu pudesse dizer algo, pegou minha mão e a pousou sobre o peito. Meus dedos captaram de forma instantânea as palpitações e, para meu grande alívio, comprovei que o tecido da luva impedia que a pele dele queimasse. — Forte e doloroso. — Comentei. — Permita-me escutar o seu. — Estendeu uma mão para mim, mas eu recuei. Ele me olhou com grande interesse. — Nem o rosto, nem o coração... —
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Torceu a boca em um ligeiro sorriso. — De modo que só conto com seus olhos para reconhecê-la. — Todos os olhos nesta sala são negros. — Apontei. — Mas nem todos eles têm o poder de me cativar. — Sussurrou muito perto do meu ouvido. Nesse momento, não soube o que dizer. Senti que ficava repentinamente nervosa e perdi toda a calma. Olhei em volta procurando Hernan, mas nem sinal dele. — Estão me procurando, preciso ir. — Disse. — Que esperem. — Soltou ele com voz fria. Voltou a inclinar-se para o meu ouvido e sussurrou: — Quero desfrutar do prazer da sua companhia. — Afastei-me dele. O que significava tudo aquilo? — Sinto muito. Antes que ele pudesse dizer algo mais, aproveitei o início de uma nova seleção de músicas e me afastei dele, com passo acelerado. Procurei Hernan por toda a sala, fugindo de Christian, mas não o encontrei. Cruzei toda a festa e passei pelo enorme pano de fundo de veludo vermelho que cobria o altar, mas encontrei outro, abri-o e descobri mais. Tentei retroceder, mas então, vi Christian me seguindo, então dei meia volta e me escondi entre os pesados cortinados. Parecia um labirinto que tinha me prendido. Corri, açulada por um horrível pânico, mas de repente, topei com alguém. Eram três pessoas, alguém sustentava no alto a um homem apavorado e a terceira os contemplava, divertido. Fixei os olhos nos da vítima, negros, não era um humano, mas um caçador. Quando me viram, os mascarados riram e soltaram o homem, passando sobre ele antes de desaparecerem de novo entre as cortinas. O caçador revolveuse no chão e se virou para mim.
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— Adam Lavisier! — Avancei para ele e me ajoelhei ao lado dele. — O que você está fazendo aqui? — Está doendo… — Você está sangrando! — Olhei minhas mãos, que pouco a pouco foram se cobrindo de sangue. — Sim… — Sorriu. — Curioso, grande predador… — Eu me virei, assustada. Era Christian. Observou o outro e depois de novo a mim. — Você o conhece? — Não. — Menti me reincorporando depressa. — Mas estava tentando ajudá-lo… — Fiquei em silêncio, não sabia o que dizer. — Está perdendo tempo, Lavisier está aqui há tanto tempo que já se tornou da família. Ninguém o obriga a ficar, não é verdade? — Adam sorriu de novo enquanto se retorcia de dor. — Por que ele está sangrando? — Murmurei, certa de que essa pergunta me delataria. — Porque o coração dele começa a desfrutar do jogo. — Sorriu. Aproximou-se de Adam, agarrou-o pela jaqueta e o obrigou a ficar em pé. — Quer provar? — Ele está muito fraco. — Disfarcei. — Não é impressionante o que conseguem aguentar? Este é dos que mais prometem. O corpo dele é forte. — Fiquei parada no mesmo lugar enquanto ele me observava, impassível, durante segundos que me pareceram eternos. — Muito bem. Vá embora. — Ordenou-lhe, empurrando-o de modo que se perdeu entre as cortinas. Em seguida se virou para mim e me cravou os olhos. — Se você queria um lugar mais íntimo, só precisava pedir. — Só quero sair daqui.
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Sentia Christian virtualmente sobre meu cocuruto. Conforme avançava, encontrava mais grupos pequenos, sempre em torno de um caçador. Começaram a chegar aos meus ouvidos os gemidos amortecidos de dor de todos eles. Conseguia ouvir inclusive o som dos dedos em torno do coração deles, enquanto os apertavam com força. Senti uma profunda dor no peito. Naquele momento, compreendi o que era aquele lugar. Ali era, por assim dizer, onde os grandes predadores da festa desafogavam as paixões. Era como um prostíbulo de grandes predadores, onde o que procuravam era o prazer de um corpo ou um coração para torturar. Só a ideia em si já era macabra e repugnante, cruel e desumana. Era injusto. Os gritos aumentavam mais e mais na minha cabeça. De repente, tropecei e caí no chão. Meu corpo se dobrou e meu estomago se contraiu para vomitar. Senti náuseas tremendas, mas não havia nada para expulsar. Enrolei o corpo como um novelo e cobri com força os ouvidos, desejando que todo aquele horror desaparecesse da minha mente. Então, senti dedos percorrendo minhas costas. Eu me virei e me levantei assustada. — Curioso sinal. — Ele comentou. — O que? — Perguntei confusa, sem saber a que ele se referia. — Já se cansou de brincar ou vai continuar fugindo de mim? — Ele fez uma tentativa de acariciar meus lábios com os dedos, mas eu me afastei antes que ele pudesse sequer tocá-los. — Eu a incomodo? — Perguntou, de tal maneira que senti que ele estava desfrutando de tudo aquilo. — Nunca fez isto antes, não é? — Olhei-o nos olhos, mas não respondi. — Tenho o privilégio de escolher qualquer um para ser minha presa esta noite. — O que significa tudo isto? — Perguntei, evitando o comentário. — Um pequeno lugar para satisfazer nossos mais escondidos e secretos desejos. — Respondeu com tranquilidade.
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Pegou meu queixo e passou os dedos pelos meus lábios. Eu comecei a sentir uma profunda dor no peito e o tremor das minhas pernas se acentuou. — Quero voltar. — Minha companhia não é agradável? — Tem muito barulho. — Aleguei. — Barulho? — Riu, pela estúpida desculpa. — Não lhe agradam os gritos? — De repente, senti seu hálito contra o meu pescoço. — Não se sente reconfortada? Eu estava incapaz de controlar a respiração. Estava descontrolada. Não conseguia pensar em manter as aparências, nem no que eu estava entrando ao não querer seguir o jogo dele. Eu só conseguia pensar em sair dali o quanto antes, fugir daquele lugar horrível. — Venha comigo. — Sussurrou, mas eu resisti. — Pelo que parece, eu a incomodo sim. — O que aconteceria se eu dissesse que sim? — Isso depende do que você quer que aconteça. — Sussurrou perigosamente perto do meu ouvido. — O que quer dizer? — Um calafrio percorreu todo meu corpo. — Caçadores? Humanos? — Ergueu de forma sutil a comissura dos lábios e se aproximou demais de mim. — Ou talvez um grande predador? Tenho tudo o que possa desejar. — Duvido muito. — Experimente. — Disse com os lábios tão perto dos meus que pensei que me ia beijar. Tive que empurrá-lo um pouco pelo peito para sair dali. — Eu preciso ir. Virei-me e saí dali com passo acelerado. Não tinha conseguido atravessar mais que duas cortinas, quando algo me deteve em seco. Atrás daquele
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gigantesco tecido pendente me deparei com algo muito diferente; tão aterrador que me esqueci por completo de fugir. Havia uma sala, uma imensa sala cheia de enormes jaulas. Parecia saído de um filme de terror. Os corpos acumulavam-se dentro daquelas paredes de ferro. Não saberia dizer se eram caçadores ou humanos, porque estavam completamente maltratados, mas todos pareciam moribundos. Então, fixei-me em algo pendurado no centro daquela espantosa sala. Era uma mulher, com uma longa cabeleira negra, suspensa do teto pelos punhos e coberta de farrapos. — Conhece essa mulher? — Inquiriu ele de novo ao meu lado. — Quem é ela? — Perguntei, virando-me assustada. — Uma caçadora que gostava de dizer mentiras. — Respondeu com calma. — Fala no passado. — Adverti sentindo uma grande dor no peito. — Vai matá-la? — Não compete a mim decidir o destino dela. — Disse com total frieza. Observei-a com atenção. O rosto estava oculto pela emaranhada mata de cabelo, mas emitia estranhos grunhidos, como palavras. — Está tentando dizer algo. — Sussurrei para mim mesma, esquecendome por um segundo de Christian. — Nunca mais vai dizer nada, cortaram-lhe a língua. — Quem? — Perguntei horrorizada, sem conseguir afasta os olhos da mulher, que ainda se esforçava para dizer algo. — Ela. — Ele sentenciou. Desviei os olhos da estranha e, instintivamente, recuei um passo. Valentine acabava de entrar por uma lateral da sala. — É um suvenir da minha última viagem. — Comentou. — O melhor presente que já recebeu de aniversário, e adora. Não permite que ninguém mais o toque. — Foi ela que fez isso? — Perguntei sentindo um pesado nó no estômago.
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— Ela é muito apaixonada. — De onde estávamos, contemplamos em silêncio como a menina cortava a corda que suspendia a mulher no alto e a jogava no chão sem delicadeza alguma. Nesse momento, o rosto dela ficou descoberto e eu me senti desfalecer. Era Helga Lavisier. Recuei com brutalidade, chocando-me contra ele e a ponto de deixar escapar um grito, mas Christian me sustentou pelo braço. —Observe. — Sussurrou. — É fascinante. Quis correr para ela, gritar para todos até ficar sem fala, mas Christian não me permitiu sequer titubear. A raiva e a dor foram tomando conta de mim com a descoberta da verdade. O braço de Christian ainda me sujeitava quando Valentine se sentou no chão, balançou o corpo de Helga entre as mãos e enterrou a mão no peito da outra, agarrando o coração. Os gritos de Helga paralisaram meu corpo. Eu mal conseguia respirar. Estava completamente rígida contra o corpo de Christian, que respirava com regularidade. Valentine continuava balançando Helga, como se fosse uma boneca, enquanto cantarolava uma canção que se misturava aos gritos. Naquele momento, pouco me importava se me descobrissem. — Faça com que ela pare. — Supliquei para Christian, sem olhá-lo. — O que você disse? — Ele inquiriu. — Faça com que ela pare. — Repeti, desta vez bem mais ansiosa. Notei que ele inspirou com gravidade e soltou meu braço. Avançou e entrou no grande salão. — Tine... — Ele chamou, aproximando-se dela. Os gritos cessaram de repente. Valentine parou de cantar e se virou para Christian com olhos inocentes e expressão de dor. Tirou a mão do peito de Helga e a estendeu para Christian, mostrando-lhe o coração. Naquele último segundo em que Helga olhou em minha direção, senti que me reconheceu. — Quebrou… — A menina balbuciou.
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Aquilo foi muito mais do que consegui suportar. Sem pensar duas vezes, retrocedi e saí correndo dali. Não me incomodei em dissimular. Sentia raiva, gana de gritar. Ele apareceu do nada, pegou minha mão e puxou-me para atrás. — Solte-me! — Gritei. Ele não disse nada, apenas me conduziu cada vez mais para dentro daquele lugar. Atravessamos cortinas e mais cortinas, cada vez mais longe da entrada, até que demos com uma parede. Ele me virou e me imprensou contra ela. — Deixe-me ir, por favor! — Shhhh! — Respondeu, selando meus lábios com o dedo indicador. — Está melhor? Não consegui responder. Tinha um enorme nó na garganta. Parecia que, no final daquele labirinto, a parede fazia uma esquina e as cortinas cobriam todo o resto, de modo que estávamos encerrados em um cubículo. Ele se aproximou vários passos até ficar diante de mim, e correu uma cortina bem atrás dele, de modo que o pequeno cubículo se fechou ainda mais, a ponto de impedir que eu conseguisse me afastar dele. — É silencioso o suficiente? — Solte-me! — Eu só queria gritar e chorar. — Sim, é. Tanto que só se ouve meu próprio coração. — Ele sussurrou. — Não é curioso? Senti a garganta seca e os joelhos ameaçavam dobrar de um momento para outro. — Os batimentos do meu coração são fracos. — Tentei dizer. — Nenhum grande predador tem coração fraco. — Quero ir embora. — Balbuciei. Meu nervosismo crescia a passos acelerados. Ele ia me descobrir. — E por quê? — Quis sair, mas ele estendeu um braço, apoiando-o contra a parede e cortando meu caminho justamente antes que pudesse sequer tentar.
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Ele se aproximou muito do meu ouvido e sussurrou: — Sei reconhecer uma mentira, e mais ainda quando a pessoa não sabe mentir. Existem pouquíssimas pessoas que mentem tão mal assim, e eu conheço todas. — Não estou mentindo. — Tentei me defender. — A lista se reduz quando se trata de alguém a quem não pulsa o coração. — Acrescentou com voz profunda e grave. Inclinou-se ligeiramente para trás e cravou os olhos em mim. Com uma mão, tirou a máscara, revelando o rosto perfeito, a cruel perfeição. A dor no meu peito se incrementou então de forma intensa. Ele estendeu a outra mão e colocou os dedos no meu pescoço, tentando captar batimentos do coração que não ia encontrar. — Estou errado, por acaso? Lena... Já devia saber que está brincando com o grande predador errado. O pânico invadiu meu corpo, mas de repente, vi Hernan bem atrás de Christian. A próxima coisa que notei foi uma profunda dor no peito. Apertei os dentes com força e aguentei a respiração enquanto pequenos batimentos brotavam dentro de mim. Os olhos de Christian refletiram surpresa. Devagar, afastou a mão de mim. Contive-me para não cair no chão quando ele me soltou. — Quem é você? — Sussurrou de repente, confuso e recuando um passo. Então, os batimentos do coração cessaram e pude voltar a respirar normalmente. O peito ardia de dor, e mal tinha forças para falar. Christian, ainda aturdido, fez uma tentativa para tirar minha máscara. — Não. — Eu disse, bem a tempo de impedir que ele a desamarrasse. Ele deixou cair os dedos ligeiramente e nesse momento, focou a atenção no meu pescoço. — Essa joia pertence ao legado dos Dubois. Devo supor que temos algum tipo de relação?
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— Essa relíquia foi um presente, irmão. — Hernan disse às costas dele. — Não seja descortês com a jovem. — A jovem ainda não me disse o nome dela. — Ele respondeu, sem se virar. Estava com os olhos cravados em mim. — Por acaso uma jovem não tem o direito de ter um segredo? Aposto que até você tem um. — Sorriu. Ele passou o olhar de um para o outro, tentando nos analisar, até que, finalmente, encontrou o que procurava ou se deu por vencido. — Bonito jogo, irmão. Se me desculparem. — Fez uma reverência e partiu, zangado, com as costas muito eretas, até desaparecer várias cortinas mais à frente. — Ele vai segui-la. — Hernan sussurrou. — São uns monstros! — Exclamei sem conseguir aguentar mais. Atravessei
as
cortinas
rapidamente
e
aterrorizada.
Corri
desesperadamente até me ver de novo na enorme sala. Procurei em volta, tudo parecia tal e qual tinha deixado antes. Respirei fundo e tentei serenar, a última coisa que queria era que todos aqueles animais descobrissem quem eu era realmente. Misturei-me às pessoas e procurei passar despercebida. Olhei com ansiedade em todas as direções, mas parecia que não estava ali. Talvez Hernan estivesse errado, talvez Christian tivesse preferido ir atrás dele ao invés de ir atrás de mim. — Ainda não terminamos. — Disse no meu ouvido, aparecendo do nada e rodeando minha cintura com um braço para me levar para trás de uma coluna. — Diga-me quem é você. Empurrei-o para trás, libertando-me dele. — A festa terminou. — Soltei.
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Antes que ele pudesse dizer qualquer coisa ou me agarrar de novo, saí dali como um furacão. Esqueci-me de dissimular naquele último ato. Consegui chegar ao vestíbulo e subi rapidamente para o quarto, fechei a porta e me apoiei contra ela, ofegante. Não tinha muito tempo, ele não ia demorar a rastrear meu cheiro, ou o do colar. Desfiz-me rapidamente do vestido e coloquei minha roupa novamente. Justamente quando escutei que alguém se aproximava, saí pela janela e saltei para a rua. A porta se abriu de repente.
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Justamente quando alguém acredita que não pode acontecer mais nada...
Correr, era a única coisa que parecia que me faria bem. Correr assustada, sem me atrever nunca a mostrar o rosto para qualquer um que me espreitasse, mas embora a ideia não me agradasse, era melhor que a sensação de pânico que percorria meu corpo se eu parasse para ouvir. Não, Lena De Cote não é sinônimo de valentia, nem de nenhum adjetivo heroico. Cheguei a salvo até a rua que conduzia a casa. Ali gritei até doer o estômago, e bati com os punhos na fachada de uma das casas. EU O ODIAVA! Odiava Christian Dubois com todas as minhas forças, e a mim também, por ser tão covarde. Eles mataram Helga! Na minha frente! Aquela odiosa menina a matara debaixo do meu nariz, e eu não fiz nada para impedir. NADA! E Christian tampouco! Ele a entregara! Deus, que tipo de monstro eu amava? Como pude confiar nele? Tinha mentido para mim desde o começo, desde o início! E eu, estúpida, tinha acreditado em tudo. Mas, no que eu estava pensando? Por acaso não tinha aprendido nada sobre os grandes predadores? O que havia de errado comigo para não ser capaz de reagir diante dos sinais de perigo? — O ódio não vai levar você por um bom caminho, Lena De Cote. — Levantei a cabeça assustada e observei em volta, mas não havia ninguém.
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— Quem está aí? — Murmurei me levantando com dificuldade, meus músculos estavam encolhidos. — Quem está aí? — Repeti. Aguardei, congelada, sem receber resposta. Fiquei tão quieta que poderia ter escutado uma mosca bater asas do outro lado do campo, mas não se ouvia nada. Relaxei os ombros e me virei para entrar na casa. Não só era covarde, mas estava ficando louca, completamente louca. Exatamente quando eu estava com a mão no portão, uma brisa gelada cruzou a rua e acariciou minha nuca, e escutei algo novo: o som de uma porta mal fechada repicando contra os batentes. Dei a volta devagar, sabendo que aquela porta pertencia à casa em frente. Nunca, durante todo o tempo em que estava ali eu a vi aberta. Nunca… Olhei ambos os lados da rua, sem ver ninguém que pudesse tê-la deixado assim. Eu me virei de novo para o portão, disposta a subir e fazer as malas, mas alguma coisa nesse repique me impediu. Era hipnótico, e por alguma razão, atraente também. Não consegui deixar para lá. Em vez disso me surpreendi cruzando os escassos três passos que nos separavam e entrando na escuridão lá de dentro. Suponho que o fato de fazer algo parecido já me qualificava definitivamente como temerária, inconsciente e estúpida, para não falar dos mil e um adjetivos depreciativos que também poderiam se adaptar a mim naquele momento. Entretanto, não consegui evitar. Ali tinha alguma coisa que me chamava, podia sentir que me atraía cada vez com mais força. A porta chiou ao fechar-se trás de mim. Assustei-me, mas não tentei recuar. Fiquei parada, enfrentando aquela imensa escuridão. Só minha respiração entrecortada rompia aquele vazio. Cheirava a pó, umidade e madeira podre. Com muita dificuldade vislumbrei uma escada. Com o coração apertado entrei um pouco mais e subi o primeiro degrau. A madeira rangeu sob meu peso, mas continuei subindo. Meus passos levantavam tanto pó que tive que parar de respirar. Um sentimento
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estranho começou a percorrer meu corpo; tinha a sensação de que, se olhasse por cima do ombro, encontraria algo espantoso me observando, mas a ideia de recuar e não descobrir o que podia haver por trás daquilo tudo me aterrorizava muito mais do que continuar avançado. A parte de cima também estava às escuras, exceto por um pequeno e quase imperceptível halo de luz que filtrava por baixo de uma porta próxima à escada. Uma luz perolada, como a luz da lua. Aproximei-me. Notei na minha pele um ligeiro frescor e o som da brisa me deu a entender que a janela daquele quarto estava aberta. Com cuidado, empurrei a porta e o frescor que entrava pelas janelas abertas chegou até o meu rosto. Estava no quarto que fazia frente ao meu. De onde eu estava dava para ver Flávio repousando sobre minha cama. De repente, a vela que iluminava o espaço apagou antes que eu conseguisse ver mais, deixando-me de novo às escuras. Voltei a respirar para tentar me tranquilizar e, então, descobri que aquele lugar cheirava mal, cheirava a sangue. Fui até o pequeno balcão, avaliando a possibilidade de saltar dali para a rua, mas o que vi congelou cada gota do meu ser. De repente, algo tinha mudado. Flávio miava selvagem e desesperadamente diante de mim. Tentava arranhar os cristais da minha janela enquanto mostrava as presas felinas para alguma coisa atrás de mim, com a mesma ferocidade de um tigre. Nesse momento, comecei a escutar o ritmo lento, mas rotundo, de um coração. — Quem está aí? — Dei a volta, assustada, medindo nervosamente o ambiente com os olhos. — Não há uma única resposta para essa pergunta. — Respondeu uma voz suave. — Sou muitos, e ao mesmo tempo, um só. — Eu conheço você, sua voz me é familiar. — Era a mesma voz de alguns minutos antes, mas eu já a escutara no passado.
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— Tinha essa vaga esperança. — Adiantou-se um passo, até o pequeno local que recebia um pouco de luz da lua. — Je-Jerome? — Gaguejei incrédula. — O que está fazendo aqui? — Sei o que você é. — Olhou-me fixamente antes de responder. — Não sei do que você está falando. — Observei você o suficiente para saber que está mentindo. — Seus olhos são verdes, não tem como saber. — Que sua espécie esteja desatualizada não quer dizer que as demais também estejam. Lentes de contato colorida, uma grande descoberta para nossa espécie, se me permite dizer. — O que você é? — Gaguejei retrocedendo um passo. — Isso importa? — Escutei o coração dele e me lembrei daquele corredor da universidade, quando pensei que vários guardiões estavam me atacando. Ele podia camuflar os batimentos do coração, não era caçador, nem sequer um grande predador. — Não estou caçando, Lena. — O que você quer? — Está com medo? — Sussurrou com voz grave. — Você mata os que são como eu. — É a Lei Natural, mas esta noite estou satisfeito. — Então, por que está aqui? — Eu estive lá. — Disse com voz trêmula, cravando os olhos em mim. O sorriso congelou e uma escura sombra cobriu-lhe o rosto. — Na casa. Na noite do incêndio naquela cidade. Eu estava lá e vi como lutaram por você. — Em La Ciudad? Os De Cote? — Gaguejei, tentando entender algo. — Diga-me, por que quatro poderosos anciãos, incapazes de ter sentimentos, arriscariam a vida por uma recém-nascida? Eu os vi escapar e os segui até aqui para descobrir que eram, nada mais, nada menos, que os
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caçadores que se abalaram para ajudá-la. — Avançou um passo para mim. — Você tem a mínima ideia do quão desconcertante é isso? Eu quis investigar para saber mais sobre você. E sabe o que descobri? Que você é surpreendentemente normal! — Riu. — Mais até que muitos humanos, por estranho que possa parecer. Exceto, talvez, pelo fato de que não devia estar aqui. Ele sabia… Jerome também sabia por que me perseguiam… — Você… Você é da Ordem? — Gaguejei. Ele riu de forma amarga enquanto tirava da manga um pacote de fósforos, acendeu um deles e o lançou para algum lugar na escuridão. Um instante depois um grande recipiente se iluminou, como uma tocha em um canto daquele habitáculo banhando o quarto todo com uma luz azulada. Ergui o olhar para ela e recuei um passo, assustada. Ali, diante de mim, escrito com sangue na parede, vi a mesma inscrição que tinha descoberto com Christian naquela noite na casa dos De Cote: “Sairão os anjos, e afastarão os maus do meio dos justos. E os jogarão no fogo do inferno; e ali se ouvirá choro e ranger de dentes.” — Pode-se dizer que sim. — Completou. Tentei correr para a janela, mas em uma piscar de olhos, ele se plantou diante de mim. — Ainda não está na hora de ir embora, Lena. Nesse momento, vi um pequeno metal afiado e me lancei sobre ele. Jerome nem sequer se alterou. — De quem é o sangue? — Perguntei angustiada. — Largue isso, vai machucá-la. — Não se aproxime de mim. — Ergui o objeto com um gesto ameaçador. — Você não ouviu nada do que lhe contei? Eu a observei. Você não sabe como usar isso. — Talvez tenha lhe escapado algo. — Vacilei.
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— Nem sequer sabe que isso não me faria nada. — Sorriu. — Não precisa ter medo de mim, Lena, de mim não. Não estou aqui para matá-la. — E por que devo acreditar em você? — Aproximei o metal do pescoço dele. Embora não servisse para nada me fazia sentir mais segura. — Sei que a Ordem está me procurando e você matou alguém por causa disso. — Eles não sabem que estou aqui. E esse sangue pertence a um animal que alguém jogou pela sua janela não faz muito tempo. — Está mentindo! — Sério? Acredita mesmo que não se plantaria aqui inteira se soubesse onde se escondem? — Fiquei em silêncio, tentando analisar as palavras dele. — Não vim para acabar com você, Lena. Com você não. — Então, com quem? — Com um grande predador. O seu grande predador. — Foi como se algo me atravessasse o peito. Não sabia o que fazer, mas apertei com mais força o metal contra a pele dele. — Mataria por ele? — Sussurrou impassível. — Por aquela criatura tão vil? — Você não é melhor que ele. — Não é a mim que você deve odiar. — Não sei do que está falando. — Murmurei. — Continue mentindo o quanto quiser, Lena, como você mente constantemente. Pode mentir para todo mundo, exceto para mim. Vi como olha para aquele animal, senti sua agonia quando ele não estava. — Você não sabe nada a respeito dos meus sentimentos. — Apertei com força os meus dentes. — Você está errada. Ver o interior das pessoas é o que fazemos, e eu vejo dentro de você. Protege seu próprio verdugo. — Ele me observou durante alguns
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segundos e de repente, o rosto dele relaxou. — Ele vai acabar com você, sempre soube disso e o pior é que você vai aceitar isso. — Como sabe disso? — Gaguejei. — E isso importa, por acaso? — Fez uma breve pausa, e eu fiquei em silêncio. — Você escolheu o predador errado para passar o resto da eternidade. Neguei com a cabeça, apertando o metal ainda mais entre as mãos. — Está errado. — Jura? Acredita nisso de verdade, Lena? Ele já lhe confessou que a ânsia para acabar com você cresce a cada dia. — Você não tem nem ideia. — Tenho, Lena. Sei o que ele é e sei o que vai fazer com você. Quero proteger você dele. Com um só movimento joguei o metal sobre ele, para sair velozmente dali. Desci correndo a desmantelada escada a uma velocidade superior da qual jamais teria acreditado possível em mim, sentindo a presença dele logo atrás de mim. Corri desesperadamente para a porta, abri-a e sufoquei um grito, pois do outro lado estava ele de novo, transformado por completo em um guardião. Afastei-o e me dirigi para a porta. — GARETH! — Gritei, esmurrando a madeira, desesperada. — GARETH! Golpeei-a com força, mas a porta não se abria. Nesse momento, comecei a sentir que aquele frio horripilante, aterrorizante, apoderava-se do meu corpo. Não pensei duas vezes e saí correndo pela rua. — Lena? — Escutei a voz de Gareth ao longe, mas já não podia retroceder. Atravessei a praça e desci correndo a escada de pedra. Não havia nada, nem um leve sopro de vento. De novo, nada. Estava ali, eu sabia, e não estava sozinho. Aquele frio voltou a percorrer todo o meu corpo. Escutei aquele horrível chiar de dentes que arrepiou minha pele inteira e, em seguida, de novo o silêncio.
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Pus-me de pé, sem fazer o mínimo ruído, levei a mão à boca para parar até de respirar, mas de repente, o capim começou a se mexer. Primeiro atrás de mim, mas voltaram a soar em outra direção, e em outra, depois em outra. Estavam me rodeando. Sem pensar duas vezes, pus-me a correr saltando os sulcos por todo o caminho, desesperada, sem conseguir ouvir nada ao meu redor. Então, uma figura apareceu ao meu lado, cravou-me os olhos e ergueu um braço para mim. A última coisa que ouvi foi meu grito rasgando o silêncio da noite.
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Quem disse que o amor dói, não tinha nem ideia...
Alguém estava me carregando nos braços. Podia sentir o ar sob o meu corpo. Ia rápido, mas eu o sentia lento, devagar, como se me balançasse com suavidade ou como se flutuasse em um espaço infinito, perturbado apenas por vozes distorcidas e grotescas, sem sentido, sem dono... Como se viessem de uma realidade muito, muito longínqua. — Lena? — O murmúrio de uma voz mais clara abriu caminho entre o abismo. — Lena? Alguém me depositou em algum lugar, porque senti o tato de uma suave e aveludada superfície. — O que fizeram a esta pobre criatura? — A voz de Gaelle era um chiado, mas consegui reconhecê-la. — Todas as veias dela estão negras. — Notei que mãos apalpavam meu corpo com urgência. — Nunca vi isso antes. — Hernan. — Chamou alguém de algum lugar um pouco mais afastado. Pouco a pouco os sons ficaram mais nítidos, mas não estava conseguindo abrir os olhos. Meu corpo inteiro estremeceu ao ouvir aquele nome. Ele estava ali?
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— Nem pensar. — Lisange soltou junto ao meu ouvido. — Aquele grande predador não vai tocá-la. — Se lhe ocorre algo melhor, este é o momento de nos deleitar com sua sabedoria, Lisange. Tem alguma alternativa? — Ela ficou em silêncio. — Hernan. — Voltou a chamar. — Por mais que me tente a ideia de enterrar o punho no peito dele e bombear lhe o coração com meus próprios dedos, receio que jamais faria tal coisa com um fim que não fosse meramente recreativo. Não tenho por costume salvar a miserável vida de mal afortunados caçadores. — Riu. — Não obstante, talvez outro grande predador queira mostrar-se mais misericordioso com esta imprudente jovem. — Prolongou-se um incômodo silêncio, seguido de uma risada de satisfação, mas não pude continuar prestando atenção, porque um repentino tremor começou a sacudir todo meu corpo. — Hernan! Se não fizer juro que... — Você jura, De Cote? — Ele mofou-se. — De modo que a única proteção desta criatura é um grande predador? Que ironia! Pelo jeito o clã De Cote está perdendo a capacidade de proteger os seus. Senti que Lisange se levantou de um salto, com a intenção de enfrentá-lo. — Lisange, não há tempo para isso. — Tirem-no daqui! — Ela gritou. Ele riu de forma mais pronunciada. Então, algo se afundou em meu corpo com um golpe direto, profundo e quente e um broto de dor estalou no meu coração. Gritei, com os dentes apertados com força. Minhas costas se arquearam, fechei os punhos e minhas pernas se retorceram pela dor aguda, intensa e abrasadora que me invadia por dentro. — Pare! — Ordenou outra voz. — A pele dela está queimando de frio. — Anunciou Lisange.
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— Vamos repetir, então. — Hernan sugeriu com voz jovial. — Isto pode ficar divertido. — Não! — Alguém interrompeu de um lugar mais afastado. — As veias dela já estão recuperando a cor. Hernan se afastou de mim e o escutei dar voltas pelo lugar. — Prepare um banho. — Lisange sussurrou para alguém. — Lena, pode me ouvir? — Estou com frio. — Balbuciei, sem abrir os olhos ainda. Minha boca estava pastosa e sentia um arrepio nos dentes. A dor continuava sem mitigar. — Devia matá-la de uma vez. — Cale-se! — Lisange gritou, completamente fora de si. — Leve-o daqui, nós vamos nos ocupar dela. — A voz soou gelada. Alguém tirou meus tênis, as meias três-quartos e a jaqueta. — O banho já está pronto. — Gareth informou. Ergueram-me de novo no ar e senti que me mudaram de local. Alguém fechou uma porta. Consegui entreabrir um pouco os olhos, o suficiente para perceber que estávamos sozinhas no banheiro, mas minhas pálpebras caíram quase que no mesmo instante. — Lisange... — Tentei dizer meio drogada. — Você vai ter que ajudá-los, tem que... — Não consegui terminar a frase. — Você não vai gostar disto, mas é necessário. — Passou um pouco de água pela minha testa e meu corpo se contraiu com força. — É para o seu bem. — Ela me disse. — Por favor... — Balbuciei. — Vá embora. — Lisange disse para alguém. Aferrei-me a ela com escassa força, tremendo de frio, como se ela fosse um salva-vidas. Em um segundo, a água escorreu pelo meu corpo. Comecei a me mexer, tentando sair dali, mas de
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repente, ela rodeou-me com os braços e me apertou contra o corpo, imobilizandome. De nada serviram meus intentos desesperados para escapar, pois a força dela era muito superior à minha naquele momento. — Shhh! — Sussurrou ao meu ouvido, segurando minha testa. — Respire, apenas respire… Você vai ficar bem. — Lisange. — Disse a voz. — Precisamos conversar. Horas mais tarde, abri os olhos. Estava sentindo muita dor. Sentia um tremendo cansaço. Demorei alguns minutos para fazer com que a neblina que os cobria se desvanecesse e que o quarto voltasse a aparecer diante de mim. Estava na cama, era de dia, e parecia que o sol iluminava com toda força. Tentei me mexer, mas meu corpo me parecia muito pesado e sem forças. Surpreendeu-me descobrir que alguém tinha me envolvido com uma grossa toalha púrpura. Debaixo dela, a roupa estava empapada. Então, senti duas coisas que me deixaram completamente alerta e que afastaram de repente toda letargia: a primeira, um cheiro, um cheiro incrível e embriagador que penetrava meus sentidos; e a segunda, a sensação de que estavam me observando. Devagar, consegui me virar, e ali, junto à porta, vi Lisange. Estava sentada contra esta, com os cotovelos apoiados nos joelhos e a cabeça inclinada para trás, com aspecto cansado. A luz que entrava pela janela a envolvia, como se fosse uma aparição, ou um sonho. Fiquei assim por alguns segundos, contemplando-a, confusa. — O que foi que você fez? — Perguntou com voz calma. Já não estava fraca, nem cansada, como estava pouco antes de começar aquela horrível noite. Agora parecia a de sempre. Como não recebeu resposta, baixou a olhar, ficou em pé e se aproximou de mim. De perto, o belo rosto sofria, marcado por uma mistura de preocupação, culpa e aborrecimento. — Foram os guardiões? Os grandes predadores?
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Pouco a pouco foram surgindo flashes em minha memória e comecei a me lembrar. — Não sei. — Menti. — Você sabe. Falou no sonho. Falou o nome de Christian, Adam, Helga, da Ordem de Alfeo... O que está acontecendo, Lena? — Lisange... — Não tem mais desculpa. Fracassei ao protegê-la. Agora devo remediar se não quiser que a próxima vez não esteja viva para contar. — Então me ajude. — Eu lhe disse. — Ensine-me a me defender. — Não posso fazer isso. — Eles estão presos em jaulas, Lisange. — Eu disse me incorporando na cama. Então, tudo o que tinha acontecido à noite se amontoou na minha garganta, ansioso para vir para fora. — Eles mantêm dezenas de humanos e de caçadores em jaulas. Usam-nos para se divertir-se. Eu vi, Lisange, eu vi. — Quem? Quem os mantém presos lá? — Os grandes predadores. — Soltei a grande velocidade. — Havia muitíssimos grandes predadores. Vi como torturaram Adam Lavisier... E como Valentine matou Helga. Arrancou-lhe o coração, arrancou-o... — A essa altura eu estava de joelhos sobre o colchão olhando Lisange, desesperada. — Liam... Liam pode estar lá também. — Liam não está lá. Tente se tranquilizar. — A mistura de emoções havia passado para se transformar em preocupação em estado puro. — Reconheceu algum grande predador? — Christian, Hernan, Elora... Todos estavam lá. — Ela me empurrou com cuidado pelos ombros para que eu me recostasse e se sentou ao meu lado. — Precisamos ajudá-los. Lisange, temos que fazer alguma coisa.
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— Lena. — Passou a mão pela testa. — Sinto muito, mas não há nada que possamos fazer por eles. — Devemos salvá-los! — Não me arriscaria a algo assim, e, além disso, seria inútil. Estão lá por vontade própria. Hernan propôs isso a todos nós na festa dos Lavisier. Embora tivéssemos tentado, eles não querem ser salvos. E os humanos estão mortos também. O que não consigo entender é o que aconteceu a Helga. Pensei que ela tinha morrido no incêndio. — Eles querem ser torturados? — Continuei matutando. — Os grandes predadores sabem muito bem como manipular a mente. Não se deve fazer acordos com eles. Eu sabia a que ela se referia. — Ensine-me a me defender. — Insisti. — Ajude-me, por favor! Minha expressão de desespero deve ter mexido com algo dentro dela, porque eu a senti vacilar. — Você não me contou tudo. — Alegou. — Não me lembro de mais nada. — Menti. Não sei por que, mas algo me impediu de delatar Jerome. Estava claro para mim que eu não queria voltar a vê-lo, entretanto, uma parte dentro de mim queria. Da mesma forma masoquista e irracional com a qual não havia sido capaz de contar aos De Cote meu trato suicida com Christian, tampouco podia entregar Jerome a quem tinha todas as cartas na manga para transformar-se em uma morte segura. Não o detestava tanto assim. Lisange olhou-me, tentando me analisar durante quase um eterno minuto. Parecia cansada, mais até que eu mesma.
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— De acordo. Vou tentar lhe ensinar algo. — Disse com a mão na testa, preocupada e confusa. — Vou falar com Gareth. Ele vai ter que tirar Valentine desta casa. Nessa noite, os caçadores que sofriam por prazer me torturaram em sonho. A imagem do rosto deles me perseguia, esfumaçada e misturada à de Hernan, que ria. Todos zombavam. De repente, Valentine dizia de longe “Quebrou” e lançava ao chão uma boneca de porcelana com meu rosto. Aproximei-me dela para recolhê-la, mas a boneca já não era eu, mas sim Helga, que subitamente abriu os enlouquecidos olhos e gritou “Ouça-me!” antes de tornar-se a rir de forma horripilante. A boneca desapareceu e tudo ficou escuro. Christian apareceu então, mascarado, rodeando-me com uma estranha dança enquanto me embrulhava com tecidos de cor vermelha, imobilizando-me. Quando os tecidos chegaram ao meu pescoço, ele sussurrou “Quer ouvir meu coração?” E, nesse momento, ergueu a mão, espremendo um lírio branco e perfeito no punho fechado. Quando o sangue vermelho da flor começou a descer pelo braço dele, gritei e voltei para o quarto. Gritos fizeram com que eu descesse depressa na manhã seguinte. Doíame o corpo inteiro, em especial o coração, mas me sentia com força suficiente para me arriscar a ir até o andar de baixo. Lisange estava ao pé da escada, apoiada contra a parede e olhando para o salão. Assim que me aproximei, pôs uma mão em meu braço, impedindo-me de passar. — Como você está? — Perguntou. — Bem, o que está acontecendo? — Quis saber. — Não se aproxime. — Sussurrou, mostrando a sala com a cabeça. Eu já sabia quem estava gritando, mas o que inicialmente eu não sabia era o motivo. Três grandes baús de madeira se amontoavam junto à entrada.
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Gareth entrava e saía da casa, levando-os para fora, e Gaelle tentava, sem êxito, tranquilizar Valentine. — Será apenas por uma temporada, meu bem. — Dizia. — Nós vamos ficar bem, eu juro. — POR QUE EU? — Valentine gritava. — TIREM A ELA! — Iremos para um lugar mais bonito, e você terá tudo o que quiser. — Prometeu. — NÃO! NÃO QUERO IR! ESTA É A MINHA CASA! MINHA CASA! — Já está tudo preparado. — Gareth anunciou entrando de novo. — Está na hora. Gaelle assentiu, pendurou a bolsa e pegou Valentine nos braços. Mas, antes de partir dirigiu a Lisange e a mim um olhar severo, tanto que senti que ambas retrocedíamos um pouco. — É apenas uma menina. — Disse com voz firme. — Vocês deviam ter vergonha. Ato contínuo desapareceu pela porta que Gareth mantinha aberta. Ele suspirou e me disse: — Prepare-se. Vai chegar tarde à aula. — A voz foi amável, compreensiva até, como se tentasse fazer com que assim soasse melhor para mim. Mas, minha expressão de surpresa e terror deixou claro que ele não tinha conseguido. — Que sorte! — Lisange comentou ao meu lado, contente de repente. — Seu dia hoje será alegre! Estava claro que não era assim. Não tinha contado com o fato de ter que retornar ao instituto. Pelo visto, o que tinha acontecido comigo tinha sido suficiente para que a polícia deixasse de suspeitar de nós. Era isso, ou uma forma de justificar que tivesse acontecido algo assim diante deles sem que fizessem nada para evitar. Tinha sido uma sorte que eles não vissem nada, e a verdade é
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que fiquei alegre que, por fim, limpassem as ruas. Com relação a Jerome… Eu o amava, ou, pelo menos, tinha amado. Agora não tinha nem ideia do que sentia por ele. Só havia o aborrecimento e a horrível sensação de que ele tinha me traído, além do repentino medo acrescentado. Isso e o vazio de ter perdido um grande amigo. Não queria contar nada porque Lisange me tiraria daquele povoado antes que eu pudesse sequer piscar, e não estava preparada para deixar de ver Christian. Além disso, devia reconhecer que nada garantia que Jerome não acabasse com todos nós se eu me atrevesse a abrir a boca e revelar o que sabia. Finalmente, fui para a aula. O dia foi tão obtuso quanto tinha podido imaginar. Tinha passado todo o tempo fugindo de todo o mundo. Jerome havia tido a pouca delicadeza de aparecer. Imaginava que ninguém o obrigava a frequentar as aulas, então eu sabia que ele tinha ido me procurar. Quando não estava na sala de aula eu corria para me esconder no banheiro. Até que chegou o último período. Assim que terminou, peguei minhas coisas e me levantei rapidamente da mesa, disposta a partir dali, mas ele foi mais rápido e me deteve por um braço. — Lena, precisamos conversar. — Afaste-se de mim. — Sussurrei entredentes, sem conseguir esconder um ligeiro tremor na voz. Soltei-me e me afastei dele, esquivando-me das pessoas que alvoroçavam o corredor. — Lena! Corri para me afastar. Saí do edifício. O dia estava tão ruim que quase não tinha gente ali. Apenas duas pessoas ao longe, estacionando o carro. Pendurei e acomodei bem a mochila no ombro e fui para a saída, mas então, uma mão me agarrou com força e me virei, alarmada. Era ele.
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— Não! — Gritei, e me desfiz dele enquanto minha mochila caía no chão. Jerome fez menção de voltar a falar, mas eu o interrompi. — O que você fez comigo? O que pensa que está fazendo? — Do que está falando? — Perguntou. — Você sabe. Não me lembro de nada do que aconteceu ontem à noite, além desta odiosa dor no coração — Soltei. — O que foi que vocês fizeram comigo? — Não devia culpar a nós pelos jogos que faz com os grandes predadores. — Ele disse cruzando os braços. — Pelo menos você reconhece. — Reconhecer o que, Lena? Jamais lhe faria mal. Sou um guardião, mas isso não tem por que mudar as coisas. — Como não? Os seus acabam com os meus, então acredito que isso, sim, muda tudo! — E os grandes predadores também acabam com vocês e os torturam. Qual é a diferença? — Eu não os defendo. — Mas suspira por um deles. — Não é a mesma coisa. — Por quê? — Porque não é. —Diga-me por quê! — Não sei! — Exclamei, levando as mãos à cabeça, exasperada. Houve um prolongado silêncio. — Eu não quero lhe machucar, Lena. — Confiei em você. — Mas nada mudou.
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— É claro que sim. —Deixe-me protegê-la. — Avançou um passo para mim. — Já tem muita gente que apenas quer me proteger, Jerome. Não preciso de mais ninguém que me veja como o elemento fraco, preciso de alguém que me veja como uma pessoa normal. Apenas como alguém normal. — Mas… Você não é. — Eu já sei disso! — Soltei o ar. — Todo mundo se empenha em me lembrar disso. — Eu me virei e fui para a porta. — Cuide-se. Ele não disse nada. Abri a porta e saí. Devia ter ido direto para o meu quarto, essa era minha forma habitual de agir, mas não fui. Creio que algo estava mudando dentro de mim. Talvez porque já estava cansada de tudo aquilo, de que nada pudesse terminar bem. Então me limitei a andar, arrastando os pés pela calçada, sem pressa nenhuma, até me esconder no frondoso bosque, com os olhos ardendo e um grande nó na garganta, mas sobre tudo, com um grande vazio dentro de mim. Nesse instante, senti que um carro parava na estrada a poucos metros do lugar onde eu estava escondida. Assomei a cabeça para olhar justamente quando o condutor saía do carro. — Merda! — Murmurei para a escuridão, assim que ele passou diante dos faróis acesos. Afastei o olhar e me escondi depois da árvore na qual estava apoiada. Parei de respirar e fiquei quieta, com o pânico palpitando sob minha pele e invadindo meu corpo a passos largos. — Sei que está aqui. — Anunciou de repente uma voz, rompendo o silêncio da tarde. Até a brisa suave pareceu deter-se naquele instante. — Saia, precisamos conversar. — Conversar não era o melhor plano que me ocorria.
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Como tinha me encontrado? — Os jogos me aborrecem, Lena, não me obrigue a ir buscá-la. O silêncio foi minha única resposta. Um segundo mais tarde, ouvi os gravetos do chão rangerem sob seus passos. Estava perto, muito perto. Procurei em volta e calculei a distância que podia ter até as árvores mais próximas. Pusme de pé com cuidado, tentando não fazer nenhum barulho e saí do meu esconderijo. Não conseguia vê-lo, apenas ouvi-lo. Ele não tinha cuidado algum para não fazer barulho. Eu, pelo contrário, caminhei na ponta dos pés, carregando o peso nos joelhos para passar despercebida. Aguardei ali, escondida, até que senti que ele se afastava. Esse era o momento adequado para sair correndo. E foi o que fiz. Corri, controlando o som dos passos, olhando para trás o tempo todo, pendente dele, até que, de repente, choquei-me contra algo e caí no chão. Quando ergui os olhos, dei de cara com os olhos dele. — Venha comigo. — Foi a única coisa que ele disse. Virou-se e começou a andar entre o negrume. Pisquei algumas vezes e tentei respirar fundo. Pus-me de pé e o olhei. Entrar em um bosque escuro com alguém que assegurou me matar, não era uma das minhas prioridades. — Não. — Respondi. Ele parou em seco e se virou para mim. — Não é um bom momento para escolher ser prudente. — Não havia zombaria na voz dele. — Eu devia? — Balbuciei. — Depende de você e do seu instinto de sobrevivência. — Observou-me por um segundo e acrescentou: — Mas você já demonstrou, em outras ocasiões, que carece dele por completo. — Olhei-o sem dizer nada. Ele inspirou
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pacientemente. — Não vou matá-la esta noite, Lena, mas agradeceria que tivesse a bondade de me acompanhar. — Mate-me logo. — Encarei-o diretamente nos olhos. — Estou tão cansada de tudo isso… Você me faria um favor. — Essa não é a atitude que procuro. — Não vou gritar, se é isso que espera. Mate-me, se isso o faz feliz, mas apresse-se para fazê-lo, ou alguém vai passar a sua frente. — Venha comigo. — Repetiu. — Não vou a lugar nenhum com você, Christian. — Ele ficou em silêncio por um instante e se aproximou de mim, observando-me como nunca havia feito antes. Recuei, assustada, só queria me afastar dali o quanto antes. — O que você quer? — Murmurei. — Como queira. Tire a camiseta. — Disse devagar. Aquilo me chocou tanto que comecei a sentir o medo formigando de novo pelo corpo. — Creio que você está ficando mais louco do que eu. — Tenho certeza que prefere que eu não faça. — Cruzou de braços. Contemplei-o confusa e neguei com a cabeça para mim mesma. — Afaste-se de mim! — Eu lhe disse, virando-me em direção a casa com passo acelerado, mas ele me seguiu. — Afaste-se! — Repeti nervosa. Eu não o reconhecia e ignorava do que poderia ser capaz esse novo Christian. — Pode-se saber por que sempre insiste em correr? — Inquiriu, encurtando a distância perigosamente. — Desapareça da minha vida de uma vez! Não quero voltar a vê-lo! — Ainda não. — Já não me prejudicou o bastante? O que mais quer? — De um salto, conseguiu me apanhar e me imobilizar. — Solte-me!
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— Pensa que consigo esquecer o som da sua voz? Ou que seus olhos não estão cravados no meu coração como uma estaca? Já cheirei antes sua pele com cheiro de lírio, Lena, esqueceu-se disso, por acaso? Que tipo de néscio pensa que sou? Pensou de verdade que conseguiria me enganar? Meus olhos se abriram de par em par. — Deixe-me ir. — Supliquei. — Ainda não. Com um movimento brusco consegui me soltar, mas quis a má sorte que Christian me pegasse por trás, que perdêssemos o equilíbrio e caíssemos rolando costa abaixo. Por sorte eu aterrissei sobre ele, de modo que consegui me reincorporar e tentar sair correndo de novo, mas assim que consegui ficar em pé, as mãos dele aferraram minha cintura e voltei a cair no chão. — Solte-me! — Fique quieta! — NÃO! Comecei a soltar arranhões em todas as direções. Em um deles, escutei com total clareza rasgar o tecido da camisa dele. Então, ele conseguiu agarrar meus punhos e os sujeitou com força contra o chão, um de cada lado da minha cabeça. — Não torne isto mais difícil. — Não me machuque! Ele se manteve assim, em cima de mim, sujeitando minhas mãos, até que minha respiração voltou virtualmente ao normal. — Já é muito tarde para pedir isso — Advertiu. Com cautela, afrouxou a pressão que exercia com as mãos e foi afastandoas das minhas. Dirigiu-as para minha blusa e começou a desabotoar os botões,
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deixando minha pele descoberta. Senti algo parecido a um calafrio e minha respiração voltou a se agitar cada vez mais. — Não! — Gritei. Com um movimento, tentei empurrá-lo para afastá-lo de mim. Sem me dar conta, minhas mãos se colocaram entre o tecido da camisa dele e tocaram-lhe o peito nu. Pude sentir como a pele e os músculos dele se retorciam com o meu contato. O peito dele começou a inchar e desinchar cada vez mais rápido, até que, de repente, juntou meus pulsos e agarrou-os com uma só mão, colocando-os acima da minha cabeça. — O que vai fazer? — Perguntei aterrorizada. Ele não respondeu. Com um movimento, virou-me e me colocou de bruços. Então, voltou a agarrar meus pulsos e juntou-os às minhas costas. — Isso que está sentindo agora, é o que sempre deve sentir por mim. O que tem na cabeça, o que pensa, é exatamente o tipo de animal que sou. — Depois, agarrou a gola da minha blusa e a rasgou sem nenhuma delicadeza. Um instante depois, minha pele ficou exposta. Lutei de novo, tentando me soltar. Ele apoiou a mão na minha cabeça, imobilizando-a, e afastou meu cabelo para um lado, deixando descoberta a pele das minhas costas. Com um dedo, riscou uma linha à altura da omoplata. — Como você entrou lá? — Virou-me, segurando minhas mãos sob meu próprio corpo. — Não é da sua conta! — Respondi. Ele se inclinou para trás e tirou uma adaga de baixo da calça. Eu me remexi, assustada. — Não se mexa. Com determinação, baixou o colarinho da minha destroçada blusa, aproximou o frio metal do meu peito e, sem que eu pudesse fazer nada a respeito, afundou-o na minha pele. Apertei os dentes e tentei reprimir o grito de dor que
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teria deixado sair se não estivesse me sentindo tão humilhada. Olhei-o, desafiante, perguntando-me o que ele faria a seguir. Ele deixou a adaga a um lado e se incorporou um pouco, parecia mais relaxado, embora confuso. — Você é um monstro! — Gritei-lhe. — Obrigado pela informação. — Soltou com voz gelada. — Você mentiu para mim! — Gritei. — Disse que Helga tinha morrido! — Eu disse que ela estava morta. Ela já tinha assinado a própria sentença. — Vocês estão torturando-os! — E o mundo inteiro sabe, por acaso pensa que eu estava brincando? Isto é o mundo real, Lena, esqueça-se de qualquer fantasia. A vida e a morte são cruéis, acostume-se! — Voltou o olhar para o meu corpo. O corte que ele fizera em mim já tinha desaparecido. — Alguém andou se divertindo com seu coração, não é? — Comentou de repente, pensativo. — Sim, você. Ele se inclinou para trás e me deixou livre. Com uma mão me ajudou a ficar de pé, apesar dos meus esforços para impedi-lo. — Isto não era para ser assim, — Disse. — Mas você não me deixou outra opção. — Eu não queria pegar nada dele, já estava bastante envergonhada por continuar ali, só com a roupa de baixo, diante dele. Virei-me e peguei o pulôver que ele me oferecia. Assim que o passei pela cabeça, uma onda do cheiro dele invadiu meu corpo. — Vou levá-la de volta para casa.
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Transtorno de personalidade
— Entre no carro! — Pediu-me ele pela enésima vez. — Não vou entrar aí com você! — Eu disse, andando através do bosque. Ele me seguiu. A tensão poderia ter se quebrado em pedacinhos, se fosse possível. Não sabia o que fazer, estava me sentindo tão incômoda que nem sequer me atrevia a olhá-lo, e certamente ele tampouco se incomodou em virar-se para mim. Ficava em pânico com a simples ideia de que nossos olhos se cruzassem. Observei a paisagem, tentei concentrar a atenção nos sons que nos rodeavam, mas era impossível. Estar ali, sentindo a presença dele, impedia-me de me concentrar em outra coisa que não fosse ele. Sentia medo, sim, mas estava misturado à dor e à nostalgia. Havia algo que me empurrava para me aproximar dele, para tocá-lo, para senti-lo de novo... Queria desesperadamente me refugiar entre seus braços tal e qual fazia antes, mas estava assustada demais para me permitir sequer pensar naquilo. — No passado mantínhamos conversas interessantes. — Conversar? — Perguntei me virando para ele. — Você quer conversar? Se o silêncio de antes foi incômodo, não havia nem comparação com este. Ele se limitou a voltar a olhar à frente. — Você tem que me esquecer. — Não tenho essa facilidade.
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— Pois adquira-a. — Ensine-me a esquecê-lo. — O que se passa com você? O que não funciona bem com você? Eu lhe prometi a morte, Lena, entreguei-a à minha família, tentei lhe mostrar o que sou, do que mais você precisa? — Se quer me matar... — Disse ainda assustada — Por que já não o fez? — Pretende dizer-me como tenho que fazê-lo? — Seu tom foi gélido. — Não. — Bem, porque podemos voltar, se quiser. Tenho a noite toda pela frente. — Ameaçou. Parecia de mal humor. — Não entendo esse afã descontrolado que tem para que alguém acabe com você. Fiquei calada durante alguns segundos. — Eu não quero que ninguém acabe comigo, Christian. Não quero morrer de novo. Ele inclinou a cabeça para mim e ergueu a comissura esquerda da boca. — Isso sim que é uma surpresa. — O sorriso se tornou ameaçador. — Significa que está começando a sentir apreço por esta vida? — Pode acreditar no que quiser. — Sabia por que dizia aquilo. Ele estava esperando aquele momento. Franziu o cenho e voltou a concentrar-se na estrada. — Quando começou a ter medo de mim? — A voz dele deixou aquele tom gelado e se transformou em outro, profundo, mas sincero. “Essa era a outra condição”, chiou uma vozinha dentro de mim. — Eu realmente não preciso que adore essa vida para fazê-lo, Lena, basta-me o seu medo. Pensou mesmo que eu não me daria conta? — Se está se referindo ao que acabou de acontecer…
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— Não me refiro a isso. — Interrompeu. — Anormal teria sido que não sentisse pânico. Falo do seu dia a dia. — Eu quis dizer algo, mas não consegui. — Teria preferido mil vezes o seu ódio. — Comentou para ele mesmo. — Não consigo odiar você, Christian. Eu já tentei. Acreditei que o odiava depois de ver Helga, mas não posso sentir duas coisas tão grandes ao mesmo tempo. — Deveria desterrar o resto. Não há nada digno de ser amado em mim. — Tem sim... — Aleguei de forma automática. — Ou pelo menos, tinha… Ele baixou o olhar. — Eu sempre fui assim, Lena, mas você nunca quis me ver como sou na realidade. Por isso está com medo agora, porque começou a se dar conta. — Não acredito em você. — Eu disse. — Você não quer me matar. — Reconheci. — Então, por que tem medo de mim? — Porque é esta a forma que você escolheu para tentar acabar comigo. Receio que você não vai mudar de opinião, que continua empenhado em me destruir, dia após dia, lentamente, como se fosse você que me odiasse, na verdade. — Fiquei em silêncio por um instante. — Tinha razão ao dizer que é cruel, teria preferido algo mais rápido. Se ainda não pedi para outro grande predador que o faça por você é porque sinto mais pânico ainda por não voltar a vê-lo... E isso é racional por acaso? Sinto-me estúpida por pensar assim, por não fazer nada a respeito. — Pensa mesmo que tem algo que possa fazer? — E tem? — Não. Nem você nem eu controlamos mais esta situação. — O que sente por mim?
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— Nada que valha a pena. — Apertei os lábios com força, magoada. — Se você não tivesse renunciado a todo senso comum, também se daria conta. Olhei-o fixamente, como há tempos não o fazia. Senti a respiração agitada e algo pesado no estômago, pressionando-me. — Não consigo parar de amar você. — Murmurei. — Não sei como fazer isso. Ergui a mão para ele e rocei-lhe a bochecha com os dedos. Ele cruzou os olhos com os meus e notei como seu coração batia com mais força contra o peito. — O que é que está fazendo? — Perguntou, mas não havia ameaça na voz. — Estou tentando fazer você se lembrar. Se é que alguma vez me amou. — Você tem que parar de me amar, Lena. — Ele pegou minha mão e a afastou dele, mas não a soltou. — Por que as coisas não podem voltar a ser como antes? — Murmurei, olhando-o fixamente. — Chegou a sentir de verdade algo por mim? — A única coisa que sei é que você e eu nunca chegamos a nos amar. — Afastou-se de forma brusca. — Portanto, não tente lutar. — O último elo que ficara no meu coração terminou de quebrar naquele momento. — Boa noite, Lena! — Você pode ter muito claro o que sentia, mas não fale por mim! — Não corra o risco de me subestimar, Lena. Não é prudente. — Você não me conhece pela minha prudência. — Não tenho nada a alegar quanto a isso. Inspirei e baixei a cabeça. — Não me siga. — Pedi. Dei a volta e comecei a andar de novo. Ele não disse nada. Ficou quieto enquanto eu me afastava. Pisquei com força e voltei correndo para casa.
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Cheguei ao meu quarto e fechei as cortinas com má vontade. Estava esgotada, física e emocionalmente. Nem sequer conseguia recriar a necessidade de querer chorar. Como as coisas podiam ter mudado tanto? O que o fazia mudar? Era possível que tivesse mesmo se esquecido do que sentia por mim da noite para o dia? Tinha chegado a sentir alguma vez? Como pude não me ter me dado conta da crueldade dele? Estremeci ante a possibilidade de que estivesse me enganando todo o tempo, mas desprezei essa ideia imediatamente. Nem ele podia mentir tão bem assim. Talvez tenha se confundido, talvez acabasse por se dar conta de que, na realidade, nunca tinha sentido porque não tinha a capacidade de sentir. Nunca tinha me amado. As palavras que tinha temido durante tanto tempo se cravaram em mim como adagas. Não encontrava explicação para nada, nem do meu passado com ele nem deste estranho presente, mas eu sabia que muito o amara e continuava amando. Soltei minhas coisas sobre a cadeira junto à porta e me meti no banheiro. Empapei o rosto e a nuca com água fria, tentando relaxar ou me fazer sentir melhor, mas não adiantou nada. Saí para procurar um pijama, mas ao entrar no quarto, fiquei gelada: ali, em meio à escuridão, estava ele. — Não diga nada. — Sussurrou com voz rouca. Um segundo depois, avançou para mim com passo decidido, pegou meu rosto entre as mãos e sem pensar duas vezes, apertou com força os lábios contra os meus. A roupa que eu tinha na mão caiu no chão. — Chri… — Tentei dizer. — Não diga nada. — Sussurrou de novo com urgência, afastando-se de mim. Soltou meu rosto e me empurrou contra a parede. Pegou minha cintura entre as mãos, ergueu-me do chão, rodeou o próprio corpo com minhas pernas e me olhou nos olhos. Por alguns segundos o mundo parou, e nenhum dos dois fez
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nem disse nada. Eu apenas podia observá-lo, tentando me convencer que ele estava ali, que não era um sonho ou uma alucinação. Não sabia se devia ficar com medo ou me alegrar, mas estava muito confusa para pensar. Minha respiração agitada se chocava contra o rosto dele. Ele estava com o cabelo revolto, os lábios entreabertos e acesos e me olhava com uma expressão estranha. Ele me percorreu com os olhos, com as gemas dos dedos acariciou meu pescoço e foi descendo para roçar meu corpo com cuidado. Eu estava a ponto de desmaiar. Tocava-me como se tentasse averiguar se eu era real, como se eu fosse frágil. Aquele pequeno gesto me desconcertou. — Você está tremendo. — Sussurrou grudado em mim. — Eu sei. — Balbuciei, embora não tivesse certeza de ter chegado a pronunciar as palavras. Ele respirou junto ao meu ouvido e, com a testa apoiada contra a minha, continuou o percurso com as mãos, acariciando minhas pernas, minha cintura. Fechei os olhos com força e apertei os lábios para não deixar escapar um gemido de dor provocado por aquele toque. Por alguma razão, estava incapaz de me mexer, de reagir. Nem sequer sabia o que estava acontecendo até que me vi debaixo dele na cama, enquanto beijava com ferocidade todo o meu corpo, mas não pude fazer outra coisa senão observá-lo atônita, aterrada e emocionada. Pegou minhas mãos e as colocou sobre o peito nu. Nesse instante me dei conta de que em momento algum, no transcurso da sua aparição, ele tinha aberto a camisa. — Toque minha pele. — Murmurou com voz sufocada e suplicante. — Toque-me ou faça com que eu pare. Vi o desespero nos olhos dele, misturado ao ódio, à dor. Passei os dedos pelo rosto dele. Ele beijou minha mão e enterrou o rosto nela, inalando meu cheiro e apertando os olhos com força. Então, dei-me conta do que ele procurava;
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queria que eu lhe fizesse mal. Ele não desejava meu carinho, a não ser a dor que lhe produzia meu toque. — Christian… — Tentei afastá-lo, mas ele não se moveu nem um centímetro. — Faça com que arda! — Continuou desabotoando a camisa por completo e apertando mais o corpo contra o meu. — Pare, não diga isso! — Preciso disso, Lena. Não aguento mais! — O que? Do que é que você precisa? — Agora ele beijava minhas pernas, roçando as faces e a testa contra minha pele. — Por favor, pare! — Pedi, afastando-o de mim, mas ele não permitiu que eu me mexesse. — Preciso perder o controle. Nem sequer consigo odiar você. — Sussurrou com voz sombria, com as mãos apoiadas no colchão e os olhos cravados no lugar onde um segundo antes percorria minha pele. — Que tipo de grande predador sou eu? No que você me transformou? — Você... Você está bem? — Murmurei. Deixando de lado o fato de que estava, de certa forma, assustada, não conseguia reconhecê-lo. Jamais o vira tão perdido, doído e desesperado. Isso não se parecia em nada à concepção e imagem que eu tinha de Christian Dubois, essa atitude desesperada não combinava com ele e por um instante, notei que o medo começava a percorrer meu corpo de forma ainda mais latente que o toque da pele dele. — Christian? — Repeti com cautela, quando não recebi resposta. — É obvio que não! — Reconheceu, zangado de repente e apertando com renovada força os punhos contra o colchão. — O que esperava? — Christian… — A única coisa que preciso é que me faça sofrer. É tão difícil assim? — Não quero que sofra! — Gaguejei.
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Ergueu a cabeça e me cravou os olhos. Então, engatinhou sobre a cama até ficar bem em cima do meu corpo. Apoiou a testa contra meu peito, com os olhos fechados com força. O hálito dele sobre minha pele provocou um estremecimento no meu corpo inteiro. Seu coração pulsava desenfreado. Eu sabia o que doía nele. Movida por um impulso, esqueci-me de tudo o que tinha acontecido e o abracei. Ele afundou o rosto no meu pescoço, tentando serenar. Ficamos assim, sem fazer nada mais, até que o coração dele pulsou um pouco mais devagar. — Se eu pudesse, ia beijá-la neste mesmo instante até ficar sem fôlego. — Sussurrou contra minha pele, fazendo todo meu corpo estremecer. Puxou-me pela cintura e me colocou de forma firme, mas suave para baixo, recolocando-me sob seu corpo. Minha mente fervilhava com pensamentos e sensações. Tudo se misturava de forma incompreensível. As reações do meu corpo e as sensações que Christian provocava em mim, unidas à necessidade que sentia de voltar a tê-lo tão perto, ocultavam minha parte racional, impedindo-me de pensar com clareza. Sabia que isso era ruim, mas o único pensamento que ocupava meu ser era a certeza de que preferia ter isso a absolutamente nada. Odiei-me por pensar assim, por me conformar, por parecer desesperada e me fazer valer tão pouco. Esqueci o quanto tinham sido terríveis aquelas últimas semanas, o fato de que ele tinha tentado me matar, que tinha me entregado ao clã dele sem um ápice de piedade, o pânico que tinha despertado em mim na noite daquela horrível festa. Traí a mim mesma só pelas mãos e a suavidade dos lábios dele, pelo calor, pela firmeza do corpo e a beleza torturada do rosto dele. Deixei de me fazer valer pelo desejo de voltar a sentir tudo o que havia sentido antes com ele, na esperança de que tudo voltasse a ser como antes. Pode ser que se devesse ao fato de que, por fim, estava pensando no assunto ou que aquele último pensamento tinha conseguido me aterrorizar, mas
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naquele momento, meu corpo reagiu de forma violenta. Afastei-me de Christian com um só movimento e saí da cama, abandonando-me contra a parede. Eu o olhei, preocupada com a reação dele. Ele estava totalmente aceso, por assim dizer. O corpo, os lábios inchados, os olhos febris. — Creio que é melhor você ir embora. — Balbuciei. — É essa a sua decisão? — Levantou-se devagar e me olhou, endireitando as costas. — Não sei quem você é. — Sou um grande predador, aquele que tentou matar você. O grande predador que jurou você de morte. — Aproximou-se de mim. — O mesmo que vai cumprir a promessa. — Livrei você dessa carga faz tempo. — Murmurei. — Não é privilégio seu fazê-lo. — Estendeu a mão para mim e acariciou minha bochecha. — Eu vou acabar com você, Lena, prometo que vou! — Depositou com cuidado um beijo na comissura dos meus lábios e acrescentou: — Eu juro que vou matar você! Um segundo depois, desapareceu do quarto.
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Sequela de meu histórico de tratos suicidas Os dias se fizeram eternos, cada um que passava era mais e mais longo que o anterior. Não dormia, nem sequer saía para me alimentar. Minha “vida” tinha se transformado em um único dia interminável, no qual, de vez em quando, o sol decidia se esconder. As já conhecidas manchas cinzentas tornaram a tingir minha pele pouco a pouco. Tinha visto Christian em algumas ocasiões, espreitando algum humano em companhia de Elora. Destroçava-me, afundava-me, superava-me ver como o tocava, como brincava com suas mechas negras, a forma como se agarrava a ele quando passeavam de moto, as coisas que sussurrava-lhe ao ouvido ou, pior, como ele a tocava, a proximidade que sempre havia entre os corpos deles... Eu o vira torcer aquele incrível sorriso só para ela em várias ocasiões, embora ele tentasse esconder o fato cada vez que percebia que eu os olhava. A dor era tão forte que tinha eclipsado por completo a lembrança dos meus sentimentos por ele, embora meu corpo continuasse sentindo aquela demolidora necessidade de tê-lo, de senti-lo perto de mim. Meu único consolo, por estranho que pareça, é que, pelo menos, sentia certa paz comigo mesma: culparme por estar com ele, sabendo do dano que fazia aos humanos e para outros caçadores sempre tinha sido uma constante em minha mente, mas agora podia culpá-lo e embora soasse egoísta, fazia com que eu “vivesse” mais tranquila comigo mesma. Tudo o que eu tinha sentido tinha se transformado em
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aborrecimento e vergonha. Sentia-me estúpida por ter me deixado humilhar ao me expor tanto. Duvidava inclusive que tudo não tivesse passado de uma nova forma de diversão para ele. Entretanto, continuava torturando a mim mesma sem poder fazer nada para evitar aquilo, revivendo de forma muito explícita aquela última noite que tinha passado com ele. Pode ser que Hernan não estivesse mentindo ao dizer que existiam razões poderosas para ele querer acabar comigo. Ou talvez eu mesma estivesse certa ao pensar que, na realidade, ele não queria me fazer mal, mas tampouco podia me arriscar a acreditar em nada daquilo. Aquilo era um pouco complicado, porque eu não sabia o que era pior: a ideia de que tivesse jogado comigo, que sentisse algo e de repente mudasse de opinião ou que, na realidade, continuasse sentindo e tudo aquilo não fora mais que uma forma de me afastar dele. Não, não podia me dar ao luxo de criar falsas esperanças. Continuar com as aulas não foi nada fácil. Ninguém entendia por que razão, de repente, eu não queria me aproximar de Jerome, ou isso era o que havia escutado pelos cantos. Eu sentia falta dele, tinha saudades do meu amigo muito mais do que esperava, muito mais do que podia ter consciência, até. Não foi senão quando, até aquele momento, que tinha me dado conta de até que ponto tinha conseguido penetrar no meu coração e o quanto me doía não poder fazer com que tudo fosse como antes, nem sequer com ele. Seria capaz de perdoá-lo? De acreditar nele? Ele tinha mentido para mim, igual Christian. Ele não era humano, certo, nunca mais teria que esconder meu segredo diante dele, mas já tinha me fiado antes da espécie errada, e não estava disposta a voltar a me enganar. Era mais fácil e menos doloroso deixar do jeito que estava. Voltar à escola trouxe uma novidade que certamente não esperava; Lisange. Seu reavivado afã protetor a levara a se esquecer da universidade e voltar
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ao último curso do instituto. Sua chegada havia suposto toda uma revolução entre alunos e professores. Foi divertido me lembrar do efeito que a beleza dela provocava entre as pessoas normais e inclusive, ela pareceu voltar a ser a mesma de antes. Ir à escola já não era uma tortura, e tinha certeza de que Jerome jamais se aproximaria de mim com ela ao meu lado. Ela continuava cuidando de Reidar, então desaparecia por algumas horas à tarde, enquanto eu a esperava na biblioteca, fingindo que fazia algo útil. Soava terrivelmente aborrecido, mas só ali eu encontrava certa estabilidade. Embora não houvesse muito pó ao redor, os livros continuavam desprendendo aquele cheiro especial que me lembrava a biblioteca de La Ciudad, e isso tinha um efeito balsâmico em mim. Fechava os olhos e me obrigava a pensar que tudo ia bem, ou no quanto tudo podia ficar bem ali. Inclusive podia sentir o inconfundível cheiro de Lisange perto de mim, devorando livros sem cessar. O cheiro desse dia era muito forte para ficar apenas na minha lembrança. Abri um pouco os olhos e a vi diante de mim. Estava sentada, tinha uma pilha imensa de livros ao lado, mas não estava lendo, apenas me olhava com as mãos entrelaçadas sobre a mesa e a expressão preocupada. Mordi o lábio, pensativa. — O que você fez quando descobriu que Reidar era um guardião? — Se havia alguém que pudesse me entender, era ela. Entrecerrou as pálpebras e pensou um pouco antes de responder. — Faz três séculos que aconteceu todo aquilo, Lena. — Mas o que ele fez? Como conseguiu perdoá-lo? — Os seres humanos são fracos. Ao longo de todo esse tempo pude chegar a entender por que razão preferiu a estabilidade e a comodidade que podia lhe oferecer a outra garota. — Mas deixou-a morrer. — Recordei. — Não bastava parar de vê-la? Ela fez uma careta estranha.
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— Agora procuro não pensar mais nisso. Embora, para ser sincera, o fato de ele ter se transformado no que é agora foi a maior prova de que poderia ter me oferecido arrependimento. Sei que me fez mal, que sofri durante três intermináveis séculos, mas agora ele está aqui e tudo está como deveria ter sido. Temos uma eternidade inteira pela frente. — Mas ele é um guardião, da Ordem de Alfeo. — Sublinhei. — Como pode confiar nele? — É muito irônico que logo você me faça essa pergunta. Christian não deixa de ser um monstro, alguém que nunca devia ter se transformado no que é, mas apesar de tudo, você o ama. Não é capaz de pensar em todo o dano que lhe pode causar ou o que faz aos outros. — De repente ela me olhou diferente, como se tivesse acabado de cair a ficha. — É de Christian que estamos falando? — Não. — Inspirei — Não é nada em particular. — Fechei o livro de repente. — Só me surpreendeu que você... Bom, que o tivesse perdoado, sem mais nem menos. — Tem certeza de que não estamos falando dele? — Observou-me de forma suspicaz. — Você está preocupada com alguma coisa? — Não. — Menti. — Mas não consigo tirá-lo da cabeça. Penso nele o tempo todo. Devia encher meus pensamentos com outras coisas, suponho. — Quer saber? — Esboçou um enorme sorriso, tão resplandecente que várias pessoas se viraram para olhá-la. — Eu tenho a solução para isso. Tratando-se de Lisange, imaginava que sugeriria algo relacionado a compras ou roupas, mas pelo contrário, levou-me a um lugar afastado da escola. Eu a segui, perguntando-me o que ela pretendia. — Para enfrentar a Ordem de Alfeo... — Começou a dizer, deixando as coisas no chão com cuidado. — Você precisa ter várias coisas em mente. A primeira é que eles perderam o juízo. Não se importam de morrer pela causa,
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nem tampouco de eliminar todo aquele que se interpuser no caminho. Caçam com descontrole, não se preocupam com a lua, nem com o perigo que representa para eles que haja grandes predadores rondando por perto. — Fez uma pausa e continuou. — As habilidades deles são muito mais desenvolvidas do que as de um guardião normal, e quando digo “habilidades” me refiro também a instintos. Se acabar na rede de algum deles, acredite, vão garantir para eles mesmos um grande deleite com sua morte. A Ordem de Alfeo, em termos de crueldade, está mais próxima dos grandes predadores que a dos guardiões habituais. — Como os elimino? — Perguntei motivada. — A força deles é imensa... — Continuou, ignorando meu comentário. — Da mesma forma que a velocidade de movimentos. Alguns dizem que voam. Não se “tele transportam” nem nada semelhante, simplesmente correm a uma velocidade superior à que pode captar nossa visão; por isso criam essa sensação de “piscada” quando se movem durante a luta, e podem mover-se entre as pessoas sem que ninguém os veja. De modo que podem percorrer essa distância em menos de um décimo de segundo. Imagine o quanto eles demorariam para passar ao seu lado e cravar uma adaga no seu coração. — Como posso estar prevenida? — Atrevi-me a perguntar. — Para captar os movimentos deles e evitá-los, tem que levar em conta dois aspectos: o primeiro, evidentemente, são os reflexos e o instinto, combinados à experiência, que lhe serão de autêntica utilidade. O segundo é o ouvido. Ninguém pode atravessar o ar sem deixar um rastro de som à sua passagem, mas você precisa se adiantar. Você deve ser duplamente veloz na hora de combinar tudo isso e de interpretar a trajetória antes do tempo, tendo em conta que em uma situação normal, haverá muitos, muitíssimos mais sons misturados a esse, então deve aprender a isolar.
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— E o que mais? — Estava emocionada por aprender por fim um pouco de coisas úteis. — Mais nada. — Ela disse. Pegou as coisas dela e se virou. — Vamos. — Nada... Mais nada? — Perguntei confusa. — Lisange... — Com isso você já tem o suficiente. — Mas... mas... — Tentei dizer, confusa. Era tudo? Só aquilo? Segui Lisange tentando entender algo. Chegamos a um local concorrido. Ali, cruzamos com Jerome. Tive que me virar para não dar de cara com ele; simplesmente não conseguiria. Não lhe passou despercebido o meu gesto, nem tampouco a ela. Algo na expressão de Lisange me fez pensar que ela tinha notado algo nele, como se, com alguns segundos mais, pudesse descobrir o que ele era. Ambos cruzaram o olhar quando passamos por ele. Ela ameaçou parar e voltar para falar com ele, mas eu a segurei pelo braço e a obriguei a avançar. — Quem é ele? — Perguntou sem afastar os olhos das costas dele enquanto se afastava. — Apenas um companheiro de classe. — Sussurrei. — Vamos, quero sair já daqui. Ainda me custou afastá-la daquele lugar, mas finalmente, ela concordou. Jerome desapareceu pelo corredor e nós saímos e fomos para o carro de Lisange. De repente, eu o vi. Não, não me refiro ao Jerome, mas à minha principal fonte de problemas. Estava sozinho, envolto naquela aura de escuridão e mistério que sempre o rodeava. Caminhava devagar, mas com passo firme, entre os veículos. Segui-o com o olhar, com o coração apertado, até que ele desapareceu em uma esquina. — Vamos embora. — Pedi, sem acreditar na má sorte que tinha por ter encontrado ambos em menos de cinco minutos.
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— Um momento. — Ela pediu, com os olhos ainda cravados no lugar por onde ele tinha desaparecido. — Segure isto para mim, por favor. — Por quê? — Perguntei alarmada enquanto ela soltava a bolsa no meu colo. — O que vai fazer? — Alguém tem que pôr um fim a isso. — Sem dizer mais nada, saiu rapidamente. — Lisange! Não! Não faça isso! — Exclamei assim que a vi agarrar Christian pela lapela da camisa e empurrá-lo contra a parede. — O que pensa que está fazendo? — Ele perguntou com voz grave. — Afaste-se dela, Christian. Afaste-se de todos do nosso clã. — Tira as mãos de mim, caçadora. — Pronunciou aquela última palavra de forma enojada. — Não me obrigue a lhe dar uma lição de respeito. — Talvez eu devesse lhe dar essa lição. — E o que vai fazer? Não pode me matar. — Prove que não. — Nos olhos de Lisange comprovei que as palavras eram realmente certas. — Como nos velhos tempos. — Riu. — Pode ser que você seja mais forte que eu, mas não o suficiente para acabar comigo, então, perdoe-me se não levo a sério a ameaça. — Não volte a vê-la, Christian, não vou permitir que lhe faça mal de novo. — Se a tivesse protegido de mim, agora não teria que matá-la, mas você nunca foi racional o bastante para pensar em algo mais que não fosse em você mesma. — Com um movimento brusco, Christian se desfez de Lisange e a agarrou pelo pescoço. — Estou errado, por acaso? Devia acabar com você neste mesmo instante. — Solte-a! — Exclamei tentando apartá-los. Nem sequer consegui que se desequilibrassem.
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— Mas não vai fazer isso. — Lisange sorriu. — Não pense que deixei de odiá-la, De Cote. — Pronunciou o nome com desdém. — Não é a mim que você odeia. — Não brinque comigo. — Advertiu. — Volte a me ameaçar e me encarregarei de jogar sobre você a Ordem de Alfeo inteira. —Lisange e se virou para mim. — Pensei que você valorizava o suficiente a sua “família” para não envolvê-los nisto. Continua espalhando seus problemas aos quatro ventos, e terminará arcando com a morte deles. Lançou um olhar depreciativo para Lisange e se afastou. Eu me aproximei imediatamente dela. — Você está bem? — Sim, é obvio que sim, mas esse grande predador acaba de se meter em problemas… Desde esse momento, Lisange se concentrou em mim até um ponto obsessivo. Eram poucas as vezes que desaparecia pela porta de Reidar e muitas as noites que subia para o meu quarto para conversar comigo até eu dormir. Ela tentava por todos os meios afastar da minha mente todo o relacionado com Christian ou com a Ordem de Alfeo, inclusive havia aperfeiçoado a maneira de controlar tudo ao nosso redor sem que eu me desse conta. Durante alguns minutos, pareceu-me que contemplava a Lisange de La Ciudad, mas havia algo que ela não podia saber. Algo que ela não podia controlar: Hernan Dubois. Eu não tinha tornado a vê-lo, mas o que tinha acontecido com Christian naquele bosque e depois, no meu quarto, tinha feito com que ele voltasse aos meus pensamentos. Não entendia nada do que tinha acontecido com Christian na última vez que tinha falado com ele. Nada disso tinha uma explicação coerente
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e eu precisava de respostas, respostas estas que só aquele grande predador poderia me dar, sem envolver ninguém mais. Assim, aproveitei um momento em que Lisange foi ver Reidar e fui me encontrar com ele na sala agora vazia da antiga igreja. — Sabia que você voltaria. — Riu assim que me viu. — Quero saber por que quer me matar. Se quiser que eu fique, terá que me dizer. — A sutil arte da persuasão não está ao alcance de qualquer um, minha querida Lena, mas se deseja que eu a instrua nela você só tem que… — Já chega! Diga-me, por favor! — Soltei. Imediatamente, arrependi-me de ter me descontrolado daquela maneira. Um perigoso silêncio se estendeu entre ambos. — Considere-se afortunada de que hoje me sinta compassivo, pequena insolente... — Ficou de pé de forma ameaçadora. — Mas, atreva-se outra vez a levantar a voz para mim e eu juro que será a última coisa que você vai fazer. — Disse lentamente. Então, de repente, sorriu. — Ele a salvou... — Revelou. — Depois que fugiu daqui, ele podia ter deixado você morrer, ou sofrer, mas a levou àquela casa. — No dia da sua festa? — Perguntei confusa. — Não é possível. Ele quer me matar. — É tudo que vou dizer. — Mas... — Tentei dizer. — Nada mais, Lena. Se deseja saber mais sobre grandes predadores, terá que descobrir por você mesma. — O que você quer dizer com isso? — Fique. — Convidou com um sorriso. — Vi o que fizeram àqueles caçadores e humanos.
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— Nenhum deles se queixou. — Riu. — São livres para ir embora quando quiserem. — Está mentindo. — Não acredita, Lena De Cote? — Olhou-me durante um instante e em seguida voltou a sorrir. — Venha comigo. Vou mostrar-lhe algo. Não queria ir com ele, não estava disposta a acompanhá-lo a parte alguma, mas já estava ali, em um encontro com um grande predador, assim, tampouco tinha muitas opções. Fez-me segui-lo até um porão. Conforme íamos descendo, meu nervosismo começou a aumentar.
Sentia medo de Hernan
Dubois, mas nunca tinha ficado tão consciente disso quanto naquele momento. Minutos mais tarde comecei a ouvir vozes, embora não fossem sons normais, era como aquela vez quando estive no centro psiquiátrico em La Ciudad. Ouvia lamentos e risadas desordenadas. Chegamos diante de uma porta aberta, e lá de dentro emanava uma densa atmosfera com um cheiro carregado e desagradável, uma mistura de sujeira e sangue. Hernan fez um gesto para que eu entrasse primeiro. A imagem lá dentro era ainda pior do que eu podia haver imaginado, ainda pior, até do que a que tinha visto na festa. Naquela ocasião, pelo menos, eles estavam um pouco mais arrumados, mas agora, todos estavam sujos, caídos pelo chão, falando sem dizer coisa com coisa. Os humanos estavam com as feridas abertas. Alguns caçadores estavam se alimentando deles. Vários corpos jaziam pelos cantos. Assim que Hernan pôs um pé dentro, todos se aproximaram dele, como cães esperando ser alimentados pelo dono. Ele começou a rir. — Era isto que eu queria que você visse, Lena. A porta está aberta para todos, e eles têm a nossa bênção para sair daqui quando quiserem, mas são felizes. Eles nos amam. Sentem-se ditosos por estarem ao nosso lado, por nos servir...
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— É uma barbaridade. — Murmurei enquanto tentava fazer com que uma humana soltasse minha perna, mas ela me abraçava com uma força e paixão tão grandes que tive medo de causar-lhe algum dano. — Alimente-se dela. — Disse-me Hernan. — Será feliz o resto do dia. — Não precisam disso para se alimentar, por que o fazem? — Eles não estão aqui por nós, Lena. Nenhum deles. Os caçadores estão aqui porque querem ser como nós, são eles os que torturam e se alimentam dos humanos, e os humanos se alimentam ao mesmo tempo de outros humanos. Alguns morrem ao reviver tanta dor. — Abriu os braços com grande satisfação e inalou grande quantidade de ar. — É a grande Mãe Natureza, Lena. Era muito cruel, muito, muito, muito cruel o que estavam fazendo ali... Todos, humanos e caçadores, estavam completamente loucos. — Não há nada que se possa fazer por eles. — Disse com voz calma. — Eles são escória, e como tal se comportam. Todos tiveram a chance de escolher. Nesse momento, meus olhos pousaram em Adam Lavisier, acocorado em um canto com algo jorrando sangue entre os dedos. Era um coração. Eu me virei, enojada, e percebi que já tinha visto o suficiente. — Christian nos descobriria. — Apontei com dificuldade. — Duvido. Ele não gosta deste lugar. — Riu. — Não entra aqui se não for preciso. Resulta impressionante o que duas madeiras cruzadas podem provocar em algumas criaturas. — Vocês são animais. — Eu disse, enfrentando-o. — O que fazem aqui é uma blasfêmia. — Lamento destruir qualquer esperança que ainda tivesse, mas a única devoção válida é aquela que se professa para a gente mesmo. Por isso os humanos são fracos, por isso você é fraca. — Não penso assim.
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— Não, mas aqui estamos. — Sorriu. — Você e eu, amarrados a uma imortalidade da qual nenhum livro falou. — Não estamos completamente mortos. — Apontei. — Ignorava que professasse devoção por essas crenças, mas assim mesmo, não há lugar para reclamações. Este lugar não foi construído para dar culto aos fiéis. A grande predadora que me criou o edificou para nós. — Soltou uma pequena gargalhada. — Aquela mulher tinha um grande senso de humor. — Não, não tinha. — Teimei. — Acredita nisso? Pergunte ao sacerdote que oficiava neste lugar. Não durou muito, mas despertou nesta vida, o que é, quando menos, curioso. — Gareth? — Perguntei confusa. — Coincidências não existem, ma petite. — Sussurrou ao passar perto de mim. — Receio que fomos os responsáveis por ele ter perdido a fé. Descobriu o que era na realidade este lugar. Oh! Bem a tempo! — Exclamou de repente. — Que maravilhosa pontualidade! Lena, cumprimente nosso novo amigo. Senti um novo e familiar cheiro. Dei a volta devagar, e meu coração deu um pulo. — Jerome! — Ali, sombrio, estava meu antigo amigo, com o rosto contraído e os punhos apertados com força. — Vejo que já se conhecem. Isso vai economizar apresentações. Ele se ofereceu como voluntário para dar o realismo que necessitávamos. — Olhei-o de forma interrogativa, mas ele desviou o olhar. Então, um barulho vindo do andar superior alertou a ambos. Hernan abriu outro sorriso e nos conduziu de volta à entrada. — Nós nos veremos outro dia, receio que esta noite há assuntos que requeiram minha atenção. — Sem dizer mais nada, deixou-nos lá fora, ao abrigo da noite.
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— Sabia que você não era de confiança! — Exclamei assim que Hernan desapareceu. — Eu? — Perguntou atônito. — E pode-se saber o que é o que você estava fazendo com aquele grande predador? — Ele se ofereceu para me ajudar. — Desculpei-me. — A que preço? Você perdeu completamente o juízo? Esse homem vai acabar com você. — E você, o que estava fazendo lá, então? — Protegendo você! — Exclamou. — Era isso que eu estava fazendo. Se ensiná-la a aprender como me matar vai fazer com que volte a confiar em mim, vá em frente. — Eu não queria sua ajuda! Podia procurar qualquer outra maneira de resolver este problema. — Problema? Belo eufemismo, Lena. Não há nada para consertar, aquele grande predador nos manterá na armadilha até conseguir o que quer. — E o que é? — Perguntei tentando me acalmar. — Só ele sabe. Parei em seco. — Esqueça-se de Christian e fuja. — Exclamei. — Fugir? Quanto tempo pensa que ele demoraria a me encontrar? Trair a vontade de um grande predador é a última coisa que se faz. — Estendeu-se um incômodo silêncio entre ambos. — E não me enfiei nisto para abandonar tudo logo de cara. Apenas me diga, fez um trato com Hernan Dubois para proteger Christian de mim? Eu permaneci em silêncio. Negava-me a responder aquela pergunta. Então, ele soltou uma gargalhada. Olhei-o com o cenho franzido, a ponto de pronunciar uma réplica, mas ele me interrompeu primeiro:
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— Acredita de verdade que um grande predador precisa da ajuda de uma caçadora? — Não de forma voluntária. — Queria me zangar com aquele comentário, mas por algum motivo, não consegui. — Quero aprender a me defender, dessa maneira não vou precisar da proteção dele. — Perdoe-me por mencionar, mas tinha entendido que vocês nem sequer se falam mais. — É complicado. — Baixei os olhos, magoada. — Mas, suponho que tampouco importa. — Não é um bom raciocínio, tendo em conta nossa situação atual. Agora ele tem nossas vidas. — Preocupa-me muito mais o que vimos lá abaixo. Acredita mesmo que aquelas pessoas estão lá voluntariamente? — Sim, quase certeza que sim. Portanto, não tente nenhuma missão suicida, apenas vai encher o saco daqueles grandes predadores. — É uma crueldade. — Murmurei. — O que esperava deles? Altruísmo e cordialidade? O que eles fazem neste lugar é uma aberração. Uma autêntica falta de escrúpulos. — Por acaso você é diferente? — Se não fosse assim, asseguro-lhe que não estaria aqui. Não quero ver como transformam esse lugar no que se tornou. — Virou-se para mim e parou. — Mas eu me importo, Lena. Importo-me muito com o que possa lhe acontecer. Não vou parar até saber que você está bem, e há muitas coisas que deve entender, começando por acreditar de uma vez que não há nada digno para ser salvo em Christian Dubois. — Não me importa o que diga. — Não me obrigue a lhe ensinar isso.
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— Não tem nada para me mostrar. — Tenho, acredite em mim. — De repente, voltou a ficar zangado. — E vou lhe mostrar. Dito isto, deu meia volta e desapareceu na noite.
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Números
Ao entrar na casa, ia passar reto e subir diretamente para o quarto, mas algo me obrigou a parar. Valentine estava ali, pintando, como sempre. Pensei em sair de novo da casa e fugir dela, ou tentar subir para o meu quarto sem fazer barulho, mas uma estranha ideia acabava de cruzar minha mente. Tentei ignorála, mas de certa maneira fazia sentido. Se houvesse uma só pessoa que pudesse esclarecer as coisas era ela, a mesma menina loira que ansiava acabar comigo. — Os mais velhos dizem que é de bom tom cumprimentar. — Replicou com aquela vozinha. — Pensei que você não morava mais aqui. — Uma prova da sua má sorte. Vai ver Hernan esta noite? — Riu. — Vou dizer a todos que você estava com os grandes predadores. — Você já disse. — Respondeu com algo mais que ódio infantil. — E não adiantou nada. Eles sempre vão preferir a mim. — Acrescentou com sarcasmo. Estava sentada a uma mesa junto à parede. Os pés estavam pendurados da cadeira e ela os balançava distraidamente, para frente e para trás, enquanto cantarolava uma cançãozinha. Inspirei com força e me aproximei dela devagar. Parecia que estava desenhando algo, mas tampava com um braço, de modo que ninguém mais pudesse vê-lo. Sentei-me com cautela ao lado dela. Era como
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entrar na jaula de um leão sem ter certeza se ele estava dormindo ou não. Pensei que diria algo, mas se limitou a continuar a desenhar. — Conte-me o que viu. — Soltei. — Por que me odeia tanto? Não acredito que seja pelo fato de Christian prestar mais atenção em mim. — Eu lhe disse que sempre iria protegê-lo. — Quero entender. — Reconheci, jogando com ela em uma tentativa de ser amável. Ela soltou uma gargalhada infantil e continuou cantarolando, sem fazer o menor caso de mim. — Posso ver o que você está pintando? — “Segunda tentativa…” — Tornou a rir. Parecia de muito bom humor. — O que é que você acha tão engraçado? — Perguntei incômoda. — Você está procurando ser boa comigo, como se isso pudesse salvá-la. — Riu. — Você viu minha morte? — Perguntei sem mais rodeios. O sorriso dela desapareceu e a expressão escureceu a uma velocidade abismal. — Vejo muitas coisas. — Largou a pintura e pegou outra. — Você viu… — Apertei os dentes com força para criar coragem. — Viu que eu acabava com Christian, não é? A pintura se rasgou entre seus dedos. — Não diga o nome dele. — Disse sem se virar para mim, com uma expressão realmente zangada e perigosa. — Você o suja só de pronunciá-lo. — Tinha que ser isso. — Inclinei-me para trás e cruzei os braços, analisando-a com os olhos entreabertos. — Essa é a razão pela qual tentou me matar. Mas depois, viu que ele me mataria e perdeu o interesse em acabar comigo. — Aventurei.
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— Ele se cansou de você. — Soltou de repente. — Trocou você como quem troca de carro. Não passou de uma nova distração até que encontrou algo melhor. — Foi isso que aconteceu com você? — Perguntei de forma intencional. O comentário dela tinha doído em mim porque, no fundo, era muito provável que ela tivesse razão. — Eu sempre estive disponível para ele. — Cravou as membranas em mim com ferocidade. — Ele vai superar. — Sorriu, pegou o papel e desceu da cadeira. — Para você. — Disse, entregando-me o desenho. — Eu gosto de presentes. — Olhei-a com estranheza. Baixei o olhar para o desenho e fiquei gelada. Ali, com uma precisão e um realismo incríveis, estava representada minha própria morte. — Não há de que. — Cantarolou. — Tenho muitos. — Aproximou-se da minha bochecha e a beijou. — Feliz contagem regressiva. — Sorriu e se dirigiu para as escadas. Meus olhos continuaram cravados naquela lâmina de papel, na adaga que se cravava no meu peito. Saí da casa e caminhei a esmo, sem saber aonde ia, só podia pensar. Não tinha como tudo aquilo fazer sentido. Não podia me arriscar, nem a que ele me matasse nem a que lhe acontecesse algo por minha culpa. Suponho que essa descoberta foi, de forma oficial, uma despedida. O que ela parecia predizer se encaixava, por desgraça, muito bem com a nova atitude de Christian; e eu não poderia suportar que lhe acontecesse algo ruim, de modo que minha única opção era me afastar dele. Voltei para casa bastante tarde. Cansada, fechei a porta e me sentei na cama. A janela estava aberta. Uma pequena brisa penetrava no interior fazendo revoar pelo quarto um papel perdido. Peguei a vela e acendi o pavio a contragosto, mas assim que acendeu, escorregou entre meus dedos até cair no
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chão e apagou, acompanhada de um grito sufocado. Recuei e choquei-me contra a cama, pois estava sentindo um repentino pavor me congelando o corpo. Não havia nem rastro de tinta nas paredes. Estavam cobertas de rostos, centenas e centenas de rostos disformes, torturados, com os olhos cravados em mim de cada fresta do quarto. Nas paredes, na cama, no chão, nos móveis… — Valentine! — Murmurei tremendo. Naquela ocasião, acontecera. — VALENTINE! — Gritei, com a voz alquebrada, sem conseguir conter o tremor do corpo. Um som vindo de fora me fez olhar para a janela. Eu me virei por completo e, ali, diante de mim, vi Jerome. Alto, agradável, frio e… Mortífero, com uma pilha de papéis envelhecidos entre as mãos. — O que significa tudo isto? — Perguntei, colando-me à porta. — Clarice. — Ergueu um dos papéis e me mostrou a foto de uma mulher jovem. Ato contínuo deixou-a cair no chão. — Jean-Paul. — Fez o mesmo que com a anterior. — Eleonor. Florence. Daniel. — Ele ia me mostrando as fotografias, uma a uma. Dizia o nome deles, mostrava-me os rostos e os jogava no chão. Levei as mãos à cabeça, aterrorizada pelas imagens. — Já chega! — Exclamei, arrancando o maço de fotos das mãos dele e lançando-o ao ar. — O que significa tudo isso? — São pessoas. — Respondeu com voz gelada. — Já que não acredita em mim, talvez mostre mais consideração com eles. — O que quer dizer? — Perguntei confusa. — Todas essas pessoas foram torturadas ou assassinadas por esse grande predador a quem você professa amor eterno. — O que? — Neguei com a cabeça, confusa. — Você ficou louco. — Não vou pedir que acredite em mim, Lena, apenas olhe para os rostos dessas pessoas.
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Pôs uma foto diante do meu rosto. Era de um menino, cujos olhos claros refletiam um estranho temor. — Eles não vão mentir para você. — Tire isso daqui! — Exclamei, afastando-o de mim. — Talvez você queira dar uma olhada em todas as vítimas dele. — Vá embora! — Por que, Lena? O que teme encontrar? Crianças inocentes? Pais de família? Famílias inteiras? Deixei-me cair no chão e me encolhi, com os olhos fechados com força e tampando os ouvidos com as mãos, em uma tentativa inútil e desesperada para parar de ouvi-lo. — Por que está fazendo isso comigo? — Supliquei. — Porque eu me importo, Lena. Quero que olhe nos olhos de qualquer uma dessas pessoas e que pense como vai conseguir voltar a se encontrar com o monstro que fez isso com elas. — Observei-o com pavor. — Você pode acabar com tudo isso. — Como? — Perguntei, ainda com os olhos grudados no pequeno grupo de pessoas. Ele não respondeu. Virei a cabeça e os olhos dele se cravaram dolorosamente nos meus. — Mate-o. — O que? — Você é a única que pode fazer isso. Ele nunca esperaria tal coisa vinda de você. — Mas isso não vai acontecer! — Por que você é tão egoísta? — Eu? Tem ideia do que me está pedindo? — O mundo não acaba em Christian Dubois, Lena. Há mais coisas pelas quais vale a pena viver.
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— Para mim tanto faz… Você não… Você não pode me pedir isso, Jerome. Não tem direito algum de me pedir isso. — Muito bem, Lena, vá em frente. Volte lá e lhe diga o quanto o ama, deleite-se na dor que ele provoca em você, continue suspirando por ele sem pensar em quantas vidas acaba de ceifar e continue fingindo que não sabe de nada. — Não está sendo justo comigo. — Nem você com todas essas famílias. Seu amor por esse animal não vai devolver a vida aos filhos delas, mas você tem a possibilidade de evitar que ele volte a fazer isso, pode permitir que muitas pessoas inocentes continuem vivas. — Há centenas de grandes predadores, por que você tinha que se fixar nele? Hernan não é muitíssimo mais cruel? — Acaba sendo tremendamente singelo viver na ignorância, não é mesmo, Lena? — Vá embora! Ele não me atendeu. Agachou-se diante de mim e continuou com voz dura: — Tudo isto é por você, Lena. Não me importa se acredita em mim ou não, porque cedo ou tarde vai descobrir que tenho razão. — Por favor, vá embora! — Se não fizer nada a respeito, é porque você é como ele. — Apontou-me um dedo acusador. — Exatamente igual, Lena. Ou pior, porque ainda por cima tenta aparentar ser inocente. Causa tanto asco quanto ele. — Sim… — Sussurrei, olhando de esguelha uma foto próxima; era um menino. — Tanto quanto ele. Era verdade. Algo em meu peito se encolheu ao ver aquela expressão infantil.
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Ergui o olhar, mas ele já tinha ido embora. Não é ruim pedir ajuda, não é? Confiava em encontrar Jerome na aula no dia seguinte, mas não foi assim. Aguardei o dia inteiro na esperança que ele aparecesse de repente pela porta de alguma sala de aula, sorridente e despreocupado, mas que não aconteceu. Eu não conseguia tirar aquelas fotografias da cabeça, mas o que ele esperava que fizesse? Não tinha como mudar o passado de Christian, nem sequer o presente! E matá-lo não era uma opção! Mas ele não entendia isso. Em meu desespero, inclusive entrei de novo na casa que ele ocupava em frente à minha, mas quando lá cheguei, encontrei-a completamente vazia, como se nunca a tivessem ocupado. Inclusive o cheiro e as manchas de sangue haviam desaparecido. Não voltei a cruzar com ele até o próximo treinamento com Hernan, e não quis dirigir-me uma só palavra. De fato, evitava até me olhar e de repente, comecei a me sentir muito só sem ele. Eu mal me alimentava, não era capaz de me lembrar de quando tinha sido a última vez, nem sequer de como me sentia ao fazê-lo. Talvez, no fundo, quisesse me sentir miserável em todos os aspectos. As noites com Hernan eram cada vez mais duras, ou, pelo menos, assim eu sentia. Cada vez me custava mais acompanhar o ritmo e suportar os golpes. Sabia que Jerome se dera conta disso, porque via refletido meu próprio sofrimento nos olhos dele. Sabia que ele odiava ter que fazer isso e entretanto, continuava assistindo, então deduzi que o fazia por mim.
Em Hernan,
entretanto, havia uma estranha complacência. Não sei se pela minha dor ou pela crescente fraqueza. — Você não está concentrada. — Jerome acabava de me dar um golpe, mas estava tão ensimesmada em meus pensamentos e em todas aquelas fotografias que não fui ágil o bastante para me esquivar dele.
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— Meu peito dói demais. — Aleguei como desculpa. Era verdade, a sensação aumentava a cada dia. — Deve doer mesmo, agora volte à posição. — Pus-me em pé com dificuldade e voltei à posição. — Espere um pouco. — Deteve-me. Aproximou-se de mim, pegou meu pulso e o levou até a altura do rosto. — O que é isto? — Não respondi, estava perfeitamente consciente de que ele sabia a resposta a essa pergunta. — Não volte a vir aqui se não se alimentar. — Advertiu me soltando sem nenhum cuidado. — Espero que não esteja me fazendo perder tempo. — É que estive ocupada, mas não tem nada a ver. É apenas essa dor... — Bem. Então, vá em frente, termine seu trabalho. — Entrelaçou os braços diante do corpo e sorriu. — Qual? — Hesitei. — Acabe com ele. Notei Jerome ficar tenso ao meu lado. Olhei-o aterrada e recuei. — Não! — Ele é um guardião, Lena. — Disse junto ao meu ouvido. — Se você quer sobreviver, não pode mostrar compaixão. — Ele não me fez nada. — Sério? E vai esperar para conferir? — Você está querendo fazer isso. — Jerome comentou, agora zangado. — Não é verdade! Não o farei. Nesse momento, Hernan estatelou uma cadeira contra o chão. — Você não evoluiu nada! Faça! — Não! — Atirei a adaga ao chão. — Acabou, eu vou embora. Fui me virar, mas com um movimento, ele agarrou meu pescoço e me apertou contra a parede.
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— Alguma vez lhe ensinaram que não se dá as costas para um grande predador? Deveria acabar com sua aborrecida presença de uma vez. Você não passa de uma vulgar caçadora. — Disse entre dentes. — Prefiro isso a ser algo como você! — Desafiei. — Pare de choramingar e faça o que estou ordenando. Agora! — Jogoume para frente. — Não vou fazer! — Enfrentei-o, virando-me para ele. — Não sou como você! Um pequeno silêncio se seguiu às minhas palavras. — Jura? — Riu. — Jerome… — Chamou de costas para ele, sem desviar os olhos de mim nem por um segundo — Deixe-nos a sós. — Ele titubeou. — Vá! — Eu lhe dirigi um olhar suplicante, mas ele desapareceu atrás da porta. Assim que a porta se fechou, escutei os passos suaves e compassados de Hernan aproximando-se lentamente de mim. Ajoelhou-se ao meu lado e sorriu. — Agora somos apenas você e eu, Lena. Está na hora de jogar… — Estendeu uma mão para o meu coração e então, todo meu corpo se retorceu de dor. Gritei com toda a força dos meus pulmões. Senti que meu peito rachava ao meio. — Diga-me o quanto me odeia! — Gritou. — Confesse o quanto deseja me matar! — Apertei muito os dentes e me lancei contra ele. Afastou a mão de mim, mas se esquivou com tanta facilidade que teve tempo de me fazer chocar contra a parede oposta. Escorreguei pela parede e caí no chão me retorcendo de dor. Voltou a aproximar-se e se ajoelhou ao meu lado. — Está desfrutando? — Perguntou com voz aveludada. — Já lhe avisei que era um jogo muito divertido. Nesse momento, voltou a estender a mão para o meu coração, mas desta vez, apertou-a contra o meu peito e a dor foi cem vezes mais intensa. Senti que todo meu corpo tremia, que meu corpo se partia em dois a cada pulsação provocada. Eu não queria gritar, não queria lhe dar esse gosto, mas era
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impossível. Aquilo era simplesmente indescritível e muito mais que insuportável. Em um dos espasmos, senti a boca se encher de sangue e tive que cuspir. Então, ele parou e meu coração voltou a parar. — Ah não, não, Lena, olhe o que você fez! — Repreendeu-me, com a mesma doçura na voz, como um pai dizendo ao filho que este fez algo ruim. Minha respiração estava irregular, mas acelerada. Todas as minhas feridas sangravam. Olhei-o com terror enquanto ele tirava um delicado lenço de rendas do punho e o passava nos meus lábios. — Isto não está bom. Você se sujou, olhe que desastre, o que diria Christian se a visse assim? Levantei a mão para afastá-lo de mim, mas eu tremia demais. Voltou a guardar o lenço com delicadeza. Tentei aproveitar esse pequeno momento no qual desviava a atenção de mim para fugir dele, empregando todas as forças que me restavam para me arrastar para longe, mas a mão dele se aferrou à ao meu cabelo um instante depois e fez chocar minha cabeça contra o chão. — Eu digo quando o jogo acaba. Pode ser que não tenha ficado muito claro para você: se eu lhe disser para bater nele, bata; se eu lhe disser que se esquive dele, você se esquiva; e se eu lhe ordeno que acabe com ele, acabe com ele! Entendeu? — Um instante depois, relaxou o rosto e aveludou o tom de voz: — Eu sei que você deseja a dor. — Sussurrou, aproximando-se do meu ouvido. — Por isso vem aqui toda semana, por isso correu para Christian, por isso venera a companhia dele. Você é obcecada pelo perigo constante ao qual se entrega quando está ao lado dele. Não é uma dor de caçador, Lena, você busca uma dor mais poderosa, mais cativante, e eu posso ajudá-la nisso. — Eu só quero ajudar. — Balbuciei. — Muito nobre da sua parte, sem dúvida, mas eles não vão ensiná-la. Eu não vou cometer o engano de subestimar você. Você me fascinou desde o primeiro instante em que a vi, é minha próxima grande criação.
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Apertei os dentes e tentei me incorporar, sem muito êxito. — Você não vai me transformar em um monstro! — Balbuciei contra o chão, limpando com a mão os restos de sangue que ainda restavam nos meus lábios. — Oh, não. — Soltou uma gargalhada e se aproximou ainda mais do meu ouvido. — Pequena, você já o é. Tolera o que Christian faz sem nem sequer se perguntar se deveria fazê-lo e essa indiferença não é uma clara mostra de piedade e misericórdia, portanto, acostume-se com isso. — Um segundo depois, transformou o aperto em um gesto consolador. Passou um braço por baixo da minha cabeça e o outro sob meus joelhos, e me ergueu no ar. Carregou-me nos braços até o sofá e me depositou com cuidado. — Eu vou cuidar de você, Lena. — Acariciou meu cabelo. — Mas, se me deixar zangado, vai descobrir que o que acaba de acontecer não é nada comparado com o que poderia sofrer. — Ele se afastou um pouco de mim e voltou se sentar em frente ao piano. — Onde estávamos? Ah, sim! Chopin! Seus dedos começaram a viajar velozes pelas teclas enquanto eu contemplava o teto sem forças. Meu coração ardia, não me atrevia sequer a respirar, para evitar qualquer movimento. O sangue ainda me queimava a garganta e uma brecha enorme se abrira no meu coração, brecha esta que não tinha nada a ver com os batimentos do coração, mas com o fato de descobrir que meus piores temores estavam certos, e que tanto Jerome quanto Hernan tinham razão. Eu tinha me transformado… Em um monstro. No dia seguinte eu mal conseguia caminhar ereta, as pernas falhavam e a cabeça dava voltas, mas não podia permitir que eles me vissem assim. Hernan se assegurara de que nenhuma das minhas feridas fosse visível. Embora, por alguma razão, estivesse começando a notar que não desapareciam com a mesma rapidez que antes, talvez pela escassa frequência com que me alimentava. O que
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eu não sabia era como ignorar a tremenda dor que sentia no coração. Era uma dor tão… Brutal que, pela primeira vez, compreendi a gana que Christian podia chegar a sentir de arrancá-lo do peito. — Onde esteve ontem à noite? — Lisange perguntou assim que apareci. — Estava dando uma volta. — Menti. — Precisava pensar. Ela franziu o cenho. — Lena, já conversamos sobre isso. Você não pode se expor à semelhante perigo. — Eu sei, Lisange, mas tampouco posso ficar aqui encerrada. Peguei minhas coisas e me dirigi para a entrada. — Aonde vai? — Temos que ir à aula. — Entendo. — Espero você lá fora. Saí dali antes de lhe dar tempo para dizer algo mais. Atravessei o jardinzinho e o portão da entrada e desci pela rua de pedras, mas nesse momento, alguém me pegou pelos ombros. — Você tem que parar de vê-lo. — Era Reidar. — Sei que você voltou àquele lugar. Não falei nada para ela por causa de você, mas deve acabar com isso. — Não é tão fácil. — Respondi, baixando o olhar. Sentia-me incapaz de olhá-lo nos olhos. Ele tinha me salvado deles não fazia muito. — Conte para o Christian. No mínimo vai servir para manter afastado o irmão dele. — Nem pensar. — Ergui o olhar rapidamente; aquilo era uma loucura. — Ele me entregou ao Hernan.
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— Se você não fizer. — Soltou-me e se separou um passo de mim. — Eu vou fazer. — Você não vai fazer nada. Preciso ir. — Lena, nós podemos protegê-la dele. — Proteger-me? Ser o empecilho de novo? A pobre garota a quem todos devem salvar, pela qual devem arriscar a própria vida? Não, sinto muito. Tenho que ir. — Reidar tentou me deter de novo, mas eu saí correndo. Entrei correndo na escola e olhei o relógio junto à entrada, ainda não tinha tocado o sinal. Lisange ia se enfurecer comigo por não tê-la esperado, mas com sorte eu não teria que enfrentá-la até encontrar uma boa desculpa para minha fuga. Inspirei forte e recoloquei a mochila. O corredor estava abarrotado, para variar, mas parecia que nesse dia ninguém queria prestar atenção em mim, o que era uma grande notícia. Avancei depressa entre as pessoas sem distinguir ninguém, até que um rosto familiar se destacou claramente dentre os outros. Tudo o que eu estava carregando nos braços caiu no chão no momento em que meus olhos pousaram ao acaso sobre os dele. Abaixei-me velozmente para recolher o que tinha se esparramado pelo chão, na esperança de que ele não me tivesse visto. Ele parou por um instante, dirigiu-me um olhar e passou por cima das minhas coisas sem se dignar sequer a me dizer uma palavra, nem a me dar de presente um olhar que não fosse aquele gélido semblante de superioridade. Incorporei-me rapidamente, enquanto o via desaparecer pelo corredor. Ia segui-lo quando senti que tinha alguém bem atrás de mim. Eu me virei e dei de cara com Jerome, com uma estranha expressão de agrado. — A sorte está do meu lado. — Sussurrou. — Ao que parece vai ser mais fácil do que eu pensava. — Olhei-o com pavor e me virei imediatamente para seguir Christian. — Lena! — Chamou-me Jerome, mas não lhe fiz caso. — Lena!
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Abri caminho através das pessoas; tinha que encontrá-lo, mas avançar era quase impossível. A barafunda de alunos que se dirigiam para as salas de aula tornava impossível ir à contracorrente. Nesse momento, alguém me puxou para dentro de uma sala de aula vazia. — Vai me delatar? — Jerome repreendeu. — O que você acha? — Já contou para a De Cote? — Perguntou zangado. — Não, mas vou contar se voltar a se aproximar de um de nós ou de Christian. — Sabe que ele vai tentar acabar comigo. — Ou você com ele, e comigo também, se isso lhe agrada. — Está protegendo um monstro! — Exclamou. — E o que você é? O que somos todos nós, Jerome? Não há nenhuma diferença! — Claro que há, Lena. Eu não sou como ele. — Surpreenda-me. — Olhe, sei que isto não é fácil. Na realidade é uma merda, porque cedo ou tarde eu verei sua morte, ou você verá a minha, e nenhum de nós poderá fazer nada para evitar isso, mas eu quero tentar. Odeio que Christian se interponha entre nós, embora o entenda. Tem todo o direito de me odiar. — Afastou-se um pouco de mim, como se estivesse arrependido. — Mas não vou mudar minha missão. Ele não precisa da sua proteção. — Nem você tampouco. — Se você falar com ele vai me entregar para um açougueiro. — Olhei para a mão dele e a afastei de mim. — Não pode proteger nós dois.
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Sem dizer nada, pendurei a mochila no ombro, abri a porta e saí para o corredor. Ali, olhei para o lugar pelo qual Christian tinha desaparecido minutos antes. Hesitei e para minha surpresa, eu me virei para ir para a sala de aula. — Para depois das férias, vou lhes pedir que façam um estudo detalhado sobre o fenômeno meteorológico e físico deste novo eclipse, enquanto isso… Ficou em silêncio, alguém tinha batido à porta. As pessoas começaram a conversar. Eu apenas podia olhar, impotente, o relógio. Não tinha nenhuma habilidade para fazer com que os ponteiros do relógio girassem mais rápido, apesar de querer desesperadamente. Lisange se virou para mim para comentar algo, mas meu olhar desviou para a porta. Nesse momento, todo meu corpo ficou tenso. Não fui a única. A classe inteira foi absorvida por um repentino e antinatural silêncio. — Não acredito! — Ouvi Lisange murmurar. Ali, na entrada, estreitando a mão do professor, estava ele. — Prestem atenção. Apresento-lhes um novo companheiro, o Senhor Dubois. — Virou-se para ele e sussurrou: — São todo seus. — Um leve sorriso torcido surgiu em seus lábios, enquanto olhava atentamente toda a classe. “Sim, todos dele…” Pensei. — Vá em frente, apresente-se, filho. Inclinou a cabeça para ele, luzindo uma ligeira sombra ameaçadora no rosto, certamente motivada por aquele adendo fraternal que havia usado. — Não há nada para apresentar. — A voz soou profunda, grave. Houve um pequeno murmúrio. — Só diga seu nome, de onde vem, o que é o que você gosta, o que quer ser quando for mais velho. — Tentou ajudar. Ele piscou de forma paciente e se virou para a classe que o observava atônita.
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— Dubois, Itália, complicado e difícil de determinar. — Disse, cravando o olhar em mim. — Nessa ordem. — Muito bem, sente-se, filho. — O professor parecia confuso. Ele voltou a dirigir-lhe aquele olhar de advertência, mas não disse mais nada. Lentamente, mas com passo seguro e elegante, atravessou as fileiras de carteiras até chegar perto de mim. Ali, cravou o olhar em mim durante um instante, pousou uma pasta de couro sobre a mesa atrás de mim e sentou-se. Toda a classe continuava olhando-o, até que o professor pigarreou para limpar a garganta e voltou a requerer a atenção de todos. Não me passou despercebido o fato de que Jerome foi o último a desviar olhos dele. Fiquei incômoda o resto da aula, planejando o que dizer, como abordá-lo, mas não era fácil. Tão perto como estava, o cheiro dele me rodeava, envolvendome e me embriagando com aquele efeito poderoso que tinha sobre mim. Não importava o quão viciado estivesse o ambiente, o cheiro dele despertou cada um dos meus sentidos, removendo a corrente de sentimentos e emoções que só ele despertava. Sentia os batimentos do coração dele, a respiração compassada chegando até meu corpo. E os olhos... Eu não precisava me virar para ele para saber que estavam cravados em mim, como duas estacas inquietantes. Depois de uma torturante meia hora, a aula terminou. Virei-me imediatamente para ele, mas seu olhar me congelou. Era direto, frio e profundo. Nem sequer me deu chance de dizer uma palavra. Ele se levantou do assento, sem pressa, andou até o início da sala e desapareceu depois, pela porta, deixando-me mais petrificada do que nunca. Alguns minutos mais tarde, Lisange e eu esperávamos no corredor a mudança de aula, observando as pessoas sem dizer uma só palavra.
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— O que ele pretende vindo aqui? — Exclamou de forma exasperada. — Quer nos provocar? Lisange estava zangada, não me cabia nenhuma dúvida disso. A chegada de Christian ao instituto lhe crispava os nervos, inclusive tinha esquecido o fato de que eu a tinha abandonado intencionalmente naquela manhã. Passeava de uma parede a outra, murmurando baixo, enfurecida e retorcendo as mãos de forma nervosa. As pessoas olhavam para ela com mais estranheza do que o normal. Então, nossos olhos se fixaram imediatamente em uma companheira de classe. Falava depressa no meio de um pequeno grupo próximo ao nosso, no qual se incluía Jerome, que não tirava os olhos de cima de nós. — Vocês o viram? — Escutamos ela dizer. Segui o curso do olhar dela. Christian acabava de dobrar a esquina. Lisange bufou sem se preocupar em dissimular o descontentamento. — Sylvia, a classe inteira viu, lembra-se? — Respondeu a contragosto um rapaz chamado Víctor. — Ele me dá calafrios, mas ao sair cruzei com ele, e oh! Que olhos! Negros! Eu adoro olhos negros! — Os meus também são e você ainda não me confessou amor eterno. — Lisange burlou-se, parando, por fim, ao meu lado. — Dá um tempo! — Sussurrei enquanto fingia examinar um pôster da parede. — Você causou sensação. — Feche a boca, anã. — Deu-me uma batidinha com o ombro. — Ou vou ter que lavá-la com sabão. Sorri, baixei um pouco o olhar e me virei para o grupo que ainda falava de Christian. — Não acredito que deva se aproximar dele. — Ouvi Jerome dizer à garota. — Não parece… Seguro.
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— Não estou dizendo que vou me aproximar. — Ela defendeu-se. — Esse cara tem pinta de quem tem muitos problemas, mas os amores entre garotas novas e perigosos homenzarrões são os mais bonitos. — Suspirou ela. — Só na ficção, não se esqueça. — Alguém devia vigiar o que essa criatura anda lendo. — Lisange sussurrou de novo, inclinando-se para mim. Ri, mas meu olhar voltou inconscientemente para Christian, ou pelo menos para a silhueta escura que se filtrava por uma janela, afastando-se do centro. O sinal soou e entramos na sala de aula, mas ao invés de me sentar, peguei minhas coisas e me dispus a sair. — Aonde vai? — Lisange perguntou. — Eu volto logo. Lancei um último olhar para Jerome e saí da sala. — Christian! — Gritei para que ele parasse quando o encontrei no estacionamento. — Só um néscio se aproximaria de mim sabendo o que você sabe. — Virou-se para mim e me cravou o olhar. — Espero que tenha um bom motivo para vir atrás de mim, ou… Dado seu afã suicida, é motivo suficiente. — E tenho. — Lamento muito, mas não tenho tempo para palavras de amor eterno. — Zombou. — Não é isso o que quero! Eu quero você. Quero o animal, o assassino, o desalmado grande predador que arriscou a vida por mim. — Provavelmente você o perdeu, porque a arriscou e a perdeu. — Não acredito em você. — Pensa que estou lhe pedindo que acredite? — Ficou em silêncio durante um breve instante, avaliando-me atentamente com o olhar. — Talvez desfrutasse com a ideia de ter um grande predador a quem controlar.
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— Ou você, um caçador para torturar. — Posso torturar quantos caçadores eu quiser, Lena. É privilégio meu. Agora, diga o que quer. — Preciso da sua ajuda. — Hesitei. Ele se virou para mim com o olhar sombrio. Pensei que desataria a rir ou que soltaria algum comentário sarcástico, mas não o fez. — Minha ajuda? — Parecia surpreso, inclusive o tom da voz pareceu menos grave. Fiquei em silêncio, contemplando-o. Estava muito diferente, tão frio e distante do Christian que eu conhecia. — Não há nada que eu possa fazer se não falar. Neguei com a cabeça e baixei o olhar. Não, ele não me ajudaria. Virei-me para ir embora, mas ele me deteve pelo braço. — O que está acontecendo? — Durante um fugaz instante, vi piscar em seus olhos aquela preocupação obsessiva de tempos atrás, aquela necessidade de me proteger. Hesitei. Aquilo significava algo? Precisava contar-lhe, precisava desesperadamente que ele me salvasse uma última vez. — Lena? Apertei os olhos com força, sentindo que as palavras se amontoavam na minha garganta, pressionando para sair. — Preciso que vá embora deste lugar. — Ele arqueou levemente as sobrancelhas, surpreso. — Você e sua… Família. Analisou-me durante um instante e depois sorriu. — Já não somos do seu agrado? — Todo rastro de preocupação fugiu do rosto dele. De novo era o grande predador sem coração. — Ou é uma tentativa de se livrar da minha promessa? — Por estranho que possa parecer, não me preocupo apenas comigo mesma. — O que a fez mudar de opinião?
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— Isso eu não posso lhe dizer. — Olhando com ansiedade para a porta. — Por quê? Mantivemos o olhar durante um instante. — Sei que ainda se importa um pouco comigo, não é o único que consegue olhar atrás de uma máscara. Só estou pedindo que vá embora. Eu confiei em você todo esse tempo, confie em mim agora. — Isso é mais do que quero de você. — Alegou, olhando-me fixamente nos olhos. Retrocedi um passo, magoada e com os olhos ardendo. — Misturando-se de novo com a plebe, irmão? — Hernan perguntou, aparecendo no meu campo visual. Uma onda de pavor sacudiu meu corpo. — Lena já estava de saída. — Respondeu afastando-se de mim. — Por favor! — Supliquei com voz apenas audível, e tentando não mover os lábios. — Convide-a para vir conosco, talvez queira amenizar nossa noite. Captei a ameaça plasmada naquelas palavras e acredito que não fui a única a perceber. — Certamente em uma próxima ocasião. — Pôs-se de lado e entrou no carro. — Tenha uma boa tarde, Lena! Hernan e eu ficamos cara a cara. Ele arqueou uma sobrancelha e sorriu de tal maneira que meu corpo inteiro se encolheu com um doloroso espasmo. — Anseio pelo momento de voltarmos a nos encontrar. — Disse de forma que só eu pudesse ouvir. — Dê lembranças aos De Cote. A última coisa que vi foram os olhos de Christian justamente antes que se fechasse a porta do passageiro, e o sorriso extremamente perigoso de Hernan, que escondia uma encolerizada raiva por dentro e uma ameaça que, eu tinha certeza, ele iria cumprir.
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Questão de fé
Naquela noite senti que o mundo inteiro se pôs de acordo para impedir que eu fosse ao encontro de Hernan. A verdade é que eu estava assustada. Aterrorizada, melhor dizendo. Mas não podia fugir dele, nem sequer podia confessar tudo para Lisange ou aos Johnson, por medo de implicá-los. Colocar Jerome em tudo aquilo já tinha sido carga suficiente para minha consciência, então, eu não tinha outra alternativa do que ir ao treinamento. Inspirei fundo e, mais uma vez, dispus-me a avançar por aquela ruela de pedra. Seria fácil pensar que tinha perdido o juízo, ou que era muito ingênua para perceber as autênticas intenções daquele grande predador, mas não era verdade. Sabia quase desde o começo o que estava fazendo, estava consciente do que enfrentava, de que ia lá para que ele se divertisse comigo, mas tinha me deixado levar. O ímpeto e o desespero para servir de alguma ajuda tinham me empurrado a isso, a confiar naquele animal, e agora não sabia como detê-lo. Era muito mais simples suportar a dor. Estava convencida de que seria mil vezes pior não ir. Não havia forma de pedir ajuda a Lisange, a Gareth ou Gaelle sem confessar o que estivera fazendo com Hernan, assim que minha única opção era me enfrentar com ele. Tampouco Liam ou Christian iriam me salvar; nenhum deles estava ali para me proteger.
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Mas Hernan não disse nada fora do comum ao me ver. De fato, limitou as palavras. Ordenava-nos, ausente, cada movimento. Vigiava nossos passos e esse afastamento me assustou. Vários minutos mais tarde, caí no chão. Jerome acudiu depressa ao meu lado e me ajudou a me pôr de novo em pé, antes que ele se desse conta, e voltamos a encetar uma luta fingida. Mas o grande predador nem sequer nos tinha visto, parecia distraído, impaciente. Tamborilava de forma insistente com um dedo o elaborado braço da enorme cadeira onde estava sentado. Vários minutos mais tarde, ergueu a mão e ficou em pé. — Parem! — Foi a única coisa que disse. Afastei-me um pouco de Jerome e o olhei. — O que houve? — Perguntou meu antigo amigo. — Façamos isto um pouco mais interessante. Aproximou-se dele, arrebatou-lhe a adaga da mão e o agarrou pelo punho. Ato contínuo, esticou o braço e afundou o aço na pele dele. Jerome proferiu um grito sufocado. — O que está fazendo? — Exclamei, horrorizada. — Proporcionando-lhe um pouco mais de realismo. — Hernan me olhou e sorriu. — Talvez assim leve isto mais a sério. — Não precisava fazer isso. — Verdade? Tenho algumas dúvidas referentes à sua lealdade. — Meus músculos se contraíram nesse momento. Ali estava a reação que eu estivera temendo. Hernan se aproximou de mim, sombrio, lento e perigoso. — Você me decepcionou, Lena. Pensei que tínhamos um trato. Tentou confessar ao Christian nosso pequeno jogo? — Não me deu tempo de responder, senti uma grande pontada de dor bem debaixo das costelas. Baixei o olhar e vi a adaga de Jerome, agora dentro do meu próprio corpo. Dobrei-me ao meio e as pernas fraquejaram, mas não caí. Hernan ainda me sustentava com a adaga. — Você quebrou nosso
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acordo. — Sussurrou, aproximando-se do meu ouvido e apertando com mais força o cabo. — Portanto, já não vejo motivo algum para ser leal à promessa que fiz de não acabar com você. — Eu… — Balbuciei. — Não contei nada. — Mas tentou. — Não… Apertou-a ainda com mais força, com violência. — NÃO MINTA PARA MIM! — Gritou no meu ouvido. — Eu queria… Mas não contei. — Ora! — Tirou o aço com um único movimento e me empurrou contra o chão. — Você continua sendo fraca! Asquerosa e detestavelmente fraca! Rodeei o ventre com os braços, contendo a respiração, em uma tentativa de mitigar a dor, e me virei para ele. Hernan se agachou ao meu lado, acariciando a pedra com a ponta de aço. Eu engatinhei para trás, afastando-me dele. — Já é suficiente! — Jerome interrompeu. — Eu decidirei quando é suficiente. — Não lhe faça mal! — Ele insistiu. — Está aqui para isso, não é mesmo, Lena? — Passou uma mão pela minha camiseta até chegar à ferida e, então, apertou-a com força. Gritei de dor. — Sinta, Lena! Sinta como corre pelas suas veias. Isso é poder! — Solte-me! — Gritei. — Por favor! — Ou você o combate, ou aprende a lutar para impedir que qualquer outro volte a fazer isto com você. Jerome! Ninguém respondeu. Então, vi que Hernan se elevou no ar, voou pelo ambiente e me chocou contra a parede do outro lado. Jerome parecia mais fornido, mais alto e temerário do que nunca.
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— Vamos, Lena! — Sussurrou, agachando-se junto de mim. — Vou tirá-la daqui. Passou um braço por baixo dos meus joelhos e o outro por trás da minha cabeça, e me ergueu do chão. Algo estalou no ar e golpeou Jerome nas costas. Seu corpo inteiro se estirou e se esticou pela dor, mas não me deixou cair. — Não se atreva a dar mais um passo! — Hernan disse atrás dele. Estava de novo em pé e segurava com firmeza um látego negro na mão direita. — Acabou-se a diversão, Dubois. Hernan voltou a brandir o látego e o lançou sobre ele, rodeando-lhe o pescoço e atirando-o fortemente para trás. Jerome caiu no chão e eu com ele. Soltou-me para tentar libertar-se, mas Hernan atirou-o uma vez mais, arrastando-o pelo chão, até que o colocou aos seus pés. Então, cravou um joelho no chão e apertou a mão contra o peito do guardião. Jerome proferiu um tremendo alarido. — Vai pagar caro por isso, néscio guardião. — Não! — Gritei pondo-me em pé e me lançando contra ele. Consegui afastar Jerome, mas isso só serviu para que descontasse sua ira em mim. De um golpe, lançou-me do outro lado. Caí sobre os bancos com um estrondo enorme. Gemi de dor, certa de que tinha quebrado várias costelas. Tentei me incorporar, mas não consegui. Quando se voltou para meu amigo, este já tinha se posto de novo em pé. Hernan era um autêntico animal. Houve um pequeno instante no qual parecia que a velocidade e a superioridade física de Jerome poderiam contê-lo, mas o látego do grande predador se encarregou de que não fosse assim, e atingiu o guardião, jogando-o no chão. Ato contínuo, ele se virou para mim e me olhou como um animal sedento de sangue, enquanto se aproximava do lugar onde eu tinha caído.
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— Desfrutando do espetáculo, pequena ingrata? — Tentei me afastar dele. — Creio que esse guardião não foi uma boa influência, no fim das contas. — Afaste-se! — Balbuciei. Ele soltou uma risada cruel, ajoelhou-se ao meu lado e voltou a colocar a ponta da adaga no meu pescoço, deslizando-a até chegar ao meu peito. — Se fizesse pulsar seu coração agora. — Sussurrou. — O sangue chegaria ali e poria fim ao seu sofrimento. — Fez uma breve pausa e sorriu sobre mim, de modo que seu hálito penetrou em meu corpo, ardendo quase tanto quanto o sangue de Jerome em minhas veias. — A verdade é que você está à minha mercê, mas vou lhe dar a oportunidade de escolher. O que quer que eu faça? — Tentei vocalizar algo, mas foi impossível. — Comigo não se brinca, Lena. Eu sempre ganho. — Solucei. Ele levou a adaga à minha boca e selou meus lábios com ela. — Shhhh. Não, não chore. Você precisa ser forte. — Estendeu a mão e acariciou meu cabelo com fingido ar protetor. — Porque maus tempos virão. — Eu o olhei, sem conseguir dizer uma palavra. Só conseguia gemer de dor. — Você já teve o suficiente? — Afastou-se um pouco de mim e me percorreu com os olhos. — Sim, eu também acredito que sim. Vejamos... — Com delicadeza, afastou o tecido da ferida, deixando-a descoberta. Observou-me uma vez e aproximou o rosto dela, até cobri-la com os lábios. Senti como se estivesse puxando minha pele, mas pouco a pouco, a dor foi minguando e parecia que ia sumindo em uma bruma. — Não havia suficiente sangue para matá-la. — Disse quando terminou, afastando-se de mim. — Você vai ficar bem. Levantou-se, lançou um olhar ameaçador para Jerome e desapareceu atrás da porta. Assim que ele sumiu, joguei-me no chão e me arrastei com as poucas forças que me restavam até chegar junto ao guardião, que ainda jazia ferido no centro da sala. — Jerome? — Murmurei sem forças. — Jerome? Você está bem?
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— Vou ficar. — Ele respondeu, também com voz fraca. — Posso ajudar? Você precisa de algo? — Fique afastada desses grandes predadores e vai economizar sofrimento para mim. — Por que fez isso por mim? — Balbuciei. — Eu não ia ganhar seu apreço deixando que esse grande predador a matasse. — Obrigada! — Murmurei. — Não me agradeça. Perdemos no dois contra um, Lena. Somos um desastre. Ri ligeiramente e todo meu corpo se retorceu de dor. — Mesmo assim. — Inspirei com dificuldade. — O que vamos fazer agora? — Esperar que amanheça. Não posso sair à rua assim. — Ele ergueu um braço e rodeou meus ombros, de modo que minha cabeça pudesse descansar em seu peito. — Será melhor que durma. — Não quero voltar aqui. — Confessei com vontade de chorar. — É a coisa mais sensata que já ouvi você dizer. — Eu fui dizer algo, mas de repente, nós dois nos esticamos. Do campanário daquela igreja começaram a soar os sinos, mas de forma lenta e aterradora. — Merda! — Jerome sussurrou. — O que é isso? O que está havendo? — Balbuciei. — Não sei, mas não pode ser nada bom. Vamos. — Ficou em pé com dificuldade e me ajudou a me levantar. — Temos que ir embora daqui agora. Consegui me endireitar me segurando nele, mas nesse momento, as comportas se abriram de par em par. Do outro lado, vários rostos nos observavam com expressões aterradoras. Jerome se colocou na minha frente e obrigou-me a retroceder.
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— De onde eles saíram? — Perguntei assim que recuperei a voz. Meus joelhos tremiam. — Não tenho nem ideia. — Ele murmurou. — Sejam bem-vindos mais uma vez! — Hernan saudou atrás de nós. De repente, um braço me rodeou o pescoço e me puxou para trás, afastando-me de Jerome. — Lena! — Ele gritou. — Não se preocupe, nós vamos cuidar bem dela. — Reconheci imediatamente a voz e o perfume de quem me mantinha presa. Elora. Hernan olhou o grupo que se concentrava junto à entrada. Deviam ser mais de dez grandes predadores e nos contemplavam como se tivessem uma fome atroz. Ele os observou e depois Jerome, a título de sinal. Nesse momento, o grupo avançou para ele. — NÃO! — Gritei, tentando me desfazer de Elora. — CORRA! — O rosto de Jerome se decompôs em uma fração de segundo. Nem sequer lutando contra eles teria uma possibilidade. O grupo avançou, rodeou-o e o levou ante meus olhos incrédulos. Ele tentou lutar em vão, igual a mim. Os portões ressoaram com força assim que todos desapareceram. — Solte-o! — Gritei para Hernan. — ELE NÃO FEZ NADA! — Silêncio! — Procurou Elora com os olhos e lhe fez um sinal. Ela me soltou, mas antes que eu pudesse me reincorporar, Hernan me agarrou pelo cabelo, puxando-me para cima. Com um só movimento me plantou em frente ao painel de velas e apertou meu pescoço contra elas. A dor foi tão insuportável que não consegui evitar gritar, enquanto senti que minha pele estava queimando. Gritei com toda a força dos meus pulmões. Tentei me desfazer dele, bater nele, mas Hernan me apertava cada vez mais forte contra o fogo. — Creio que nunca lhe ensinaram como funciona tudo isto. — Disse-me ao ouvido, afastando-me
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das chamas com um puxão. — Mas, não tema, conheço muitas maneiras de demonstrar isso. — Atirou-me no chão com um forte golpe. Então, vi que tirava algo debaixo da roupa, parecia um estojo de veludo enrolado. Aproximou-se de um dos bancos mais próximos e o estendeu, fazendo reluzir todo tipo de artefatos afiados. — As pessoas vêm a este lugar para confessar seus pecados. — Ajoelhouse junto a mim. — Há algo pelo qual deva suplicar perdão? Algo do que sua alma queira libertar-se? — Não fiz nada! — Gaguejei. — Receio que essa não foi uma resposta satisfatória. — Seu rosto era aterrador. — Não é inteligente ter esta caçadora rondando o tempo todo por aqui — Interrompeu Lester, postado, de repente, junto a Elora. — Christian não vai deixar passar essa. — Ele nos ofereceu. — Ela alegou. — Há centenas de caçadores e humanos para torturar sob nossos pés. A última coisa que precisamos é de uma desagregação no grupo. — Hernan quer essa, de modo que economize seus comentários. — Defendeu. — O que tem esta caçadora? Você também está sentindo apreço pela vida dela agora? — Tocá-la só nos traz problemas. — E não a toque, também. — A voz de Hernan era dura. — O que há? — Christian perguntou de repente, entrando na igreja. — Ouvi os sinos. — Dispúnhamo-nos a realizar uma exterminação. — Elora anunciou enquanto me olhava, arqueando uma sobrancelha de forma zombeteira. — Ao que parece, entraram ratos na casa. — Christian cravou os olhos em mim de
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forma intensa e profunda e depois se sentou no banco mais próximo com tranquilidade. — Vão controlar aqueles grandes predadores lá de fora, não podemos chamar a atenção. — Christian ordenou. Elora e Lester abandonaram o lugar; Hernan passeava pela parte dianteira. Então, Christian entrelaçou as mãos sobre os joelhos, contemplou-me com serenidade e disse com voz séria: — Deve amar a dor mais do que qualquer outro caçador. — Levaram Jerome! — Exclamei. — Tem que ajudá-lo! — Não conheço nenhum Jerome. — Passou a mão pelos artefatos que o irmão tinha deixado no mesmo banco no qual ele estava sentado, analisando um com especial interesse. — É uma privilegiada, estas são as preferidas dele. Só as utiliza em ocasiões especiais. — Deixou-a de novo no lugar, com cuidado e respirou de forma pesada. — Não vou distraí-lo mais, vou deixar que continuem com o que estavam fazendo. — Aproximou-se e beijou minha testa. Nesse momento, aproveitei para me aferrar ao braço dele. — Ajude-me! — Pedi. — Por favor! — Você não devia ter vindo aqui. Não foi uma boa ideia. — Disse devagar. — Eu não queria vir. — Solucei. — Por favor, Christian, não me deixe com ele. — Tire a mão de mim, Lena. Soltou-se e se afastou. Estiquei o braço tentando me aferrar de novo a ele, mas não cheguei a alcançá-lo e ele tampouco se deteve. Continuou andando até subir a pequena escada que conduzia ao altar. Deu a volta e se sentou com tranquilidade na penumbra, em uma grande cadeira, de onde presidia tudo. Não parecia afetado, nem sequer se importava. Era como se apenas fosse o envoltório do Christian que eu tinha conhecido.
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—Ajude-me! — Supliquei de novo. — Christian! — Mas ele manteve-se impassível. Olhando-me de forma gelada, com os braços repousados na cadeira e os dedos entrelaçados. Mantinha o queixo erguido e me cravava os olhos de forma penetrante. Não havia piedade nos olhos dele. — EU ODEIO VOCÊ! — Gritei-lhe, incapaz de acreditar no que estava vendo. — Eu odeio você! Meu corpo inteiro começou a tremer enquanto sentia como ele me penetrava com os olhos desde aquela escuridão. Não ia me ajudar, não ia fazer nada mais do que observar e isso era pior que todo o resto. A constatação de que era verdade que não me amava e que eu tinha sido estúpida, como todos haviam dito, por acreditar nele. Então, escutei um som surdo e a seguir, Hernan Dubois cruzou voando o lugar, chocando-se contra a cruz suspensa sobre nossas cabeças e caindo sobre a fria rocha do altar. O grande crucifixo começou a oscilar perigosamente, e, um segundo depois, estendeu-se um pesado silêncio, interrompido apenas pelo chiado das correntes que o sustentavam e pelas pegadas lentas e compassadas de sapatos de salto. — De Cote. — Ele disse com ironia, ficando em pé. — Parece que teremos sangue depois de tudo. Seu cachorrinho estava resultando muito decepcionante. — Você cometeu um engano. — Lisange pronunciou com voz profunda. Mantinha os olhos cravados em Hernan. — Ainda não chegou o dia em que um grande predador tenha medo de um caçador. — Não está diante de um caçador, está diante de mim. — De Cote, grande casta de fracos e covardes, um grande orgulho para sua raça.
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Nesse momento, a cruz que oscilava sobre nossas cabeças caiu entre eles com um enorme estrondo. O golpe ressoou nos muros de pedra do lugar e levantou uma nuvem de pó cinzento, que os envolveu. — Isso era uma relíquia familiar! — Cantarolou. — A minha criadora não teria gostado. — Duvido que ela vá dizer algo a respeito. Assim que a atmosfera cinzenta começou a dissolver-se um pouco, percebi que Lisange cravava a afiada agulha de um dos saltos muito alto na velha madeira da cruz e avançava por ela até ficar a um palmo de distância dele. A altura de seus sapatos fazia com que os olhos de ambos ficassem no mesmo nível. Os olhares ardiam. Havia provocação, ódio, rancor, desafio e zombaria, nelas. Nem sequer tive tempo de perceber quem deu o primeiro golpe, porque, de repente, vi-me envolta pela luta mais brutal que jamais teria imaginado. Christian e Hernan, agora recuperado, rodearam Lisange e se lançaram sobre ela que nem dois lobos famintos. Brigaram com tochas, com madeiras, com candelabros, inclusive com os próprios corpos, destroçando tudo à sua passagem. — Deixe-o, De Cote. — Hernan burlou-se, ficando em pé, enquanto os cristais da vidraça contra a qual acabava de se chocar ainda caíam sobre ele. — Não se sente cansada? Os séculos já devem pesar sobre seus ombros. Lisange lhe lançou uma estante, mas ele se esquivou com facilidade assim que ela a jogou contra ele e o atirou no chão, torcendo-lhe um braço. O rangido de ossos quebrados chegou até meus ouvidos, causando-me uma horrível sensação. — Devo entender que é de bom tom entrar em lares alheios e arrasar tudo à sua passagem? — Christian se apressou contra ela, rodeou-lhe o pescoço com
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um braço e a lançou na direção oposta. Pela expressão de Lisange, supus que não o tinha percebido. — Eu lhe avisei que não voltasse a se aproximar de Lena! — Ela disse, ficando em pé no final da igreja. — Perdoe-me se não prestei muita atenção em você. Não tenho o costume de ouvir os de sua espécie. São muito pouco interessantes, exceto, talvez, quando gritam de dor. Lançou lhe uma cadeira, mas ela se esquivou, mandando-a de volta para ele. O golpe partiu um círio, que saiu voando até cair junto à cruz. Em poucos segundos a madeira começou a arder. Lisange se endireitou e se aproximou dele devagar. — Tenho que reconhecer que estava com saudade de você. — Disse. — Não tanto quanto eu de você, De Cote. Lisange sorriu enquanto avançava até ficar bem diante dele. — Ninguém lhe ensinou que não se deve dizer mentiras? Christian torceu um sorriso. — É provável que tenham se esquecido dessa lição. — Que descuido… — Ela zombou. Christian tentou acertá-la com um golpe, mas não conseguiu. A intensidade dos golpes era tal que tinham começado a se desprender do teto pequenos fragmentos de pedra cinzenta. Com alguns lances, o rastro de pó que caía em forma de cascata era constante, e as chamas já alcançavam um metro de altura. Um golpe de Lisange fez Christian cair junto ao fogo. A roupa dele começou a arder. Ele se levantou de um salto, arrancou a camisa, agarrou um dos bancos e o lançou contra Lisange. Ela bateu no banco, mudando a trajetória para outra vidraça, que se desfez em pedacinhos. O banco caiu com um tremendo estrondo e os cacos de vidro chegaram até meus pés. Corri, escorreguei
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nos escombros e caí, bem a tempo de evitar que uma imensa coluna caísse em cima de mim. — JÁ CHEGA! — Christian gritou, agarrando Lisange pelo pescoço. — Vamos terminar logo com isto, já estou começando a ficar cansado. — Vá em frente, sei que está querendo. — Ela respirou. — Acredita mesmo que teria alguma chance ao enfrentar um de nós? O que houve com você? Pensei que fosse mais sensata. — Não vai fazer nada, não vai acabar comigo. — Lisange riu. — O que a deixa tão segura? — Ainda não se atreveu a acabar comigo depois de todos estes anos. — Tente-me. — Ouvi-o sussurrar no ouvido dela. — Mas é o que estou fazendo. — Hernan não será tão complacente. — Não me preocupo com Hernan. — Resposta errada. — Interrompeu outro grande predador, e lançou um afiado aço que se cravou na perna de Lisange. Christian a soltou e ela cambaleou até que, finalmente, caiu no chão. Nesse momento, senti pânico, autêntico pânico de perdê-la e, em um rasgo de coragem, lancei-me contra Christian, aferrandome às costas dele e tentando afastá-lo. Ele me sacudiu de cima, jogando-me perto da porta de entrada, livrando-se do escasso obstáculo que eu representava para ele. Logo voltou o olhar para mim e eu recuei, assustada. De repente entendi que tinha se esquecido de Lisange e da luta que ele e Hernan mantinham com ela e que se dirigia para mim com passo decidido. Continuei recuando, engatinhando, sem saber para onde ir. Ele nem sequer se incomodava em correr, pois sabia tão bem quanto eu que estava encurralada. Eu jamais abandonaria Lisange ali.
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— Pare! — Pedi. — Christian… Pare! PARE! O rosto dele estava impassível. Teria preferido mil vezes uma careta de ira, de ferocidade, mas só o que havia era aquele rosto sereno e perigoso. Os olhos, emoldurados pelo cenho franzido, pareciam mais mortíferos do que nunca, e respirava forte, tanto que as aletas do nariz se dilatavam com violência. Consegui me endireitar e corri. Ziguezagueei entre os bancos, mas ele ia afastando-os enquanto avançava, sem nenhum tipo de dificuldade. — Christian! — Meu estômago se encolheu, meus músculos tremiam. — Pare! — Mas ele continuava avançando e jogando para ambos os lados os grandes bancos de madeira. Agarrou-me pelo pescoço e me ergueu contra as chamas que se elevavam no centro da igreja. — Não faça isso! — Balbuciei, tentando me livrar da mão dele e sentindo o calor das chamas acariciando meu corpo de forma aterradora. — Nunca devia ter aparecido nesta vida. Já está na hora de consertar este engano. — Odeio você! — Murmurei, sentindo meu coração rasgar. — Eu o odeio! Fechei os olhos com força, sem querer olhar para ele nem por um segundo a mais, aguardando que as chamas começassem a me devorar imediatamente, mas tal momento não chegou. Abri as pálpebras e tudo parou, enquanto algo dentro do meu peito se partia ao ver que seus olhos se empanavam de lágrimas, lágrimas de... Sangue. Senti tremer a mão dele contra o meu pescoço, as mandíbulas se apertando com tanta força que estavam a ponto de quebrar por si só. De repente, um grito dilacerador rasgou o peito dele. Um grito tão ensurdecedor que ressoou por cima do vento, do estrondo, da noite, e penetrou em cada célula do meu corpo justo no momento em que uma lágrima escapava-lhe dos olhos. Então,
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fechou-os com força e soltou-me ao lado do fogo. Recuou dois passos e deu a volta, afastando-se pelo corredor central. — Christian? — Balbuciei, ainda impactada. — Espere! — Pus-me em pé com dificuldade e o segui, mas ele já estava junto à entrada. Um segundo depois, desapareceu atrás dela. — Christian! — Gritei, correndo detrás dele. Saí e o procurei com o olhar. A brisa bateu no meu rosto e o silêncio me rodeou. Entreabri os olhos, procurando-o. A luz do fundo iluminava de forma tênue o lugar, mas não o suficiente para descobrir onde ele estava. Christian se fora. Escutei um barulho e voltei para dentro. Hernan e Lisange ainda brigavam na zona do altar. Corri para eles, segurando meu ferimento com força, na esperança de poder ajudá-la, mas quando consegui alcançá-los, vi que Lisange cravava algo no pescoço do grande predador. Hernan recuou, como se não pudesse acreditar que o tivessem ferido, e, antes que pudesse fazer algo mais, Lisange deu-lhe um pontapé tão forte que o fez cair para trás. Hernan se chocou contra a enorme vidraça da rosa grande que nascia do chão, desaparecendo do outro lado. Ao estrondo do golpe se seguiu uma pesada calma. Aproximei-me dela com cuidado. O ar da noite, que penetrava pelos cristais quebrados, fustigou meu rosto, varrendo meu cabelo dos ombros. A noite cheirava a terra molhada. A lua iluminava de forma tênue a escuridão do fundo do escarpado, mas não o suficiente para poder distinguir Hernan. — Ele está... Morto? — Murmurei. — Não. — Respondeu com voz seca. — Apenas de saco cheio. — Que Lisange se expressasse dessa maneira me chocou bastante, mas imaginei que se tratava da adrenalina da batalha. Tampouco queria comprovar. Algo me dizia que estava muito zangada comigo. — Você podia ter morrido esta noite, Lena. Comece
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a encarar essa existência com a seriedade que merece ou morreremos todos. — Deu a volta e se afastou para os portões, coxeando. — Sinto muito! — Sussurrei; sabia que ela me ouviria. Ela parou, virou-se e se aproximou de mim com passo firme, parou e, antes de dizer qualquer coisa, deu-me uma sonora bofetada. — Sou sua família e como tal, espero que tenha confiança suficiente para me dizer quando está metida em problemas. Maldita seja, Lena! Não se brinca com grandes predadores! — Sinto muito! — Repeti. — Sente? Essa é toda a desculpa? Por acaso vai me dizer também que não tinha nem ideia de que o guardião moribundo que encontramos lá fora é esse seu amigo? — Jerome? Ele está bem? — Reidar o levou, vai cuidar dele até que fique bem e possa vir e acabar com todos nós. — Ele não faria isso! — Confia em todas as criaturas, exceto em quem deve confiar! — Pegou uma pia de pedra cheia de água e derramou o conteúdo sobre as chamas. A fumaça começou a subir para o teto abobadado. — Eu a espero no carro.
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TERCEIRA PARTE Confissões
— O que Hernan queria com você? — Soltou por fim, assim que entrei no carro. — Não sei. — Respondi. — Leve-me até Jerome, por favor! Preciso saber se está bem. — Já lhe disse que está. Não é um bom momento para vê-lo. Reidar e ele precisam conversar sobre muitas coisas. — Quais? — Deve assegurar-se de que não vai nos delatar e averiguar quem é ele na realidade. — Jerome não vai nos trair. Ela inspirou fundo, tentando se tranquilizar. — Estávamos falando de você. Lena, preciso que me diga a verdade, toda. — Enfatizou — A verdade. É a primeira vez que se encontra com Hernan aqui? — Não. — Reconheci. — Mas o que lhe disse é verdade, não sei o que ele quer de mim. Vi-o pela primeira vez na noite em que Christian foi à Cidade. Foi ao meu quarto.
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— Para que? Mordi a língua por um segundo. — Queria me oferecer ajuda para… — Para que, Lena? — Apressou-me, impaciente. — Para me defender da Ordem. Disse que podia me ensinar como me proteger deles. — Em troca do que? — De nada. Assegurou-me que para ele seria divertido. — E você acreditou nele… — Sim. — Abaixei a cabeça. Ela ficou em silêncio durante um longo minuto. — Definitivamente, você ficou louca, Lena! — Soltou de repente. — Eu sei! — Aquela conversa me lembrava de Jerome. — No que estava pensando? Não pode cruzar com um grande predador sem se jogar nas garras dele? — Não quero voltar a passar pelo que aconteceu na casa dos Lavisier, ter que me sentar e olhar as pessoas que amo arriscarem a vida por mim. Não tem nem ideia do que foi para mim, ficar sem saber o que tinha acontecido com vocês! Ou quando Christian foi procurá-los! Eu tive que ficar aqui, sem saber se continuavam vivos ou não, não consegue entender isso? — Claro que entendo, mas isto é para o seu bem, você é muito jovem. Pensa que Liam ou eu não levamos séculos para aprender a lutar como agora? — Talvez eu não tenha séculos pela frente para aprender. — Isso é ridículo! — É? Um profundo silêncio se instalou entre nós, até que ela, finalmente, soltou o ar e se deu por vencida.
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— Hernan lhe fez algo? Não podia lhe dizer nada sobre o realismo ou o sobre o sangue de guardião, e muito menos depois daquela briga e da bofetada. — Lutar contra ele é muito real. Mas estou bem. Não acabou comigo, então pode ficar tranquila. — Não se trata disso, Lena. Você não pode se expor dessa maneira. O que me enfurece é que tenho certeza de que tudo isso é pelo Christian, e ele já lhe causou danos suficiente. — Em grande parte sim. — Abaixei a cabeça, já não me sentia com forças para olhar nos olhos dela. — Mas, também, por tudo o que lhe contei. — Por que continua se arriscando por ele? — Valentine viu que ele ia morrer por minha causa. Pensei que seria por me defender e não podia permitir isso. — Não queria lhe contar que tinha descoberto que Jerome era um membro da Ordem de Alfeo que tinha se proposto acabar com a vida de Christian. — Suponho que só tentava fazer com que a dor que sinto no coração fosse eclipsada por outra, mais física. — Essa é a filosofia dos grandes predadores. — Lamentou-se. — Tentam se desfazer da dor que sentem machucando outras pessoas, embora, no seu caso, seja a você mesma. — Obrigou-me a olhá-la. — Não é seguro fazer acordos com eles, nem aceitar nenhum tipo de ajuda da parte deles. Nunca dão nada de forma altruísta. — Não me importa morrer por ele, mas não poderia suportar se lhe acontecesse algo, e menos ainda por minha culpa. Ele chorou sangue, Lisange! Ele não quer me machucar! Lisange me olhou, totalmente confusa. — Mesmo que isso seja verdade. — Hesitou. — Não pode perdoá-lo por tudo o que ele lhe fizer. — A voz agora foi suave.
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— Você está fazendo isso com Reidar. — Perdoar é uma palavra muito grande. — O que quer dizer? — Nem perdão nem esquecimento — A voz soou dura. — Somos caçadores. Não há lugar para esses sentimentos em nosso coração. — Tem sim. Você teve que senti-lo com ele. — Eu nem sequer me lembro de como se ama alguém, Lena! — Inalou ar pelo nariz e olhou para frente enquanto ligava o motor do carro. — Vamos voltar para casa, já é tarde. — Isso... Demolidora. — Murmurei. A ideia de que alguém tivesse o coração tão seco para ser incapaz de sentir o que eu sentia era desanimador. — Não há dúvida de que somos a espécie mais retorcida, irresponsável e masoquista e mesmo assim, a mais sensata ao não poder sentir essas emoções. Talvez algum dia venha a se arrepender. — Talvez. — Deixei o corpo cair para trás, apoiando as costas contra o assento. — Você vai se esquecer dele. Todos nós esquecemos. Por mais que Lisange pudesse me dizer, sabia perfeitamente que havia tantas possibilidades de que o esquecesse como de que tudo aquilo não passasse de um sonho. Mas não disse nada em voz alta. No dia seguinte procurei Jerome por toda parte. Esperava que Reidar estivesse cuidando dele na casa, mas logo deduzi que não teria sido sensato, tendo Valentine sob o mesmo teto. Senti pânico ao pensar o quanto ele devia estar ruim, inclusive me senti estúpida por estar na aula. De fato, eu teria ido se não tivesse aparecido pelo corredor, com andar tranquilo, a última pessoa no mundo a quem eu esperava ver ali.
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Dirigi-me para ele com a intenção de alcançá-lo, peguei-o pelo braço e o arrastei até um canto. — O que pensa que está fazendo? — Você chorou. — Soltei, encarando-o. — Chorou! Não se esqueceu do que me contou. Você não quer me matar! — Poderia ter a gentileza de se explicar? — Disse com voz gelada. — As adivinhações não são o meu forte. — Sabe muito bem a que me refiro! — Exclamei. — Tenta fazer com que me afaste de você porque acredita que pode me machucar. — Claro que posso lhe machucar. — Sorriu para si mesmo. — Eu lhe assegurei que vou acabar com você e é isso que vou fazer. — Então, por que não acabou ainda? — Sua morte me pertence. — Recordou-me. — Se alguém tem que matála, serei eu e quando eu disser. — Não, já não mais. Não penso em continuar fingindo que realizamos aquele ridículo trato. Foi uma estupidez. — Os grandes predadores não brincam. — A voz dele soou perigosa. — Ah, não? E o que pensa que esteve fazendo comigo todo esse tempo? — Conhecê-la era parte do trato. — Lembrou-me. Afastei-me dele, magoada. — Nunca lhe pedi que me amasse, nem sequer lhe dei motivos para me amar. Só você é responsável pelos seus sentimentos. — Injetou sangue de guardião em si mesmo! — Recordei-lhe pela enésima vez. — Você estava disposto a morrer por mim! E a gente não deixa de amar alguém da noite para o dia. — Às vezes, o amor não é suficiente. — Ficou em silêncio durante um instante, talvez para que a frase terminasse de me destruir definitivamente. — Acredite ou não, faço isto por nós dois.
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Ele se virou para sair dali. Senti que minha respiração acelerava. Apertei os lábios com força e voltei a encará-lo. — Não, é por você. — Ele se virou de novo para mim. — Não sou suficiente para um grande predador, não é mesmo? — Avançou para mim sem dizer nada. — Não foi assim desde o começo? Não é assim com todos os outros? Sei que pensa assim. — Não tenho nenhum tipo de respeito pela sua vida, é verdade, mas nunca a considerei uma a mais. Espero que, pelo menos, tenha tido consciência disso. — Quero entender você... — Um grande predador não precisa de desculpa para matar. — Afastouse de mim. — Acredite-me, isto é o melhor que podia nos acontecer. — Mas tem! Sei que tem! E eu preciso saber qual é! — Ele negou com a cabeça. — Pare de decidir por mim! Se vai me matar, pelo menos tenha a coragem de me informar o que é que fiz de errado! — Você não fez nada de mal. — POIS ENTÃO NÃO ENTENDO! — Exclamei desesperada. Ele ficou um instante em silêncio. O eco do meu grito ainda retumbava nos meus ouvidos. — Quer um motivo? — Perguntou, claramente zangado, aproximando-se de novo de mim. — É isso que você quer? — Seu coração pulsava com força, mais acelerado do que o normal. — É isso que eu quero. — Balbuciei. Ele ficou em silêncio, olhando-me nos olhos. Eu só conseguia ouvir sua respiração agitada e o coração trotando veloz no interior do seu corpo, com tanta força que parecia que fosse saltar sobre meu próprio peito. — Você está me matando. — Sussurrou. — É isso o que queria ouvir?
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— Isso é impossível… Eu nunca faria nada que pudesse lhe prejudicar. — Pensa que eu mentiria para você? — Pegou meus ombros com força. — Tolero a dor, Lena, tolero-a muito bem, mas ninguém me treinou para suportar estas pulsações que você provoca em mim, e não sei por quanto tempo mais vou conseguir aguentar. — Pretende proteger sua vida... — Soltei-me dele. — Isso… Eu consigo entender. Ele desviou o olhar para as mãos que rodeavam meus braços: minha pele tremia com seu toque. — Veja, nem sequer sou capaz de lhe tocar. — Afastou-as devagar. — Que esperança há para nós? Isto é o mais sensato. — Pelo menos me diga se ainda me ama. — Balbuciei angustiada, enquanto algo abria caminho em meu coração. — Pode pensar o que quiser, mas não há nada que possa fazer. — A voz agora tinha um tom torturado. — Vai acontecer, mais cedo ou mais tarde. Um de nós dois vai terminar matando o outro. Essa é a nossa maldição. — Você mesmo disse que… — Esqueça-se de tudo o que lhe disse até agora, Lena! Aquelas palavras não tinham valor nenhum! — Tinham valor para mim! — Murmurei. — Acabar com sua vida é o melhor que posso fazer por você. — Pode escolher o que é melhor para você, mas não para mim. A decisão não é sua. — Que sentido há em prolongar a agonia? — Ele baixou o olhar, abatido. — Não há nada que possa fazer para mudar minha decisão. — Mas eu não quero que mude.
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— Nem eu que você lute por isso. Afaste-se e limite-se a aceitar o pouco tempo que vou lhe conceder, ou não poderei mostrar piedade para com você. — Baixou o tom de voz. — Não quero que me obrigue a lhe causar mais danos. — Eu nunca quis lhe machucar. — Murmurei. — Não sou quem você pensa que sou. — Disse por fim. — Não há bondade nem clemência no meu coração. Matar é o meu ofício, Lena e nem você nem ninguém pode mudar isso. Não estou neste mundo para amar você e tampouco quero tentar. — Nesse momento, soou o sinal. — Você tem que ir para a sala de aula. — Anunciou. — Não se esforce para acabar comigo, encontrarei alguém que o faça por você. — Desviei o olhar. De repente eu me sentia tão vazia como a casca de uma fruta velha e podre à qual abandonaram no meio de lugar nenhum. — Espero não voltar a vê-lo nunca mais! — Peguei a mochila, inspirei fundo e sem olhá-lo de novo, saí dali. Eu o perdera e desta vez, para sempre. Eu o matava… Aí estava a razão que me ocultava Hernan, aí estava o que tinha visto Valentine.
Aqueles
batimentos do coração eram os causadores de toda a loucura e eu não podia fazer nada para evitar. Eu era a razão do sofrimento dele. Eu e somente eu, estava acabando com ele. Ao sair do corredor, encontrei Jerome a poucos metros de distância, seguido por Reidar. Uma parte de mim saltou dentro do peito, mas mudei de direção de forma automática. Agora sabia que ele estava bem, mas não podia falar com ele. Não tinha forças. Eu só queria chorar e gritar, mas ele me viu, não havia nenhuma dúvida disso. — Lena! — Exclamou enquanto o ouvia correr para mim. — Espere! — Fico contente que esteja bem, mas este não é um bom momento. — Lena, você precisa me ouvir.
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— NÃO! — Soltei de repente, voltando-me para ele. — ESTOU FARTA! Farta de não poder sentir nada por ninguém porque irremediavelmente isso acaba em morte! Não posso ficar com Christian porque posso matá-lo, não posso estar com você porque pode ser que você acabe comigo ou com ele. ODEIO ESTE MUNDO!
ODEIO
TER
ACABADO
AQUI!
DESEJARIA
NÃO
HAVER
DESPERTADO NUNCA NESTE LUGAR! — Ouça-me! — ESTOU FARTA DE OUVIR! O que passa comigo? O que se passa com meus sentimentos? Ninguém leva em conta que estar longe dele está me matando por dentro. — Minha voz se alquebrou. — Portanto, não me peça para ouvi-lo porque não consigo suportar mais nada. — Lena… — Absolutamente nada mais, Jerome. — Pois deve me ouvir! — Soltou. — Tem que aguentar me ouvir, porque lá fora há um grande número de seres dispostos a acabar com você! Por acaso o que aconteceu não a afetou em nada? Lena, nenhum daqueles grandes predadores hesitará em nos matar a qualquer momento. — Provavelmente chegou a hora para que o façam. Sei que eu não deveria estar aqui e estou pagando caro por isso, então, se isto vai pôr fim a tudo… Vá em frente! Já não quero mais lutar. Nego-me! Avise à Ordem. Diga-lhes onde estou. Já não tenho mais forças. — Não acredito. — Puxou-me pelos ombros. — Pois devia, Jerome. — Afastei as mãos dele de mim e mordi o lábio. — Eu não mentiria para você. A parte irracional do meu corpo continua considerando-o meu amigo. — A parte irracional sempre preponderou a racional, no seu caso, assim que suponho que isso seja bom. — Procurou meus olhos com o olhar e sorriu. —
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Ei! Estou aqui, Lena. Você não me perdeu. — Abraçou-me e eu pousei a testa contra seu ombro. Fiquei ali, dócil, sem forças, escutando seu coração; muito diferente de qualquer outro que tivesse escutado. — Tudo vai ficar bem assim que tenhamos nos livrado daquele grande predador. Abri os olhos de repente, e me afastei dele. — Não se aproxime dele. — Adverti. — Você continua querendo protegê-lo, mesmo depois do que aconteceu? Ele lhe fez muito mal, Lena, não merece sua compaixão, nem sua proteção. —Afaste-se de nós! — Adverti. — Não há nenhum “nós”. — Vá embora! — Ele não a merece! — Gritou enquanto eu fugia dele. Cheguei a casa como um furacão. Meu peito ardia, a cabeça queria explodir. Queria gritar até ficar sem voz, arrancar a pele em tiras, se isso conseguisse me aliviar. Dirigi-me às escadas, disposta a me refugiar no quarto, mas um sussurro me deteve no meio do caminho. Virei-me e olhei em volta. Eram duas vozes, que pareciam provir da pequena peça que Gaelle utilizava para armazenar mantimentos. Aproximei-me e agucei o ouvido. — Amei-o desde o primeiro instante em que o vi. — Sussurrou uma. — Durante todos os dias da minha vida e da minha morte. — Você me deixou morrer. — Sussurrou a outra. Era Lisange, eu não tinha nenhuma dúvida disso. — E aceitei meu castigo durante todos estes séculos. — Ele continuou. Devia ser Reidar. — Não teve um dia que eu não tenha me arrependido. A ambição pode ter tomado conta de mim naquele momento, mas eu me puni, e, por alguma razão, minhas preces devem ter sido ouvidas, porque, agora, pela primeira vez, há um “sempre” para nós.
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— Já não sou a garota que você conheceu, fiz muitas coisas. — Não piores dos que as que eu fiz para você. — Isso você não sabe. — Não me importa. Passaram-se séculos, mas não deixei de amá-la. — Não há amor neste mundo, e menos ainda entre você e mim. — Tem amor sim, sempre teve, você só precisa se lembrar disso. Nem sequer a morte pode apagar esses sentimentos. — Isso soa bem, mas não é a mesma coisa. — Ela alegou. — Foram três séculos, Reidar. Eu tinha um bom coração e me transformei... Transformei-me em algo horrível. — Afligi-me, nunca tinha escutado Lisange falar assim. Sempre tinha pensado que ela adorava ser o que era. — Deixe-me lhe mostrar isso. Lisange inspirou de forma lenta e profunda. — Reidar... — Parou em seco. Eu estava grudada à porta, escutando. Tinha certeza de que Lisange tinha percebido minha presença, porque eu a ouvi se levantar. Senti vergonha de que ela pudesse saber que eu tinha escutado aquela conversa tão íntima entre os dois, então, antes que ela pudesse me descobrir, afastei-me correndo em direção ao meu quarto.
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Palavras maiores
A pressão no meu peito estava ficando insuportável. A dor no coração tinha aumentado muito mais do que jamais teria imaginado. De alguma maneira, de repente, tudo tinha feito sentido: as predições de Helga, as visões de Valentine, inclusive meus próprios pesadelos. Justamente ao me lembrar do pálido rosto inerte, sem vida, e os olhos apagados e vazios, tomei a decisão mais difícil que jamais pensei que teria que encarar e por alguma extraordinária razão, a pressão que sentia se desvaneceu um pouco. Como se estivesse me indicando que isso era o correto, como se me felicitasse. Um dos dois ia ter que ceder e no fundo, eu me alegrava de que não seria ele. Eu não poderia viver com a culpa, então, esta era a opção mais simples. Era curioso que tudo fosse terminar igual ao começo: comigo lhe pedindo que fizesse o que supostamente devia ser feito. Suponho que, de um sinistro e perturbado ponto de vista, podia considerar-se até bonito. Por algum motivo, a possibilidade de voltar a morrer tinha sido uma constante na minha existência; Christian, a Ordem, os guardiões, os grandes predadores. Ainda podia me lembrar de como me sentira, não fazia muito tempo, quando tinha decidido abandonar os De Cote para protegê-los. Esse tinha sido meu único ato heroico, mas Christian o fizera fracassar. Entretanto, embora agora tivesse o mesmo resultado, o que me movia
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não era a coragem, mas a covardia e nem Christian, nem Liam, nem Lisange me deteriam. Decidi sair sem dizer nada a ninguém. Passei diante de Lisange e Reidar, que conversavam escondidos no esconderijo e na cozinha vi Gareth e Gaelle, tentando decifrar o funcionamento de uma batedeira elétrica. Na porta estava Valentine, com as mãos nas costas, balançando-se ligeiramente de um lado para outro. Mediu com a mão o trinco e o fez girar, abrindo a porta para mim. Então, sorriu com um enorme, sincero, precioso e infantil sorriso. Não havia nem o mais leve rastro da menina que havia conhecido até aquele dia. Sem dúvida tinha visto o que ia acontecer. Não corri como estava acostumada a fazer quando tinha medo. Ao invés, caminhei. Não posso dizer se estava assustada ou não. Imagino que sim, mas ainda não havia assimilado minha decisão, nem as consequências, nem a forma, porque não valiam de nada. Só lamentava não ter tornado a ver Liam e o ódio que Lisange sentiria por mim. Quando cheguei, a porta estava aberta. Entrei e o vi ali, tranquilo, apoiado contra o reservatório de água das velas, contemplando o fogo apagado. Era como se ele estivesse consciente das minhas intenções, como se estivesse me esperando, porque, assim que pus um pé dentro, virou-se para mim devagar e me olhou. Pensei um pouco uma última vez e inspirei, puxando o ar com força. — Não quero prolongar sua agonia. — Disse, fingindo força — E tampouco quero que prolongue a minha, portanto, daqui para frente, faça com que eu o odeie. — Já disse que eu nunca faria isso. — Lembrou-me de forma fria. — Isso já não importa mais. Confio nessa experiência que diz ter. — É a segunda vez que me pede que lhe tire a vida. — Comentou.
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— E você ainda não me atendeu. — As paredes devolviam minha voz angustiada. — Estou cansada. Sabe o que tem que fazer, então, simplesmente faça. — Você não quer isso. Por que está aqui? — Porque isto é exatamente o que precisa e apesar de tudo, amo você! É o que me pediu durante todo este tempo. — Ergui o olhar, hesitante, até cruzar com seus olhos. — Não posso dizer que adoro esta vida, mas você deu um sentido a tudo isto. Você... — Enfatizei. — Mas vou perdê-lo, tanto faz se vivo ou se morro. — Inspirei fundo. — Não posso suportar a ideia de lhe machucar e enquanto eu viver, você continuará sofrendo. — Você pensa que para mim é fácil. — Não. Eu entendo. — Defendi-me. — Na realidade, não tem nem a menor ideia. — Já estou cansada de tudo isso. Devemos parar de uma vez. — Não será a única a morrer esta tarde, Lena. Perderei tudo o que me resta de alma com você. — Mas assim você vai deixar de ser fraco. Não era isso o que o preocupava? Por acaso importa? — Perguntei, observando-o. — Não vou fazer com que me odeie. Se não o fizer agora, sabendo o que vai acontecer a seguir, não serei capaz de conseguir. Sorri com amargura. — Sempre disse que havia um lado masoquista muito desenvolvido em mim. — Você está brincando com a própria morte? — Não consigo chorar e é tarde para desatar a correr, portanto, que outra coisa eu posso fazer? — Está com medo?
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— Estou aterrorizada. — Reconheci, rindo e olhando para o outro lado. — Não tenho medo de você, mas da situação. — Hesitei. — Da dor, da incerteza por não saber como você vai fazer… — Devo lhe arrancar o coração. — Soltou. Na realidade, Valentine já me havia revelado a maneira, mas confiava que isso fosse, pelo menos, negociável. — Pensei… Pensei que usaria os olhos. — Isso seria mil vezes pior. Você iria agonizar. — Apertou os lábios com força durante um segundo e acrescentou: — Isto vai ser rápido. — Tirou da calça uma adaga. — Talvez prefira se sentar. — Propôs. — Estou bem assim. — Minhas mãos tremiam, os joelhos afrouxavam e um intenso enjoo se apoderou de mim, mas preferia ficar assim e ver os olhos dele pela última vez. — De acordo. Aferrou com força o aço e lentamente, aproximou a afiada lâmina da minha pele. Então, todo meu corpo começou a tremer de forma descontrolada. Minha respiração ficou irregular e o peito ardia. Olhei-o. O rosto dele estava aterrador. Teria desejado que, pelo menos, fosse seu incrível sorriso minha última lembrança dele, mas fazia tanto tempo desde a última vez, que mal me lembrava dele. Senti a frieza do metal contra minha pele. Christian apertava a mandíbula com força, a veia da têmpora pulsava com rapidez. Parecia muito concentrado e inseguro. Baixei os olhos para o meu peito e o vi parado ali. A mão dele tremia quase tanto quanto o meu corpo. Os dedos dele giravam em torno do cabo, tentando encontrar a melhor forma de empunhá-lo, ou, talvez, a menos dolorosa. — Este é nosso último momento juntos. — Murmurei, sem saber por quê. — Suponho que sim. — Ergueu os olhos para os meus.
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— Posso fazer um pedido? — Perguntei. Ele me contemplou confuso. — Abrace-me. — Ele ficou imóvel. Eu fechei os olhos porque era incapaz de olhá-lo. — Por favor! — Esperei vários segundos, até que, por fim, notei seu corpo rodeando o meu. Senti tantas coisas ao mesmo tempo, tantas emoções que me sobressaltavam de forma entristecedora… Que, por um momento, pareceu valer a pena. — Você nem sequer me beijou. — Sussurrei. — Há centenas de coisas que teria desejado compartilhar com você, Lena, mas não é isso o que freia minha mão. — Respirou fundo e se concentrou nos meus olhos de forma tão profunda que estremeci. — Eu lhe disse que morreria por você e juro que é verdade, mas não posso fazer isso. Não posso morrer. — Não estou pedindo que morra por mim. Nenhum grande predador faria isso por um caçador. — É isso que acredita, Lena? Você pensa mesmo que tudo isto tem algo a ver com que minha vida valha mais que a sua? — Não é isso o que sempre se interpôs entre nós? — É isso que você pensa? — Parecia surpreso. — Diga-me, o que seria de você se me acontecesse algo? O que aconteceria com você se eu arrancasse meu próprio coração para não matá-la? — Disse, apertando muito os dentes. — Em que tipo de criatura você se transformaria? Hã? — Sacudiu-me. — Você já parou para pensar nisso? Pensa mesmo que vou permitir que você se corrompa dessa maneira? Que se transforme em... Algo como eu? — Hesitou ao terminar a frase, parecia desesperado. — Então eu tenho razão… — Sussurrei, assombrada e assustada pela minha descoberta. Estava perdida em seus olhos, na dor que destilavam, e algo dentro de mim se comoveu. — Você não quer me matar… — Não tem nem ideia. — Repetiu.
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— Pensa que não? Como você pensa que foram estes últimos meses, Christian? Chegou, entregou-me à sua família como se eu não valesse nada, tentou me matar sem me dar nenhum motivo! — Explodi. — Pensa que quero isto? Pensa que quero que me mate? — Minha voz se alquebrou. — POIS NÃO QUERO! NÃO QUERO MORRER! Mas não aguento mais! Não posso! Eu me odeio por amar você, odeio o sol por levantar-se a cada dia. Mas não sou capaz de odiar você! E não quero continuar sofrendo! Portanto, mate-me e pelo menos, desfrute ao fazê-lo! — POR QUE VOCÊ NÃO CONSEGUE ENTENDER? — Agora foi ele quem explodiu. — Estou tentando proteger seu coração! Não entende isso, Lena? Você significou tudo para mim, mas se devo escolher entre tê-la e deixar que a destrua, ou perdê-la e lhe dar a possibilidade de contemplar uma nova vida, escolho perdê-la! Tenho que escolher isso. Olhei-o confusa, incapaz de traduzir aquela adivinhação. — Essa decisão não é sua. — Respondi. Tremia ainda mais, mas já não era de medo. — O que sinto por você também a coloca em perigo, porque, se eu não sentisse nada, já teria acabado com você. Minha fúria aumentou. — Por que você se empenha em destruir cada pequeno instante de felicidade que poderíamos ter? — Aproximei-me dele, encarando-o. Sentia meu sangue inerte ferver sob a pele. — Por que não podíamos tão somente tentar fazer com que isto valesse a pena? Se nós dois vamos morrer de um modo ou de outro, pelo menos aproveitemos o que nos resta. — Eu lhe disse essas palavras faz um tempo. Muitas coisas mudaram depois disso. Não nasci para ser feliz. — Por acaso eu tampouco?
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— Não comigo, eu só vou conseguir destruir você. — Está me destruindo agora! — Exclamei com repentina segurança nas palavras. — Você já destroçou meu coração! O que mais pode fazer? — Muito mais, muitíssimo mais. Tudo o que você não sabe. — POIS ENTÃO FAÇA! — Gritei, batendo no peito dele com os punhos fechados. — SEJA O TEM QUE SER! E me mate! — ACREDITA MESMO QUE SOU ASSIM? PENSA MESMO QUE EU DISSE ANTES AS PALAVRAS QUE DEDIQUEI A VOCÊ TODO ESTE TEMPO? Pareço um néscio, porque quando falo do que sinto por você, sou incapaz de pensar! As palavras vêm aos meus lábios de algum lugar que não consigo reconhecer! SOU UM GRANDE PREDADOR, LENA! A ÚLTIMA CRIATURA DA QUAL O MUNDO ESPERARIA OUVIR ALGO SEMELHANTE, MAS POR VOCÊ, LENA, POR VOCÊ EU ME HUMILHO, E FAÇO MUITO MAIS! — Olhou-me de forma intensa e dolorida. — Se tolas palavras de amor é tudo o que posso lhe dar. — A voz soava torturada. — Então, puxe-as de mim tantas quantas quiser. Pegue-as e me deixe beijá-la. — Não tive tempo de reagir. Ele deixou cair a adaga no chão, pegou meu rosto entre as mãos e apertou os lábios contra os meus de forma urgente. Afastou-os e juntou nossas testas, ofegando. Seu hálito penetrou de tal forma no meu corpo que minhas pernas se dobraram. Christian me pegou rapidamente pela cintura antes que eu me desse conta, e ambos ficamos de joelhos no chão. — Arranco meu próprio coração antes de lhe machucar de novo, eu juro! — Sussurrou, apertando muito a mandíbula. — Vou me afastar antes que tenha que fazê-lo — Respondi, confusa pela reação dele. Olhei-o fixamente, como há meses não o fazia, e meus olhos arderam uma vez mais. Antes que eu pudesse fazer algo para evitar, vi-me soluçando contra
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seu peito. Ele me embalou nos braรงos e assim, aquela eterna noite deu passagem a um novo dia.
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Normalidade?
Christian tinha retornado, sim. Supunha-se que tudo voltaria a ser como antes, mas a realidade era muito diferente. O que tinha acontecido durante os últimos meses ainda pairava sobre nós, e sua sombra impedia que conseguíssemos eliminar a distância que se criou entre nós. Ele se sentia culpado, via isso constantemente no rosto dele e me doía, mas era incapaz de consolá-lo. Não conseguia evitar ter certo receio, medo dele... Inclusive seu toque já não era agradável. Tentava não me afastar dele com medo de feri-lo, mas punha tanta distância entre nós quanto podia, na esperança de que ele captasse a indireta. Ele tampouco fez nenhuma tentativa de aproximar-se de mim. Não posso dizer que essa situação era pior do que a anterior, mas era mais desconcertante e incômoda, porque nenhum de nós sabia como agir. Levaria muito tempo para superar o que tinha acontecido, embora entendesse as razões pelas quais tinha feito aquilo. Ninguém pode voltar ao normal da noite para o dia depois de haver sentido o pânico que eu tinha experimentado e imaginava que ele tampouco podia ignorar tão facilmente as razões que o tinham levado a isso, ou, pelo menos, assim eu acreditava. — O que está fazendo aqui? — Perguntou, sentando-se ao meu lado, a uma distância prudentemente premeditada. Eu tinha saído para o descampado, para tentar tomar um pouco o ar.
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— Você se lembra de que me disse que não queria desentranhar o universo? Acabo de decidir que eu sim, eu quero; você é minha incógnita indecifrável. — E o que descobriu? — Perguntou olhando o horizonte. A brisa despenteava lhe a franja com suavidade. Voltei a levantar os olhos para o céu. — Até agora, nada. — Receio que uma eternidade não seja suficiente para conseguir. — Isso depende do quanto dure. — Nem com todo o tempo do mundo, Lena. Seria como tentar nos analisarmos a nós mesmos. Vivemos em um contexto vazio de todo sentido, causamos admiração; os humanos, quando nos veem, sentem-se insignificantes. Somos inalcançáveis, distantes de tudo o que nos rodeia, evoluímos com soberana lentidão enquanto vemos que o mundo continua girando. — Inclinou o rosto para mim. — E ninguém procura dentro de nós. Só nos admiram de longe. — Para quem não se interessa pelo assunto, você pensou muito nisso. — Apontei. — Nunca disse que não me interessava, apenas que não queria resolver o quebra-cabeça. Mas somos muito parecidos. Bolas de gás, corpos putrefatos... No final somos a mesma coisa: defeitos, peças de decoração em uma natureza mais preocupada com a ornamentação do que com a utilidade. Virei-me para ele com interesse. — Você me desconcerta. O Christian que conheço nunca se definiria como um “defeito”. — Um grande predador também tem o direito de ter um dia ruim. — Suspirou voltando a olhar para frente. — Não é fácil ser eu ultimamente. — Nem eu. — Ri de forma amarga.
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— Sim, não sei como você aguenta. Quando isto tudo acabar, lembre-me de felicitá-la. — O tom não foi jovial, nem sequer estava tentando ser engraçado. — O que aconteceu? — Perguntei sem mais. Fazia meses que queria saber. — O que aconteceu em La Ciudad para que mudasse assim? Seu rosto escureceu. — Nenhum dos dois está preparado para essa resposta. Não ainda. — Mas eu mereço saber, não pensa assim? — Insisti. — Não agora. Acredite-me, ou isso voltará a criar um muro entre nós dois. Christian e seus segredos... Nunca tinham me importado até então. — Não vou poder esquecer isso. — Confessei, inspirando fundo. Ele voltou a centrar-se em mim. — Não consigo esquecer o medo. Quero você, mas quando o olho nos olhos, uma parte muito grande de mim sente pânico. — Entendo. — Acredito que não estava consciente de que tinha chegado a ter medo de você de verdade, estava tão concentrada em entendê-lo, em tentar recuperá-lo… É curioso que, mesmo se preocupando com o meu coração, não tivesse nenhum problema em rompê-lo. Ele ficou em silêncio por um instante. Não sabia se tinha se zangado ou não. — Nunca imaginei que você diria algo tão duro, mas tem razão. Não sou um herói, Lena... Torturei durante todos estes meses mais dos que jamais poderia me lembrar, só para conseguir esquecer seus olhos no instante em que lhe machucava. — Esticou um braço e com cautela, pegou minha mão. — Não sinto respeito pelo resto das pessoas, não consigo entender por que razão algumas pessoas sentem necessidade de salvar o mundo. Eu só quero salvar você. Mas protegê-la de mim é muito complicado, muito destrutivo e tortuoso. Não quero que me perdoe. Você sabe que não sou bom para você, não sou o que
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você precisa e me aterroriza corrompê-la, mas é a última parte que ainda conservo da minha alma e ao que parece, não posso perdê-la. — Apertou meus dedos contra a boca, fechando os olhos com força. — Não posso jurar felicidade a você, mas sim, que tudo que tenho feito desde o momento em que a vi pela primeira vez nesta odiosa vida foi para protegê-la. É a única coisa que preciso que saiba. Se quiser que eu desapareça, vou entender. — Você é tudo para mim, mas não se dá conta disso. — Você pensa que me ama. — Abriu os olhos e embalou minha mão entre as dele. — Não vou discutir isso com você porque ainda é muito humana. Mas eu voltei para prejudicá-la, embora lhe assegure que estes meses foram um calvário. Senti na própria carne a dor da tortura. Nunca tinha ficado tão enfurecido com alguém quanto comigo mesmo, quando devia conseguir que me odiasse. — Mas não contou comigo, só tomou uma decisão. — Resisti. — Por você, Lena. Porque, se minha alma é o preço que devo pagar para lhe dar a possibilidade de encontrar a paz, aceito o trato sem vacilar. Nunca lhe causaria danos se não acreditasse que dessa maneira poderia salvá-la. — Creio que é a coisa mais linda que já me disse. — Sorri. — Terrível, mas maravilhoso. — Suspirei. — Suponho que este tipo de conversa é uma daquelas coisas que fazem desta relação algo completamente antinatural. Ele ergueu a mão e acariciou minha bochecha com cuidado. — Passaria com você até o último segundo da eternidade. Até o último segundo antes que suponha ser um risco para o seu coração. De repente vi que seus olhos se desviaram para a estrada. Segui a direção do olhar dele e descobri um reluzente veículo negro aproximando-se a grande velocidade. — Aquele não é o seu carro? — Perguntei confusa.
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— É. — Respondeu ele, ficando em pé. — E o que está fazendo aqui? Ambos sabíamos que esse não era um comentário despreocupado. A ameaça de Hernan pulsava na minha memória com força e a julgar pela forma como Christian franzia o cenho, apostava como ele também sabia que isso não era nada bom — Lena, volte para casa. Christian não me deu opção. Obrigou-me a entrar e desapareceu. Esperei, inclusive voltei a sair, mas ele já não estava. Passei o resto do dia com Lisange, certa de que ela se perguntava o motivo pelo qual meu estado de ânimo tinha melhorado até o ponto de querer acompanhá-la para comprar algumas roupas para o centro onde ela ajudava Gaelle, mas não quis comentar nada e no fundo, eu fiquei agradecida. Queria contar-lhe, sim, mas me dava pânico fazê-lo, porque sabia qual seria a reação dela e naquele momento, não conseguia confrontá-la. De qualquer maneira, ela parecia ter a atenção focada em algo diferente. — Vocês pensaram muito nestes últimos dias. — Ela disse quando chegamos ao meu quarto. Para variar, tinha aproveitado para comprar alguma peça nova para o meu armário. — Creio que é hora de voltar para ver Liam. — À La Ciudad? — De repente me senti contrariada. Desejava com todas as minhas forças ver Liam, mas me aterrorizava a ideia de voltar a deixar Christian. — Sim, isso já saiu das mãos de todos nós. — Tirou as coisas e começou a pendurá-las nos cabides. Flávio saltou para os meus braços e se enrolou, formando um novelo. — Hernan esteve muito perto de você. Tenho que protegê-la dele e de Christian. E... Você se relacionou com guardiões. Isso é… Coisas demais. Creio que retornar é a melhor maneira de voltar a controlar a situação. — Eu estou bem. — Assegurei.
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Ela ficou olhando o gato fixamente. — De onde saiu esse gato? — Perguntou surpresa, esquecendo-se de repente do que estávamos falando. — Encontrei-o. Bom, para falar a verdade, ele me seguiu. Ela o pegou entre as mãos e o ergueu no ar para estudá-lo melhor. — Oh meu Deus! — Exclamou com um gritinho. — É FLÁVIO! Sorri. — Eu também pensei nisso. — Reconheci, feliz por vê-la tão contente de repente. — Quando... Quando? — Gaguejou. — Não faz muito tempo, mantenho-o escondido de Valentine. — Liam não vai acreditar. Vai ficar tão feliz... — Estreitou-o com força entre os braços. — Sentimos muita saudade de você, Flávio! O gato ronronou, aprovando as atenções que estava recebendo. — Com certeza está querendo voltar para casa. Casa... — Murmurei para mim mesma. Esse pensamento me fez sentir um estranho calor reconfortante. Minha casa... Sim, eu queria voltar para casa, com todas as minhas forças. Mas, então, Flávio enrijeceu. Ouvimos uma batida surda e alguém abriu a porta de chofre. — Eu o perdi. — Reidar disse, aparecendo no quarto. — Não consigo encontrá-lo. Lisange ficou em pé, o rosto de felicidade tinha desaparecido. — Perdeu quem? — Perguntei sem entender. — Quem você não conseguiu encontrar?
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— O seu amigo. — Ela respondeu. — Vamos, temos que encontrar aquele guardião. Passamos a tarde toda procurando Jerome, sem achar nem o mais leve rastro dele. Tinha desaparecido por completo e isso era desconcertante. Eu sabia quais eram as intenções dele, sabia que ia atrás de Christian, então, por que fugir justo quando eu o tinha mais perto do que nunca? — Boa tarde! — Gareth saudou com amabilidade, abrindo a porta para nós quando voltamos. — Não entendo, por que isso é um problema? — Perguntei, ignorando-o um pouco. Na realidade, nenhum de nós três lhe demos atenção. — Porque vai nos delatar à Ordem. — Lisange explicou, entrando apressada. — Jerome? Claro que não! — Exclamei, atirando-me no sofá. — Já o teria feito. — Não há garantias do contrário. — Reidar apontou. — Do que vocês estão falando? — Tentou perguntar Gareth, fechando a porta e entrando na conversa. — O melhor amigo de Lena é um guardião da Ordem de Alfeo. — Lisange explicou, dando voltas pelo sala. — Isso é que é ter sorte... — Reidar comentou, sentando-se ao meu lado. — Seu olho sobrenatural deve estar meio atrofiado. — Obrigada! — Apontei. — Como você permitiu isso? Supunha-se que tinham que protegê-la. — Lisange — Protestei. — A culpa é só minha. — Será que a Ordem já sabe que estão aqui? — Gareth quis saber. — Não. — Apressei-me a dizer. — Eu descobri faz tempo. Se fosse assim, já teriam me matado.
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— Mas agora ele nos viu, Lena. Pode ser que haja sentido compaixão por você, mas nossas cabeças também estão a prêmio. — Reidar lembrou-me. — E o que vamos fazer então? — Perguntei. — Temos que encontrá-lo e matá-lo. — Lisange sentenciou com as mãos nos quadris e gesto concentrado. — O que?! — Exclamei fora de mim. — Não! Vocês não vão matá-lo! — Não podemos ir embora até que o encontremos. — Lisange começava a parecer alterada. — Vir aqui foi um engano. — O que houve? — Gaelle perguntou, entrando na sala e deixando a bolsa sobre a mesinha. — Temos problemas. — Lisange resumiu com gesto impaciente. — Valentine está em casa? — Não. Quis ir à igreja. — Sorriu. — Por fim está retornando ao bom caminho. — Essa igreja é uma guarida de grandes predadores. — Lisange revelou. — Ela nunca esteve no bom caminho, Gaelle. Seu sorriso se apagou. — Aquela igreja é a...? — Sim... — Está de novo ocupada por grandes predadores? — Pelos mesmos de sempre. Valentine nunca vai se reformar. Devem tirála de novo da casa. Também temos o problema dos grandes predadores. — Valentine não vai a parte alguma! — Gaelle sentenciou, recuperando a compostura. — Ela é da família! — Ela vai colocar todos nós em perigo. — Não mais do que já o tem feito esta jovenzinha.
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— Como consegue que as pessoas a odeiem tanto a ponto de querer eliminá-la? — Reidar sussurrou ao meu ouvido. — Não sei, mas eu adoraria averiguar por que. — Pus-me de pé, cansada. — Não vamos matar Jerome, Lisange. Eu confio nele tanto quanto você confia em Reidar. Vamos arrumar as malas e voltar para junto de Liam. Não fiquei para ouvir o que Lisange disse a seguir, estava esgotada e preocupada. Depois de ver Lisange brigar com Hernan e Christian, era um sério problema a ser exposto como próximo objetivo para Jerome. Devia encontrá-lo de algum jeito, ou ele desapareceria para sempre. Mas, quando entrei no quarto, encontrei Christian estendido na cama. Parecia adormecido. Peguei Flávio e me aproximei dele, confusa.
Não só estava dormindo, como também estava
sonhando e a julgar pela expressão do rosto e dos movimentos do corpo, não era um sono bonito e reparador. Estava quase tocando-o, mas quando estava a centímetros de sua pele, pegou-me pelo braço e abriu os olhos de par em par, arrancando-me um grito. — Christian? — Perguntei confusa e me sobrepondo ao susto. — Você estava… Sonhando… — Não é verdade. — Respondeu, soltando-me e reincorporando-se. — Eram apenas lembranças. — Passou a palma da mão pela testa com gesto cansado. — Esqueça. — Lembranças do que? — Insisti. — Quer saber mesmo? — Fiquei em silêncio. Não, não queria que ele me falasse de novo sobre torturas, gritos e demais componentes de histórias de terror. — Imaginei que… Fiquei com o olhar fixo na colcha enquanto ele saía da cama, mas de repente, percebi uma mancha vermelha nela. Olhei instintivamente para ele e vi, na camisa, a mesma forma vermelha.
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— Sangue! — Exclamei, soltando Flávio de repente e me pondo de pé de um salto. Jerome me veio imediatamente à cabeça. — Do que está falando? — Virou-se para mim, confuso. — Você está sangrando! Olhe! — Mostrei a cama, e ele olhou a contra gosto para lá e franziu o cenho. — Deixe-me ver. — Não é necessário. Puxei-o até fazê-lo se sentar de novo. — Você vai ter que se curar. — A contra gosto, desprendi a camisa e vi que o peito dele estava completamente ensanguentado. — O que aconteceu com você? — Exclamei aterrorizada. — Nada de importante. — Nada de importante? — Corri para o banheiro e peguei uma toalha, molhei-a e voltei para o lado dele. Quando tirei o sangue, descobri uma horrível ferida na altura da cicatriz, sobre o coração. — Está aberta, por quê? — Usaram sangue de guardião— Confessou. — Quem? — A imagem de Jerome ficou ainda mais nítida na minha memória. — Guardiões? — Pior. — Riu. — Nunca disse que era fácil desafiar um clã de grandes predadores. Isto foi apenas um aviso. — Não tinham o direito de fazer isto com você. — Repliquei indignada, limpando a ferida. — Eu devia chamar Gareth ou Lisange. Eles saberão como curar você. — Vai se curar sozinho. Avisá-los só nos traria problemas. — Não posso deixá-lo assim... — Queixei-me. — Por quê? — Soltou uma gargalhada amarga. — Eu faço isto com bastante frequência. Alegre-se por eu receber o mesmo de vez em quando.
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— Por que eu ia me alegrar com algo assim? Por acaso isto vai fazê-lo se lembrar de que não deve fazê-lo? — Considerei. — Receio que não. — Sorriu com dificuldade. — Quando se decidiu por ter um desses? Segui o percurso de seus olhos e vi Flávio, feito um novelo, no outro extremo da cama. — Ele veio até mim. — Expliquei. — Acreditam que é Flávio. — Mais um admirador, sob o mesmo teto… — Bufou. — Deveria preocupar-se mais com Lisange, que lhe deu uma boa surra. — Não vou fazer nenhum comentário a respeito. — Parecia que se conheciam bem… — Como já lhe disse em uma ocasião, com tantos anos de existência, o estranho seria o contrário. Vai entender dentro de uns dois séculos. — Não é bom que esteja aqui. — Gemi, resignando-me e deixando o pano de lado. — Seu coração sofre quando está comigo. Eu não devia provocar mais dor em você. Ele me olhou e torceu um sorriso. — Depois que aqueles grandes predadores fecharam os punhos sobre ele, o que sinto com você não passa de uma leve carícia. Respirei pesadamente. — Não consigo acreditar que sua própria “família” tenha feito isso com você. — Todos nós sabemos que não é bom nos provocar. — Coloquei as coisas a um lado e me deixei cair junto a ele. Christian me rodeou com um braço e apoiou minha cabeça sobre seu ombro. — Lisange pode subir a qualquer momento. — Lembrei-lhe. — Ela que suba.
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Ergui a cabeça e o olhei nos olhos. — Não quero que se vá. — Reconheci. — Então, durma. — Inclinou um leve sorriso. — Eu vou velar seu sono. Voltei a me recostar e Christian começou a acariciar meu cabelo. — Você vai ficar bem? — Perguntei. — Melhor do que nunca. — Sussurrou. Pouco antes de dormir, ouvi-o perguntar. — Você é feliz? — Tenho a sensação de que estou a ponto de saber. Seu peito vibrou com uma pequena risada. — Vou aguardar ansioso para que descubra.
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Os polos opostos nem sempre se atraem
Quando despertei na manhã seguinte, Christian já não estava. Levei alguns minutos para me lembrar de que tudo havia voltado mais ou menos à normalidade. Tudo, exceto por Liam e Jerome. Lisange decidiu atrasar um pouco nossa ida à La Ciudad e eu me atrevia a adivinhar a razão. Sabia que nem ela, nem Reidar, nem, certamente, Christian (assim que se inteirasse) deixariam que Jerome escapasse. Ele estava em perigo, mas só havia um lugar onde eu poderia encontrá-lo. Portanto, vesti-me correndo e ante a surpresa de Gaelle, saí para o instituto, mas quando cheguei, meu amigo não estava em parte alguma, tampouco Christian. Saí do vestiário na última hora, depois de enfrentar a aula mais difícil, ginástica. Era exaustivo ter que esforçar-me o tempo todo em não demonstrar muita força, em especial nos esportes de grupo, mas pelo menos estava me ajudando a me controlar. Quando acabei de recolher minhas coisas, já não havia gente por perto. Estava absorta em meus pensamentos, nervosa e preocupada e não tinha me dado conta de que todo mundo já tinha ido embora. Apertei o passo para me apressar um pouco. Eu queria chegar a casa e ver Christian, de modo que pendurei a mochila de esporte no ombro e empreendi o caminho de volta. Sentia-me desiludida e preocupada com o desaparecimento de Jerome.
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Duvidava que ele fosse nos delatar; pelo menos, não o Jerome que eu conhecia, mas eu não tinha nenhuma dúvida de que Lisange lhe faria mal se o encontrasse. Longe de minguar, meus problemas pareciam crescer. Nem sequer Christian havia deixado de ser uma preocupação. Tinha desejado até não poder mais que tivesse uma razão para tudo o que tinha acontecido e agora que, por fim, tinha ambas as coisas, a explicação a ele não conseguia ser feliz. Eu estava com medo, e as dúvidas não paravam de me acossar dia e noite. Será que eu não estava sendo imprudente ao voltar com ele? Era correto? Ele tinha partido meu coração, tinha me destroçado, mentido e… Tinha acabado com toda e qualquer ilusão sobre o amor. Sabia que o amava, mas será que eu estava forçando algo sem futuro, meio que condenado ao fracasso? Aferrava-me a ele por comodidade? Por medo de ficar sozinha? Ou era só porque eu tinha ficado ancorada naquele Christian de La Ciudad? Sentia saudades daquela idílica história de amor, de passeios sob as estrelas em velhos barcos de madeira, de momentos de paixão entre as ondas, pelo que sentia cada vez que ele inclinava um sorriso ou me tocava… E, muito pelo contrário, eu não conseguia ver nenhuma dessas cenas em nosso futuro. Estava confusa, muito e…. De repente, uma mão saiu do nada, pegando meu braço e me apertando contra uma árvore. Eu já ia bater nele com o bastão de hóquei quando vi de quem se tratava. — Christian! — Em seguida me inclinei para trás. — O que está fazendo aqui? — Pensava em me alimentar quando a vi. Observei-o por um momento. — Agradecer-lhe-ia que não usasse nenhum dos meus companheiros. — Piedade? — Riu. — Ética profissional. — Burlei. — Alimente-se apenas de pessoas más. — Sugeri.
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— Vamos ver. — Eu vou saber se está fazendo mesmo. — E o que vai fazer a respeito? — Sorriu. — Está vendo isto? — Assinalei com a cabeça o bastão que estava apoiado contra a árvore. — Não me obrigue a usá-lo. Inclinou um sorriso e rodeou minha cintura com os braços. — Talvez eu faça isso. — Seu sorriso me fez estremecer. — Eu a vi jogar. — Gostou? — Perguntei rindo. — Só você podia transformar o ato de arrastar um pau pelo chão em uma arte. Estou muito orgulhoso. — Um pau pelo chão? — Arqueei uma sobrancelha. Devagar ele deslizou um dedo pela correia da minha bolsa de esporte até que essa escorregou do meu ombro e caiu no chão. — Não é disso que se trata? — Realmente, não. — Sério? — Sussurrou, acariciando minha bochecha com uma mão e descendo até o meu pescoço. — Sim, consiste, mais em… — Custava-me falar. Com a mesma mão fez com que eu inclinasse a cabeça para trás — São… Duas equipes e… — Apertou os lábios contra minha garganta, beijando-a. — E… Uma bola que… — Você está magnífica. — Sussurrou, afastando-se repentinamente de mim. Olhei para mim mesma. Estava vestindo camiseta vermelha, short e meias três-quartos até os joelhos, cobertas pelos protetores. — Não sabia que era uniforme. — Certo. — Soltou ironicamente, enrugando o cenho. — Que tipo de criatura ficaria louca ou algo assim?
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— Exato… — Ergui um pouco a cabeça e lhe dei um pequeno beijo na comissura dos lábios, depois sorri. — Mas, não tenho pressa para descobrir. Ele franziu o cenho e eu percorri lhe as costas com as mãos e o apertei mais contra mim. Pela primeira vez, não foram os meus hormônios que tomaram o controle dos meus pensamentos, mas minha própria mente. Christian tinha me prejudicado, não desejava esse momento porque ele me atraíra como antes, a não ser pela desesperada necessidade de que tudo fosse normal. De repente, sentia que ali estava a maneira de tentar esquecer tudo o que tinha acontecido. — Tem uma coisa que não para de dar voltas na minha cabeça. — Senti uma repentina euforia por todo o corpo e concentrei-me em observar, com muita atenção, o botão superior da camisa dele, para não ter que olha-lo nos olhos. — Lembra-se do que aconteceu depois que nos falamos no bosque? Lembra-se do que aconteceu no meu quarto? — Lembro-me de cada instante que passei com você. — Neste momento, queria que… Bom… — Inspirei forte. — Queria que…? — Não era nada fácil dizer algo com ele tão perto de mim. — Queria algo que me ajudasse a matá-la. — Respondeu. — Esse desejo se misturou à minha fraqueza. — Recuou um passo, afastando-se de mim. — Eu precisava dessa dor extra que me produz estar com você, um êxtase que me lançasse sobre seu coração. — No começo, usava luvas porque era horrível nos tocar, mas agora já não é. — Continua sendo, Lena, a diferença é que nós nos acostumamos. — Então, preciso que minha pele se acostume com você, minha pele inteira — Enfatizei. — Acabo de confessar que queria que acontecesse algo para acabar com você, isso não a faz refletir?
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— Nada do que aconteceu importa mais, desde que chegamos aqui. — Tentar ignorar não vai apagar a nossa história. — Ele negou com a cabeça. — Quero fazê-lo, quero fazer como se estes últimos meses não tivessem existido. Quero poder abraçá-la sem me queimar, quero que me abrace sem ter que conter a dor. Quero sentir o toque da sua pele, e não a ardência que ela provoca, mas… — Christian me silenciou cobrindo minha boca com a mão. — Desejaria poder lhe dar tudo isso, e mais, mas não como uma forma de tentar apagar o que aconteceu. — Se quiser, mostre-me. Aproximei-me e enfiei as mãos por baixo da camisa dele, acariciando lhe a pele. Notei os músculos dele se contraírem pelo tato. Ele pegou meus dedos e fixou o olhar em mim com aqueles olhos penetrantes, mas não disse nada. Sustentamos o olhar em silêncio, com o coração acelerado palpitando nos meus ouvidos, e o hálito roçando a pele do meu rosto. Então, soltou-as. Desviei os olhos para elas e subi para seu pescoço. Lentamente, e com dedos trêmulos, fui desabotoando cada botão. Ele tinha decidido parar de respirar, mas seu coração pulsava cada vez mais e mais rápido. Parei, pensando no quanto devia estar sofrendo, mas ele tirou a camisa e a deixou cair ao chão, aos seus pés. Meus olhos percorreram então seu torso nu, a pele, os músculos, a cicatriz... — Você faz com que eu me odeie por me controlar. — Você faz com que eu o odeie por se controlar. — Burlei. Ele pegou meu rosto com ambas as mãos e com voz muito séria, acrescentou: — Não sabe o quanto senti sua falta. Procurei seus olhos, que brilhavam de forma sobrenatural. Pela primeira vez senti que tinha força suficiente para lhe responder.
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— E eu de você. Pus-me na ponta dos pés e rodeei-lhe o pescoço com os braços. Sem deixar de me olhar nos olhos, ele pousou as mãos na minha cintura e me ergueu para me abraçar. Deu uns passos em direção à outra árvore e ali, depositou-me com cuidado sobre a terra, mas eu não desfiz o abraço. Não queria que ele se afastasse de novo e ele não se afastou, ficou ali, com os braços apoiados contra a areia e me observando com atenção. — Minha vida só tem sentido quando estou ao seu lado. — Sussurrou. — Com você me sinto vivo. Como isso é possível? — Não penso em averiguar. — Assegurei-lhe. Minhas mãos acariciaram seus braços devagar, a cintura, as suaves curvas do peito. Aproximei a boca dele, no lugar onde eu sabia que estava a velha cicatriz que há poucas horas tinha sangrado, invisível agora pela escassa luz. Beijei a pele sem encontrar nem um pequeno relevo e, então, ele voltou a respirar. — Por que está fazendo isso? — Murmurou. Afastei-me um pouco dele e nossos olhares voltaram a se cruzar. — Está doendo? — Perguntei preocupada. — Suportar a dor faz parte do que sou. — Sussurrou, acariciando meu cabelo. — Mas não quero lhe machucar. — Pode ser que eu também tenha aprendido a suportá-la — Respondi, notando seus olhos. Em suas pupilas cintilou um laivo de surpresa e preocupação, como se quisesse perguntar a que eu me referia, mas aquele não era o momento para tal. Afastei as mãos do seu corpo e as levei aos botões da minha própria roupa, ainda perfeitamente no lugar. Ele fez uma careta, como se debatesse algo no íntimo e me deteve. Pegou minhas mãos e as afastou. — Cabe a mim fazer isso. — Disse. — Tem certeza de que quer isto?
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— Apenas faça. — Pedi. Com cuidado, pegou o tecido da minha blusa e puxou-a para cima, deixando-a cair no chão, junto à dele. Minha pele ficou a descoberto. Senti seus olhos me percorrendo em uma breve fração de tempo e seu coração palpitar com mais força. Seu rosto escureceu. — Você é magnífica. — Repetiu, aproximando-se do meu ouvido, roçando a bochecha contra a minha. Depois, pegou minha mão e a beijou. Então foi percorrendo meu braço com os lábios, devagar e delicadamente, até chegar ao ombro, beijando cada pequeno pedaço de pele. Afastou para um lado o meu cabelo e se posicionou atrás de mim, continuando até chegar ao pescoço. Com cuidado, abraçou minha cintura e me estreitou contra o corpo. O contato do peito dele contra as minhas costas foi intenso, muito, muito intenso e doloroso. Apertei os olhos com força e deixei cair a cabeça contra seu ombro. Ele tinha parado quase que imediatamente, inclusive tinha deixado de respirar por causa da sensação. Eu ouvia seu coração ainda mais potente, podia até senti-lo palpitar dentro do meu. Então, ele empreendeu de novo o percurso das mãos, fazendo-me tremer e desfrutar com seu toque, com uma proximidade que pensei já impossível sentir. O corpo dele estava tão colado ao meu que eu já não diferenciava a quem pertenciam as respirações descontroladas que penetravam em meus ouvidos. Senti o calor e a pressão cada vez maiores que ele exercia contra mim. Eu tinha ficado quase que paralisada com aquele contato tão intenso, mas ele não deu sinal de sentir nada parecido. Estava concentrado em me percorrer com as mãos e os lábios e de me fazer sentir seu corpo até níveis desconhecidos para mim. Então, comecei a me dar conta de que, talvez, não se tratasse de um simples simulacro. Esse pensamento me fez perder todo o controle sobre a respiração e comecei a ficar realmente nervosa. Já não me sentia tão segura, sabia que o
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amava e que o desejava em todos os sentidos, mas ia acontecer já? Naquele momento? Agora? Senti o céu da boca gelado, um grande nó na garganta e um repentino enjoo, acompanhado por um tremor que se apoderou de todo meu ser. Mil medos cruzaram minha mente enquanto Christian continuava percorrendo minha pele. Medo de lhe causar dano, de que se descontrolasse, de não saber fazê-lo, mas sobre tudo, medo da dor e do desconhecido. Ele se deu conta, ou pelo menos da parte em que toda minha pele reclamava, porque se ergueu sobre os braços para me dar uma trégua do contato. O ardor cessou de forma considerável. Ele me olhou nos olhos; os dele brilhavam febris e a boca estava mais vermelha do que nunca. O hálito dele voltou a me inundar e todas as minhas dúvidas desapareceram. — O que é que você quer de mim? — Perguntou-me, aproximando o rosto até deixá-lo a milímetros do meu. — Quero você. Sua respiração agitava meu cabelo. Seu coração estava tão acelerado que parecia que queria saltar para o meu peito. — Não posso prometer que será como você sempre sonhou. — Eu só sonho quando estou com você. — Murmurei. Abracei-o, abracei seu corpo, ante o temor de voltar a perdê-lo, obrigandoo a romper a distância e provocando para que sua pele tocasse a minha. O que importava aquela ridícula dor física em comparação com o que tinha sentido ao saber que o perdera? Obriguei minha mente a centrar-se apenas nele, a fazê-lo desaparecer sob a capa de emoções e sentimentos que me provocava estar assim com ele e por um momento, funcionou. Então, ele abaixou as mãos até minha cintura e aproximou a boca do meu ventre, roçando-o com os lábios com uma delicadeza extrema, que fez com que eu estremecesse de novo. Eu não pude fazer outra coisa a não ser entrelaçar
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os dedos no seu cabelo, enquanto ele subia me beijando até chegar de novo ao meu pescoço. Uma vez ali, afundou a mão entre minha pele e a areia para chegar às minhas costas. Ergueu-me levemente para me aproximar mais do seu peito e percorreu minha perna com a outra mão até chegar ao meu joelho, flexionando-o tanto que podia tocar com ele meu próprio corpo. Beijou-a com cuidado e continuou me beijando até chegar à minha cintura, passando sobre as desgastadas calças do uniforme. Tinha desejado tanto voltar a tê-lo perto, sentir a suavidade da sua pele e seu cheiro, o doce e sinistro cheiro que me transportava a lugares proibidos da minha imaginação. Então, ele juntou a testa à minha com os olhos fechados em uma careta de dor. — Você está bem? — Perguntei confusa. Afastou as mãos de mim, depois, de repente, afastou-se por completo, ficando em pé e me dando as costas, com uma mão na testa. Meio confusa pela reação, incorporei-me, apoiando os cotovelos contra o tronco caído. — Christian? — Insisti preocupada. — Não. — Soltou de forma brusca, com o punho na boca. — O que há com você? — Levantei-me e me aproximei dele. — Preciso ficar sozinho. — Se me contar talvez eu possa ajudar… — Não! — Soltou de forma cortante. — Volte para casa! Fiquei paralisada, não sabia o que fazer, mas então, ele, sem prévio aviso, bateu no tronco, fazendo-o balançar perigosamente e sem dizer nada mais, desapareceu, perdendo-se entre os arbustos. Eu me dirigi com passo inseguro até lá, mas ele já tinha desaparecido. Voltei ao lugar para vestir a camiseta, peguei a bolsa e saí dali, com o coração apertado com força contra o peito, triste.
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Grandes predadores
Saí do bosque e me vi cara a cara com Elora. — Não me agrada, mas tenho que reconhecer que foi divertido. — Disse com voz zombeteira. — O que está fazendo aqui? — Não sabia se devia me zangar ou me assustar. — Desfrutando, suponho. Descobri que provocar dor física não é a única coisa gratificante. As desgraças alheias me deixam de bom humor. — Não há nada aqui do seu interesse. — Defendi-me. Ela tornou a rir. — Quanto antes assimile, mais cedo poderá fazer algo a respeito. — Assimilar o que? Inspirou com paciência. — Que não é suficiente para um grande predador e muito menos para um como ele. — E você sim? — Cruzei os braços. — Vivo com ele, torturo com ele, divirto-me com ele. Christian não me interessa, mas ele sabe que é fraco, que não duraria mais que umas duas décadas, quando muito. — Sei que não é verdade. Ele lhe interessa, disse-me que você queria ter o poder de posse sobre ele.
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— Não preciso, ele nunca me negou nada, mas reconheço que deve ser fascinante ter tal poder sobre ele. Faríamos grandes coisas juntos. — Por que está me contando isso? — Porque você é uma ameaça para todos os nossos planos. — Deu um passo para mim. — Isso não faz sentido. — Não esperava que entendesse. A inteligência não é uma das grandes habilidades dos da sua espécie. — Sorriu. — Mas, por sorte, eu não sou néscia. Conheço-o, assim como conheço Hernan e os dois mostraram um interesse exagerado em você e em sua patética existência. Vi as lembranças, as suas e as visões de Valentine e não gostei nada do que vi. Acredito que o tempo que você passou com Hernan foi uma absoluta estupidez. Mas não posso julgá-la, nunca deixe um homem fazer o trabalho de uma mulher. — Apoiou as mãos nos quadris. — Eles não sabem se controlar. — E o que é que você quer fazer? — Vou dar-lhe um presente, muito generoso, mas ainda devo prepará-lo. Eu vou encontrá-la quando chegar o momento. Dirigiu-me um último sorriso e desapareceu entre as árvores. Tentei não pensar no quanto era estranha toda aquela conversa e me pus de volta a casa. Não voltei a ver nem Christian e nem Elora no caminho de volta. De fato, não havia ninguém. Quando entrei, surpreendeu-me comprovar que nem Gareth e nem Gaelle estavam na casa. Nem sequer escutava Lisange. Se Reidar estava por perto, não parecia, mas me alegrava. Subi para o quarto, cansada e com um milhão de pensamentos revoando na cabeça. Pensei em me atirar na cama e esperar que chegasse o novo dia, mas justamente antes de chegar, escutei sons vindos lá de dentro. A porta estava entreaberta. Empurrei-a e então, apareceu diante de mim completamente
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destroçado. Era como se tivesse se formado ali dentro uma tormenta. Não havia nada, absolutamente nada no lugar. O armário estava totalmente aberto, a roupa jogada e rasgada estava inclusive pendurada dos móveis, os papéis atapetavam grande parte do chão de madeira e a cama estava revolta. Ou alguém procurava algo ali, ou tinham feito aquilo em um ataque de raiva. Não demorei nem dois segundos em formular o nome em pensamento. Valentine… Eu me virei e olhei em volta e como se a tivesse chamado, eu a vi. Sozinha, oculta na escuridão de um dos cantos, respirando como um touro enfurecido e tremendo. Sem dizer uma palavra, gritou e lançou algo contra mim. Consegui me esquivar e o objeto bateu contra o marco da porta, fazendo-se em pedacinhos. De repente, Christian apareceu do nada. — Você voltou com ela! — Gritou a menina com voz angustiada, desta vez dirigindo-se a ele. — Você prometeu que nunca aconteceria! — As coisas mudaram. Avançou para ele e bateu com força logo acima da própria cabeça, bem na altura do abdômen de Christian. — TRAIDOR! VOCÊ DISSE QUE ME PROTEGERIA! DISSE QUE ESTARIA SEMPRE COMIGO! — Valentine, acalme-se. — EU ODEIO VOCÊS! ODEIO OS DOIS! —Tranquilize-se. — ACABE COM ELA! — Fique quieta ou vou ter que trancá-la no seu quarto. — MATE-A! — Repetiu. — NÃO! Ela lutou, soltou-se e antes que tivesse podido imaginar, lançou-se contra mim. Nós duas caímos para trás contra o chão. Tentei sujeitar-lhe os braços, mas
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só podia ver suas membranas extremamente abertas e os dentes apertados. Christian a separou de mim dando ênfase à agilidade sobrenatural e habitual rapidez, mas ela conseguiu me arranhar com a adaga em um lado do pescoço. Ele segurou Valentine e a soltou junto à janela. — Volte a tocar em um só fio de cabelo dela e vou me assegurar de que sua cabeça role colina abaixo! — Ameaçou-a. — Você vai pagar caro, acredite em mim! Não faço promessas em vão! Sem dizer nada mais, jogou a adaga no chão, tateou o marco da janela com a mão e saltou para rua. Christian se apressou a colocar meio corpo para fora. Os acelerados passos da menina contra a fria noite chegaram até meus ouvidos. Christian se virou para mim, mas eu não disse nada, desfiz-me do tênis, da jaqueta e fui até o banheiro. Acendi umas quantas velas em torno da banheira, entrei de roupa e tudo e abri a torneira. Estava muito cansada, em todos os níveis. Eu me encolhi e apoiei a cabeça contra os joelhos, enquanto sentia que a água fria começava a me reconfortar um pouco. — Você está bem? — Seu tom era preocupado. — Sim. — Respondi enquanto ele se aproximava. — Não foi nada. Sem perguntar nada, entrou também na banheira. — Deixe-me ver o que ela lhe fez. — Obrigou-me a obedecer e joguei o cabelo para um lado. — Aonde pensa que ela foi? — Perguntei enquanto ele analisava com muito cuidado o corte. Doía, embora não fosse exagerado. — Só ela sabe. — Respondeu com voz tranquila, enquanto molhava a ferida. — Ela vai ficar bem? — Têm muito mais a temer os que estão lá fora. — Não era isso o que pensava quando chegamos aqui.
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— As coisas mudaram depois disso. — E se ela for até a Ordem? — Não, ela não vai fazer nada que possa me prejudicar. — Com um rangido, rasgou um pedaço da camisa. — Ela ameaçou você. — Lembrei-lhe, inclinando um pouco a cabeça para trás para olhá-lo. — E você lhe disse que faria a cabeça dela rolar… — Eu tentei matar você e mesmo assim, continuou me amando. — Lembrou com voz uniforme. — Pelo visto, não parece tão fácil assim me afastar da vida de certas criaturas. — Eu desenvolvi um talento antinatural para ficar imune às suas ameaças de morte, mas não acredito que Valentine seja tão estúpida. — Eu não gosto que fale assim de você mesma. — Todos nós sabemos que sou. — Aleguei. — Não é estupidez. As pessoas normais cheiram perigo, alguém deve ter cometido algum engano ao criar você. — Está falando sério? — Como se explica isso, se não for pelo irremediável amor ao perigo? — Poderia culpar certo grande predador que decidiu me espreitar em uma biblioteca, ao invés de dedicar-se a torturar homenzinhos em becos escuros. — O que estava fazendo uma caçadora recém-nascida encerrada em uma biblioteca? — Se vivesse com Lisange você ia entender. — Ele riu de forma um tanto amarga. — Além disso, eu só estava tentando me lembrar. — Defendi-me. — O que queria se lembrar? Física quântica? — Riu. — O que você estava fazendo, então? — Avaliando uma nova presa, suponho. Elora viu você antes de mim e me convenceu que fosse dar uma olhada na nova aquisição dos De Cote.
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— Eu adoro quando você me trata como um pedaço de carne antes de cozinhar. — Sorri sarcasticamente, enrugando o nariz em um gesto incômodo. — É apenas sangue de guardião. — Disse contra meu ouvido, soprando os pequenos cabelos da minha nuca. Meu corpo estremeceu. — Isso explica por que quase não me dói. — Raciocinei com voz fraca. — Mesmo assim, terá que tirá-lo antes que a ferida se feche. Prefere que Gareth faça isso? — Não, não. — Neguei com a cabeça. A simples ideia de que ele sugasse uma ferida no meu pescoço me incomodava. — Faça isso você. — De acordo. Aproximou os lábios do meu pescoço. Inspirei fundo e fechei os olhos com força, pensando na dor que me produziria o ardor de Christian sobre minha pele aberta, mas não foi assim. Ele voltou a molhar meu pescoço, criando uma barreira entre a pele dele e a minha e usou um lenço para eliminar o sangue. Era incômodo, sim, porque não deixava de ser uma sucção, mas conforme o sangue de guardião ia desaparecendo, o local foi soltando a tensão e meu corpo começou a relaxar. Quando terminou, beijou a ferida e rodeou minha cintura com os braços. Senti sua respiração em minha nuca e o calor do seu corpo envolvendo o meu. — Você tem medo de mim, não é? — O episódio com Valentine não tinha apagado a lembrança do ocorrido no bosque. — Eu, medo de você? — Sim. Tem medo que eu avance em você e que termine acontecendo. — Afirmei. Pensei que soltaria um “acontecendo o que?”, para fingir que não sabia do que eu falava, mas me equivoquei. — Só estou tentando protegê-la.
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— De um grande predador com ciúme? — Soltei com sarcasmo. — Ou de uma caçadora cheia de hormônios. — Pode rir, mas eu gostaria de saber se é algo que vê em algum ponto do futuro ou se... — Eu lhe dei de presente uma excelente demonstração esta tarde. — Disse com voz tranquila. — Mas um dos dois deve manter a cabeça fria, por ora e creio que está bastante claro que não podemos confiar em você nesse aspecto. Os caçadores são fracos em todos os sentidos. — Riu de novo. — O dia que parar de tentar alardear seu ego de predador eu vou construir um monumento para você. — Você é meu monumento, Lena. Arqueei uma sobrancelha. Ele riu de leve, mas com olhos alegres. — Devia deixar que a natureza seguisse o próprio curso e que você e eu... — Está gostando de me provocar? — Quase tanto quanto você. — Não me lembro de ter lhe ensinado isso. — Não preciso que me ensine. — Você continua acreditando que isto é um jogo… — Murmurou, apoiando as mãos em meus braços. — Não… Mas preciso brincar sobre isso de vez em quando ou vou terminar como você. O que aconteceria se conseguisse destruir suas defesas? — Aventurei, acariciando seus braços com a ponta dos dedos. Ele sorriu e apertou os lábios contra o meu ombro. — Poderia beijá-la aqui… — Sussurrou. Subiu as mãos pelas minhas costas e beijou meu pescoço. — Ou aqui… — Acariciou minha orelha com os lábios. — A eternidade não é longa o suficiente para todas as coisas que eu faria com você. — Deixei-me embriagar pelo cheiro dele, que aquele suave e doce hálito
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penetrasse no meu corpo. — Mas não vou fazer. — Soltou por fim. — Você precisa descansar. — Isso foi cruel! — Protestei, piscando confusa. — Sou professor na matéria. — Por quê? Por que tive que me fixar em você? — Porque o destino é caprichoso. — Respirou junto ao meu ouvido e me estreitou entre os braços, tirando-me da água e saindo da banheira. — E desfruta brincando com nosso desespero. — Quero viver essa experiência com você. — Reconheci sem olhar para ele. — Agora deve descansar. Valentine não vai voltar esta noite. — Eu devia arrumar este desastre. — Queixei-me pouco antes que ele me depositasse com cuidado sobre a colcha da cama. — Eu vou fazer isso. — Inclinou-se e recolheu minha agenda do chão. — Tenho a noite inteira pela frente. — Abaixou-se para pegar Flávio e colocá-lo entre os meus braços, depois foi colocar minha agenda de novo sobre a mesinha de noite, mas um papel caiu no chão. — O que é isto? — Perguntou enquanto o recolhia. — O que? — Eu quis saber, reincorporando-me um pouco. Em seguida descobri por que razão Christian tinha contraído tanto o rosto ao vê-lo. Ali, entre as mãos, havia uma foto, uma daquelas horríveis imagens com as quais Jerome tinha forrado as paredes do meu quarto. Na verdade, a foto de um menino. — Não sei. — Menti enquanto Flávio se remexia. — Isso não é meu. — Ele deixou o olhar perdido no retrato durante um minuto. Perguntei-me se saberia o que era. — Você o conhece? — Gaguejei.
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— Não. Nem sei como isto chegou aqui. — Ele a pegou e a rasgou em pedacinhos. Depois se levantou e os atirou pela janela. — Talvez fosse de Gaelle. — Sugeri quando ele voltou para perto de mim. — Não importa de quem era. Já não servirá para ninguém. — Cobriu-me com os lençóis e beijou minha testa. — Descanse. Uma estranha sensação se apoderou do meu corpo ao pensar na frieza com a qual tinha tratado a fotografia daquele menino. Por acaso não se importava? Não o reconhecera? As vítimas dele importavam tão pouco a ponto de chegar a esquecê-las por completo? — Alguma vez... Alguma vez você atacou algum menino? — Não pude evitar a pergunta, apesar de conhecer a resposta. — Tenho um passado sombrio, você sabe. — Respondeu acomodando-se ao meu lado. — Passado? Já não é presente? — Insisti. — Não, já faz um tempo. — Quanto tempo? — Acabo de recuperar você, Lena, quer mesmo conhecer essa história? — Fiquei em silêncio esperando que ele respondesse. Ele suspirou. — Desde Valentine. — Revelou sem mais delongas. — Valentine? — Incorporei-me na cama quase que de um salto. — Valentine? Você disse que ela morreu de forma natural! — E assim foi, mas eu a converti. — Por quê? — Valentine não me caía nada bem, mas que Christian tivesse algo a ver com aquilo me parecia uma selvageria. Embora essa revelação explicasse muitas coisas.
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— Porque todos nós temos um dono, Lena e uma obrigação. É algo que deve aprender o quanto antes. — Beijou minha testa e se afastou. — Não é bom que falemos disto. Embora você queira, isso lhe faz mal. Descanse.
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Amarga realidade
— Espere! — Exclamei. Baixei as escadas correndo, perseguindo Christian que cruzava a sala a toda velocidade para sair da casa, mas encontrei Lisange sentada na sala de estar, com os braços e as pernas cruzadas, impaciente. Passou o olhar de mim para Christian e depois de novo para mim, ficando de pé. Isso me congelou no lugar. — Valentine foi embora de casa e Gaelle foi procurá-la. Gareth está procurando as duas. Seu amigo Jerome continua sumido. — Soltou tudo de carreirinha. — Hoje o dia está uma loucura, espero que pelo menos tenha descansado bem e que tenha uma boa explicação que justifique o fato de que este grande predador esteja passeando por aqui neste preciso instante. A porta da entrada bateu, deixando claro que Christian tinha ido embora. — Fiquei sabendo sobre Valentine. — Minhas mãos se dirigiram ao corte no meu pescoço, mas este já tinha desaparecido. — E de que foi Christian quem a converteu. — Perdão? — Pronunciou como se estivesse engasgada com algo ao falar. — Tenho certeza de que sabe dessa história. — Avancei para ela e me deixei cair no sofá. Procuraria Christian mais tarde. — Preciso que você a conte para mim.
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— Christian fez muitas coisas horríveis, mas a de Valentine não foi das piores. — Ela era uma criança! — Apontei. — Os guardiões também podem ser crianças, Lena. Não é um disparate. Nem todas as crianças são boas e nem todos os adultos são maus. Há crianças cruéis e com almas sombrias. Ela era assim. — Continua sendo uma monstruosidade. — Não, o que é uma barbaridade é que você tenha estado com ele sem me contar nada! — Replicou com voz dolorida, mudando de assunto. Afastei-me um pouco. — Eu não disse isso. — Assinalei. — Ofende-me que me considere tão irresponsável. — Ficou em pé, meio alterada. — Para não me dar conta disso. — Você teria se alegrado? — É obvio que não! — Fez uma careta. — Nada justifica o fato de ter judiado de você. — Eu também faço mal a ele! — Confessei. — É muito perigoso. — Também é o seu caso com Reidar. — Lembrei-lhe. — Ele não é capaz de matar com o olhar, Lena. Não tem nem ideia do que nem de quem é Christian! — Mas você sim! Não sou estúpida, Lisange. Sei que o conhece bem. Pois então me diga a razão. — Meu conselho é a única coisa com o qual você devia se importar, Lena, não com o meu passado. Ele faz o que quer com você e sempre o perdoa. — Cruzou os braços. — Mas você não vai se importar com o que nós pensamos a
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respeito. Se tiver que viver com uma decisão, só você pode tomá-la. — Fez uma pequena pausa. — Só confio que você faça uma boa escolha. Dito isto, deixou-me sozinha, afundada nos meus próprios pensamentos. Aproximei-me da janela e o vi. Ele ainda estava lá fora, perambulando pela borda do bosque que havia atrás do povoado. Já tinha experimentado a dor de não tê-lo comigo e tinha sido horrível. Era errado querer esquecer aquela conversa, mas pela primeira vez, fui egoísta de forma consciente. Peguei a mochila e saí para encontrá-lo. — O que fez com Valentine foi horrível. — Soltei quando cheguei atrás dele. Christian se virou para mim devagar. — Nem sequer sei como me sinto, mas já não quero mais nada disto. — Eu queria ter lhe contado isso desde o começo. Na realidade, quero contar-lhe tudo, Lena, se você deixar. — Não. — Afastei-me dele e neguei com a cabeça. — Estou cansada de ter motivos para odiá-lo. Não quero saber de nada. Ele inspirou fundo a título de resignação, parecia decepcionado. — É uma postura egoísta. — Você me ensinou a ser assim. — Odiaria que isso fosse verdade. Lena, você é o que há de mais importante para mim. — Como posso acreditar em você? Lisange pensa que me humilho com você e o pior é que não consigo acreditar que ela está enganada. — Virei-me para ele e o olhei nos olhos. — Não tem que acreditar, tem que sentir. — Seu coração está dividido. — Disse. — Não acredito que saiba o que é nem o que quer. Sempre vou ter que lutar contra o grande predador e não sei se estou preparada para isso.
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— É isso que eu sou. — Olhei para o outro lado. Ele se aproximou de mim, pôs um dedo no meu queixo e inclinou meu rosto para que voltasse a cruzar os olhos com os meus. — Não me arrependo do que sou e aceito que não sei me preocupar com alguém que não seja eu mesmo. Mas tudo o que fiz estes últimos meses foi porque quero, mesmo passando por cima de mim, salvar você. Inspirei com força, pensando a toda velocidade. — Sei que sente algo por mim. Posso chegar a entender o quanto estes últimos meses foram difíceis para você também. — Não consegui continuar olhando-o. — Não suporto a ideia de causar-lhe dor. Tortura-me o fato de saber que estar comigo faz com que a pulsação do seu coração seja cada vez mais dolorosa. Mas a sua condição de grande predador não me serve como desculpa. As coisas mudaram, já nem sequer sei o que somos. Já não sei nem quem você é… Ele pegou minhas mãos entre as dele e as aproximou do meu peito. — Eu sou você, de tal maneira que sem você eu não existo e anseio com muito ardor que você seja eu, apesar de tudo de ruim que isso implica. — Sua voz era a mais sincera que eu tinha escutado em meses. — Assim será por toda a eternidade, se você quiser. — Parece muito seguro dessas palavras. — Diga-me se eu estiver enganado. — Uma eternidade é muitíssimo tempo, Christian. — Encolhi levemente de ombros. — E as palavras o vento as leva. — Estas não. Não respondi. Ele se inclinou para mim, mas ao invés de se aproximar dos meus lábios, afundou a cabeça no meu pescoço, beijando-me enquanto me estreitava entre os braços. Então, dobrou os joelhos, para que ambos nos
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sentássemos no chão, mas em vez disso, terminamos estendidos abraçados no meio do barro. — Jure para mim que não voltará a matar um humano. — Pedi-lhe ao pé do ouvido. Ele se afastou um pouco de mim para me olhar nos olhos. — Sabe o que isso significa para mim. — Eu sei. — E mesmo assim me pede isso... — Mesmo assim. — Não posso prometer isso. — Eu preciso que prometa, então pense nisso. — Em seu rosto havia dor e angústia. — Eu vou passear. — Eu disse, mudando de assunto. — Esta noite não haverá lua. Não é uma boa ideia. — Acaba de amanhecer. Não vou me afastar tanto. Fui e o deixei lá, empapando-se e pensativo. Saí do povoado sob a chuva e a tormenta e não me importei. Tinha acumulado tantas coisas durante todos aqueles meses que, na verdade, precisava me desconectar de toda aquela situação. Cruzei o descampado e um pequeno parque, que resultou ser o mesmo no qual Gareth e eu tínhamos enfrentado Christian na primeira noite. Acaso não tinha passado meses horríveis? Não havia lutado para recuperá-lo? Então, o que estava acontecendo comigo? Talvez as palavras de Lisange estivessem me afetando demais. Retornei ao interior do parque, soltei a mochila e caí sobre a grama. — O que você fez comigo? — Perguntou de repente uma voz, de algum lugar perto de mim. Incorporei-me rapidamente, perguntando-me se estavam falando comigo, mas não tinha ninguém por perto, então relaxei. — O QUE VOCÊ FEZ COMIGO?
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Levantei-me alarmada e assim que o fiz, divisei uma figura correndo para mim a toda velocidade, mas não o fazia de forma sobrenatural, era humano. — Víctor? — Perguntei surpresa assim que pude reconhecê-lo. — O que aconteceu? Não me lembrava da última vez que o tinha visto. Era um companheiro de classe, calado e tímido, justamente o contrário do que se esperaria de alguém tão imponente e atlético, mas estava completamente louco e descuidado. A roupa, o cabelo… Algo nele me lembrou horrivelmente de alguém de La Ciudad: Claire Owen. — O QUE VOCÊ FEZ COMIGO? — Perguntou pela terceira vez. — Acalme-se. Não sei do que está falando. — Como se atreve a negar? — Repreendeu desesperado. — O que houve? — Exclamei atônita. — O que aconteceu com você? Alguém soltou uma tremenda gargalhada. Virei-me depressa e vi Elora, desfrutando com o espetáculo. — O que está fazendo aqui? — Eu lhe disse que tinha um presente para você, esqueceu-se? — Dirigiu os olhos para Victor de forma loquaz. — O que quer dizer? — Não se lembra, Lena? Não faz muito tempo, no lavabo, alguém estava chorando… — Ela sorriu, saboreando meu repentino pânico. — Termine o que começou. Acabe com ele. — O que? — Tive que me jogar para um lado para evitar um golpe de Víctor. — Você já cruzou a linha, Lena. Causou um dano irreparável nesse humano. Só tem que matá-lo e tudo o que deseja será seu. — Não! — Exclamei ofendida e horrorizada. — Não vou fazer isso!
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— Não se deu conta ainda, não é? — Os olhos da Elora escureceram. — Eu lhe ofereço a glória! O poder! — Por que vocês só conseguem pensar nisso? — Eu vou matá-la! — Gritou o humano lançando-se de novo contra mim. Elora voltou a rir. — É divertido, Lena. Diga-me que está sentindo. Não consigo acreditar que não esteja gostando. — Parou de rir e se aproximou do humano. Dirigiu-me um olhar profundo, juntou os lábios a ele e com um sorriso, sussurrou-lhe algo ao ouvido. Nesse momento, ele tirou um pau de trás das costas e me ameaçou com ele. — O que está fazendo com isso? — Perguntei, retrocedendo e erguendo as mãos em sinal de paz. — Acalme-se. Ele ergueu o pau para mim e o baixou com força para me bater, mas em um ato reflexo, detive-o com uma só mão. Mantivemos contato visual fixamente, o suor escorria pela testa dele por causa da força que estava exercendo contra mim. — Que tipo de monstro é você? — Perguntou-me com os olhos arregalados, confuso e com a cabeça tremendo de raiva. Retirou a vara e tentou me bater várias vezes, até que se fartou e se jogou contra mim. Nós dois caímos no chão, lutando. Não queria usar minha força, não queria lhe machucar, mas seus olhos estavam arregalados, enlouquecidos e ele só tentava chegar até o meu pescoço. Comecei a sentir pânico. Sabia que ele não podia me fazer nada, que não podia me machucar, mas esse pânico se transformou de repente em uma perturbadora vontade de fazê-lo pagar por isso. Esse pensamento me surpreendeu e assustou tanto que, por um instante, fiquei imóvel. Ele me sujeitou pelo pescoço e vi que apertava os dentes com força enquanto as gotas de suor caíam-lhe da testa no meu rosto.
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— O que pensa que está fazendo? — Rugiu de repente a voz de Christian atrás dele. Por um momento, vi passar rapidamente pelo rosto dele um brilho de incompreensão e pânico. — Cuide dos seus próprios assuntos. — Ele desafiou-o. “Não faça isso”, pensei. Então, Christian o agarrou pela camiseta e o fez voar até cair a vários metros de distância. — Não! — Exclamei, enquanto Christian se dirigia para ele. Víctor ficou em pé, aturdido. Limpou com a manga uma ferida na testa e fulminou Christian com o olhar. — Você está louco! — Gritou-lhe. — Todos vocês estão loucos! — Você ainda não viu nada. — Elora riu de forma alegre. — O que significa isto? — Christian rugiu lançando um gélido olhar à mulher. — Não tenho nada a ver com isso. — Sorriu de forma mordaz. — Sua caçadora passou do limite com esse humano. Christian me olhou com uma estranha expressão, mas não foi o único. O rapaz cravou os olhos em mim, apontando-me como culpada. Christian se virou e apontou o dedo para ele. — Não olhe para ela, não toque nela, nem pense em se aproximar dela se aprecia o mínimo que seja esta vida. — Vai deixá-lo ir? — Elora parecia confusa. Christian se aproximou de mim e rodeou-me com um braço. — Faça você. Vou tirar Lena deste lugar. — Vou dizer a todos como são. Vou chamar a polícia! Juro que vai se lembrar de mim, De Cote. — Dito isto, cuspiu em minha direção. — Isso foi um erro. — Murmurou com voz lenta, virando-se para ele, ameaçador.
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— Eu vou contar. — Apesar da valentia das palavras, o humano estava recuando. — Eu vou contar tudo. Vocês vão pagar caro. Olhei assustada para Christian. Não sabia o que ele tinha visto, mas certamente não era algo para ser resolvido às pressas. Ele me soltou e me jogou ligeiramente para atrás, afastando-me da cena. Ato contínuo, avançou para Víctor e o agarrou pelo pescoço. Nesse momento, meu medo aumentou até transformar-se em autêntico pavor. Christian estava descontrolado. — NÃO! Solte-o! — Gritei-lhe. — Lena, afaste-se! — Solte-me, animal! — Victor uivava. Fiz a única coisa que me ocorreu: aferrar-me às suas costas e puxá-lo para trás. — Por favor, deixe-o partir! — Pedi. — Elora! — Christian estava fora de si. Então, senti que fortes braços me afastavam dele com uma facilidade assombrosa. — Desfrute da cena. — Ela sussurrou ao ouvido, enquanto sujeitava meu corpo para evitar que eu corresse de novo para ele. — É o melhor que pode fazer agora, acredite em mim. Soltou-me, mas por alguma razão fiquei ancorada no mesmo lugar, sem conseguir reagir, muito impressionada para poder fazer alguma coisa. Contemplei perplexa como ela se juntava a Christian e ambos desapareciam atrás de enormes arbustos. Os gritos do rapaz se misturaram aos meus até que um som horrível cortou ambos. Senti que meus olhos sairiam das órbitas; meu corpo sofreu uma sacudida de espanto e após aquele breve segundo de silêncio, gritei
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dilaceradamente. Eu queria chorar. Desejei com veemência. Meus músculos falharam e me senti desfalecer. Então, meu grito cessou e o silêncio se apropriou de tudo, silêncio monstruoso e agudo, muito mais do que horrível; era um tanto pesado, tanto, que envolveu tudo, penetrando até no meu coração, misturado a um terrível vazio. Durante um instante, não reagi, não pude fazer nada mais do que escutar o nada. Era como se algo invisível tivesse me atravessado, cortando minha respiração. Colei o corpo no chão e cobri com ferocidade os ouvidos. Não sei quanto tempo se passou, se foi pouco ou muito, mas senti as mãos arderem e a sensação de isolamento diminuía, seguido de uma ardência na pele. — Você está bem? — Christian tentava fazer com que eu o olhasse, mas eu não me atrevia a levantar a cabeça para ele. Todo meu corpo tremia de forma descontrolada. — Vamos, vou levá-la para casa. — Não me toque! — Balbuciei com algo parecido a um calafrio. — Afastese de mim! — Lena. — Soou diferente, como se estivesse triste. — Não vou lhe fazer nenhum mal. — Vá embora, por favor! — Supliquei com voz sufocada, negando com a cabeça. — Devemos ir embora já. — Elora assinalou, de algum lugar atrás dele. — Não vou deixá-la aqui. — Sussurrou para mim apressadamente, mais para si mesmo do que para mim. Jogou meus braços para cima com força até que me pôs em pé. Pegou minha cabeça entre as mãos com delicadeza e me obrigou a encará-lo. Então, vi-me refletida em seus olhos, encolhida, aterrorizada, como se estivesse a ponto de subir um paredão. Durante um instante, esse mesmo temor percorreu os dele. — Tenho que tirar você daqui. — Onde… Onde ele está? — Gaguejei. Ele não respondeu, minha respiração se descontrolou por completo. — O que vocês fizeram com ele?
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De novo ele não respondeu nada. Ergueu a mão até minha bochecha e então fiquei petrificada. Havia sangue na roupa dele. Afastei-me dele com um movimento brusco e recuei o máximo que pude. Minhas pernas tremiam tanto que ameaçavam me jogar no chão. — Lena… por favor! Tenho que tirar você daqui. — Não! — Eu disse, erguendo a mão. — Afaste-se. Não quero que se aproxime de mim! Christian parou e me olhou de forma estranha. — Lena! — Ouvi me chamarem de algum lugar do parque. Christian se esticou. Elora se aproximou dele, inquieta. — Deixe-me tirá-la daqui. — Ele insistiu. — Não, vão embora vocês dois! — Lena, por favor… — Você já a ouviu, vamos já! — Ela apressou. — Não podem nos ver assim. Ele me olhou com um toque de súplica nos olhos, mas eu afastei o olhar. — Vamos embora já! Notei que Elora se aferrava a ele e pouco depois, ouvi-os desaparecerem entre as árvores. — O que aconteceu? — Era Jerome, por fim. — O que você está fazendo aqui? — Tinha… Você tinha razão. — Balbuciei. — No que eu tinha razão? — Ele urgiu. — Ele… Christian... Ele… Ele matou Víctor. Não sei o que havia com ele. Víctor chegou gritando, acusando-me de ter lhe feito mal… Mas ele… Christian… — Onde está Víctor? — Atrás desses arbustos. — Assinalei com a cabeça.
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Ele saiu apressado para lá. Passaram-se alguns minutos até que ele voltou para o meu lado. — Arrancaram-lhe o coração. — Sussurrou depressa. Cobri o rosto com as mãos, lembrando-me daquele som horrível. — Ouça, não tenho muito tempo antes que o céu se feche por completo. Pode ser que não tenhamos outra chance como esta. Preciso da sua ajuda. — Chance para que? Ele avançou para mim e me abraçou. Mas não foi um abraço normal. Antes que eu pudesse me dar conta, desembainhou uma adaga e a colocou no meu cinto. — Se você o ama, Lena, salve-o. Salve-o dele mesmo. — Ergui o olhar para seus olhos, confusa. — Entregue-o para mim, deixe-me acabar com ele. —Matá-lo? — Contemplei-o horrorizada. — Não! Claro que não! — Afasteime dele. — O que se passa com vocês? São todos como animais! — Não se trata de nós, Lena, trata-se dos humanos. — Insistiu. — Não há bons nem maus aqui. Isto não é o paraíso. Todos nós estamos aqui por uma razão. A questão é quantos de nós mesmos ainda somos capazes de salvar. Ainda pode fazer algo por ele. — Não, não posso fazer isso! — Solucei desesperada. — Faça, ou eu vou fazer. — Eu mataria você. — Não esta noite. — Não… Deixe-me! Não quero falar sobre isso! — Enquanto você foge, as pessoas continuam morrendo por causa dele! E por sua causa também! Olhei-o, fora de mim.
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— JÁ SEI QUE SOU COMO ELE! Exatamente igual, Jerome! Está contente? Agora me deixe em paz! — Lancei lhe um último olhar doído e saí correndo.
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O amor é cruel
Vaguei sem destino durante horas, sem me importar com humanos, guardiões, grandes predadores ou qualquer outra desventurada criatura. Limiteime a caminhar, sozinha, sem saber aonde ir. Nem sequer sabia o que devia fazer. Voltar para casa? Esperar por Christian? Fingir que não tinha acontecido nada? Chamar a polícia? Não podia fazer nada disso! Aquele rapaz estava morto! E eu tinha parte da culpa! Mas, que diabos eu podia fazer? Eu estava aterrorizada. Sim, claro que eu sabia o que Christian era desde o primeiro momento. Eu me lembrava disso constantemente! Ele e o resto do mundo. Mas há uma diferença abismal entre palavras e fatos! Ele o matara! De repente, todas as fotos que Jerome tinha me mostrado se acumularam dentro de mim e senti a realidade como um enorme peso que não era capaz de suportar. Não tinha sido só ele, não, foram centenas, milhares de corações rasgados por Christian, de pessoas torturadas, de sofrimento. Eu o amava, juro sobre qualquer coisa neste mundo que eu o amava, que cada miserável milímetro do meu coração lhe pertencia, mas às vezes, o amor não é suficiente. Nem o que eu sentia nem o que ele pudesse sentir por mim iriam mudá-lo. Ele jamais deixaria de ser o que era: uma máquina de matar, desumana, cruel e demolidora e embora ele tivesse tentado negar todo o tempo, ignorá-lo me transformava culpada também, pelos atos dele.
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De repente, pela primeira vez em todo aquele tempo, fiz-me uma pergunta. Até onde eu estava disposta a chegar? Qual era o limite? Suportaria toda a eternidade vendo que ele continuava matando na minha frente? Não; e eu jamais mudaria por Christian. Nunca. Elora tinha razão, eu não era suficiente para ele, não era suficientemente boa para mudá-lo... Nem cruel o bastante para suportar aquilo tudo. E, agora, neste momento, senti que já não havia como voltar atrás. Era como se todo aquele tempo meus olhos estivessem ocultos com uma daquelas ataduras adesivas e agora alguém a tivesse tirado sem delicadeza alguma. Eu estivera contemplando a realidade sem vê-la, acreditando na imagem que conseguia distinguir com muita dificuldade através dos fios entrelaçados de um tecido. Mas, de repente, conseguia ver tudo com clareza e a dor era mil vezes mais insuportável do que o dano que tinha me causado para me livrar dela. Eu tinha lutado por algo que nem sequer tinha o direito de existir, por um sentimento proibido e cruel. Já não havia lugar para desculpas. Jerome tinha razão; só tinha uma maneira de detê-lo, de salvar o que restava da alma dele. E aquilo foi como um balde de água fria, embora de repente eu entendesse. Ergui a cabeça e me vi diante da porta da igreja. A chuva aumentava, cruel, sarcástica e dolorosa, penetrando no meu corpo. Olhei para o céu. A noite se fechara por completo, e não havia lua. Entrei na igreja, ainda destroçada pela briga que tinha presenciado ali. Avancei sobre o pó de pedra e os escombros que cobriam o chão e me dirigi àquela porta que conduzia ao edifício anexo, onde eu supunha que viviam. Todas as velas estavam apagadas e cheirava a umidade. O ar e a chuva me golpearam ao me aproximar da enorme janela de cristal quebrada, pela qual Hernan tinha caído, mas não me importei. Subi por aquela escada e segui o rastro de Christian até chegar em frente a uma porta. Entrei e fechei depois, girei a chave, devagar e trêmula e me virei para ele. Seu corpo jazia semiconsciente, acorrentado à cama,
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convulsionando e vulnerável, culpa da ausência da lua. Ouvi seus gemidos, o coração parando lentamente. Sofria, retorcia-se de dor. Colei-me à parede, incapaz de me aproximar e arrastei as costas por ela até ficar sentada contra o canto, escutando-o. Mas era demais. Cobri os ouvidos com força e escondi a cabeça entre os joelhos, esperando que os gritos cessassem. Seu coração retumbou em meus ouvidos a toda velocidade, sem dar a mínima trégua, nem a ele nem a mim. Christian gritou de tal maneira que todas as minhas vísceras se encolheram. Apertei ainda mais as mãos contra os ouvidos e de repente, ele parou. Seu coração parou em seco, e um intenso silêncio sacudiu o quarto. Até a chuva parecia ter cessado. Aguardei uns dois minutos mais e me pus de pé, colada contra a parede, tentando juntar forças. Apertei a mandíbula, tirei o aço do cinto e avancei até a cama. Seu rosto estava invadido pela dor, ofegava com dificuldade e as mãos já começavam a puxar as ataduras. Parei junto dele e gravei sua imagem na mente. Mesmo nesse estado, sua beleza era arrebatadora e a perfeição, dolorosa. Minha vontade titubeou de tal maneira que senti gana de me atirar por aquele precipício antes sequer de me permitir voltar a pensar no que ia fazer, mas me obriguei a agarrar o cabo com as duas mãos. O material estava frio e molhado pela chuva entre minhas mãos trêmulas. Não pensei, não quis pensar porque, se o fizesse, se ele me perguntasse uma só vez sobre o que estava fazendo, não seria capaz de continuar. Comecei a soluçar. Eu não queria, não queria fazer aquilo. Inspirei com dificuldade, tentando serenar, e me inclinei para depositar um beijo em seu peito com suavidade. Ele se retorcia, mas senti que balbuciava meu nome. — Eu amo você! — Sussurrei. Fechei os olhos com força, ergui os braços e com um golpe seco, cravei o aço em seu peito, bem no coração.
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Christian abriu os olhos de repente e emitiu um terrível gemido de dor. Fiquei congelada no lugar, com os dedos ainda rodeando a fria e suja adaga. Meus olhos ardiam e meu corpo inteiro se retorcia com ferocidade. Olhei a adaga, que resplandecia com as poucas luzes da noite, lembrando-me do que acabara de fazer. Minhas mãos tremiam descontroladas sobre seu corpo. Minha mente viajou de novo para aquele horrível sonho e não consegui suportar. Não podia, não podia fazer aquilo. Arranquei o aço do corpo dele, joguei-o no chão e cobri o ferimento com as mãos, em uma tentativa de curá-lo. — Sinto muito! — Balbuciei sem voz. — Lena… — Sua voz estava pouco mais que audível. — Sinto muito, sinto muito, sinto muito… Colei a cabeça contra seu peito, soluçando e à espera que as pulsações retornassem, como se precisasse disso para me certificar que ele continuava vivo, e fiquei olhando através da janela, enquanto a noite passava, até que chegou o dia e com ele, a primeira batida do coração dele. Pilhou-me tão despreparada, e penetrou de tal maneira no meu corpo que me assustei. Tirou-me de forma brutal do estado ensimesmado no qual me encontrava. Na sequência, veio a segunda, e logo, a terceira. As batidas do coração dele começaram a invadir o espaço, cada vez mais e mais rápido. Então, senti algo úmido contra minha pele. Olhei minhas mãos, tingidas de sangue, e me afastei dele, assustada. Quando levantei os olhos para ele, dei de cara com os dele, dolorosamente fixos nos meus. Levantei-me de um salto e me afastei o quanto pude da cama. Dali a cena era ainda pior. O sangue cobria grande parte da roupa dele, e agora que o coração voltara a pulsar, tudo piorava. — Christian… — Desamarre-me! — A voz estava rouca e sufocada, e soava a súplica.
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— Não posso! — Solucei — Faça-o, para que possa terminar o que começou. — Christian... — Repeti. Tinha certeza de que estava à beira das lágrimas. Nesse momento, ouvi que alguém se aproximava. Dirigi-lhe um último olhar e saí, saltando pela janela. Desgraçadamente, não dava para o precipício.
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Lar, doce? Lar Cheguei ao local que eu conhecia tão bem. Tudo estava muito vazio, como que deserto, até o bosque parecia abandonado. Havia lua no céu e a noite estava infestada de sons, então não havia guardiões por perto. Parei junto à grade de ferro forjado da entrada, mas estava fechado, o que era estranho, porque não me lembrava de ter tido que abri-la nunca. As dobradiças chiaram e a folhagem formou redemoinhos aos meus pés, oferecendo resistência. A mansão dos De Cote nunca tinha apresentado aquele aspecto tão desalinhado. Todas as janelas estavam vedadas com tapume e não se ouvia nenhum som vindo lá de dentro. Subi a pequena escada de pedra e empurrei o pesado portão, mas este já estava aberto. Por que manter todas as janelas fechadas e deixar a porta aberta? Entrei em silêncio e fechei-a atrás de mim. A escuridão e um inquietante silêncio me envolveram imediatamente. Dezenas de cheiros familiares chegaram ao meu cérebro, seguidos de lembranças. Era como se o tempo não tivesse passado, como se eu tivesse ido embora no dia anterior. Apesar da pouca luz, pude distinguir as coisas ao meu redor. Tudo tinha um ar fantasmagórico. Ainda me retesavam os nervos a pressa daquele dia em que tínhamos saído correndo em direção à casa dos Lavisier. Tudo estava igual, como tínhamos deixado; inclusive o destroço do saguão. O grafite continuava na parede, e o sangue de Caín, agora ressecado, ainda manchava o chão, como se fosse apenas uma pintura. Às escuras e sozinha, aquelas palavras se impunham
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ainda mais do que da primeira vez. Estremeci e irremediavelmente, pensei em Jerome. Entrei na salinha onde tantas vezes eu tinha me reunido com os De Cote e uma onda de nostalgia me percorreu de cima a baixo. Tinha vindo por uma razão, mas era impossível pensar que ainda tinha alguém vivendo ali. Voltei para o saguão e fui até a escada, evitando o máximo possível voltar a olhar para a parede. Ao pôr a mão no corrimão, notei que tudo estava coberto por uma grossa camada de pó. Subi, passei diante da porta do meu antigo quarto sem olhar, não ia encontrar nada útil ali, mesmo. Continuei pelo corredor e virei à direita, percorrendo o mesmo caminho que aquela vez em que procurava a procedência das notas de um violino melancólico. Parecia que séculos tinham transcorrido depois, mas ainda era capaz de ouvi-las, tão nítidas como então. E assim, planteime junto à porta que estava procurando, mas não se ouvia nada lá dentro. Girei a maçaneta com cautela e empurrei a madeira, que chiou ao abrir-se. Lá dentro, encontrei um quarto às escuras. — Liam? — Perguntei. Tentei acender a luz, mas os fios estavam desconectados. Dei um passo e tropecei em algo enorme, mas não caí porque a coisa era alta e pesada o bastante para impedi-lo. Confusa, medi-a com as mãos, tentando ver do que se tratava. A superfície era lisa, polida e ao inspirar notei um fedor horrível; não saberia dizer o que era, mas não se parecia a nada que eu já tivesse cheirado antes. Notei que, daquele monte, saía uma grossa barra de madeira esculpida e então deduzi, preocupada, que era a cama de Liam. Rodeei-a e entrei ainda mais no quarto. Com cuidado para não tropeçar de novo, dirigi-me para a janela, completamente vedada por pranchas de
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madeira. Sem pensar duas vezes fui arrancando todas elas, de modo que a esbranquiçada luz da lua começou a penetrar no quarto. — Não faça isso! — Sussurrou, de repente, uma voz sufocada. Virei-me de repente e sufoquei um grito. A luz da lua inundou o quarto, revelando uma horrível cena. No lugar onde deveria estar a cama, debaixo dos dosséis esmeralda, estava ele, mas não era o Liam que eu me lembrava. Não estava sorridente, nem pulcro, nem bonito. Estava pendurado do teto pelos pulsos, de forma que os pés não tocavam o chão, e estava com a mesma roupa que vestia na última vez que o tinha visto, rasgada e suja, cheia de rastros de sangue. — Liam… — Balbuciei. — Lena… — Tentou dizer algo, mas não pôde. Coloquei uma mesinha de noite e subi nela rapidamente para desatar as cordas que o sujeitavam. Ele caiu no chão com um golpe surdo. — O que aconteceu com você? — Perguntei saltando de novo ao seu lado e lutando para libertar seus punhos. O corpo dele estava tão coberto de pó quanto o resto da casa. Ele não respondeu. Voltei a abaixar-lhe os braços para a posição habitual, fazendo seus ossos rangerem. — Quem fez isso com você? — Ele tentou abrir os olhos, mas não conseguiu mantê-los abertos durante muito tempo. — Vá embora! — Sussurrou com voz fraca. — Não penso em deixá-lo aqui. — Apalpei-o em busca de ferimentos. Ele estava muito quente, mas a escuridão me impedia de averiguar seu autêntico estado. Levantei-me depressa e pressionei o interruptor, mas a luz não acendeu. Voltei para o lado dele e peguei sua mão, nervosa. — Liam, vou procurar algumas velas. Preciso saber como você está. Volto em seguida, prometo!
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Assim que saí, tive que me apoiar contra a parede, cobrindo a boca com força por causa das tremendas náuseas que sacudiam meu corpo. Revolvi tudo em volta procurando algo que pudesse me servir. Pensei até na possibilidade de acender a lareira, mas a fumaça alertaria alguém de que a casa estava habitada de novo. Procurei por toda parte até que encontrei algumas velas em uma gaveta do salão. Peguei-as com força e coloquei em uma bacia todo o gelo que pude juntar na cozinha. Em seguida, voltei para junto de Liam, ajoelhei-me ao lado dele e acendi algumas velas. Debaixo daquela luz bruxuleante, sua imagem era muitíssimo pior. A pele estava arroxeada, os rasgos consumidos e os olhos irritados. Um círculo avermelhado e cinzento ao mesmo tempo os contornava. As pálpebras tinham dobrado de tamanho e era impossível diferenciar as pupilas da íris. — Você tem que ir embora! — Insistiu, fraco e de forma apenas audível. — Não fale, descanse. Eu devia ter voltado antes. — Rasguei uma tira do lençol e derramei o gelo da bacia sobre ela, fazendo uma compressa. Com cuidado, aproximei-o da pele dele. Ele se contraiu por causa da sensação de frio e até fez o gesto de se afastar, mas sua resistência era virtualmente nula. — Quem fez isto com você? — Liam virou a cabeça para o outro lado, sem responder. — Liam, por favor, diga-me o que posso fazer! — Fuja… — Não vou a parte alguma, portanto, você vai ter que me dizer como posso ajudá-lo. Adiantaria se eu o cobrisse com gelo? — Perguntei. Ele puxou ar com dificuldade e assentiu fracamente com a cabeça. — Então vou comprar. Ele tentou me deter, mas não lhe fiz caso. Abri a mochila, soltei Flávio e armando-me de coragem, fui até meu quarto para pegar o dinheiro do envelope que, eu imaginava, ainda descansava no fundo da gaveta da mesinha. Abri a porta e fiquei parada, olhando o interior. Tudo estava como eu tinha deixado, tal e
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qual me lembrava. Toda a pressa se desvaneceu irremediavelmente naquele instante. Entrei devagar e uma onda de lembranças me atingiu com força. A janela continuava vedada, mas ainda podia sentir tudo o que tinha acontecido naquele lugar. A primeira vez que despertei, os dias que passei encerrada me negando a acreditar que tinha morrido, a transformação, a vez em que descobri o que sentia por Christian… Ainda cheirava a ele. Não me custava nenhum trabalho recordá-lo ali, sentado no tamborete, arrasado pelo calor, mas sem abandonar aquele sorriso de superioridade que lhe outorgava aparente tranquilidade. Ou da vez que saltei dali para fugir para a praia secreta. Olhei tudo em volta com um nó na garganta. Nesse momento vi, colada à parede, a única foto que tinha com Christian. Nós dois tínhamos ido ao baile de Adam Lavisier. Tudo era lindo naqueles dias. Levei a mão para pegá-la, mas ao invés, fechei os punhos com força e me obriguei a olhar para outro lado. Não podia; e mais, não devia pensar nele, muito menos naquele momento. Liam precisava de mim. Liguei o gerador, peguei as chaves, o dinheiro e a mochila, e saí correndo para a rua. Fui rapidamente à garagem e lá encontrei minha velha bicicleta. Foi estranho, mas vê-la ali me fez sentir um pouco melhor. Suponho que era uma dessas coisas que têm o poder de fazer a gente acreditar que o tempo, na realidade, não passou, embora não fosse o caso. Tirei todas as teias de aranha que tinham se acumulado em volta dela e saí pedalando. O ar voltou a bater no meu rosto com suavidade, apesar da velocidade que eu ia. Não era uma brisa tórrida como a que me lembrava, mas sim, fresca e reconfortante. Afinal de contas, o outono acabava de começar. Segui o percurso que tinha feito mil e uma vezes, mas quando cheguei ao centro da cidade, vi-me obrigada a parar em seco. Tudo, absolutamente tudo, tinha mudado. As ruas estavam destruídas, sujas e inclusive em alguns lugares,
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queimadas. Havia muitas vidraças quebradas e pessoas jogadas no chão, bebendo e rindo, cheias de cortes e machucados, mas elas não pareciam se importar. Dirigi-me, pasma, ao pequeno supermercado e entrei com a bicicleta. Tive pânico só de pensar em deixá-la lá fora, naquele lugar. O local por dentro estava quase tão destroçado quanto lá fora. Havia uma atendente baixinha, com o rímel borrado por causa das lágrimas que ainda lhe marcavam as faces. Peguei todo o gelo que consegui colocar na mochila e me aproximei da caixa. — Você está bem? — Perguntei timidamente. — E O QUE VOCÊ TEM COM ISSO! — Gritou-me. Recuei dois passos pelo susto. Paguei, guardei os cubos de gelo e saí dali. Para voltar, tive que me esquivar de muito mais gente, a maioria em um estado de embriaguez preocupante. Alguns minutos e umas duas propostas indecentes mais tarde, cheguei de novo em casa, assustada. — A cidade está um caos. — Comentei, assim que entrei de novo no quarto de Liam e ligando o ar condicionado. Sentei-me ao lado dele e depositei a mochila sobre a cama. Começava a ficar tão frio no quarto que pensei que não seria possível que o gelo fosse descongelar tão cedo. Então, fixei-me em Flávio. Liam tinha conseguido mexer um braço e o apertava contra o peito, enquanto o pequeno felino lambia suas feridas. Pela expressão de seu rosto, adivinhei imediatamente que Liam já tinha descoberto a identidade do gato. — Vejo que já se conhecem. — Sorri. — Gareth me contou de onde ele vem. Nem sequer sei como me encontrou. — Sorri. — Mas ele me protegeu. — Cuide dele…
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— Lisange virá logo. De algum jeito, todos nós voltaremos a estar debaixo do mesmo teto. Peguei outro lençol e o cobri, formando uma manta de gelo. Apalpei com cuidado sua pele e comecei a limpar os restos de sangue e a ferida. — Sua temperatura está baixando. Está se sentindo melhor? — Comecei a me sentir melhor no instante em que você apareceu. — Liam… Farejei o rastro de Christian no meu quarto e é mais recente que o de Lisange. — Ele não disse nada. — E sua roupa manchada de sangue. Ninguém sangra se não lhe palpita o coração. Foi um grande predador que lhe fez isso. Christian esteve aqui, não é? — Não procure culpados, ninguém é inocente. — Desviou o olhar. — Não faça isso. Não precisa defendê-lo. — Na realidade, o pior era que não estava surpresa, nem atemorizada, simplesmente o assimilava, como se tivesse sentido e não pudesse ser de outra maneira. — Sinto muito por não ter voltado antes. — Não deve se lamentar. — Ergueu a mão e acariciou minha bochecha com um dedo. — Você não tem culpa de nada. — Senti muito sua falta. — Peguei sua mão e a apertei contra o meu rosto. — Não mais do que eu senti saudade de você. Sorri com tristeza e pigarreei. — Temos que encontrar uma maneira de você se alimentar… Nós vamos nos esconder bem. — Receio que não seja possível. Nossa única possibilidade seria partir para outra cidade, mas mesmo assim, não tenho forças necessárias. — Poderia se alimentar de mim? — Perguntei. — De maneira nenhuma! — Sua voz foi cortante.
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— Vi Christian se alimentar de Elora. — Confessei. — Ele colocou a mão no peito dela. Para nós é mais fácil, não? — Não vou nem considerar essa possibilidade. — Mas isso seria possível? — Insisti. — Esqueça-se dessa ideia! — Você não tem força suficiente para sair daqui e precisa se alimentar. — Faz muito tempo que não me alimento. — Precisamente por isso deve se alimentar de mim. Não há linha a cruzar, no meu caso e você não vai precisar se esforçar para chamar minha atenção. — Sorri. — Lena… — Não poderá sair daqui, nem poderá se recuperar, se não se alimentar. Você precisa pelo menos ter força suficiente para poder chegar ao centro da cidade. Liam, já lhe disse que este lugar não é seguro e não vou abandonar você de novo. — Não se dá conta do que me pede? Parei por um segundo, ele tinha razão. — A verdade é que não. Não tenho nem ideia do que pode acontecer, nem do que vou sentir, mas é a única possibilidade, portanto, faça. Notei sua resistência, mas finalmente, cravou os olhos em mim e nesse momento, uma imagem diferente, mas forte e brilhante, abriu caminho diante de mim. Havia chuva e incríveis e impenetráveis olhos fixos em mim. Uma intensa dor se assentou no meu coração e não era física, mas emocional. Senti todas as minhas dúvidas, todas as inseguranças florescerem na minha mente. Era pequena, indefesa e insignificante. Não era nada, não merecia nada nem ninguém e de repente, tudo se transformou em uma horrível e indescritível dor física, espalhando-se por todo meu corpo. Comecei a tremer, a querer morrer
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para pôr fim àquilo e de repente, a chuva me empapava, eu tentava alcançar uma sombra contra o céu e um incessante temor fez meus joelhos tremerem. Tudo cessou bruscamente e os olhos de Liam voltaram a aparecer diante de mim. Notei a pele de sua mão contra minha bochecha, acariciando-a com suavidade e ternura. — O que andaram fazendo com você? — Murmurou. Nesse momento, o som da voz dele me devolveu à realidade. Pisquei e o contato visual se rompeu. — Há tanta dor no seu coração… — Volte a fazê-lo. — Pedi. — O que? — Vi algo, volte a se alimentar, por favor. — Já é suficiente. — Liam, por favor, preciso que… — Não Lena! — Soou cortante, naquela singular e elegante maneira de ser, mas irrevogável.
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Uma porrada de realidade
No dia seguinte, acordei sozinha. O sol não estava alto, mas parecia ter começado a descida para a noite. Estava tão cansada que tinha dormido até avançadas horas da tarde. Alerta, levantei-me de um salto e fui procurar Liam. Não sabia como ele estaria. Procurei-o por toda a casa até encontrá-lo na cozinha, tranquilo e paciente. Assim que me viu, esboçou o mais incrível dos sorrisos e por um momento, esqueci-me de tudo. Ali, diante de mim, estava o autêntico Liam, o cara de aparência principesca que tinha conhecido exatamente naquele mesmo lugar. Estava sorridente, pulcro e arrumado, inclusive o cheiro era quase que o mesmo de antes; embora ainda estivesse com aspecto cansado, nas mãos e na parte baixa do pescoço, ainda dava para ver aquelas horríveis manchas cinzentas. — Você parece muito bem! — Exclamei. — Estou em dívida com você. — Aproximou-se e pegou minha mão, beijando-a como fazia antes. — Alegra-me ter podido ajudar. — Seus antiquados costumes sempre conseguiam “me ruborizar”. — Não sou o único que deve alimentar-se hoje. — Apontou para as rodelas nas minhas mãos. — Você dormiu bem?
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— Não sei se dormi ou se fiquei inconsciente, ou o que for... — Reconheci, afastando-me e ocupando uma das cadeiras que rodeavam a mesa. — Liam, preciso que me responda algo: provocamos dor física nos humanos quando nos alimentamos deles? — Perguntei preocupada. Ele me olhou com estranheza e negou com a cabeça. Eu fiquei em silêncio durante alguns segundos. — Quando você se alimentou de mim, vi coisas, fragmentos de sonhos… E senti dor. — Por que não me fez parar? — Acredito que foi a noite em que morri. — Olhei-o com ansiedade. — É possível isso? — Na maior parte do tempo, os sonhos são apenas isso, sonhos. Não deve lhes dar maior importância. — Mas, e se estou começando a me lembrar? — Não tem nada escrito em nenhum livro que revele quando vamos recuperar esses momentos, Lena, mas me atrevo a julgar que ainda é cedo. — Parece que sempre vou contra o que todos esperam. — Isso não é necessariamente ruim. Inspirei fundo, sentindo o peito pesado e dolorido. Não sabia se queria me lembrar, mas era o mais perto que já estivera, até o momento, de saber algo autêntico sobre mim. Pigarreei e me resignei. — Deveríamos partir já, embora não sei se é o mais seguro. Não vai acreditar, mas La Ciudad está irreconhecível. — Eu sei, Lisange me contou. — O que aconteceu? — Perguntei. — Houve uma fuga maciça de caçadores. — Explicou. — O equilíbrio foi rompido, ou esteve perto disso. Sem caçadores, os guardiões não podiam caçar, então, eles também partiram. Estavam totalmente desesperados, tentavam invadir a casa pelo menos três vezes ao dia. Quando os guardiões se foram, veio
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uma horda de grandes predadores, descontrolados. — Fez uma pausa para respirar. — O equilíbrio foi criado para eles. Os humanos temem tudo aquilo que lhes causa dor, por isso se esforçam para evitá-la, mas como não tinham caçadores que lhes recordassem essa dor, esqueceram-na. Os guardiões tampouco podiam interceder para moderá-lo, de modo que ficaram os grandes predadores, a vingança e a tentação que produzem neles. — Nunca vi a vingança ser despertada neles, pensei que seria uma dor maior. — O normal é que se alimentem deles até o ponto de deixá-los inconscientes. Outras vezes acabam com eles, provocando a vingança em outras pessoas. O equilíbrio é muito delicado, Lena e faz tempo que esta cidade está completamente perdida. — Bom, pelo menos estamos a salvo. — Comentei, esforçando-me para ser otimista. — De maneira nenhuma. Há alguns guardiões que não puderam escapar, estavam muito debilitados. Alguns até esperam que algum caçador passe para o lado deles para poderem alimentar-se e recuperarem as forças. Alguns tentaram, inclusive, atacar grandes predadores, mas foi em vão. É muito perigoso sair para se alimentar nessas horas, não pense que desejo expô-la a isso. — Mas eles devem saber que, se acabarem com os poucos caçadores que estiverem por aqui, o equilíbrio nunca se restabelecerá. — Pensei a toda velocidade. — Prevalece a lei da sobrevivência. Pensarão, em primeiro lugar, em viver, e depois em tentar arrumar o mundo. — Então, deveríamos ir embora daqui. — Eu disse, repentinamente alarmada. Não queria que voltasse a acontecer nada com ele. — Para onde, Lena? — Ele perguntou com calma.
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— Para qualquer lugar e que seja seguro. — Aleguei. — Não há lugar seguro, muito menos neste estado. — Tentou me animar com um sorriso e estendeu uma mão para mim. — Vamos, precisamos ir embora já. O melhor que podemos fazer é nos mantermos fortes. De algum jeito, conseguimos chegar até o centro da cidade. Liam sobressaltou-se ao comprovar em que estado se encontrava o local. Era algo que ele já sabia, mas entre imaginar e ver tinha uma distância bastante grande. Eu o levei até o local onde eu tinha comprado o gelo, mas a atendente que tinha me atendido não estava lá. No lugar dela havia outra. Parecia muito mais estável emocionalmente, embora, por algum motivo, tive a sensação de que ela não estava muito bem. — Você vai ter que me lembrar como se faz. — Ele sussurrou perto de mim. Eu o olhei, confusa. — Não creio que alguém vai parar hoje para me olhar com admiração e faz muitos séculos que não me alimento da forma inicial. — E me deu de presente um sorriso. — Não sei se vou ser capaz de lhe explicar. — Hesitei. — Christian me disse que… — Fiz uma careta. — Você sabe, só queria me assegurar de captar sua atenção e estabelecer contato visual. — E com quem você diria que eu poderia fazer isso neste lugar? — A atendente? — Sugeri, encolhendo os ombros. — É a única que está olhando para nós. Havia duas pessoas mais ali, mas só ela estava prestando atenção em nós. Ela nos vigiava como se pensasse que fôssemos levar algo sem pagar. — Terá que ser essa encantadora dama, então. — Já conseguiu a atenção dela. Agora, apenas olhe para ela e deixe que… — Lena… — De repente, o rosto de Liam mudou por completo e me obrigou a retroceder. — Isso não é humano.
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— O que quer dizer? — Perguntei confusa. — Temos que sair daqui imediatamente! — Puxou-me pelo braço. — Vamos! Nesse momento, a mulher saltou por cima do balcão com uma careta ameaçadora e olhos de predadora. Um grito escapou-me da garganta enquanto Liam me puxava e abria a porta traseira. Saímos justamente quando escutamos a mulher lançar-se contra nós e cair contra as estantes de produtos, provocando um enorme estrondo. Liam não permitiu que eu olhasse para trás, nem para verificar se ela nos seguia. Corremos por aquela triste rua, entre vagabundos, gente bebendo e carros mal estacionados, com aquela estranha mulher correndo atrás de nós. Era uma autêntica corrida pela sobrevivência. Liam me tirou da cidade e entramos no bosque, que ia dar justamente diante da nossa casa, mas nenhum dos dois contava com muitas forças. Era uma sorte que aquele guardião tampouco, pois, se não fosse assim, teria lançado mão de toda sua habilidade para locomover-se de um lugar para o outro com um piscar de olhos. De repente, Liam se deteve. — Corra até em casa! — Gritou para mim. — O que está fazendo? — Se não a detivermos, tudo aqui vai ficar inundado de guardiões em questão de minutos. Eu ia alegar algo quando um rangido de folhas captou por completo minha total atenção. Liam enrijeceu durante um instante e depois levou um dedo aos lábios, pedindo que eu ficasse em silêncio enquanto esquadrinhava tudo ao nosso redor. Sem me dar conta, meus ouvidos se afiaram de maneira dolorosa. Liam se abaixou com supremo cuidado, subiu um pouco a perna da calça e tirou uma adaga. A lâmina cintilou ligeiramente e nesse momento, o guardião caiu
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sobre ele de forma fulminante. Liam esquivou a mão que o outro dirigia para o coração dele e ambos se fundiram na luta. Olhei em volta sem saber o que fazer, de que maneira ajudar. Então, reparei em uma pedra bastante grande situada junto a uma árvore. Levantei-a e lancei-a contra eles. O guardião se esquivou sem nenhuma dificuldade, mas não desisti. Joguei neles tudo o que encontrei ao meu redor, rogando para que nada atingisse Liam, até que, desesperada, lancei-me sobre o guardião e caí rolando com ele, afastando-o dali. Lutei contra aquelas garras até que Liam foi me ajudar. Nesse momento, no breve segundo no qual o guardião se dignou a me olhar, descobri que não era a mulher da loja. Um instante depois, Liam o agarrou pelas costas e o lançou para dentro do bosque. Aguardamos em silêncio por alguns minutos. A situação era assustadora. Ele se mantinha como uma estátua, nem um só cabelo do corpo se atrevia a se mexer, mas o guardião não voltou a aparecer. Então, aproximou-se de mim e me estendeu a mão para me ajudar a me pôr de pé. — Não era ela. — Ofeguei. — Você conseguiu ver o rosto dele? — Temos que sair daqui imediatamente. — Onde? — Perguntei com dificuldade. — Onde ela está? — Isso não importa agora. — Puxou-me pelo braço e me instou a correr. — Vá na frente, eu vou cobrir a retaguarda. O barulho ainda não tinha voltado. Mas ela estava ali, podia senti-la. Ambos podíamos, então fiz o que Liam me pediu e corri para a casa, com ele pisando nos meus calcanhares e sem saber muito bem o que aconteceria lá dentro. O exterior continuava desabitado. Entrei depressa e me preparei para fechar a porta, mas então, descobri que estava sozinha. Liam não me seguira. — Liam? — Perguntei com medo. Flávio se enrolou entre meus tornozelos. — Liam? — De novo, não obtive resposta. — Merda! — Abaixei-me, peguei Flávio
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nos braços e saí de novo para a rua, para a borda do bosque. Sentir o gatinho junto a mim me conferiu um pouco de coragem, mas eu estava aterrorizada. Eu o tinha sentido correr atrás de mim, sentira que me seguiu durante todo o trajeto, então, onde ele tinha se metido? — LIAM? — Desta vez eu gritei. E se não fosse ele? Olhei em volta, sentindo todos os músculos rangerem pela repentina tensão no corpo. E se não era ele quem eu havia sentido? Não parecia ter ninguém ali, mas ainda não captava nenhum som, nenhum, em absoluto. Retrocedi devagar para a casa, sem deixar de olhar o espesso bosque, pendente de cada pequeno movimento. Subi as escadas; só o som dos meus próprios passos contra o pó de pedra invadia o silêncio. Cheguei à porta e soltei Flávio, para que eu pudesse entrar enquanto continuava vigiando o exterior, na esperança de que Liam aparecesse a qualquer momento e evitando pensar no que ocorreria se ele não voltasse. De repente, um rugido animal convulsionou meu corpo inteiro. Virei-me para Flávio e dei de cara com a mulher do supermercado. Não pude nem piscar antes que ela me golpeasse de tal maneira que aterrissei ao pé da escada da entrada. O gato se lançou contra ela, cravando as garras na pele dela. O guardião deu uma sacudida e se desfez dele bem no momento em que Liam reaparecia pelo bosque e afundava uma adaga ensanguentada no coração dela. A mulher caiu ao meu lado com um ruído surdo. Olhei para Liam, tremendamente agradecida por ter salvado minha vida e ainda por cima, por continuar vivo, mas ele não me olhava. Mantinha os olhos ainda cravados na orla do arvoredo, inquieto. Não me passou despercebida a forma como ele apertava com força o cabo da adaga, nervoso. Pus-me de pé e me virei para ver o que ele olhava com tanta atenção, mas nem precisei me esforçar. Não demorei nem dois segundos para me dar conta; tudo continuava em silêncio.
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— Entre na casa. Em poucos minutos ele voltou a vedar as janelas que tinham ficado livres. Logo retornou ao saguão onde eu estava, rígida, aferrada a Flávio, como se ele fosse o único que pudesse me salvar, e aterrorizada, porque os únicos sons que chegavam aos meus ouvidos continuavam sendo os que nós mesmos produzíamos. Ele se aproximou de mim sem dizer uma palavra e deixou um enorme candelabro aceso ao meu lado, para fazer frente à escuridão que estava aumentando. — Você não conseguiu se alimentar. — Informei preocupada, enquanto ele verificava de novo o portão e as janelas da sala. Se eles viessem nos atacar, aterrorizava-me por ser eu a única possibilidade de nos defender. — Eu vou ficar bem, não se preocupe. Eles lhe fizeram algo? — Não, creio que não. — Bom. — Aproximou-se de um suporte na salinha, afastou-o com um movimento e revelou, na parte de trás, várias adagas reluzentes, arrumadas em perfeita ordem. Acomodou duas sob a roupa e colocou a terceira na minha mão, enorme e pesada como as outras. — Nunca saia sem uma destas. Flávio voltou a rugir. Ambos nos aproximamos rapidamente da janela. — Tem alguma coisa lá fora. — Murmurei com um fio de voz. — Eu sei. — Com certeza é a Ordem. — Minha voz tremeu, aterrorizada. Ele se aproximou da janela junto à porta e correu as cortinas alguns centímetros, o suficiente para ver, entre as madeiras que cobriam os vidros, o que estava acontecendo do outro lado. — Você está conseguindo vê-los? — Balbuciei. — Estão nos observando. — Fechou a cortina e se afastou bem devagar, rosto tinha escurecido. — Não é a Ordem. São caçadores. — E isso... Isso é ruim? — Perguntei confusa.
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— Caçadores do Ente. — Algo se encolheu violentamente dentro de mim. — Nossos problemas só estão aumentando. — Afaste-se da janela! Eles vão vê-lo! — Disse-lhe. — Eles já sabem que estamos aqui. — O que podemos fazer? — Minha voz soou angustiada. Era apenas um leve sussurro entrecortado. — Esperar. Não vão atacar esta noite. — Como sabe? — Porque agora estão nos espreitando. — Afastou-se da janela e pegou um lampião a gás, avançando para a salinha. Eu o segui. — Não deveríamos tentar escapar? — Perguntei enquanto Liam se sentava no sofá. — Não tem como fugir do Ente. — Está pensando que a Ordem e o Ente estão aqui? — A possibilidade de que se uniram é o que me preocupa. — Por que fariam algo assim? Ele inspirou fundo e pousou as costas no respaldo da poltrona com gesto cansado. — No princípio, a Ordem de Alfeo foi criada com os guardiões mais fortes e extraordinários, com a finalidade de servir ao Ente, de controlar e proteger o delicado equilíbrio, mas Cardassay corrompeu a missão. — Quem é Cardassay? — Perguntei confusa, sentando-me ao lado dele. — Era um caçador extraordinário que obteve muito poder. Corrompeu a Ordem e mais tarde, tentou a mesma coisa com o Ente, sem êxito, de modo que provocou a Ordem a sacrificar vários membros. Esteve a ponto de transformar-se em um grande predador. — Inspirou com dificuldade. — O Ente ficou em perigo mais do que nunca quando surgiu essa possibilidade.
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— E onde ele está agora? — Posto que pretendia ser um grande predador, castigou-o com o mesmo trato. Sofreu uma quantidade indescritível de torturas. Queriam entregá-lo ao próprio jogo, ao próprio circo, mas ele jurou que estava arrependido, de modo que lhe deram uma morte digna. Depois, ocultaram tudo e fingiram que nada tinha acontecido. — É uma barbaridade… — Não sabem até que ponto tais ações foram cruéis. — Seu olhar se cristalizou. — Perseguiu os grandes predadores até um nível exagerado. Convenceu todos nós a aprovarmos atos inadmissíveis. Com Cardassay, o ódio dos grandes predadores pelos caçadores aumentou exageradamente. — Enrijeci. — Aconteceu alguma coisa? — Você disse “nós”. — O olhei sem compreender. — Se tudo foi abafado, como é que você sabe disso? Cravou o olhar em mim e eu me levantei, muito tensa. — Não tenha uma ideia errada. — Você faz parte do Ente, não é? — Murmurei quase ofendida. — Por isso todos o tratavam com veneração na casa dos Lavisier. — Não no presente. — Disse com voz grave. — Isso foi há muito tempo. — Por isso não quer que fujamos! Por isso ninguém queria que eu voltasse para cá! — Retrocedi. — Vai me entregar? — É obvio que não! De repente, tudo começava a fazer sentido. — Christian sabia… Foi por isso que ele o atacou… — Christian ouviu algo que não queria. — Em troca, quando ele voltou para cá… O que você lhe disse? Fez uma pausa.
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— Que ele devia matá-la. Senti que algo me atravessava o peito e voltei a retroceder. — Foi você? — Para salvá-la, antes que seja tarde. Antes que você manche as mãos de sangue! O que eu disse àquele grande predador foi que matasse você enquanto seu coração continua intacto, pois essa é a única maneira de salvá-la. Você não devia estar neste mundo. — Não se dá conta do que estive a ponto de fazer? — Sentia uma grande pressão no coração. — Tentei matar Christian! O rosto dele empalideceu ainda mais. — Repita o que acabou de dizer. — Ele tentou me matar! Matou um humano! Pensava que era a única forma de… — Você o matou? — Interrompeu-me com urgência. — Não! Não pude! Mas agora eu sou o monstro! Ele só queria me proteger! — Apenas uma ação heroica não justifica séculos de crueldades. Tudo que eu fiz também foi a seu favor. — Está mentindo! — Gritei. — Como posso acreditar em você? Dei meia volta para me dirigir à porta. — Pare! Não deve sair! Mas não lhe fiz caso, nem sequer lhe dei tempo para que tentasse evitar. Peguei a mochila e saí correndo da casa.
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Confiança
Pouco me importava os guardiões lá fora, nem o Ente. Só sabia que devia me afastar. Estava furiosa e doída. Era verdade o que Christian dizia sobre me proteger. Ele não queria me causar dano, Liam tinha metido essa absurda ideia na cabeça, tinha-o posto entre a espada e a parede e eu… Eu tinha acreditado sem mais naquela, naquela mudança. Christian me amava! Amava-me de verdade! Mas eu tinha continuado duvidando dele, e agora eu tinha estragado tudo. Tentei me zangar com Liam, mas não consegui. Queria odiá-lo por ele ter pertencido ao Ente, por ter convencido Christian e por tudo o que todos tinham escondido de mim. Era injusto! Era injusto e cruel esconder de mim todas aquelas coisas! Tinham conseguido que eu fizesse mal à pessoa que mais se sacrificou por mim. Pedalei através da noite até a antiga casa dele, embora, na realidade, não soubesse por quê. Não esperava encontrá-lo lá, nem nada parecido. Talvez precisasse ver aquela pequena parte de Christian que ainda ficava em La Ciudad. Encontrei-a tão vazia e falsa como me lembrava dela. Apoiei o guidão no chão e me aproximei do frio edifício. A luz do entardecer lhe dava um aspecto mais cálido, algo que não pensei que fosse possível. Devia reconhecer que aquele lugar fazia com que meus joelhos tremessem, mas imaginava a razão: torturas, lutas, mortes... Eu nem sequer sabia o que estava fazendo ali. Christian tinha
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levado uma importante parte de mim mesma e eu queria recuperá-la, embora estivesse claro que eu não a encontraria ali. — Sabia que estava na cidade, mas não esperava uma visita formal. — Disse uma voz maliciosa à minha frente, escondida entre as sombras. — Como me encontrou? — Perguntei com cautela. A última vez que tinha visto Hernan Dubois ele tinha caído por um escarpado, então duvidava que estivesse de muito bom humor. — Foi você quem foi à guarida de um grande predador. Não foi um rasgo de brilhantismo, se me permite dizer, mas em todo caso, receio que fosse muito previsível. — Riu e saiu à luz da noite. — Só há um lugar ao qual Lena De Cote iria querer ir. — Christian também está aqui? — Não sabia se queria ou não encontrálo. — Você cravou uma adaga no coração dele. — Recordou-me. — Esperava que voltasse correndo para buscá-la? — Por muito que me odiasse reconhecer, ele tinha razão. — Ele sabia o que encontraria aqui. — Entendi de imediato que se referia a Liam. — Para que ele iria voltar? Para que você terminasse o que começou? — Riu. — E você? — Tenho uma mensagem para você. De repente, um som entre as árvores me sobressaltou. — O que foi isso? — Estão rodeando-a. — Aproximou-se um passo a mim, rindo e me falou ao ouvido. —Eles estão aqui, Lena, estão com fome e sede de vingança. — A Ordem? O Ente? Diga quem são eles! — Estão observando você neste instante. — Onde? — Dei voltas ao meu redor, assustada.
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— Eles estão em toda parte: entre as árvores, nas esquinas… Creio que você não vai ter tempo de chegar à casa. — Agarrou-me pelo braço e me aproximou dele: — Procure-o esta noite, Lena, se não quiser que ele morra. — De quem você está falando? De Christian? O que quer que eu faça? — Corra. — Riu de forma cruel. — Nós adoramos vê-los correr. Empurrou-me para frente justo no momento em que os arbustos mais próximos começaram a se mexer. O empurrão me jogou no chão, mas pude ver perfeitamente um par de olhos azuis elétricos entre as sombras. Meio segundo mais tarde, peguei a bicicleta e pus-me a correr. Ao fundo, escutei as risadas de Hernan, elevando-se sobre o silêncio da noite. A tarde estava fria, podia notar no ambiente. Os restos da chuva tinham deixado grandes atoleiros na calçada que agora começavam a congelar com o frio da iminente noite. Corri costa acima e costa abaixo, por ruas desertas e habitadas, mas sempre com a mesma sensação de que vários olhos me vigiavam. Não parei nenhuma só vez. De fato, não sabia nem aonde ir, até que me deparei com o clube da hípica ao qual tinha comparecido, em uma ocasião, com todos os Do Cote. Detive-me, hesitando. Não podia pedalar sem rumo, precisava me esconder em algum lugar até que amanhecesse. Lembrei-me de Renoir, o recepcionista daquele lugar, que tinha resultado ser um guardião da Ordem. Entretanto, agora, aquele lugar parecia completamente abandonado, como quase todos os outros negócios em La Ciudad. Tirei Flávio da mochila para verificar se ele sentia algum tipo de vibração estranha, mas o gatinho parecia tranquilo. Os animais continuavam ali e para minha surpresa, em bastante bom estado, embora mais magros, mas não havia nenhum sinal de humanos. Deixei Flávio no chão, enchi os bebedouros e
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manjedouras dos cinco exemplares que ainda restavam ali e fiquei absorta vendoos comer. Peguei uma pequena escova, disposta a escová-los, quando alguém apareceu na porta, sobressaltando-me. — Entendo seu desgosto, mas não pode fugir assim. — Como me encontrou? — Ameacei-o com aquela ridícula escova para cavalos. — Eu a segui. — Desprendeu do ombro uma aljava e um arco e o encostou-se à parede. O aspecto dele parecia ter piorado um pouco. — Se não vai me entregar a eles, por que veio? — Porque você é parte da minha família. Lamento que tenha vindo para cá, fugindo dele, mas acredite ou não, é o melhor. Fui testemunha de todos os passos que ele perpetuou para romper seu coração. Aguardei em silêncio, mantive-me na sombra pelo único prazer de vê-la sorrir, mas não posso continuar afastado, Lena. Não quando estou vendo-a sofrer. — Isso não é assunto seu, Liam! — Murmurei. — A eternidade é como um escuro e interminável túnel. — Pousou com cuidado a mão na minha face. — Comprido, vazio… Você sente medo, corre, sente-se presa e vulnerável. Você é a luz nesse túnel. Dá luz à escuridão, mas precisa entender o que lhe contei. Eu quero a sua felicidade. — Não tenho o coração que todos pensam. — Você não chegou a matá-lo. — Ele me fez lembrar. — Nem ele a mim. — Aleguei. — Ele chorou sangue, Liam! E a alma dele se partiu e nem assim fui capaz de me dar conta de que ele me ama de verdade. Foi preciso que você me dissesse para eu acreditar… Parei de repente, incapaz de continuar. Os cavalos tinham emudecido, Flávio estava rígido e Liam já não prestava mais atenção em mim. — Eles estão aqui. — Ele disse franzindo o cenho.
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Nós dois nos aproximamos rapidamente da porta. Liam a abriu alguns milímetros e eu olhei através da fresta. Lá, dentre as árvores, estavam surgindo numerosos guardiões providos de enxadas, paus e rastelos. — O que vai acontecer agora? — São guardiões. Eles estão há meses sem se alimentar. Guardou o que lhe entreguei antes? — Fui até minha mochila e tirei dela a adaga chapeada. — Não mate ninguém, aconteça o que acontecer e tampouco permita que eles a apanhem. Se eles a apanharem. — Colocou a mão no bolso da jaqueta e tirou uma cápsula de sangue de guardião, que pôs na minha mão. — Crave isto no seu próprio coração. — Que tipo de conselho é esse? — Olhei-o aterrorizada. — Quer que eu me mate? — Vamos! — Sussurrou pegando minha mão e puxando-me para as escadas. — Precisa sair daqui. — Mas… Guiou-me depressa até um dos cavalos e começou a encilhá-lo. El Cordobés. Eu ainda me lembrava do nome daquele animal. — Afaste-se o máximo que puder e se esconda. — E você? Apertou os arreios e me ajudou a montar. — Eu vou tentar entretê-los. — Entregou-me Flávio. — Leve ele também. — Não vou deixar você! — Exclamei negando com a cabeça. — Você não tem escolha. — Arrancou com um só movimento as pranchas de madeira que bloqueavam a porta e se virou para mim. — Não posso garantir sua segurança com eles aqui. — Já me viram. — Lembrei. Três figuras encapuzadas sob capas de veludo verde envelhecido abriram caminho entre os recém chegados e se
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aproximavam de nós. — Sabem que estou aqui. É tão perigoso ir quanto ficar e eu prefiro ficar com você. Ele montou em pelo em outro magnífico exemplar. — Siga-me até o bosque. Lá vamos nos separar. Olhei-o fixamente, disposta a me negar mais uma vez, mas nesse momento, ouvimos um grande estrondo e o estábulo inteiro veio abaixo.
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O circo
— Para onde vamos? — Perguntei dois minutos depois, galopando atrás dele pelo terreno dos fundos. — Devemos nos separar! Fuja e não pare para nada. Vou distraí-los. Aguarde até que o sol volte a aparecer. Quando amanhecer, vá procurar Lisange e leve-a para longe. — Liam! — Faça o que estou dizendo! — Dito isto, adiantou-se a toda velocidade, perdendo-se entre as árvores. — LIAM! — Gritei tentando segui-lo. Fiz todo o possível para captar e perseguir o som do cavalo dele. Eu o procurei, vagando sem sentido durante vários minutos, mas ao cabo de alguns segundos, perdi totalmente o rastro dele. Já nem sequer conseguia ouvi-lo. Parei o cavalo e olhei em volta, ansiosa. Como, diabos, eu conseguiria me esconder? Aonde eu ia me esconder? Como eu conseguiria burlar todos aqueles guardiões?
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De repente, o animal começou a ficar inquieto. Relinchava, erguia as patas, nervoso e se movia de um lado para o outro. Podia notar seus músculos se esticando. Então, os sons do bosque começaram a se apagar. Girei o corpo, olhando para trás, para um lado, para o outro... O frio começou a gelar minha nuca e um horrível chiar de dentes penetrou meu corpo. Apertei as esporas com força, mas o cavalo não se mexeu. Estava tão imóvel quanto o resto do bosque. — VAMOS! — Gritei-lhe. — CORRA! — Notava o frio me impregnando mais e mais fundo nas vísceras e a sensação na nuca mais pronunciada. — Por favor! — Exclamei desesperada. — Corra! Insisti, desesperada, até que o cavalo despertou daquele marasmo, relinchou com ferocidade e arrancou veloz, internando-se no bosque. Mas isso não foi suficiente, pois os sentia cada vez mais perto. Locomoviam-se extremamente rápido entre as árvores, rodeando-nos. De repente, um guardião apareceu diante de nós, tentando nos deter. Virei as rédeas com força, obrigando o cavalo a mudar de direção. Essa manobra quase nos derrubou. Aferrei-me à crina dele para evitar os numerosos ramos das árvores. Seus músculos trabalhavam sem descanso, sentia seu coração retumbar ferozmente por todo meu corpo. Então, um assobio rasgou o ar e algo parecido a um estranho rangido atravessou o animal. O cavalo deu uma sacudida e me jogou no
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chão com uma forte pancada. Em seguida, caí rolando por uma encosta de barro e espinhos enquanto, no fundo, os alaridos de dor do cavalo penetravam na escuridão. Tudo começou a dar voltas, senti golpes, barulhos e medo, tudo misturado em uma grande confusão, até que freei contra um grosso tronco que bateu com rudeza nas minhas costelas. Desorientada, agarrei-me à árvore e me pus de pé com cuidado, olhando em volta à procura da minha montaria ferida, mas só consegui ouvir o som longínquo dos gemidos dela. Ato contínuo, o eco desapareceu e fiquei sozinha nas profundezas do bosque. Eu estava nervosa, as mãos tremiam de forma descontrolada e por alguma razão, eu tinha começado a tiritar. Apertei as mandíbulas com força para que o barulho de castanholas dos meus dentes e minha respiração alterada me permitisse escutar algo. Então, levantou-se uma repentina brisa e a inquietação do bosque aumentou até fazer-me senti-la em cada célula do corpo. Algo despertou dentro de mim e pus-me a correr. Avancei entre as moitas, sobre os atoleiros e o barro gelatinoso, sabendo que me perseguiam. Estava aterrorizada e tanto, que só queria chorar e gritar. Muitos ramos batiam em mim à minha passagem, as samambaias tentavam me impedir de avançar, mas não parei até que uma grande raiz surgiu no caminho me fazendo cair na lama, que por si só já era profunda. Escrutinei o silêncio e a escuridão desde aquele lodo, já não ouvia o rangido de dentes, mas continuava
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com a horrível sensação de que alguém estava me espreitando. Agucei o ouvido e por fim, escutei algo, não saberia dizer o que, entretanto, também consegui captar um cheiro naquela direção. Era longínquo e vago, mas não demorei nem um segundo para reconhecê-lo. Era ele e essa certeza produziu-me um broto de esperança. Levantei-me como pude e corri para lá com todas minhas forças. Sem nada que pudesse ter feito para adverti-lo, saí no meio de uma clareira e o encontrei, inclinado como uma fera a ponto de atacar. Recuei assustada, mas então seus olhos se abriram de forma estranha. — Lena! — Sua expressão de surpresa e espanto me confundiu por um instante. — Christian! Uma onda de alívio percorreu meu corpo inteiro ao vê-lo em bom estado. Entretanto, ele não parecia alegre por ver-me, pois correu para mim com o rosto contraído em uma mistura de raiva e pânico que não entendi. Nesse momento, um braço saiu do nada e se aferrou ao meu pescoço. Ouvi uma voz muito conhecida e cruel que sussurrava algo ininteligível ao meu ouvido e vi uma mão erguer-se no ar, acompanhada de um brilho metálico. Tentei escapar do braço que me sujeitava, mas com um rápido movimento, dirigiu a afiada lâmina para o meu peito e a afundou no meu coração.
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Nesse instante, tudo começou a dar voltas. Christian gritou enquanto me soltavam. Eu cambaleei. Senti como se um vento gelado me atravessasse e uma horrível sensação de vazio se apoderou de mim. Não consegui dar nem mais um passo, minhas forças me abandonaram, meus joelhos se dobraram e eu caí. Christian chegou a tempo de me pegar antes que eu tocasse o chão, mas eu mal senti. Algo muito frio e denso começou a percorrer meu corpo todo, paralisandome à medida que avançava. — Lena! Arrancou-me do peito o artefato e o lançou longe, depois me depositou com cuidado sobre a terra. Tentei respirar para poder lhe dizer algo, mas o ar não era suficiente. O ar entrava aos solavancos em meus pulmões e as palavras não saíam. Não tinha força, estava ficando enjoada. Só consegui ver minha expressão confusa e aterrorizada refletida nos olhos dele. Rapidamente ele tentou sugar a ferida, mas não conseguiu. Toda resistência em mim cedeu e minha mão escorregou pelo seu corpo até cair ao seu lado. A expressão dele naquele momento teria destroçado o coração da pessoa mais desalmada. Os olhos permaneciam muito abertos e cristalinos, incrédulos e aterrados e tremia, todo seu corpo vibrava, como se não soubesse como reagir. Aquilo me matou por dentro, muito mais que aquela lâmina afiada. Ele pegou
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minha mão e a apertou contra a boca, sufocando um grito dilacerador e quebrado, que fez tremer os alicerces da terra. Depois, passou os braços por baixo do meu corpo e me ergueu no ar. Ele me carregava de tal forma que minha cabeça descansava sobre seu peito. Por sorte, meus olhos tinham ficado abertos, mas nada fazia sentido. Eu estava morta? Tinha morrido de novo e ia ficar neste mundo? Divisei algumas pedras, como as ruínas de algum lugar muito antigo, cobertas de lama e vegetação. Ergueu-me e me colocou com imenso cuidado sobre um dos poucos locais livres de barro e apoiou os braços contra o granito, olhando para baixo, como se não se atrevesse a olhar para o meu corpo, inerte à primeira vista. Como podia fazê-lo ver que eu continuava ali? — Sinto muito! — Ficou repetindo entre dentes, uma e outra vez. — Sinto muito… Então, senti sombras, algo se movia por toda parte nos rodeando e pequenas chamas azuis começaram a aparecer de forma intermitente ao nosso redor, mas ele parecia que não se dava conta. De repente, escutei uma risada, a do culpado. Christian enrijeceu e devagar, ficou de pé, enquanto aquele incrível e perfeito rosto se desfigurava na careta mais ameaçadora que qualquer um pudesse jamais imaginar.
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— Bravo, irmão. Muito emotivo… Tão absurdamente patético… — A voz de Hernan era maliciosa. Antes que Christian tivesse tempo de reagir, algo parecido a uma criança saltou sobre ele e lhe cravou os afiados dentes no ombro. Ele cambaleou para trás. Por um momento, temi que ele caísse, mas não. Ao invés, puxou-o pelo braço e se desfez dele. Não se passou nem um décimo de segundo antes que outro o atacasse, desta vez na perna. Christian se abaixou para se livrar dele, mas um terceiro saltou às suas costas, cravando dentes e unhas em sua pele. Ele rugiu de forma animal e tirou-os de cima, mas algumas cordas surgiram do nada e enroscaram nos seus braços e pernas, puxando-o para baixo. Queriam derrubá-lo, mas ele resistia. Tentou lutar contra elas sem descanso, enquanto várias figuras brancas encapuzadas apareciam no enquadramento do meu campo de visão. Ele os empurrou longe e com um simples olhar, fez com que eles desabassem no chão sem mostrar sinais de vida. Lançaram-se contra ele pelo menos dez mais, imobilizando-o, enquanto via erguer-se do chão um grosso tronco de madeira. Bateram-no contra ele para amarrá-lo. A camisa tinha ficado em farrapos e tinha várias feridas por todo o corpo que começavam a sangrar. Depois, todos se limitaram a afastar-se um pouco dele, quando a mesma risada voltou a chegar até nós. — Tenho que reconhecer que não está com bom aspecto.
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— HERNAN! — Christian gritou a plenos pulmões, encolerizado. — EU VOU MATÁ-LO! — Não esta noite, ou já teria me lançado aquele olhar feroz, de modo que lhe recomendo que desfrute do espetáculo. — Sorriu e abriu os braços abrangendo tudo ao redor. — Tem o privilégio de contemplar a antiga morada da Ordem de Alfeo. O Legendário Circo volta a abrir as portas. — Do que está falando? — Elevei nossa estirpe ao ponto mais alto. Aumentei com acréscimo nosso poder, nosso império. Os dias do Ente logo verão seu final. Assim como uma vez foi o desejo de Cardassay. — Néscio! O que você fez! — Christian gritou, abrindo muito os olhos. — O mundo nos pertence, Christian e vou lhe mostrar isso. — Ergueu os braços para o bosque e gritou. — Saiam! Ergam-se de entre as sombras, irmãos e irmãs, filhos e filhas, eu os convoco. Do nada começaram a aparecer numerosas figuras, esbranquiçadas e aterradoras. Dentes afiados, olhos elétricos e cabelos grisalhos… Guardiões. — Por que ela ainda não está morta? — Perguntou de repente uma vozinha muito familiar, aparecendo junto de Hernan. — Você me prometeu que a mataria. — Valentine! — Christian exclamou. — Vá embora daqui!
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— NÃO! Você me enganou! — A menina gritou. — Quis me transformar em um detestável caçador, quis me tirar o poder e me afastar do seu lado. Queria que eu ficasse pequena para sempre. Como Gaelle! E agora você vai morrer igual a ela! — Espere só um pouco mais, Tine. — Hernan disse com calma. — Ainda precisa aprender uma lição. — Do que está falando? — Christian espetou furioso. — De novo sua completa falta de gratidão me comove. Acabo de lhe dar um presente. — Apontou-me. — Assim como a arrebatei de você, posso devolvêla. Ela ainda está viva. Mate-a! Mate-a agora e salve-a! — Christian continuou estático, cravando os olhos com raiva contida até que, finalmente, desviou o olhar. Ao cabo de alguns segundos, Hernan riu. — Sempre soube que não a mataria e isso me satisfaz. Serve-me muito mais com vida. — Não se atreva a tocá-la! HERNAN! — Gritou de novo, à beira do desespero, tentando livrar-se das amarras. — Ela me pertence agora, irmão e você também. — Virou-se de novo para mim e então, um tremendo e doloroso batimento do coração despertou meu corpo. Gritei e me retorci sobre aquela fria pedra. — Lena! — Christian estava atônito.
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Minhas costas se arquearam e todos os meus músculos ficaram tensos. Fechei os punhos com força, cravando as unhas na pele, mas não conseguia sentir nada. Todo meu corpo ardia e se retorcia, ao sentir a maior dor que jamais tinha experimentado. Christian gritava ao fundo e Hernan sorria. Meu coração não voltou a pulsar, mas Hernan ainda estava com a mão sobre minha pele. Sentia todo o meu sangue circular pelas veias, veloz, até se juntar no meu peito, inchando-o. Eu só queria berrar até ficar sem voz. A dor se concentrava cada vez mais no meu coração, até que, de repente, parou. Então, Hernan puxou uma brilhante e afiada adaga manchada de sangue. Eu a reconheci imediatamente. Era a mesma que eu tinha usado para tentar matar Christian. Ele limpou o sangue e o barro que a manchavam e em seguida, deslizou-a sobre a palma da mão, até que um pequeno sulco de sangue a cobriu. Christian voltou a gritar, mas ele sorriu e a ergueu sobre o meu corpo. O sangue escorregou pelo aço e caiu sobre o meu peito, ardendo como fogo no meu coração. Antes que eu pudesse fazer algo para evitar, dirigiu o golpe para o mesmo lugar anterior, mas um repentino brilho prateado se chocou contra a lâmina e a jogou longe, exatamente um instante antes de penetrar na minha pele. Sem saber por que, todo mundo começou a mover-se ao meu redor e vários gritos me envolveram, ordenando ações que eu não conseguia entender. Eu continuava
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imóvel, sem conseguir respirar. Ofeguei, tentando abocanhar o ar, mas este não passava através de mim. Todo meu corpo continuava ardendo. — Vamos, Lena! De repente, Liam apareceu no meu campo de visão. Jogou o arco às costas e me pegou nos braços. A próxima coisa que percebi foi que atravessávamos velozmente através de uma grande variedade de guardiões, com Christian, que tinha se libertado e abria caminho para nós. A última coisa que vi foi Valentine lançando-se contra ele.
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E o muro caiu... Uns dois minutos mais tarde, Liam me depositou contra o tronco de uma árvore caída. — Lena? Pode me ouvir? Gemi como resposta. Então, olhou para todos os lados, recolocou-me no chão e fez algo que me pegou completamente de surpresa: ergueu uma mão e com o punho fechado, golpeou-me no peito, à altura do esterno. Um segundo depois, meu corpo desentorpeceu, a dor diminuiu e o ar voltou a entrar nos meus pulmões. — Christian… — Ofeguei. — Ele vai ter que se arrumar sozinho. Consegue caminhar? — Sim, creio que sim. — Ajudou-me a me pôr de pé. No começo, cambaleei, mas consegui não cair. Ele desembainhou uma adaga do cinto e me estendeu a mão. — Você tem que ajudar Christian! — Eu disse, angustiada. — Ele está distraindo-os para que possamos sair deste lugar. Você teve sorte de ver aquelas chamas azuis, do contrário os teriam matado. Agora, vamos embora daqui o quanto antes, há um povoado aqui perto. Vou deixá-la lá e voltarei para ajudá-lo. Assim que comprovou que eu podia andar, ele se adiantou alguns passos, com o arco para o alto, apontando para o negrume. Meus passos eram inseguros
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e meu coração ardia, tinha me obrigado a parar de respirar, mas cada pequeno movimento retumbava nele e me perfurava o peito. Apertei a mandíbula com força, para não deixar escapar nem um gemido, mas cada vez ficava pior. De repente, eu caí. — Lena! — Liam voltou correndo para junto de mim, mas justo nesse momento, enrijeceu e dirigiu o olhar para algum ponto atrás de nós. — Não se mova nem um milímetro. — Sussurrou. Devagar, incorporou-se de novo e retrocedeu alguns passos o percurso que tínhamos realizado, desaparecendo entre a espessura do bosque. Então, fiquei sozinha. Tentei prestar atenção, mas não escutei nada fora do normal. Afastei-me um pouco da árvore contra a qual estava apoiada e fui em direção onde Liam tinha desaparecido. Tinha dado apenas uns dois passos quando parei: algo se aproximava, depressa. Fiquei gelada e antes que pudesse fazer qualquer coisa, Liam apareceu bem diante de mim, correndo. — CUIDADO! — Gritou, apontando para algo a um lado. Virei-me, confusa, a tempo de ver um guardião se lançando das árvores contra mim e de algum modo, consegui colocar-me de lado. Nesse momento, Liam chegou junto de mim, pegou-me nos braços e começou a correr a toda velocidade. Os guardiões se lançavam contra nós, mas ele me conduziu entre eles, protegendo-me. Um pouco ao longe, pude distinguir algumas formas recortadas contra o céu: eram edifícios. Devia ser a cidade à qual se referira, mas de repente, algo nos atirou ao chão. Saí rolando vários metros até que alguns arbustos me frearam. Aturdida, ergui os olhos, imprecisa e descobri o que tinha batido em nós. Não tinham sido os guardiões, mas sim, Elora e Lester, que agora rodeavam Liam com as adagas no alto.
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— O Ente vai ficar encantado ao saber que você esteve aqui e mais ainda quando souber que vimos todas as suas lembranças. — Receio que não vou poder facilitar nada para vocês. — Isso sempre tem solução, ilustríssimo De Cote. — Fez uma fingida reverência enquanto Lester o atacava por trás, mas não conseguiu surpreendê-lo. Ele captou os movimentos do outro imediatamente e se desfez do atacante com um só golpe. — Vocês deviam se afastar de tudo isto, Elora. Aquele grande predador vai arrastar todos com ele. — De Cote, o clemente. — Riu. — Sempre disposto à caridade. — O Ente não será complacente. — E nós tampouco. As árvores começaram a ondular e senti a terra tremer. Os guardiões estavam se aproximando. — Liam! — Exclamei com urgência. Ele se virou, voltou correndo para junto de mim e me ajudou a levantar. A risada de Elora soava ao fundo. — Vou tirá-la daqui. Chegamos até a sombria cidade e serpenteamos entre as ruas até nos esquivarmos deles. Elora não nos seguiu, nem Lester tampouco. Entramos em um estreito beco e ele me colocou no chão com cuidado. — Você precisa se esconder, eu me encarregarei deles. — Não. — Tentei dizer. — Não temos tempo. Será que eles conseguirão subir até lá em cima? Ergui os olhos até o lugar do qual ele falara. Era alto, mas havia uma escada de incêndio junto a uma das janelas. Tentei medir minhas forças, mas ia ser difícil, muito difícil...
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— Não sei. — Respondi apertando o peito, dolorida e exausta. — Vai ficar tudo bem. — Assegurou, pegando meu rosto entre as mãos. Assenti levemente. Ele me pegou pelo braço e me conduziu até a escada, ajudando-me a subir. Nesse momento, um barulho em uma rua próxima nos alertou. Ele pegou minha mão e a beijou. — Esconda-se, volto logo. Lançou-me um último olhar e desapareceu na esquina do beco. Pouco depois, chegaram até mim sons de adagas cortando o ar e de corpos saltando e caindo. Eles estavam perto, muito perto. Fiz um esforço enorme para reunir todas as forças que me restavam e comecei a subir pela escada de ferro. Escorreguei várias vezes, ficando pendurada unicamente pelas mãos, mas por fim cheguei até a janela fechada. Roguei para que ninguém me ouvisse e quebrei o vidro com o cotovelo. Joguei-me para dentro e caí, rodeada de cacos de vidro, no chão duro de uma sala abarrotada de coisas. Levantei-me com dificuldade e olhei em volta. Estava tudo escuro, mas ali, no fundo, havia uma figura. — Conseguir escapar da Ordem de Alfeo é uma proeza digna de menção. — Disse uma voz que reconheci imediatamente. — Jerome… Tem que me ajudar! — Pus-me de pé e avancei para ele, apoiando-me em tudo o que encontrava. Não parecia o mesmo. Agora o cabelo estava platinado e o aspecto completamente desalinhado, mas era um alívio vê-lo ali. — Estão procurando por nós. Christian e Liam estão lutando com eles. — Eu gostaria de ajudá-la, mas receio não poder. Parei em seco ao me dar conta de algo: do braço dele brotava um pequeno fio de sangue. Retrocedi enquanto algo dentro de mim congelava. — O que está acontecendo? — Ele avançou para mim. — Não utilizam seu sangue para acabar com grandes predadores. — Afastei-me um pouco mais. — Você não veio por causa de Christian. — Ele ficou em silêncio. — Não é mesmo?
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Baixou o olhar por um momento e ao cabo de um instante, ergueu-o de novo enquanto tirava de trás das costas uma reluzente adaga de prata. — Lamento muito, Lena. Este não era o plano inicial. — O que…? — Você precisa morrer. — Você também quer me matar? — Não se trata do que eu quero. Não pude alegar absolutamente nada, ele nem sequer me deixou assimilar a notícia. Um segundo mais tarde, cruzou a sala correndo, com a resplandecente lâmina no alto dirigida para o meu coração. — Não! — Gritei, desviando dele bem a tempo. Corri para o outro lado da sala e procurando entre todas aquelas coisas, consegui encontrar uma vara de metal, que levantei diante dele. — Não se aproxime! — Adverti. — Não complique mais as coisas… — O que foi que eu lhe fiz? — Perguntei, notando que meus braços tremiam ao tentar mantê-los no alto. — Pensei que você era meu amigo! — Você não o matou, mesmo sabendo o que aquele animal fez. — Não pude… — E mesmo assim pretende que eu a ajude a salvá-lo. — Jerome… — Por quem me toma? — Por favor… — Eles são os malvados, Lena! Não eu… — Afaste-se! — Você também sabe! Sabe que está do lado errado!
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— Não, isso não é verdade! — Estava muito fraca para sequer me manter em pé. De repente ele colocou a adaga contra o meu peito. — Jerome, nem sequer posso me defender. — Isso só vai facilitar as coisas. — Você teve centenas de oportunidades para me matar, por que agora? — Já devia saber a esta altura. — Não sei, diga-me, o que mudou? — Você! Você que mudou! Você se tornou igual a ele! — Por que o odeia tanto? — Por quê? — Colocou a mão livre dentro da jaqueta e tirou um pedaço de papel enrugado e colado com pedaços de fita adesiva. Abriu-o e o colocou diante de mim. — Não reconhece? Sim, é claro que a reconhecia. Era a fotografia que Christian tinha encontrado no meu quarto. Olhei-o confusa, mas então, ao vê-lo com ela, o sangue me gelou nas veias. — É você… — Nem sequer me reconheceu ao vê-la! — A voz soava realmente angustiada. — Não sabia, eu… — Você, nada, Lena! É exatamente igual a ele! Equivoquei-me com você, mas… De repente, algo caiu sobre Jerome, arrastando-o por toda a sala. Incorporei-me com dificuldade e vi Liam, forcejando contra ele. Liam conseguiu apanhá-lo. — LENA! FUJA DAQUI! Entretanto, Jerome desapareceu e surgiu trás dele, dando-lhe um golpe que o deixou estendido no chão. Em seguida, virou-se para mim, alterado.
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— Maldição! — Exclamou. — Vou deixar você viver, Lena. Gosto de você o suficiente para não manchar as mãos com seu sangue, mas algum dia, acredite em mim, vai se dar conta de que você e eu temos o mesmo inimigo em comum. Olhei-o sem compreender e nesse momento, Christian apareceu e entrou pela janela. Havia sangue em seu corpo e ele segurava o peito com a mão. Olhou para mim e depois para Jerome. Ambos sustentaram o olhar durante vários segundos, até que o rosto de Christian empalideceu mais do que o normal. — Pergunte-lhe, Lena. — Jerome sussurrou com voz apagada, doída. — Pergunte-lhe por que ele não pode tocar em você; pergunte-lhe se merecia morrer e por que não acabou com você naquela noite, no estacionamento. Pergunte-lhe, Lena, quem matou você. Rompeu o contato visual e se voltou para mim. Os olhos estavam carregados de dor. Com um movimento, abriu os dedos e deixou cair a adaga no chão antes de desaparecer. O silêncio envolveu tudo, então, interrompido apenas pelas batidas do coração de Christian. Então, senti que cambaleava e algo se chocou bruscamente contra minha mente. De novo, retornei aos meus sonhos, embora não parecessem sonhos, mas sim, algo muito real. De novo, vi um bosque, mas desta vez, através de uma janela. Senti uma respiração profunda no pescoço e um repentino pânico. A estranha sala se transformou em um bosque, que corria veloz passando por ambos os lados do meu corpo, ou talvez fosse eu quem avançava, quase sem fôlego. Chovia, eu sentia frio e tremia. Minha visão estava imprecisa. Algo mudou e de repente, estava caída no chão, empapada e cheia de barro. Um grito rasgou pela minha garganta e de repente, vi dois olhos. Escuros e penetrantes olhos que, desta vez, sim, consegui reconhecer. Quando eu estava a ponto de me perder neles, divisei algo mais, uma figura sombria, observando tudo, um pouco
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afastada, com os braços cruzados e o rosto severo. Sob a luz da noite, reconheci imediatamente uma espessa juba avermelhada, mas foi só por um segundo, um único segundo antes que a figura desaparecesse e me deixasse a sós com aqueles penetrantes, dolorosos e incríveis olhos… Assim como veio, o flash sumiu e eu voltei àquele lugar abandonado. Dobrei-me, tossindo e caí no chão. Inspirei com dificuldade, como se me afogasse e senti que algo dentro de mim se acelerava. Lentamente, pus-me em pé e me virei para ele, ao mesmo tempo em que uma dor intensa se assentava no meu coração. Uma dor que não tinha nada a ver com o que Hernan tinha feito comigo, e que ameaçava abrir meu peito. Aterrorizada, olhei-o diretamente nos olhos, e meu coração se partiu em mil pedaços. — Lena… — Ele murmurou. Retrocedi um passo, aterrorizada e o muro, por fim, caiu diante dos meus olhos.
FIM!
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Tradutores PRT Lelê Espindola.
Revisores TAD Patricia, Jaque
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