Janela, fotografia e cidade | Julia Paccola

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Janela, fotografia e cidade


Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo Trabalho Final de Graduação

Julia Paccola Ferreira Nogueira Orientador: Luís Antônio Jorge 2o semestre de 2012

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Índice

I. 19 24 32

Tato e visão entre espaços Janela construída De dentro para fora: o observador e a janela

II. 54 72 86 112 124

Janela noturna Janelas viajantes Janelas feitas na própria cidade Janela e intimidade:a janela poética Uma janela para o céu

III. 135 143 151

Luz Sombra Corpo

Desenvolvimento 171 185 189 192

Antecedências Organização do trabalho Agradecimentos Bibliografia

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Introdução

O trabalho propõe dois pontos de vista sobre a cidade: o da Janela e o da fotografia. O primeiro emoldura a cidade, o segundo o instante. Em torno disto está construída uma escrita que parte das questões arquitetônicas da janela, compreendendo seu significado dentro de um espaço e, portanto, compreendendo do que se trata a idéia da janela, compreende seu significado. O texto e a fotografia conduzirão o leitor, no segundo capítulo, a um percurso urbano. A idéia de janela se apresenta pelas questões urbanas na cidade de São Paulo, na forma de reflexões, caminhos e viagens. E a partir da compreensão das aberturas da cidade, pensar a janela e sua relação com o olho ou com o corpo de seu observador. Dada a questão da intimidade da janela, o terceiro capítulo pretende abstrair a janela enquanto construção, fazendo dela uma experiência imaginada. Como se estivesse sob o efeito subjetivo que a janela construída normalmente tem sobre o observador. Não há uma paisagem específica ou uma construção, há a atmosfera de um espaço por meio das sensações.

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I.


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Tato e visão entre espaços

A arquitetura é capaz de estabelecer relações entre espaços e corpos que a rodeiam. Um espaço edificado não pode existir no vazio, ele é indissociável de seu entorno. Relacionar-se com seu entorno significa conhece-lo, associar-se a ele. Primordialmente um edifício se relaciona através de dois sentidos perceptivos: o tato e a visão, ele encosta e olha, como se forsse um corpo provido de sentidos. Tomando um edifício sólido, por exemplo, a princípio constituído por paredes cegas, está fechado. Para que se relacione ele precisa pousar numa superfície para que então possa abrir-se para o que estiver a sua volta. Sobre o pouso, ele pode apenas tocar no chão, encostar e pronto. Pode ainda adentrá-lo, enterrando-se em cotas mais profundas. Ou tomar outra alternativa, soltar-se da cota zero, deixando-a livre. Uma vez embasado, ele deverá encaixar-se enquadrado numa lacuna, tocando ou deixando um vazio lateral entre ele e os outros edifícios. E como última operação de sua inserção, o edifício se projetará em direção ao céu, levantando as questões de proporção e concordância para chegar até sua altura, mais alta, igual ou mais baixa que os vizinhos. Quando o “pouso” estiver definido, há relações dentro e fora a serem estabelecidas. Ele deixará de ser sólido para tornar-se espaço

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penetrável, num movimento de abertura. Minimamente haverá uma relação de acesso, entrada e saída, a passagem de fora para dentro dele, consequentemente de visão entre um lado e outro. Se este edifício sólido é feito de uma casca, que é muro, a relação de passagem e a relação visual ocorre no momento em que esse muro se desfaz, permitindo que um espaço penetre o outro. A porta e a janela, como elementos arquitetônicos, concretizam essas interpenetrações dos espaços. A porta cuida da passagem física, permite que se transite de um ao outro, pressupondo o movimento dos corpos, enquanto a janela cuida da passagem sensorial. No momento em que se constrói o peitoril, a janela opera como o diminutivo da porta, diminui o transitar físico1. Ela seduz o olhar, convida para ir de um lugar ao outro, sem deixá-lo. Explorar a janela e por isso explorar seus sentidos. Direta ou indiretamente, na dissolução dos muros da arquitetura reside a tênue relação entre interior e exterior, numa relação de proximidade e distância simultâneas. O que sai da janela é o olhar, o corpo fica.

1. A respeito origem da janela à partir da porta: “ Uma delas vincula a janela a uma variação posterior ocorrida com a porta, uma ‘diminuição’, uma subtração da sua parte inferior, conhcida por nós como peitoril. A mudança não é apenas física, mas sobretudo qualitativa, na medida em que altera completamente a funcão de passagem dos homens...” JORGE, Luís Antônio. O Desenho da Janela, 1995, p. 23

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Janela construída

É possível enumerar os elementos físicos que compõem a janela. Há o caixilho, que pode variar o material e, portanto, variar o aspecto que ela terá. Ela pode correr, pivotar, ou mesmo ser uma janela fixa; um desses movimentos definirá de que maneira ela se abrirá ao exterior para a entrada do ar. O brise, a veneziana, a cortina, com panos e transparências diferentes, como anteparos, cuidam para que a invasão da luz torne-se uma passagem dosada. E por fim o vidro, membrana que separa fisicamente o dentro do fora e define o plano existencial da janela. Em sua solidez, ele protege o interior das intempéries exteriorese e pode permitir plena transparência perante a luz ou, por algum grau de reflexão misturar na imagem em sua superfície os dois lados que separa, Os ambientes internos organizam-se para estabelecer relações com a rua, oscilam entre as atmosferas da intimidade e as atmosferas públicas2. Portanto eles se dispõem de acordo com as possibilidades das aberturas das paredes. Há a dificuldade de definir o que dita as regras: a demanda de um ambiente por um desenho de janela, ou se

2. “O peculiar arranjo dos ambientes da moradia, ao mesmo tempo que demonstra uma nova relação com o espaço público, indica o hábito de contemplar a cidade” JORGE, Luís Antônio. Op. cit., p. 34

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a janela é que atrai um determinado desenho de espaço. Então como situação prévia às espacialidades internas, existe o questionamento constante entre suas distribuições na planta e as janelas, ou seja, uma discussão que contrapõe as demandas interiores em relação às demandas exteriores. Há uma seleção da paisagem e de luz para esses ambientes no que diz respeito ao desenho técnico e estético das aberturas. Nessa situação o espaço definiu a janela. Ao mesmo tempo a janela inevitavelmente trará do exterior características, imutáveis nas coordenadas geográficas, que definem uma mirada. Então a janela definiu o espaço. Quando bem inserida, a janela, dificilmente deixará de transparecer ao lado de fora a importância que tem para o espaço de dentro. É como se a partir do momento que ela faz sentido dentro, também fará sentido do lado de fora, pelo simples fato de cumprir suas funções de olhar, iluminar e ventilar. De dentro para fora, em sua face externa, ela é capaz de configurar uma linguagem no projeto 3. Dominante na fachada, é capaz de definir a imagem de um edifício perante a rua. Elas ocupam metros quadrados das elevações das ruas e com essa importância estabelecem eixos de comunicação e de linguagem. Pode repetir-se enquanto imagem sobre a superfície de uma parede, formalmente sempre igual, mas cada uma com sua vista singular. Na repetição, definem-se os cheios e os vazios na fachada. Ela dá os pesos e as levezas da construção. Impõe um ritmo, feito de luz e sombra,

3. “A solução passa essencialmente por uma investigação das proporções das janelas, a partir de uma relação entre cheios e vazios, pautada por princípios da geometria elementar, resultando numa volumetria de clara apreensão” JORGE, Luís Antônio. Op cit., p. 86

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portanto de profundidade e de volume. O edifício que era sólido, ganha volume de parede e vazio no interior, o que confere característica de casca. Pontua uma superfície com pontos de vista para o cotidiano das pessoas na cidade. É trabalho da arquitetura decidir sobre essas e outras questões que envolvem o projeto da janela. Ao explorar as possibilidades propostas por suas questões, o arquiteto pode descortinar os mais belos olhares entre o construído e o entorno envolvente. Olhar pela janela é um momento de pausa. É possível desempenhar diversas atividades em um lugar e não se relacionar diretamente com a janela, apesar da consciência de que ela existe. Mas no momento em que o único ato for o olhar através do seu vazio, há um silêncio. Uma pessoa fixa-se em posição de contemplação. “É a fala silenciosa do arquiteto.”4 A janela toma posição de olho da arquitetura, é por onde e para onde, as pessoas irão olhar e deixar-se olhar.

4. JORGE, Luís Antônio. Op. cit., p. 151

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De dentro para fora O observador e a janela

À menção da palavra janela, a imaginação daquele que a ouviu evocará provavelmente a imagem de uma paisagem emoldurada na geometria de um caixilho. Vista de dentro para fora. Mais do que da janela, a imagem é de uma perspectiva contida numa abertura. Na realidade trata-se de uma lembrança, não de uma imagem. Assim se conhece a janela, numa primeira experiência: descontinuidade na parede, que enquadra uma paisagem do exterior, abertura para o outro. Essa visão de dentro para fora é talvez a imagem mais íntima que uma pessoa pode ter. Janela conhecida a fundo, por dentro. O espaço a que essa janela remete é daquele que lembrou. Daí o motivo por ser a primeira evocada pela imaginação. Há uma relação de intimidade com a janela do lado de dentro, que deriva da memória espacial sensorial que o ser humano guarda dos espaços vivenciados. São as janelas da casa vivida. Ainda que essa lembrança seja uma moldura para o exterior, a primeira janela faz menção ao espaço interior, não ao exterior. Ela é uma lembrança de um lugar físico de nossa vida íntima5. Evoca recordações da antiga morada, onde se gastou tempo com a experiência de olhar através do buraco da

5 . BACHELARD, Gaston. O novo Espírito Científico; A Poética do Espaço, 1978. p. 114.

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janela. Essa primeira janela imaginada é a sua janela, uma janela pertencente. Ela assume o papel de janela primordial, ou ainda uma janela nostalgica. Uma janela que é lar, pertence à casa, que é o nosso canto no mundo6. Logo virão outras janelas conhecidas, vistas de fora, com cores, materiais, formas, vidros, com detalhes formais que constroem a imagem de uma janela objeto, ou ainda janela substantivo. São diferentes da primeira janela, que representa uma idéia, a janela enquanto verbo, a ação de uma experiência. Dessa segunda janela não existe o conhecimento do lado de dentro, não é possível conhecer sua paisagem, sua luz, nada. Só se sabe do que é feita, mas não se sabe no que ela resulta para o espaço que abriga. Para nós ela não tem paisagem. Não há a intimidade, ela é conhecida apenas na distância porque são as janelas dos outros. A nossa janela conhecemos de dentro, a dos outros apenas por fora. É como associar uma a um conhecimento profundo, a outra ao conhecimento superficial. Por uma janela olho, outra apenas vejo. A janela carrega duas imagens de si mesma. Uma inversa à outra, de dentro para fora e de fora para dentro. Positivo e negativo. E entre elas há o seu plano de existência, físico. Então ela tem três momentos: para dentro de um espaço, para fora dele e uma linha sutil que faz a operação da divisão deles, por onde ela relacionará pessoas e espaços. A ambigüidade e sua linha divisória.

6. BACHELARD, Gaston. Op. cit., p 112.

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Nessa relação interior e exterior, há mais que a mera conexão visual, há uma conexão de consciência. A janela expõe uma situação. Situa aquele que está no interior de um espaço em um contexto maior. Ele sabe em que lugar da cidade se encontra, se é dia ou noite, se chove, ou se faz sol, existe essa consciência de que o mundo continua a mover-se do lado de fora. Há a percepção luminosa, que escorre para o lado de dentro desfazendo a escuridão. A janela ilumina e então o lado de dentro faz sentido. Aquilo que atravessa o plano da janela, aquilo que ela trata de aprisionar, seja imagem, paisagem, luz ou ar, constrói a comunicação entre as duas faces da janela. Cada janela carrega um ponto de vista diferente sobre a cidade. Um recorte que tem volume e profundidade, a perspectiva percebida pelo olho humano. E enquanto ponto de vista ela, ao mesmo tempo que é abertura, coloca-se como restrição. Esconde todo o restante do mundo apenas para mostrar um trecho. Direciona o olhar periférico humano, que por natureza está disperso no mundo, com a moldura, criando um ponto focal. O olho humano resume, simplifica as coisas em termos de massa,7 enquanto a janela propõe um olhar analítico sobre o mundo. As mais baixas, ou ainda janelas térreas, por exemplo, carregam um olhar com escala humana, pedestre. Observam as ruas de perto, com uma gama enorme de informações, aproximam-se das pessoas, participam de maneira muito próxima do movimento da cidade, ao mesmo tempo em que revelam seu lado de dentro com menos pudor. Já as janelas sobrevoantes se colocam como espectadoras 7. “A imagem mecânica pode trazer uma infinidade de detalhes em um só conjunto visual, enquanto a visão natural do ser humano tende a resumir e simplificar em termos de massa.” KRAUSS, Rosalind. O Fotográfico, 2002, p. 32.

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distantes, protegidas nas intimidades altas, olham para uma cidade em sua amplitude. Ao se afastarem, ampliam a perspectiva e a escala, perdem os detalhes. Das janelas altas é possível encontrar os horizontes da paisagem com menos esforço, como que emergindo do afogamento das ruas da cidade. Do alto há o encontro com o panorama, o ver tudo, ver por todos os lados8, que se contrapõe às janelas dos primeiros pavimentos de uma cidade, as janelas térreas, que se colocam perdidas nos labirintos das ruas, no vaivém de pessoas, com apenas algumas chances de ver além daquilo que está imediatamente ao seu redor. E então, o enquadramento da visão absorve o olho humano. A janela acrescenta um novo ponto focal. Como um puncto das teorias fotográficas de Barthes9. Um puncto na paisagem que atrai o olho involuntariamente, capaz de tirar toda a atenção daquilo que não seja ele mesmo. Ao lado da janela só é possível olhar através dela. Ela faz um convite ao olhar: perder-se na paisagem, ausentar-se do presente interno.

8. BENJAMIN apud Luís Antônio Jorge. Op. cit., p. 94. 9. BARTHES, Roland. A câmara Clara: nota sobre a fotografia, 2011.

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II.


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Janela noturna

Às 7 da noite, na Avenida Paulista. Há muito movimento de carros e de pessoas apressadas andando na calçada, movimento de volta pra casa. Para que se possa caminhar é necessário concentrar-se para desviar de quem anda no sentido oposto. É difícil deixar a atenção ocupar-se com algo além do ritmo e da direção dos pés. Mas ao escapar para uma rua menos movimentada, alguma travessa da avenida, a Rua Pamplona por exemplo, há outra sensação da cidade. As ruas são mais calmas, mais escuras também. É mais fácil o ato de andar, então já não é preciso prestar tanta atenção nos passos, começa o passeio. Os olhos podem desviar atenção do chão e podem passear nas outras superfícies da cidade. Em algum momento nesse passeio da visão, o olhar cairá sobre as janelas acesas. Muitos tons de amarelo, branco, verde e azul, das lâmpadas darão seu tom para a rua. Em algumas janelas ainda se vêem os vultos das pessoas a trabalhar em seus escritórios, em reuniões ou sozinhas nas suas próprias mesas de trabalho. As janelas acesas na noite iluminam a intimidade dos lados de dentro. Aquilo que é desconhecido, do lado de dentro da parede, se apresenta parcialmente através da janela revelando os espaços habitados. Sob a luz da lâmpada as pessoas vêem televisão, comem, estão no quarto, na sala, às vezes até olhando pra rua, do alto, mostrando-se numa janela sobrevoante. Para quem olha a janela a partir da rua, ela é

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geometria de luz, as vezes cheia, outras vazia. E por ser luz, deixa de ser apenas janela, ela é um recorte do lado de dentro. Só se pode imaginar o que há por trás das fachada e da vidraça. A cidade tem sua leitura visual diferente durante a noite. A compreensão de seus volumes e geometrias, de como se revela sua vida habitada, muda. Na escuridão noturna, a luz elétrica se encarrega de destacar as geometrias iluminadas das janelas. É como se a cidade deixasse de ser sólida, perdesse primeiro seus contornos, depois sua massa de edifícios, para ser feita apenas pelos pequenos pontos de luz. Cada luz referencia uma pessoa, como se à noite as pessoas ficassem mais claras. E por isso a luz é companhia, atenua a solidão noturna. Na cidade, cai a noite e acendem-se as luzes. Além das janelas iluminam-se os faróis dos automóveis, semáforos, os postes, as lâmpadas acesas desenham também os movimentos da cidade. Num vôo noturno sobre São Paulo, há uma leitura clara dos seus fluxos, das suas ruas que parecem corpos iluminados movendose, dos edifícios que se mostram menos por sua forma e mais pelas geometrias iluminadas das janelas, deformando o seu volume real. É uma dança feita por luzes, que vão, vêm e que piscam. A luz acesa durante a noite tem um lado humano, nesse reconhecimento de que cada luz representa uma pessoa em algum espaço. Um sentimento de casa invade a rua, quando se vê as luzes das janelas, diminui a solidão na cidade grande. Ao mesmo tempo os fluxos da cidade se anunciam para dentro das casas das pessoas em forma de luz. Os postes, os carros, os ônibus, lançam luzes com seus faróis que atravessam a geometria da janela e se projetam nas paredes e no teto do interior das casas. É como se estas luzes fizessem questão de anunciar sua presença para dentro da vida íntima das

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pessoas, mostram toda a velocidade e a potência da cidade. Luzes passageiras, que são como sombras feitas de luz que dançam de fora pra dentro. Seria de uma beleza notável se as luzes transbordassem para fora dos espaços internos também, escapando para iluminar os caminhos na rua escura junto aos postes. Deixando de iluminar só para dentro, iluminam para fora. Como se as janelas fossem focos de luz de um teatro, luz quase sólida, projetando-se literalmente para fora, distorcidas. Losangos irregulares e faixas compridas de luz, com texturas dadas pelas cortinas e ao mesmo tempo pelo calçamento da rua. As luzes íntimas que se apropriam dos espaços públicos, extrapolando os limites físicos construídos. E as ruas nunca seriam as mesmas, a cada noite elas poderiam ser iluminadas de maneiras diferentes, de acordo com as janelas que se acendessem e com o ritmo que elas propusessem e se alternassem. Passando do lado de fora da rua ao lado de dentro da janela, a noite estimula o olhar curioso, coloca-se através dela a observar o mundo do lado de fora. O vidro da janela que refletia a cidade durante o dia, abandona sua função de espelho para revelar espaços interiores, aparecem as cenas do cotidiano. Com o fluxo de pessoas que volta para casa, as janelas se enchem e atraem o olhar. Abre-se o espaço do voyeur, que olha protegido pela intimidade de sua casa. Enquanto luzes vão ascendendo, o voyeur olha para as janelas do outros, que iluminadas e cheias de atividade, de repente fazem sentido. Ocupase de outras vidas. Esquece que os outros o olham, como se desse permissão para ser assistido também. Uma experiência que mostra, o mostra e o esconde simultaneamente. Observa uma expressão urbana nas figuras que desfilam e atuam do outro lado.

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Nesse ponto o olhar durante a noite por uma janela difere muito do olhar durante o dia. O olhar durante o dia, de dentro para fora da janela não tem a atividade humana como centro de atenção. Ele tem o domínio das massas edificadas, do movimento rápido dos veículos e de tudo mais que passa, muitas vezes com velocidade. Esse movimento rápido tem o poder de fazer perder a atenção dos olhos ávidos por uma boa história. No movimento durante o dia, os olhos vão se ocupar do conjunto da cidade, querem conhecê-la como essa massa iluminada pela luz natural. O olho quer sair do quarto escuro.

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Janelas viajantes

O ato de viajar, ou talvez seja só uma sensação de viagem. As coisas passam rapidamente do lado de fora. E só o que separa os viajantes dessas tantas coisas passageiras é o pano de vidro da janela do ônibus. De dentro do ônibus nunca é possível livrar-se da paisagem. As coisas vão deixando seus rastros, deixando os detalhes para trás, deixando de ser coisas para serem coisa, no singular, única. Se fundem até a próxima parada do ônibus, então se separam outra vez. As distâncias se relativizam. O horizonte longínquo permanece quase estático, para ele a velocidade relativa do ônibus é lenta. Enquanto o plano imediatamente ao lado da janela se move rápido num borrão confuso, para este plano a velocidade do ônibus é rápida. Um lado reflete no outro. Olhar de dentro do ônibus é ver a cidade fragmentada, ou quadriculada, pelos ritmados caixilhos. E os reflexos da cidade se espalham na horizontalidade de suas janelas, o passageiro se olha, ao mesmo tempo que observa a cidade do lado de fora. Seu rosto mesclado no vidro aos vultos, borrões, cores, linhas e luzes. A impressão que se tem é de que o vento passou pela rua com intensidade suficiente para desmaterializar as formas da cidade.

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As paradas fazem os vultos se isolarem outra vez, voltam a se materializar, como coisas, no plural. O ritmo do olhar é dado pelos pés do condutor do veículo, que vai do acelerador ao freio e vice versa. O que realmente é passageiro são os passageiros do ônibus, não as coisas do lado de fora. Eles é que se movem, param, vão mais rápidos, depois mais devagar, sobem e descem nas curvas da cidade. Os percursos de ônibus dentro de uma cidade podem ser chamados de viagem, por muitos motivos. São Paulo, por exemplo, é uma cidade enorme, de uma topografia intensa. É uma dúvida constante saber se ela se afunda em si mesma ou se ela ergue-se dramaticamente. Os deslocamentos das pessoas pelas suas ruas acontecem muito mais com a ajuda de um transporte máquina, do que pelas próprias forças. Além da geografia complicada que a cidade coloca, há também a questão do tempo, o transitar pela cidade pressupõe um transitar temporal. Se a maioria das pessoas desloca-se por meio do transporte público, o ônibus é o principal meio. Um morador de São Paulo se coloca diariamente na posição de viajante urbano — em suas viagens, fica a proposição do olhar atento ao que a cidade apresentar. Num percurso de ônibus tudo que se pode escolher é o ponto de partida e o de chegada, sabe-se de onde se deseja sair e a que destino se espera chegar, mas o caminho é desconhecido, quais ruas o ônibus vai escolher passar. O percurso em si não é domínio da pessoa. São raras as situações em que o passageiro conhece previamente cada uma das ruas que o ônibus toma. Por isso é possível viajar, desbravar a cidade de dentro do ônibus, experienciar suas superfícies com distância. Vê-la pela primeira vez, como um turista. Quando o passageiro entra no ônibus, logo de início já deve tomar

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uma decisão, sentar-se do lado de cá ou do lado de lá, para o lado esquerdo ou para o direito. Escolher entre o que bate sol e o que está na sombra, o que tem como primeiro plano a calçada ou o que olha diretamente para o centro da rua. Escolher onde ficar dentro do veículo define um olhar, ou de onde se vai olhar. Então ele senta e olha e com o movimento do ônibus os olhos ficam inquietos, movendo-se de um lado para o outro, como se estivessem desesperados para ver tudo ao mesmo tempo e ao mesmo tempo desconcentrados de tudo que vêm. Demoram milésimos de segundo em uma mesma superfície, não mais que isso. Volta-se às imagens passageiras do início. Na massa da cidade o passageiro verá as pessoas anônimas, dos rostos que não irá guardar, as cores das roupas que irão se misturar às cores das calçadas e as janelas na beira da rua com as árvores, a textura que vai sumindo. O viajante da cidade vê dois planos: a cidade e o vidro, nele uma distorção do mundo real a se misturar a outras imagens distorcidas. Ele vai ver refletida sua expressão séria e fechada, a cara entediada dos que viajam todos os dias no trânsito. Vai se ver mesmo que não queira. E também os outros viajantes do ônibus, perfis, silhuetas e rostos desconhecidos, esticados ou comprimidos como num espelho quase transparente. As janelas de ambos os lados do ônibus estão no mesmo eixo visual, na mesma altura e a cidade que passa diante das janelas de um dos lados do ônibus aparece do lado oposto, o lado que o passageiro não escolheu para sentar. A cidade do lado oposto vai se refletir conforme a luz bater dentro do ônibus. É como se a cidade encontrasse uma maneira de dançar das maneiras mais inesperadas, saindo de sua posição real, formando inúmeras camadas de imagens, juntando interior e exterior diante dos olhos do passageiro.

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O ônibus ainda provoca outras sensações alheias ao olhar. Por ser alto, a viagem deixa de ser terrestre e ganha um caráter de vôo baixo. Os pedestres passam mais baixos, os outros carros também. Apenas os viajantes de um ônibus podem olhar no mesmo nível para os de outro ônibus. Quando ficam emparelhados um com o outro nas ruas, é quase como se os viajantes olhassem no espelho, encontrando cumplicidade no ato de viajar, ao mesmo tempo que se olham e não se encaram. O olhar entre os passageiros é um tema interessante. O passageiro do ônibus olha para a paisagem sem pudor, mas olhar para os demais passageiros parece uma violação de privacidade, ou uma exposição muito grande de si mesmo. Não há olho que olhe no olho sem desviar-se logo em seguida. O passageiro se protege, guarda sua distância, com o olhar perdido no mundo. Olhar a cidade através do ônibus guarda uma distância da cidade também. Ele vê, olha, mas não chega propriamente a visitá-la. Essa interação física com a cidade só ocorre ao descer os degraus do ônibus, no destino final, lugar conhecido. De dentro do ônibus esta visita acontece com o olhar, até sair de dentro dele, o passageiro está distante da cidade.. Então se a visão é o sentido que afasta, o tato é o sentido que aproxima10, torna tangível. Através do olho o passageiro sentirá vontade de tatear a cidade. Conhecer suas superfícies pelo toque do corpo e não só do olhar.

10. PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: A arquitetura e os sentidos, 2011. p. 43

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Janelas feitas na própria cidade

Conhecer as ruas de São Paulo é como aventurar-se por seus acidentes geográficos. Seus habitantes podem se habituar, deixam de se deslumbrar com ela, se encantando muito mais pelas cidades planas. Mas o estrangeiro de olhar inocente, pela primeira vez em São Paulo, surpreende-se. Não deixará de notar seus desníveis, topografia irregular. São Paulo raríssimas vezes se deixa planificar por muito tempo, construída numa falta de continuidade de quase tudo: das ruas, das retas e dos planos. A topografia é realmente determinante, ela faz com que as ruas não sejam sempre retas, porque elas precisam seguir as curvas de nível, dobrar-se e curvar-se para se adaptar a elas. Causam emoção, desenham caminhos eufóricos pelas saliências e reentrâncias. Nunca se sabe ao certo o que virá depois da dobra da curva. Os desníveis de São Paulo não se limitam à geografia dos solos. Os edifícios que despontam, sem fazer muita menção aos vizinhos, brotam em cotas diferentes, sem preocupação com limites de altura e concordância. É uma morfologia muito particular de São Paulo, o desencontro das edificações. Se o térreo de São Paulo é por si só um sobe e desce brusco, uma leitura topográfica tomando como referencia de cota de nível o topo dos edifícios, encontraria desníveis ainda mais absurdos, montanhas enormes formadas pelas

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construções altas, com quedas abruptas, do décimo andar ao térreo, sem aviso algum. Os edifícios da cidade inventam no mínimo três outras topografias: a topografia dos solos (natural), a dos subsolos (infra estruturas invisíveis) e a topografia formada pelos telhados. Nas ruas que serpenteiam por todos os cantos, o desnível não é privilégio ou azar de algum bairro isolado, ele organiza caminhos: há ruas que se rompem, mudam e outras que, ao se deparar com a possibilidade da mudança, esquivam-se ou param. Uma rua que sobe e desce, abraça o volume da terra, envolve as cotas enquanto traça seu caminho. Muitas vezes no momento em que atinge a cota máxima, a rua parece ser interrompida, ou rompida em duas partes, perdendo a continuidade, trocando seus usos. Outras ruas não conseguem sequer continuar enquanto escalam as curvas de nível da cidade. Como se por um esforço físico perdessem o fôlego antes que pudesse atingir o alto. Param antes, viram para outro lado enquanto desviam da subida, dão a volta no morro. Outras ruas parecem ter preguiça, ou medo, não se aventuram a descer, mantém-se no alto com pouca coragem de chegar a participar dos fundos de vale, querem ocupar a cidade apenas nas suas partes mais altas. Há bairros que fazem de suas ruas labirintos para que possam existir em inclinações mais agradáveis aos moradores. Talvez possa ser desagradável subir e descer a pé tantas distâncias, cansativo. Mas existe uma beleza que não se pode negar nos desníveis da cidade capaz de deter o olhar. A topografia vence o desafio das ruas densas de edifícios, desvendando perspectivas que se estendem através dos seus vales. Abrem-se fendas na cidade, de onde é possível observála nos diversos planos perspécticos que se apresentam. Com a topografia, a cidade prepara suas janelas.

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E para elucidar as janelas que a própria cidade desvenda aos que se aventurem a conhecê-la, há um percurso proposto: atravessar três avenidas, uma contínua à outra, acompanhando as cotas mais altas da cidade de São Paulo. Começando com a Avenida Heitor Penteado, mas já no seu final, no momento em que ela mergulha próximo ao metrô se preparando para subir rumo à Avenida Doutor Arnaldo. Essa transição será o início do percurso. Ela não sobe em linha reta, vai curvando-se para a direita, logo para a esquerda, cercada por casas e alguns edifícios de muitos andares, que não dão a chance de ver além deles, fazem a borda da avenida. Ao se aproximar do final da subida, saindo das curvas, ela aponta para o céu, o anúncio do que será a primeira surpresa do percurso. A Avenida Doutor Arnaldo começa lançando-se sobre a Avenida Sumaré, torna-se ponte ao sobrevoá-la. Até mesmo o metrô, normalmente sob a terra, faz um vôo, pendura-se na Doutor Arnaldo. De ambos os lados há um horizonte formado por edifícios, para um lado a descida do Pacaembu, do outro a descida para Pinheiros, ambos vastos de maneira que é difícil não se espantar, é preciso recuperar o fôlego. Seguindo esse caminho, a avenida volta a cerrar-se entre construções, continua em linha reta, mas com as perspectivas escondidas, por alguns segundos é possível vislumbrá-las a partir das ruas que cortam a Doutor Arnaldo. Há a descida da Cardeal Arcoverde, a subida da Teodoro Sampaio, com perspectivas estreitas, dois caminhos pressionados por edifícios que se estendem até o Rio Pinheiros. Mas o caminho da Dr. Arnaldo continua reto, ladeado pela Faculdade Medicina de um lado e pelo Cemitério do Araçá, preserva regularidade até o próximo movimento de terra. Dessa vez um movimento proposto pelo desenho do homem: o mergulho que

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leva à Avenida Paulista. O túnel se anuncia com a descida que começa antes da imersão completa, o começo de uma expectativa que aumenta no momento em que se chega ao seu interior. Mas não há escuridão absoluta, existe uma janela que se abre para o céu: um rasgo redondo sob a laje do túnel que revela os edifícios altos do primeiro quarteirão da avenida. E após esse vislumbre, há uma subida, a porta de entrada para uma das avenidas mais conhecidas da cidade. A emoção deste mergulho se fez com a escuridão súbita da descida, a penumbra intermediária e a volta do claro na subida. Volta à regularidade na volta à superfície da cidade: edifícios altos para os dois lados, espremendo as vias e apontando para o céu, travessas da avenida que descem para os dois lados. Mas o percurso não irá até o final da avenida, seria regular demais. Há outro caminho. Uma parada sedutora fará o desvio da avenida: o vão do MASP. Evoca o significado puro da janela, é como uma escavação geométrica no edifício, um vazio profundo e proposital, está ali não só pelo espaço da praça, mas para deixar claro aos passeantes que, ali, trinta metros abaixo do museu passa a Avenida 9 de Julho, a estender-se por seu vale, que segue rasgando a cidade até chegar no centro da cidade, noutro vale, o do Anhangabaú. A 9 de Julho se estende pelo seu vale, fazendo encontrar a Bela Vista com o Bixiga, com uma organização do espaço diferente das avenidas anteriores. É o começo do centro de São Paulo. Os edifícios se juntam, tentando ser uniformes. Ao mesmo tempo são construções pernaltas, esticam seus térreos para unir as cotas altas das ruas que cortam as cotas baixas do vale. Outras pontes a atravessam dos altos, como mirantes, ou como outros andares para

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a avenida, lançam-se sobre ela. Ela mesma duplica-se sobre a Praça 14 bis. E no final, num de seus níveis ela se ergue um pouco para chegar ao Anhangabaú, ao final do percurso. Atravessado por tantos níveis, pelas pontes que trazem a memória do rio oculto, pela praça e sob ela, o túnel destinado aos carros, o Anhangabaú guarda em cada estreitamento entre edifícios, eixos visuais com perspectivas marcantes. Aquele que se dispor a observá-lo, dificilmente descansará o olhar apenas sobre um ponto. As pontes ligam eixos importantes: o Mosteiro de São Bento que olha para a Igreja de Santa Efigênia; o edifício Sampaio Moreira e o Teatro Municipal que se encaram; a nova marquise da Praça do Patriarca marcando um dos extremos do Viaduto do Chá, em contraposição à Praça Ramos. Não espanta que esse ponto da cidade esteja povoado por figuras e cidadãos muito particulares. As pontes são os palcos dos músicos de rua e dos vendedores de muambas. Cantam as músicas decoradas, compostas para dizer o preço dos cacarecos, ou para comprar o ouro dos outros. Por ali estão tantas estátuas vivas, pintadas e fantasiadas e tantos outros personagens da cidade.Uma única situação geográfica, que expõe a complexidade espacial, ou especial, que existe em São Paulo.

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Janela e intimidade: a janela poética

Então há de se pensar a janela em um momento de intimidade. Sozinho, sem distrações ou restrições. Depois de perder-se na cidade, olhar para tudo, o olho precisa voltar para o corpo. É um refúgio para o olhar. Ao afirmar essa liberdade para a visão, a janela permite dois olhares, um contraponto ao outro. Expansivo ou introspectivo. Pela proteção que ela dá, aquele que observa através dela já não sente que viola regra alguma quanto ao ato de espiar. A janela liberta o olhar, permite que se conheça as coisas através dela. O olhar se expande pelo buraco da janela, ele vai atrás do horizonte. Mas o horizonte da janela é finito, o espaço físico é finito. O horizonte ao mesmo tempo que liberta, limita, por ser inalcançável. Como se a própria liberdade do olhar através da janela fosse causa para o olhar cessar sua expansão. A expansão leva o olhar para a introspecção. Introverter-se no caso da janela é transcender o significado do olhar. Transcende no sentido de deixar aquilo que é realidade palpável para atingir o nível impalpável da imaginação. A janela tem o silêncio e a proteção propícia que induz um momento introspectivo. Ela chega a um ponto tão íntimo que o ser se sente livre o suficiente para deixar que a janela e o corpo se unam. Então, nessa intimidade, aquele que se põe a olhar pela janela,

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com intenção de estar realmente perante ela e não apenas desempenhando alguma atividade ao lado dela, tem um comportamento diferente. Através do olhar expansivo e do introspectivo a janela estabelece duas relações diferentes entre o observador e o que é observado. A primeira delas é a do encontro com a paisagem, parte do olhar de quem se coloca externo à cena e quer conhecer. O olho que vê de cima, olho tátil, ele passeia na paisagem como se pudesse tocá-la. O olho do conhecimento se propõe à aproximação com os outros sentidos. Vemos texturas, vemos a cidade, até o que ouvimos parece ser ouvido pelo olho. A janela detém o olhar, onde é possível encontrar-se, colocar-se perante a cidade. Também é possível, ao soltar o olho, perder-se na janela. A janela e a paisagem são uma distração, elas seduzem o olhar e chamam a atenção para o fora. Mas chega-se um ponto em que distração é tanta que não há forma atenção capaz de olhar sequer para além do vidro da janela. No perder-se está a segunda relação estabelecida: a presença concreta da cidade desaparece, se torna pano de fundo para dar lugar ao devaneio. Há uma transição: ver fora, olhar para o mundo e ver dentro, sair do mundo e entrar no próprio corpo. Encontrar no corpo o centro, onde, para além do que é real e palpável, existe o sentido. A janela tem o poder de ativar os mais profundos pensamentos, buscar lembranças, ela funciona em conjunto com imagens guardadas pelos olhos em outros dias de vida. O vazio da arquitetura é preenchido pelos cheios da memória, do passado e do futuro também. O real e o imaginário, o presente e os demais tempos deixam de separar-se e se fundem num só. Ao distanciar-se do mundo, a janela constrói um distanciamento que é quase físico. A impressão é que a grossura da parede aumentou,

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ela ficou mais profunda. O vidro, agora mais espesso e também denso, obstruiu a visão da cidade. É como se essa profundidade da janela conseguisse fazer ressoar cantos profundos da memória e da imaginação do ser. A janela profunda, distante da paisagem, se aprofunda no corpo do ser. Da janela do edifício chega-se a janela do corpo. Há apenas o olhar para dentro de si. Através do olho: entrar no corpo e encontrar a alma. E só então esquecer a existência do corpo físico. Esqueço minha presença, me extravio pela janela.

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Uma janela para o céu

Na supressão da paisagem, encontro as janelas construídas onde não se requer esforço algum para perder-se em sua brancura. O orifício na cúpula do Panteão. Cada um dos domus da FAU. As telhas de vidro no SESC Pompéia. Os Pátios rasgados da Pinacoteca do Estado. Um miolo de quadra entre edifícios, ou no interior de uma casa. A janela do automóvel, quando observada por uma criança que deita no banco de trás. O que une cada um desses momentos da arquitetura é a ausência de uma paisagem concreta, ao mesmo tempo uma existência apenas pela penetração da luz. São janelas construídas pelo contraste entre o claro do céu e a escuridão do espaço interior. Um negativo de dentro para fora, ou o positivo de fora para dentro. Não se situam propriamente num lugar do mundo. Vivem numa situação de luz, com a sensação do passar do tempo presente enquanto ela durar. Não há para estas janelas a paisagem concreta. Perderam-se os horizontes, perdeu-se o mundo que se move do lado de fora. Há a consciência do estar, estou aqui, mas existe o ali,

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para além da janela. O fora está quase em outro mundo, suspenso e inalcançável. Restam para o lado de dentro as atmosferas. O passar das horas evidenciado por uma luz que se aventura pelas paredes. Essas janelas deixaram de ser feitas para explorar e conhecer o mundo. São feitas para a imaginação, para o sonho. Não há nada que possa ser posto diante de uma janela que evoque a sensação do sonho, mais que o próprio céu, uma superfície (que não é superfície) infinita, lisa, sem interrupções, que não põe limites. Nessas janelas o sonho torna-se o real, não há mundo construído que se contraponha ao seu vazio. A luz entra por cima, converte o teto em céu e a janela em sol. O que é dentro fica quase sendo fora, apenas uma fina membrana que separa o exterior, protege a intimidade. Se ela tem como objetivo a luz, está desfeita enquanto janela construída, ela é a própria luz.

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III.


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Luz



Uma mancha de luz, um pouco irregular, quase um losango, passeia pela parede da sala. Como um corpo, essa luz parece ter matéria, um ser que se metamorfoseia e se camufla para abraçar os outros objetos encontrados pelo caminho. Seu passeio começa por baixo. Como se estivesse escondido, o corpo luminoso sai de algum buraco junto ao rodapé, sua liberdade antes era proibida. Fraco e ainda amarelado pelo tempo recluso, tenta rastejar pelo chão, juntar forças para empurrar a escuridão e nela abrir espaço para seu caminho. Uma força que se mede na intensidade de sua cor. Ele fica, aos poucos, de um amarelo intenso, amarelo na cor do calor. Forte. Então rasteja. Rasteja lento. Vai tão lentamente que não é possível compreender a natureza do seu suave movimento.

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Não se sabe se tem pés, ou patas, só se sabe que é um animal rasteiro. Com esforço ele passa para o plano vertical, conquistando o plano da parede. Traça uma diagonal, explorando a superfície até chegar à mesa. Por ela, esse corpo de luz passeia, acaricia os livros, toca as canetas, as superfícies que possam lhe causar prazer.Passa por cima dos papéis, como se pudesse ler suas escritas e participar das histórias. Ilumina as frases que fazem sentido. Passeia um pouco mais até a próxima parede, continuando seu caminho. Sobe, mais e mais alto até chegar no teto, de onde pode olhar toda a sala a sua volta. Mas lá no alto, cansado de toda a subida, perde força, perde intensidade, do amarelo intenso vai passando a ser branco, mais claro.

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Sumindo, pouco a pouco, como se passasse de papel opaco a tecido. Fica tão transparente, que vai se despregando da superfície do teto. Seus pés invisíveis já não conseguem se segurar, curiosamente cedendo ao peso deste corpo tão fino. Leve como o falso peso do ar, fica indefinida. Então a luz solta-se completamente do teto, como uma folha caduca que se solta da copa de uma árvore. Só que ao cair desmaterializase. Ou será ela que foge? Fadada a duração de apenas um dia, ela se esconde da noite que chega. Deixa pra trás todas as superfícies, todas as que tocou e evapora no escuro.

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Sombra



A mancha escura nasce fugitiva. Está sempre detrás de um corpo. Tem o talento nato para imita-lo. Ao mesmo tempo deriva deste corpo, como se fosse uma camada que se desgarrou, mas com deformidade, uma sutil caricatura. Ela é o exagero de um ser numa superfície. Mas a sombra não nasce fugitiva do corpo. Na verdade o corpo é o seu cúmplice e sua proteção. Assegura a existência dela.A sombra foge mesmo é da luz. E a luz rodeia todos os corpos, todos os objetos em busca da sombra. A sombra se esquiva enquanto vive o curioso antagonismo de existir apenas na presença do ponto iluminado, sem nunca poder existir no mesmo espaço que ele. Nunca irão se encontrar e se deixar misturar. Esse desencontro é proposital.

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Na fuga, ela sai do volume do corpo tímida, mas logo se estica, estende seus braços e seus limites. Como um corpo que se espriguiça, vai para o mais distante que possa, esforçada. Se agarra à superfície da rua, se segura nas calçadas, se atém ao corpo dos postes. Depois sobe pelos muros, como se eles se construíssem com a sua subida. Ela se enrosca no tronco das árvores, e deles toma impulso para jogar-se para mais longe. Sempre busca a distância. Testa os limites de sua elasticidade, colocando em prova também as habilidades elásticas da luz. Fazem uma espécie de espetáculo da perseguição. Perseguição plástica. Se a luz vier por cima, a sombra vai logo esconder-se em baixo do corpo. Se a luz vier pelo lado direito, a sombra, rápida, se lança para o lado esquerdo.

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Um jogo entre lados opostos. Fazem um malabarismo de corpos incorpóreos. Entre buscar e fugir, a sombra dança com a luz. Mas a sombra não é livre. Ela está aprisionada pelo seu corpo de origem, não se desvencilha dele. Tem seu tempo de duração medido pelo tempo de existência da luz, da qual fugiu o tempo todo. E com ironia, quando a luz se vai, a sombra também precisa ir. Não tem sequer tempo para voltar para o corpo e despedir-se dele. Ela para ali mesmo. Quando a luz acaba a sombra, num piscar, se perde.

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Corpo



Encontro o silêncio neste espaço vazio. Não sei onde foram parar as pessoas, e pra onde é que a cidade foi. Todos se foram. Meu corpo e este espaço são o resto. O silêncio ficou tangível. Sinto-o com os sons do meu corpo. Ouço o ecoar dos meus passos, a inspiração e a expiração enquanto meus pulmões movimentam o ar. Sinto o pulsar do coração, este não sei se é som, mas sinto. Com meu movimento me faço presente, meu calcanhar pressiona o chão. Alinho meus passos com os ritmos que vem de mim: piso com o meu pulsar, e alterno com o meu respirar. Sinto o chão com os pés, vejo o teto acima de mim, mas não vejo as paredes. Onde termina essa lugar? São janelas a toda volta? Ou é apenas vazio, espaço infindável, branco?

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Giro meu corpo, na busca de uma saída, ou uma entrada, uma passagem, algo que me leve daqui. E atrás de mim há uma porta, quase um estreitamento desse espaço. Um corredor? Entre todas as direções que posso tomar, escolho esse corredor. Todo o resto infinito, indefinido, não me interessa mais. O mistério deste corredor me atrai, e sua escuridão me suga. Deixo a amplitude deste salão para penetrar o corredor estreito, tão comprido que não vejo o fim. Se estende até não sei onde. E nessa extensão ele está raiado de luz. Ao longo de sua longitude se abrem fendas, cada vez mais freqüentes, como um ritmo que acelera. Sombra sombraluz

luz

sombra sombraluz

luz

sombraluz. sombraluz

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A luz é quente. A sombra fria. Caminhando neste corredor sinto o vai e vem do frio, ou será o vai e vem do calor? qual se sobrepõe a qual? qual tem mais efeito? O frio incomoda, então parece que o sinto mais intensamente. Mas o conforto que sinto no calor faz o contraste agradável. Não consigo definir. Na luz sinto o calor e aconchego. o exposição – na luz certamente sou visível, apareço. E apesar do frio que me incomoda, prefiro ficar na proteção do escuro. Aqui posso me esconder e existir apenas para mim mesmo. Não sei se por medo de avançar, ou se por necessidade física de continuar aqui, decido parar. Rompo o eco dos meus passos, e sou tomado outra vez pelo silêncio absoluto, entrando num estado de suspensão.

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Só existo eu, o corredor, a luz e a sombra que se alternam para dominar o meu corpo. Preciso pertencer ao espaço, é como uma necessidade. Ia, então, deitar sob o ritmo do claro com o escuro, deixar que eles tocassem a minha pele. Mas decido sentar no escuro, ainda sem encontrar com a luz que entra pelo corredor. Sento e dobro o meu corpo exatamente na dobra que divide a parede do chão, e então parece que pertenço a essa construção. Fico escondido no escuro. Assim me sinto seguro. Espero ser encontrado pelo movimento lento da luz e da sombra. Ao primeiro toque da luz me desfaço, e então deito como se fosse puxado pela gravidade e derretido pela luz. Perco todas as minhas defesas.

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Estico todo o meu corpo, concentrado em alongar todas as extremidades, explorar toda a minha amplitude. Senti na perna o calor e o frio alternados, no joelho frio, na canela calor, no calcanhar gelado, nos dedos calor íntimo. E por todo o corpo toda a sensação cutânea da luz e da sombra me desnudaram. A partir de então sou só pele. A luz e a sombra são impalpáveis, e por isso não as posso tocar, sentir, que dirá agarrar. Mesmo assim sinto em minha pele suas presenças, como se mesmo invisíveis elas me abraçassem. O calor que agarra meu braço. O frio que passa e arrepia os meus pelos. Mas o toque quente da luz aquece lentamente. Ela domina com o calor a sensação que eu tenho de frio.

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Chego a transpirar apenas com as faixas de luz espalhadas na minha pele. A luz escorre para a sombra através do volume do meu corpo. Sou condutor do calor. Um calor que se assemelha ao toque de um corpo no outro, da pele com a pele, mas não. A combinação da minha pele ao calor da luz traz a memória tátil que meu corpo carrega. E então mesmo na luz quente, encosto na parede e a pleno calor luminoso sinto o frio da superfície do chão. O tato nos conecta, os sentidos nos conectam com tudo que esta para fora do corpo. Vejo, escuto, mas aquilo é real para mim quando eu posso tocar. A mão acaricia a parede fria, confronto o calor do meu corpo com o frio da pedra. Uma ambiguidade de sensações. Ela é lisa, faz o nosso encontro agradável.

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E o frio volta a dominar. Sinto que o calor começa a deixar o meu corpo na medida em que a sombra vence. A luz brilha menos e pela primeira vez posso enxergar através das fendas deste corredor. Do lado de fora o escuro pouco a pouco faz deitar o sol. E na ausência da luz, não vejo a distinção do fora e do dentro. Já não sei se há teto. Me perdi. Não sei se o escuro é a sombra ou se é o preto do céu. Não sei se estou do lado de dentro ou do lado de fora. Pela ausência da luz este lugar se desfez. Fecho os olhos para deixar esse lugar. Quero ir para outras partes, deixar de pertencer ao meu corpo. Na ausência da luz, vou.

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Antecedências

O trabalho teve como ponto de partida a vontade de reconhecer a cidade como território do arquiteto. Mas território não apenas como entorno para suas ações construtivas e sim território que estimula idéias, ou seja, ele abriga experiências vividas e memórias que irão ecoar involuntariamente em sua cabeça. A cidade tem, então, papel de personagem nas articulações da arquitetura anteriores ao processo do projeto. É responsável por estimular reflexões, dando instrumentos ao arquiteto. Quando discutimos nosso próprio trabalho, temos de nos perguntar o que adquirimos de quem. Pois tudo o que descobrimos vem de algum lugar. A fonte não foi nossa própria mente, mas a cultura a que pertencemos. (...) Tudo o que é absorvido e registrado por nossa mente soma-se à coleção de idéias armazenadas na memória: uma espécie de biblioteca que podemos consultar toda vez que surge um problema.11 Sendo São Paulo minha cidade território, tornou-se necessário reconhecê-la como tal. Este reconhecimento, no sentido de repetir o conhecimento, o que implicou em revisitá-la como se fosse pela primeira vez. Foi feito um exercício de educação do olhar, de atentar

11. HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura, p. 5.

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para o que eu tentava então concretizar: as impressões de São Paulo sobre mim. O perfil do trabalho definiu sua imprevisibilidade. De seu início até o produto aqui apresentado, não houve previsão certa de onde se deveria chegar, era sabido apenas o ponto de partida: São Paulo como um território para reflexões de arquitetura. Como se cada passo dado durante o processo trouxesse uma nova demanda, o trabalho delineou seu próprio percurso.

Percorrer a cidade e verdadeiramente observá-la fez necessária a utilização de alguns meios de registro das experiências. Iniciei a elaboração de uma espécie de diário de bordo, no qual passei a anotar observações sobre a cidade, às vezes escrevendo textos, ou idéias para assuntos a serem aprofundados e pesquisados posteriormente. Desenhos e croquis também figuram nas páginas deste diário, ainda que em menor quantidade, às vezes como desenho de observação, desenhos mais subjetivos que ajudaram algumas percepções a respeito da cidade. Numa primeira abordagem me interessava um modo de escrever pessoal, tendo como referência principal o livro Atmosferas, de Peter Zumthor. Neste livro ele associa livremente seus espaços vividos, sua casa de infância,por exemplo, a um modo de pensar a arquitetura. Os espaços vinculados às memórias de Zumthor não estão dissociados de seus espaços imaginados, seus espaços projetados. Não apenas a cidade é reconhecida como seu território de projeto, mas todo um universo de experiências, às quais ele é muito consciente.



Uma praça ao sol, uma arcada grande, longa, alta e bonita ao sol. A praça ­— frente de casas, igrejas, monumentos — como panorama à minha frente. A parede do café nas minhas costas. A densidade certa de pessoas. Um mercado de flores. Sol. Onze horas. A parede do outro lado da praça na sombra, em tons agradavelmente azuis. Sons maravilhosos: conversas próximas, passos na praça, pedra, pássaros, um leve murmúrio da multidão, sem carros, sem barulho de motores, de vez em quando ruídos de obra ao longe.12­ Para tomar consciência de meu próprio universo de experiências, o diário foi sendo escrito ora estimulado pelas imagens da cidade, que se fizeram presentes nos percursos feitos pelas ruas e em seus espaços, ora pelas leituras realizadas. O livro de Gordon Cullen, Paisagem Urbana, trouxe uma gama de situações urbanas, dentre as quais pude identificar muitas presentes em São Paulo: a topografia, as curvas, túneis e pontes, a apresentação dramática visual da cidade. E aplicando as questões urbanas referentes à São Paulo, o livro de Angelo Bucci, Razões de Arquitetura — Da dissolução dos edifícios e de como atravessar paredes, trouxe abordagens mais específicas. A violência e a desordem da cidade, a discussão de seus espaços habitados e de seus não-lugares.

A imersão no dia-a-dia transforma a cidade num lugar comum, deixamos de notar a singularidade de sua paisagem. Nesse ponto a fotografia se colocou como outra linguagem de registro para o

12. ZUMTHOR, Peter. Atmosferas, p. 15.

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trabalho. A efemeridade e espontaneidade da imagem fotográfica foram importantes para a apuração do olhar. Uma ferramenta de desconstrução do olhar acostumado, capaz de colocar a cidade em suspensão. Deixei-me tomar pela surpresa por meio da fotografia, permitindo todo e qualquer tipo de registro. As pessoas e suas interações com o espaço da cidade, lugares e não — lugares, cenas cotidianas e outras não tão usuais. Dessas imagens formou-se um pequeno recorte de um espaço próprio meu na cidade, de onde foi possível entender meus percursos, lugares mais visitados, bairros que me são mais comuns. Por exemplo, a quantidade de fotos feitas da ponte da Avenida Dr. Arnaldo enquanto ela passa por cima da Avenida Sumaré, que é um caminho quase que diário para muitos de meus destinos. As fotografias apareceram com linguagens diferentes, estimuladas muitas vezes pelas anotações feitas no diário de bordo, de modo que houvesse alguma interlocução entre o texto e a imagem produzida. Mesmo o texto teve sua linguagem vinculada às imagens produzidas, com a utilização de uma escrita sensorial e visual. Essa parte da produção foi feita com muitas idas e vindas entre texto e imagem, formando dois trabalhos independentes mas que não deixam de manter o diálogo.

Paralelo a essa aproximação analítica da cidade de São Paulo, houve uma outra abordagem gráfica. Durante o primeiro semestre de trabalho, participei de um curso de xilogravura no SESC Pompéia. No curso houveram discussões sobre o trabalho de alguns artistas e principalmente a produção de gravuras a partir dos desenhos.

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A geração da imagem da xilogravura parte da interpretação dos desenhos feitos a mão na madeira, de forma que ele seja visto como se espera quando for impresso. É como se precisássemos fazer um projeto deste desenho na madeira. Então aprende-se que desenhar sobre a madeira é o mesmo que escavar a luz. É preciso tirar matéria da madeira, deixar o vazio da luz para que a tinta toque apenas a superfície do que era traço no desenho. Durante a leitura do livro de Zumthor encontrei semelhante descrição: A luz sobre as coisas. Observei então durante cinco minutos, como as coisas estão verdadeiramente na minha sala. Como é a luz. É fantástico! Provavelmente na vossa casa é o mesmo. Onde está a luz e de que forma. Onde existem sombras. E como as superfícies estão baças ou brilhantes ou ressaltam da profundidade. (...) pensar o edifício primeiro como uma massa de sombras e a seguir, como num processo de escavação. Colocar luzes e deixar a luminosidade inflitrar-se.13 Essa associação imediata entre xilogravura, arquitetura e janela me levaram à produção de algumas imagens de janelas representadas na linguagem xilográfica: o vazio da janela escavado na madeira. Também cortando o próprio vazio da janela no papel, deixando a gravura com o vazio de uma janela construída. O processo todo foi uma espécie de construção de janelas, ou ao menos de uma experiência de janela.

13. ZUMTHOR, op. cit., p. 57 e 61.

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As abordagens dos textos produzidos giravam em torno das questões perceptívas da cidade, em especial às percepções à partir do olhar. Sendo a janela o signo da arquitetura a associar-se diretamente ao olho — a janela como olho da arquitetura — tomei-a como tema central do trabalho. As experiências com a xilogravura, as reflexões à partir do ponto de vista da janela, trouxeram a necessidade de leituras que me levassem às questões poéticas, intrínsecas às discussões do trabalho. A leitura de A Poética do espaço, de Gaston Bachelard. trouxe à tona a intmidade presente nos espaços da memória. O que me permitiu indagações acerca do que seria a imagem da janela para a memória e de como ela se associa a um lugar vivido. Tornou-se possível transitar entre assuntos, da vida pública da cidade ao íntimo da casa. A percepção da janela como catalizadora da imaginação, quase como uma passagem: o observador ao “atravessar” o quadro da janela pode chegar a cantos profundos do imaginário. A idéia sensorial da percepção de um espaço, para além da questão visual, passou a ser considerada. A atmosfera de um lugar não vem da visão principalmente, mas de uma relação mais palpável estabelecida por outros sentidos, na idéia de que eles são especializações do sentido do tato.14 A janela fez aflorar o problema que conduziu o raciocínio da escrita e da fotografia. O problema era conseguir de uma janela concreta — a janela arquitetônica — chegar ao que seria uma abstração da janela, uma idéia de janela, ou ainda a janela poética.

14. “Todos os sentidos, inclusive a visão, podem ser considerados como extensões do sentido do tato - como especializações da pele. PALLASMAA, Juhani. Op. cit., p. 39.

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Organização do trabalho

A articulação do texto serviu como linha guia, foi exatamente a organização de um raciocínio, feito na forma da narrativa euclidiana: território, personagem e luta. O primeiro capítulo desvendou a janela como território, uma busca pela janela própriamente dita e suas implicações para o desenho de um espaço e para a experiência do observador. Partindo da construção da janela num espaço e uma vez construída ela integra um lugar habitado, fazendo parte de lembranças habitadas. É uma abordagem da janela dentro de questões pertinentes à arquitetura. No segundo capítulo estão os textos referentes à vivência real da cidade, fruto das experiências pessoais. Então as minhas janelas vividas passam a ser as personagens, as que consigo descrever e com as quais me relaciono. O texto elaborado é como a análise do meu território, o conhecimento real dele, território público da cidade e território íntimo da casa. Janelas da cidade e janelas da alma. Ao penetrar de alguma maneira a experiência íntima da janela passo ao que seria o acontecimento, ou ainda a luta. Apresento três situações a partir das experiências de janelas, utilizando três personagens reconhecidas: a luz, a sombra e o corpo. A luz é um ser que passeia sobre as superfícies, quase a terceira dimensão da janela, que se exporta para as superfícies na forma de luz. A sombra,

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derivada da luz, mas que foge dela, elaborando uma perseguição plástica entre elas. E por fim com o corpo, aflorando a percepção sensorial que se tem num lugar. A experiência das sensações, os sentidos que a janela, a luz e a sombra provocam no ser. Nesse terceiro capítulo houve o exercício de uma escrita subjetiva, a busca pela descrição de uma situação imaginada. A poética da escrita para comunicar uma relação íntima com o tema. O resultado de três pequenas histórias derivadas da janela.

Sendo o texto bastante visual, com muitas descrições e menções a lugares existentes da cidade de São Paulo, a fotografia encaixou-se sem dificuldades à parte escrita. Acompanhando sutilmente o rumo tomado pelo texto, mas conservando sua independência enquanto narrativa visual. As fotografias foram incorporando o trabalho como momentos de pausa do tempo, ou ainda as próprias janelas do trabalho. Quando a cidade se interrompe, surgem as janelas: interrupção das paredes, dos edifícios, as fendas e os vales da topografia. Então as imagens são os silêncios necessários na fala do texto. A janela dentro da janela é o primeiro tema que aparece — a fotografia do lado de dentro dos espaços. Depois mergulha na cidade, começando pela escuridão da noite e pela percepção da luz pontual. Como numa gradação de intimidades, da casa na penumbra ao primeiro vislumbre da cidade no escuro. Ao adentrar a cidade com a fotografia, aparece o tema do movimento, os percursos pelas ruas, as viagens. Aparecem os ônibus, carros e a figura humana. E logo a fotografia emerge deste mergulho

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noturno saindo pelos túneis da cidade — ­ janelas escavadas — para encontrar as janelas urbanas durante o dia: pontes, galerias, pilotis e as próprias ruas na topografia. Para voltar ao tema da intimidade, a fotografia volta a uma escala do indivíduo. O homem na cidade, a solidão da multidão. E na solidão encontrar então uma espécie de abstração, a cidade se torna luz, sombra e textura, sem perspectiva, uma imagem verdadeiramente estática. Chegando ao tema das janelas que perderam suas paisagens. É só no terceiro capítulo que a fotografia partilha da mesma posição do texto, dividindo as mesmas páginaa e ocupando o mesmo espaço no papel. As luzes, depois as sombras e então o corpo, que faz a volta da fotografia à imagem concreta terminando com a imagem de um corpo que cai, ou que se solta.

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Agradecimentos

Agradeço a todos que me ajudaram durante este ano de trabalho. Especialmente ao meu orientador Luís Antonio Jorge, por acompanhar o trabalho com dedicação e poesia. À Lu, que leu meus textos logo no início e desde então não saiu do meu lado, à Lígia, Dani le e Biru, com quem nunca deixo de compartilhar a fotografia, à Sol, Pomba, Lu de Carli e à Livi pela ajuda na reta final, aos queridos do cinemag pelos chás e cafés, e por fim ao Wander e à Vera pelo sempre. Aos amigos do Monte Sinai e ao Lu, agradeço por esses anos de FAU.

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Bibliografia

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Todas as fotografias e demais imagens utilizadas no presente trabalho são de autoria de Julia Paccola.

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