Outsideissu

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Junho 2014 R$ 18,50

BICICLETA

Conheรงa a histรณria da Brasil Surf e seus criadores, a revista que inovou o surf carioca.

De volta para a estrada ENTREVISTA

GO editora

Carlos Burle, bicampeรฃo mundial de ondas grandes.




Aventura

De novo, na África! Página 6

Aventura

Recorde de asa delta Página 13

capa

Nós já invadimos sua praia Página 18

Viagem

Na terra dos devoradores de arroz Página 24

Viagem

Luxo sob as estrelas Página 45

Viagem

Férias na ilha deserta Página 49

Duas rodas

De volta para a estrada Página 56

Entrevista

Carlos Burle, bicampeão mundial de ondas grandes Página 66

Treinamento Engula isso Página 75

Treinamento Hora do intervalo

Página 89


Duas rodas

De volta para a estrada

Com o fim do inverno na Europa, comeรงam as provas mais maravilhosas do ciclismo de estrada. Veja aqui as novidades deste ano para as Grandes Voltas da modalidade

Por Leandro Bittar

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Duas rodas


A PROVA Depois de uma edição épica em 2013, com muita neve e frio, a primeira grande volta ciclística do ano apresenta um percurso mais “humano” e um dia a mais de descanso (três, no total) ao longo de suas 21 etapas. A disputa da maglia rosa (camisa rosa de primeiro colocado) vai começar em uma sexta-feira, com um contrarrelógio por equipes em Belfast, na Irlanda do Norte, e termina 3.450 quilômetros depois, em Trieste, no nordeste da Itália. O traçado atende a todo tipo de ciclista, com oito etapas planas para os velocistas, três contrarrelógios (um por equipes, um individual e uma crono-escalada) e nove chegadas em subida. Mesmo assim, o campeão será um grande escalador. O temido Monte Zoncolan, com trechos de 25% de inclinação, na penúltima etapa, será o auge da disputa.

OS CARAS O atual campeão Vincenzo Nibali (da equipe Astana) abdicou de defender o título para lutar pela camisa amarela do Tour de France (TdF). Assim a grande estrela do Giro deste ano é o escalador colombiano Nairo Quintana (da Movistar), vice-campeão do TdF e um dos mais empolgantes ciclistas da atualidade. Dois rivais na disputa pela camisa rosa são o colombiano Rigoberto Urán (da Omega Pharma Quick-Step) e o australiano Richie Porte (do Team Sky), que lutarão em benefício próprio depois de anos trabalhando para a dupla de britânicos Bradley Wiggins e Chris Froome (ambos vencedores do TdF). Correm por fora os veteranos Joaquim Rodriguez (da Katusha), Cadel Evans (da BMC) e Ivan Basso (da Cannondale).

POR QUE ASSITIR Più bella, più dura. A linda paisagem italiana, favorecida pela época do ano, ainda com neve nas montanhas, torna o Giro d’Italia uma das Voltas mais interessantes de se acompanhar, mesmo para quem não entende nada de ciclismo. As duras montanhas garantem embates acirrados até o final. Não à toa, a organização define esta prova como a mais dura e mais bela da modalidade. Se você só tiver uma chance para confirmar isso, assista à 18ª etapa (dia 29 de maio), que percorrerá os míticos Passo di Gavia e Passo dello Stelvio, antes da escalada final, no Val Martello.

MARCO PANTANI Este ano, a prova homenageia os dez anos da morte do ciclista Marco Pantani, o maior ídolo da história recente do país. O poderoso escalador será lembrado em duas montanhas duríssimas que brilhou: a Oropa (14ª etapa) e o Montecampione (15ª).

BAROLO A volta italiana possui inúmeras referências da cultura italiana, e poucas coisas revelam tanto do país quanto sua gastronomia. O decisivo contrarrelógio individual na 12ª etapa selecionará quem está apto ao título deste ano; o vencedor dessa etapa será recebido na cidade de Barolo com um belo brinde do vinho mundialmente reconhecido pelo mesmo nome.

NOVO ÍDOLO Entre os melhores ciclistas do mundo, existem alguns ainda mais especiais. Um deles é Nairo Quintana. O jovem colombiano de 24 anos pode fazer história ao levar seu país ao topo do Giro pela primeira vez. Com uma grande equipe para ajudá-lo (a Movistar), Quintana pode surpreender. Um título em uma grande volta é um passo importante para ele se firmar como um dos grandes nomes do esporte – e, ele vencendo ou não, com Quintana o espetáculo é garantido.

QUANDO De 9 de maio a 1º de junho

ONDE ASSISTIR ESPN, Gazzetta.it e RAI

SITE OFICIAL http://www.giroditalia.it

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QUANDO De 5 a 27 de julho

ONDE ASSISTIR ESPN, TV5 e na internet (links em www.steephill.tv)

SITE OFICIAL http://www.letour.com

A PROVA A mais famosa volta ciclística do planeta começa na Inglaterra, em Yorkshire, e roda pela Grã-Bretanha até a terceira etapa, que terá final em Londres. Depois do enorme sucesso de 2007, quando três milhões de espectadores acompanharam o Tour na terra da Rainha, espera-se novamente um grande público graças ao sucesso recente dos “locais” Bradley Wiggins e Chris Froome, campeões em 2012 e 2013, respectivamente. Froome, aliás, é o grande favorito. O percurso lhe favorece, principalmente o crono individual de 54 quilômetros, na penúltima etapa. A grande preocupação será sustentar esse favoritismo durante três semanas (3.656 quilômetros totais), incluindo alguns dias críticos, como o quinto, que percorrerá trechos de paralelepípedos da prova Paris-Roubaix, e a 18ª etapa, que passa pelo mítico Col du Tourmalet e termina na escalada do Hautacam, montanha famosa por ter decretado o fim do domínio do espanhol Miguel Indurain no Tour de France, no ano 1990.

OS CARAS O britânico Chris Froome (Team Sky) é o grande favorito, porém o Tour de France reúne sempre os melhores ciclistas da temporada, e neste ano não será diferente. A ausência mais sentida será do vice-campeão de 2013, o colombiano Nairo Quintana (da Movistar). Joaquim Rodriguez (da Katusha), que

completou o pódio em 2013, também não estará na disputa. Campeão do Giro no ano passado, Vincenzo Nibali (da Astana) é considerado o principal rival, seguido dos espanhois Alberto Contador (da Tinkoff) e Alejandro Valverde (da Movistar). Há ainda novos nomes que rejuvenesceram a lista dos “top 10” do evento, como os norte-americanos TJ Van Garderen (da BMC) e Andrew Talansky (da Garmin), que correm por fora na disputa por um lugar entre os melhores.

POR QUE ASSISTIR Não existe evento mais importante para ciclistas, equipes, patrocinadores ou qualquer outra pessoa ligada ao ciclismo de estrada. Só para se entender a dimensão desta volta, o campeão do Tour do ano passado recebeu da organização uma premiação cinco vezes maior do que o campeão do Giro (450 mil euros contra 90 mil euros), e todos os ganhos indiretos acompanharam aproximadamente a mesma proporção. O nível da disputa é altíssimo, o que, inevitavelmente, transforma a competição em um jogo de xadrez cheio de estratégias para ver quem é o melhor.

PAVÉS Vários trechos de paralelepípedo do percurso da mítica prova Paris-Roubaix, como o Carrefour d’Arbre, estarão no traçado da 5ª etapa deste ano, somando 15,4 quilômetros de trepidações e pânico para os líderes. Eles sabem que esse tipo de terreno aumenta os riscos de queda e pode tirá-los da disputa pelo título, como aconteceu em 2010, quando o luxemburguês Frank Schleck quebrou a clavícula e Lance Armstrong teve um pneu furado.

MULHERES Atendendo aos pedidos das ciclistas profissionais, a organização do Tour realizará uma disputa feminina antes da última etapa da volta francesa, na avenida Champs-Élysées, em Paris. Uma grande conquista para elas e um aquecimento mais do que especial para o encerramento da competição.


Duas rodas

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Duas rodas


A PROVA Última grande volta da temporada, a Vuelta é a “prima pobre” entre as três. Na maioria das vezes com menos estrelas e mais jovens promessas, a competição tem um menor nível técnico. Porém se trata de um evento repleto de surpresas, ataques e reviravoltas. A edição de 2014 será a mais curta das grandes voltas, com 3.181 quilômetros e toda disputada em solo espanhol, com largada no Sul, em Jerez de la Frontera, e final no norte, em Santiago de Compostela. Sua característica mais marcante na história recente são as duras montanhas. Neste ano, por exemplo, serão 40 escaladas categorizadas e oito finais em subida. A última etapa será um contrarrelógio individual com dez quilômetros de extensão. Talvez seja pouco para alterar algo na classificação geral, no entanto vale lembrar que o campeão de 2013, o norte-americano Chris Horner, tinha apenas três segundos de vantagem para o rival Vincenzo Nibali no último dia de disputa pela camisa vermelha.

OS CARAS Com o percurso selecionado e a agenda dos rivais definida, o grande favorito para a Vuelta 2014 é Joaquim Rodriguez (da Katusha). Aos 35 anos, ele tem a melhor oportunidade de sua carreira para realizar o feito, que escapou de suas mãos em 2012. Os compatriotas Alejandro Valverde e Alberto Contador despontam como principais rivais, porém a briga pelo título da Vuelta sempre guarda surpresas, como ocorreram durante as vitórias recentes de Juan José Cobo (2011) e Chris Horner (2013).

POR QUE ASSISTIR Por pura emoção. Nos três últimos anos, foi sem dúvida a grande volta mais emocionante na disputa pelo título, como o embate entre Froome e Cobo, em 2011, o ataque surreal de Contador em 2012 e a milimétrica guerra entre Nibali e Horner na última edição.

ATAQUES Uma série de fatores torna a Vuelta menos tensa que suas co-irmãs. Algumas equipes já cumpriram

seus principais objetivos, outras já estão fisicamente no limite e várias estão pensando na temporada seguinte. Jovens nomes, atletas que tiveram imprevistos durante o ano (um acidente, por exemplo) e veteranos em busca de um último contrato disputam a competição de peito aberto, e o que se vê é uma briga mais acirrada do que nos demais eventos.

REVELAÇÕES Leopold König, Warren Barguil e Kenny Elissonde foram alguns dos jovens que venceram etapas na última edição, mostrando que a Vuelta tem se tornado um palco de promissores talentos.

ANCARES A Vuelta sempre reserva uma subida colossal para a penúltima etapa. Este ano será Ancares, uma montanha com 17 quilômetros de extensão e 7% de inclinação média. Porém, como sempre dá para apimentar um pouco mais, a subida final será precedida de outras seis (!) montanhas categorizadas (geralmente são quatro categorias de dificuldade, além das ‘hors catégorie’, as mais longas e difíceis de uma competição).

QUANDO De 23 de agosto a 14 de setembro

ONDE ASSISTIR ESPN e na internet (links em www.steephill.tv)

SITE OFICIAL http://www.lavuelta.com

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Entrevista

bu rle Carlos

bicampeão mundial de ondas grandes

A revista OutSide se econtrou com o campeão mundial de ondas grandes, Carlos Burle. Ele contou um pouco da sua trajetória de sucesso, dentro e fora do mar.

Por Laura O’Donnel


Maior expoente brasileiro do surfe em ondas grandes, o pernambucano Carlos Burle esteve em Florianópolis na semana passada para cumprir compromissos com patrocinadores. Aos 46 anos, o surfista profissional passou sua experiência para os acadêmicos da UFSC em palestra realizada no Centro Sócio Econômico da universidade e prestigiou coquetel da Loja Uber Store, representante da marca Redley, na Capital. Entre um compromisso e outro, Burle ainda achou tempo para remar de stand up paddle em Jurerê, e pagar ondas nas praias de Garopaba e no Pico do Riozinho, no Sul da Ilha. Conversei com ele na sexta-feira à tarde e falamos sobre vários assuntos, como a experiência e a repercussão da sessão de 28 de outubro em Nazaré e a expectativa para a indicação para o Billabong XXL, o oscar das ondas grandes. Confira a primeira parte da entrevista.

pois tomou duas ondas grandes na cabeça. Nunca ninguém havia passado aquilo e ela sobreviveu. Então, na realidade quem salvou a Maya foi a própria Maya. Eu estava ali, tive a atitude também para ajudar nesse resgate, as pessoas me ajudaram a leva -lá pra praia, mas basicamente isso, a gente precisa se expor. A condição podia ser melhor, poderia, se o investimento fosse maior, se tivesse helicóptero, um barco, mais jet skis, mais equipe, mas a condição perfeita não existe. Perfeito não existe. Acho que o mundo perfeito está no céu. Outside – A repercussão foi tão grande quanto a onda surfada em Nazaré? Carlos Burle - Eu acho que o ingrediente da Maya (Gabeira) fez o diferencial. Tudo que aconteceu fez daquele dia um dia pra sempre, como escreveu o Tulio Brandão (colunista do site Waves). Acho que foi a história de surfe mais comentada no mundo porque aconteceu tudo, as ondas grandes, o que a Maya fez, surfou aquela onda enorme, as pessoas tem que se lembrar disso. Ela passou por aquela dificuldade Outside - Como foi essa experiência em Nazaré porque ela surfou a maior onda já conquistada por e ao que você atribui o fato da Maya Gabeira ter uma mulher. Depois eu voltei para a água para ver caído (falta de experiência, azar) e como foi lidar o Gordo (Felipe Cesarano) e o (Pedro) Scooby porcom essa situação? Burle – O nosso esporte não é como o de quadra ou que eu estava de olho neles, e aconteceu aquilo. O automobilístico, que você pode ter a melhor equipe, Gordo pegou as ondas gigantes, o Scooby também o melhor equipamento e treina na hora que quiser. e eu consegui pegar uma onda boa. Então foi um Nós dependemos da natureza, e no caso de ondas momento histórico para gente, para o Brasil e para o esporte. Então Nazaré trouxe tudo gigantes, mais ainda. E você tem isso para minha vida, mais responque estar no lugar certo, na hora sabilidade, comprometimento, mais “Ela precisou se expor numa certa para aproveitar, para evoluir. E o que aconteceu naquele momento situação que não conhecia para evoluir prazer de fazer a coisa certa, mas também muita coisa ruim. Não é e ajudar na evolução do esporte.” foi justamente isso. Eu estava com possível fugir dos seus obstácuaquele time, com idade média de los, do seu medo. Se eu fugir, ele 25 anos. Eles querem evoluir, precivai aparecer de novo ali na frente. sam, então ficam se masturbando mentalmente, vou Aconteceu tudo aquilo com a Maya, eu vou pegar pegar uma onda de 100 pés, vou pegar uma onda giessa onda e acho que foi um presente que a naturegante e aconteceu. Eles estavam lá, tinha um mar giza, que Deus me deu. Essa onda de Nazaré foi um gante e para evoluir você tem que se expor. E a Maya presente. está evoluindo, tem treinado bastante, mas ainda não chegou no auge dela, não tem toda a técnica. Ela tem muito trabalho físico e psicológico. Ela caiu naquela onda e eu acho que outros surfistas poderiam ter caído naquela onda também. Agora, a melhor coisa que ela fez foi pegar aquela onda, porque vai demorar muito para ela pegar uma onda daquela, para passar por aquela situação, para aprender, para evoluir. O que aconteceu naquele dia foi justamente isso. Ela precisou se expor numa situação que não conhecia para evoluir e ajudar na evolução do esporte, não só na performance, como na segurança. Todo universo do surfe de ondas grandes parou para se perguntar “o que que uma mulher está fazendo ali dentro?”, “ela não tinha capacidade?”, vários comentários, mas ela mostrou que tem preparo físico,

Outside — Na palestra você disse que a repercussão na comunidade do surfe foi muito negativa. Porque? É muita vaidade, ego? Burle — É, eu acho que é muito ego, mas é o normal. O ego é importante para a evolução do ser humano. A competição vem do ego, um quer ser melhor do que outro. Agora, quando você coloca sua emoções e sentimentos acima do bem comum, acho que a coisa perde um pouco do sentido. Noventa por cento ou até mais da comunidade não entendeu. A recepção foi muito difícil, muitas críticas, muita inveja porque a gente explodiu. Meu nome aqui no Brasil ficwwwou fortalecido, o da Maya também. Mas os surfistas infelizmente tem uma mentalidade muito li-

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Entrevista

“Se eu não tiver um paralelo de pessoas positivas, bem sucedidas, que eu possa me comparar, para mim é horrível”


mitada, de tribo mesmo. Esse lance do localismo, do meu pico. Então tudo de bonito que o esporte tem – relação com a natureza, seu corpo, autoconhecimento saúde – que está na hora de compartilhar, tudo isso acaba. E você não compartilha só com surfistas, você compartilha com bodyboarder, banhista, kitesurfista, e o espaço é muito reduzido. E o surfista tem essa tendência de se proteger. A gente demorou um tempo para entender o que estava acontecendo. Você comentar e entender a situação de uma forma totalmente diferente é compreensível. Mas começaram a inventar um bocado de coisas. Inventaram que eu havia pedido para a minha assessoria para falar que a minha onda era maior. Tinha 500 pessoas em cima do cliff (rochedo), tudo acontecendo ao vivo, e aconteceu isso. Outside — Houve um comentário de que o tornozelo da Maya havia sido quebrado quando você passou com o jet ski por ela, no momento do resgate… Burle — Milhões de coisas aconteceram que não fazem parte daquele dia e eu sei que isso é muito da mente do ser humano. Eles tentam criar desculpas para justificar de alguma forma a falta de sucesso, não sei. Isso me tira um pouco de tesão, porque será que não dá para entender que seria melhor que a gente trabalhasse junto, remasse junto para um lugar só. No fundo, se o meu maior competidor ganhar mais, eu ganho mais. O que a galera do surfe parece não entender é que quanto mais medíocre o esporte, quando menor o pensamento, pior para tudo mundo. Na hora de renovar contrato eu falo “olha você sabe quanto o Pato (Everaldo Teixeira) ganha, o Rodrigo (Resende), o Eraldo (Gueiros), o Danilo (Couto) ganha?. Se essa galera não ganhar bem, é ruim para mim. Eu não preciso apagar ninguém, para mim é o contrário, eu tenho que levantar todo mundo, entendeu. Se eu não tiver um paralelo de pessoas positivas, bem sucedidas, que eu possa me comparar, para mim é horrível. Agora minha maior felicidade é saber que a Maya está super bem, deu a volta por cima, apesar de ter recebido muitas críticas. Ela está sendo considerada uma super atleta, nomeada para prêmio e daqui a pouco você vão ver ela em várias campanhas na televisão e isso é bom para a gente. Isso é bom para o esporte da gente. O que eu faço tem tudo a ver com aquele pensamento de garoto quando saí de Recife, eu quero melhorar a imagem do esporte. O que eu faço em um quarto, diz respeito a mim. O nariz é meu eu faço o que eu quiser. Quando eu sou referência de um esporte eu tenho que ter cuidado o que eu falo, com as coisas que eu penso, com as minhas ações, quando eu estou no público. Eu estou representando meus patrocinado-

res, meu esporte e meu país. Essas coisas tem que ser levadas em consideração e parece que o surfe ainda tem aquele problema, geográfico, de localismo e tudo. Mas as coisas estão melhorando. Outside – A indicação para o prêmio Billabong XXL, o oscar das ondas gigantes, deve sair nos próximos dias. Qual a sua expectativa? Burle — Eu acho que eles vão colocar a gente como concorrente, mas eu não acho que a gente vai ganhar. Teve (o swell provocado pela tempestade) Hércules, e depois teve aquela onda do Andrew Cotton (também em Nazaré), e na realidade, a comunidade não quer me dar nada. Já foi um ano muito bom para a gente. Já foi um ano onde a Maya teve uma outra oportunidade de vida, não quero pedir mais nada, acho muito egocentrismo e egoísmo eu sair pedindo mais alguma coisa. Outside - O Felipe Cesarano, o Gordo, um dos seus pupilos, fez um desabafo via Facebook, de forma respeitosa, falando que a onda surfada por ele é maior do que a sua. Como você recebeu esse desabafo? Burle — Totalmente natural. Eu acho que naquele dia tinha 10, 12 surfistas na água. Cada um vai achar que sua onda é melhor que a outra. Isso que é legal. O importante é que eu não falei que a minha onda era maior. Tinha 500 pessoas no cliff, no dia antes acho que tinha duas mil pessoas em um domingo de sol, só que o swell atrasou e bateu na segundafeira, e as 500 pessoas que viram o que aconteceu falaram aquilo. O surfe é um esporte muito subjetivo e eu já estou meio velho para ficar com essa história. Mas está tranquilo, não muda a minha relação com ele. Acho até pior se ele achasse e não falasse e a coisa ficasse guardada. Ele foi verdadeiro. Outside - Nesta temporada havaiana você teve a oportunidade de conversar com o havaiano Laird Hamilton, que o criticou via CNN pelo fato da Maya Gabeira ter surfado em Nazaré. Como foi esse encontro? Burle — Foi na casa dele, no mar, em Jaws (ilha de Maui). E foi interessante porque ele se mostrou maduro também. As vezes as pessoas até brigam, brigam por coisas que nem acreditam. Ele foi conversar comigo e eu disse que o comentário dele havia sido muito profissional, cada um fala o que pensa. Mas em contrapartida eu estou indo em um caminho que eu tenho certeza que é o correto, o caminho que eu plantei lá atrás quando eu ainda era surfista em Recife. Eu não quero que o esporte tenha essa imagem atrelada a vagabundos que não sabem se expressar.

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capa

Conheça a história da Brasil Surf e seus criadores, a revista que inovou o surf carioca.

Por André Caramuru Aubert


Em meados dos anos 70, quando muita gente ainda via o surf como mera recreação para desocupados, a revista Brasil Surf lançou uma nova luz sobre o esporte. Mas fez muito mais do que marcar a história do mercado editorial brasileiro... mexeu com a juventude do país ao mostrar que era possível pensar em viver e não só em sobreviver. E revelou os primeiros indícios de que era viável imaginar carreiras e estilos de vida bem diferentes das previsíveis e limitadas expectativas do passado

Tudo começou em 1974, quando Alberto Pecegueiro e Flavio Dias, uma dupla de garotos de 16 e 17 anos que pegava ondas no Leblon, decidiu criar uma revista de surf. Ou ainda uns anos antes, em 72, quando foi inaugurado, em Ipanema, um píer. Construído para servir de tubulação de esgoto mar adentro – obra que não deu certo –, o píer, antes de ser demolido, acabou por proporcionar ondas de força, formação e qualidade raras no litoral brasileiro, e se tornou o ponto de encontro de uma geração que, mesmo sem saber, estava reinventando o surf no Brasil, agora não apenas como esporte ou diversão de praia, mas como alternativa possível à vida sem brilho que acabava arrastando boa parte da juventude. Aquele point acabou por juntar figuras como Rico de Souza, Ricardo Bocão e Pepê Lopes, respeitados fora e, principalmente, dentro d’água: encaravam os maiores dias, ganhavam campeonatos e já haviam surfado no Havaí, o que na época significava uma espécie de coroação ou título de nobreza. Havia ainda por ali toda uma galera, mais numerosa e nem sempre surfista, mas que ajudava a forjar a massa crítica do que poderíamos chamar um estilo próprio de cultura de praia, capaz de abraçar músicos, escritores, artistas, gente de orientações sexuais desencaixadas dos padrões da época e muitas, muitas mulheres deslumbrantes. Não era algo exatamente hippie, mas trazia uma negativa clara às demandas da chamada vida adulta e do trabalho “careta” que ainda eram sinônimos perfeitos de sofrimento e de privação total de prazer. Nessa turma havia também gente que começava a fotografar surf; outros começavam a escrever sobre o tema, batalhando onde publicar. Outros ainda, dos quais muitos garotos das redondezas, apenas gostavam de pegar onda e estar por ali, como Pecegueiro e Dias. Colegas de escola, frequentavam juntos o clube do Botafogo. Alberto jogava vôlei e Flavio, polo aquático. Com 16 e 17 anos, respectivamente, nenhum dos dois era surfista excepcional, mas ambos pegavam ondas desde os 12 ou 13 anos e adoravam estar ali. Como outros da turma, devoravam os raros exempla-

res das revistas Surfer e Surfing, dos Estados Unidos, bíblias do esporte cujas preciosas edições de vez em quando apareciam por aqui. Mas a fagulha acendeu mesmo quando o irmão de Alberto trouxe da Flórida uma newsletter bem caseira, de uma associação local de surf, com fotos e matérias sobre os seus membros. Quando Alberto mostrou a tal newsletter para Flavio, ouviu dele a pergunta mágica: “Por que a gente não faz uma coisa parecida?”. Alberto já fotografava e Juvêncio Dias, pai de Flavio, trabalhava em gráfica e, embora não fizesse revistas, entendia de diagramação, composição, fotolito, papel, impressão e distribuição. A explicação sobre o funcionamento da parte comercial veio de um tio de Alberto, publicitário. A conversa com o tio começou assim: “Já temos fotos, textos e gráfica. O que falta?”. “Falta tudo! Vocês estão de cueca na mão. Falta calça, camisa, paletó, gravata... tudo.” A “sede” era, e continuou sendo por um bom tempo, o apartamento da família de Flavio, na avenida Nossa Senhora de Copacabana, 166, ap. 121, conforme aparecia no expediente da revista. Enquanto os dois garotos resolviam as questões práticas, com Alberto tocando o editorial e Flavio o comercial, o boato sobre o surgimento de uma revista de surf começava a circular pelo eixo Ipanema -Leblon, e não parava de aparecer gente querendo fazer parte do movimento. Rico, então bicampeão brasileiro, foi o entrevistado da primeira edição. Alberto, tímido, achou que a celebridade surfística nem atenderia a um “projeto de revista”, mas Rico não só atendeu, como deu a entrevista com a célebre resposta à pergunta “O que é o surf para você?”. Sem piscar, Rico respondeu: “Antes de tudo, é tudo”. Mas, depois da frase enigmática, veio um pensamento mais estruturado: “Muita gente tenta definir o surf como esporte, religião etc..., mas, para mim, a definição que mais se aproxima é a que considera como uma filosofia, um estilo de vida, regra de viver. Eu me realizo no surf. O surf consegue me isolar do mundo, do sistema...”.

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Tema de Documentário Com a notícia sobre a futura publicação, fotógrafos que já circulavam pelo píer deram as caras. Um deles era Fernando Lima, o Fedoca, que aos 21 anos já era profissional e, além de fotógrafo, também escrevia e até saía nas fotos. A capa da edição número três mostra Fedoca dando uma forte cavada numa direita no Arpoador, fotografia de Rogério Ehrlich, outro dos profissionais que aderiram na primeira hora. Ehrlich era o dono da lente mais poderosa do país na época, uma rara teleobjetiva de 800 milímetros que parecia um canhão. A combinação dos dois fatores acabou fazendo dele, no início, um dos fotógrafos mais presentes nas páginas da revista. Os outros caras, Ehrlich conta dando risada, preferiam surfar a fotografar. Além dos dois, havia os fotógrafos Alexandre “Freddy” Koester, irmão do conhecido shaper e surfista Miçairi, e Mucio Scorzelli, ambos já experientes. Um pouco mais tarde, juntaram-se ao time Tunico de Biasi e Nilton Barbosa. O próprio Alberto também fotografava e escrevia, e muita gente do círculo de amizades formado nas ondas colaborava com textos. Aderiram ao projeto Carlos Magalhães, hoje diretor de programas na Globo, Ricardo Bravo, Fernando Dias (irmão de Flavio) e Ruben Jimenez, o diretor de arte que acabou criando a “cara” da revista. Depois de meses de trabalho, em abril de 1975 o número um da Brasil Surf aparecia nas bancas do país, com uma foto de capa feita de dentro da

água por Freddy Koester, no Arpoador. O surfista era Claudio Bento Ribeiro, então com 17 anos, que soube pelos amigos que estava na capa da revista pioneira. Fotos de surfistas não identificados, algumas sem qualquer legenda, impressão ruim, excesso de surfistas e ondas do Rio, erros de revisão e até uma matéria sobre um campeonato que não deixa claro no texto quem foi o vencedor... nada disso diminuiu o interesse de uma multidão de garotos absolutamente carentes de algo que mostrasse aos seus olhos e cérebros que era possível viver mais perto de tudo aquilo que sentiam como suas vocações verdadeiras. A primeira edição, de 20 mil exemplares, se esgotou rapidamente. A partir daí ela sairia bimestralmente (embora pontualidade nunca tenha sido o forte da revista) até janeiro de 1979, quando o último número chegou às bancas – deixando uma história de forte influência não só no cenário editorial do país, mas sobre uma geração que queria acreditar que era possível viver fazendo algo além de trocar a vida por dinheiro. O impacto da revista foi tão marcante que, mais de três décadas após seu fim, a Brasil surf vai virar tema de documentário, dirigido por Olívio Petit e produzido pela Massangana (de Surf adventures), a ser lançado ainda em 2012, com imagens clássicas do surf nos anos 70 e entrevistas que evidenciam o quanto a revista ajudou na profissionalização do surf brasileiro.


capa

O começo de uma era Como a Brasil surf terminou? As versões variam. Há quem sugira que o investimento num projeto novo, a revista Brasil skate, deficitária e de vida curta, teria descapitalizado a empresa. Também se menciona o apoio a Nas ondas do surf, filme de longa-metragem de Livio Bruni Junior que nunca teria dado retorno, como possível causa do fim. O tiro de misericórdia, dizem outros, teria sido dado por um fotógrafo da segunda leva, que, com pagamentos atrasados a receber, teria protestado a empresa, levando-a à falência. Em meados da década de 70, quando a Brasil surf veio à luz, já existia, apesar de ainda vigorar a censura, um mercado editorial razoavelmente consolidado no Brasil, com grupos poderosos como a extinta Bloch e a Abril, que lançou a revista Geração POP pensando no público jovem. Mas não havia, na visão atual de Alberto Pecegueiro, uma revista feita para um público por seu próprio público. Assim como os pais que não levavam muito a sério as buscas de novos modelos de vida de seus filhos surfistas, as grandes editoras não se davam conta de que aquele público existia e especialmente de que aquela turma de praia viria a se transformar num dos mais fortes e influentes grupos formadores de opinião no país. Da mesma maneira, os idealizadores da Brasil surf

não faziam ideia de que o mercado editorial brasileiro jamais seria o mesmo depois dos quatro anos de vida daquela revista. Eles não sabiam, mas estavam fazendo escola e mudando as perspectivas de futuro e a maneira de ver o mundo dos jovens do Brasil. E deixaram um legado, mostrando que havia espaço não só para publicações feitas sem obedecer às fórmulas jornalísticas convencionais, mas também para pessoas que acreditavam que havia outras possibilidades além do roteiro preto e branco que previa escola, faculdade, emprego, casamento, aposentadoria e morte.

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