ocupacao do espaco publico contemporaneo

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ocupação do espaço público contemporâneo | julia de brito machado

JúLIA DE BRITO MACHADO

OCUPAÇÃO

DO ESPAÇO PÚBLICO CONTEMPORÂNEO laboratório da ocupação civil + transposição av. 9 de julho

TFG FAU MACKENZIE São Paulo, 2013 1


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JúLIA DE BRITO MACHADO

OCUPAÇÃO

DO ESPAÇO PÚBLICO CONTEMPORÂNEO laboratório da ocupação civil + transposição av. 9 de julho

Trabalho Final de Graduação apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie sob orientação do Professor Abílio Guerra para a obtenção do título de arquiteto e urbanista.

São Paulo, 2013



Agradeço aos meus orientadores Abílio Guerra e Guilherme Motta pela liberdade e paciência. Aos maravilhosos Rafaela, Gabriela, Elisa, Paty, Soraya, Leandro, Nina, Day e Taís pelo aprendizado muito além da faculdade e pela amizade nas noites mal dormidas, trabalhando ou festejando juntos! À Maria Claudia e Julia, pois sem vocês estaria perdida! Pelos sonhos que compartilhamos e que me fazem seguir em frente. À Fernanda, por sempre me ouvir. À Flávio, Claís, Thiago e Guga, pelo amor que me move a cada dia. Muito obrigada!


SUMÁRIO


15 INTRODUÇÃO 19 19 23 28

O PROCESSO DE ABANDONO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NO CENTRO DE SÃO PAULO | 01 PROCESSO DE OCUPAÇÃO DO CENTRO TRADICIONAL MODERNIZAÇÃO URBANA ESPAÇO PÚBLICO X PRIVADO

35 INICIATIVAS PÚBLICAS | 02 38 VIRADA CULTURAL 41 NOVOS PROTAGONISTAS URBANOS | 03 41 MOVIMENTO BAIXO CENTRO 42 PROVOS 43 PRAÇA ROOSEVELT E EXISTE AMOR EM SP 49 JORNADAS DE JUNHO 52 BLACK BLOC 57 REDE URBANA DE ARTE - RUA | 04 59 LABORATÓRIO DA OCUPAÇÃO 59 TOPOGRAFIA 63 PROGRAMA 66 ARQUITETURA 71 BIBLIOGRAFIA 81

CRÉDITO DAS IMAGENS



“Ainda vão me matar na rua. Quando descobrirem, principalmente, que faço parte dessa gente que pensa que a rua é a parte principal da cidade.” Paulo Leminski


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INTRODUÇÃO


Este trabalho pretende analisar o processo de abandono dos espaços públicos do centro da cidade de São Paulo pela população, a partir da segunda metade do século XX, até a sua retomada por iniciativa da sociedade civil, através dos movimentos Existe Amor em SP e Baixo Centro, às Jornadas de Junho e os Black Bloc, nos dias de hoje. De centro financeiro, moradia e espaço de encontro da elite durante as primeiras décadas do século, o centro tradicional tornou-se um espaço gradativamente deteriorado, heterogêneo e popularizado, sendo abandonado pelas camadas sociais de maior poder aquisitivo, que buscaram outras regiões da cidade, principalmente para morar e consumir. A partir da década de 70, estruturam-se numa vertente recente das modernizações, novos centros especializados como complexos empresariais, condomínios e bairros fechados, hipermercados e shoppings centers, cuja expansão trouxe significativas modificações à cidade. Articula-se neles um modo de vida distinto, segregado e diferenciado, evitando o máximo possível contato com espaços públicos e sua diversidade de grupos sociais. O conjunto de empreendimentos dessa ordem, centrados numa série de procedimentos de mercado e agenciados sob logica da segregação, ameaça de varias formas o espaço publico, ao abandona-lo à mercê da deterioração, do crime e, alguns casos, da desertificação, o que, por sua vez, reforça a adoção de medidas cada vez mais privatizantes. A cidade começa a gerar a partir de então um novo padrão de segregação urbana, com a recriação de preconceitos e discriminações através de uma “estética da violência” cuja marca mais visível são as grades pontiagudas, muros, guardas, guaritas, etc., que passam a marcar a paisagem urbana. Neste contexto, foram tomadas algumas iniciativas públicas, entre os anos de 2000 e 2004, durante o mandato da prefeita Marta Suplicy, do Partido dos 15


Trabalhadores (PT), a fim de recuperar a vitalidade dos centros históricos para não desperdiçar sua potencialidade simbólica, centralidade e capacidade infraestrutural, buscando assim frear a extensão da mancha urbana enquanto o centro morre. Iniciou-se o plano “Morar no Centro”, introduzindo habitações dentro das velhas estruturas em desuso e a recuperação de diversos cinemas abandonados. Neste período, a sede da Prefeitura mudou-se para o edifício Matarazzo, no Viaduto do Chá e a Secretaria da Cultura, para a Galeria Olidio, depois da restauração do Cine Olido, transformado em centro cultural com endereço na Avenida São João. Organizada pelas secretarias municipal e estadual de cultura de São Paulo, a Virada Cultural tem exercido papel importante desde sua origem em 2005, na transformação do centro como polo cultural, levando para a região milhares de pessoas dos mais diversos bairros e classes sociais. Em março de 2012 surge o Festival Baixo Centro. Com iniciativa da sociedade civil, o movimento tem como objetivo transformar as áreas degradadas do centro em espaços de integração e troca, através da arte, de forma associativa, aberta e livre. A partir dai, desencadearam-se inúmeros festivais e manifestações artísticas, politicas e sociais na região como: “Festa Junina no Minhocão”, “Ato Amor Sim Russomano Não”, “Festival Existe Amor em SP”, “Ato Fora Feliciano”, etc. Todos organizados de maneira horizontal e gratuita. O espaço público também vem sendo palco de inúmeras manifestações políticas como o fenômeno das Jornadas de Junho, que foram muito além das discussões propostas pelo Movimento Passe Livre sobre a mobilidade urbana, levando os jovens para as ruas por meio das redes sociais, sem presença de partidos, sindicatos e organizações de massa tradicionais. Por fim, este estudo leva ao desenvolvimento de um projeto que busca uma reflexão sobre arquitetura dos espaços públicos contemporâneos. 16


Sua localização na Avenida Nove de Julho é propositalmente próxima aos espaços urbanos ocupados por esses movimentos artísticos, políticos e sociais, tais como Minhocão, Praça Roosevelt e Anhangabaú, provocando a criação da Rede Urbana de Arte (R.U.A.), com o objetivo de fomentar essas ocupações do espaço público a fim de devolver ao cidadão paulistano o sentimento de pertencimento à cidade. Com topografia marcante, o terreno elegido demanda a conexão entre os bairros Consolação e Bixiga sob a Avenida Nove de Julho. Para a construção do programa, também foi levado em consideração a capacidade funcional da arquitetura definida pela ação reciproca entre uma situação espacial concisa e uma abertura para o uso variado. Ou seja, com um programa fixo que tem como objetivo alimentar o fluxo de pessoas que surge a partir da nova conexão proposta, o projeto anseia, através de seu desenho, a abertura para atividades espontâneas tanto cotidianas, como vendedores ambulantes, quanto intervenções artísticas inesperadas.

1. As ruas são para dançar é um dos motes do movimento Baixo Centro.

Este trabalho tem como objetivo afirmar a importância da recuperação do espaço público em grandes cidades pelos seus habitantes através do desenho arquitetônico que valorize o pedestre e as questões do dia-a-dia. Projetar espaços que ofereçam a oportunidade do encontro e que admita em seu desenho a diversidade dos seres humanos, apostando na riqueza e importância da convivência heterogenia. Pois afinal, as ruas são para dançar!1

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01 PROCESSO DE ABANDONO DOS ESPAÇOS PÚBLICOS NO CENTRO DE SÃO PAULO 18


PROCESSO DE OCUPAÇÃO DO CENTRO TRADICIONAL De centro tradicional das elites a espaço popularizado

Tal como toda grande metrópole, a cidade de São Paulo conta com um centro tradicional que constitui seu marco histórico, referência para sua memoria coletiva. Nele observam-se as sucessivas transformações no decorrer das décadas, que marcam a historia da cidade. Cabe também lembrar que, na São Paulo provinciana, o centro também era conhecido por cidade, ou seja, a cidade era o centro. No inicio do século, o centro tradicional constituía um “local de consumo, comércio e negócio das elites”, englobando a Praça da Sé, Pátio do Colégio, Largo São Francisco, Praça João Mendes, Largo da Memória, Largo de São Bento, as ruas XV de Novembro, Direita, Florêncio de Abreu, São Bento, etc. O afloramento da presença popular na cidade não é fortuito. Dado o final da escravidão e a necessidade de grande mão-de-obra para suprir o crescimento industrial da cidade em razão do capital acumulado com a exportação do café, afluem a partir do final do século XIX novos tipos humanos que mudariam o quadro social de São Paulo: proprietários, comerciantes, mulheres, crianças, negros, imigrantes estrangeiros. Ao contrario do que ocorria no período da escravidão, com a clara demarcação da esfera pública entre homens livres e escravos, a nova fase, marcada pela presença de outros atores sociais, acirrou a presença dos pobres no espaço urbano, o que veio a ser controlado, posteriormente, por meio de intervenções “saneadoras” por parte do poder público, visando segregar essas classes em espaços circunscritos. fig. 1 imagem retirada do filme São Paulo Sociedade Anônioma de 1965.

As camadas sociais populares concentraram-se historicamente nos bairros operários – baseados no binômio fabrica-moradia, ou seja, as fabricas ofereciam moradias aos trabalhadores como parte 19


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do pagamento, dando origem às “vilas operárias” – construídas nas terras baixas da cidade, ao longo das ferrovias. A cidade de São Paulo organizou-se em duas partes distintas, separadas pelo rio Tamanduateí, pelo córrego Anhangabaú e pela estrada de ferro S.P.R. – São Paulo Railway (Santos-Jundiaí), sendo que a leste localizavam-se os bairros populares (mistos) com residência operária, industrial, comércio, tendo como pioneiro o Brás. A oeste, bairros da aristocracia rural e burguesia industrial como Campos Elísios, Vila Buarque, Higienópolis e Avenida Paulista (fig.2). Essa divisão é fundamental para a compreensão da ocupação da cidade, uma vez que, por um lado, o centro tradicional circunscrevia inicialmente tipos de uso ligados às classes de maior poder aquisitivo, com traços de ocupações populares, enquanto do outro lado também surgia uma espécie de centro em torno do bairro do Brás, com desenvolvimento de uma vida social, politica e cultural relativamente autônoma em relação ao resto da cidade. De qualquer forma, o centro tradicional constituiu um espaço das elites durante as primeiras décadas do século, até se tornar um espaço gradativamente deteriorado, heterogêneo e popularizado, sendo abandonado pelas camadas sociais de maior poder aquisitivo, que buscaram outras regiões da cidade, principalmente para morar e consumir.

fig. 2 mapa de São Paulo em 1895: o rio Tamanduateí, o córrego Anhangabaú e a estrada de ferro separavam os bairros populares e os bairros da aristocracia rural e burguesia industrial.

A partir das primeiras décadas do século XX, São Paulo, passou por uma intensa expansão de suas fronteiras. A acumulação urbana que se concentrava nas proximidades das fabricas deixou de existir com as novas bases de industrialização, além do transporte rodoviário permitir a expansão dos serviços de locomoção pela cidade, antes restrita à circulação dos bondes. Entre 1914 e 1930 passa-se a verificar um retalhamento da terra na área suburbana e rural de São Paulo, com expansão considerável da área urbana sob comando da especulação imobiliária (fig.3). 21


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Se no inicio do século havia bairros e regiões nitidamente separados em classes sociais distintas, tais separações se transformariam com a nova lógica de expansão urbana. Uma interpenetração de áreas deu-se de forma particularmente intensa no espaço do centro tradicional de São Paulo, com a confluência de diferenciados grupos e atividades naquela região, condensando o que se dava também em outros espaços da cidade.

2. FRÚGOLI JR., Heitor. São Paulo: espaços públicos e interação social. São Paulo: Marco Zero, 1995.

Por isso, enquanto a cidade expandia suas fronteiras de forma desordenada, boa parte do centro da cidade foi passando por um rápido processo de diversificação de funções, sofrendo uma gradativa deterioração urbana, com estagnações no ritmo de novas edificações, queda no seu uso habitacional com o afastamento de parte de sua população para outros bairros, encortiçamento, proliferação do pequeno comercio informal, aumento da violência, prostituição, miséria, etc.2

MODERNIZAÇÃO URBANA A expansão da indústria, o Golpe Militar e os novos centros urbanos

A partir dos anos 50 e nos anos 60 radicalizaram-se tanto o ritmo de transformações urbanas quanto as desigualdades sociais, num salto tão significativo quanto problemático de modernização urbana. Tal processo se relaciona com a expansão da indústria dos anos JK e as mudanças introduzidas após o golpe militar de 1964, quando metrópoles como São Paulo sofreram certas intervenções modernizantes sob forte autoritarismo, com grande influencia dos governos federal e estadual e pouquíssima participação da sociedade civil e do poder local.

fig.3 evolução urbana da cidade de São Paulo.

A arquiteta Regina Meyer mostra como, já a partir dos anos 50, configura-se em São Paulo outra etapa em sua organização físico-espacial, ligada à estruturação da fase monopolista do sistema produtivo que implicou novas formas de crescimento da cidade e um rearranjo da relação entre o planejamento urbano e a metrópole, como o projeto 23


de Prestes Maia (1955) para um moderno sistema de transporte para a cidade. Entretanto, faltariam conhecimento, experiência, instrumentos adequados e vontade politica para que tal planejamento resultasse em intervenções concretas. Segundo a autora, uma efetiva interpretação veio se concretizar mais tarde, já durante a ditadura militar, a partir do “Plano Urbanístico Básico do Município de São Paulo” (1968), ponto crucial entre o Estado e o urbano na cidade3. A presença desse planejamento num contexto autoritário acarretou intervenções descabidas e predatórias. O Elevado Costa e Silva, popular “Minhocão”, via expressa elevada inaugurada no final dos anos 60, que cortou a cidade na direção da Zona Leste, atingindo a Praça Marechal Deodoro e inúmeros prédios, que passaram a contar com milhares de automóveis transitando próximo às suas janelas, tornando parte da Avenida São João num espaço absolutamente degradado. Ao fim do Elevado Costa e Silva, a Praça Roosevelt configura um exemplo extremo de uma praça voltada para varias funções em detrimento do encontro e da sociabilidade. Projetada sobre o sistema viário da ligação leste-oeste como “resposta global a solicitações contextuais” – como, por exemplo, estacionamento para trabalhadores da região, passagem para pedestres, ponto de encontro, parque infantil, etc. – terminou resultando num espaço dividido arbitrariamente com múltiplos serviços e praças centrais e secundarias, em vários planos ligados por rampas, tornando-se ininteligível para o usuário4. Outra decorrência da modernização foi a criação na metrópole, de novos centros urbanos, cujo dinamismo começa a superar, em alguns aspectos, o centro tradicional. Este, por sua vez, desdobrouse em dois núcleos, o Centro Principal e o Centro Paulista, o segundo abrangendo a região da Avenida Paulista, Rua Augusta, Avenida Rebouças e Rua da Consolação. 24

3. MEYER, Regina M. P. Metrópole e urbanismo: São Paulo anos 50. Dissertação de mestrado, FAUUSP, 1991.

4. FERRARA, Lucrécia D. Ver a cidade, imagem, leitura. São Paulo: Nobel, 1988.


Segundo Manuel Castells “as cidades progridem se autodestruindo, em lugar de ir crescendo a partir de uma base de manutenção do que já existe”. Tal observação é apropriada para a compreensão da lógica que preside as transformações urbanas verificadas principalmente nos centros, que vêm sofrendo mudanças consideráveis em suas funções e referências simbólicas5. Vejamos o quadro das várias praças situadas nas regiões centrais da cidade. Algumas vão passando por um processo de deterioração e abandono, em função de outros vetores de investimentos urbanos, ainda que ocasionalmente possam vir a ser recuperados por determinadas políticas públicas de revalorização do centro tradicional. Outras, por exemplo, foram destruídas parcialmente para a construção do Metrô, e posteriormente redesenhadas, pouco preservando a estética anterior. Outras ainda sofreram intervenções consideráveis com abertura de avenidas ou viadutos, muitas vezes de forma predatória, inviabilizando a retomada dos mesmos tipos de uso anteriores.

5. CASTELLS, Manuel. A intervenção administrativa nos grandes centros urbanos. In: Espaço & Debates n.6, São Paulo, NERU, 1982, p. 64-75.

Mas embora a cidade, principalmente as regiões centrais, venha sendo engolida pelo tráfego, através das avenidas e viadutos, e as praças venham se prestando sobretudo ao fluxo, como entrada e saída de Metrô, persistem ocupações por parte de agrupamentos sociais cuja logica não é aleatória e muito menos individualizada: camelos, engraxates, trabalhadores ocasionais, desempregados, prostitutas e travestis, moradores de rua, mendigos, trombadinhas, batedores de carteiras, etc., a maioria proveniente de camadas populares, que se apropriam da cidade e muitas vezes “ressignificam” sob outros pontos de vista. Acentua-se, portanto, a popularização desses espaços públicos acrescida de uma serie de atividades informais ligadas a sobrevivência, ou mesmo de moradia, num espaço extremamente diversificado. Neste contexto, grupos sociais ligados às camadas médias e altas desenvolvem em geral 25


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uma forte aversão a essa diversidade de cunho popular, passando a utilizar outros locais, como parques e praças de bairros mais elitizados e menos atingidos pela dinâmica urbana acima descrita, além de espaços mais privatizados e controlados.

fig.4 [pág. anterior] vista do Elevado Costa e Silva, o “Minhocão”, um dos desastres urbanos construídos durante a ditadura Militar.

ESPAÇO PÚBLICO X PRIVADO O surgimento dos complexos empresariais, condomínios e bairros fechados, hipermercados e shoppings centers

Na esteira desse fenômeno de modernização, pode-se lançar um olhar sobre uma dimensão urbana significativa, ligada a moradia das classes média e alta, que se configura principalmente nas regiões periféricas de São Paulo, com a construção de um grande número de complexos residenciais, como Alphaville, Tamboré ou Granja Vianna, muitos erguidos em regiões caracterizadas anteriormente, sobretudo, pela pobreza do padrão periférico. Passa a haver uma convivência geográfica próxima entre camadas sociais distintas, distanciadas por uma significativa diferença de renda, o que, com a incidência de assaltos, reforça a criação, por parte desses condomínios, de um conjunto de estratégias de segurança. Segundo Teresa Caldeira , a combinação entre riqueza e pobreza gera um novo padrão de segregação urbana, com a recriação de preconceitos e discriminações, além de se objetivar nessas habitações uma arquitetura da segurança, ou em outros termos, uma “estética da violência”, cuja marca mais visível são as grades pontiagudas, muros, guardas, guaritas, etc., que passam a marcar a paisagem urbana6. Começa-se a produzir espaços de defesa contra a cidade, vista como fonte de inúmeros males e, ao mesmo tempo, procura-se recriar internamente um espírito de comunidade entre os moradores, que só tem em comum o fato de pertencerem a um mesmo patamar sócio-econômico. Este cenário é bem representado no filme O Som ao 28

6. CALDEIRA, Teresa P.R. City of walls: crime, segregation and citizenship in São Paulo. Dissertation for the degree of Doctor of Philosophy in Anthropology in the Graduate Division of the University of California at Berkeley, 1992.


Redor (2013), do diretor Kleber Mendonça Filho. O filme reverbera o silêncio da luta de classes cotidiana que Recife e as demais metrópoles brasileiras produzem e reproduzem como se relações sociais desiguais e deformadas fossem nossa segunda natureza. O filme aglutina um panorama de fatos supostamente banais sob os quais o processo histórico de constituição de nosso capitalismo periférico posiciona as diferentes classes e determina a assimetria de seus contatos, a proximidade efêmera de suas relações e, por vezes, a contiguidade espacial da profunda desigualdade. A capital pernambucana é pródiga em aproximar prédios à beira-mar de favelas encravadas sob os pés dos condomínios de luxo. Nada que os moradores do Morumbi, em São Paulo, e de Copacabana, no Rio, desconheçam. A repulsa daí decorrente os leva a se proteger com muros encimados por arame devidamente farpado e eletrificado e contratação de seguranças noturnos para vigiarem as ruas. A obra se estrutura como uma sucessão de colagens que retiram do cotidiano brutalizado os eventos que já nos parecem tão normais quanto a inanição dos corpos magros e sujos que povoam acintosamente – grifo da classe média paulistana – as calçadas. É assim que, em sequências vertiginosas, soldados da polícia militar compram DVDs piratas de um ambulante, uma madame que sai de um suposto consultório médico enxota o flanelinha que lhe oferece ajuda como se mais um miserável lhe quisesse usurpar as moedinhas de que ela sequer se lembra, crianças pobres brincam na rua em que os carros quase as atropelam e furam suas bolas, ao passo que os filhos dos privilegiados se esgueiram por entre os espaços encouraçados de seus condomínios-bunkeres. Também fruto da uma modernização multifacetada, os shoppings centers, que vêm se expandindo principalmente a partir dos anos 80, abarca vários campos: o da distribuição do comercio varejista, que, conjugada a um dinamismo presente no capital imobiliário, confere uma especificidade própria a esse 29


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tipo de empreendimento; são centros comercias, que como o próprio nome indica, criam determinadas centralidades urbanas, visto que aspiram a se tornar sucedâneos de antigos centros comerciais tradicionais na cidade, e atraem frequentadores de diferentes bairros; constituem também um tipo de cidade dentro da cidade, reproduzindo em seu interior uma atmosfera idealizada, procurando banir os atores sociais desviantes; vêm se tornando importantes pontos de lazer para vários grupos sociais, sobretudo jovens, que criam no espaço várias formas de sociabilidade. fig.5 cena do filme “O Som ao Redor”. Crianças e babás disputam espaço na quadra do condomínio residencial.

Se por um lado os shoppings são verdadeiras cidades intramuros que mantem uma difícil relação com a cidade (seu entorno), por outro, apresentam como contrapontos às deficiências de infraestrutura das grandes cidades, veiculando uma espécie de imagem invertida: são locais confinados, servido por uma uniforme climatização ambiental, em que o tempo parece não passar. Não há chuvas, nem calor excessivo, nem becos escuros ou ruas esburacadas. Atores sociais indesejáveis são banidos através de um rígido esquema de segurança. Surge, portanto, no interior da cidade, outra cidade, recriando em seu interior novas praças, calçadões, bulevares, alamedas de serviços, agrupamentos de lojas, etc., dentro de uma nova escala e concepção. Nesse cenário de irrealidade, os frequentadores imaginam encontrar um lugar a salvo das estatísticas da violência urbana, das intempéries climáticas, dos transtornos do transito, das desordens da geografia urbana. As estratégias de segurança de condomínios, complexos de escritórios e shoppings, transformam a experiência da vida pública na cidade, pois alteram hábitos de circulação, trajetórias e movimentos relacionados ao uso cotidiano das ruas, inclusive do transporte público. As dimensões do morar, estudar, conviver, lazer ou esporte são encerrados quase sempre em instituições fechadas e seguras, sem a experiência 31


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das ruas, do bairro, do transporte coletivo: sem contato, enfim, com a dimensão pública da cidade. Configura-se, desta forma, toda uma cultura da privatização do espaço, que se objetiva na construção de cidades voltadas para os interiores, com sérias consequências à dimensão pública das metrópoles. O conjunto aponta para a configuração de uma metrópole com determinados espaços modernizados, ligados à formação de um espírito privatizante, ao passo que o espaço público propriamente dito tende ao abandono, à deterioração, ao crime, a um uso altamente diversificado e conflitivo. O estilo de vida que se articula através de grupos sociais de maior poder aquisitivo, marcado pela mobilidade urbana, pela permanência preferencial em espaços privatizados e por constantes demarcações de distinção, pode ser visto ligado a uma certa cultura dos espaços privatizados, onde a noção de espaço público torna-se secundária. Nesse caso a esfera pública, ao nível da vida urbana, também se torna mais ameaçada, porque tais grupos sociais desenvolvem atitudes e defendem posições conservadoras e elitistas, reforçando os preconceitos, propondo sobretudos soluções repressivas para banir os grupos “indesejáveis” e, ao mesmo tempo, articulam “barricadas” contra a metrópole, criando uma comunidade artificial à parte do contexto urbano.

fig. 6 | 7 novas medidas de segurança passam a marcar a paisagem urbana como grades pontiagudas, muros, guardas, guaritas e câmeras

O espaço público, esta dimensão imprecisa, mas presente e marcante na vida urbana, apresenta desdobramentos desalentadores, diante do quadro metropolitano que se desenha. Crescentes parcelas das classes sociais de maior poder aquisitivo se refugiam em espaços excludentes, e boa parte das classes populares se move por um espaço deteriorado, engendrando ocupações permeadas pela transgressão.

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02 INICIATIVAS PÚBLICAS 34


7. MONTANER, Josep Maria; MUXÍ, Zaida. A Praça das Artes. Reconstruindo São Paulo. Minha Cidade, São Paulo, ano 14, n. 159.04, Vitruvius, out. 2013

Há alguns anos, a cidade de São Paulo está tentando reverter o processo de degradação de seu centro histórico, onde permanecem sedes de grandes bancos e entidades financeiras, com a intenção de que a cidade não continue se esparramando de maneira selvagem em novos centros terciários e grandes urbanizações fechadas, como o fantasma urbano de Alphaville, conglomerado de mais de 30 urbanizações fechadas (gated communities) onde vivem cerca de 150.000 pessoas e no qual, a cada dia, entram outras tantas em seus escritórios, negócios, hotéis, escolas e universidades7. Entre 2000 e 2004, durante o mandato da prefeita Marta Suplicy, do Partido dos Trabalhadores (PT), para revitalizar o centro histórico se iniciou o plano “Morar no Centro”, introduzindo habitações dentro das velhas estruturas em desuso. Em 2004, a sede da Prefeitura se mudou para o edifício Matarazzo, no Viaduto do Chá e a Secretaria da Cultura, para a Galeria Olido, na Avenida São João, depois da restauração do antigo Cine Olido, luxuoso cinema paulistano que fechou no inicio do século XXI. Ainda que o prefeito seguinte, José Serra, tenha dado certa continuidade, o processo foi, em parte, contido. Contudo, alguns dos projetos foram adiante. Um destes projetos, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura do governo municipal que acaba de sair, dirigido pelo prefeito Gilberto Kassab (2008-2012), foi inaugurado em dezembro de 2012. Trata-se de uma grande parte do projeto da Praça das Artes, realizado pelo escritório Brasil Arquitetura, dirigido pelos arquitetos Marcelo Ferraz e Francisco Fanucci, com a colaboração do arquiteto Marcos Cartum, para abrigar o Conservatório Dramático e Musical, incluindo espaços para dança.

fig. 8 Vale do Anhangabaú ocupado por pessoas durante a noite na Virada Cultural.

A solução tipológica se adapta à estrutura urbana da quadra, com uma muito boa relação com os edifícios preexistentes de finais do século 19 e princípios do 20, como o antigo Cine Cairo, próximo ao Teatro Municipal, do qual se conservou a fachada. O desafio foi ajustar um complexo programa em quatro 35


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partes distintas da quadra, gerando um espaço público urbano no seu interior. Trata-se de espaços esquecidos e abandonados, que hoje servem para relacionar três ruas distintas. Todo este sistema está constituído por generosos espaços intermediários de convivência. Desta maneira, com as três entradas diferentes e as passagens de pedestres no interior de quadra, se reordena e se enriquece o entorno urbano. O grande conjunto é acessado no momento por duas ruas, criando-se grandes lobbies e espaços abertos e ajardinados de conexão. Na fase seguinte, o conjunto cultural se abrirá a uma fachada principal, que se volta para o histórico Vale do Anhangabaú. Esta operação é a parte mais representativa e visível de outras remodelações e transformações, como as que tem projetado o escritório Paulo Bruna Arquitetos Associados. Uma delas é a transformação de antigos escritórios em esquina, o edifício Riachuelo, projetado na década de 1940 pelos engenheiros Lindenberg & Assumpção. Em 2008 se completou sua conversão em um edifício de habitações de interesse social, com bom uso, boa expressão da vida doméstica em janelas e balcões, e boa manutenção por parte dos usuários.

fig. 9 | 10 Praça das Artes. Projeto do escritório Brasil Arquitetura, inaugurado em 2012, promovido pela Secretaria de Cultura.

Outra, em projeto e gestão desde 2009, é a intervenção no Art Palácio, primeiro grande cinema da requintada Cinelândia da década de 30, tela de todos os lançamentos de Mazzaropi, que encerrou suas atividades em 2009 como cinema pornô. A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Cultura, e com parceria privada, realiza o Festival Screen que será inaugurado em 2014. O festival atua há onze anos em Barcelona e diversas outras cidades do planeta abordando a questão do novo no audiovisual e como ele reconstrói e compõe a cidade nas suas múltiplas dimensões de imagem. Para a Secretaria Municipal de Cultura esta será uma ação pioneira e tem por objetivo experimentar novas formas de utilização de espaços degradados e inutilizados. “Esta prevista uma reforma definitiva para o espaço, que deverá abrigar uma casa de espetáculos e shows no centro de São Paulo. 37


Estamos captando os recursos”, diz Renato Nery, coordenador de fomento audiovisual. “A intervenção artística nos ajuda a testar sua real vocação ao mesmo tempo que qualifica tanto o espaço do cinema quanto seu entorno” afirma Alfredo Manevy, secretário adjunto de Cultura . Nesta mesma zona histórica, também está prevista a remodelação do velho Cine Ipiranga, em avançado processo de desapropriação. Todo isso faz parte de um processo lento, descontínuo e incompleto, que tem o objetivo de dar mais suporte institucional à reabilitação de edifícios, reforçando o caráter público e cultural da parte mais representativa e convertendo os demais em habitação. Um processo que outras capitais latino-americanas, como México DF, já iniciaram. Na capital mexicana já se começou a reabilitar velhos edifícios residenciais, tanto para habitação social como para classe média, e a promover focos culturais no centro histórico. O objetivo é recuperar a vitalidade dos centros históricos para não desperdiçar sua potencialidade simbólica, centralidade e capacidade infraestrutural, buscando assim frear a extensão da mancha urbana enquanto o centro morre. Para isso é vital implementar intervenções arquitetônicas e de reforma urbana que se baseiam, essencialmente, em reabilitar e potencializar o existente .

VIRADA CULTURAL Organizada pelas secretarias municipal e estadual de cultura de São Paulo e pelo Sesc, com a adesão de um grande número de instituições culturais, a Virada Cultural é um evento anual que acontece na cidade oferecendo atrações culturais, durante 24 horas interruptas, para pessoas de todas as faixas etárias, classes sociais, gostos e tribos que ocupam, ao mesmo tempo, a mesma região da cidade. O evento, que teve sua primeira edição em 2005, foi inspirado na “Nuit Blanche” francesa e atrai milhares de pessoas de todos os bairros da cidade e até de outras cidades do país, até a região central 38

fig. 11 fachado do antigo cinema Art Palácio na Avenida São João, do arquiteto Rino Levi. fig. 12 Art Palácio recebe intervenção do Festival Screen, promovido pela Secretaria da Cultura.


de São Paulo. Em sua programação há de tudo um pouco: desde grandes nomes da musica nacional e internacional, a teatro, dança, magica, stand-ups e lucha libre. Mas apesar da qualidade e diversidade das atividades oferecidas, o impressionante é ver a quantidade de pessoas saindo de suas casas, fugindo do cotidiano e transformando o centro, o mesmo que estamos acostumados a pensar em ser um lugar apenas de comércio e trabalho, em lugar de diversão! Outro ponto a ser observado é a capacidade da cidade em receber esse tipo de evento com poucos transtornos. Com banheiros químicos, barracas de alimentos um eficaz sistema de limpeza, a ostensiva presença de veículos e guardas militares e civis, a limitação do fluxo de automóveis em algumas ruas e avenidas, e o Metrô funcionando durante as 24 horas, são decisões das autoridades que, no seu conjunto, permitiram as pessoas transitar de um local a outro sem maiores problemas. 8. GUERRA, Abilio. Virada Cultural em São Paulo. Reconquistando as ruas do centro. Arquiteturismo, São Paulo, ano 05, n. 050.07, Vitruvius, abr. 2011

“Passear a noite pelo belo centro de São Paulo, sem medos ou receios, é uma sensação inspiradora, que nos coloca diante de uma possibilidade concreta de reconquista das ruas e do centro. A concentração de atividades culturais e um maior contingente de moradores na área central são fundamentais para animar o centro durante a noite, dando mais segurança a diversos logradouros hoje abandonados e perigosos. Mas, para que não seja uma efeméride fugaz e se transforme em um cotidiano, muitas coisas têm que ser feitas, não só pelo poder público, mas por todos nós: associações, sindicatos, clubes, escolas, entidades culturais, pessoas comuns. Por quê não tornar a Virada Cultural em um ponto de partida?”8.

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03 NOVOS PROTAGONISTAS URBANOS 40


No dia 24 de março de 2013, foi publicada uma matéria no jornal O Estado de São Paulo, intitulada “A invasão que esta mudando o centro”, em que afirma a retomada dos espaços públicos da área central de São Paulo por movimentos artísticos que convidam a população a ocupar as ruas: “A região central de São Paulo está sendo ocupada. Por arte, música e, principalmente, pessoas, que estão saindo de suas casas e transformando as ruas da região - degradada e marcada pelo abandono - em espaço de intervenção e troca. Essa ocupação se manifesta de diversas formas: nas festas e protestos políticos que levam pessoas às Praças Roosevelt e Dom José Gaspar, nos coletivos de artistas que se instalaram em casarões nos Campos Elísios ou nas galerias que escolheram o Vale do Anhangabaú como base.” Na mesma matéria, o urbanista e professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo Fábio Mariz Gonçalves afirma: “O centro está voltando a ser palco de encontro dos diferentes”. Em seu blog, a urbanista e professora da FAUUSP Raquel Rolnik, também comenta essa mudança nos espaços públicos da cidade: “Depois de um intenso período de valorização do uso dos espaços fechados, que começou com a construção de shoppings nos anos 1970 e viveu sua explosão nos anos 1980 e 1990, parece haver agora alguns sinais de um movimento no sentido oposto, de retomada de uso mais permanente das ruas, praças e calçadas da cidade.”

MOVIMENTO BAIXO CENTRO As ruas são para dançar! fig.13 intervenção artística durante o Festival Baixo Centro na praça Marechal Deodoro em abril de 2012.

Um dos principais responsáveis por essa visível mudança é o movimento Baixo Centro. O grupo surgiu articulado à Casa da Cultura Digital (CDD), um projeto que começa com a contracultura dos anos 60-70 e que hoje conecta cerca de 30 organizações 41


ligadas de alguma forma à cultura digital que resolveram se juntar num mesmo espaço físico quatro casas de uma vila operária do inicio do século XX na Santa Cecília – para trabalhar melhor, uma vez que acreditam que o digital é algo mais do que uma mudança estética e buscam um modo de convivência e de convergência que respeite as individualidades, as diferenças, as diversidades. O BaixoCentro se define como um movimento colaborativo, horizontal, independente e autogestionado, organizado por uma rede aberta de produtores interessados em ressignificar a região em torno do Minhocão. O movimento acredita na ocupação civil das ruas desvinculadas de empresas, ONGs ou governo, através da produção feita de forma associativa, aberta e livre. O financiamento também é coletivo, via crowdfunding e outras formas independentes de arrecadação como leilão, rifa, doações, etc9.

fig.14 um dos motes do Movimento Baixo Centro é “A rua é para dançar”.

“Descobrimos que somos mais gente inquieta do que imaginávamos. Mas não apenas o número surpreende, também a variedade e a poética de propostas pensadas ou adaptadas para a rua”, explica Andressa Vianna, uma das colaboradoras do Baixo Centro. O grupo organiza festivais que transformam os desastres urbanos da cidade, como é o caso do Minhocão, em obras de arte ocupado por pessoas. Dentre as atividades estão: exposições e cinema projetado nas vigas do Minhocão, festa junina, carnaval, improvisações musicais, festas de música eletrônica e brasileira, performances, etc. Transformando a cidade a partir das intervenções urbanas efêmeras10.

PROVOS Um dos lemas do Baixo Centro é “as ruas são para dançar”(fig.15), em referencia ao movimento “Provos”, criado na Holanda em 1965. O nome vem da abreviação de provokatie (provocação em holandês) e nasce da apatia em que um mundo 42

fig.15 os jovens do Provos no ato que ficou conhecido como “Plano das Bicicletas Brancas” em Amsterdã.


9. baixocentro.org 10. OESP. Descubra os centros culturais ao redor do Minhocão, em São Paulo. O Estado de S. Paulo, 16 dez. 2011. 11. GUARNACCIA. Matteo. Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. São Paulo: Conrad, 2001.

imerso na sociedade de consumo pode provocar em seus habitantes. Um grupo de divertidos agitadores que se reuniam no “Centro Mágico” de Amsterdam para celebrar ritos coletivos contra o fetiche da sociedade consumista e ali surgiram as primeiras campanhas anti-publicidade e antiautomóvel. Ali surgiu aquilo que passamos a chamar de Contracultura e se desenvolveu a idéia de que a subversão funcionava melhor quando misturada com humor inesperado “Caminhando contra a corrente do cair fora beatinik, os Provos holandeses empenharamse descaradamente em permanecer dentro da sociedade, para provocar nela curto-circuito”, diz Matteo Guarnaccia em seu livro Provos: Amsterdam e o nascimento da contracultura. “A revolta Provo foi o primeiro episódio em que os jovens, como grupo social independente, tentaram influenciar o território da política, fazendo-o de modo absolutamente original”. Herdeiros do dadaísmo e da tradição anarcocomunista, os provos inauguraram novos formatos de ação política e da luta ecológica. Deram nova dimensão à idéia de desobediência civil. O exemplo dos Provos antecipou e inspirou os diversos movimentos de contestação jovem nos anos 60, inclusive a esquerda hippie norte-americana e os manifestantes do maio de 68 francês11.

PRAÇA ROOSEVELT E EXISTE AMOR EM SP Alguns dias após sua reinauguração em setembro de 2012, a recém-reformada Praça Roosevelt foi palco do seu primeiro ato, contra o candidato do PRB a prefeito de São Paulo, Celso Russomanno. O ato que levava o nome “Amor, Sim, Russomanno, Não!” representava não apenas o descontentamento dos cidadãos em relação às propostas do candidato, mas a necessidade do encontro, da discussão, do amor à cidade e de ocupar os espaços públicos. Idealizado por artistas e agitadores culturais, o evento pretendia transformar a praça numa grande 43


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fig.16 | 17 Festival “Existe Amor em SP” na Praça Roosevelt.

festa. Os organizadores, que se utilizaram das redes sociais para divulgação, pediam que os participantes do ato fossem vestidos com roupas cor de rosa, escolhida por não representar partido e por ser associada ao amor, ocupando a praça que mais tarde veio a ser chamada de Praça Rosa por seus frequentadores. Após bem-sucedido ato contra o candidato do PRB, outro evento foi organizado na praça em outubro do mesmo ano: o festival “Existe Amor em SP”. Em referencia a letra da música do rapper Criolo “Não Existe Amor em SP”, o festival buscava celebrar a cidade e os seres humanos. O evento teve a participação de músicos da cena independente como Criolo, Emicida e Gabi Amarantos que, segundo seus organizadores, reuniu 8 mil pessoas.

fig.18 | 19 cartazes de chamada para as reuniões do grupo 12. Marco Feliciano é pastor evangélico eleito presidente da Comissão dos Direitos Humanos em março de 2013. É alvo de manifestações populares por seus pronunciamentos polêmicos. 13. os índios Guarani-Kaiowá, no Mato Grosso do Su,l são ameaçados de despejo por ordem judicial. Uma carta escrita por eles foi divulgada pelo Twitter e Facebook, gerando uma rede de solidariedade e de denúncia das violências enfrentadas por essa etnia.

Devido ao sucesso do evento, os organizadores continuaram a se reunir todas as terças-feiras na praça para discutir a cidade, criando um novo movimento que levou mesmo nome do festival, “Existe Amor em SP”. No Vale do Anhangabaú, organizaram o festival “Anhangabaú da FelizCidade” com apresentações de artistas de rua, projeções, festas e soundsystems espalhados por todo o vale: “Marcado por manifestações históricas e maior passarela da diversidade socio-cultural paulistana. Do Teatro Municipal aos bares de forró, da bolsa de valores às residências de artistas, da sede da prefeitura às ocupações de prédios abandonados, dos moradores de rua aos primeiros arranhacéus da cidade… a lista segue. O vale encarna as contradições e, talvez mais importante, o potencial adormecido de uma São Paulo verdadeiramente pública. E pronta para assumir na cultura (não apenas no trabalho) sua verdadeira vocação”, dizia na página do evento no facebook. Apoiou também atos como “Fora Feliciano12” e a favor dos índios GuaraniKaiowa13.

JORNADAS DE JUNHO Uma onda de protestos tomou conta das cidades 49


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14. saopaulo.mpl.org.br

brasileiras em junho de 2013, contra o aumento da tarifa de ônibus. Os atos foram convocados pelo Movimento Passe Livres (MPL) que, desde 2005, discuti e luta por outro projeto de transporte para as cidades, acreditando na mudança da sociedade através da mudança na lógica da mobilidade urbana, sem impedir o acesso pleno aos espaços e serviços, garantindo o direito à cidade, sem exclusão social14. Por se tratar de um movimento apartidário, abrangendo formas horizontais de decisão, sem personificação de lideranças nem comando de partidos e comitês centrais, os atos deram abertura para discussões que foram além do aumento da passagem, emergindo uma infinidade de pautas e agendas mal resolvidas no país, como o tema dos megaeventos e suas lógicas de gentrificação e limpeza social.

fig.20 os cartazes usados durante as manifestações abrangiam diversos temas.

15. MPL. Não começou em Salvador, não vai terminar em São Paulo. In: Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013, p. 16.

21. manifestantes caminham pela Av. Paulista próximo ao MASP.

Para a linguagem da polícia – e da ordem – a ocupação das ruas é baderna; porém, amparados pela Constituição, para vários movimentos sociais ali presentes, a retomada do espaço urbano aparece como o objetivo e o método, que determina diretamente os fluxos e os usos da cidade. Nas palavras do MPL-SP: “A cidade é usada como arma para sua própria retomada: sabendo que o bloqueio de um mero cruzamento compromete toda a circulação, a população lança contra si mesma o sistema de transporte caótico das metrópoles, que prioriza o transporte individual e as deixa à beira de um colapso. Nesse processo, as pessoas assumem coletivamente as rédeas da organização de seu próprio cotidiano.15” A participação, através de sua expressão mais radical, a autogestão, e as novas maneiras e métodos de fazer política tomaram as ruas como forma de expressar revolta, indignação e protesto. Isso não é novo na política. Mas hoje o tema da ocupação – no sentido do controle do espaço, mesmo que por um certo período, e, a partir daí, a ação direta na gestão de seus fluxos – tem forte ressonância no sentimento, que parece generalizado, do alheamento 51


em relação aos processos decisórios na política e da falta de expressão pública de parte significativa da população. Ocupando as ruas, reorganizando os espaços e reapropriando suas formas, aqueles que são alijados do poder de decisão sobre seu destino tomam esse destino com seu próprio corpo, por meio da ação direta. A questão da representação não envolve apenas a crise dos partidos e da política e, portanto, a necessidade de uma reforma política, uma das principais agendas das ruas. Twitter, Facebook e as demais redes sociais, outros personagens dessa trama, não garantem a inclusão dos jovens – e de vários outros segmentos da população brasileira – na chamada “formação da opinião pública”, cujo monopólio é exercido pela grande mídia. Apesar de a maioria dos jovens manifestantes usar a internet para combinar os protestos, os temas continuam sendo produzidos pelos monopólios de comunicação, assim, entende-se também por que redes de TV foram, e continuam sendo, atacadas pelos manifestantes . Essa maneira de ocupar o espaço público tem se manifestado não apenas em São Paulo e nas cidades brasileiras, mas provém de Istambul, da Primavera Árabe, do Occupy Wall Street, dos Indignados da Espanha. Esses movimentos transformaram da praça Tahrir, no Egito, à praça do Sol, em Madri, da praça Syntagma, na Grécia, ao parque Zuccotti, nos Estados Unidos, passando pela praça Taksim, na Turquia, em palcos de protestos majoritariamente compostos por jovens, convocados por meio de redes sociais, sem a presença de partidos, sindicatos e organizações de massa tradicionais16.

16. ROLNIK. Raquel. As vozes das ruas: as revoltas de junho e suas interpretações. In: Cidades rebeldes: passe livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo; Carta Maior, 2013, p. 7-12.

BLACK BLOC Paralelo a essa estratégia - e independente do MPL e congêneres - se manifestou nesse período a tática do Black Bloc, em grande parte como resposta à violência policial. O Black Bloc é composto por pequenos grupos de afinidade, muitas vezes feitos na hora, que atuam de forma independente dentro das 52

fig. 22 | 23 | 24 tática black bloc nas ruas ocupam as ruas de preto, com máscaras, fogo e pixação.


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manifestações. Mas, ao contrário do MPL, o Black Bloc não é uma organização ou coletivo e sim uma ideia, uma tática de autodefesa contra a violência policial, além de forma de protesto estética baseada na depredação dos símbolos do estado e do capitalismo. A dinâmica Black Bloc lembra mais uma rede descentralizada como o Anonymous do que um movimento orgânico e coeso. Utilizada primeiramente pelos movimentos autonomistas da Itália e da Alemanha, é muito presente na Europa e EUA, e mais recentemente nos países árabes, mas nunca havia encontrado condições para se desenvolver em solo brasileiro. O primeiro sinal de propaganda Black Bloc no país ocorreu no início dos anos 2000, durante o surgimento do movimento anticapitalista global (antiglobalização), mas foi descartado pelos ativistas autônomos da época por avaliarem a ação direta não violenta, manifestada principalmente nos protestos contra a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), estrategicamente melhor para o cenário brasileiro. Anos depois essa opção pela ação direta não violenta combinada com trabalho de base, organização horizontal e uso intensivo da internet influenciou a criação do MPL e outros movimentos autônomos, como a Bicicletada, o Centro de Mídia Independente e o Rizoma de Rádios Livres. Em junho o cenário de manifestações criou um ambiente favorável para o florescimento do Black Bloc brasileiro na sua forma de autodefesa. Em diversas capitais as mobilizações extrapolaram a capacidade organizativa dos grupos e movimentos que as desencadearam, criando movimentos multicêntricos onde cabem diversas estratégias, táticas e narrativas mobilizadoras. Como na maioria das cidades esse crescimento veio pela solidariedade popular pós-repressão, é coerente afirmar que a violência policial foi o fermento da indignação que levou a população às ruas no auge das jornadas de junho; e serviu como justificativa moral, segundo seus defensores, para a disseminação descentralizada da tática Black Bloc17. 54

17. TAKAHASHI. André. O Black Bloc e a resposta à violência policial. In: <cartacapital.com. br/sociedade/o-black-bloce-a-resposta-a-violenciapolicial-1690.html>. São Paulo, 2013.


Não é da natureza deste trabalho julgar o Black Bloc, muito menos opinar a favor ou contra, mas sim entender as estéticas e formas de expressão do “ser urbano” de hoje que vem invadindo o lugar comum e de direito a todos nós: a rua. O espaço público é um palco de infinitas possibilidades e, é através dele, que podemos conhecer os anseios e insatisfações dos habitantes da cidade, ou seja, de nós mesmos.

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04 rede urbana de arte - rua 56


“Ocupar e transformar o espaço com pequenas alegrias pode ser hoje muito mais potente na vida do que belos e gigantescos monumentos instalados na cidade. A construção da paisagem se faz, assim, por uma micro-ação política, gerando micro-alegrias.” Louise Ganz18

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Neste último capitulo, acrescento ao estudo até aqui apresentado, o desenvolvimento e análise do projeto do Laboratório da Ocupação Civil, integrado à Rede Urbana de Arte, a RUA. Após analisar as áreas de intervenção dos movimentos Baixo Centro e Existe Amor em SP, pode-se identificar que os espaços ocupados ficam em torno do Elevado Costa e Silva, o Minhocão, a Praça Roosevelt e o Vale do Anhangabaú.

A RUA é uma diretriz que tem como objetivo fomentar a ocupação dos espaços públicos de cunho artístico, politico, social e cultural, a fim de devolver 58

fig.25 fotogrsfia feita durante o Festival Baixo Centro no Minhocão. 18. Louise Ganz é arquiteta e produtora de arte urbana

fig.26 mapa retirado da matéria Descubra os centros culturais ao redor do Minhocão, em São Paulo do Jornal O Estado de São Paulo.


ao cidadão paulistano o sentimento de pertencimento à cidade. A seguir, farei uma análise dos aspectos levados em consideração para o desenvolvimento do Laboratório da Ocupação Civil. q

LABORATÓRIO DA OCUPAÇÃO CIVIL

A arquitetura é o espaço projetado, articulado culturalmente. Trata do espaço articulado referente aos processos de vida de corpos individuais e sociais e incluindo-os. Sophie Wolfrum19 19. Sophie Wolfrum é chefe da cadeira de Planejamento Urbano Regional e Desenho Urbano , da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da TU München

O projeto surge como consequência dos acontecimentos mais atuais na região, a partir de um ponto de vista relacionado ao processo histórico dos espaços público na cidade apresentados no decorrer deste estudo e que defende importância da ocupação do espaço público como lugar da igualdade social através da convivência criativa.

TOPOGRAFIA De acordo com arquiteto e urbanista Fernando de Mello Franco, atual secretário municipal de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, pouco se realizou pelo aproveitamento da riqueza topográfica para a construção de espacialidades que promovessem continuidades entre os setores cindidos pela geografia, tendo em vista a escala de São Paulo. A multiplicação das áreas de circulação pública, conectando os diferentes níveis topográficos, foi realizada apenas para o sistema viário e de maneira estritamente funcional. As pontes e viadutos existentes fora do núcleo central cruzam obstáculos, mas via de regra ignoram a escala local na qual estão implantados. Constituem-se referências pela escala, mas não constroem qualidades simbólicas que as transformem em marcos urbanos. A peculiaridade do Plano de Prestes Maia residiu na decisão de ganhar os eixos de fundo de vale para neles implantar as novas radiais necessárias para 59


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estruturar a expansão da cidade. Um dos principais feitos de Prestes Maia, o Sistema Y, composto pelas avenidas Tiradentes, 9 de Julho e 23 de Maio, relaciona-se diretamente aos níveis das terras baixas. Em vez de buscar a superação dos vales por um numeroso conjunto de viadutos dispostos no sentido transverso aos mesmos, o modelo implantado acabou por privilegiar a implantação de avenidas de fundo de vale: quanto mais largo e extenso um vale, maior a contribuição de sua respectiva bacia e maior a capacidade de carregamento do seu eixo principal.

fig. 28 Bixiga

O paradigma rodoviário defendido com ardor por Prestes Maia criou pontos de inflexão ao desenvolvimento urbano, originalmente impulsionado pelo sistema sobre trilhos, porque privilegiou acintosamente uma técnica em detrimento de outra. Acarretou transformações urbanas induzidas pelas características intrínsecas à técnica dos sistemas de transporte sobre rodas, sobretudo a dispersão espacial, a desregulamentação do serviço e o predomínio do transporte individual sobre o coletivo. Mas, com a mesma força que promoveu a substituição do sistema sobre trilhos pelo sobre rodas, reafirmou o processo iniciado pelo sistema anterior de transformação e ocupação das várzeas20. O terreno escolhido, com seus acessos pela Avenida 9 de Julho e pela Rua Álvaro de Carvalho, tem como uma das suas principais características sua topografia marcante. Uma vez elegido como área de intervenção do projeto, a demanda por uma conexão em nível dos bairros Consolação e Bixiga, foi inevitável. A partir desse momento, a arquitetura foi encarada como elemento articulador da cidade. A conexão foi estabelecida através de uma passagem aérea sob a Avenida 9 de Julho, culminando no edifício do Ministério da Saúde (fig.30). Viu-se a possibilidade de continuar a transposição prevista, invadindo um andar desse edifício, recortando-o e transformando-o em um segundo térreo para o Ministério da Saúde e um novo acesso do projeto pela Rua Santo Antônio. A escolha por recortar e deixar sua fachada livre, diferenciado 62

fig. 30 edifício do Ministério da Saúde na Av. 9 de Julho que sofrerá intervenção. 20. FRANCO, Fernando Mello. A construção do caminho, a estruturação da metrópole pela conformidade técnica das várzeas e planícies fluviais da Bacia de São Paulo. Tese de Doutorado. São Paulo, FAUUSP, 2005.


dos demais andares, tem como objetivo deixar claro para o pedestre que naquele nível acontece uma transposição.

PROGRAMA

fig.29 Consolação

Para a construção do programa, além do local de inserção e sua topografia, também foi levado em consideração a capacidade funcional da arquitetura definida pela ação reciproca entre uma situação espacial concisa e uma abertura para o uso variado. Ou seja, com um programa fixo que tem como objetivo alimentar o fluxo de pessoas que surge a partir da nova conexão proposta, o projeto anseia, através de seu desenho, a abertura para atividades espontâneas cotidianas, como vendedores ambulantes, e intervenções artísticas inesperadas. De acordo com o artigo de Sophie Wolfrum no livro Micro planejamento: práticas urbanas criativas, o aspecto espacial definido pela arquitetura e o urbanismo contemporâneo não implica a criação de novos espaços rígidos, mas criar espaços com a capacidade de abrigar diferentes funções e hábitos sociais que ocorrem ao longo do tempo. No mesmo artigo, a autora também fala sobre o urbanismo performativo através da concisão: “O urbanismo performativo conta com a arquitetura urbana, conta com o projeto (design) como a competência da profissão e o poder da arquitetura para criar espaços de abertura e experiência performativa através da concisão”.

21. Comissão Curatorial formada por Jacopo Crivelli Visconti (coordenador), e os arquitetos Fernanda Bárbara, Fernando de Mello Franco, Guilherme Wisnik, Juan Pablo Rosenberg, Marcelo Morettin, Marta Bogéa e Martin Corullon.

No artigo São Paulo: redes e lugares publicado pelo site Vitruvius, os autores21, que representavam o Brasil na 10ª Mostra Internacional de Arquitetura da Bienal de Veneza, também comentam a abertura na arquitetura através da indeterminação do projeto e sua apropriação pela população: São Paulo oferece projetos considerados emblemáticos em relação à riqueza do uso dos espaços. Espaços públicos em que se reconhece um valor de “morada”, isto é, espaços cuja indeterminação lhes permite serem criativamente apropriados pela população. Os exemplos escolhidos não seguem uma unidade 63


fig.31 edificio da FAUUSP ĂŠ apropriado pelos alunos.

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programática. São eles a área livre coberta pela marquise que interliga cinco edifícios no Parque Ibirapuera, projetada por Oscar Niemeyer; as rampas do edifício da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP), projetado por Vilanova Artigas; e o edifício do Centro Cultural São Paulo, projetado por Eurico Prado Lopes e Luiz Telles. Nos três casos, nota-se que à função predominante de circulação acrescentam-se outras, não nomeáveis, associadas à permanência e ao encontro, isto é, ao desfrute da sua espacialidade intrinsecamente porosa, aberta, não segregável. O que se percebe, nesses casos, não é uma apropriação criativa dos espaços, por parte da população, que subverte situações de constrangimento espacial muito comuns na cidade. Ao contrário, o que ocorre nos exemplos escolhidos é uma ação que potencializa a abertura do projeto, pois de algum modo preenche os vetores de indeterminação deixados pelo arquiteto na intenção de amparar a imprevisibilidade da vida. Essa postura, para além de uma diretriz de desenho arquitetônico na construção de artefatos, é uma posição projetual diante das questões colocadas pela contemporaneidade. Na prática cotidiana, a população constantemente propõe outras formas de apropriação dos espaços, que os reconfiguram. Uma via de circulação que tenha o seu tráfego interrompido no final de semana se transforma em área de lazer, pista de corrida e ciclismo, seja de forma espontânea ou de maneira regulada pelo poder público. No sentido da transgressão, a realização de rapel nos viadutos urbanos, ou mesmo a prática esportiva do “parcour”, são atividades que, através de performances, fazem das edificações uma “natureza urbana” a ser superada. fig. 32 | 33 | 34 de cima para baixo: Centro Cultural São Paulo, Marquise do Ibirapuera e rampas da FAUUSP

São situações cada vez mais numerosas em São Paulo que muitas vezes ocorrem alguns dos espaços mais inóspitos da cidade, e deles extraem a pulsão de uma vida essencialmente urbana. Não se trata de realizar um elogio à capacidade 65


criativa e irreverente da população, perante suas demandas reprimidas, em detrimento do valor do projeto. A questão se coloca na redefinição do foco do projeto e de suas estratégias em relação a variáveis que não se pode controlar, e que, opostamente, se quer potencializar através da sua qualidade. A partir dos conceitos apresentados até agora foi feita uma listagem das atividades pretendidas no espaço, chegando-se ao seguinte programa: praça, auditório interno e externo, oficina co-working e galeria de arte.

ARQUITETURA Ao percorrer o trecho da Avenida 9 de Julho, onde se insere o projeto, percebe-se seu carácter de mera passagem e em sua maioria, de automóveis. Por ali, poucas pessoas permanecem, a não ser para esperar o ônibus no canteiro central ou os próprios donos de pequenos comércios e botecos existentes ao longo da avenida, além de alguns moradores de rua que parecem viver por ali. Apesar das calçadas largas e de boa qualidade, uma vez comparadas à maioria das calçadas da cidade, as fachadas dos prédios formam um enorme paredão, transmitindo uma sensação estranha ao pedestre que passa pela região, contribuindo para a não permanecia na área. Em contrapartida a este fato, o desenho do projeto pretende criar uma praça na avenida, como um 66


respiro em meio ao paredão de prédios, além de oferecer um espaço para a permanência dos moradores e passageiros da região. Na praça, além de bancos e algumas árvores, também foram colocados módulos de 2,5x2,5x2,5 (fig.35 | 36 | 37) que servem como comércio, que se espalham ao longo do projeto. Ao final da praça, encontra-se a galeria de arte. A circulação é feita através de passarelas que se localizam de maneira óbvia, faceando o limite do terreno, com a finalidade de facilitar o entendimento do passageiro. No segundo andar encontra-se a oficina de coworking. Essa oficina tem a intenção de promover o trabalho em conjunto, oferecendo uma infra-estrutura básica, de computadores, tomadas, wi-fi, reprografia, laboratório de fotografia e ateliê, fomentando a troca de ideias e projetos entre os frequentadores. Seguindo pelas mesmas rampas, chega-se ao terceiro andar, responsável pela transposição sob a Avenida 9 de Julho. A passagem aérea possibilita o pedestre descer ao canteiro central da avenida, facilitando o acesso ao ponto de ônibus que se localiza à 50 metros do projeto, e acessar a Rua Santo Antônio em nível. Nesse mesmo andar, foram instalados mais módulos de comércio, e um grande foyer para o auditório, com cafeteria e um bicicletário.

fig. 35 | 36 | 37 exemplos de módulos de comércio usado na praça Tirso de Molina em Madri.

Uma larga rampa e escadaria-arquibancada, nos leva à praça que acessa a Rua Álvaro de Carvalho. Esta segunda praça tem carácter mais aberto, a fim de abrigar os mais diferentes usos propostos pela população. A arquibancada que se encaixa no desenho da praça e atinge o palco do auditório, criando a possibilidade desse mesmo auditório, ser externo. A praça também possui um espaço infantil. Uma outra rampa acessa o terraço do projeto que abriga um espaço desenhado para o desenvolvimento de uma horta comunitária, uso que permite a aproximação dos moradores da região, como um convite para se conhecerem.

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acesso pela Avenida 9 de Julho.

68


acesso pela rua Alvaro de Carvalho.

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_740

GALERIA + PRAÇA

_742.8

ADMINISTRAÇÃO

1 2 3 4 5 6

AVENIDA 9 DE JULHO

70

PRAÇA DA FEIRA GALERIA INFORMAÇÕES|GUARDA VOLUMES SALA DE REUNIÃO ADMINISTRAÇÃO WCS

_745.6

OFICINA COWORKING


_740

MEZANINO

1 2 3 4 5 6 7 8

OFICINA COWORKING ESTAR | COPA ATELIÊ LABORATÓRIO DE FOTOGRAFIA ALMOXARIFADO WCS REPROGRAFIA MESAS DE REUNIÃO

_751.2

AUDITÓRIO + TRANSPOSIÇÃO

1 AUDITÓRIO 2 SALA TÉCNICA 3 BILHETERIA 4 CAFETERIA 5 BICICLETARIO 6 WCS 7 FOYER 8|9 COMÉRCIO 10 ENTRADA MINISTÉRIO DA SAÚDE 11 CAFETERIA 12 PRAÇA

AVENIDA 9 DE JULHO

71


_755

PRAÇA CIVIL + ACESSO R. ALVARO DE CARVALHO

1 2 3 4

_759.3

COBERTURA HORTA COMUNITÁRIA

PRAÇA CIVIL AUDITÓRIO [EXTERNO] ESPAÇO INFANTIL CLARABÓIAS

1 HORTA COMUNITÁRIA 2 CAIXA D´ÁGUA

72


_759.3 COBERTURA HORTA COMUNITÁRIA

EDIFICIO MINISTÉRO DA SAÚDE

_755 PRAÇA CIVIL + ACESSO R. ALVARO DE CARVALHO

_751.2 AUDITÓRIO + TRANSPOSIÇÃO

ACESSO R. SANTO ANTONIO

_745.6 OFICINA COWORKING

_740 GALERIA + PRAÇA + ACESSO AV. 9 DE JULHO

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CORTE B|B

CORTE A|A

rua รกlvaro de carvalho

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ELEVAÇÃO MINISTÉRIO DA SAÚDE

rua santo antônio

av. 9 de julho 75


bibliografia


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crĂŠditos das imagens


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