TRABALHO DE GRADUAÇÃO INTEGRADO I INSTITUTO DE ARQUITETURA E URBANISMO UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
O espaço público na Vila Marçola IDENTIDADE E APROPRIAÇÃO
COMISSÃO DE ACOMPANHAMENTO PERMANENTE Prof. Dr.ª Akemi Ino Prof. Dr.ª Aline Coelho Sanches Corato Prof. Dr. David Moreno Sperling Prof. Dr. Joubert José Lancha COORDENADORA DO GRUPO TEMÁTICO Prof. Dr.ª Luciana Bongiovanni M. Shenk
JÚLIA LOT SILVA SÃO CARLOS, 2019
índice 06 08 14 18 24 42 52 58 64 68 76 82
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INTRODUÇÃO QUESTÃO CENTRAL O direito à cidade Subversão como necessidade O cotidiano e a apropriação enquanto constituição de identidade LEITURAS URBANAS Belo Horizonte: capital planejada A região centro-sul e suas contradições O Aglomerado da Serra, história e formação O cenário dos espaços públicos no território Espaços de apropriação Definição das áreas com potencial de intervenção DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas em sistema Propostas de intervenção referências bibliográficas
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introdução
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“(...) Na produção social da própria existência, os homens entram em relações determinadas, necessárias, independentes de sua vontade; essas relações de produção correspondem a um grau determinado de desenvolvimento de suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual se eleva uma superestrutura jurídica e política e à qual correspondem formas sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material condiciona o processo de vida social, política e intelectual. Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes, ou, o que não é mais que sua expressão jurídica, com as relações de propriedade no seio das quais elas se haviam desenvolvido até então. De formas evolutivas das forças produtivas que eram, essas relações convertem-se em entraves. Abre-se, então, uma época de revolução social.” (MARX, 2008, p.49)
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QUESTÃO CENTRAL O direito à cidade De acordo com Lefebvre, o processo de industrialização, ao longo do século XIX, teve muito a influenciar na forma de vida urbana, sendo ele responsável por mudanças e reestruturações nas relações econômicas, materiais e no desenvolvimento da acumulação primitiva do capital. As mudanças na dinâmica do trabalho e nas condições de vida do ser humano, cada vez mais buscando o que viria a ser o sujeito moderno baseado em uma estrutura visando sempre o racional, acabaram por ditar diversos aspectos da vida em sociedade, mudando a visão sobre a cidade como antes se enxergava (como as cidades da antiguidade clássica). A progressiva ascensão da classe burguesa e seus privilégios precisava se constituir enquanto supremacia e isso acarretou diversas medidas, deixando a questão da nova sociedade industrial estritamente vinculada com o desenvolvimento do urbanismo. Sendo assim, a antiga
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ideia de cidade não mais sustava a forma de vida capitalista que vinha se desenvolvendo. A cidade aparece como centralizadora das riquezas produzidas pela agricultura e pelo artesanato. A partir dessa concentração de riqueza, a relação entre o valor de uso (a própria obra, a significação do objeto) e o valor de troca mudam, sendo este último o grande enfoque, enxergando o material como produto e sempre caminhando na direção comercial. Os antigos centros urbanos como principal espaço das relações sociais - como práticas de troca, festas, prazeres - foram inchando devido ao desenvolvimento do capital e dando lugar a práticas que cada vez mais visavam a valorização da moeda, como o estabelecimento de bancos e grandes comércios. As próprias relações sociais, apareciam cada vez mais burocratizadas, em formas de contratos, e as divisões das atividades cada
vez mais sistematizadas. Nessa nova condição sistêmica, a especialização entre municípios, como comerciais ou políticos, não mais se sustentava. A cidade passa a ter uma certa autonomia em suas relações, e nessa autonomia Lefebvre distingue três termos: “a sociedade, o Estado, a cidade.” “Nesse sistema urbano, cada cidade tende a se constituir em um sistema fechado, acabado. A cidade conserva um caráter orgânico de comunidade, que lhe vem da aldeia, e que se traduz na organização corporativa.” (LEFEBVRE, 2001, p.13)
Porém, essa ideia de comunidade não homogeneíza a questão social. Pelo contrário, a ideia de uma sociedade, Estado e cidades totalizantes na lógica do capital acabam por intensificar gradativamente as diferenças de classes. As relações sociais, a ação do Estado e a conformação urbana são agentes e refletores das diferenças econômicas presentes na vida em sociedade, e esses conflitos e contradições reforçam um sentimento presente na vida urbana: o de pertencimento. Pertencimento esse que leva ao trabalhador à luta de classes e que, por ameaçar as camadas mais ricas, estas acabam procurando cada vez mais justificar seus privilégios.
A industrialização e o crescente desenvolvimento do capitalismo são refletidos nas condições de vida e trabalho nas cidades e, consequentemente, na forma urbana. Os grandes centros urbanos se desenvolvem e enriquecem, e resultam cada vez mais na valorização da terra. Esse conflito coloca em prevalência o valor de troca como, por exemplo, o fenômeno da especulação imobiliária em detrimento do valor de uso, como a função social da terra, cerceando cada vez mais a dinâmica da vida do trabalhador à exploração, castigando, assim, a sua capacidade de criação e resumindo o seu trabalho ao simples “fazer”. “A cidade e a realidade urbana dependem do valor de uso. O valor de troca e a generalização da mercadoria pela industrialização tendem a destruir, ao subordiná-las a si, a cidade e a realidade urbana, refúgios do valor de uso, embriões de uma virtual predominância e de uma revalorização do uso.”(LEFEBVRE, 2001, p.14)
Esses processos, vinculados a uma política higienista, acabam por espraiar os limites urbanos, onde aspectos de infraestrutura se concentram no centro e a classe trabalhadora se encontra cada vez mais na periferia, assim como a colocação das indústrias. Método
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que tende a trazer uma forma organizacionista de produção e sistematização urbana. O contraste entre as classes toma uma conformação geográfica cada vez mais clara, como aponta Lefebvre, “a Cidade, tal como a fábrica, permite a concentração dos meios de produção num pequeno espaço: ferramentas, matérias-primas, mão-de-obra” (LEFEBVRE, 2001). A relação e complexidade entre industrialização e urbanismo se agrava cada vez mais. Essa transformação da conformação urbana e suas condições são cada vez mais aprofundadas e fazem parte de um processo induzido chamado por Lefebvre de “implosão-explosão”. Esta condição faz com que a cidade em toda a dimensão de seu tecido urbano passe por diversos processos, desde seu completo inchaço a partir da contradição urbano/ rural e a busca pela vida urbana; a mudança do caráter dos centros urbanos que se esvaziam em unidades habitacionais e passam a abrigar uma série de empreendimentos bancários, comerciais e industriais e o espraiamento horizontal de sua população em busca de terras ainda não valorizadas e minimamente acessíveis sem que a infraestrutura básica acompanhe o crescimento. “Se analisarmos o fenômeno a partir das cidades, observamos
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a ampliação não apenas das periferias fortemente povoadas, como também das redes (bancárias, comerciais, industriais) e da habitação (residências secundárias, espaços e locais de lazer etc)”. (LEFEBVRE, 2001, p.18)
Nesse quadro de crise da cidades, tanto em teoria quanto em prática, é importante ressaltar que esses processos e ações não acontecem espontaneamente. Como já dito, desde a industrialização e a consequente ascensão da classe burguesa, esses processos são acompanhados de interesses para se manter ou conquistar privilégios, onde a opressão dá lugar à exploração. “Num tal processo intervêm ativamente, voluntariamente, classes ou frações de classes dirigentes, que possuem o capital (os meios de produção) e que geram não apenas o emprego econômico do capital e os investimentos produtivos, como também a sociedade inteira , com o emprego de uma parte das riquezas produzidas na ‘cultura’, na arte, no conhecimento, na ideologia. Ao lado, ou antes, diante dos grupos sociais dominantes (classes e frações de classes), existe a classe operária: o proletariado, ele mesmo dividido em camadas, em grupos parciais, em tendências diversas, segundo os ramos da indústria, as tradições locais e nacionais.”
(LEFEBVRE, 2001, p.21)
Uma das ferramentas de poder do Estado para afirmar e instituir essa ideologia são os planos e projetos urbanos para as cidades, processo que ganhou força no pós-guerra com as cidades europeias destruídas e que, posteriormente, viria a influenciar as cidades planejadas brasileiras, segundo uma linha de urbanismos modernos. Ideologia a cargo, segundo Lefebvre, de uma “burguesia ‘progressista’ que toma a seu cargo o crescimento econômico (...), que caminha na direção da democracia e que substitui a opressão pela exploração”. Esses planejamentos que contém a promessa de uma vida urbana em sua plenitude, acabam por, através de uma burguesia ameaçada, extraviar o proletariado da própria cidade, negando-o infraestrutura, mobilidades, habitat e centralidade, criando na periferia uma “suburbanização”. “Todas as condições se reúnem assim para que exista uma dominação perfeita, para uma exploração apurada das pessoas, ao mesmo tempo como produtores, como consumidores de produtos, como consumidores de espaços” (LEFEBVRE, 2001, p.33)
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QUESTÃO CENTRAL Subversão como necessidade De encontro às pressões vindas dessa forma racionalizante de se constituir a vida em sociedade, destaca-se duas formas consequentes: a planificação ao tecido urbano ou a periferização, em pavilhões de habitação que tendem a virar o que Lefebvre chama de “gueto”, uma transgressão ao sistema. Ao expor que “os habitantes reconstituem centro, utilizam certos locais a fim de restituir, ainda que irrisoriamente, os encontros”, o autor ressalta pontos que geram desconfiança ao Estado, ao ponto que esta situação ressalta os valores urbanos de uso, e não o de troca. “Portanto, convenhamos: a ideia do direito à cidade não surge fundamentalmente de diferentes caprichos e modismos intelectuais (embora eles existam em grande número, como sabemos). Surge basicamente das ruas, dos bairros, como um grito de socorro e amparo de pessoas oprimidas em tempos de desespero.”
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(HARVEY, 2014, p. 15)
Como dito por Harvey em seu livro “Cidades Rebeldes”, a vontade de subversão ao sistema se dá através da vontade e necessidade da população. São demandas da vida coletiva que desejam transgredir ao modo de vida imposto e controlado. Ações essas cada vez mais assíduas com modelos de urbanismo neoliberais: criação de espaços através de parcerias público privadas; a imposição do empreendedorismo na escala da vida urbana; políticas que cada vez mais esvaziam as ruas e inibem o encontro e as relações entre diferentes. Ao traduzir essas necessidades da vida, expressas pela população, aos espaços, Lefebvre traz o conceito de “espaços isotópicos e espaços heterotópicos”. O primeiro diz respeito à espaços que estão inseridos na lógica do capital, ou seja, espaços que traduzem principalmente o valor de troca sobre o de uso e, muitas
vezes, espaços de dominação de modo a garantir a reprodução do sistema. Já os espaços chamados heterotópicos são, justamente, espaços de conflito perante ao sistema capitalista, apropriados por agentes, principalmente, das camadas populares mais oprimidas por esse sistema, que transgridem a valorização da troca e promovem o valor de uso. “(...) These heterotopic spaces do not only arise after a rupture with the capitalist system, after which one could plan to construct such spaces and create new utopian spaces. Such spaces already exist and criss-cross the city.” (JUNIOR, 2014, p. 154)
suficiência de “reprodução da vida” (JUNIOR, 2014, p. 154) e desmistificar os espaços de poder e controle. “Através dessas necessidades específicas vive e sobrevive um desejo fundamental, do qual o jogo, a sexualidade, os atos corporais tais como o esporte, a atividade criadora, a arte e o conhecimento são manifestações particulares e momentos, que superam mais ou menos a divisão parcelar dos trabalhos.” (LEFEBVRE, 2001, p.105)
As atividades criadoras das população são pautadas, buscadas e - nesses espaços - atingidas por elas mesmas. Contudo, vale a pena lembrar, como aponta Harvey, que a busca pelo direito à cidade não deve ser um fim em si mesma. As criações de lugares heterotópicos por si só não subvertem num todo a lógica do sistema capitalista, de forma que não garantem que a cidade como um todo exerça o seu papel social. É muito mais do que isto. Porém, é uma forma a ser incentivada para que os detentores dos meios técnicos, como os arquitetos, podem e devem buscar para amenizar essa in-
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QUESTÃO CENTRAL O cotidiano e a apropriação
enquanto constituição de identidade
Diante do contexto apresentado sobre o processo de industrialização e as suas consequências sobre a cidade, o ponto a ser analisado a partir de agora é o das mudanças e transformações que tiveram os espaços públicos urbanos, tomando como agentes transformadores dos espaços a sociedade, os agentes políticos, o sistema capitalista e a própria cidade. Tomando como base a perspectiva de Sobarzo, temos em vista percepção do espaço público como possibilitador de encontros e das diferenças. Contudo, o ideal moderno “civilizatório” de ruas ocupadas, diferentes grupos sociais em interação, ruas em furor pela ocupação das cidades foi superado. De fato, os espaços públicos são marcados pela presença da diversidade, mas esses encontros e trocas não acontecem de forma tão intensa. Somente essa diferença é que passa a fazer da essência do que se tornou estes espaços
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nas cidades contemporâneas, principalmente nas grandes metrópoles, pois “o espaço está essencialmente vinculado com a reprodução das relações sociais de produção” (LEFEBVRE, 1976, p.34 apud SOBARZO, 2006, p. 95) “O espaço público é analisado como um produto e um possibilitador das relações sociais. (...) O espaço público não pode, nem deve ser, idealizado como um local de convívio próximo e profundo da diversidade. A sua concepção moderna colocava-o como um possibilitador de encontros impessoais e civilizados que obedeciam e respeitavam a lógica do próprio sistema, assumidamente desigual, pois lembremos que, entre as transformações da Modernidade, está o desenvolvimento do sistema capitalista, que se fundamenta na desigualdade.” (SOBARZO, 2006, p. 95)
Tratando, então, os espa-
ços públicos a partir da ótica de reprodução das relações sociais de produção, cabe analisar o fenômeno das novas formas de espaços “públicos” ou “semipúblicos” como shoppings, centros empresariais, de turismo, condomínios fechados, que são, muitas vezes, resultantes do urbanismo neoliberal e vinculados a prática do consumo. Estes acabam por, em sua aparente neutralidade, propor uma subjetivação das diferenças de classes e dos conflitos intrínsecos à diversidade presente no sistema capitalista. O ideal de um conjunto, ou melhor, um sistema de espaços públicos como direito de acesso ao cidadão ao lazer, fica conturbado pela grande presença desses novos modelos de “espaços públicos”, que acabam por mascarar a deficiência de lugares de encontro, atividades criativas e apropriações, promovendo o lazer voltado à lógica do capital, a lógica do consumo. Não é esta a lógica ou modelo de espaço público que procura-se buscar. Mas, justamente, àquele que através dos anseios e necessidade da população, principalmente em sua camada onde esses espaços são cada vez mais renegados, acaba por subverter essa lógica e atingir, mesmo que pontualmente, um modelo de apropriação e identidade intrínseco à comunidade que o usa. e produz. Voltamos, mais uma vez, aos conceitos de Lefebvre de
espaços isotópicos e utópicos, em que Sobarzo irá tratar como o primeiro sendo espaços de dominação política e acumulação do capital e o segundo como espaços de realização da vida humana. Os conflitos presentes nos espaços públicos nas cidades brasileiras, têm início histórico a partir do “processo de constituição da propriedade da terra - privada e pública” (SOBARZO, 2006, p.96). As políticas que se desenvolveram a partir de então, tiveram um caráter de “clientelismo”, de modo a favorecer interesses de poucos (seja da propriedade privada de altas camadas sociais ou do próprio Estado), transformando a propriedade de terra cada vez mais em símbolo de poder. O cenário que se encontra hoje, é de uma falta de distinção clara entre público e privado, onde os privilégios e interesses permeiam nestes dois planos. “Essa falta de diferenciação clara do público e do privado significa, do ponto de vista da dominação política, a invasão da esfera do público pelo privado, no intuito de reproduzir, ampliar e/ou consolidar as relações de poder.” (SOBARZO, 2006, p.96)
Através do urbanismo neoliberal e de ações Estatais regidas por interesses de capital, estas ações são cada
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vez mais recorrentes e justificadas. Tomemos como exemplo a Operação Urbana do Porto Maravilha no Rio de Janeiro. Obra de parceria público-privada, custeada, boa parte, através da venda de Cepacs (Certificado de Potencial Adicional Construtivo), fruto de intensa e incentivada especulação imobiliária. Processo que começou muito anteriormente, ao negar e expulsar as comunidades pertencentes ao local, com forte teor histórico devido ao cais do Valongo e o Morro da Providência. O processo é de longe muito mais complexo e conflituoso, mas faz-se necessário como destaque de um dos maiores exemplos de anormalidade entre o caráter de espaço público e da diversidade e o que se mostra hoje com os novos edifícios e projetos que transformaram totalmente o caráter identitário uma vez presente naquele território. “A ação do Estado – por intermédio do poder local – ao intervir no processo de produção da cidade reforça a hierarquia de lugares, criando novas centralidades e expulsando para a periferia os antigos habitantes, criando um espaço de dominação”. (CARLOS, 2001, p. 15 apud SOBARZO, 2006, p.97)
É através desses espaços de dominação, que a busca pela aparente homogeneidade acon-
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tece. Os conflitos são escondidos debaixo do tapete, ou melhor, são levados para fora da “cidade formal”, longe do fervor da especulação imobiliária, mas também do alcance da maior concentração de equipamentos públicos, cultura, espaços a serem apropriados. A leitura que se faz dos espaços públicos neste cenário, como agentes sociais, é a de possibilitar ou negar esse caráter dominador decorrente dos interesses privados ou do próprio Estado. Segundo Sobarzo, “o espaço produzido nas suas desigualdades e contradições possui a capacidade de facilitar ou dificultar o processo de dominação política” (2006, p. 97). Essa tarefa de dificultar este processo de dominação, vem propriamente das necessidades de caráter subversivo da população. Para além disso, é nos “guetos”, retomando a denominação de Lefebvre, onde essa essência de subversão encontra-se mais amarrada ao cotidiano e realidade da população. Este caráter subversivo que aqui se fala, só é possível graças ao entendimento de que a ideia de dominação e de apropriação coexistem. Uma não é necessariamente a negação da outra, mas sim uma relação dialética, encontrada principalmente nos espaços heterotópicos (sendo os isotópicos e os utópicos ausentes deste conflito mais intensificado).
A realização da vida humana, dita por Lefebvre, é justamente a capacidade social de interferir nesses espaços, nem sempre como um ato político e consciente, mas algo que é intrínseco às camadas populares. A coexistência dessas duas esferas, caráter de dominação e apropriação, encontram-se não somente nos espaços urbanos como também nas dinâmicas e relações cotidianas da vida do ser humano social. Cotidiano este que não se restringe à ideia de rotina, como trabalho, deslocamentos, deveres, mas que permeia o âmbito das possibilidades, do inesperado, da capacidade de fuga do regrado e escape, seja pessoal ou coletivo. “O cotidiano resume e funde a tendência global da difusão do consumo de massa e a irrupção de um modo de vida associado a valores do consumo e das necessidades criadas e, por outro lado, também inclui a possibilidade da superação e da criação do novo, das insurgências ou da subversão como apontamos anteriormente.” (CARLOS, 1996, p. 145 apud SOBARZO, 2006, p. 104)
É no cotidiano e em suas relações sociais que as camadas historicamente oprimidas pelo processo de industrialização e desenvolvimento do capital devem se reconhecer
através da possibilidades dos encontros, das transgressões, da produção da obra e não do produto, da valorização do uso e do reconhecimento enquanto coletivo, enquanto compartilhantes de uma mesma identidade. Resumindo, processo de subversão individual ou, mais importante, coletivo, que se vê mesmo que em determinados momentos ou espaços, produzindo sua própria “antidisciplina” (SOBARZO, 2006, p. 106), indo de encontro aos meios determinantes do Estado, das políticas e interesses privados, das leis coercivas do capital. “A irrupção de uma rotina organizada da vida cotidiana transforma radicalmente a sociabilidade, ao transformar os usos e as formas de relacionamento dos e nos lugares, significando a redefinição da prática socioespacial. Nesse processo, o Estado também cumpre um papel importante porque pretende organizar a vida cotidiana, normatizando os usos.” (CARLOS, 2004, p. 21 apud SOBARZO, 2006, p. 105)
É permeando este sentido de reconhecimento coletivo e caráter de subversão que se busca abranger, tomando como estudo os espaços públicos, disponíveis e possíveis, na comunidade Vila Marçola, pertencente ao Aglomerado da Serra (Belo Horizonte/MG). Tendo
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em mente os processos urbanísticos de ideais modernos e suas consequências; as complexidades do crescimento exacerbado dos limites urbanos da capital mineira; o contraste entre as classes formado territorialmente e relacioná-los à dinâmica urbana; e as complexidades presentes no que engloba a criação, leis e apropriação dos espaços públicos encontrados na Serra, focando na Vila Marçola, e seus possíveis desdobramentos a serem explorados enquanto diretrizes e propostas projetuais.
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leituras urbanas Belo Horizonte: capital planejada Belo Horizonte é caracterizada como uma das capitais brasileiras planejadas desde seu princípio, e que, assim como muitas outras, acabou por sofrer das consequências causadas por um urbanismo moderno restrito vinculado ao crescimento desordenado do perímetro urbano devido ao processo de industrialização da região. A decisão da mudança da capital mineira de Ouro Preto para um novo local se deu principalmente por questões políticas e econômicas, como o reerguimento da economia do estado após o esgotamento do ciclo da mineração e sua incapacidade de crescer territorialmente ou integrar zonas de produção agrícola devido a seu relevo acidentado. v “O projeto de Aarão Reis (...) não constitui mais do que o centro da aglomeração e uma parte mínima de sua superfície total (aproximadamente 5%); essa aglomeração literalmente explodiu na vertical (arranha-céus brotando como cogumelos) e mais ainda na horizontal, sem que nada tenha sido tentado
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para coordenar um crescimento fantástico que atingiu a taxa de 98% em 10 anos (1950-1960).” (BRUAND, 2012, p. 349)
_Plano de Aarão Reis
_Plano efetivado
_Declividade da área do plano
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_Imagem da Praça Sete de Setembro, BH Nostalgia, 1940
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_ Imagem da Praça Sete de Setembro, Vivago, 2019
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leituras urbanas Belo Horizonte: capital planejada Cartografia expansão urbana:
Como já dito, a ocupação territorial da nova capital mineira se deu principalmente a partir no centro planejado e seguiu para a periferia. O maior espraiamento horizontal se deu por volta da década de 40, vinculado a ações estatais como a construção do Conjunto Arquitetônico da Pampulha e interesses econômicos, que levaram à criação de centros industriais fora do perímetro urbano de Belo Horizonte, e conforme os anos constituíram as cidades até conformarem, hoje, sua região metropolitana (como Betim, Contagem, Sabará, etc). De acordo com dados encontrados no Observatório das Metrópoles, no projeto coordenado pelos professores Luciana Teixeira de Andrade, Jupira Gomes de Mendonça e Alexandre Magno Alves Diniz, esse processo de expansão e os interesses ficam claros, tanto nos investimentos já citados da década de 40, quanto no segundo período de crescimento irrefreável da década de 70. “Na segunda metade da década de 1970, a chamada nova industrialização mineira, que promoveu diversificação industrial e manteve altas taxas de crescimento econô-
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leituras urbanas Belo Horizonte: capital planejada Cartografia densidade populacional:
mico, ainda alguns anos após o declínio do milagre brasileiro, foi também resultado de um forte aparato técnico-institucional estatal e de suas ações: legislação de incentivos fiscais, investimento em infraestrutura e cessão de terrenos a indústrias e investimentos diretos em atividades industriais e terciárias.” (ANDRADE; MENDONÇA; DINIZ, 2015, p. 16)
Como resultante desse processo de industrialização, encontramos uma cidade espraiada, com perímetro urbano enorme, diversas cidades crescendo em seu perímetro, engordando cada vez mais a região metropolitana, mas ainda mantendo, em diferentes escalas, uma relação com o centro da capital. “A organização do território esteve também marcada pela segmentação social: concentração de operários a oeste, segmentos de alta renda (empresários, dirigentes, profissionais de nível superior) concentrados na área central da capital e em sua extensão sul e formação de áreas precárias na porção norte do território metropolitano, onde os trabalhadores de menor qualificação e renda se aglomeraram nos chamados loteamentos populares.” (ANDRADE; MENDONÇA; DINIZ, 2015, p. 16)
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leituras urbanas Belo Horizonte: capital planejada Cartografia índice de desenvolvimento humano médio:
Consequentemente, esta organização do território está vinculada a uma divisão socioespacial concebida historicamente diante desses processos e que, com o passar dos anos, foi cada vez mais se afirmando através da especulação imobiliária e de ações urbanistas neoliberais, como as operações urbanas consorciadas. “De um lado, no nível macro, observa-se a estrutura socioespacial segmentada que a (Belo Horizonte) caracterizou desde a sua gênese. De outro lado, vislumbram-se alterações características do atual período de acumulação urbana, em que o capital imobiliário, associado ao capital financeiro, fragmenta o território com novas formas de produção do espaço, mais uma vez ancorado na ação estatal.”(ANDRADE; MENDONÇA; DINIZ, 2015, p. 17)
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leituras urbanas Belo Horizonte: capital planejada Cartografia índice de vulnerabilidade junevil:
Fica claro ao olhar os mapas que as zonas de maior vulnerabilidade social se encontram, justamente, nas regiões periféricas, próximas ao perímetro urbano, onde o valor da terra é mais baixo juntamente com a baixa oferta de equipamentos públicos e infraestrutura urbana, fatores que caracterizam uma melhor qualidade de vida da população na vida urbana. Fatores estes concentrados, na região central, principalmente, e na região da Pampulha. “Nesse quadro, a metrópole brasileira, de caráter liberal-periférica, mantém um padrão de estruturação do espaço marcado pela desigualdade socioterritorial.” (ANDRADE; MENDONÇA; DINIZ, 2015, p. 18)
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leituras urbanas Belo Horizonte: capital planejada Cartografia distribuição de praças e parques:
Ao analisarmos a distribuição de praças e parques no território de Belo Horizonte, visando a extração de dados sobre os espaços públicos da cidade, encontramos a mesma divisão socioterritorial antes citada. Em questões quantitativas, a maioria destes espaços se encontram novamente na região central. “Assim, pode-se dizer que a distribuição atual dos equipamentos públicos, infraestruturas, áreas de lazer, entre outros, em uma cidade refletem como se deu a composição dos diversos interesses no decorrer dos anos.” (SILVA, 2017, p. 1595)
E, quando a questão é qualitativa, essa discrepância se faz ainda mais presente. Os espaços públicos periféricos se diferem dos centrais tanto em manutenção, verba, diversidade, quanto em planejamento e programa.
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leituras urbanas Belo Horizonte: capital planejada Cartografia regiões administrativas:
Levando em consideração os fatores já apresentados, a continuidade do processo de leitura se debruça sobre a região centro-sul. Mesmo sendo região central, de maior infraestrutura urbana e econômica, justifica-se a escolha perante um contraste territorial a ser retratado em diferente escala.
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leituras urbanas A região centro-sul e suas contradções Cartografia malha das quadras:
Na divisão da cidade em regiões administrativas, a região centro-sul destaca-se em diversos fatores - estruturais, econômicos, históricos - por conter o planejamento urbano de Aarão Reis. Plano este que continha estratégias de forma (traçado, relevo, hidrografia) integradas a um zoneamento que visava dar conta de um ideal de vida moderno, ações que são identificadas ainda hoje ao caminhar por este centro, mesmo com suas mudanças no momento de execução. “Todas as praças previstas por Aarão Reis destinavam-se a abrigar os edifícios públicos essenciais, propositalmente dispersos, a fim de emaranhar ao máximo a trama urbana e desempenhar o papel de perspectivas axiais a valorizar artérias nobres. Mas na realização optou-se por um dispositivo diferente: os edifícios administrativos foram, no conjunto, agrupados em torno do palácio presidencial, formando um verdadeiro paço, manifestação inicial de um hábito duradouro na arquitetura contemporânea brasileira.” (BRUAND, 2012, p. 348)
É a região de maior concentração de renda e circulação de
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leituras urbanas A região centro-sul e suas contradções Cartografia zoneamento urbano:
capital. Contudo, este fato não diz respeito à totalidade de seu território. Associadamente às questões citadas, a implantação do plano trazia consigo a segregação socioespacial denotada nos mapas anteriores, propriamente por conter, ou melhor, não conter em seu planejamento urbano a inserção dos trabalhadores e antigos moradores da região. “Do ponto de vista da elaboração e da execução do plano urbanístico, no entanto, não havia espaço para o trabalhador: tiveram acesso aos lotes urbanos os antigos proprietários do arraial de Belo Horizonte, totalmente desapropriado, os funcionários públicos e os ex-proprietários em Ouro Preto. Aos operários que vieram construir a nova capital era permitido construir habitações provisórias em lugares que ainda não estavam urbanizados.” (ANDRADE; MENDONÇA; DINIZ, 2015, p. 18)
O resultado desse “não planejamento” resultou na ocupação das áreas lindeiras ao plano, e a caracterização desses bairros enquanto habitacionais e de estratégias de adensamento. Dentro desta área o valor da terra,
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leituras urbanas A região centro-sul e suas contradções Cartografia comparação do valor da terra:
de acordo com as características locais, foi fator claro nos processos de ocupação, como a posição do Parque das Mangabeiras, objeto que em conjunto com a proximidade central sucedeu em uma área gentrificada entre estes dois pontos. “O parque se destaca como um espaço privilegiado de estar e fazer cidade, espaço para descobrir implicações emocionais significativas entre corpo, espaço público e urbanidade a partir dos imaginários que o vinculam com a urbanização, relaxamento, natureza e prazer” (FIGUEROA, 2006, p. 149 apud SILVA, 2017, p. 1589)
Em contrapartida, o contraste que chama a atenção para esta região administrativa, foram as condições das áreas de maior dificuldade de acesso, com relevo mais acidentado, onde (na época) a especulação imobiliária desconsiderava, e que tornaram-se ocupação das camadas populares não alocadas dentro do plano. Como resultado, conforme o tempo, foi criando forma a maior favela de Belo Horizonte, o Aglomerado da Serra.
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leituras urbanas A região centro-sul e suas contradções Cartografia e isométricas de ruas tipo nos diferentes bairros:
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leituras urbanas O Aglomerado da Serra, história e formação
O Aglomerado da Serra teve início junto com a própria história de Belo Horizonte. Planejada para cerca de 200 mil habitantes, “antes mesmo da sua inauguração, a cidade já tinha duas áreas de invasão com aproximadamente três mil pessoas” (CARVALHO; SKACKAUSKAS; CONTI, 2015, p. 2) “O Aglomerado da Serra é composto por sete vilas situadas na regional centro-sul da capital, no limite sudeste do município, próximo à encosta da Serra do Curral, junto à divisa do município de Nova Lima. São elas: As vilas Fazendinha, Marçola, Nossa Senhora da Aparecida, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Santana do Cafezal e Novo São Lucas. Com uma população aproximada de 46.000 habitantes, o Aglomerado possui um número de moradores superior a maioria das cidades do estado.” (OLIVEIRA MELO, 2009, apud ALMEIDA; PEREIRA, 2015, p. 22)
Historicamente, a postura de Estado batia de frente com a formação “desordenada” dos aglomerados populacionais, que não
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leituras urbanas O Aglomerado da Serra, história e formação
Cartografia de delimitação das vilas:
se encaixavam no plano de Belo Horizonte, ao mesmo tempo em que não oferecia soluções para a questão da moradia das camadas populares. Pelo contrário, “o poder público, mesmo com uma pressão cada vez maior por moradia, continuava agindo removendo as invasões e restringindo a construção de habitações para pobres” (CARVALHO; SKACKAUSKAS; CONTI, 2015, p. 2). É a partir de luta de movimentos sociais populares em conjunto com o apoio da igreja católica que o processo de luta por moradia foi se politizando cada vez mais, tomando mais estrutura, e foram atingindo diversas conquistas muito importantes para o desenvolvimento atual da comunidade do Aglomerado. “É no final da década de 1970 que a população pobre começa a se articular criando associações e alcançando alguns ganhos, como a condição de que uma família somente seria removida à medida que houvesse oferta de outra moradia em condições de ser habitada, ou houvesse indenização.”(CARVALHO; SKACKAUSKAS; CONTI, 2015, p. 2)
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leituras urbanas O cenário dos espaços públicos no território
A luta por moradia acabou, também, por influenciar a condição dos espaços públicos no Aglomerado da Serra. É a partir das conquistas trazidas por ela que tiveram início os projetos que visavam a regularização das favelas de Belo Horizonte. O de mais destaque foi o Programa Vila Viva, originado em 2005 no Aglomerado da Serra. Para a execução do projeto, ocorreram remoções ao redor dos cursos d’água presentes na área, no intuito de criar áreas verdes de preservação e promover o lazer para a comunidade, e na área do eixo viário criado, que perpassa o centro de toda a comunidade, ligando o bairro da Serra até a região leste da cidade. “O Vila Viva engloba obras de saneamento, remoção de famílias, construção de unidades habitacionais, erradicação de áreas de risco, reestruturação do sistema viário, urbanização de becos, implantação de parques e equipamentos para a prática de esportes e lazer.” (BELO HORIZONTE, 2013, p. 12 apud BATISTA; BATISTA, 2006, p. 7)
Contudo, algumas ações do programa geraram consequências
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inconvenientes para a comunidade. Os parques vinculados às áreas de proteção ambiental não foram concretizados, de forma a não garantir os espaços de lazer inicialmente pensados e dificultando a continuidade de preservação da área, pela falta de incentivo, de conectividade e aproximação da população ao local. Outro espaço originado do Programa Vila Viva foi a Praça do Cardoso, localizada na avenida do Cardoso, na comunidade Vila Marçola. As impressões trazidas sobre a praça surgiram através de duas visitas técnicas (13 de maio e 10 de junho de 2019), guiadas por Rogério Rêgo, comunicador na Rádio Autêntica Favela FM e ativista membro de associação, que promove eventos e projetos culturais na comunidade. “Na sua área, que você está fazendo dos espaços públicos, foi como eu falei da outra vez. O problema dos espaços públicos aqui, primeiro que os poucos que fizeram ficaram abandonados, não tem manutenção. Você tá aqui na praça que é a principal, todo mundo conhece hoje em Belo Horizonte, Minas Gerais, todo mundo já ouviu falar da Praça do Cardoso no Aglomerado
Terceira água
Segunda água
Primeira água _ Rios e cursos d'água Pocim
_ Principais áreas de remoção e conjuntos habitacionais criados através de programas de regularização
_ Vias abertas pelo Programa Vila Viva e principais vias de fluxo interno (automóveis)
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leituras urbanas O cenário dos espaços públicos no território
da Serra. Mas aí chega, faz uma quadrinha desse tamanhozinho. Na época, a gente conversou e tudo, lutando para que tivesse aqui um ginásio poliesportivo, porque existem muitos projetos aqui, de pessoas de dentro do Aglomerado que não conseguem recurso público, e não conseguem utilizar esse espaço para poder desenvolver. Entendeu?” (Relato Rogério, 2019)
Para além do Programa Vila Viva, outras ações públicas tiveram papel decisivo nos rumos dos espaços públicos do Aglomerado. Ações estas que acabaram por institucionalizar espaços públicos que já eram concretizados na comunidade, dificultando a apropriação e o uso espontâneo por parte dos moradores. Um dos exemplos a ser citado é a construção da Escola Estadual José Mendes Júnior, demanda dos moradores da Vila Nossa Senhora da Conceição. “A gente tinha um campo de futebol ali onde é a escola José Mendes Júnior. Um campo de futebol que era conhecido como Campo do Guaxupé. Era um campo que ficava lotado de final de semana para ver os times jogarem. Muito legal! Tinham os festivais, um espaço muito legal. Beleza. A comunidade pre-
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cisava de uma escola. Legal, importante. E aí, tinha o espaço que poderia, na época, colocar a escola - hoje eles parece que fizeram uma EMEI, antiga UMEI lá. O que eles fizeram, colocaram no campo, com a promessa que iam construir um campo mais abaixo. Nunca construíram o campo, então a população perdeu.” (Relato Rogério, 2019)
Processo parecido aconteceu na construção do Centro Cultural Vila Marçola. No local existia um campo de futebol, consolidado no cotidiano das pessoas, movimentado, espaço de diferentes projetos esportivos e culturais. De acordo com Rogério, trazia não só os jovens, como os adultos para a rua, tornando um espaço rico em troca de vivências e referências. O local, assim como no caso do Campo do Guaxupé, foi usado para a construção do Centro Cultural Vila Marçola e da UMEI ao lado, na promessa de construírem um outro campo em outro local. Este novo campo foi entregue, porém sem infraestrutura alguma e localizado na cota mais alta do morro Vila Marçola, dificultando o acesso.
_ Mapa dos espaços públicos/institucionais existentes
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leituras urbanas Espaços de apropriação A apropriação do espaço público é de necessidade da população. Seja por caráter político ou naturalmente espontâneo, as ações da comunidade, principalmente na escala de bairro, garantem a possibilidade de encontros e trocas entre os diferentes. Gestos muito importantes para trazer a sensação de pertencimento e identidade aos espaços, que elevam e dão sentido ao cunho público, de fato. Espaço vivido, de todos. “Quanto maior a concentração de praças, quanto mais apropriadas de maneiras diversas, quanto mais usos e significados, quanto mais intrincadas as histórias individuais e coletivas, maior o potencial de centralidade dessas áreas nos planos simbólico e lúdico. Assim, no caso das praças de bairro, quando apresentam tal plurissignificação e utilização consolidam-se como elemento que sintetiza e afirma a identidade local, assumem um caráter de centralidade” (BRASIL, 1993, p. 168 apud SILVA, 2017, p. 1588)
comunidade - mais especificamente no recorte já apresentado alguns focos culturais de caráter institucional. São alguns deles o Centro Cultural Vila Marçola, o Espaço Criança Esperança, Centro Cultural Vila Fátima, CRAS Vila Marçola. São oferecidas inúmeras oficinas e atividades para atender à demanda do local. Porém, os projetos ofertados são criados a partir de editais, ou seja, há certa burocracia em questão, que não permite a livre apropriação dos espaços, além da baixa adesão das crianças e jovens da comunidade à essas atividades. Já os projetos, eventos, atividades feitos pela e para a própria comunidade, encontram barreiras e dificuldades em serem executados. Um dos principais pontos é a regulamentação da permissão do uso das praças e ruas através de um alvará de liberação. Procedimento comum em muitos casos para grandes eventos, mas que, em algumas situações, tem servido como ferramenta de controle e segregação.
Contudo, essa livre apropriação dos espaços públicos urbanos não acontece de forma tão tranquila no Aglomerado da Serra. Como já dito, estão presentes na
“Aqui, por exemplo, pra gente conseguir autorização pra fazer qualquer evento aqui é uma dificuldade. Primeiro a legislação, que não sei se vocês sabem... O
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_ Praia da Estação na Praça da Estação, 2016
_ Duelo de MC's no Viaduto Santa Tereza, 2011
_ Escorrega na Praça do Papa, 2012
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leituras urbanas Espaços de apropriação mesmo valor que eu gastaria pra fazer um show aqui, eu gasto pra fazer lá na Savassi. Talvez é mais fácil eu conseguir lá na Savassi do que conseguir aqui. Porque aqui, sempre tem alegação na hora de fechar, com funk, problema de funk... E não tem nada a ver uma coisa com a outra, entendeu? O pessoal não quer que faça aqui, porque lá na Savassi, na hora que manda o policiamento pra lá, beleza. O pessoal vai lá, vai se comportar, tem câmeras e não sei o que. E aqui, a polícia não quer vir num evento ficar trabalhando aqui. Só que a gente não precisa também disso não, porque tem uma certa “organização”, digamos assim, aqui no Aglomerado e a gente consegue fazer os eventos e o evento fluir. Só que a gente precisa da autorização, porque quando a gente começa a fazer o evento chega uma viatura policial e pergunta, ‘E o alvará, tem a liberação, o documento?’ ‘Não tem.’ ‘Então, para.’ E o ‘para’ é assim, dispersa o pessoal se não começa os tiros de borracha e pronto.” (Relato Rogério, 2019)
Belo Horizonte é possuidora de um fervor cultural notório. São diversas as atividades promovidas em seus espaços urbanos, sejam elas institucionais ou não. Como, por exemplo,
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a Praia da Estação, que ocupa a praça da estação ferroviária com músicas, batuque e muita água; o Duelo de Mc’s, que hoje em dia reúne centenas de pessoas embaixo do Viaduto Santa Tereza; o Escorrega, que foi basicamente uma grande lona estendida durante uma tarde na Praça do Papa e tantos outros, como feiras, filmes, shows, apresentações, etc. Contudo, o olhar sobre as atividades e quem as promovem não é neutro, assim como a postura a ser tomada perante essas ocupações. “Observando o território da capital mineira e sua região metropolitana percebe-se que existe uma diversidade cultural, social e étnica que acabam sendo marginalizadas nos espaços urbanos e silenciadas por pressões econômicas, políticas e processos discriminatórios.” (AMARAL, 2015, p. 41)
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leituras urbanas Definição das áreas com potencial de intervenção
Mesmo contra todas as adversidades, a cena cultural no Aglomerado da Serra é forte. Grupos como Arte Favela, o Bloco Seu Vizinho, Matriarcas da Serra, Lá da Favelinha são exemplos disso. Porém, a maioria se encontra mais ao norte da comunidade. Levando isto em consideração, em conjunto com todas as problemáticas envolvendo os espaços públicos citados anteriormente e os conflitos presentes no cotidiano e território da comunidade, o foco de estudo se dará, principalmente, na Vila Marçola e no que diz respeito aos seus espaços, demandas e atividades. O recorte, então, fecha-se em 3 áreas principais: a Praça do Cardoso, o campinho no topo do morro e a Rua da Água juntamente com a região de proteção ambiental do Pocim.
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_ Localização das áreas de intervenção
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leituras urbanas Definição das áreas com potencial de intervenção PRAÇA DO CARDOSO:
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leituras urbanas Definição das áreas com potencial de intervenção
RUA DA ÁGUA E ÁREA DO POCIM:
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leituras urbanas Definição das áreas com potencial de intervenção
CAMPINHO:
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas em sistema Principais diretrizes:
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas em sistema Cortes e elementos urbanos:
Diante de todos os levantamentos realizados, o principal objetivo é tentar conectar as três áreas escolhidas, formando um sistema que se relacione e se complete em programa, acesso e, principalmente, se proponha a suprir a demanda por espaços públicos, identitários e de qualidade à comunidade. As ações revelam-se todas na expectativa de trazer vivacidade às ruas nos diferentes períodos do dia, nas diferentes áreas livres salpicadas pelo território da comunidade e por diferentes pessoas de diferentes idades. Baseando-se nos apontamentos de Jane Jacobs, procura-se incentivar a relação de vizinhança, já muito presente na Vila Marçola, e trazer os olhos e as trocas para o dia a dia, ocupar e fazer
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com que as ruas respirem. Um dos fatores de maior característica territorial é o relevo em que a comunidade se insere, e seu declive acentuado. A primeira ação a ser estimulada é a conexão visual entre as três áreas escolhidas, trazendo marcas de destaque na paisagem, trabalhando os três níveis de intervenção.
_ Terreno em perspectiva
_ Curvas de nível mestras (5 em 5m)
_ Cheios e vazios
_ Imagem satélite
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas em sistema CONEXÃO ENTRE AS TRÊS ÁREAS (ATIVIDADES, FLUXOS E PROGRAMA) + DISTRIBUIÇÃO DAS ATIVIDADES + GARANTIR AS PESSOAS NAS RUAS EM DIFERENTES PARTES DA VILA + ATIVIDADES PARA DIFERENTES FAIXAS ETÁRIAS + TRABALHAR A CONEXÃO A PARTIR DA COMUNICAÇÃO, DIVULGAÇÃO DOS EVENTOS E TROCAS (SOM NOS ESPAÇOS, RÁDIO FAVELA) + COMPLEMENTAR OS FLUXOS EXISTENTES (PEDESTRES E AUTOMÓVEIS) COM A IMPLANTAÇÃO DE UMA REDE DE TELEFÉRICOS
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_ Mapa cheios e vazios com curvas de nível mestras (5 em 5m)
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DIRETRIZES PROJETUAIS Referências de projeto
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas em Sistema
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas de intervenção Praça do Cardoso Leitura do entorno:
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas de intervenção Praça do Cardoso Proposta de programa:
centro de comércio e serviços (promovendo infraestrutura para os foodtrucks que já existem)
+ estação de teleférico
(conexão com outras, atendendo todo o aglomerado da serra)
+ mudança do ponto de ônibus para o outro lado da praça + pista de skate
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas de intervenção Rua da Água e área do Pocim Leitura do entorno:
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas de intervenção Rua da Água e área do Pocim Proposta de programa:
complexo cultural: sede de projetos culturais existentes + área livre para eventos + parque infantil + teatro de arena + conexão com o “pocim”
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas de intervenção Campinho
Leitura do entorno:
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DIRETRIZES PROJETUAIS Propostas de intervenção Campinho
Proposta de programa:
complexo esportivo: quadrapoliesportiva e apoio + área livre para feiras, mirante + acessos, estação de teleférico
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