Trabalho Final Viagem Didática Rio de Janeiro - IAU USP

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Ao se falar sobre os processos de transformações da zona portuária do Rio de Janeiro não estamos abordando apenas a paisagem modificada conforme os processos urbanos, mas sim recapitulando um trajeto de um país de ocupação colonial que segue pelas contradições do sistema capitalista econômica, social e politicamente. Contradições essas escancaradas considerando o patrimônio material e imateral da memória africana no Brasil e a abordagem da cidade como mercadoria da forma que foi tratada desde e reforma de Pereira Passos até a momento dos mega eventos.



“ (...) A colonialidade ainda manifesta-se em diversas dimensões da existência das sociedades. Isso também é verdadeiro para o imaginário e as ações sobre as cidades.” (LIMA, SENE E SOUZA, 2016)

Os diferentes processos de surgimento das cidades carregam até hoje em sua atualidade discursos de um passado e um “saber colonial”, que se manifestam em vários momentos na sociedade. “A venda da imagem de cidade segura muitas vezes vai junto com a venda da cidade justa e democrática. No diagnóstico produzido pelo Plano Estratégico do Rio de Janeiro, com a assessoria de consultores catalâes, a cidade é apresentada como ‘laboratório de experimentação e aperfeiçoamento democrático, baixa intolerância racial e exemplo de harmonia social’” (VEINER, 1999)

Imagem: Planta da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro com suas fortificações, de autoria do engenheiro militar Jean Massé, de 1713, mostrando à direita e ao alto a região do Valongo, então um local ermo.


Imagem: Seqüência da evolução histórica do Porto do Rio.


Encontramos na zona portuária um palco de experimentos do capital. A cidade é transformada de diversas maneiras a fim de atingir um público específico, e faz isso virando as costas a quem pertence a sua base, a sua força de trabalho, a sua história. “O princípio do século XX, com a modernização do Porto do Rio de Janeiro no âmbito da reforma Pereira Passos, e o princípio do século XXI, com o ‘sonho tornado realidade’ da ‘revitalização’ da Região Portuária do Rio de Janeiro, são exemplos da constituição colonial dos saberes sobre a cidade.” (LIMA, SENE E SOUZA, 2016)



A zona portuária compreende a região do Valongo, local onde, no século XIX, atracavam navios negreiros e os escravos eram comercializados, mesmo depois da proibição do tráfico negreiro transatlântico. Mais de meio milhão de escravos, um quarto população escrava no Brasil, desembarcou naquele cais.

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“Como patrimônio, no entanto, o Valongo não se limita ao cais, mas sim a todo um complexo escravagista, que abrange armazéns de guarda de cativos, salas de venda de escravos, comércio de mercadorias ligadas ao tráfico e todo o conglomerado de africanos, livres ou cativos, que se organizavam aqui”, ressalta o antropólogo Milton Guran, consultor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). A área toda foi aterrada na primeira década do século XX, no âmbito das reformas urbanísticas promovidas pelo então prefeito Pereira Passos, dando lugar à praça Jornal do Comércio, localizada na atual avenida Barão de Tefé. O projeto Porto Maravilha, inicialmente sem grande interesse por esse passado afrodescendente, previa grandes obras na rede de esgoto e de eletricidade do local onde se encontravam os vestígios soterrados do cais, bem como a sua transformação numa importante via pública.


Imagem: Mercado de escravos na da rua do Valongo, Debret, c. 1816-1828.


Imagem:Rua do Valongo, como consta na placa afixada na casa, no alto Ă esquerda, com seus armazĂŠns de escravos. Valongo, ou mercado de escravos no


Imagem: https://br.pinterest.com/pin/427349452129708542/


As maiores transformações nas regiões portuárias tiveram início na época moderna, influenciadas por ideologias que promoviam ações higienistas e gentrificadoras que vinham acontecendo na Europa. “As políticas de embelezamento e melhoramentos da região portuária, assim como do conjunto da cidade, foram pensadas tendo como referência os projetos da Paris de Haussmann. Pereira Passos, integrante da Comissão de Melhoramentos e, em seguida, prefeito da cidade do Rio de Janeiro, conheceu e estudou profundamente o modelo de Paris.” (DINIZ, 2012) “Um século depois, o contexto do projeto Porto Maravilha é o da preparação da cidade do Rio de Janeiro para a celebração de grandes eventos esportivos, principalmente a Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos, em 2016. Sob condições de globalização neoliberal, em que governos locais são levados a assumir iniciativas ‘inovadoras’ e ‘empreendedoras’ para atrair o fluxo de capitais e negócios, se afirma o discurso e a prática da ‘revitalização’.” (DINIZ, 2012)


Imagem: Jornal O Globo, de 05/06/2010 – RIO: 26LI


“Com o anúncio da realização de megaeventos na cidade do Rio de Janeiro, foi aberta a oportunidade do capital privado submeter, em zonas turísticas, o efeito globalizante neoliberal a partir de moldes urbanos artificializantes, através de, principalmente, parcerias público-privadas. O projeto Porto Maravilha baseia-se em marketing cultural e empreendedorismo turístico, apesar de mostrar-se incompatível com os interesses da comunidade local original. A exemplo deste descaso por parte do poder público mostram-se as grandes obras como o Museu do Amanhã no píer Mauá, Museu de Arte do Rio de Janeiro na Praça Mauá e o prédio AquaRIO; estes desconsideravam a tipologia arquitetônica existente, assim como o contexto social e econômico da região caracterizado por atividades portuárias, fabris e habitação proletária. A problemática da gentrificação sobrepõe-se ao patrimônio por um discurso de rentabilidade levando a ruína da materialidade social. Para que o projeto de "revitalização do centro" de 5 milhões de m² fosse realizado, foi investido mais de 8 bilhões de reais, trazendo infraestrutura e lazer para o local, no entanto excluindo cerca de mil famílias que tiveram suas comunidades removidas.” Matéria no jornal O Globo, domingo, 06/06/2010: 5, sobre o aspecto do futuro Museu do Amanhã no Píer Mauá, autoria de Santiago Calatrava.


“Da máquina urbana de crescimento a uma conjuntura histórica marcada pela desindustrialização e consequente desinvestimento de áreas urbanas significativas, a terceirização crescente das cidades, a precarização da força de trabalho remanescente e, sobretudo, a presença desestabilizadora de uma underclasse fora do mercado” Otília Arantes

Fotografia por Pedro Mauger


Pobre é lixo para a prefeitura. Elas acham que a nossa presença vai infestar a área e fazer doer os olhos dos ricos” Jane Nascimento de Oliveira, moradora do bairro Favela Bairros

Fotografia por Pedro Mauger


“ Define-se gentrificação o processo tomado pelas "camadas afluentes e do capital privado, que o ‘requalificam’ concertadamante com outros atores, inclusive o poder público, criando uma situação de exclusão e especulação, convertendo espaços privilegiados remanescentes e degradados, em espaços de consumo de uma classe social ascendente”. Godet

Fotografia por Pedro Mauger


"O novo modelo de cidade global, caracterizada pelo artificialismo, “tem sido cuidadosamente confeccionado pelo novo economicismo, através de vínculos operacionais entre economia, política e cultura” Ana Clara Torres Ribeiro

Fotografia por Pedro Mauger


“(…) a conservação dos antigos conjuntos arquitetônicos está ligada à conservação integral de seu conteúdo social; sua evolução está ligada à possível evolução histórica da antiga função. A substituição do velho conteúdo por um novo, por sua vez, conduziria rapidamente à transformação radical e à ruína das formas antigas” Giulio Carlo Argan

Fotografia por Pedro Mauger


“As grandes obras de transformação do Rio têm um custo social para a parcela mais pobre da população. O prefeito do Rio fala abertamente em gentrificação como um processo desejável, mas ela não passa de uma substituição social que sempre beneficia as pessoas com maior poder aquisitivo” Christopher Gaffney

Fotografia por Pedro Mauger


Fotografia por Pedro Mauger


Ideologicamente, a revitalização urbana pressupõe a ideia de que a cidade está morta



“A cidade é uma mercadoria a ser vendida, num mercado extremamente competitivo, em que outras cidades também estão à venda. Isto explicaria que o chamado marketing urbano se imponha cada vez mais corno uma esfera específica e determinante do processo de planejamento e gestão de cidades. Ao mesmo tempo, aí encontraríamos as bases para entender o comportamento de muitos prefeitos, que mais parecem vendedores ambulantes que dirigentes políticos.” (VEINER, 1999) “A operação urbana consorciada é um recurso previsto no Estatuto das Cidades (Lei Federal nº 10257/2001) para recuperação de áreas degradadas. Com duração de 15 anos, receberá investimento de R$ 8 bilhões em obras e serviços no Porto Maravilha. Para conseguir recursos para a operação urbana, a prefeitura aumentou o potencial de construção de imóveis da Região Portuária, área que atrai a atenção de investidores do setor imobiliário para projetos comerciais e residenciais.” Nota do site oficial do Porto Maravilha


Mapa dos impactos Olímpicos, incluindo as remoções, intervenções urbanas, impactos ambientais e militarização. Mapa Rio 2016 – Os Jogos da Exclusão


“O branqueamento do território é entendido a partir de três dimensões, (R. SANTOS, 2009): uma atuando diretamente no ordenamento da ocupação do território, o branqueamento da ocupação, outra criando uma imagem – uma geográfica imaginativa – do território, o branqueamento da imagem e, por fim, a normatização de uma cultura eurodescendente, o branqueamento da cultura. Essas dimensões sintetizam a tentativa de invisibilização e reconstrução sob a lógica eurocêntrica de ―territórios não brancosǁ, ou seja, o apagamento da presença das grafagens espaciais, (R. SANTOS, 2009), das geo-grafias (PORTO-GONÇALVES, 2003) negras e indígenas do território brasileiro.”


INSTITUTO DE PESQUISA E MEMÓRIA PRETOS NOVOS

FOTO FONTE: GOOGLE STREET VIEW


Movimentos de resistência começam a surgir como afirmação do espaço, como por exemplo, o Intituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos (IPN) e ocupaçõe, como a Mariana Crioula, que resiste até os dias de hoje.

“Localizado nos números 32, 34 e 36 da Rua Pedro Ernesto, o imóvel que hoje sedia o instituto abriga no subsolo os restos de um antigo cemitério de escravos. Entre 1772 e 1830, no Cemitério dos Pretos Novos, eram enterrados os escravos que, debilitados pelas péssimas condições das longas viagens nos navios negreiros, morriam nos primeiros dias após a chegada ao Brasil. Foram encontrados mais de 5 mil fragmentos arqueológicos no local, e os ossos não cremados permitiram identificar 28 corpos, a maioria deles de homens com idade entre 18 e 25 anos. Pontas de lança, argolas, colares, contas de vidro, artefatos de barro, porcelanas e conchas também fazem parte do acervo. Além de local de estudos e pesquisas arqueológicos, o Instituto dos Pretos Novos, criado e dirigido por Merced Guimarães, funciona como centro de informação cultural e artística, por meio de uma galeria de arte e de uma biblioteca, ambas com o nome de Pretos Novos. Para se manter, a instituição recebia um aporte da prefeitura do Rio, por meio da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária, de R$ 85 mil por ano” (VIRGILIO, 2017)


GALPÃO OCUPAÇÃO MARIANA CRIOULA

Fotografia por Henrique Fornazin


“A gente tem hoje 40 famílias, mais ou menos umas quarenta famílias, hoje a gente tem financiamento para a construção, tem o lugar específico, que não foi uma coisa fácil [...] agora a permanência da gente nesse lugar, a consolidação da ocupação, nossos desafios, fazer com o que o projeto aconteça, reafirmar as famílias nesse lugar, que é muito importante, que passa por um processo de revitalização,e que tá fazendo um movimento de expulsão dos pobres e a gente tá tentando fazer que a Mariana Crioula seja um espaço de resistência desse lugar” Fala de Aline Abreu (janeiro de 2017)


Fotografia George Maragaia


Referências:

DINIZ, Nelson. De Pereira Passos ao Projeto Porto Maravilha: Colonialidade do Saber e Transformações Urbanas da Região Portuária do Rio De Janeiro. Rio de Janeiro - RJ, 2012 Disponível em: <http://www.ub.edu/geocrit/coloquio2012/actas/07-N-Diniz.pdf> Acesso em: 3 de nov. de 2017. VAINER, Carlos B. Pátria Empresa e Mercadoria. Florianópolis, 2000. Disponível em: <http://labcs.ufsc.br/files/2011/12/16.-VAINER-C.B.-Pátria-empresa-e-mercadoria.pdf> Acesso em: 3 de nov. de 2017. SITE PORTO MARAVILHA:, Disponível em: <http://portomaravilha.com.br/portomaravilha> Acesso em: 3 de nov de 2017. CORRÊA, Gabriel Siqueira. Narrativas raciais como narrativas geográficas: uma leitura do branqueamento do território nos livros didáticos de geografia. Niterói-RJ, 2003. ZIZO, Henrique. Ocupação Mariana Criola. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=GwGK8D0pEls> Acesso em: 3 de nov. de 2017 VIRGÍLIO, Paulo. Marco da escravidão, Instituto dos Pretos Novos Luta por Recursos para se Manter. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/cultura/noticia/2017-04/marco-da-escravidao-instituto-dos-pretos-novos-luta-por-recursos-para-se> Acesso em: 3 de nov. de 2017 VASSALO, S.; CICALO, A. Por onde os africanos chegaram, Horizontes Antropológicos [Online], 43 | 2015, posto online no dia 31 Julho 2015, consultado o 04 Dezembro 2017. URL : http://horizontes.revues.org/915 ANDREATTA V.; CHIAVARI M. P.; REGO H. O Rio de Janeiro e a sua orla: história, projetos e identidade carioca. Rio de Janeiro, 2009. Disponível em: <http://portalgeo.rio.rj.gov.br/estudoscariocas/download/2418_O%20Rio%20de%20Janeiro%20e%20sua%20orla.pdf> Acesso em: 4 de dez. de 2017 LIMA, T. A; SENE, G. M; SOUZA, M. A. T. Em busca do Cais do Valongo, Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo, 2016. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0101-47142016000100299> Acesso em: 4 de dez. de 2017. AZEVEDO, A. N. A reforma Pereira Passos: uma tentativa de integração urbana. Rio de Janeiro, 2003. Disponível em: <http://www.forumrio.uerj.br/documentos/revista_10/10-AndreAzevedo.pdf> Acesso em: 3 de dez. de 2017.



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