Diários de Anke

Este trabalho se trata de um exercício experimental aplicado na disciplina de História do Design da Universidade Federal de Pernambuco, no segundo semestre de 2015, ministrada pela Profª Drª. Oriana Duarte e pelo mestrando Álamo Bandeira, como docente estagiário, com monitoria da aluna Maria Eduarda Figlioulo. A proposta é desenvolver uma narrativa ficcional ambientada na primeira metade do século XX na escola Bauhaus e tem como objetivo uma outra possibilidade de apreensão do saber histórico. Optamos por trazer a narrativa para o âmbito da discussão de gênero, ainda latente na época retratada, mas já presentes. Os conteúdos aqui apresentados não devem ser considerados estritamente como fatos históricos e não devem ser usados como documentos históricos.

por Filipe Aca Maria Júlia Moreira

Recife, 2015

Weimar, março de 1919

Estimado diário, Estou em polvorosa, estou a caminho da escola de artes mais fabulosa de toda Alemanha, a Bauhaus. Nunca antes existiu uma escola como esta, sinto que nela poderei realizar todos os meus sonhos, crescer, aprender, ser livre..

Enquanto arrumo a minha mala penso no que o destino me reserva, sinto um pouco de medo também. Na verdade, é mais uma ânsia, uma inquietação que toma conta de mim, quase não consigo me conter, não sei o que esperar.

Weimar, abril de 1919

Estimado diário, Após um mês aqui na Bauhaus sinto que estou no lugar certo. Temos muitas aulas e oficinas, mas a minha favorita é a do professor Wassily Kandinsky. Ele acredita que a arte não é somente um processo técnico ou teórico, mas também um processo espiritual. Com ele estudamos um pouco sobre teoria de cores, até fiz umas anotações por aqui para estudar. Nas aulas práticas ele costuma colocar umas músicas das quais gosto bastante e me fazem ter os sentimentos mais diversos, ele pede para que deixemos o pincel conduzir as tintar através da tela como se estivssemos dançando, interpretando, como num balé, o que estamos ouvindo. É catártico! Sinto que a minha alma se torna mais livre conforme as aulas seguem. Ah! Fiz duas amigas, a Greta e a Heidi, me sinto tão à vontade com elas que é como se as conhecesse há séculos. Aprendo bastante com elas também

Weimar, junho de 1919

Estimado diário, Sei que passei bastante tempo sem vir te visitar, estive bastante ocupada, mas sei que posso sempre contar com você. Obrigada por ser tão bom companheiro.

Durante esse período continuei frequentando as aulas, chegaram muitas garotas para estudar aqui na Bauhaus também. Bom poder viver em uma época onde podemos ter as mesmas oportunidades de educação e formação que os homens. Que dizer, em parte. Vim para a Bauhaus por conta da igualdade e liberdade pregada por ela, mas eis que veio uma grande decepção. O excelentíssimo diretor Walter Gropius, que mesmo se dizendo a favor da igualdade, se mostrou um homem que acredita muito mais na supremacia masculina. Com medo, aparentemente, das mulheres se tornarem mais notáveis que os garotos de sua instituição, anunciou que para nós seriam delegadas oficinas de artes manuais, estas vistas pelos homens como artes menores. Não acredito que existam artes menores ou maiores, mas gostaria de poder escolher as disciplinas que mais me interessam, como pintura e arquitetura.

Revoltadas com essa situação, fundei junto com a Greta e a Heidi um grupo de mulheres, o Frauenpower, em busca de igualdade. Conseguimos adesão imediata de várias das garotas que aqui estudam. Lançamos um manifesto que apresento a seguir. Tenho a esperança que isso seja a faísca necessária para acender a chama da revolução, não somente aqui dentro da instituição, mas também na sociedade como um todo. Enfim, voltarei com mais notícias. Abraço

N E R U E A W R F PO

M

Somos mulheres, quase metade dos alunos desta escola, porém não somos ouvidas e pior somos segregadas, oprimidas e discriminadas.

O

ST

E IF AN

O senhor diretor Walter Gropius, que pregara a igualdade independentemente da idade ou sexo na Bauhaus, não passa de um reles hipócrita.

Ora, de qual igualdade estamos falando quando acaba de ser estabelecida uma regra onde o"weibliche element" (elemento feminino) não pode ocupar mais de um terço das vagas nas salas de aula?

Nós, mulheres, que acabamos de conquistar o direito ao voto, precisamos nos unir para ocupar mais uma vez o nosso espaço. Desta vez, nessa escola que se diz preconizadora de ideais libertários e que visam uma sociedade melhor.

Uma sociedade melhor não se faz somente através de uma revolução estética e visual, mas também social. Esta revolução começa a partir de onde vivemos, tentando acabar com os ideais de supremacia masculina vigentes nessa instituição.

Estamos aqui, assim como os homens, para vivenciar e experimentar as artes de múltiplas formas. Não consideramos atividades manuais, como a tecelagem e cerâmica, artes menores, mas gostaríamos de ter a possibilidade de escolher as oficinas que temos interesse em participar.

Nós do movimento Frauen Bauhaus não lutamos por benefícios, mas sim por direitos, direito a igualdade.

Weimar, setembro de 1919

Estimado diário, Nosso grupo feminista continua lutando a favor da igualdade, quase todas as garotas da Bauhaus aderiram ao movimento. Realizamos reuniões semanais e todas são bastante engajadas. Apesar de sermos obrigadas a participar das aulas de artes manuais estou gostando bastante. Através da tapeçaria descobri uma nova forma de expressão e de experimentação, aqui aprendemos a utilizar as formas e as cores de forma coesa e como relacioná-las, desta forma produzimos peças abstratas que não representam o que vemos, mas o que sentimos.

Nesse período conheci muita gente interessante, as quais me sinto bastante confortável e acolhida. Um fato muito engraçado que aconteceu recentemente foi quando um garoto, que estava passeando pelos jardins, repentinamente começou a se debater. Todos acharam que era mais performance, destas bastante corriqueiras dentro da Bauhaus. Ela foi tão incrível e expressiva, que antes mesmo de acabar todos estavam aplaudindo veementemente. Porém a situação não se tratava de uma performance, mas sim de um choque que o garoto tinha levado com um fio desencapado que pisou. No fim das contas ele foi socorrido e ficou bem, após o susto todos riram da situação. Esse tipo de coisa só poderia acontecer na Bauhaus, como eu amo este lugar!

Weimar, dezembro de 1919

Estimado diário, As férias de inverno estão se aproximando, irei para casa passar as festas de fim de ano com a minha família. Tudo o que vivi este ano foi maravilhoso, embora seja um recesso curto, já sofro por antecipação com saudade das minhas companheiras de luta e amigas. Terei um descanso das aulas e exercícios, mas sentirei falta deles também. Acabei me acostumando à rotina de trabalho constante.

Eu sei que este ano não te encontrei muitas vezes, mas continuo com você sempre compreensivo e companheiro. Te revejo em breve para partilhar ainda mais experiências vividas.

Abraço.

Referências bibliográficas: * CARDOSO, Rafael. Uma introdução à história design.

São Paulo: Blucher, 2008. * GROPIUS, Walter. Bauhaus: novarquitetura. São Paulo: Perspectiva, 1972. * FAULKNER, Ray; ZIEGFELD, Edwin e HILL, Gerald. Art today: an introduction to the fine and functional arts.

New York: Holt, Rinehart and Winston, 1956. * FORTY, Adrian. Objetos de desejo: design e sociedade desde 1750. São Paulo: Cosac Naify, 2007. * PIZZO, Esníder. Kandinsky. São Paulo: Globo, 1997. * GRADIM, Maria Isabel. Mulheres e a oficina de tecelagem da Bauhaus. Santa Catarina: XXVIII Simpósio Nacional de História, 2015