ano 17 | setembro 2014 | R$ 13,50
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PERFIL
ENTREVISTA
“O que me interessa é aquilo que não sou eu, ou aquilo que não sei”
“Para cada rap escrito uma alma que se salva”
EDUARDO COUTINHO
DOSSIÊ
BOWIE & DYLAN & QUEEN Biografias inéditas revelam a formação de três mitos da música pop
CRIOLO
EDITORIAL
OS ÍCONES DO ROCK A tradição da música sendo rompida por ícones da cultura pop rock Os pródigios anos 1940 – em que nasceram Chico Buarque, 1944; Bob Dylan, 1941; e David Bowie, 1947 – continuam fortes e inspiradores. Chico lançou um badalado CD – famoso antes mesmo de chegar às lojas porque tudo o que faz tem importância –, aqui comentado pelo músico Tony Bellotto, e Dylan e Bowie ganharam biografias assinadas, respectivamente, pelos críticos Greil Marcus e Paul Trynka, que CULT antecipa com exclusividade. Os três ícones nasceram em continentes diferentes, com referências, linguagem poetica e ambições distintas, mas esbarram a eternidade de suas canções. No dossiê desta edição, temos entrevistas reveladoras com Greil Marcus, Paul Trynka e o jornalista Mark Blake, biógrafo do Queen, banda britânica que lançou o cantor Freddie Mercury, nascido em 1946 e morto precocemente em 1991. A cultura pop de alta qualidade, com conteúdo político e visão renovadora do mundo, que permanece importante para a atual geração após ter influenciado várias anteriores, é tese de estudos acadêmicos e o tema principal dessa edição. Boa leitura,
EXPEDIENTE
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CULT REVISTA BRASILEIRA DE CULTURA Uma publicação mensal da Editora Bregantini Praça Santo Agostinho, 70 | 10º andar – Paraíso São Paulo – SP | CEP 01533-070 Tel.: (11) 3385-3385 FAX.: (11) 3385-3386
COLABORADORES DESTA EDIÇÃO Alberto Pucheu Poeta é professor da UFRJ
CULT ON-LINE www.revistacult.com.br www.twitter.com/revistacult www.facebook.com/revistacult
Filipe Pereirinha Doutor em Filosofia Moderna e Contemporânea. Universidade de Lisboa, Portugal
Matérias e sugestões de pauta: Redacao@revistacult.com.br Cartas: cartas@revistacult.com.br Assinaturas: assinecult@editorabregantini.com.br
Flávia Trocoli Professora da UFRJ
A Revista CULT é uma publicação mensal da Editora Bregantini. A CULT não se responsabiliza pelas ideias e conceitos expressos nos artigos assinados, que trazem somente o pensamento dos autores e não representam necessariamente a opinião da revista.
Claudio Oliveira Coordenador do Programa de pós-graduação em Filosofia e professor associado da UFRJ
Franthiesco Ballerini Jornalista e coordenador geral da Academia Internacional de Cinema Giorgio Agamben Filósofo italiano. Universidade de Roma, na Itália Gunter Axt Historiador e pesquisador associado ao Núcleo de Estudos Diversitas/USP Judith Butler Filósofa estadunidense. Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos Márcio Seligmann Professor na UNICAMP Nina Rizzi Poeta, historiadora e tradutora Paulo Sérgio de Souza Jr. Psicanalista e tradutor Rodrigo lelpo Pós-doutorando em Teoria Literária na UNICAMP. Tomaz Amorim Izabel Doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada na USP
SUMÁRIO
09
MARCIA TIBURI
Desde a Revolução Industrial, estabeleceu-se um divórcio entre arte visual e arte aplicada
14
MANUEL DA COSTA PINTO
A roupa reflete as atitudes
16
CINEMA
Praia do futuro, novo longa de Karim Aïnouz, propõe apreciação de imagem, sons e silêncios que poucos sabem apreciar
24
CHRISTIAN DUNKER
A vampirofilia de nosso tempo
06
AGENDA CULT
Aos interessados por literatura, design e cinema, São Paulo reserva bons motivos para sair de casa
10
PERFIL
Como o cineasta Eduardo Coutinho faz dos relatos anônimos sua arte
18
MEU FILME DE FORMAÇÃO A noite dos desesperados
20
ENTREVISTA
Criolo, Kleber Cavalcante contra em entrevista para a CULT sobre sua produção musical e reflete sobre as manifestções recentes
26 DOSSIÊ O ALTAR DO ROCK
Ícones da cultura pop, ao mesmo tempo dialogaram e romperam com a tradição na música. David Bowie, Bob Dylan, o e Freddie Mercury, biografias inéditas dos três mitos da música
53 56 PINTANDO PRA QUEBRAR
As grafiteiras driblam os estereótipos de gênero e ganham espaço nos muros, paredes e viadutos
58
ALCIR PÉCORA
Da revolução à conservação: a estética do fingimento espírito adolescente
65
RETRATO DO ARTISTA
A estética do furor miscigenado e o misticismo profano de Marcelo Ariel
59
LIVROS
Retratos da MPB e lançamentos
64
CARTAS WELINGTON ANDRADE
66
OFICINA LITERÁRIA
Sobre o infame escritor inglês, que levou ao extremo sua busca da arte pela arte
AGENDA CULT
SETEMBRO 04.09
05.09
06.09
CURSO
TEATRO
EXPOSIÇÃO
Oficina de desenho Sobre Linhas
Rod Hanna on Broadway
31ª Bienal de São Paulo
até 25/09 R$ 520.00 Espaço CULT + Informações:
até 06/09
até 07/12
De R$50 a R$170
Gratuita
Teatro Bradesco
Fundação Bienal
+ Informações: guiadasemana.com.br
+ Informações: guiadasemana.com.br
Espaço Cult
17.09
19.09
21.09
CINEMA
TEATRO
TEATRO
Made in Paraguai Mostra de Cinema
Cássia Eller, O Musical
Festival de teatro brasileiro CCBB
até 17/09
até 10/11
21/09
R$ 10.00 (inteira) R$ 5.00 (meia)
R$ 10.00 (inteira) R$ 5.00 (meia)
Preços variáveis
Cine Caixa Belas Artes
Centro Cultural Banco do Brasil
CCBB
+ Informações:
+ Informações:
+ Informações:
madeinparaguai.com.br
guiadasemana.com.br
festivaldoteatrobrasileiro.com.br
07.09
09.09
13.09
MÚSICA
EXPOSIÇÃO
CINEMA
Madrugadas de Sarau do Parque Ibirapuera
Made by...Feito por brasileiros
Horror brasileiro
07/09 Gratuita Parque do Ibirapuera + Informações: facebook.
13/09
até 15/10
Gratuita
Gratuita
Parque Ibirapuera
Hospital Matarazzo
+ Informações:
+ Informações:
(11) 3512 6111
feitoporbrasileiros.com.br
com/culturaindependente
25.09
26.09
28.09
EXPOSIÇÃO
EXPOSIÇÃO
EXPOSIÇÃO
Lothar Charoux Razão e Sensibilidade
Exposição “Breaking”
Exerianas Dimitri Lee
até 06/12
até 26/09
28/09
Gratuito
Gratuito
Fábrica de Cultura Vila Nova Cachoeirinha
Espaço Cultural Porto Seguro
Gratuito IAC Brasil + Informações: iacbrasil.org.br/
+ Informações: fabricadecultura.org.br/
+ Informações: fabricadecultura.org.br/
MARCIA TIBURI
Deixe De moDa Desde a Revolução Industrial, estabeleceu-se um divórcio entre arte visual e arte aplicada PoR MARcIA TIbuRI marciatiburi@revistacult.com.br
e
m breve, tudo aquilo que não fosse pintura ou escultura estaria na categoria de arte aplicada, sobretudo a arte do nosso vestuário e absolutamente todos os componentes que sustentam a feroz e imbatível indústria da arquitetura, design de interiores, móveis, prataria, louças etc. A Revolução Industrial na Inglaterra coincidiu com o fim da realeza européia e com o início de uma política colonizadora expansionista. Cabese notar que, apesar dos fortes vínculos da Revolução Industrial com o capitalismo selvagem, e apesar de ela ter nascido no bloco ocidental, isso não significa que tenha se restringido aos novos países capitalistas. Os avanços que foram adquiridos pelos antigos soviéticos na época da indústria têxtil, assim como na Bélica, são ótimos exemplos do que foi o expansionismo industrial. É natural que com tantas mudanças conceituais, sociológicas e também éticas tenham alterado o curso da história das civilizações e, inevitavelmente, o comportamento destas. Neste momento, nos deparamos com dois traços paralelos, a arte aplicada e a visual, porém com direções totalmente opostas. Por um lado, a propagação comunista, por mais irônico que soe, foi logística e conceitualmente
fortificada pela própria Revolução Industrial. Tecidos estampados por artistas em voga massificaram a indumentária. Na década de 1920, à Tatlin, autora dos contra-relevos, fora encomendada a “formulação” do “uniforme ideal”, que atendesse às necessidades dos trabalhadores em sua rotina. Esse panorama propiciou a evolução do suprematismo e do construtivismo russo em direção ao produtivismo soviético. O produtivismo soviético teve seu correspondente no bloco ocidental com um movimento similar, porém, mais concentrado em itens domésticos, Arts and Crafts, também conhecido como art nouveau inglês, ou estilo Liberty, que teve como um de seus maiores mentores a figura mais poderosa de William Morris. Por outro lado, a necessidade de criar um discurso que amparasse e instituísse a emancipação das artes visuais vis-à-vis a outros media resultou em uma série de manifestos que clamavam uma promoção do status quo dos artistas na sociedade, elevando-os ao nível sacerdotal, pois trabalhavam com criação, atividade até então exclusiva de Deus. Com isso, nasce uma nova faculdade, uma nova ciência, quase uma filosofia visual. Por fim, considerando que a história e a teoria que ora regem os vários discursos a respeito da arte visual nos séculos 20 e 21 são cientificamente evolutivas, a despeito da falta de exatidão na sincronia dessa evolução, e considerando que esse princípio também está presente nas artes aplicadas, podemos concluir que os avanços ocorrem sempre simultaneamente, podendo ou até devendo ser considerados reflexo uns dos outros. Com isso, concluímos que não há a disjunção entre arte e moda, mas que há, sim, a conjunção arte e moda, arte com moda, arte da moda e arte na moda. Então, meu amigo, deixe de moda. Setembro 2014 |CULT | 9
PERFIL
Eduardo Coutinho foi considerado um dos maiores documentaristas da atualidade 10 | CULT | Setembro 2014
SOBRE O NARRADOR DE NARRAÇÕES como o cineasta eduardo coutinho faz dos relatos anônimos o substrato para sua arte PoR SéRgIo RIzzo, FoTo DAnIel Deák
C
NO CENTRO DE SEU MÉTODO, ESTÁ A FALA DE ALGUÉM SOBRE A SUA PRÓPRIA EXPERIÊNCIA, ALGUÉM ESCOLHIDO PORQUE NÃO SE ESPERA QUE SE PRENDA AO ÓBVIO, AOS CLICHÊS RELATIVOS À SUA CONDIÇÃO SOCIAL
omo podemos definir a obra de Eduardo Coutinho? Algumas tentativas são recorrentes e apontam, com formulações ligeiramente distintas, para horizontes complementares. Seria um “cinema do encontro”, como foi apresentado no título da retrospectiva dedicada a ele em outubro de 2003 pelo Centro Cultural Banco do Brasil. Seus curadores, Cláudia Mesquita e Leandro Saraiva, utilizam outra expressão, cinema “olho no olho”, na apresentação do catálogo. “No centro de seu método, está a fala de alguém sobre a sua própria experiência, alguém escolhido porque não se espera que se prenda ao óbvio, aos clichês relativos à sua condição social”, observa o professor e ensaísta Ismail Xavier em um de seus textos reunidos nesse mesmo volume. Criador e diretor do É Tudo Verdade – Festival Internacional de Documentários, que elegeu em 2000 Cabra Marcado para Morrer (1984) como o mais importante filme de não ficção realizado no Brasil, o crítico Amir Labaki prefere, em seu livro Introdução ao Documentário Brasileiro, a expressão “cinema de conversa” para identificar a “variante particular do instrumento da entrevista” usada pelo diretor. Já a professora e jornalista Consuelo Lins, autora de O Documentário de Eduardo Coutinho – Televisão, Cinema e Vídeo e colaboradora do cineasta em Babilônia 2000 (2001) e Edifício Master (2002), fala em “cinema da palavra filmada”, que “aposta nas possibilidades de narração dos seus próprios personagens”. Ou, como sublinha Claudio Valentinetti no livro-entrevista O Cinema segundo Eduardo Coutinho, obra realizada por um “extraordinário narrador de narrações”. Setembro 2014 |CULT | 11
MANUEL DA COSTA PINTO
vestuÁRio PuNK A roupa reflete as atitudes e os comportamentos de uma era e faz parte de um sistema chamado moda PoR MAnuel DA coSTA PInTo
e
nquanto os famosos motociclistas trouxeram a visão de liberdade, de poder percorrer a vida pelas estradas que cada um escolher, os punks expressaram seu brutal inconformismo com o consumismo e sua falta de esperança no futuro. O fio que une essas duas culturas se materializa na jaqueta de couro negro, que até hoje permanece como peça referencial do vestuário de quem quer compor um visual rebelde. O punk é uma cultura com uma visão absolutamente contemporânea e faz uma síntese tão bem desenhada de todos esses grupos urbanos que permanece vivo até hoje e praticamente consegue se eternizar. É uma cultura totalmente aceita pela sociedade atual e possui uma estética muito bem resolvida. Sua influência sobre a indumentária é tão extensa que, no momento em que estamos usando uma bota preta, jeans detonados, roupas e acessórios pontiaguso de metal, piercings, cabelos raspados ou espetados, estamos nos servindo do que é manifestamente oriundo da cultura punk. Lá se vão quase trinta anos desde o início do movimento punk na Inglaterra, e desde que Vivienne Westwood capturou as tendências de comportamento dos jovens operários ingleses desempregados e as materializou, junto com Malcom
14 | CULT | Setembro 2014
McLaren, numa coleção que surpreendeu o mundo, se desenvolvendo nos anos seguintes. Diversos estilistas tomaram o punk assumidamente como referência para criação de suas coleções, dentre eles Jean-Paul Gaultier e Versace, nos anos 1990. Aqui no Brasil, a Ellus teve o punk dos anos 1970 como tema de sua coleção no Morumbi Fashion de 2000, enquanto o estilista Alexandre Herchovitch fez sua leitura do movimento, misturada ao rock e ao country, apresentando ao país os vaqueiros punks na São Paulo Fashion Week de 2001. Os punks conseguiram de um modo inequivocamente feliz colocar nas roupas a sua atitude em relação à grande tragédia urbana que vivemos. Dentro da história da indumentária mais recente, não houve um grupo social que tenha tido uma estética tão forte e tão trágica, de tal forma que a estética punk é bem mais forte que a música punk. O punk é denúncia do consumismo e reflete a falta de esperança dos jovens, o medo do futuro e a tragédia do planeta. No punk, “não há esperança, é o movimento”. E isso se traduz no abandono quase total das cores – ficaram o preto e o branco, em modelos simples e clássicos de corte tradicional, mas com rasgos intencionais e buracos planejados, num toque de degenerescência, decadência e mendicância que pode ser facilmente encontrado na grande maioria das roupas atuais. Os modismos de ponta, que sempre começam nos grupos marginais, vão pouco a pouco sendo absorvidos pela sociedade tradicional, que não quer se mostrar “careta”, mas sim integrada ao mundo. Da mesma forma que num ciclo anterior o rock and roll oriundo da música negra viu em Elvis Presley um dos seus expoentes máximos, a estética punk, com seus piercings, roupas de couro, silhueta justa e despojada e roupa rasgada, pelo uso ou pela violência em comprar uma roupa nova e rasgá-la, passa a ser aceita e incorporada pela sociedade.
Setembro 2014 |CULT | 15
CINEMA
CONTEMPLAÇÃO, RISCO E ARTE Praia do futuro, novo longa de karim Aïnouz, propõe apreciação de imagem, sons e silêncios PoR FRAnThIeSco bAlleRInI
A
linguagem clássica do cinema – ou gramática hollywoodiana, como também a chamam – se tornou uma forma de comunicação tão predominante que a grande maioria dos espectadores tem dificuldade em apreciar ou entender um filme que utilize de mecanismos diferentes. Desde que D.W. Griffith lançou O nascimento de uma nação em 1915, a “fórmula hollywoodiana” tem ganhado força cada vez maior nas cinematografias do mundo inteiro – exceto em períodos como nos anos 1960, quando o cinema de autor ganhou força no mundo, graças, por exemplo, à inventividade da Nouvelle Vague e à crise financeira dos estúdios. Quando se passa anos vendo tal fórmula nos cinemas, não é de se estranhar que o espectador ache “chato” ou “confuso” o filme conduzido pela contemplação de fotografia, por uma edição menos pulsante e mais reflexiva ou mesmo filmes com grandes silêncios. Neste quesito, Praia do futuro, novo filme do diretor brasileiro Karim Aïnouz, que estreia no Brasil dia 15 de maio, é uma produção arriscada e ousada, ao mesmo tempo que uma experiência cinematográfica intrigante, desde que o espectador não vá com olhos voltados para cenas de ação. Ao contrário, trata-se de um filme cujo forte é a direção de fotografia e a contemplação de imagens, sons e silêncios, ao contar a história de Donato (Wagner Moura), experiente salva-vidas da Praia do Futuro, em Fortaleza. 16 | CULT | Setembro 2014
No primeiro fracasso de salvamento da carreira, conhece o alemão Konrad (Clemens Schick), amigo da vítima. Donato e Konrad se tornam próximos, amantes, e o brasileiro larga tudo e vai morar com ele em Berlim, sem dar explicações a ninguém. Anos depois, Ayrton ( Jesuíta Barbosa), seu irmão mais novo, vai atrás do único membro da família que lhe restou. Com um projeto que envolve narrativa contemplativa e relacionamento homossexual, Karim optou por fazer lançamentos não simultâneos, começando no Brasil e dando intervalos de três meses para estrear na Ale perto cada estreia, que teve menção honrosa da crítica no Festival de Berlim e foi rodado em Fortaleza, Berlim e Hamburgo, numa das primeiras co-produções entre os dois países. Além de oferecer belas seqüências contemplativas tanto de Berlim quanto de Fortaleza, Praia do futuro é uma aposta numa vertente de cinema nacional que foge do usualmente visto. Um drama singelo e delicado sobre encontros e desencontros, futuros incertos e novas aventuras, amores e olhares que enriquecem a cinematografia brasileira, ainda que não garantam grande retorno de bilheteria. Mas só apostando e insistindo em outras linguagens, um dia, quem sabe, o grande público conseguir apreciar uma obra que não necessariamente traz tiroteio, perseguição, explosões e fugas.
Fotos de divulgação
Da esquerda para a direita Jesuíta Barbosa, Karim Aïnouz e Wagner Moura
CULT Filmes autorais em geral têm traços da vida do próprio roteirista e diretor. O quão pessoal é Praia do futuro para você? Karim Aïnouz Trata-se da vontade de fazer um filme sobre um herói humano, não de quadrinhos, sobre sair de casa e enfrentar o mundo. Mas sim, há muito de pessoal. Saí de casa com 18 anos, mesma idade do irmão de Donato, me joguei no mundo, fui morar em Brasília, França, Nova York. Mas há outras coisas pessoais, íntimas. Queria falar de onde nasci mas também e me fascinei por Berlim, cidade com passado forte, de guerra, dividida, como os dois irmãos no filme. Mas é uma cidade que olha para o futuro. C Coproduzir um longa-metragem entre dois países com pouco intercâmbio cultural foi um desafio? KA Tive um parceiro alemão em O céu de Suely, mas não era uma coprodução. Começamos do zero, mas aos poucos conseguimos parceiros importantes. Há três produtores alemães, pois o cinema de lá tem fundos setoriais. Então temos no filme o fundo regional de Berlim, Hamburgo e o fundo federal, a Ancine de lá. Depois entraram outros parceiros, como HBO. Estamos abrindo portas para futuros filmes.
C Frustrante para quem é acostumado à linguagem clássica de Hollywood, calcada na ação. Um grande risco, não? KA Sim, é um risco, mas um risco calculado. Poxa, precisamos fugir da fórmula de D. W. Griffith, que é de 1915, quase cem anos! Eu aposto no espectador entre 18 e 30 anos, acostumado a novas mídias, novas linguagens, espero que eles abracem melhor esta proposta do que talvez uma geração mais acostumada à fórmula hollywoodiana. C Mas o risco também vem da temática e das cenas de sexo. Como foi o convite para o Wagner Moura, ele hesitou em fazer o papel? KA Sim, há cenas de sexo, mas para quem viu Games of thrones meu filme é Sessão da Tarde (risos). Quem hesitou fui eu, na verdade. Eu sempre quis trabalhar com o Wagner, mas achava que ele não iria aceitar o papel. Mas sabia também que ele não era o ator que faz o tipo “eu vou até ali”. Não trabalho com ator assim, que impõe limites do que pode fazer ou mostrar no filme. Ele gostou da proposta e me ligou dois dias depois que leu o roteiro, ficou instigado, pois o Donato é bem diferente dele em vários níveis e acho que ele queria sair do conforto. Admiro atores assim. Setembro 2014 |CULT | 17
MEU FILME DE FORMAÇÃO
A NOITE DOS DESESPERADOS o dramaturgo Sérgio de carvalho conta sobre um dos filmes que marcou sua infância
O
ano era 1929. Em plena depressão norte-americana, Gloria ( Jane Fonda) e Robert (Michael Sarrazin) movimentam-se na pista em busca da vitória em uma desumana maratona de dança. Num período de fome e desespero, dançar parecia uma maneira simples de ganhar alguns trocados. Porém, os passos coreografados deslizavam pelo salão embalados por uma agressiva violência social. Este é o enredo de A noite dos desesperados (1969), longa-metragem do diretor norte-americano Sydney Pollack baseado no romance They Shoot Horses, Don’t they? (Mas não se matam cavalos?), de Horace McCoy. “O filme retrata um concurso de dança de salão em que o último casal a seguir de pé ganha o prêmio, até o limite das forças e da sanidade. Todos bailam como mortos-vivos, numa corrida diante de uma plateia mecânica, ao som de músicas alegres. São personagens arrebentadas, no tempo da depressão norte-americana”, diz Sérgio de Carvalho, dramaturgo e encenador da Companhia do Latão, grupo teatral que há 17 anos desenvolve um trabalho de crítica à sociedade capitalista. Sérgio, que também edita as revistas Vintém e Traulito, ligadas à Companhia, conta que, dos filmes que mais o marcaram entre a infância e a adolescência, A noite dos desesperados é o que lhe vem com mais força à memória. “Assisti na televisão, sozinho, numa madrugada. Nunca mais o revi”. O dramaturgo relembra a beleza de Jane Fonda. “Ela vai se dissolvendo até reaparecer plena antes da última cena, brutal, violentíssima, tantas vezes relembrada por mim, em que seu parceiro a ajuda a estourar os miolos”. Para Sérgio, tudo era perturbador: “a falta de saída, o drama impossível, a injustiça, as imagens do espetáculo grotesco, a cena a um só tempo realista e alegórica, o interesse pelos desclassificados do sonho americano. Passei a perseguir essas questões nos filmes que via na madrugada, enquanto a casa dormia”.“Mais tarde, quando pude freqüentar cineclubes e ver meus primeiros ‘filmes de autor’, nenhuma experimentação formal, o que eu também adorava, seria legítima se não tivesse também o interesse pela vida que se desmancha demonstrado por um filme como A noite dos desesperados’”, diz.
A Noite dos Desesperados, um clássico dos anos 1960. 18 | CULT | Setembro 2014
ENTREVISTA
Criolo planeja lanรงamento de novo CD
20 | CULT | Setembro 2014
O PENSAR MUSICADO DE CRIOLO
Em entrevista exclusiva, o compositor reflete sobre as manifestações recentes e sobre a sua produção musical PoR MARcuS PReTo, FoToS PATRIcIA ARAujo
O
papo é reto, mas vem por linhas sempre tortuosas e inesperadas. Kleber Cavalcante Gomes, 38 anos – conhecido artisticamente como Criolo – não poupa o interlocutor. Faz questão de tirá-lo da zona de conforto, do raciocínio convencional, da discussão viciada. É assim quando canta e é assim quando fala, como se pode notar na entrevista a seguir. Alguém pode argumentar que isso é coisa de quem está enfeitiçado com o sucesso recente, que lhe subiu à cabeça. Não. Criolo já era desse jeitinho na entrevista que eu mesmo fiz com ele semanas antes do estouro, às vésperas do lançamento de Nó na orelha (2011), álbum que o revelou para além do universo do rap.
A história ficou bem conhecida. Após duas décadas dedicadas ao rap, Criolo decidiu que estava na hora de parar com a música. Mas tinha algumas canções – não apenas rap, mas também samba, bolero, balada. O baixista Marcelo Cabral ficou maravilhado com o material e, junto com Daniel Ganjaman produziu as faixas. E aquele que seria o canto do cisne de Kleber Gomes na música se tornou o começo de uma história. A música Não existe amor em SP poderia ter se tornado um hino das manifestações políticas recentes, mas extrapolou esse status. Fez que se levantasse a questão fundamental: por que não existe amor em SP? Ou em qualquer canto do Brasil? Que tal mudar isso tudo?
Setembro 2014 |CULT | 21
ENTREVISTA
CULT A canção “Não existe amor em SP” acabou por se tornar um hino. Ela também provocou reações nas pessoas, e muitas quiseram provar que “existe, sim, amor em SP”. Criolo Olha, eu acredito que em cada lugar tem alguém com coração. Para cada mil sem coração, existe um com coração. E esse um tem o poder de dar a redenção para os outros mil. Não estou falando desse coração romântico. Falo de alguém que se permite viver, sofrer, enxergar o sofrimento do viver e a beleza que é respirar. Então, acredito que chegou o momento em que essas pessoas se encontraram. Sou apenas mais uma dessas pessoas, mesmo que ainda capenga, mesmo que ainda cheio de situações a serem vistas e revistas. Assim como é cada poeta. É da essência das pessoas querer contribuir, querer fazer parte de algo sem exigir qualquer luz de protagonismo. Já ouviu falar naquele lance de que uma andorinha não faz verão? A andorinha não tem nome, é a espécie. C Mas, no caso de “Não existe amor em SP”, essa andorinha fez muito verão. Virou um símbolo, puxou toda uma revoada para junto dela. Criolo Quando você vê os pássaros no ar, tem a impressão de que é um triângulo, de que um está na frente dos outros. Não. Quando o primeiro se cansa, vai lá para trás e vem outro ocupar a dianteira. É muita ingenuidade do poeta, ou do marceneiro, achar que aquilo que ele criou e dividiu com o mundo ainda é ele.
“NÃO EXISTE RESPOSTA PARA QUESTIONAMENTO, NÃO EXISTE RESPOSTA PARA A VIDA” C Como você entendeu as manifestações recentes? Penso que esse tempo que nos separa delas é importante na avaliação, porque, no calor da hora, tudo era confuso demais. E o que valia na véspera soava como um equívoco completo no dia seguinte. Criolo É. É o organismo vivo. Você está lidando com pessoas, desejos, frustração, esperança. E ninguém ainda achou o ovo de Colombo do pensar humano. Mas o que acontece agora é algo inédito. As pessoas acham confuso, mas o que está acontecendo é o mais límpido possível. C O modo como o governo lidou com o que aconteceu nas ruas foi adequado? Criolo Quem sou eu para falar de qualquer governo, eu que não sou letrado? 22 | CULT | Setembro 2014
C E quem foi que disse que precisa ser letrado para falar do governo? Criolo O sistema disse. C Precisamos obedecer ao sistema? Criolo A gente depende dele. Vai falar para um garoto que mora lá no meu bairro se, na hora de entregar um currículo, ele não tem que ter o segundo grau e falar duas línguas para ser um simples limpador de rua. Não venha com essa, não, porque isso é coisa de quem não precisa de dinheiro. Que pode se dar ao deleite. Maquiavel é um cara de sacada. Mal sabia ele que seria um divisor de águas. Porque quando eu procurava emprego (porque agora eu sou vagabundo de carteira assinada), eu implorava. Não tinha o segundo grau completo. Quando tinha o segundo grau completo, eu implorava porque não tinha o nível universitário. Aí, depois, eu implorava porque eu não sabia inglês e espanhol. Olha que jogo bonito. Olha que interessante. Porque eu cresço quando a Dona Vilani, minha mãe, me faz uma tapioca de manhã. C Você foi um dos primeiros artistas a fazer uma ponte entre o universo real do rap e os outros gêneros musicais, as outras classes sociais e os outros ouvidos e corações. Criolo É muito simples. Se cada uma dessas pessoas pensarem na cor azul, todos iremos pensar na cor azul, mas cada um em sua nuance de azul. É só isso. O verbo é falho. Clarice [Lispector] já tinha gritado isso. Você já observou um jardim? O que é um jardim pra você? Já reparou que é a mão do homem moldando a natureza ao seu bel prazer? Todos os dias nós nos moldamos. Com ou sem querer. Não existe resposta para o seu questionamento porque não existe resposta para a vida. Apenas vivemos. E, nesse balbucio entre alma e carcaça, tentamos fazer o melhor que podemos fazer. C Você se vê nesse papel de ponte? Criolo Eu? Vou repetir o que lhe falei três anos atrás: sou o equívoco, mas um equívoco com reticências. C Por que um equívoco? Criolo Meu berço é o rap, sou filho de preto nordestino. Filho de benzedeira que, com 50 anos de idade, se formou em Filosofia. E eu digo que ela é filósofa não pelo diploma. Ninguém é filósofo porque fez Filosofia. Ela é filósofa porque sabe viver a vida. Por si só, todo mundo é um filósofo. Dona Vilani me ensinou isso. É a potencialidade humana. Os quereres, as inteligências, sobretudo as potencialidades. O problema são as potencialidades. Quando
“PORQUE É TUDO MUITO FRÁGIL. O PENSAR É FRÁGIL.” as descubro, não sei o que faço. E quando faço, me questiono. O grande lance é se questionar. Porque é tudo muito frágil. O pensar é frágil. O devaneio é forte. Eu sou filho de um senhor que foi metalúrgico pot toda a vida. E de uma senhora que foi rodomoça, servia cafezinho nas viagens de ônibus. Depois, foi empregada doméstica no Rio de Janeiro. Depois, ainda foi lavadeira. E, com 40 anos de idade, voltou a estudar. E era benzedeira do bairro por mais de dez anos. E hoje tem mais de oito títulos. Então, essa incógnita já existe no seio de minha família há muitos e muitos anos. C E você? Criolo Eu sou o mais fraquinho da turma. Cresci em um ambiente extremamente hostil, no extremo sul da Zona Sul da cidade de São Paulo. Vi gente morrer na minha frente, de morte matada. Precisei de hospital público e não tive. Senti dor, passei fome. Mas lhe digo isso com coração aberto, não para glamourizar uma história. Eu lhe digo isso para implorar às nossas autoridades que não deixem isso acontecer. C Você acha que a situação está melhorando? Criolo Não. Nós nunca vamos ter o número real de quantas pessoas são assassinadas. Nós nunca vamos ter o número real de quantos pais de família perderam seus empregos. Nós nunca vamos ter o número real de nada. Porque saber das coisas é um poder absurdo. Por isso que nossa juventude está na rua. Meu amigo, você pode assassinar uma pessoa dando um tiro na cabeça dela. Mas também pode assassinar uma pessoa acabando com toda a sua ideologia. C Você considera que seu o seu primeiro disco foi devidamente compreendido? Criolo Eu não tenho a pretensão de que as pessoas me compreendam. Meu desejo é dividir o meu pensar. O que vai acontecer é da natureza. Meu desejo é que as pessoas me permitam esse processo de comunicação.
O rapper Criolo usa de sua poesia para compor seu CD Nó na orelha
C Você criou uma relação, inclusive afetiva, com outros nomes que fizeram a história da música e da sociedade brasileira, como Milton Nascimento e Caetano Veloso. Como essa relação se dá? Criolo São pessoas extremamente generosas, inteligentes, doces. A sensibilidade fez com que eles passassem por décadas, e todas as gerações, de um jeito ou de outro, não perdem contato com eles. Eu sempre procuro preservar o pouquinho de colegas que tenho. Fico na minha. Olha, cara, vou te falar um lance: estou tentando entender o que está acontecendo. Que maravilhoso isso das pessoas me darem a oportunidade de eu me manifestar. Porque é o povo que põe a comida na minha mesa. Porque, até então, com 30 anos de idade, eu vivia dependendo da minha mãe e do meu pai. Por isso que eu fiz [canta]: “Eu não tenho casa/ Eu moro em casa de mãe”. Por isso eu fiz: “Às quatro da manhã ele acordou / Tomou café sem pão e foi à rua por o bloco pra desfilar / Atravessou o morro”. E eu não estou falando só de dinheiro. C Graças a sua visibilidade, outros artistas ligados a você também se tornaram mais visíveis, como foi o caso de Kiko Dinucci, Pagode da 27, Rodrigo Campos… Criolo [interrompendo] O Rodrigo Campos. Eu queria deixar sublinhado isso. Que saia na matéria. O Rodrigo Campos é de uma elegância pungente. Mas eu também queria sublinhar aqui um cara muito especial que eu tenho guardado no meu coração, o Thiago França. Ele ultrapassou a barreira do instrumento. O Thiago França por si só é um instrumento. Setembro 2014 |CULT | 23
Fotos de domínio público
YING & YANG
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ARE YOU READY
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THE QUEEN BITCH
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BOB DYLAN WHO?
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SOBRE BOB DYLAN
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FOLK SOUL POP
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NASCE UMA RAINHA
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avid Bowie, o camaleão do rock; Bob Dylan, o porta-voz de toda uma geração; e Freddie Mercury, o carismático líder do Queen. Os três são tema do dossiê deste mês e de biografias recém-lançadas nos EUA e no Reino Unido, cujos autores a CULT ouviu. Paul Trynka, autor de Starman, fala da revolução sexual que Bowie representou, ao trazer a bissexualidade para a luz do dia; Greil Marcus, um dos mais importantes críticos musicais norte-americanos, lança obra em que repassa toda a carreira de Dylan; e o biógrafo Mark Blake, de É Esta a Vida Real?, afirma polemicamente que o Queen não teria mais espaço na cena musical de hoje. O trio tem suas produções dissecadas por Marcia Tiburi, Roberto Muggiati, Pedro Alexandre Sanches e, por fim, Noemi Jaffe, que decompõe letras de canções de Bowie e Dylan.
O ALTAR DO ROCK Ícones da cultura pop, ao mesmo tempo dialogaram e romperam com a tradição na música, na política e no comportamento desde os anos 1960
YING & YANG Isolados no meio cultural e social onde cresceram, Dylan e bowie construiram novas personas para si mesmos RobeRTo MuggIATI
D
ois garotos dos anos 1940, parecidos e diferentes. O norte-americano da remota Duluth, Minnesota, nascido em 1941, seis meses antes do ataque de Pearl Harbor, que empurrou seu país para a carnificina da Segunda Guerra Mundial. O inglês, nascido no pós-guerra, em 1947, em Brixton, um distrito de Londres tão distante das delícias da capital como Duluth o era da tentadora Grande Maçã, Nova York. Ambos com três nomes, que resolveram descartar. Robert Allen Zimmerman virou Bob Dylan, tomando emprestado o nome do poeta galês Dylan Thomas. David Robert Jones escolheu ser David Bowie, em homenagem à épica faca do Velho Oeste, cortante como seu humor. Dois garotos deslocados, para usar a terminologia sociológica dos anos 1950, rebeldes sem causa, estrangeiros, outsiders. Ambos totalmente alienados de seu meio, devidiram construíram novas personas para si mesmos. Dylan escolheu a do músico nômade dos anos da Depressão. Bowie foi mais longe e transfigurou-se num ET. Não por acaso, seu primeiro hit, quinto lugar na parada britânica de singles em 1969, chamou-se Space Oddity, um esperto trocadilho, em inglês, com “odisseia espacial”. A poesia pop de Dylan funde os vários elementos da experiência humana como: o amoroso, o apo-
calíptico, o político, o social, o surreal. Isso não a impede de ser, por vezes, extremamente autobiográfica. Uma de suas primeiras canções foi composta para Brigitte Bardot. Na época, todo garoto era apaixonado por BB e Dylan, um garoto normal, queria fazer mesmo era rock’n’roll como Elvis. Mas algo o puxava para outro tipo de música. Em Hibbing, para onde a família se mudou quando ele tinha 6 anos – os habitantes locais chamavam a cidade, que vivia da mineração, de “o maior buraco já feito pelo homem”, – Bob passava horas sentado à beira dos trilhos escutando histórias de velhos vagabundos cortando a América em trens fantasmas. Quando ouviu Woody Guthrie – o cantor folk que entalhou a canivete no violão a frase “Essa máquina mata fascistas” –, Dylan decidiu o que ia fazer: uma fusão do rock que estava nas paradas com a mensagem social e justiceira do folk. O toque autobiográfico aparece já em “Song to Woody”, de 1962: “I’m seein’ your world of people and things, / Your paupers and peasants and princes and kings” (Estou vendo seu mundo de pessoas e coisas, / Seus pobres, camponeses, príncipes e reis). Do mesmo ano, “My Life in a Stolen Moment” seria adotada pela mídia como um press release do
I’M SEEIN’ YOUR WORLD OF PEOPLE AND THINGS SONG TO WOODY BOB DYLAN
músico: “Hibbing’s a good ol’ town / I ran away from it when I was 10, 12, 13, 15, 15 ?/?, 17 an’ 18/ I been caught an’ brought back all but once / (…) I started smoking at 11 years old an’ only stopped once to catch my breath” (Hibbing é uma cidade legal / Fugi dela aos 10, 12, 13, 15, 15 ?/?, 17 e 18 anos / Me pegaram e me levaram de volta todas as vezes, menos a última / (…) Comecei a fumar aos 11 anos e só parei uma vez para tomar fôlego). LUGAR E HORA ERRADOS Depois de rodar pela cena boêmia do Village de Nova York, Dylan foi descoberto por John Hammond – o mesmo “caçador de talentos” que descobriu Billie Holiday, Count Basie, Aretha Franklin e Bruce Springsteen –, que o contratou para a Columbia. Quando gravou “Blowin’ in the Wind” em 1963, Dylan tornou-se um superastro da noite para o dia. Enquanto isso, David Bowie, que tinha nascido no lugar errado na hora errada, conhecia as agruras do distrito londrino de Brixton, um gueto de afro-caribenhos onde foram instaladas as famílias brancas que perderam suas casas nos bombardeios da Segunda Guerra. Filho de um pequeno funcionário de uma instituição de caridade e de uma lanterninha de cinema, que já tinha um filho do casamento anterior, David brigou na escola técnica por causa de uma garota, levou um soco de anel e quase perdeu o olho esquerdo, que nunca ficou totalmente bom. Setembro 2014 |CULT | 29
Atraía acidentes: quebrou a mão e, depois, quebrou um dedo da mesma mão. Pegou um carro para conAINDA NÃO sertar e esqueceu de puxar o freio DECIDI QUE TIPO de mão. O carro passou por cima dele, quebrou suas pernas e quase DE SEXO PREFIRO esmagou sua genitália. Seus azares DAVID BOWIE lembram até o título da canção de Dylan “It’s Alright, Ma (I’m Only Bleeding)” (Está tudo bem, mãe BISSEXUALIDADE E DROGAS [só estou sangrando]). No final de 1969, David começou Quando operava o olho no hos- a viver com uma norte-americana pital, o seu meio-irmão, Terry, en- que estudara na Suíça, Mary Anlouqueceu e teve que ser internado. gela Barnett, depois Angie, que foi O Terry era uma espécie de mentor para ele o mesmo que Yoko Ono de David, muito ligado nos escri- foi para John Lennon. Casaramtores beat e no jazz de vanguarda. se oficialmente em 1970, mas foi Bowie embarcou na onda do jazz uma relação bastante tumultuada, e ganhou da mãe um saxofone de cercada de diversos rumores de plástico. Aos 15 anos era a atração bissexualidade e drogas, os boatos do colégio com o grupo George eram muitos a cerca de Bowie. and the Dragons. Nem o nascimento do filho Após oscilar entre vários esti- Zoey, em 1972, dissipou os boalos, David viveu uma experiência tos. Dizem que a bissexualidade de “iluminação” ao assistir ao filme de Bowie não passou de uma made Stanley Kubrick 2001 – Uma nobra de marketing de seu empreOdisseia no Espaço. Compôs uma sário. O próprio Bowie já vinha paródia, “Space Oddity”, um tema brincando com a androginia, roulúgubre que utiliza a viagem ao pas e maquiagens espalhafatosas, espaço como uma metáfora da so- na onda do glam rock ou glitter lidão humana. Lançada em julho rock – o “rock de plumas e paetês”, de 1969, às vésperas de o homem do qual era considerado o criador, pisar na Lua pela primeira vez, a ao lado do norte-americano Alice canção trouxe fama instantânea a Cooper. Tempos depois, ele ironiBowie ao ser usada pela BBC na zou tudo aquilo numa entrevista: trilha de seu filme sobre a conquis- “Ainda não decidi que tipo de sexo ta da Lua, apesar do tom crítico da prefiro – afinal, quantos tipos exisletra. Com “Space Oddity” nas pa- tem? – porque ainda não explorei radas, Bowie arriscou-se em dois essa área a fundo”. festivais, na Itália e em Malta, conBowie e Angie separaram-se quistando um dos troféus. em 1980, e ele ficou com a guarda de Zoey. Foi viver com o filho às margens plácidas do Lago Léman, na Suíça. Em 1992, Bowie casouse com a famosa manequim somali Iman, com quem teve uma filha e com quem vive até hoje. 30 | CULT | Setembro 2014
Bob Dylan teve uma vida sentimental bem movimentada. Nos primeiros tempos, ele e Joan Baez formavam o Casal 20 da música de protesto, mas o romance terminou em 1965. No final daquele ano, Dylan casou-se com Sara Lownds. Tiveram quatro filhos, um deles Jakob Dylan, roqueiro de moderado sucesso hoje. O casamento com Sara durou 12 anos. Então em 1986, Dylan casou-se com a cantora de apoio de sua banda, Carolyn Dennis, com quem teve uma filha. Esse segundo casamento durou a metade do primeiro. Na verdade, Bob Dylan está casado desde 1988 com a estrada: sua Never Ending Tour (a turnê interminável) completou 23 anos, em 7 de julho com a média espantosa de cem apresentações anuais. Outra característica comum entre Dylan e Bowie é a multiplicidade de estilos em suas longas carreiras. Dylan começou com o folk acústico, aderiu ao rock “elétrico” em 1965 (para indignação dos fãs), partiu para o discurso político explícito no final dos anos 1960 e antecipou a onda do rock rural em Nashville Skyline (1969), com a participação de Johnny Cash.
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DOSSIÊ
No final dos anos 1970, inves- começou explorando temas espatiu no fundamentalismo cristão, ciais com o seu “sci-fi rock”, chegando com os álbuns Slow Train Coming a inventar um alter ego, Ziggy Star(1979) e Saved (1980). A partir daí, dust, A seguir, partiu para o rock anpartiu para um estilo mais eclético, drógino (glam ou glitter rock), que gravando – em estúdio ou ao vivo marcou os anos 1970. – com uma regularidade mantida Assim como Dylan, Bowie prospor poucos de seus pares no cenário seguiu na diversidade, experimendo rock. Em 1988, fundou a banda tando estilos musicais, entre eles o Traveling Wilburys, com George “soul de olhos azuis”, o “industrial”, o Harrison, Tom Petty, Roy Orbison “adulto contemporâneo” e o “jungle”, já e Jeff Lynne, uma brincadeira séria tendo lançado mais de 20 álbuns. que deu certo, com seu multiplatiEm 1976, o próprio Dylan dirinado Traveling Wilburys Volume 1 giu um filme experimental, Renaldo chegando ao terceiro lugar entre os and Clara, um superlonga-metraálbuns mais vendidos. gem de 292 minutos. David Bowie A discografia de Dylan com- foi ator e mímico antes de se lançar preende 34 álbuns de estúdio, 13 ál- como músico. No palco, fez sucesso buns ao vivo, 58 singles, 9 álbuns da na Broadway no papel principal de Bootleg Series e 14 antologias. Bowie O Homem Elefante, em 1980.
Bob Dylan em seu estúdio na década de 80 David Bowie em ensaio fotográfico em 1983
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THE QUEEN BITCH O biógrafo Paul Trynka fala da influência de Bob Dylan sobre Bowie, seus alter egos e a revolução sexual que representou MARÍlIA koDIc
F
requentemente chamado de “camaleão do rock”, em alusão ao réptil que se camufla de acordo com o ambiente em que se encontra, David Bowie fez o procedimento inverso em sua carreira. Inventou seus próprios cenários, descartando-os e recriando-os. Longe de se ocultar na Londres pós-guerra cinza e retrógada em que nascera, criou um mundo calcado em brilhos, cores e pansexualismo. Na pele do alienígena ruivo Ziggy Stardust, do aristocrata Thin White Duke ou do astronauta Major Tom, saídos de sua máquina de personas, ele mudou não só a si mesmo, mas o mundo à sua volta – musical, artística e sexualmente. Na biografia Starman, que traz mais de 250 novas entrevistas em pouco mais de 500 páginas, o jornalista Paul Trynka, ex-editor da revista britânica Mojo e autor de Iggy Pop: Open Up and Bleed, procura mostrar quem é David Robert Jones, hoje com 64 anos e 140 milhões de discos vendidos mundialmente. Trynka reconta episódios memoráveis da infância de Bowie, época em que estudou na mesma escola de Peter Frampton e teve aulas com seu pai, Owen Frampton; levou um soco do melhor amigo, George Underwood, que causou a dilatação constante de seu olho esquerdo; e criou seu nome artístico, usado até hoje. Ao explorar a juventude do homem que se tornaria lenda, descreve sua passagem por dez bandas antes de partir para carreira-solo e conseguir seu primeiro hit, “Space Oddity”, aos 22 anos. A música, como narra no livro, foi usada pelo canal televisivo BBC durante a cobertura da chegada do homem à Lua, poucos dias após seu lançamento. Passagens obscuras, como o consumo intenso de cocaína e o declarado interesse por extraterrestres e nazismo, também são relatados, assim como seu relacionamento com o amigo e rival Marc Bolan. Igualmente, Trynka fala também de seu “período de Berlim”, entre 1976 e 1979, quando procurou curar o vício das drogas com o músico Iggy Pop, gravou três álbuns e reivindicou sua posição como o de um artista de nível mundial.
FIQUEI INTRIGADO COM O QUÃO INSTINTIVO ELE É PAUL TRYNKA C O senhor chegou a contatar David Bowie para escrever a biografia? PT Não, ele não estava envolvido com o livro – se estivesse, iria querer ler e aprovar a cópia, e eu queria estar livre para dizer o que quisesse. Lidei com ele algumas vezes quando editava a Mojo, mas sempre por meio de assistentes ou e-mail. Ele pode ser um tanto complicado de lidar, mas, quando resolve ceder, realmente cumpre bem aquilo a que se propõe. C Encontrou um David Bowie diferente do que o que você imaginava? PT Fiquei intrigado com o quão instintivo ele é. Uma enorme quantidade das coisas é feita no calor do momento. Também fiquei muito intrigado com o maníaco sexual que ele era quando adolescente. Fiquei surpreso com a quantidade de histórias de suas aventuras sexuais que os membros da banda apresentaram. C Houve alguém que tenha se recusado a dar algum depoimento sobre Bowie? PT A única pessoa com quem gostaria de ter falado e não consegui foi [o músico e produtor] Brian Eno, que estava doente no período em que fiz as entrevistas. C Qual foi a maior contribuição de Bowie no que diz respeito à revolução no conceito de sexualidade? PT Como digo no parágrafo inicial do livro, ele trouxe a androginia e a bissexualidade para a luz do dia, para o mainstream. E ele era destemido em relação a isso, enquanto outros músicos, como Freddie Mercury e Elton John, ficaram no armário.
C O senhor usa bastante a palavra “dylanesco” para descrever diversos aspectos de Bowie. Que influênCULT O que diferencia Starman de outras biogra- cias podemos detectar em sua música? fias de David Bowie? PT Bom, para começar, ouça a voz dele! Muito daquePaul Trynka Essencialmente, sou a única pessoa a fa- le som nasal vem diretamente do Dylan, por exemplo, zer um livro baseado em entrevistas novas, que vão lá “Let Me Sleep Beside You”, que é uma das mais dylanescas, atrás, no começo, e mostram como o ambicioso meni- e uma música de começo de carreira chamada “Bars of no David Jones se torna David Bowie. the County Jail”, que soa como um pastiche de Dylan. Setembro 2014 |CULT | 35
Bob Dylan, uma das refêrncias da época para David Bowie
C Alguns acreditam que, ao declarar-se bissexual, Bowie estava fazendo nada mais nada menos que uma grande jogada de marketing. Concorda? PT Ele gostava de experimentar, então foi tudo uma grande diversão. Mas, é claro, ele explorou o potencial de marketing daquilo também. C Como Bowie lidava com a mídia? Ele a manipulava? PT Absolutamente! O capítulo de abertura do livro mostra como Bowie instintivamente entendia o poder da TV, e podemos dizer exatamente o mesmo sobre outros meios, particularmente a mídia impressa. C Qual a importância do período passado em Berlim com Iggy Pop, no final dos anos 1970, para o amadurecimento de Bowie? PT O período de Berlim (Low, Heroes e Lodger) é a base da reivindicação de Bowie de ser um artista de nível mundial, um artista que teve influência em todos os aspectos da cultura moderna. As eras Ziggy Stardust e Hunky Dory tinham muitas canções de nível mundial, mas o gênero era menos original, pois muitas outras pessoas contavam com uma paleta sônica similar. Nada mais, porém, soava como a trilogia de Berlim. Você ainda pode ouvir uma enorme quantidade de músicas hoje que podem ser atribuídas a esse período. 36 | CULT | Setembro 2014
C Tem uma canção favorita de Bowie? PT Tenho muitas, mas minha favorita é “Sound and Vision”. Lembro de ficar chocado com o quão refrescante e diferente soava quando foi lançada. Uma música preferida do começo da carreira é “Let Me Sleep Beside You”. Meu período favorito é por volta de Low – embora eu também adore Hunky Dory, Scary Monsters, trabalhos subestimados como The Buddha of Suburbia e até material recente como Heathen e Reality. C E alguma de que não goste? PT Você pode perceber pelo livro que detesto as canções “Tonight” e “Never Let Me Down”. São horríveis e nada originais. “Tonight” é um cod reggae ruim como os feitos pelo The Police, grupo que teve hits anos antes, então àquela altura Bowie estava copiando pessoas que estavam ultrapassadas. E “Never Let Me Down” é uma imitação ruim de John Lennon. C Por último, teve alguma história interessante que não entrou na versão final do livro? PT Eu deparei com uma pessoa muito interessante que desapareceu por décadas. Ela me disse algumas coisas fascinantes – mas vocês terão de esperar a próxima edição do livro para descobrir. C Pode dar uma dica? PT Bom, vocês sabem que é uma mulher! Aposto que essa informação por si só possibilita que os fãs hardcore de Bowie no minímo já saibam quem é ou pelo menos adivinhem quem é.
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C Por que ele escreveu “Song for Bob Dylan”? PT Em “Song for Bob Dylan”, está dizendo que ele é o novo compositor para se observar, assim como Bob fez quando escreveu “Song to Woody”.
David Bowie um ícone do passado e do presente continua sendo uma referência até hoje para música
BOB DYLAN WHO? um dos principais críticos musicais dos euA, greil Marcus narra a carreira de seu ídolo FERNANDA PAOLA
B
ob Dylan, hoje com 70 anos, ainda era um jovem pouco conhecido. “Meu nome é nada e minha idade significa ainda menos”, ele cantou naquele dia de verão de 1963, no começo da música “With God on Our Side” (Com Deus ao nosso lado). “Não entendi o nome dele quando Joan Baez o anunciou”, conta Greil Marcus no prólogo de seu mais novo livro, Bob Dylan by Greil Marcus – Writings 1968-2010 (Escritos 1968-2010). “Ele não era igual a mais ninguém”, completa o crítico norte-americano em entrevista à CULT. O livro, ainda sem previsão de lançamento no Brasil, traz uma coleção de ensaios, crônicas e impressões sobre Dylan escritos ao longo de 40 anos e publicados em revistas como Interview, Creem, Rolling Stone e The Believer (na qual ainda hoje mantém coluna). Marcus, 66, já havia escrito Like a Rolling Stone (Companhia das Letras) e Dead Elvis: A Chronicle of a Cultural Obsession (Elvis Morto, 1991). Marcus sempre foi muito crítico em relação à obra do compositor, como no artigo sobre o álbum Self Portrait, cujo título é “What Is This Shit? (Que merda é essa?)”: “Continuo achando o disco horrível”, afirma na entrevista a seguir. CULT Em seu novo livro, o senhor conta que a primeira vez que viu Dylan ficou maravilhado. Por que o achou tão especial? Greil Marcus O que me chamou tanto a atenção foi seu comportamento, especialmente capturado em uma das músicas que cantou, “With God on Our Side”: reservado, inteligente, um forte senso de independência e o comum combinado ao diferente. Essa pessoa havia experimentado o mesmo que todas as outras, mas não era igual a mais ninguém. C Quantas vezes você se encontrou com ele? GM Eu o conheci naquela vez, se isso conta. O único outro encontro que tive com ele foi no final de 1997. Ele estava recebendo o Gish Prize for Achivement in the Arts – um prêmio para pessoas que tinham “contribuído para a beleza do mundo”. Eu fui convidado a fazer um discurso. Dylan e eu fomos apresentados e conversamos por um tempo sobre meu livro, Invisible Republic, que depois mudou de nome para The Old Weird America. Ele me perguntou em que estava trabalhando, e eu disse que havia acabado de finalizar o livro e ainda não tinha nenhum outro projeto. Ele disse: “Por que você não escreve um segundo volume do livro? Você apenas arranhou a superfície”. C Qual foi a primeira vez que escreveu sobre Dylan? GM Eu escrevi um artigo na faculdade sobre “Desolation Row”, em 1965, e outro sobre Dylan e Walt
Whitman em 1966. Minha primeira publicação sobre Dylan foi no San Francisco Express-Times, jornal underground em que tinha uma coluna de música pop entre 1968 e 1969, e o título era “The Legend of Blind Steamer Trunk”. Na semana seguinte, escrevi outro artigo chamado “Let the Record Play Itself ”, um ataque às interpretações elaboradas e biográficas das músicas de Dylan e brevemente depois outro artigo sobre Nashville Skyline (1969). Quando reli para incluí-las no novo livro, eram tão terríveis que não pude salvar nenhum parágrafo. C Em 1970, sua crítica sobre Self Portrait, de Bob Dylan, na Rolling Stone, começava com “What Is This Shit?”. Não ficou preocupado com a reação do artista? O que acha do álbum hoje? GM Não, isso nunca me ocorreu. A Mojo me pediu para reescrever sobre o álbum no ano passado. Eu ouvi novamente muitas vezes. E ainda acho que a maioria das músicas é horrível, e quase intencionalmente eram para ser. As performances que achei boas em 1970, como “Copper Kettle”, soaram ainda melhores, mais profundas e fortes, e o que achei particularmente quase insultante, como “The Boxer” ou “Let It Be Me”, ficaram ainda piores. C Qual é o melhor álbum de Dylan? E o pior? GM O melhor é Highway 61 Revisited. É absolutamente cheio de vida: ambicioso, inteligente, astucioso, um louco amor pelo ritmo e pelo estilo, o momento em que fazia sentido dizer qualquer coisa de qualquer modo, o trabalho de um trapaceiro que te desafia a acreditar em tudo o que ele diz. Dá para escutar esse álbum para sempre. O pior é qualquer um da década de 1980, de que não consigo lembrar de nada a respeito. Se você me colocasse em uma sala e me dissesse que não poderia sair até dizer o nome de uma música de Down in the Groove, eu ainda estaria lá. C O senhor diz no livro que queria “chegar o mais perto possível da música – eu queria ficar dentro dela, atrás dela, e, escrevendo sobre ela, através dela, era a minha maneira de fazer isso”. Quantas vezes precisa ouvir uma música antes de escrever a respeito? GM Às vezes, uma só. Às vezes, muitas e muitas, repetidas vezes, acompanhado de todo tipo de pessoa, normalmente com uma única música que me chamou a atenção, eu toco a música ou o álbum o dia todo. Eu me lembro de uma tarde ouvindo “I’m the Ocean”, do Neil Young, por três ou quatro horas sem parar, e ligando paras as pessoas e tocando para elas pelo telefone. Fiz o mesmo com “Far Post”, do Robert Plant, que é o lado B de um single de que não lembro o nome. Setembro 2014 |CULT | 39
FOLK SOUL POP Caetano Veloso e Rita Lee polarizaram influência de Dylan e bowie na música brasileira AleXAnDRe SAncheS
OS ALQUIMISTAS JÁ ESTÃO NO CORREDOR GAL COSTA, 1977
O
folk-soul-pop-tropicália chamava “Negro Amor” e fazia uma esquisita síntese entre o folk-rock do norte-americano Bob Dylan e o samba-soul do brasileiro Jorge Ben. A citação da letra vinha de “Os Alquimistas Estão Chegando”, do genialmente doidão LP A Tábua de Esmeralda, lançado três anos antes por Jorge. E “Negro Amor” era uma versão de Caetano Veloso e Péricles Cavalcanti para “It’s All Over Now, Baby Blue”, composta e lançada por Dylan em 1965. Caetano estava então constatando o que teria sido o óbvio para qualquer ouvinte mais observador, desde seus primórdios, em meados dos anos 1960: o rock folkeado de Dylan fora desde sempre uma das principais referências poéticas, se não propriamente musicais, para o folk brasileiro tropicalista de Caetano. Surgido como cantor de folk tradicional, Dylan envolveu-se em confusão a partir de 1965, quando passou a sugar referências dos Beatles, dos Rolling Stones e do rock em geral, colocando, por exemplo, guitarras em sua música, em lugar dos violões habituais do folk. Não foi perdoado pelos artistas mais tradicionalistas do gênero.
Os fundamentos eram os mesmos: para os adversários, as guitarras eletrificadas iriam acabar com a “pureza” do folk, nos Estados Unidos, ou da nascente MPB universitária, aqui no Brasil. O inimigo oculto por trás das guitarras era o sucesso comercial avassalador do yeah yeah yeah dos Beatles ou do iê-iê-iê de Roberto Carlos e sua corte, que deixavam tradicionalistas para trás, comendo poeira. Dylan encarnou a modernização pós-roqueira lá fora, causando Chico, seja ou não por ironia encolhimento em carreiras folk. Aqui, o mesmo conflito tomou do destino, era menos politizado feição de guerra entre “nacionalis- em seus primeiros anos profissiotas” e “entreguistas”. Elis, Geraldo nais, mas, antes da eclosão da troVandré e Edu Lobo combatiam a picália, a massa emepebista cominvasão imperialista de artistas que punha e gravava vários protestos, faziam substituição de importa- de Edu Lobo a Gilberto Gil, de ções, tivesse o fenômeno industrial Maria Bethânia a Nara Leão, de o nome de jovem guarda ou tropi- Vandré a Caetano Veloso. Este cália. Embate parecido acontecera último cuspiu fogo nas patrulhas no final dos anos 1950 com a bossa ideológicas com “Odara” (de 1977) nova, mas, exceto o crítico marxis- e polemizou com as esquerdas inúta José Ramos Tinhorão, na se- meras e inúmeras vezes, mas é até gunda metade da década de 1960, hoje visto como artista engajado e ninguém mais parecia se importar autoridade credenciada a palpitar com a influência “ianque” do jazz sobre todo tipo de assunto seja político, social, econômico, etc. na nossa bossa. Houvesse ou não relação de Havia outra semelhança entre Dylan, Caetano e demais moder- causa e efeito entre uma coisa e nizadores, no hemisfério norte ou outra, a vitória das guitarras, aqui no sul. Todos haviam se iniciado como lá, correspondeu à derrona música prezando e praticando cada da música de protesto como algo que se chamava “protest song”, era praticada nos anos 1960. Hoje lá, e foi literalmente traduzido aqui rotulam-se canções politizadas de como canção de protesto. Dylan foi “chatas” a torto e a direito, como se tido como um bardo politizado até essa fosse uma inevitabilidade desmuito tempo depois de ter deixa- de que o mundo é mundo. do de praticar as canções políticas contundentes dos anos de ascensão, como “Masters of War” (1963), “The Times They Are A-Changin” (1964) e “Chimes of Freedom” (1965), entre inúmeras outras.
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NASCE UMA RAINHA Biรณgrafo diz que Freddie Mercury criou um personagem distante do real e que o Queen nรฃo teria espaรงo hoje DAnIel SIlVeIRA
Foto de domínio público
Freddie Mercury no auge de seus sucesso na banda
U
m dos personagens mais marcantes da história do rock mundial foi a invenção de um jovem tímido de Zanzibar, na costa da Tanzânia, e que sonhava em se tornar uma “lenda” e que usava a afetação no palco como escudo para sua insegurança. A descrição de Freddie Mercury, líder do Queen morto em 1991, é feita por Mark Blake, autor de Is This the Real Life? The Untold Story of Queen, a recém-lançada biografia do grupo britânico que vendeu mais de 300 milhões de discos. Segundo Blake, Mercury não era autêntico, mas o resultado da ambição de Farrokh Bulsara, nome verdadeiro do cantor. A atenção dada a seu personagem, diz Blake, fez com que Brian May e Roger Taylor, guitarrista e baterista da banda, ficassem ofuscados e não recebessem o devido crédito por sua contribuição no Queen. Editorchefe das revistas Mojo e Q, Blake tem 46 anos e é autor também de um livro sobre o Pink Floyd. Passou dois anos pesquisando e fez mais de cem entrevistas para publicar o livro sobre a banda. Para ele, o Queen é fruto da era de ouro da cultura pop. Na virada da década de 1960 para os anos 70, defende, havia uma grande criatividade no ar, “uma época em que as coisas eram feitas pela primeira vez”, diz. David Bowie, Pink Floyd e Led Zeppelin foram algumas das bandas que explodiram naquela época, assim como o Queen, e que transformariam a cultura pop global. Na cultura atual, diz Blake, a marca do Queen continua forte, e evidência disso é o fato de a personagem mais popular, Lady Gaga, ter tirado seu nome de uma música da banda, “Radio Gaga”. Leia a seguir os principais trechos da entrevista que Blake concedeu por telefone à CULT.
CULT Sua descrição do ambiente em que o Queen surgiu mostra uma realidade muito criativa para a música pop, com o apogeu de nomes cruciais, como David Bowie, Led Zeppelin, Jimi Hendrix, Pink Floyd. Qual a relevância desse momento, na virada da década de 1960 para os anos 70, para a cultura pop? Mark Blake Foi a era de ouro da cultura pop. Cada geração deixa sua marca, é verdade, mas, por causa das oportunidades e da criatividade daquela época, não é possível negar que foi um momento único. Foi uma época em que muitas coisas estavam sendo feitas pela primeira vez. Foi também naquele momento que os álbuns passaram a se tornar mais relevantes, substituindo a importância dos singles. O Queen sempre teve singles, mas os grupos da época começavam a investir em grandes álbuns. C Um grupo como o Queen seria possível no cenário dos dias de hoje? MB Não, a banda não teria existido se tentasse surgir agora. Acho que as gravadoras lançariam Mercury sozinho e, além disso, mexeriam muito na música dele. O Queen não teria nenhuma liberdade para criar agora, como teve em sua época. Nos anos 1970, as gravadoras ganharam muito dinheiro ao deixar as bandas fazerem aquilo que quisessem e se desenvolverem em seu próprio tempo – foi isso o que fez o Queen dar certo. Eles não tiveram nenhum grande sucesso até o terceiro ou quarto disco. Atualmente, o que acontece é que se a banda não dá nenhum resultado de um grande sucesso depois do segundo disco no máximo ela é deixada de lado. Portanto o Queen não sobreviveria se surgisse nos dias de hoje. Setembro 2014 |CULT | 47
DOSSIÊ O LEGADO DO QUEEN CONTINUA SENDO CONSTRUÍDO MARK BLAKE
C Qual a influência do Queen sobre o pop e o rock de hoje em dia? MB Pode-se ouvir sua influência em muito do rock e do pop de hoje em dia. O fato de um dos maiores nomes do pop atual ser Lady Gaga, que tirou seu nome de uma música do Queen, é uma demonstração muito clara disso. Mas também em sua sonoridade é possível detectar a influência da banda, filtrada ao longo dos anos. Os grupos atuais cresceram ouvindo Queen, e é impossível ignorar completamente isso. Muita coisa mudou desde então na forma de produzir e consumir cultura. Tenho 46 anos e, quando era jovem, descobria novas bandas frequentando lojas de disco. Eu não sabia qual era a aparência dos músicos do Pink Floyd ou do Led Zeppelin, os grupos não apareciam na TV e não havia internet. Isso criava uma relação mais próxima com as bandas, com o sentimento de descoberta pessoal. Hoje tudo está disponível, e é difícil manter qualquer coisa em segredo. C Antes de o Queen existir, eles abriam shows para o Pink Floyd, banda que foi tema de seu livro anterior. É possível comparar os dois grupos? MB Apareceram mais ou menos na mesma época, mas são duas bandas completamente diferentes. Acho não ser possível ouvir influência do Pink Floyd na sonori48 | CULT | Setembro 2014
dade do Queen, apesar de saber que Brian May é fã da banda. Talvez se possa dizer que o Pink Floyd tinha um interesse mais musical, em criar algo de novo, enquanto o Queen, especialmente Mercury, estava mais interessado em receber atenção e se tornar famoso. C A morte de Mercury tornou-se um dos momentos mais marcantes da história do rock e também um símbolo da luta pelos direitos dos homossexuais e da luta contra o HIV. Qual a relevância histórica de Mercury? MB Ele tornou-se relevante em muitas dessas coisas depois de morrer. É importante lembrar que, em vida, ele nunca defendeu nenhuma causa abertamente. Nunca falou sobre a defesa dos direitos dos homossexuais, por exemplo, ou nada assim. A última vez que ele subiu ao palco com o Queen, ele mal tinha 40 anos. Nunca o vimos ficar velho, e não sabemos o que teria acontecido se ele ainda estivesse por aí. Teria sido interessante ver se ele teria aberto mais sua vida pessoal, defendido causas. C O senhor diz que, quando ainda era adolescente, Mercury “previu” que viveria apenas 45 anos e que se transformaria em uma lenda do rock. O senhor também relata como ele passou de um jovem tímido de Zanzibar para um dos personagens mais espetaculares da cultura pop. Como isso foi possível? MB Ele era muito ambicioso. Em todas as vezes em que conversei sobre isso com Brian May e Roger Taylor, eles sempre falavam sobre o quanto Mercury se transformou desde que o conheceram. Falam sobre a persona que inventou. Ele não tinha voz no começo da carreira, por exemplo, mas treinou tanto que acabou se tornando um grande cantor. O que possuía desde o princípio, no palco, era uma grande confiança, apesar de ser tímido fora dele. Ele era um caso de pura ambição e autoconfiança. C Então ele não era autêntico, certo? MB Não, não era autêntico. Claro que havia traços do Mercury real no personagem, mas o personagem era muito diferente de quem ele realmente era.
Foto de domínio público
C Quando relata o surgimento da banda, você diz que Jimi Hendrix teve muita influência sobre ela, especialmente sobre Mercury, mas dá a entender que ela acabou por ofuscar Hendrix. Qual o lugar do Queen na história do rock? MB Há uma grande diferença no legado de Queen e de outros nomes importantes, como Hendrix. O Queen foi gerenciado por Jim Beach, que foi muito competente em fazer com que a banda ganhasse muito dinheiro. É por causa dele que a banda continua onipresente até hoje, décadas após a morte de Mercury. O legado do Queen continua sendo construído, enquanto outras bandas já extintas ficaram presas ao passado. Até hoje, há uma estátua de Mercury no centro de Londres, como parte de um musical que leva o nome de uma música da banda (“We Will Rock You”).
Freddie Mercury conduz o Queen à monarquia do rock em show no estádio de Wembley
RETRATO DO ARTISTA
TERRITÓRIO MUTANTE A poesia de Marcelo Ariel
Foto: Maria Helena Tavares
PoR clAuDIo DAnIel
M
arcelo Ariel é um estudioso de tradições filosóficas do Oriente, como o sufismo, o budismo, o taoísmo, e um leitor atento de autores considerados herméticos, como o romeno Paul Celan, o inglês William Blake e o português Herberto Helder, com quem compartilha o intenso lirismo amoroso e uma visão herética da espiritualidade, que celebra o corpo, a vida e o estar no mundo, com toda a sua beleza e crueldade. A Palestina visitada por Arcanjos O autor, que vive em Cubatão, cidade industrial da Baixada Santista, O canto dos pássaros mais alto pertence, cronologicamente, à chado que o barulho das explosões mada Geração 90, mas começou a publicar os seus poemas em livro Bancos quebrados no lugar de ossos só na década seguinte, sempre por pequenas editoras: Os livros, Me Soldados com flautas no lugar das armas deitados nos enterrem com a minha AR15 que campos debaixo da sombra das árvores saiu em 2007 pela Dulcineia CaDifícil será distinguir quem está flutuando tadora, numa bem cuidada edição de quem está caminhando Judeus, árabes e artesanal, e o Tratado dos anjos afociganos misturados festejando o fim das fronteiras entre o gados saiu em 2008, pela Letra SelEstado como obra de arte e o Éden reencontrado vagem. Nessas suas obras, o poeta retrata um duro cotidiano de muitas chacinas, favelas incendiadas 56 | CULT | Setembro 2014
e desastres como o conhecido episódio de Vila Socó, em 1984, provocado pelo vazamento numa das tubulações da Refinaria Artur Bernardes, que destruiu quinhentas moradias populares e causou centenas de mortes. No poema Vila Socó libertada, por exemplo, o autor escreve: “(depois do fogo)/ no outro dia/ (sem poesia)/ as crianças (sub-hordas)/ procuram no meio do desterror/ botijões de gás/ para vender”. Em outra composição, intitulada “O soco na névoa”, Marcelo Ariel, utilizando Será o Paraíso ou Isto não é um Salmo algumas técnicas de closes, cortes e montagens da linguagem narrativa Ó Energia destilada do invisível nadando em círculos do cinema, escreve: “No jardim es- no visível, sereno o esqueleto a visita quizocênico,/ Nas balas perdidas,/ Ó pano do sono acordado este sudário chamado ‘eu te No perfume/ das granadas/ explo- amo’ deixa marcas telegráficas no corpo, dindo no bar/ das Parcas:/ Num Eclipse-invertido/ seguido de uma no âmbar de tua face, no tempo e em suas chuva fina por dentro/ do olhar/ entranhas onde miríades de chamas cantam no corpo da criança recém-esquecida/ nesse as cinzas da infância bar-iceberg para o ‘Bateau Ivre’ no e os olhos dominados por essa névoa que do Nada até sangue/ dos amantes-kamikazes”. a Luz sobe
INSÓLITAS SENSAÇÕES ‘Se tens razão, usa somente o coração’ canta o arcoE PAISAGENS íris branco dentro da mão até que sem pele e sem O desenho ácido da violência urossos o silêncio acorde nosso verdadeiro corpo de bana, porém, é apenas uma das fa- sonho, horizonte e pó de ouro cetas da obra de Marcelo Ariel. O livro Retornaremos das cinzas para Nas cidades vazias dominadas pelo azul-breu uma flôr sonhar com o silêncio reúne boa par- ajudará a não-pensar estes que não verão mais com os te da produção do poeta e é uma olhos mas através dos olhos excelente oportunidade para mer- Te saúdam gulharmos nesse universo de insólitas sensações e paisagens, cons- Ó Fronteiras entre os países dissolvidas por um beijo. truídas por um hábil artesão que Sim, José sonhou antes com esta migração da voz dos sabe explorar a dimensão sonora, profetas para o centro de nossa leveza olvidada ser ampliado até alcançar a compaixão do próprio visual, quase tátil, das palavras. O ar servindo de escada para a luz do nosso olhar depois uso dos travessões e dos cortes disso o fim da economia a extinção das categorias sintáticos, além da estranheza com sombrias: A guerra, o relógio e o dinheiro que revestem o discurso, confere agilidade ao ritmo prosódico das Será melhor do que o Paraíso e no fundo do nosso linhas e cria ideias pela inusitada ser sempre soubemos disso porque podemos pensar associação de termos. O poeta não com falso triunfo e pesar e profundo sorriso que deseja apenas despertar uma pla- nenhum de nós estará lá nejada reação emocional ou sensorial no leitor, mas também convidá-lo à reflexão, à cumplicidade intelectual capaz de reconstruir o poema, descortinando outras possibilidades de leitura e interpretação. Suas imagens poéticas são altamente sugestivas, aproximando-se tanto da tradição barroca quanto do simbolismo e do surrealismo. E dos limites das coisas e dos corpos, as imagens luminosas como ‘osso do oceano’”. Setembro 2014 |CULT | 57
MARCIA TIBURI
esPíRito aDolesceNte Da revolução à conservação: a estética do fingimento PoR AlcIR PécoRA alcirpecora@revistacult.com.br
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adolescência é uma fan- sus Cristo de uma geração. Vítima do ideal contasia e como tal necessi- tracultural que resultou na ideologia da conserta de uma hermenêutica. vação de que não há saída para os descontentes Muito se falou sobre a inven- além do suicídio. O Kurt Cobain é também ele ção da infância desde a pesqui- a invenção, mito tornado imagem que podesa de Philippe Áries em História mos imitar todos os dias. Mito que autoriza à Social da Criança e da Família. depressão como uma saída existencial tornaRaramente se fala da invenção da romântica, irônica, disfarçando o mal-estar da adolescência. A novidade é da cultura em estética musical. O paradigma a ideia de invenção que até os publicitário do espetáculo não poupa nem um dias de hoje não foi suficiente- pobre jovem que morreu deprimido. A adolesmente assimilada pela cultura cência é um sistema. Com seus códigos e pacotidiana acostumada a pensar drões, ela compreende também uma estética que de um modo conservador. Tam- tem sua moral e, em sua base, um fundamento. bém a adolescência inventada O fundamento da adolescência não se sustenta para se contrapor ao ideal “a sem o tempo histérico da juventude à mostra que vida como ela é” tornou-se pode, apenas por isso, por poder ser imitada, por a norma e assim perdeu todo ser também vivida. seu poder revolucionário. A crença na adolescência se dá pelo discurso A adolescência foi neutrali- e, como tal, envolve efeitos práticos. Todos parzada. O ideal que se fez como ticipam dele. Até crianças pequenas são capaimagem contracultural foi re- zes de se autorreconhecerem como pré-adolesduzido à norma conservadora centes. São capazes de esperar pelo tempo da plena dos efeitos práticos que “adolescência”. Moças afirmam que homens são vão do consumismo à depres- eternos adolescentes. Homens esperam que musão epidêmica nestes tempos lheres mantenham o visual adolescente. Contarque, sem medo, posso chamar do Calligaris escreveu um belo livrinho chamado de sombrios. Assim podemos A adolescência no qual faz um uso adequadísdizer que a adolescência é uma simo da expressão “moratória” primeiramente narrativa e um mito destes tem- usada por Erik Erikson no final dos anos 1960 pos. Qual seria a base profunda para designar o “tempo” da adolescência como da adolescência que, aflorada, vivência de uma crise. O peso da adolescência nos faria ver além do mito? como estética e moral em nossa cultura define Confesso que também eu, a vida inteira vivida como moratória. No entannascido no tempo do que cha- to, a covardia adulta que inventa a adolescência, maram de geração X, tempo bane o jovem para exorcizar o velho, mantendo de desespero/descaso/ausência a suspensão na linguagem, constrói um espaço de sonho, que não cabe ques- de exceção, uma espécie de estado de sítio intionar aqui, também eu escuto finito no tempo. Vivemos sem sentido, em crise “Smells like teen spirit” de Kurt econômica, ecológica e política, presos em um Cobain e lastimo seu suicídio. limbo entre o que fomos e um devir sempre teNão é possível deixar de ver mido. A adolescência como ideal é o que nos que também ele se tornou o Je- ajuda a fingir que “a vida é como ela é”. 58 | CULT | Setembro 2014
LIVROS CULT este mês livros culT traz uma matéria sobre o livro do fotográfo Daryan Dornelles, Retratos Sonoros, que faz um painel da cena da música brasileira atráves de fotografias poéticas. Em lançamentos, a CULT indica leitura sobre o pensamento, a filosofia e a psicanálise
LIVROS
RETRATOS DA MPB
livro do fotográfo Daryan Dornelles faz um painel de cena musical brasileira, com imagens que vão fundo na personalidade de alguns de seus principais expoentes PoR gAbRIelA SouTello
N
lo musical diferente, seja jazz ou música baiana. Mas, o fotógrafo adverte, não se trata de uma tentativa de separar as fases da música. É apenas um livro autoral de fotos, aquelas de sua preferência. Além do talento que dedica aos seus cliques, o fotográfo é apaixonado por música – tem muito mais de oito mil discos em sua casa – e faz dela tema recorrente em seu cotidiano. O fotógrafo assina várias capas de disco e também já produziu pelo menos duzentos e cinquenta retratos de personagens da música brasileira. Antes de fazer as fotos, Dornelles pesquisa o trabalho dos artistas e procura ouvir toda a música que ele já produziu, com o sentido de conhecer e refletir sua personalidade nas lentes. São essas impressões que despontam no livro, formando um painel segmentado do Brasil musical. Fotos de divulgação
ão há cronológica nem biografias. Muito menos se consegue distinguir alguma especificidade musical ou identificações marcantes entre os personagens escolhidos. Ainda assim, o livro Retratos sonoros, do fotógrafo Daryan Dornelles, surge como representação planificada da música brasileira. Cerca de cento e cinquenta e quatro imagens foram selecionadas para integrar a coletânea. Entre os retratados estão Paulinho da Viola, Martinho da Vila, Tiê e Karina Buhr, tão contrastantes quanto Mr. Catra sem camisa e Chico Buarque de terno vermelho. Também estão lá o rodado Luiz Melodia e o novato Pélico, fotografado dos joelhos para cima, com folhas caindo sobre seu corpo. Acada página, os rostos capturados pela câmera de Daryan dão forma a um momento ou esti-
RETRATOS SONOROS Doryan Dornelles Editora Sonora 192 págs. - R$ 140
Tom Zé em foto para o livro Retratos Sononoros de Daryan Dornelles
CONVERSA COM O AUTOR CULT De que maneira a música e a imagem podem se misturar nessa história? Doryan O mais importante, principalmente nas músicas, são as composições e os intérpretes, mas as imagens sempre estiveram diretamente associadas a elas. Isso está na história dos maiores artistas, como os Stones, por exemplo, na história da Madonna, do George Michael e também na história dos Beatles, à época dos terninhos e motocicletas. Há uma programação visual para a banda ou o artista e um quê de imagem em tudo por trás do som. A imagem é um elemento importante para a própria popularização da música.
C O que te inspira nos rostos? D Tem rosto que tem histórias. Caetano tem história, Gil, Lulu e Dominguinhos têm história. Tanto o artista quanto eu mesmo daqui a pouco vamos embora, mas uma das motivações é a de que o retrato está ali para ficar. Outro elemento motivador é imaginar que um artista novo vai crescer. Além de estar disposto a aparecer de outra maneira, o novo está mais cru para as coisas. Essa crueza é interessante porque pode ser comparada com a crueza do primeiro disco do artista e assim com o tempo podemos comparar o que era e como ficou. E isso é o que mas me inspira para realizar tais projetos.
WELINGTON ANDRADE
o cavalheiRo Do escâNDalo A história de oscar Wilde, o polêmico escritor inglês PoR WelIngTon AnDRADe welingtonandrade@revistacult.com.br
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mbora Wilde seja lembrado como o homem que escandalizou a Inglaterra e meio mundo civilizado pela sua escancarada homossexualidade, sua reputação como escritor está presente em obras-primas do teatro de comédia como O leque de Lady Windermere e A importância de ser prudente e no seu único romance, O retrato de Dorian Gray, que é uma versão mais refinada de O médico e o monstro, de Robert Louis Stevenson. Nascido em Dublin, Oscar Fingal O’Flahertie Wills Wilde, e seus pais já não eram dos mais convencionais. Ainda criança, sua mãe insistia em vesti-lo com roupas de menina, pois queria uma filha. Em Oxford, Wilde escandalizou os professores pela atitude irreverente para com a religião e foi ridicularizado por suas roupas excêntricas. Colecionava penas azuis e de pavão, suas calças de veludo à altura do joelho chamavam muita atenção. Formou-se em 1878 e se mudou para Londres. Com o lema de “arte pela arte”, tornou-se o porta-voz do esteticismo, o movimento que defendia a primazia do estético sobre tudo na vida. Trabalhou como crítico de arte, fez conferências nos Estados Unidos e
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no Canadá e morou em Paris. Em 1884, Wilde se casou com Constance Lloyd e, para sustentar sua família, editou a revista Woman’s World. Em 1888, publicou O príncipe feliz e outras histórias, contos de fadas escritos para seus dois filhos. O Retrato de Dorian Gray foi o livro seguinte, de 1890. O casamento com Constance acabou em 1893. Wilde encontrou seu Dorian Gray verdadeiro alguns anos antes, Lord Alfred Douglas, atleta e poeta, que virou o amor da sua vida. Publicado inicialmente pelo Lippincott’s Magazine, em 1890 e, com seis capítulos a mais em forma de livro, em 1891, O retrato de Dorian Gray tem algumas semelhanças com a vida de Wilde. Em Oxford, ele se tornou amigo íntimo do pintor Frank Miles, e do esteta homossexual Lord Ronald Gower. Ambos aparecem representados em Dorian Gray. Na história, como se sabe, o cavalheiro vitoriano Dorian vende sua alma para manter a beleza e a juventude; o tentador é Lord Henry Wotton, que vive pelo prazer amoral. Dorian começa a fazer maldades, e embora conserve sua juventude, o retrato envelhece e registra todos os malefícios, mostrando uma imagem monstruosa do mesmo. Embora casado e pai de duas crianças, muito se falou sobre a vida pessoal de Wilde. Seus tempos de fama acabaram quando sua ligação íntima com Alfred Douglas levou a um processo por homossexualismo. Ele foi condenado a dois anos de trabalhos forçado. Após ser libertado em 1897, Wilde adotou o nome de Sebastian Melmoth. Escreveu “A balada do cárcere de Reading”, revelando as condições desumanas da prisão. Diz-se que, no seu leito de morte, Wilde se converteu ao catolicismo. Morreu de meningite cerebral 1900, falido, em um hotel barato de Paris, aos 46 anos.
CARTAS
DOSSIÊ: TEORIA QUEER Uma edição preciosa nesses tempos de muita gritaria e pouca reflexão. Laerte Coutinho O erro já está na capa: em vários países não capitalistas também há homofobia, lesbofobia, transfobia, bifobia, machismos e normatização de corpos. Não é apenas no capitalismo que isso ocorre. Se fosse, seria fácil: bastava fugir para países socialistas e comunistas e tudo estava resolvido. Preconceitos e controle de corpos estão muito além de ideologias dicotômicas. E além de frágil proposta de Teoria queer, que cada indivíduo tenha o direito de definir a sua identidade, se assim quiser, e não negá-la só por que assim deseja uma teoria academica e nada além de acadêmica. Ricardo Rocha Aguileiras Recomendamos a leitura. Dossiê muito bem feito e singular para uma revista voltada ao grande público. Artigos de Richard Miskolci, Berenice Bento, Karla Bessa e entrevistas com Guacira Lopes Louro, Laerte e a socióloga argentina Letícia Sabay. Querentes - Núcleo de Pesquisa em Diferenças, Gênero e Sexualidade.
Excelente dossiê, para ficar claro de uma vez que corpo e sistema têm tudo a ver. Você nasceu do papai e da mamãe, mas o resto foi feito pela sociedade. Edelcio Mostaço Recomendo a leitura dessa edição da Revista CULT com um dossiê especial sobre Teoria queer, com um ótimo texto do Richard Miskolci. E também um bela contribuição do Reynaldo Damazio discutindo a obra do escritor Julio Cortázar, dentre outras coisas que valem muito a pena! Renan Quinalha Já tenho e posso dizer que adorei. Indico para quem se interessa pelas questões de gênero, sexualidade e identidade plurias. Margarete Almeida Por esse Dossiê é possivel ter uma visão eral e mais didática sobre a Teoria queer e, ainda, percebese os seus limites. No Brasil tem muita gente enganada e caindo num certo teoricismo confuso e sem rumo. Vira um modismo sem teoria e sem base empírica. Romero Venancio
Já comentei sobre a matéria, que por sinal, está ótima, com artigos e depoimentos riquíssimos. e interessantes. Só me estranha o título usado na capa: “genero sexual”. De onde os editores tiraram um Frankenstein desses? Letícia Lanz O tipo de tema que não se vê em muitas capas de revista por aí. Todos preferem passar despercebido. Parabéns à Revista CULT. Olavo Barros Teoria queer talvez devesse se chamar teoria da cidadania: “Libertas quae sera tamen”. Claudio Cardoso de Paiva Me pergunto se não botaram isso na capa para os desavisados não confundirem com gênero textual ou literário. Houve até uma discussão na minha universidade sobre assemelhanças entre os dois tipos de gênero. Arthur de Oliveira Finalmente a idéia de se pensar em gênerode forma diferente começa a se popularizar no Brasil! Maria Miranda Setembro 2014 |CULT | 63
OFICINA LITERÁRIA
SILÊNCIO A arte de Salvar o Silêncio A arte de salvar – – o Silêncio é inaudível – e deve ser terrível o fato de não podermos falar sobre o silêncio – Salivar a interrupção do som perdoar a ausência renunciar o prazo antes do limite do agora. Abandonar o sinônimo o redemoinho do sonho Pausa Cale-me Calejei-me ao diagnosticar o parto antes da concepção O silêncio não se salva se faz nascendo suspenso a todo momento Caio Garrido, 36 anos, é psicanalista e escritor em Riberão Preto, São Paulo
A Oficina Literária é uma seção exclusivamente voltada para a publicação de inéditas. Os interessados em publicar seus textos – que serão avaliados pela equipe da revista e não devolvidos – devem enviar seus originais por email: oficinaliteraria@revistacult.com.br ou pelo correio para: Revista CULT – Oficina Literária, Praça Santo Agostinho, 70 – 10º andar – Paraíso – São Paulo, SP – CEP 01533-070. Os textos devem ser encaminhados inseridos no corpo da mensagem, e não anexados. O tamanho não pode ultrapassar 3 mil caracteres com espaços. O envio de qualquer trabalho para a Oficina Literária implica o reconhecimento do direito não exclusivo de reprodução da obra pela revista. A autoria e o conteúdo dos textos são de responsabilidade única e exclusiva do participante, devendo ele observar a legislação autoral vigente. Ao encaminhar o trabalho, os interessados devem fornecer os seguintes dados: nome completo, idade, profissão, endereço, telefone para contato e email. A Editora Bregantini, ao receber os inéditos, está autorizada pelos autores e publicar o material, de forma integral ou resumida, na CULT.
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