*culturas indígenas CULTURAS INDÍGENAS 19*
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TEXTOS DO BRASIL
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prefácio Uma das primeiras lições que qualquer criança brasileira aprende nas aulas de História é que a sociedade brasileira foi formada pela mistura de três raças: o branco, o negro e o índio. Este amplo reconhecimento da ancestralidade indígena, infelizmente, não implica proporcional conhecimento da riqueza cultural dos povos indígenas e de sua transversal influência no que hoje reconhecemos como cultura brasileira. Segundo dados da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), no Brasil vivem mais de 800 mil índigenas. Eles estão distribuídos entre 683 Terras Indígenas e algumas áreas urbanas. Há também referências a 77 grupos indígenas não contatados, das quais 30 foram confirmadas. Estima-se que hoje, no Brasil, existam cerca de 180 línguas indígenas – número que exclui aquelas faladas pelos índios isolados, cujas línguas ainda não puderam ser estudadas e conhecidas. A riqueza das culturas indígenas no Brasil é enorme. Com a presente publicação, o Ministério das Relações Exteriores, em parceria com a FUNAI, pretende celebrar a riqueza cultural dos povos indígenas do Brasil. Não se tem qualquer pretensão de exaurir o tema, mas apenas de dar a conhecer, em especial ao leitor estrangeiro, aspectos pontuais das culturas indígenas de nosso país e de sua herança na cultura brasileira. O viés escolhido para a publicação é cultural, mais que antropológico. Alguns artigos abordam aspectos históricos, como os indígenas na ótica dos primeiros jesuítas ou a emocionante saga dos irmãos Villas Boas. Outros apresentam aspectos das culturas indígenas em si, como sua arte e sua arquitetura. Artigos como o dedicado ao projeto Vídeo nas Aldeias ou à experiência literária em terras indígenas exemplificam a possibilidade de que o contato com elementos estranhos à cultura indígena possa, não conspurcar esta cultura, mas ajudar a preservá-la. A publicação apresenta também artigos que analisam aspectos da ampla influência indígena na cultura brasileira, e como os índios foram – e são – percebidos por esta mesma cultura. A herança indígena é mais um traço cultural a irmanar o Brasil às demais nações sul-americanas. Em maior ou menor proporção, a identidade nacional de todos os países da América do Sul foi moldada também por sua herança indígena. O leitor sul-americano certamente reconhecerá traços comuns entre os indígenas brasileiros e os dos países vizinhos. Conhecer a cultura indígena, na América do Sul, é entender a si mesmo e sua ancestralidade. É nessa jornada que os leitores são convidados a embarcar.
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Os índios na ótica dos primeiros Jesuítas Filipe Eduardo Moreau
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O Brasil e a sua culinária indígena Mártin César Tempass
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uma escola indígena de cinema Vincent Carelli
Todo dia era dia de índio representações de indígenas em letras de canções brasileiras Lucia Maria de Assunção Barbosa & Fernanda Tonelli
A Constituição de 1988, o Ministério Público Federal e os direitos dos povos indígenas no Brasil Robério Nunes dos Anjos Filho
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As artes indígenas: o cotidiano na ordem cósmica Lucia Hussak van Velthem
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Pindorama modernista influência indígena no Art Déco brasileiro Márcio Alves Roiter
Experiência literária em terra indígenA Maria Inês de Almeida
A saga dos irmãos Villas BoAS Um relato em imagens
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Arquitetura e culturas indígenas no Brasil: tecnologias apropriadas José Afonso Botura Portocarrero
Cenário contemporâneo da educação escolar indígena no Brasil Gersem Baniwa
Mario Vilela. Acervo FUNAI.
Os índios na ótica dos primeiros jesuítas Filipe Eduardo Moreau
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cultura letrada no Brasil começa pela Carta de Caminha (1500), já chamada de nossa “certidão de nascimento”. Nela estão descritos índios tupiniquins do sul da Bahia, com sua nudez, beleza e inocência edênica vistas com perplexidade e encantamento: teriam todos “[...] bons rostos e bons narizes, bem feitos... bons corpos... tão limpos, e tão gordos e tão formosos, que não pode mais ser... tão rijos e tão nédios... todos tão dispostos, tão bem feitos e galantes com suas tinturas.” A descrição das mulheres, também deslumbrantes, chega a sugerir fantasias sensuais nos portugueses: “[...] ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem moças e bem gentis... e suas vergonhas tão altas, tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de nós a muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha”. Foi muito observada “[...] uma daquelas moças... tão bem feita e tão redonda, e sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres em nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como a dela”. Destaca-se ainda em Caminha (como antes em Colombo, depois em Vespúcio, Léry e mesmo Gândavo) o aspecto luminoso dos índios. Essa admiração desaparece nas épocas seguintes, quando eles deixam de ser novidade e são observados mais pela selvageria e inutilidade, seja como mão de obra escrava (substituindo os chamados “resgates”, troca de alguns produtos por matéria-prima e trabalho), seja para alianças militares, seja na formação de um rebanho cristão (caso em que a comparação com animais era usual e não exclusiva dos índios; mas já na carta de Caminha eles estão comparados a aves coloridas e animais de carga). Como não poderia deixar de ser, a nova 1. Meninos tembé. Foto Acervo Museu do Índio. 1
terra e seus habitantes constituem a principal referência dos textos escritos no começo do século XVI, passando-se depois a abordar a intervenção europeia, as primeiras atividades econômicas e o conflito das civilizações. Tudo isso mostra que o vínculo estabelecido entre os povos nativos (de uma terra já habitada e, portanto, descoberta) e seus invasores europeus – cada qual com conhecimentos e costumes desenvolvidos de modo independente por milhares de anos – é o principal evento de nossa formação. Os documentos produzidos na época, dando início ao nosso processo histórico, possuem um alto grau do que a antropologia moderna chama de “etnocentrismo”, isto é, de descaso pela diferença “cultural” (também esta uma palavra moderna, de raiz romana, mas que adquiriu significado atual no Iluminismo) e complexidade dos costumes alheios. No Brasil, especialmente, são raros os textos portugueses (algumas passagens em Fernão Cardim e Francisco Suarez) em que se explora a tradição oral e a cultura indígena (ao contrário do que ocorreu no México, por exemplo, com o levantamento feito junto aos índios pelo franciscano Bernardino de Sahagún). Em termos literários, destacam-se, na chamada “literatura quinhentista” produzida no Brasil, dois padres jesuítas, Manoel da Nóbrega e José de Anchieta, os primeiros a escrever obras de ficção. A primeira delas, o Diálogo do Padre Nóbrega sobre a Conversão do Gentio, foi escrito entre 1556-7, pouco depois da fundação de Salvador, primeira sede administrativa da Colônia. Com Anchieta, foi escrita toda uma coleção de poesias e autos (as primeiras peças encenadas na América portuguesa), tendo como principal referência os povos recém-
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-contatados, que os jesuítas (cerca de cem, no primeiro século) pretendiam converter. Afora as obras ficcionais e os estudos linguísticos de Anchieta (que escreveu uma Gramática Tupi), esses jesuítas produziram uma enorme quantidade de cartas que representam documentação das mais importantes sobre o Brasil do século XVI. Elas eram normalmente destinadas a um superior da Ordem, em Portugal ou Roma. As cartas “de edificação” (diferentes das “de negócios”) faziam balanços do projeto catequizador, descrevendo os povos conquistados e tratando de outras questões relacionadas à conquista e colonização (sempre relacionadas à chamada Missão). Os jesuítas tinham certa autonomia, respondendo mais a Roma que ao rei de Portugal, mas serviam a interesses da Coroa no desenvolvimento da Colônia, sendo no começo sustentados por ela. Seriam o contraponto para a dizimação desenfreada de índios praticada pelos colonos, visando preservá-los pela adaptação ao trabalho produtivo, e ao mesmo tempo aumentar numericamente a população cristã. O projeto de aldeamentos seria uma alternativa à conquista pura e simples, com a assimilação dos povos nativos à nova ordem. Nesse sentido, um dos maiores problemas foi o número crescente de conflitos com os colonos. No Brasil e no Oriente, a missão evangelizadora era instrumento da Coroa para a conquista (Nóbrega escrevia diretamente ao rei e aos governadores gerais, como se fizesse parte de um conselho administrativo) e contribuía para a expansão territorial, não se podendo dissociar Estado de Igreja: Nóbrega chegou a propor a expansão das “reduções” até o Paraguai, aumentando a jurisdição portuguesa, mas Tomé de Sousa foi contra, temendo retaliações. Sobre a “cultura” jesuítica, nunca é demais dizer que, como todas as outras, era determinada historicamente. Por maior que fosse a “luz divina”, os padres estavam presos ao conhecimento de época: a Escolástica medieval. Além de agentes da Contrarreforma, os religiosos portugueses herdaram o espírito cruzadista da guerra contra os muçulmanos pela Reconquista da Península Ibérica (711-1592). Para se ter ideia desse espírito, pode-se lembrar que antes de haver o Tratado de Tordesilhas (1494) eram bulas papais que dividiam o mundo em áreas de conquista entre portugueses e espanhóis
(com as quais o rei francês disse só concordar se lhe apresentassem o testamento de Adão). O conteúdo dessas bulas pode ser ilustrado pela Romanus Pontifex (1455), que diz: [...] concedemos ao dito rei Afonso a plena e livre faculdade, entre outras coisas, de invadir, conquistar, subjugar quaisquer sarracenos e pagãos, inimigos de Cristo, suas terras e bens, a todos reduzir à escravidão e tudo aplicar em utilidade própria e dos seus descendentes [...]
A escravidão fazia parte da cultura ibérica, reinventada (ou trazida da África) depois de séculos de sistema servil durante a Idade Média. Há muitos exemplos de documentos em que a teoria e a prática dessa escravidão se contradizem, como o regimento da caravela Bretoa (citado por Rocha Pinto), que partiu em 1511 com a ordem de “[...] defender ao mestre e a toda a companhia da dita nau, que não faça nenhum mal nem dano à gente da terra [...]”, trazendo da viagem 5.008 toros de pau-brasil, papagaios, macacos, onças e 36 escravos índios. Nesse contexto, com visão mais humanista, foi redigido o Regimento de D. João III a Tomé de Sousa (1548), definindo as prioridades do Governo Geral como “[...] servir a Deus e à fé católica” e “[...] enobrecer a terra e sua gente”. Nele também se define a missão jesuítica: catequese, proteção da liberdade dos índios, sua educação e aldeamento. O rei declara que “[...] a principal coisa que me moveu a mandar povoar as ditas terras do Brasil foi para que a gente dela se convertesse à nossa santa fé católica [...]”. Nessa época, os índios eram ainda observados no singular (“o índio do Brasil”), embora fossem muitos e diferenciados, falando centenas de línguas. Os europeus (principalmente portugueses, mas também espanhóis, franceses, ingleses e holandeses) se depararam com povos da floresta que não conheciam a escrita nem o uso do ferro, ocupando a região de modo quase homogêneo. O que se sabe de nossa densidade populacional anterior à conquista se deve mais aos estudos modernos de arqueologia, genética e linguística. As estimativas variam muito: chegou-se a falar em 200 mil e hoje se acredita em cerca de 5 milhões de indivíduos (como defendeu Darcy Ribeiro), contando o atual território brasileiro. Pelas fontes literárias do século XVI, sabe-se
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2. Grupo de índios kuikuru no interior de casa indígena. Foto Acervo Museu do Índio. 3. Grupo de índias kuikuru preparando farinha de mandioca. Foto Acervo Museu do Índio.
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4. Índio kuikuro enfeitado com capacete. Foto Acervo Museu do Índio. 5. Índio kuikuro enfeitado com colar. Foto Acervo Museu do Índio.
pouco. Havia inúmeras aldeias, mas também grande mobilidade social, intensificada durante a invasão. Na faixa litorânea predominavam os grupos de língua tupi-guarani, que deram as principais informações a portugueses e franceses. Eles eram semelhantes na língua e organização social, ocupando quase toda a faixa do litoral, da Amazônia à bacia do Prata (os guaranis do atual Rio Grande do Sul ao sul de São Paulo, os tupis de lá até o Pará), com pontos de interrupção apenas na foz do rio Paraíba (goitacazes), no sul da Bahia (aimorés) e oeste do Ceará (tremembés). A principal “nação” guarani era os carijós, e as tupis os tupiniquins (em São Paulo e Porto Seguro), tamoios (São Paulo e Rio de Janeiro), tupinambás (Bahia e Alagoas), caetés (Pernambuco e Paraíba) e potiguares (Rio Grande do Norte e Ceará). No início da conquista, havia pelo menos 40 famílias linguísticas no atual território brasileiro, a maioria fazendo parte de quatro troncos: Tupi, macro-Jê, Aruak e Karib. Entre as que não pertenciam a esses troncos, fizeram parte da história colonial línguas das famílias guaikuru e mura. A língua tupi, de povos citados nas fontes quinhentistas, pertencia à família tupi-guarani, do tronco Tupi. Os povos de língua Aruak e alguns de famílias isoladas só tiveram poucos contatos com aventureiros do século XVI, passando a ter relações permanentes na época seguinte (com uma técnica que compara a proximidade das línguas tupi e guarani à das indo-europeias, Greg Urban supõe uma protolíngua indígena de dois a três mil anos; por outras comparações, há modelos de parentescos, mais vagos quanto mais distantes no tempo, que a associam aos troncos Jê, Karib e Aruak). Sobre o movimento migratório que levou à ocupação territorial dos tupis no século XVI, a
teoria mais aceita é a de Alfred Métraux (1927), de que a origem seria na bacia Paraná-Paraguai, onde Tupinambá e Guarani teriam se separado. Nesse fluxo, grupos tupis teriam expulsado, ou mesmo aniquilado, os demais grupos (genericamente chamados “tapuias”) da faixa litorânea, restando os pontos da ocupação anterior citados acima. Gabriel Soares de Sousa (1584-7), ouvindo anciãos tupinambás da Bahia, mostra que os índios tupis tinham consciência desse processo: os primeiros povoadores da região seriam tapuias, expulsos do litoral em tempos remotos por tupinaés, que vinham do sertão “[...] à fama da fartura da terra e mar desta província”. Após algumas gerações [...] chegando à notícia dos tupinambás a grossura e fertilidade dessa terra [...], estes a tomaram dos tupinaés, [...] destruindo-lhes suas aldeias e roças, matando aos que lhe fazia rosto, sem perdoarem a ninguém, até que os lançaram fora das vizinhanças do mar.
Assim, os tupinambás “[...] foram possuidores desta província da Bahia muitos anos, fazendo guerra a seus contrários com muito esforço, até a vinda dos portugueses a ela” (Soares de Sousa, pela sucessão quase evolucionária de povos técnica e numericamente superiores, tenta encaixar a conquista portuguesa nessa sequência harmônica, mas ela representa, na verdade, uma total ruptura com a época anterior). O seu relato, baseado apenas “[...] nas informações que se tem tomado dos índios muito antigos [...] tupinambás e tupinaés [...] em cuja memória andam estas histórias de geração em geração”, coincide, em muitos pontos, com as teorias modernas. Anchieta também investigou a origem dos índios, escrevendo (1584):
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[...] destes Tapuias foi antigamente povoada esta costa, como os índios afirmam e assim o mostram muitos nomes de muitos lugares que ficaram de suas línguas que ainda agora se usam; mas foram se recolhendo para os matos e muitos deles moram entre os índios da costa e do sertão.
O Padre Manoel da Nóbrega era um humanista, talvez o primeiro a tentar entender a mentalidade indígena, dentro das possibilidades da época. O Diálogo [...] sobre a Conversão do Gentio é uma conversa entre dois jesuítas, Gonçalo Alves e Matheus Nogueira. As ideias dos irmãos-personagens (inspirados em pessoas reais, membros menos graduados da Companhia) mais se completam do que contradizem, no fluir de um pensamento teológico ortodoxo (o do autor). Toda a retórica segue a doutrina, mas o ferreiro Nogueira, de fala mais simples, demonstra maior clareza que Alves, mostrado como mais erudito. Eles entram logo de início em questões da conversão, descrevendo os índios em tom grave (“...bestiais..., encarniçados..., cães..., porcos..., mais ingratos que os filhos das víboras que comem suas mães...”), com uma dramaticidade que valoriza o trabalho dos padres. A certa altura, Alves pergunta ao ferreiro Nogueira se os índios podiam ser considerados “próximos”, e na resposta a questão teológica é posta às claras: se forem considerados homens, sim, pois “[...] todo homem é de uma mesma natureza, e todo pode conhecer a Deus e salvar sua alma[...]”. Passa-se a ideia de que apesar da “rudeza” dos gentios, face à “delicadeza” da fé, Deus abrirá a eles, com sua misericórdia, a porta do entendimento através dos jesuítas (vindo daí a observação de alguns teóricos modernos – Gambini, Raminelli – de que essa incrível res-
ponsabilidade causaria grande inflação de ego nos religiosos, apesar dos votos de humildade). Sobre a humanidade dos índios, deve-se lembrar que ela só foi reconhecida pela Igreja em 1534 (mesmo ano da fundação da Companhia), por bula de Paulo III (a antropóloga Manuela C. da Cunha esclarece que esta não seria uma dúvida biológica, mas de responsabilidade jurídica). A questão reaparece algumas vezes no Diálogo [...] (como se não houvesse convicção), concluindo-se que os índios “[...] têm almas”. Mas lembram que todos os povos (portugueses, castelhanos, tamoios, aimorés) têm natureza corrupta, já que descendem de Adão, que, depois de pecar, tornou-se semelhante à besta. É também citado o mito de Cam, que serviu para justificar a escravidão dos negros (segundo o mito, o terceiro filho de Noé, ao contrário dos irmãos, viu nu o pai que estava bêbado, sendo por isso amaldiçoado com a nudez e escravização de seus descendentes). Gonçalo Alves, citando a Bíblia, diz que apesar de toda a gente ter “[...] uma mesma alma e um entendimento”, Isaac foi mais político que o irmão Ismael “[...] que andou nos matos” (como os índios), e que o meio (floresta, campo ou cidade) exercita o entendimento técnico e filosófico – o que é também uma teoria moderna. Se no Diálogo do Padre Nóbrega [...] se destaca a discussão sobre a natureza do índio (a aptidão e os métodos mais adequados para receber a doutrina), em José de Anchieta, quase toda a produção poética e dramática tem nele o seu interlocutor, dentro do objetivo prático de ser persuadido à fé. Nos autos, os elementos da cultura indígena aparecem como objetos de denúncia da ação catequizadora: em cena, os hábitos antigos – antropofagia, bebedeira, obediência ao pajé – são criticados e conside-
rados inaceitáveis. Estrategicamente, os índios deveriam aderir à ridicularização dos próprios costumes (com o catequista manipulando à vontade os dados de sua realidade, às vezes grotescamente), sendo as práticas condenadas muitas vezes atribuídas ao diabo. Na constatação de diferenças, está implícito que elas não seriam aceitas: que o conhecimento só seria legítimo se estivesse de acordo com a doutrina (discutem-se métodos, mas a catequese jamais é questionada). São, portanto, registros carregados de julgamento moral (que poderiam ser contrapostos aos de tratados pré-iluministas, que serviam, por sua vez, a outros propósitos políticos). A crítica Helena Brandão nota que Anchieta se refere sempre ao espaço físico e espiritual do conquistador português, querendo trazer o Outro para ele, de todas as maneiras. O discurso evangelista, universalista e redutor – por desconhecer e desrespeitar a alteridade – é aparentemente brando, disfarçando a violência. Os cantos e a encenação seduzem e condicionam o público, impõem a adesão e disfarçam de diálogo o monólogo do catequizador. Na poesia de Anchieta há também o caso específico do épico De Gestis Mendi de Saa (1560), de mais de 3.000 versos, em que é exaltada a dureza guerreira do terceiro Governador Geral. Para Darcy Ribeiro, essa composição infeliz teria inviabilizado a canonização do jesuíta: [...] Acende-se mais a mais coragem do chefe e seus bravos: derrubam a golpes mortais, muitos selvagens. Ora decepam braços enfeitados com penas de pássaros, ora abatem com a lâmina reluzente cabeças altivas, faces e bocas pintadas de vermelho urucum [...] Junto ao mar o estrondo ecoa medonho, enfurece horrendo na praia
o soldado matando e enterrando vitorioso na areia corpos aos montes e almas no inferno [...] ‘Triunfadores meus, diz o chefe [...] Ou exterminar de vez esta raça felina com a ajuda de Deus, ou sepultar-nos na areia gloriosamente’ [...] Fossem mais crentes os colegas, mais viris os seus braços, fervesse-lhes no peito um sangue mais quente, acompanhassem sempre, lado a lado, o seu chefe, e esse dia marcaria a ruína desses feros selvagens, atirando-os para as sombras eternas do inferno [...] [...] cento e sessenta aldeias incendiadas, mil as casas arruinadas pela chama devoradora, assolados os campos com suas riquezas, passando tudo pelo fio das espadas.
Como os europeus em geral, os jesuítas construíram a imagem do “índio” a partir de sua própria cultura, selecionando informações e deixando de acreditar em eventos contrários à lógica que queriam impor (nas palavras de Baeta Neves, era preciso “apagar as diferenças”). Por uma análise moderna se percebe, nos discursos dos agentes da colonização em geral, que todos os traços culturais que diferiam da conduta europeia eram necessariamente reprovados. Para os jesuítas, o sucesso da conversão dependia dos índios (dos mais rústicos, genericamente chamados de “tapuias”, aos mais aptos, os tupis) superarem seus antigos costumes, que os europeus, pejorativamente, adjetivavam de várias maneiras: bestiais, demoníacos, vis, abomináveis, depravados, inveterados. Na poesia de Anchieta, assume-se que para a implantação do cristianismo era necessária a destruição dos costumes multisseculares dos índios, que aparecem como “hábitos antigos”, “maus costumes”, “costumes perversos”, “hábitos de meus avós” etc. As estratégias de colonização eram
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bem definidas: conversão de chefes, doutrinação de meninos e eliminação de pajés. Faremos agora algumas observações sobre os tais “costumes depravados” (através de muitos autores, a Antropologia moderna procurou mostrar uma espécie de “funcionamento cultural” desses costumes, e como a intervenção – na repressão a eles – influenciou na desestruturação dessas sociedades, levando-as muitas vezes ao extermínio), que foram expressos em frases dos dois jesuítas: A lei, que lhes hão-de dar, é defender-lhes comer carne humana e guerrear sem licença do Governador, fazer-lhes ter uma só mulher, vestirem-se pois têm muito algodão, ao menos depois de cristãos, tirar-lhes os feiticeiros... fazê-los viver quietos sem se mudarem para outra parte, se não for para entre cristãos, tendo terras repartidas que lhes bastem, e com estes Padres da Companhia para os doutrinarem [...] (NÓBREGA, 1557). Os impedimentos que há para a conversão e perseverar na vida cristã de parte dos Índios são seus costumes inveterados [...] como o terem muitas mulheres; seus vinhos em que são muito contínuos e em tirar-lhes há ordinariamente mais dificuldade que em todo o mais [...] as guerras em que pretendem vingança dos inimigos, e tomarem nomes novos, e títulos de honra; o serem naturalmente pouco constantes no começado, e sobretudo faltar-lhes temor e sujeição[... ] (ANCHIETA, 1584).
Começando pela nudez dos índios, lembremos que na Carta de Caminha (1500) ela é a grande tônica: o autor volta várias vezes ao tema, parecendo enfim adaptar-se, quando diz: “[...] de nós muito bem olharmos, não tínhamos
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6. Índia tembé com criança no colo. Foto Acervo Museu do Índio. 7. Mulher urubu carregando criança na tipoia. Foto Acervo Museu do Índio.
nenhuma vergonha”. Ela se mostra associada à inocência de Adão quando Caminha diz que os índios “[...] estimam nenhuma coisa cobrir nem mostrar suas vergonhas; e estão acerca disso com tanta inocência como têm em mostrar o rosto”. Nóbrega, no Diálogo [...], pela voz de Gonçalo Alves, faz a sutil observação de que embora tão humanos quanto os portugueses, os índios, “descendentes de Cam, filho de Noé”, com a maldição lançada “[...] ficaram nus, e têm outras mais misérias [...]”. Essa inversão temporal pressupõe a ideia de que eles descendiam de civilizações protossemitas e antes se vestiam como os portugueses, mas teriam se degenerado. Essa “cultura” jesuítica sobre os índios aparece na obra do padre Simão de Vasconcelos, Crônica da Companhia de Jesus (1663), que diz terem sido criados em 2306 a.C., 132 anos antes do dilúvio – 1.656 depois da criação do mundo e um ano depois da construção da torre de Babel, da qual teriam participado. Eles seriam descendentes degenerados dos habitantes de “Atlante”, ilha situada a oeste da Europa, maior do que a Ásia e a África, e de civilização avançada como a grega (a ilha teria submergido com um maremoto, mas deixado alguns vestígios, depois nomeados Madeira, Açores e Cabo Verde). Portanto, o Diálogo [...] defende a ideia que os índios eram homens, porém degenerados. A nudez é sempre vista como inferioridade, com Gonçalo Alves opondo o polimento dos que “[...] sabem ler e escrever, tratam-se limpamente [...]”, desenvolvem ciência e filosofia, aos que “[...] nunca souberam mais que andarem nus e fazerem uma flecha” (e se antes foram civilizados, esse “nunca” mostra contradição). Para Nóbrega, a nudez dos índios representava
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8. Ritual aruana. Foto Acervo Museu do Ă?ndio.
antes de tudo a falta de civilização (“polícia”). Já na primeira carta (1549), diz que os índios contatados prefeririam estar vestidos: “[...] querem ser como nós, senão que não têm com que se cubram como nós, e este só inconveniente que têm”. Por isso, solicita ao padre Simão, que estava em Portugal... [...] algum petitório de roupa, para entretanto cobrirmos estes novos convertidos, ao menos uma camisa a cada mulher, pela honestidade da religião cristã, porque vêm todos a esta cidade à missa aos domingos e festas, que faz muita devoção e vêm rezando as orações que lhes ensinamos e não parece honesto entrarem nuas entre os cristãos na igreja, e quando as ensinamos.
Nóbrega estava seguro da ideia de vestir os índios, reiterando o apelo em outras passagens: “[...] isto agora somente no começo, que eles farão algodão para se vestirem ao diante”. Em outra carta (1552), avaliou e pediu orientação para vários assuntos, incluindo a nudez dos índios: [...] parece que andar nu é contra a lei de natura, e, quem a não guarda peca mortalmente, e o tal não é capaz de receber Sacramento, e por outra parte eu não sei quando tanto Gentio se poderá vestir, pois tantos mil anos andou sempre nu, não negando ser bom persuadir-lhes, e pregar-lhes, que se vistam e metê-los nisto quanto puder ser?
Na concepção jesuítica, portanto, a nudez era antinatural, entendendo-se que a vergonha, sim, fosse natural. Nóbrega expressou a incompatibilidade entre nudez e devoção em algumas passagens, até com humor: [...] não podemos deixar de dar a roupa que trouxemos a estes que querem ser cristãos, repartindo-lha até ficarmos todos iguais com eles, ao menos para não escandalizar aos meus irmãos de Coimbra, se souberem que por falta de algumas ceroulas deixa uma alma de ser cristã e conhecer seu Criador...
A questão básica, levantada por Nóbrega, era se “[...] somente por razão de andarem nus, tendo o mais aparelhado, lhes negaremos o batismo e a entrada na igreja, à missa e doutrina”. Na prática, o dilema acabou cedendo à impa9
ciência do jesuíta, que concedeu os primeiros sacramentos também a catecúmenos nus, possivelmente mais como relaxamento na lei canônica que por mudança no ponto de vista. O seu gesto foi censurado pelo bispo Sardinha (que também se opunha à pregação em tupi, ao uso de cânticos e instrumentos nativos, à confissão por meio de intérpretes; no fundo o bispo era contrário à catequização dos índios, pois escreveu ao rei falando do “[...] quão pouco aparelhados são estes bárbaros para se converterem e mais devemos nos ocupar em que não se pervertam os brancos do que se convertam esses negros [...]” – postura que ia contra todo o projeto e a ação dos jesuítas). Em uma de suas últimas cartas (1559), Nóbrega distingue a nudez da animalidade: “[...] os índios não são serpes, mas gente nua”. Mas, como o espanhol Bartolomé de Las Casas, parecia acreditar em diferentes níveis (ou etapas, o que implica em evolucionismo) de civilidade: “[...] não parecem que são da casta dos portugueses que lemos nas crônicas e sabemos que sempre no mundo tiveram primado em todas as gerações e pelas histórias antigas e modernas se lê”. O que Nóbrega talvez não pudesse reconhecer é que os portugueses (de nacionalidade menos antiga do que supunha) também descendiam de gente nua. Pelo relato de Anchieta percebe-se que, com o trabalho jesuítico, já havia muitos índios vestidos em 1584: “[...] porque ainda que seu natural seja andarem nus, já agora todos os que se criaram com a doutrina dos padres andam vestidos, e têm pejo de andarem nus [...]” Mas em outro depoimento (1585), quando descreve a rotina dos aldeamentos, queixa-se de que [...] um dia saem com gorro, carapuça ou chapéu na cabeça e o mais nu; outro dia saem com seus sapatos ou botas e o mais nu, outras vezes trazem uma roupa curta até à cintura sem mais outra coisa. Quando casam vão às bodas vestidos e à tarde se vão passear somente com o gorro na cabeça sem outra roupa e lhes parece que vão assim mui galantes [...] As mulheres trazem suas camisas de algodão soltas até o calcanhar sem outra roupa e os cabelos e quando muito entrançados com uma trançadeira de fita de seda ou de algodão; mas os homens e mulheres de ordinário andam nus e sempre descalços.
9. Colocação de palha em casa indígena. Foto Acervo Museu do Índio.
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Outro costume bastante condenado, e muitas vezes associado à nudez, era a poligamia. Como sistema matrimonial, era parte da estrutura social de diversos grupos, determinando laços de parentesco e não tendo qualquer relação com a sexualidade, ou “luxúria”, imaginada pelos jesuítas. Viveiros de Castro explica que a poligamia era, aparentemente, um atributo suntuoso ligado à valentia guerreira, ao lado das marcas corporais e do direito de discursar em público. Acumular cativos, signos, mulheres e genros, significava prestígio e privilégio social. A poligamia era dos hábitos mais chocantes para os jesuítas (ao lado da antropofagia), e para a tristeza deles, passou a ser adotada pelos colonos, que se casavam e reduziam as índias a objetos cativos. Se na carta de Caminha a mulher do índio era a grande novidade, na de Américo Vespúcio (1502), ela já tinha uma dupla imagem, de novidade fascinante e ameaça maligna, uma atração erótica contendo perigo fatal. Na época seguinte, muitos colonos já vinham ao Brasil esperando encontrar o que era sugerido nesses depoimentos: mulheres nuas, sedutoras e disponíveis a qualquer fantasia. Os jesuítas não se permitiam o desfrute, mas concordavam sobre o aspecto perigoso. Anchieta (1554) disse haver muitos danos “[...] onde as mulheres andam nuas e não sabem se negar a ninguém, mas até elas mesmas cometem e importunam os homens, jogando-se com eles nas redes porque têm por honra dormir com os Cristãos”. Como traço da “cultura” jesuítica, deve-se lembrar que pouco antes de se discutir a humanidade dos índios, foi discutida a das mulheres. No final da Idade Média, achava-se que a falta de controle delas causava perversões, e que o instinto sexual se assemelhava à gula e à bebe-
ragem. Desde Eva, as perversões proviriam das mulheres. Era um preconceito bem anterior à Companhia, mas no final do século XVI, o teólogo jesuíta Del Rio ainda via o sexo feminino como suspeito, repleto de paixões vorazes, que conduziriam a desatinos, volúpia, avareza, à falta de cuidados e aos maiores ardis do demônio (há também, sobre as índias brasileiras, exemplos de gravuras em que as velhas dos rituais antropofágicos se parecem com bruxas do imaginário europeu). Nóbrega se preocupou principalmente com a adoção da poligamia pelos colonos (1549): “nesta terra há um grande pecado, que é terem os homens quase todos suas negras por mancebas, e outras livres que pedem aos negros por mulheres, segundo o costume da terra, que é terem muitas mulheres”. Em carta do mesmo ano, caracteriza a poligamia dos índios como troca de mulheres, ao dizer que “[...] têm muitas mulheres e isto pelo tempo em que se contentam com elas e com as dos seus, o que não é condenado por eles”. Falando da conversão de chefes, diz: Outra coisa não se espera senão que tornem às suas mulheres, que têm esperança em que conservem a fidelidade: porque é costume até agora entre eles não fazerem caso de adultério, tomarem uma mulher e deixarem outra, como bem lhes parece e nunca tomando alguma firme [...] mas ter as mulheres simplesmente como concubinas.
Anchieta (1557), mais prático do que teórico, mostra como enfrentava a poligamia (notando-se que nos aldeamentos os padres exerciam total jurisdição sobre os índios, incluindo dar ou não uma mulher em casamento):
Batizamos [...] algumas moças [...] [para] casar com os moços que se ensinam nas escolas. Um desses catecúmenos pediu-nos uma destas moças cristãs por mulher, negamos-lha porque ele já tinha outra, e filhos dela [...] Mas ele (como têm por costume) foi-se ao irmão da moça, pediu-lha e houve-a, a qual depois que esteve com ele sete, ou oito dias, repreendida por nós outros, arrependida se apartou dele, e saiu-se de casa para nunca mais tornar a ele [...] E como ele a quisesse tirar e levar por força, acudimos nós esforçando-a a que estivesse firme, e repreendendo ao outro, porque queria ter por manceba esta que era já batizada, tendo ele outra mulher, e não sendo cristão. Vencido com nossas palavras se foi.
O costume mais abominável era, sem dúvida, a antropofagia. Os antropólogos entendem que, entre os tupis, ela era parte do sistema cultural que assegurava a continuidade das gerações. Para casar, era preciso que o homem matasse um inimigo (vinculando as guerras à reprodução do grupo). Jean de Léry propôs que a ordem de vinganças contribuía com as noções de tempo e história. Para alguns teóricos, ela representava o “aumento de forças”, a “absorção do corpo e da alma de inimigos mortos em peleja honrosa” (Alfredo Bosi). Há também interpretações de que simbolizava a distinção entre a cultura (de quem come) e a natureza (do comido). De qualquer modo, ela nunca foi vista como necessidade alimentar. A captura do membro de uma tribo rival, que ao ser sacrificado representava a vingança pela morte, nas mesmas condições, de um membro da própria tribo, era o grande objetivo das guerras, que não visavam territórios ou exterminar inimigos. Pelo mesmo motivo de
valentia, o índio capturado não tentava fugir: os membros de seu grupo não o aceitariam de volta, tomando a covardia como ofensa de que não seriam capazes de vingá-lo. Os sacrifícios aconteciam na praça, ou terreiro, a área ampla e quadrangular entre as ocas. Era parte importante do convívio social, ao lado dos bailes, festas e reuniões de conselho. Deve-se lembrar que havia uma enorme variedade de costumes entre os índios, principalmente “tapuias”, menos conhecidos. Gândavo fala que os do Maranhão, parentes dos aimorés, não eram antropofágicos e perseguiam a estes “[...] com mortal ódio”. No entanto, quando tinham um parente muito adoecido, este era assado e comido, para não sofrer “[...] coisa tão baixa e vil como é [que] a terra lhes coma o corpo de quem eles tanto amam [...]” Além de haver depoimentos pouco confiáveis (como o de Gândavo), eles são muito variados, notando-se em alguns que havia empenho em provar a barbárie e até a natureza não humana dos índios, eliminando possíveis remorsos de quem estivesse disposto a eliminá-los. A antropofagia exacerbada justificava que eles sofressem “guerra justa” e escravidão. Exemplo disso foi a represália de Mem de Sá e colonos aos índios da Bahia, acusados de serem parentes dos caetés de Pernambuco, que teriam devorado o bispo Sardinha. Os europeus tentaram confundir o papel do cativo com o de escravo, para que pudessem trocá-lo por mercadorias. Anchieta, em 1584, diz que “[...] às diversas nações de outros bárbaros de diversíssimas línguas, os tupis... chamam Tapuias, que quer dizer escravos, porque todos os que não são de sua nação têm por tais e com todos têm guerra”; trata-se de um erro conceitual, porque entre os índios nunca houve
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escravidão; neste caso, talvez se possa traduzir tapuias por “bárbaros”, no sentido grego de “estrangeiros”, menos civilizados, cativos em potencial. Mas a tomada de prisioneiro servia unicamente ao ritual. O cativo só se diferia dos homens com quem convivia pela corda no pescoço, com os nós correspondendo ao número de luas até o sacrifício. O longo cativeiro culminava com o sacrifício ritual, em meio à grande festa que se estendia à esfera da relação entre aldeias, aglutinando aliados e parentes de outras unidades (Nóbrega relatou em 1549 que “[...] se juntam todos os da comarca para ver a festa”). A escravização propriamente dita pertencia à cultura portuguesa. Os jesuítas, por exemplo, requisitavam negros da Guiné para alguns serviços. Nóbrega, na chegada de um superior, mandava logo um escravo preparar a comida. Anchieta, ao narrar a vida de Nóbrega, diz que ele não a tolerava em “nenhum” momento, em “nenhuma” circunstância, “salvo” em guerra justa (que era assim considerada quando os índios recusavam a doutrina ou recaíam na antropofagia, depois de proibidos). Nóbrega teria escrito um segundo diálogo, guardado em Portugal, em que discute a licitude de “o pai vender o filho”, assunto também discutido por Anchieta (combatendo os colonos que provocavam essa venda enganosa entre os índios), que, embora a condenasse, achava-a aceitável em casos de “extrema necessidade”. Nóbrega, no término do Diálogo..., faz os irmãos jesuítas lembrarem que incutir a fé nos índios passava pelo abandono de antigos costumes, o que se avançava no dia a dia, convencendo alguns a enterrar os mortos, em vez de comê-los. Em uma de suas últimas cartas (1559), exagera ao temer pelos portugueses que os índios “[...] se levantem e os acabem de consumir e comer a todos”. Também é duvidosa sua observação sobre índios (de Tubarão e Mirangaoba, na Bahia) que “[...] se encarniçam tanto em tão grande crueldade, que cada dia se matavam e comiam”. A antropofagia era ligada às guerras intertribais, um costume milenar que os jesuítas também quiseram interditar. Os europeus perceberam, logo ao chegar, que apesar da semelhança, não havia unidade política entre as sociedades tupis, radicalmente divididas e que se comunicavam, na maioria das vezes, apenas
pelas guerras. Soares de Sousa (1584-7) comentou essa rivalidade dizendo: “e ainda que são contrários os tupiniquins dos tupinambás [do sul da Bahia], não há entre eles na língua e costumes mais diferença da que têm moradores de Lisboa dos da Beira”. A guerra entre os diversos grupos era constante. Os tupiniquins de São Vicente, por exemplo, guerreavam ao mesmo tempo com os tamoios (tupinambás) ao norte e com os carijós (guaranis) ao sul. Também associada à antropofagia e às grandes festas era a cauinagem, uso da bebida fermentada feita a partir da polpa de mandioca, caju ou milho, mascada por mulheres virgens (incluindo pré-púberes, equivalendo ao rito de menarca) ou de abstenção sexual temporária (sua feitura se baseava, portanto, no poder mágico da saliva feminina). Enquanto os homens eram responsáveis pela captura e morte dos inimigos, a produção do cauim, componente essencial do rito antropofágico, cabia às mulheres, marcando uma divisão de atividades no complexo guerreiro. Ele era também ingerido, coletivamente, em situações de nascimento, ritos de iniciação, partida ou retorno de guerra e reuniões de cúpula para tomar decisão. Em relação à religiosidade dos índios, no começo se acreditou que eles tinham uma total ausência de culto, que os colocava em condição inferior até mesmo à de povos pagãos. Anchieta chegou a dizer (1585): São tanquan tabula rasa para imprimir-se-lhes todo o bem, nem há dificuldade em tirar-lhes rito nem adoração de ídolos porque não os têm e os costumes depravados de matar homens e comê-los, ter muitas mulheres e embriagar-se de ordinário com os vinhos e outros semelhantes, deixam-nos com facilidade e ficam mui sujeitos a nossos padres [...]
O termo “tabula rasa” teve muitos equivalentes: “[...] nos pareceu a todos que nenhuma idolatria, nem adoração têm” (CAMINHA); não têm “[...] nenhuma lei nem coisa entre si que adorem” (GÂNDAVO); “[...] não têm adoração alguma nem cerimônias ou culto divino, nem têm ídolos de nenhuma sorte” (CARDIM). Nóbrega escreveu em 1549 que “[...] é gente que nenhum conhecimento tem de Deus, nem ídolos, fazem tudo quanto lhe dizem”. Em carta do mesmo ano, ele pede mais padres, mesmo
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10. Criança kayapó. Foto Acervo Museu do Índio.
etnias indígenas do século XVI
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PERNAMBUCO
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BAHIA
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1
2
E
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ESPÍRITO SANTO
A
10, 12
RIO DE JANEIRO
A N
10, 11 7, 10, 11
3 E
E
5
1, 5, 8, 10 1, 3, 5, 6
A N
4
YPEROIG
A N
7 9
SÃO VICENTE
A N
2, 4, 5, 6, 7, 9 4, 7, 8, 9, 10
PIRATININGA
A N
3, 5, 6 7, 10
A N
10 2
N | Nóbrega
A | Anchieta
1
[1549] Chega à Bahia com Tomé de Souza e os padres L. Nunes, J. A. Navarro, A. Pires, V. Rodrigues, D. Jácome.
1
[1553] Chega à Bahia com Duarte da Costa e Luiz da Grã.
2
[1551] Vai para Pernambuco com A. Pires.
2
3
[1552] Volta à Bahia.
[1554] Chega a São Vicente com L. Nunes (levando a Nóbrega o título de Provincial do Brasil, dado por Loyola).
4
[1553] Vai a São Vicente com Tomé de Souza.
3
[1554] Vai a Piratininga fundar o Colégio de São Paulo, a mando de Nóbrega (duas viagens).
5
[1556] Volta à Bahia com Anchieta. 4
[1555] Volta a São Vicente.
6
[1558] Acompanha Mem de Sá em guerras na Bahia (em 1559, doente, passa o cargo de Provincial a Luiz da Grã).
5
[1556] Vai e volta de Piratininga, tem rápida passagem pela Bahia, com Nóbrega, voltando a São Vicente.
[1560] Vai com Mem de Sá ao Rio de Janeiro (em guerra aos franceses) seguinda para S. Vicente e Piratininga.
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[1557] Vai e volta de Piratininga.
8
[1561] Volta a S. Vicente.
7
[1563] Vai e volta de Yperoig (onde foi “refém” por cinco meses).
9
[1563] Vai com Anchieta a Yperoig (Ubatuba), voltando a S. Vicente depois de dois meses entre os tamoios.
8
[1565] Vai à Bahia conseguir reforços contra os franceses, recebendo as Ordens Sacras do bispo P. Leitão.
9
[1567] Volta a São Vicente, onde recebe novos cargos governamentais (em 1569, é nomeado Reitor do Colégio, professando até 1577, quando é nomeado Provincial).
7
10 [1564] Vai ao Rio de Janeiro a convite de Estácio de
Sá. Reza a missa e volta em seguida a S. Vicente, visita Piratiniga e volta a S. Vicente (em guerras e falta de alimento). 11 [1567] Vai ao Rio de Janeiro para fundar o Colégio e
10 [1578] Vai à Bahia, recebendo a patente de Provincial
ser seu Superior, a convite de Mem de Sá. Passa lá a velhice, vindo a falecer em 1570.
do Brasil (até 1585, viaja por Pernambuco, Bahia, Espírito Santo e Rio de Janeiro, incentivando núcleos de ensino). 11 Vai ao Rio de Janeiro acompanhar o reitor Fernão Car-
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dim, passando a residir no Colégio.
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Carijó (Guarani)
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Aimoré (“Tapuia”)
2
Tupiniquim (Tupi)
7
Tupinambá (Tupi)
3
Tamoio (Tupi)
8
Caeté (Tupi)
4
Goitacá (“Tapuia”)
9
Potiguar (Tupi)
5
Tupiniquim (Tupi)
10 Tremembé (“Tapuia”)
12 Vai ao Espírito Sando, onde é Superior no Colégio de
Reritiba (vindo a falecer em 1597).
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que pouco ilustrados, pois “[...] poucas letras bastariam aqui, porque tudo é papel branco, e não há que fazer outra coisa, senão escrever à vontade”. Os jesuítas, preocupados em narrar em detalhes os progressos da conversão, pouco se preocuparam em descrever as crenças indígenas, identificando apenas Tupã como uma espécie de deus. Era comum afirmar que os índios não tinham religião, pois assim estariam mais capacitados a receber a dos europeus. O recurso de investigar a tradição oral indígena foi pouco utilizado pelos jesuítas, mais preocupados em negar sua existência anterior ao cristianismo. A mitologia parece ter sido deliberadamente negada, pois as informações que aparecem nas cartas correspondem a uma ínfima parte do que foi coletado por Thevet, por exemplo. Revivendo esse momento (depois, muitos aspectos da religiosidade indígena foram reconhecidos), na voz de Matheus Nogueira no Diálogo [...], Nóbrega diz que se os índios tivessem rei poderiam se converter, e, se adorassem alguma coisa, poderiam “[...] entender a pregação do Evangelho”, mas “[...] este gentio não adora coisa alguma, nem crê em nada”. Viveiros de Castro traduz essa relação na seguinte ordem: os índios não acreditavam porque não adoravam, e não adoravam porque não se sujeitavam ou serviam a ninguém (não tinham rei). Sinteticamente: “não tinham fé porque não tinham lei, não tinham lei porque não tinham rei”. A peça em falta era o “componente de sujeição, de abdicação do juízo e da vontade”. Na verdade, todo o Diálogo [...] orbita em torno da ideia de que os índios só poderiam se tornar cristãos se mudassem seus hábitos, porque assim apagariam as crenças associadas a eles. A suposta ausência de religião ou crenças
era de início favorável à conversão, mas depois isso mudou, quando se percebeu que os costumes e todos os hábitos “indesejáveis” estavam associados a um sistema de crenças, do qual faziam parte os pajés e os caraíbas. Por isso, na “lei” que Nóbrega queria dar aos índios, havia importância em “[...] tirar-lhes os feiticeiros”. Os índios, à sua maneira, acreditavam nos pajés, mais reconhecidos pelos jesuítas como curandeiros, e nos karaíba, os verdadeiros líderes espirituais. Sobre os primeiros, Anchieta escreveu (1584): “[...] costumam esfregar, chupar e defumar os doentes nas partes que têm lesas e dizem que com isto os saram e disto há muito uso, porque com o desejo de saúde muitos se lhes dão a chupar, posto que os não creem”. Nóbrega, já em 1549, falou sobre os karaíba (plural de karaí): De certos em certos anos vêm uns feiticeiros de mui longes terras, fingindo trazer santidade e ao tempo de sua vida lhes mandam limpar os caminhos e vão recebê-los com danças e festas, segundo seu costume; e antes que cheguem ao lugar andam as mulheres de duas em duas pelas casas, dizendo publicamente as faltas que fizeram a seus maridos umas às outras, e pedindo perdão delas.
Alfred Métraux foi o primeiro a desvendar nos testemunhos dos primeiros cronistas um conjunto de mitos de significação cosmológica, e a importância dos pajés e karaíba na vida religiosa e política dos tupinambás. Principalmente pelas fontes francesas (Thevet, Abbeville, Evreux e Léry), identificou a crença tupi de que, após a morte, a alma ia para uma espécie de paraíso, a Terra sem Mal. Após passar por provações, ela gozaria de uma vida despreocupada
(em que as flechas trariam por si sós o alimento, por exemplo) ao lado do herói civilizador. Para atingir esse destino, o índio deveria ser valente em vida na defesa de sua nação, capturando e devorando inimigos. Os discursos proféticos dos karaíba convenciam aldeias inteiras a empreenderem viagem em busca do paraíso terrestre (que faria parte do mundo físico), onde haveria abundância, juventude eterna e tomada de cativos. Os jesuítas trabalharam para tirar dos índios todas essas crenças, em vez de reconhecer aspectos semelhantes aos da doutrina cristã. Dentro de sua cultura, colocavam o cristianismo como única realidade e termo de comparação, como se os índios não existissem até a conversão (e não apenas inexistissem para o cristianismo, mas, aparentemente, de fato não existissem antes). Por isso, no auto Na aldeia de Guaraparim (o mais longo escrito todo em tupi, só para os índios e encenado próximo a 1590), Anchieta diz (pela voz do anjo que liberta a aldeia de demônios que praticam os velhos costumes): De agora em diante vós sereis felizes. Quero felicitar esta vossa terra agora venturosíssima, pois que se lembrou dela a virtuosa mãe de Deus. Associado à ausência de fé havia o fenômeno chamado, pelos europeus em geral, de “inconstância” dos índios, observado tanto para a conversão quanto para a adequação ao trabalho. O escambo (troca de ferramentas e espelhos por serviços e matérias-primas) chegou a funcionar num primeiro momento, para derrubar matas e preparar roças, mas esbarrou nessa “inconstância”, levando à necessidade de dominar o território (o custo alto das atividades, não permitindo o assalariamento, mais o combate dos jesuítas à escravização dos índios, de difícil captura, tornou mais lucrativa a importação de negros: com os nativos, as tentativas de im-
posição de diversas formas de organização no trabalho esbarravam ora na resistência, ora na “inconstância” – causada às vezes por razões culturais: os jesuítas, por exemplo, queriam cobrar dos homens o trabalho na terra, que para os índios era considerado uma tarefa feminina). Nóbrega, na voz de Gonçalo Alves (Diálogo [...]), define que a maior dificuldade era os índios oscilarem entre a aceitação da nova fé (única verdadeira) e o seu rápido esquecimento. Por isso defende a ideia de investir nas crianças: dos adultos era impossível mudar os costumes (sempre associados a crenças), eles assumiam o cristianismo, mas não mudavam os hábitos; eram inconstantes e não totalmente cristãos, enquanto as crianças teriam seus hábitos reconstruídos. Defende inclusive o uso da força na conversão delas. Faz também uma suposição: o gentio não tendo polícia (leis, civilização) teria “[...] menos entendimento para receber a fé”. Segue daí que o entendimento se opõe à inconstância: “[...] mais fácil é de converter um ignorante, que um malicioso soberbo”; um herege ou judeu, com toda a sua teimosia, uma vez convertido “[...] ficaria mais constante”. Tudo indica que no caso dos jesuítas, essa característica (ou qualidade) dada aos índios se inspirou na passagem evangélica em que Jesus compara à semente que cai em terreno pedregoso aquele que recebe a Palavra com alegria, mas não tendo raiz em si mesmo “[...] é inconstante” (Mateus, 13, 21), desistindo dela na primeira tribulação. No século XVII, o padre Antônio Vieira se debruçou sobre o tema da inconstância no ensaio Sermão do Espírito Santo, em que compara o ofício do pregador aos de um escultor e de um jardineiro, pelo diferente modo com que as nações reagiam à conversão. Algumas, como
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o mármore, eram duras e resistiam, mas uma vez convertidas, não exigiam maiores esforços. Outras, como os índios brasileiros, eram uma mata que a cada picada aberta estava pronta a novamente se fechar.
No Brasil e na América espanhola, chamar os índios de “inconstantes” era um modo de depreciá-los em discussões sobre sua natureza. Uma das poucas vozes destoantes nesse tema foi a do capuchinho francês Claude d’Abbeville (1614): [...] outros dizem que eles são inconstantes, volúveis. Na verdade são inconstantes se deixar-se conduzir unicamente pela razão pode ser chamado inconstância; mas são dóceis aos argumentos razoáveis, e pela razão faz-se deles o que se quer. Não são volúveis, ao contrário, são razoáveis e em nada obstinados...
Vimos nas frases introdutórias que também o nomadismo, ou mais propriamente, os deslocamentos indígenas eram criticados. John M. Monteiro destaca como elemento característico da cultura tupi, ao lado das lideranças de chefes e xamãs e do complexo guerreiro na afirmação da identidade, a fragmentação e reconstituição dos grupos. As aldeias, ou “tabas”, não eram povoados permanentes: depois de alguns anos, o grupo se dividia (em caso de aumento populacional) ou mudava de local. Na região de São Paulo, segundo os jesuítas, as mudanças eram de três a quatro anos, mas outros relatos sugerem 12 a 20. Os motivos mais comuns eram o desgaste do solo, a diminuição da caça, a atração de um karaí, uma disputa interna ou morte de chefe. A criação de novas unidades era um evento
importante, em que se reproduziam as bases da organização social. Segundo Hans Staden (1548), para construir uma oca, um índio reunia 40 pessoas, que depois moravam nela (com o índio que comandava passando a ser o cacique). Segundo Cardim (1584), as ocas eram de tamanho variado (cerca de oito metros de altura e 50 a cem de comprimento), com portas pequenas e baixas. Cada uma comportava cerca de 200 pessoas, normalmente parentes que obedeciam ao chefe. Eram divididas em ranchos em que dormiam um casal e seus filhos, sem divisórias, podendo todos se ver mutuamente e cada rancho tendo seu fogo, redes armadas e enfeites. Entre os “tapuias” haveria índios realmente nômades, que segundo Anchieta (1584), embora tivessem [...] alguma maneira de aldeia e roçarias de mantimentos, é contudo muito menos que os índios e o principal de sua vida é manterem-se de caça e por isso têm uma natureza tão inquieta que nunca podem estar muito tempo num lugar, que é o principal impedimento para sua conversão, porque alioquin é gente bem inclinada e muitas nações deles não comem carne humana e mostram-se muito amigos dos portugueses [...]
Se os deslocamentos eram parte da cultura indígena, a partir da segunda metade do século XVI as migrações se deram por nova necessidade. O historiador Rocha Pita mostra que depois de 1570 havia guerras por todo o Brasil, envolvendo colonos (para ter escravos), índios (para vingar as agressões gratuitas e descontroladas), franceses, holandeses e ingleses (para contrabandear) e portugueses (para manter o domínio). Com o agravamento das brigas, os índios fugiam da costa e viam na presença do
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11. Grupo de meninos kuikuru sentados. Foto Acervo Museu do Ă?ndio. 11
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europeu sinal de tragédia. Florestan Fernandes mostra que, principalmente para os tupis da costa, o contato foi letal: expulsos de seu habitat natural (litoral e regiões mais férteis dos atuais estados do Rio de Janeiro e Bahia), eles fizeram migrações cada vez maiores, com alguns chegando ao Maranhão e Pará, onde foram fixados com outros grupos; com novas perseguições, muitos fugiram para a Amazônia. Florestan entende que a catequização não era mais que a submissão pacífica, objetivo não declarado de Nóbrega e Anchieta. Os jesuítas só conseguiram a simpatia de alguns grupos, enfrentando de outros a guerra ou permitindo a fuga (com as tribos de menor contato sobrevivendo por mais tempo). Segundo o sociólogo, o aldeamento forçado, com a proibição de hábitos (como a poligamia, que contribuía para a natalidade), fez reduzir radicalmente a população tupinambá, provocando fugas, migrações, sofrimento e aniquilamento. Como considerações finais, lembramos que as chamadas sociedades simples, encontradas no Brasil, representavam milhares de anos de experimentação e adaptação local. Não se pode dizer que, pelo pouco conhecimento
tecnológico que tinham, estariam condenadas à dominação, porque mesmo as que eram consideradas avançadas, como a inca e asteca, foram igualmente massacradas. É difícil julgar o papel da Companhia de Jesus: quis veementemente proteger os índios e integrá-los honradamente à civilização dominadora (seriam aproveitados principalmente no trabalho agrícola), mas obrigou-os a largar costumes e rituais à força, tornando-os aculturados e vulneráveis ao massacre. A quase extinção dos índios foi causada, ao lado de massacres e doenças, pelo fenômeno que ainda marca os grupos sobreviventes: a aculturação. Já no século XVI ela tirava a autonomia dos povos indígenas, deixando-os vulneráveis à matança e escravização. Os jesuítas, mesmo que não tivessem consciência disso, eram talvez os maiores responsáveis por essa aculturação: a tentativa de defender os índios da escravização fracassou justamente pela desestruturação social causada por ela. Mas provavelmente os massacres seriam ainda maiores sem a presença deles. Nos registros deixados por Nóbrega e Anchieta, há passagens em que são ressaltadas as
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qualidades dos índios: amor, amizade, virtudes civilizadas. Mas a maior parte mostra o contrário: bestialidade, falta de amor e de lealdade. Com isso talvez possamos pensar que os religiosos pensavam bem e mal dos índios. Há trechos em que os dois jesuítas bem poderiam embasar a teoria romântica do “bom selvagem”, mostrando-se contentes com a sociabilidade tradicional e a perfeita divisão dos alimentos. Mas no geral, a parte luminosa foi pouco lembrada (aparecendo apenas em observações casuais), e a sombria reforçada a cada novo depoimento, o que se adequava aos propósitos catequéticos: os índios não eram pensados com existência própria, mas como figurantes de uma história da cristianização humana, com os padres como grandes protagonistas (no que não se diferem de outros contadores de história). Transpondo para a realidade brasileira a análise de Serge Gruzinski sobre fatos ocorridos no México, mais do que confrontos militares, sociais e econômicos, o aspecto mais desconcertante da intervenção europeia foi talvez a censura e interrupção de outros modos de apreender a realidade, da liberdade de crenças e costumes. Assim, o projeto jesuítico acabou
contribuindo para o extermínio daqueles que pretendia salvar. Partindo da conversão das almas, eles começaram a destruir a identidade cultural indígena. Ao dizer que os índios eram “página em branco” para receber a doutrina, negava-se (talvez como propaganda da ação) a espiritualidade indígena, que existia e era tão válida quanto a cristã. Também pelo conceito de “guerra justa” contra grupos considerados hostis ou que se recusavam a aceitar a doutrina, os jesuítas preferiram apoiar a sujeição, que na maioria das vezes se dava pelo massacre. Na questão da “inconstância” e outras que remetem a uma “índole” indígena, concordamos com Viveiros de Castro, que diz que os tupis eram “belicosos”, mas não “violentos”. Não há descrições de crueldade, de serem capazes de torturar e matar gratuitamente. O ritual antropofágico seguia rigorosamente o costume milenar. Já os portugueses, como mostram depoimentos de Nóbrega e Anchieta, improvisaram muitas coisas: explosões de índios em bombarda, queimas em fogueira, amplos extermínios como os comandados por Mem de Sá. Vale lembrar que depois da primeira fase, já em época de conflito e opressão acentuada,
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Anchieta foi capaz de abrir mão da pura teologia e fazer relatos histórico-sociais sem se referir aos índios como bestas, mas mostrando a condição humana dos que eram massacrados (por exemplo, no texto Primeiros Aldeamentos na Baía, de 1584). Apenas não deixavam de ser os coadjuvantes dos padres e suas obras. Os dois jesuítas podem ser criticados: Nóbrega, no começo, admirou e defendeu os índios, mas depois recomendou armas e sujeição. Antes fosse a ordem inversa, principalmente pela desigualdade de forças (pois a Igreja se diz defensora dos oprimidos). Nóbrega não reconhecia (como fez Las Casas na América espanhola) o direito dos índios sobre as terras, que ele considerava portuguesas. Mas isso é ao menos compensado por um esforço em respeitar e conhecer melhor a cultura indígena. O início do período colonial teve reflexos em toda nossa história e cultura, talvez mais que os outros séculos. Toda a empresa portuguesa dependeu basicamente da exploração dos índios, que responderam, com os negros da zona açucareira, por quase toda a força de trabalho. Darcy Ribeiro mostra que dos índios, melhor adaptados à terra, foram apropriados os modos de produção de alimentos, de construção de casas e pequenas embarcações (as “canoas”). Até a reprodução humana dos europeus (portugueses, holandeses, franceses) recorreu às índias. Principalmente a cultura tupi, dominante no litoral, propiciou a base material e cultural da Colônia. A horticultura, a coleta de frutos e materiais, a caça, a pesca e o conhecimento geral da terra foram absorvidos pelos portugueses, gerando uma cultura necessariamente mestiça.
A análise de Lewis Hanke sobre o que ocorreu na América espanhola também serve para o Brasil: em defesa de seus interesses imperiais, a Coroa buscou prestígio e investimentos, ou a conquista e os frutos da guerra necessária. Como mentora da Igreja no continente, quis também trazer os índios para a fé, o que requeria a paz. Esse duplo propósito gerou uma política indecisa, com conflitos de ideias e homens. Para os índios, a colocação em prática de qualquer dos dois propósitos era trágica, porque se pretendia destruir a sua hierarquia de valores e interromper o desenvolvimento de suas culturas. Como mostra John M. Monteiro, o conflito das civilizações levou à hecatombe traduzida pela queda brutal da população indígena, dando margem a se acusar Portugal (e todas as nações expansionistas da época) de ter cometido “etnocídio” premeditado. Há ainda quem lembre a “grandeza dos descobrimentos” sem falar na extinção de povos indígenas, e na expulsão de suas terras dos que sobreviveram. Não apenas no Brasil, o homem “civilizado” deu pouca importância aos que chamou de “primitivos”. Apesar das novas políticas indigenistas, de boas iniciativas não só atuais como de séculos atrás, ainda se vê, 500 anos depois, índios e seus descendentes silenciosos, despidos dos valores espirituais e da crença no futuro. Índios indefesos, circulando em meio ao caos, ainda estão sendo assassinados. Se no passado a civilização portuguesa “crucificou” os índios, essa atrocidade deve ser sempre lembrada, para no presente apoiar iniciativas de proteção e integração de todos à sociedade dominante.
Filipe Eduardo Moreau é formado em Letras e Arquitetura, licenciado em Português, mestre em Literatura Brasileira e doutor em História da Arquitetura pela USP. O ensaio apresentado resume trechos do livro Os Índios nas Cartas de Nóbrega e Anchieta (Annablume, 2003). Além de escrever para revistas literárias (Atlas, 1988, 34 Letras 5/6, 1989, Balaio 1 e 3, 2004-7), publicou livros de poesia (Picolé e Alferes, Klaxon, 1985) e literatura infantil (História da Rainha e do Gato, Barcarola, 2005, Poesia dos Bichos, Dix, 2005).
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As artes ind铆genas: o cotidiano na ordem c贸smica Lucia Hussak van Velthem
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rtefatos ameríndios foram coletados e transferidos para a Europa desde as primeiras viagens ao Novo Mundo. Na época eram apreciados por seu exotismo e pela raridade dos materiais constituintes e quando eram incorporados aos “gabinetes de curiosidades” ladeavam materiais naturais os mais heterogêneos1. A coleta sistemática de objetos indígenas remonta, entretanto, ao século XIX quando se disseminaram os museus de História Natural na Europa e nas Américas2. Inseridos no âmbito dos museus, enquanto uma categoria específica, a dos “objetos etnográficos”, refletem de alguma forma a dinâmica da história do contato entre os não índios e os índios, o que traz à lembrança o fato de que diferentes culturas indígenas foram submetidas a uma vasta empresa de supressão, as primeiras vítimas sendo os habitantes da região costeira do Brasil. Na atualidade, a contemplação de objetos indígenas ainda provoca reações diversas. Pode interessar vivamente o público de museu3 ou ser alvo de uma observação distraída em uma loja. Ocasionalmente, a desatenta atenção cede lugar à irresistível atração por um objeto, talvez um pequeno cesto finamente entretecido e esplendidamente ornamentado com meandros negros. O passo seguinte é penetrar o mistério
dos estímulos recebidos: quem o produziu e para quê? com que materiais e técnicas? qual o significado dos grafismos? Essas e outras questões geralmente ficam sem uma resposta satisfatória porque os objetos produzidos pelos índios no Brasil, admirados nos centros urbanos, foram deslocados de seu contexto original para o interior de espaços governados por critérios que permanecem exteriores aos de sua produção, uso e interpretação. A dificuldade maior talvez resida no fato de que, nas cidades, as pessoas têm certo sentimento de estranheza ao se depararem com expressões artísticas que são formuladas segundo outros critérios. Nesse confronto devem discernir a origem da valoração estética de um artefato que se organiza através de materiais, de palavras, de usos, de hábitos, de mobilidades, de contextos que são completamente diversos dos habituais. Assim, quando levadas a admirar um artefato indígena, as pessoas se veem diante da possibilidade de experimentar uma situação que constitui o reverso de seu próprio olhar, o qual habitualmente busca interpretar uma obra já qualificada e definida como artística em sua própria sociedade 4 5. Entretanto, como o significado de uma obra não é redutível a sua aparência, pode deter diferen-
1 RIBEIRO e VELTHEM, 1992:103. 2 No Brasil, as coleções históricas e modernas foram efetivadas por missionários, cientistas viajantes, comerciantes, militares, funcionários
do órgão indigenista, antropólogos. As mais amplas são encontradas em quatro grandes museus: Museu Nacional/ UFRJ e Museu do Índio/ FUNAI, situados no Rio de Janeiro; Museu de Arqueologia e Etnologia/USP em São Paulo e Museu Paraense Emílio Goeldi/MCTI em Belém. 3 Inicialmente restritas aos museus antropológicos, as exposições de artes indígenas passaram a frequentar outros espaços em abrangentes exposições, no país e no exterior. A primeira, Arte Plumária do Brasil foi montada em 1980 no MAM de São Paulo; a segunda, Índios no Brasil foi organizada na mesma cidade em 1992; a mais grandiosa foi Artes Indígenas um dos módulos da Mostra do Redescobrimento instalada em 2000 no Parque do Ibirapuera, também em São Paulo. No exterior, Arte Plumária do Brasil foi apresentada em Washington, Os Indios, nós em Lisboa, Amazonia, native traditions em Beijing, Unknow Amazon em Londres, Brésil Indien em Paris e Índios no Brasil foi aberta em Bruxelas em 2011, por ocasião do Festival Europália. 4 Como as lojas da Artíndia, mantidas pela Fundação Nacional do Índio (FUNAI) ou então as lojas de souvenirs ou de objetos decorativos. 5 VELTHEM, 2010: 20.
12. Boneca karajá (povo karajá – 1958). Foto Acervo Museu do Índio. 12
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tes sentidos, de acordo com as circunstâncias e as relações que são estabelecidas entre ela e o sujeito,6 seja na aldeia ou no museu. Isso significa que a apreensão de um artefato ameríndio pode comportar variados modos, quando submetido a interpretações que não sejam exclusivamente antropológicas. As produções dos povos indígenas se apresentam de diferentes formas, das mais efêmeras pinturas corporais aos permanentes registros rupestres, pintados ou gravados nos abrigos ou afloramentos rochosos, correspondendo a uma prática representacional existente no país desde o pleistoceno. Esses registros fornecem indicações sobre a importância7 sociocultural destas manifestações para as sociedades do passado, como depreendido pelos arqueólogos a partir de pesquisas realizadas no sudeste do Estado do Piauí e também na Amazônia. Outros achados arqueológicos deram a conhecer a requintada e diversificada produção cerâmica como atestam as urnas da ilha de Marajó, os vasos de cariátides da região de Santarém no Estado do Pará ou as figuras antropomorfas dos rios Maracá e Cunani, encontradas no Estado do Amapá. Essas e outras produções artísticas ameríndias não mais se conectam às culturas que atualmente vivem na Amazônia8, entretanto o conservadorismo da manufatura cerâmica, atestando uma contínua atividade artística, se evidencia entre os povos do Alto Xingu. As-
sim sendo, é nitidamente reconhecível para os Kuikuro9 a utilização particular dos utensílios domésticos, encontrados nas pesquisas arqueológicas recentemente efetuadas em seu território10. As práticas artísticas dos povos indígenas possuem um caráter de integração com os diversos domínios culturais e uma natureza coletiva, múltipla e transformativa. Trata-se de obras que integram redes de sentidos que são próprias a cada cultura, e que remetem a formas de ver o mundo, a sociedade, os humanos e os não humanos11. Nas sociedades ameríndias a arte não representa, não é um simples significante, ela produz comunicação e motiva a interação entre sujeitos os mais diversos, em múltiplos campos da alteridade12. Em outros termos, os métodos das artes ameríndias e os sentimentos que as animam são inseparáveis, não se podendo compreendê-los como um encadeamento de formas, porém como um mecanismo cognitivo que reflete a visão e o sentido que é conferido pelos membros da sociedade produtora. Esse é o motivo porque, entre os povos indígenas, a arte serve, sobretudo para ordenar e definir o universo, uma vez que é parte integrante da função cognitiva global13. A complexidade dos sentidos dessas artes nos conduz a indagar aos seus produtores e criadores as linhas mestras dos significados, as características principais e sua importância, como se procurará fazer neste breve ensaio.
6 Cf Dias, 2005, para uma discussão sobre essa importante questão. 7 PESSIS, 1992, PEREIRA, 2004. 8 MPEG, 1999. 9 Os Kuikuro falam uma língua da família Carib e vivem na porção sul da TI Parque Indígena do Xingu, no Estado do Mato Grosso. 10 HECKENBERGER, 2001: 57. 11 PERRONE-MOISÉS, 2005: 89. 12 GALLOIS, 2005: 108. 13 VELTHEM, 1998, 2000b.
13. Braçadeira de folíolo (povo canela – 1952). Foto Acervo Museu do Índio. 14. Braçadeira de madeira (povo waiwái – 1994). Foto Acervo Museu do Índio.
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Artes indígenas, outros olhares O olhar que contempla os artefatos produzidos e utilizados pelos povos indígenas não deve se deter apenas sobre a variabilidade das formas concretas e das matérias-primas, ou então sobre o requinte dos grafismos. É necessário mergulhar em estruturas profundas para conhecer os significados que estão conectados a diversos domínios da vida social e do conhecimento prático e metafísico. Portanto, sondar essas produções significa percebê-las de modo diverso, corrigindo inicialmente as distorções que ainda persistem e que têm origem na imperiosa necessidade do pensamento ocidental em avaliar as artes de outros povos a partir de seus próprios pressupostos, o que é agravado pelo profundo desconhecimento acerca das culturas ameríndias e de sua complexa e diversificada linguagem artística. A categoria “arte indígena” encerra uma noção complexa e multiforme. Singular, é sobretudo plural, integrada por diferentes saberes e formas expressivas, tais como a dança, o canto, a música, as narrativas míticas, os ornamentos, os artefatos, a arquitetura, a pintura corporal. As manifestações artísticas que se expressam através de artefatos e grafismos foram e ainda são concebidas e executadas em contextos que não compartilham das premissas ocidentais acerca da definição clássica de “arte”, enquanto um campo separado de outras esferas culturais e da sua múltipla ocorrência14. Entretanto, não é porque inexistam conceitos e valores estéticos que o campo das artes agrega na tradição
ocidental que os povos indígenas não formulem, em seus próprios termos, os critérios que distinguem e produzem beleza15. Uma das principais distorções existentes é relativa à identificação dessas artes, invariavelmente rotuladas na mídia e também nos compêndios escolares com uma expressão no singular: “arte indígena” ou por uma variante, atualmente em voga: “arte nativa”. Entretanto, essa qualificação não pode ser considerada enquanto um meio de identificação de uma arte que seja comum e geral aos índios, pois cada povo indígena desenvolve um estilo próprio que expressa preocupações específicas e possui uma representatividade única. A referência requer sempre a pluralidade, a saber, “artes indígenas” ou “artes ameríndias” para uma correta identificação dessas artes. Apesar das diferenças, um ar familiar as perpassa16 o que é facilmente perceptível através das matérias-primas empregada e de outros atributos que as tornam distinguíveis tanto das criações desenvolvidas entre outros povos indígenas, norte e sul-americanos. O pressuposto de que as artes indígenas se materializariam quase que exclusivamente pelas formas transportáveis, os objetos, os quais são o resultado de técnicas manufatureiras, tais como cerâmica, entalhe, cestaria, plumária, tecelagem é, evidentemente, reducionista. Essa concepção exclui as performances cênicas que se expressam através de diferentes linguagens, dança, música, canto, práticas xamânicas, narrativas míticas, discursos cerimoniais17.
14 DIAS, 2000. 15 LAGROU, 2009: 11.
16 RIBEIRO, 1987: 32. 17 MULLER, 2010: 14.
São obliteradas ainda as artes que possuem caráter efêmero, tais como a pintura do corpo, que atingiu grande refinamento entre os povos indígenas de língua Jê, sobretudo os Xikrin, Gorotire, Mekragnoti, Suyá, Xavante, que vivem nos Estados do Pará e de Mato Grosso. As pesquisas18 realizadas entre os Kayapó Xikrin demonstraram que a arte corporal apresenta certa unidade de estrutura, os grafismos traduzindo processos significativos, diretamente conectados a dimensões sociais, veiculando assim mensagens sobre a posição social de seus criadores e manipuladores. A ornamentação corporal xikrin patenteia, através de sinais diacríticos que distinguem grupos e marcam categorias, a inclusão de uma pessoa em determinadas associações de idade ou de grupos cerimoniais, aspectos que regem a vida social deste povo indígena. Outros aspectos extrapolam essas disposições, pois a beleza e a saúde constituem noções intimamente associadas para os Kayapó, cujo paradigma é um indivíduo pintado e adornado com esmero e requinte nos momentos rituais. Entre os povos indígenas no Brasil a arte abrange domínios diversificados, que compartilham um mesmo modelo de experiência coletiva com outras expressões culturais, perpassando dessa forma todas as dimensões da vida social19. Exprime-se, portanto, em contextos os mais diferentes, podendo ser encontrada na estrutura circular das aldeias ou das roças,
nas técnicas de entrançamento de um cesto, na preparação e apresentação de alimentos20. O campo abrangido pelas artes ameríndias revela-se, portanto, mais amplo do que aquele delimitado pelo pensamento ocidental que tende a privilegiar categorias de maior impacto visual como os ornatos de penas de uso ritual. Na realidade, esta associação é tão arraigada que o tema da produção artística indígena evoca espontaneamente os adornos plumários e, desta forma, o senso comum admite que “portar penas” constitui o atributo principal de uma identidade ameríndia21. Essa percepção, contudo, tem sua razão de ser porque a arte plumária é extremamente desenvolvida entre várias sociedades indígenas amazônicas como os Kayapó, Kaa’por22, os Karajá, os Wayana23, e outros mais. Entre os Karajá que vivem na Ilha do Bananal, no Estado do Mato Grosso, em determinados momentos do ritual de iniciação, o corpo dos adolescentes associa pinturas e atavios de algodão, miçangas e penas. Entre os adornos plumários destaca-se o impressionante leque occipital, raheto, que cinge a cabeça e que segundo a narrativa mítica, personifica o próprio sol. Assim ornamentados, os jovens se transformam em “magníficos espíritos dos mortos” e, ao desfilarem pela aldeia, enchem os assistentes de admiração e de orgulho por serem Karajá24. A prática artística indígena não recai exclusivamente sobre os ornamentos plumários e
18 Consultar Vidal, 1992b, para uma descrição minuciosa desta arte. 19 Velthem, 2000b, 2003; Barcelos Neto, 2001. 20 Cf. Ladeira (1983) para uma descrição da casa e da aldeia Timbira, Velthem (2003), sobre a decoração dos beijus e Costa e Malhano (1986),
para detalhamento da casa xinguana. 21 VELTHEM, 1995. 22 Os Ka’apor falam uma língua do tronco Tupi-Guarani e vivem na divisa dos Estados do Pará e Maranhão. 23 Os Wayana são falantes de uma língua da família Carib e vivem na TI Parque do Tumucumaque e TI Paru d’Este, ao norte do Estado do Pará. 24 Wang Chang, 2011: 148.
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outros artefatos cerimoniais, mas igualmente sobre os objetos que são empregados na vida cotidiana. Revela-se também em coisas miúdas, pessoais, como o brilho das penas introduzidas nos lóbulos das orelhas, o odor do urucu fresco da pintura corporal. Segundo a ótica dos Wayana esse aroma se reveste de um caráter especial, pois permite afastar os odores corporais que consideram desagradáveis e, portanto, inapropriados no estabelecimento de relações sociais harmoniosas. As concepções indígenas nem sempre valorizam um artefato por suas características intrínsecas. Amiúde, a apreciação estética está no próprio uso do objeto, sobretudo quando ocorre uma funcionalidade restrita ou então estar conectada ao fato dele permitir intermediar uma relação entre pessoas, através da permuta ou oferta. A qualidade estética também pode ser encontrada na complexa adequação entre os elementos constitutivos, técnicos e materiais, de um artefato. Neste caso, a valorização demanda o uso de matérias-primas específicas,
condicionando a escolha das espécies animais e vegetais utilizadas. Requer igualmente que os grafismos aplicados sejam adequados e que as técnicas de confecção e o equilíbrio das formas sejam assegurados. Os artefatos, os adornos, as máscaras e outras categorias de objetos, sejam eles de argila, de penas, de fibras vegetais, confeccionados ou usados por homens ou mulheres, em momentos da vida cotidiana ou nas complexas práticas rituais, congregam múltiplas propriedades e referências. Caracterizam-se por serem compartilhadas, pois os elementos formais e estéticos, revelados por um artefato, possuem um sentido e uma lógica que é compreendida pelo artista e pelo grupo ao qual pertence. Nas artes ameríndias é possível detectar-se dois enfoques principais25. Assim, diversas culturas privilegiam conceitos e representações mais especificamente ligadas às relações estabelecidas entre indivíduos e grupos em sociedade, ao passo que outras optam por representar entidades sobrenaturais e conceitos cosmológicos mais
25 Consultar Vidal e Silva, 1992 para o desenvolvimento desta classificação.
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15. Colar plaquetas retangulares de caramujo (povo kuikuru – 1997). Foto Acervo Museu do Índio.
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amplos. Ao estarem diretamente conectadas às dimensões sociais, essas artes veiculam mensagens sobre a posição social de seus criadores e manipuladores e operacionalizam distinções. Este aspecto fica patente na ornamentação corporal dos Xikrin, como mencionado, e dos Mehinaku e de outros povos que vivem no Alto Xingu. Para esses povos trata-se de uma atividade eminentemente social que incorpora adornos de penas e outros materiais, pintura do corpo e dos cabelos. Essa complexa interferência estética marca categorias e status sociais individuais, tais como a inclusão em determinados grupos cerimoniais, assim como informa sobre o caráter e o estado de espírito dos portadores26. Quando vinculadas aos conceitos cosmológicos, as artes indígenas refletem as concep-
ções acerca da composição do universo e dos componentes que o povoam, sobretudo dos que estão alijados da sociedade, os mortos, os inimigos, os animais, os sobrenaturais. Essas noções sublinham e enfatizam a origem não humana de artefatos e de outros elementos esteticamente valorizados e, em muitos casos, a valoração advém justamente dessa característica exógena. Segundo o pensamento dos Waujá27, os ornamentos corporais e outros objetos, tais como máscaras que representam seres sobrenaturais – ariranha e coruja – e os instrumentos musicais como as flautas e trompetes, não constituem uma criação puramente humana, mas configuram a transferência de uma parte do mundo dos seres “extra-humanos” para dentro da vida social28.
26 Gregor, 1982: 147-156. 27 Os Waujá falam uma língua da família Aruak e habitam a TI Parque Indígena do Xingu. 28 Barcelos Neto, 1999: 29.
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A aldeia e o cosmos: fabricação material A fabricação material constitui uma atividade prenhe de significados para os povos ameríndios29. As habilidades técnicas representam uma questão de conhecimento que associa diferentes formas de aquisição e produção que conjugam a visão, o gesto e outras faculdades. Os artefatos e muitos produtos materiais indígenas provocam um importante movimento de “imersão do cotidiano na ordem cosmológica”30 em um plano onde são requeridas habilidades do fazer. Representam elementos fundamentais para a completude social do indivíduo e a harmonia da vida comunitária, logrando efetivar mudanças do estado de uma pessoa. A confecção de artefatos é uma atividade técnica, artística, simbólica, acessível aos membros de determinada sociedade indígena. Constitui um conhecimento que resulta de um aprendizado evolutivo, oriundo de uma transmissão social, sexualmente diferenciada, em que pais, tios, avós iniciam as crianças. Iniciado na infância, este conhecimento se amplia e se aprofunda com a puberdade porque visa habilitar os jovens ao casamento e a geração de filhos, e vai adquirir refinamento e especialização na idade adulta31. A produção de moradias, artefatos, adereços representa uma expressão de conhecimento que se exerce em muitos campos. É requerido de homens e mulheres o conhecimento a respeito das inúmeras matérias-primas de ori-
gem vegetal, tais como palmeiras, cipós, arumã, cana-de-ubá, e também madeiras e fibras; assim como daquelas que provêm dos animais, como as penas e plumas dos pássaros e aves, as peles dos felinos, os pelos de macacos; e ainda dos elementos minerais como argila e pigmentos coloridos. Conhecimentos acerca do local onde esses materiais podem ser encontrados, a forma correta de colhê-los e processá-los para que possam ser trabalhados. Conhecimentos sobre gomas colantes, antiplásticos, tinturas vegetais e minerais, vernizes, e a confecção e uso dos instrumentos. Conhecimentos sobre os locais e os momentos favoráveis para a atividade produtiva, sobre as práticas propícias ou evitáveis que, em conjunto, contribuem para a excelência do resultado final. Conhecimentos sobre as técnicas de manufatura próprias ao sexo e idade do artista e que compreendem as formas de principiar, conformar o objeto e o arrematar. São igualmente requeridos conhecimentos sobre o repertório gráfico e sua origem mítica, assim como sobre a adequação e correta aplicação dos padrões que são pintados, entretecidos ou gravados. Conhecimentos sobre o uso e o armazenamento dos adornos e demais artefatos. Essa soma de conhecimentos, que se expande para além do elenco mencionado, confere às artes indígenas uma representatividade única, que se destaca visual e conceitualmente no material, na forma e nas representações gráficas.
29 Esse aspecto foi abordado por Guss, 1989, Overing, 1991, 1999; Velthem, 1998, 2000 a, 2003, para os povos de língua Carib, enfatizando a
importância da sua articulação com o cotidiano. 30 Overing, 1999: 85. 31 Velthem, 2009: 215.
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16. Panela vasiforme (povo tukúna – 1968). Foto Acervo Museu do Índio. 17. Panela gameliforme (povo marubo – 1994). Foto Acervo Museu do Índio. 18. Moringa (povo terena – 1955). Foto Acervo Museu do Índio.
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Homens e mulheres, quando dedicados à confecção de objetos, consideram os contextos de uso, cotidiano ou ritualizado, e outros prerrequisitos, relacionados com a vida em sociedade, entre as quais estão as obrigações matrimoniais e familiares que os engajam em dádivas e redes de troca. Através dos artefatos, funcionais e estéticos, são garantidos, por um lado, a própria reprodução e manutenção física dos indivíduos, e por outro as relações sociais. Enfim, são estabelecidas operações cosmológicas fundamentais que logram a afirmação e renovação desta mesma sociedade. Um componente estético está geralmente presente nessa atividade produtiva e os artefatos produzidos nas aldeias indígenas quase sempre se apresentam muito mais elaborados e embelezados do que seria necessário para o cumprimento de suas funções utilitárias32. Essa consideração justifica o tempo dispendido por inúmeros povos indígenas na aplicação de grafismos em utensílios de madeira e cerâmica, que logo após o primeiro uso, tendem a desaparecer. Forma e função estão sempre intimamente relacionadas e assim a incorporação social e consequente percepção visual de um objeto só se concretizam quando o mesmo está terminado e, portanto, pode ser utilizado. A experiência artística inclui um fazer e um usufruto diário que se revela até em coisas pouco perceptíveis, como a altamente apreciada coloração esbranquiçada das folhas fechadas de palmeira, em um cesto recém-concluído por um artesão wayana. A categoria dos objetos trançados possui ampla distribuição geográfica e se apresenta, entre os povos indígenas, segundo uma apreciável variedade de técnicas de confecção, de elementos gráficos, de formas, que conectam cada objeto a uma função específica ou a vários usos. Na vida da aldeia, os artefatos trançados tanto desempenham corriqueiras funções, armazenando as miudezas de um indivíduo, como permitem que uma família possa transportar e processar os alimentos necessários à vida cotidiana. Muitos trançados, como cintos, tipoias ou suportes para ornatos plumários contribuem para a estética corporal e são determinantes para a individualização sexual ou etária, estabelecendo por este meio uma conexão
que se prolonga nos rituais funerários ou de iniciação, os quais permitem intermediar a ação da sociedade sobre os corpos de seus membros. Outros artefatos, como os cestos cargueiros, constituem verdadeiros painéis de identificação coletiva e individual dos indivíduos, como ocorre entre os Munduruku, que vivem no sul do Estado do Pará. O cesto cargueiro itiu constitui um artefato imprescindível na vida cotidiana das mulheres munduruku. Entretanto, este cesto preenche outras funções, uma vez que veicula informações sobre o lugar que tanto o confeccionador como a usuária ocupam no seio dessa sociedade indígena. Todos os cestos itiu se assemelham, o que os diferencia são os grafismos aplicados e as alças de sustentação. Uma vez concluído, o artesão aplica grafismos na face externa do cesto cargueiro, os quais identificam o clã ao qual pertence. A alça é confeccionada pela usuária do artefato, com entrecasca de envira de coloração esbranquiçada ou avermelhada, porque deve observar a tonalidade que permite reconhecer a sua metade exogâmica, a saber, ipakpökánye “vermelho” e iritiánye “branco”. Essa divisão dual atua na regulação dos casamentos e estabelece as fundamentais características de reciprocidade, rivalidade e de outros aspectos antitéticos existentes entre os Munduruku. Este é o motivo porque o cesto cargueiro de alça branca demonstra que a dona do itiú pertence à metade “branca”, identificação esta herdada do pai e, paralelamente, que seu marido e filhos são da metade “vermelha” porque o grafismo pintado no mesmo cesto foi executado pelo marido. O padrão aplicado ao cesto possui outros significados, pois o seu significado se conecta ao clã ao qual o artesão pertence, e que tanto pode ser a formiga saúva, como a árvore ucuúba ou o jacaré e outros mais, de um repertório de 39 clãs33, relativos às duas metades exogâmicas. A identificação dos clãs não é aleatória, pois uma particularidade, presente nas espécies animais e vegetais descreve a coloração que os identifica. Desta forma, o jacaré é um dos clãs da metade “vermelha” porque ele tem olhos dessa cor. Os clãs da metade “branca” seguem a mesma associação, pois o peixe piaba, o algo-
32 Ribeiro, 1987: 30. 33 Esses grafismos foram repertoriados em 1973, em pesquisa de campo.
19. Mácara xinguana capuz tecido (povo bakairi – 2003). Foto Acervo Museu do Índio. 19
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doeiro e a seringueira, estão associados à cor branca através de suas escamas, frutos e seiva34. A tecnologia dos trançados não se exerce exclusivamente na produção de artefatos de uso cotidiano. Nos momentos rituais ela adquire refinamento e permite a muitos povos indígenas como os Timbira, os Karajá, os Kayapo, os Tapirapé, os Wayana, executarem máscaras trançadas. Imponentes e impressionantes pelo tamanho e a complexidade das formas e materiais, as máscaras indígenas povoam o imaginário ocidental, muito embora só possam ser conhecidas totalmente inertes, em exposições em museus dos centros urbanos. Contudo, uma máscara comporta um aspecto referencial, o ser que ela representa e adquire expressão somática apenas no contexto da coreografia ritual35. As complexas formas de uma máscara revelam e também dissimulam o verdadeiro significado da sua representação, relacionado com a criatividade e com certa visão de mundo e das coisas materiais. Atuando como a síntese de um conjunto de traços ideológicos, a máscara parece culturalmente carregada e atrai porque acolhe e nutre paradoxos. A fascinação sentida desprende-se de uma múltipla presença que remete ao aparente excesso contido neste artefato ritual, que se materializa menos com o intuito de solucionar o paradoxo da alteridade como coisa humana, do que para apresentá-lo e confirmá-lo. As características das máscaras estão ligadas a premissas materiais, sensoriais, estéticas, simbólicas, ontológicas, contidas no próprio artefato ou a ele agregado, permitindo articular a relação entre o indivíduo e o macrocosmo. Portanto, uma máscara é também o receptáculo de uma multiplicidade de referentes que requer a associação de percepções e refletividades para lhe conferir sentido e permitir a sua completa apreensão36. As máscaras indígenas diferenciam-se pela técnica de fabricação, pela forma e sua ornamentação. Uma máscara pode cobrir apenas uma parte do corpo do portador ou encobri-lo completamente. De um modo geral, as máscaras são pintadas e portam grafismos, além de serem frequentemente associadas a peças de arte plumária. As máscaras adotam igualmen34 Velthem, 1992, 2011 35 Vincent, 1986, Goulard, 2011. 36 Goulard, 2011: 25.
te posturas, tais como comportamentos, danças, cantos, gestos que se conectam à entidade representada, cuja significação é geralmente contrária a dos humanos e assim exprimem diferentes realidades. A presença de máscaras é o indício da encarnação de outros seres, quase sempre sobrenaturais, inimigos ou divindade imortais, assimiláveis a uma iconografia materializada em forma tridimensional. Através desta característica, o poder e a influência de uma máscara advêm justamente de sua capacidade de representar e assim, de exprimir e conceituar diferentes realidades. As máscaras são essencialmente mediadoras, o que é proporcionado por diferentes aspectos, entre os quais as suas qualidades imagéticas, relacionadas com a construção de outros “corpos”. Estes são geralmente aberrantes, visto que para a maioria dos povos indígenas, as máscaras consistem em privilegiados painéis de visualização dos não humanos. Para a compreensão deste aspecto é necessário frisar que nas sociedades indígenas a importância da corporalidade é recorrente e está diretamente conectada às categorias de identidade (individuais, coletivas, cosmológicas, étnicas) que se exprimem através de idiomas corporais como a alimentação e a decoração corporal37. O corpo humano, enquanto matriz organizadora central estabelece uma correlação simbólica com outros elementos culturais e, nessa lógica, máscaras e também outros artefatos são compreendidos enquanto seres corporificados, ou melhor, constituem “corpos” ou parte de “corpos”, cuja principal função é a de fazer emergir a diferença e a definição de uma identidade. A mais espetacular das máscaras dos Wayana38 impacta pela complexidade e monumentalidade. É denominada de olok e expressa, em sua concretude e nos materiais empregados, sobretudo penas e plumas, a anatomia de Iolokimë, a saber, os cabelos, pele, dentadura, membros inferiores e também os seus adereços. Trata-se de um ser que integra a categoria genérica dos não humanos, associados com a extrema alteridade e qualificáveis enquanto “sobrenaturais” e que podem ter aspecto de serpente, de felino ou 37 38 39 40
serem antropomorfizados. Os integrantes da categoria associada à máscara personificam as diferentes formas de comportamento agressivo dos inimigos, assim como das enfermidades, que em sentido real e figurado, disparam suas flechas contra os Wayana. As principais características morfológicas desses sobrenaturais é o antropomorfismo e uma estética corporal notável, além do fato de se locomoverem dançando e falarem cantando39. Segundo a narrativa mítica wayana, o sobrenatural Iolokimë vive em um lago, no alto rio Paru de Leste. Está profusa e permanentemente adornado, conservando-se a maior parte do tempo submerso em águas profundas, dançando em um ritual infindável. Vive com outros de sua espécie e os subordinados, sobrenaturais que possuem a forma de peixe, entre os quais se destaca o peixe pacu e que devem prestar-lhe serviços, sobretudo carregando os despojos destinados ao seu sustento. Ocasionalmente a vasta cabeleira de Iolokimë desponta das águas e o sobrenatural emerge até a altura da boca. Quando isso ocorre é sinal de que está faminto e nesta posição espreita os que se aventuram nas águas onde vive, tanto animais como humanos. Devora a todos, em pé e com grande estardalhaço, cuspindo os ossos a distância, um comportamento característico dos sobrenaturais, mas antitético dos humanos. Ainda segundo o mito, um wayana retardatário conseguiu escapar, detendo-se na margem. Ao regressar à aldeia, relatou o que viu e de comum acordo com os demais, decidiram reproduzir o corpo do sobrenatural para dançarem, o que resultou na máscara olok 40. Para os Wayana, a permeabilidade do mundo humano e do não humano é essencialmente cheia de perigos, mas resulta, quase sempre, na visão/ apropriação de elementos gráficos e artefatuais. Estes, ao serem reproduzidos em espaços sociais, materializam a convergência desses mundos, assim como estabelecem uma necessária distinção, aspecto que constitui a essência da arte e dos objetos artísticos entre os Wayana e dos quais a máscara referida é um dos mais significativos exemplos.
Viveiros de Castro, 2002: 387. Os Wayana constituem um povo de língua Carib que vive às margens do rio Paru de Leste, no extremo norte do Estado do Pará. Velthem, 2011. Velthem, 2003, 2005a, 2010.
20. Faixa frontal emplumada (povo menkrangnoti – 1994). Foto Acervo Museu do Índio. 20
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As serpentes pintadas e os grafismos A vida indígena é essencialmente marcada por uma intervenção social que objetiva imprimir a marca cultural, a identidade, em pessoas e coisas, integrando a sua essência mesma. Revela-se, sobretudo através daquilo que se convencionou denominar de “decoração corporal”. Quando desprovidos desse referencial, os indivíduos permanecem incompletos e despersonalizados culturalmente41. A elaboração decorativa que se caracteriza por ser essencialmente gráfica destina-se tanto aos humanos quanto aos artefatos: cestos, remos, recipientes cerâmicos, bancos, cuias, cabaças, com variações formais porque são executada através de diferentes técnicas. Utilizando pigmentos minerais e também vegetais, tais como urucu e jenipapo, e tintas industriais, os padrões revelam o estilo de cada povo indígena e, mesmo quando ocorre coincidência formal, os significados são sempre diferenciados. Os grafismos procuram comunicar outra ordem que é ao mesmo tempo representativa e conceitual e esta perspectiva contribui efetivamente para a compreensão do entrelaçamento existente entre a arte, a estética e os diferentes domínios sociais e cosmológicos das sociedades indígenas. O eixo fundamental consiste na propriedade não humana do repertório decorativo, aspecto que é compartilhado por inúmeras sociedades como os Wayana, Tiriyó, Wajãpi, Yekuana, Waiwai, Desano, Baniwa que vivem na calha norte do Rio Amazonas, e também os Waudjá, Asurini, Kaxinawa, e outros mais, estabelecidos ao sul desta região. Uma serpente sobrenatural é referida em muitos contextos como Cobra Grande e constitui uma presença recorrente em todo o Brasil indígena. Integra ainda o folclore nordestino e amazônico e está presente na literatura e nas artes plásticas brasileiras42. Para os povos do Norte Amazônico, a Cobra Grande constitui a figura central dos mitos que relatam as estratégias de obtenção dos grafismos. Essa entidade é conhecida entre os Wayana como Tuluperê, e o repertório gráfico empregado é compreen-
dido como sendo as suas pinturas corporais e, portanto, como suas inerentes e permanentes criações. Segundo relata um conhecido mito, este ser antropofágico foi morto através das artes xamânicas dos Wayana. Desta forma, os grafismos (milikutom) puderam ser visualizados/ copiados e reproduzidos na cestaria43. Diferentemente, entre os Waujá e ainda segundo a narrativa mítica, o repertório ornamental consiste da pintura corporal elaborada por um homem, referido como Arakoni que se transforma em imensa serpente, após cometer incesto com sua irmã44. Dispostas em um artefato ou sobre o corpo humano, as unidades gráficas se apresentam de diferentes formas e assim podem ser isoladas e variadas, ou então se apresentarem uniformes, através da repetição ilimitada de um mesmo padrão. Desta forma, alguns elementos gráficos parecem abstratos a um olhar desatento, mas constituem na realidade representações de seres pertencentes ao cosmos indígena. Os exemplos são inúmeros, mas é suficiente lembrar que entre os índios xinguanos, o padrão triangular remete à representação do uluri45 e o losangular é sempre interpretado como “peixe”, muitas vezes especificado como sendo o peixe merexu ou então o peixe-pacu, indicando a importância do peixe na vida econômica, ritual e nas concepções sobrenaturais desses povos46. Os grafismos, que são múltiplos e diferenciados, representam não propriamente a figuração de um ser humano, de um animal, vegetal ou de um sobrenatural, mas sim de uma figura plástica das concepções subjacentes a cada um desses elementos. A sua apreciação formal permite enfatizar outro aspecto, a saber, a existência de elementos figurativos ou icônicos que se traduzem por formas de reconhecimento visual, de semelhança e que são geralmente constituídos pelos traços mais característicos e definidores do modelo, a saber, um objeto, um animal, um sobrenatural, o qual nomeia o grafismo. Para os Wayana, um padrão gráfico é sempre uma evocação referencial porque expressa várias
41 Vidal, 2001. 42 Vidal, 2009: 28.
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Velthem, 1998. Coelho, 1981: 60- 61, Barcelos Neto, 2001: 200-201. Uma peça da indumentária feminina. Coelho, 1981: 63; Ribeiro, 1993: 375.
21. Tigela mirânia – 1978. Foto Acervo Museu do Índio. 22. Panela vasiforme (sem procedência – 1950). Foto Acervo Museu do Índio.
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realidades conectadas e, portanto, não faz alusão a um único modelo, mas revela imagens múltiplas, um mesmo grafismo detendo vários significados: um animal e um sobrenatural de mesmo aspecto, mas de grandes proporções. Ademais, possuindo entre si afinidades analógicas, os padrões formam um conjunto representacional que converge para um mesmo repertório, as pinturas corporais da Cobra Grande, acima aludida. Graficamente evidenciam a predação animal e sobrenatural e os sentidos da metamorfose, temas capitais da ontologia indígena que influencia diretamente a sua arte e estética47. Nas sociedades indígenas, a reprodução dos complexos padrões tecidos ou pintados pertence geralmente a especialistas. Este saber está invariavelmente acompanhado de um profundo conhecimento das narrativas míticas e das práticas rituais, por compreenderem domínios intimamente associados. Entre os Kaxinawa48 o conhecimento feminino dos padrões (kene) de tecelagem é considerado como um sinal de inteligência e dedicação, porém nem todas as mulheres são capazes de dominar o seu longo aprendizado. O reconhecimento enquanto especialista em tecelagem aumenta o prestígio e o poder econômico de uma mulher, assim como as suas chances de se tornar a principal mulher da aldeia, uma vez que a autoridade feminina é justamente denominada de ainbu keneya, “mulher do desenho”49. Para os Kaxinawá, o processo ritual de aprendizagem da tecelagem com grafismos tem dois momentos. O primeiro acontece logo após o casamento da jovem artesã e tem o concurso do marido. Visa particularmente a dotá-la de inspiração para a reprodução dos padrões. Assim, em uma noite de lua nova, o casal vai para a floresta em busca da “cobra desenhada” que 47 48 49 50 51 52 53
vem a ser a jiboia. O marido mata a serpente e a esposa leva o couro para casa, pendurando-o no alto, acima de seu tear. É arriscado apontar para este couro, mas a tecelã deverá dirigir-se a ele constantemente, exaltando a beleza de seus padrões e a vontade de reproduzi-los. O segundo momento também ocorre em noite de lua nova, quando a jovem é acompanhada por sua instrutora que, na floresta, lhe pinga nos olhos, pulsos e braços o sumo de três folhas. Este líquido a auxilia a sonhar com grafismos, e assim aumentará sua capacidade de aprendizagem, durante os momentos em que contempla a avó tecendo. Neste aprendizado, banha regularmente a neta com folhas para aumentar sua concentração, assim como lhe ensina as canções com os nomes dos desenhos para que a jovem possa desenhá-los e tecê-los50. Entre os Kaxinawá as representações gráficas dos tecidos e da pintura facial são consideradas como caminhos a serem seguidos pelos espíritos do olho dos homens51. Os grafismos não representam os seres vistos em sonhos, mas os caminhos que ligam e filtram o acesso dos iniciados a diferentes mundos. Para os Trumái52, entretanto, eles evocam não apenas a representação física de um componente cosmológico, mas igualmente sua espiritualidade, visto que cada objeto ou animal representado é igualmente um espírito e é nesta medida que o grafismo capacita o indivíduo a conformar a sua pessoa social53. Observa-se então que nas sociedades indígenas, os grafismos são culturalmente densos, pois representam uma visão de mundo e síntese de diferentes realidades. Ademais, o seu principal papel seria o de transmitir uma percepção sintética de múltiplas realidades, aspecto que é expresso através do formal e do conceitual.
Velthem, 2003: 306. Os Kaxinawá pertencem à família linguística pano e vivem no sudoeste do Estado do Acre. Lagrou, 2011: 66. Lagrou, 2007: 203-207. Lagrou, 2009: 82. Os Trumái vivem no Parque Indígena do Xingu e falam uma língua isolada, sem parentesco com qualquer outra língua indígena. Monod-Becquelin, 1993: 560.
As artes indígenas: tradição e inovação As sociedades indígenas no Brasil estão sendo submetidas a um contexto de transformação social acelerado, devido às atuais características dos contatos. Os indivíduos produtores de cestos, de máscaras e de outros artefatos tiveram de encontrar respostas para um seletivo número de pressões decorrentes deste quadro e que alteraram radicalmente o que produzem, assim como as formas de avaliar e transacionar esses produtos. Essas pressões envolvem não somente a introdução de novas técnicas, de materiais, usos, como também o deslocamento dos artefatos indígenas para fora do contexto da aldeia. As mudanças originam-se, em geral, da ampliação do mercado externo mercantilista, que envolve, em alguns casos, colecionadores que demandam “objetos autênticos”, acarretando transformações radicais neste comércio54. O surgimento de oportunidades de mercado atraiu muitos grupos indígenas, mas a comercialização de seus produtos é quase sempre estabelecida em termos desvantajosos, pois impostos pelas conveniências deste mercado55 que invariavelmente os rotula enquanto “artesanato” e, ao serem aquilatados valorativamente, é instituída uma distinção hierárquica entre arte e artesanato. Além dos objetivos comerciais, essa avaliação decorre do fato de as produções artísticas ameríndias serem julgadas anônimas e estarem ligadas a um modo de vida pretérito, atrasado56, um pressuposto frequentemente associado às produções artesanais, indígenas ou
não. Em outro registro, o termo “artesanato” foi apropriado por diferentes povos indígenas, dentre os quais os Waiãpi, os Wayana e Aparai, para designar os objetos que se destinam à comercialização através de suas Associações e da Artíndia (FUNAI). As artes indígenas são muitas vezes apreciadas com certo saudosismo e assim aquilatadas como representando obras de artistas que são incapazes de operar mudanças ou como sucedâneos empobrecidos de uma arte outrora pujante. A realidade que se descortina é completamente diversa. Canções são criadas, narrativas míticas são reelaboradas e os objetos e artefatos podem apresentar novas formas, materiais e grafismos que são obtidos através do contato com outros grupos indígenas e nos centros urbanos57. As recriações nas artes indígenas contribuem efetivamente para que os grupos produtores possam continuar a redefinir a sua própria cultura, assim como operam politicamente em prol de sua manutenção. A respeito desse aspecto, assinala-se que entre os povos indígenas alto xinguanos, como os Mehinaku e Waujá, essas inovações se apresentam sobretudo na pintura corporal e nos cintos tecidos de miçangas, nos quais destaca-se a reprodução da bandeira brasileira58. Um caso particularmente interessante é o de uma coroa produzida pelos Kayapó do rio Xingu com canudinhos plásticos de cores vivas, como se fosse uma variante da coroa radial (àkà), que é
54 Hugh-Jones, 1995, Velthem, 2005b. 55 Ribeiro, 1983. 56 Barbosa, 1995: 135-136.
57 Vidal e Silva, 1995, Vidal, 2001. 58 Coelho, 1993: 621
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confeccionada com penas de papagaio ou arara. As coroas de canudinhos surgiram por ocasião de um ritual, durante o qual as confeccionadas com penas foram destruídas por um incêndio. O sucesso obtido por essa inovação permitiu a seu inventor incorporá-la ao repertório de seus privilégios rituais, integrando a partir de então o patrimônio do segmento residencial ao qual pertence59. No passado, assim como no presente, as artes ameríndias sofreram particularmente com a influência de missionários, católicos e protestantes, que se empenharam na imposição de novas formas arquitetônicas, musicais, iconográficas, visando particularmente a estética corporal indígena, com a sistemática introdução do vestuário. Neste contexto, as produções artísticas ameríndias buscam, na maioria das vezes redefinir conceitos estéticos e sociais preexistentes60. Como, não raro, as concepções que norteiam os atos criativos permanecem ativas, as inovações procuram nelas se enraizar para compartilhar de seus cânones, revestindo-se, entretanto, de novos sentidos61. Estudos etnológicos demonstraram que é possível detectar assim um processo de resistência, apesar das transformações intensas a que essas artes estão
sendo submetidas, tanto na composição como na variação dos tipos de artefatos e grafismos62. Nesse processo, os artistas indígenas reformulam suas produções e as vias que norteiam essas reformulações e incorporações são as mais variadas. Podem estar representadas por criações individuais, a possibilidade de aquisição de novos materiais, a descoberta de outros tipos de grafismos, inclusive através de livros. Criações inovadoras são geralmente o fruto da inventividade de artistas mais laboriosos que dominam com destreza os processos técnicos e gráficos, assim como a capacidade de selecionarem, adaptarem e contextualizarem os elementos externos, os quais, ao se disseminarem, passam a integrar o repertório gráfico utilizado pelo grupo63. As manifestações artísticas indígenas, que se expressam através de artefatos e grafismos, têm sido alvo no Brasil de algumas iniciativas positivas, em um contexto mais amplo de proteção dos patrimônios culturais indígenas. As ações afirmativas articulam-se ao conceito de patrimônio cultural imaterial cujo surgimento é parte de um longo processo que envolve diferentes países e instituições, preocupados com a diversidade cultural. Paralelamente, órgãos
59 Verswijver, 2011: 127-128. 60 Vidal, 1992. 61 Velthem, 1992, 2010.
62 Gallois, 2005: 100. 63 Barcelos Neto, 2001: 209
23. Formão (povo parakanã – 1994). Foto Acervo Museu do Índio. 23
nacionais, com a colaboração de universidades, museus, organizações não governamentais e as próprias associações indígenas, procuram aprimorar estratégias relativas à documentação de saberes tradicionais. Apesar de ocuparem um lugar predominante nos programas de salvaguarda, essas estratégias levantam uma série de questionamentos64. Entretanto, estudiosos do patrimônio imaterial indígena defendem a necessidade e a urgência da documentação dessas manifestações, pois garantem às culturas indígenas um espaço no mapa das culturas do mundo, mas o registro, em si, não assegura nem a sobrevivência nem a continuidade de uma prática cultural65. É preciso reconhecer, contudo, que os registros, os inventários e, também, as informações agregadas às coleções etnográficas, depositadas em museus brasileiros e europeus, contribuem para o fortalecimento cultural das comunidades indígenas. O presente ensaio procurou ressaltar alguns dos principais conceitos e práticas que constituem o estrato principal das artes ameríndias sem, contudo, pretender esgotar o assunto. Concluindo, enfatiza-se que as expressões artísticas indígenas apresentam-se antes como
marcadas pela impressão de uma acumulação de cargas e menos como o resultado de um impulso criativo espontâneo. Parecendo abolir o tempo, essas obras conferem a cada uma de suas criações a qualidade e valor de modelo, pois as artes indígenas referem-se ao universo mítico, ao simbólico, ao sistema de poder, ao terapêutico, às relações sociais, mantendo-se atualmente numa grande tensão provocada pela necessária articulação entre tradição e inovação66. Enquanto produtos humanos, essas artes refletem as mudanças efetivadas no decorrer do tempo, mas também constituem um arcabouço transformativo que faculta o surgimento de concepções, de percepções, de técnicas que proporcionam às sociedades criadoras os meios de adaptação às novas realidades. O que revelam é certa qualidade de “estar-no-mundo” a qual infere um tipo de participação, de uma ideologia, de uma crença, todas profundamente marcadas pelo cultural, pelo comunitário, valores reconhecidos e compartilhados pelos diferentes povos indígenas no Brasil. Esses povos são detentores de uma arte inegavelmente diferenciada, mas dotada de uma contemporaneidade inquestionável que a conecta ao debate atual e mundial sobre arte e cultura.
64 Velthem, 2010: 20. 65 Gallois, 2006: 77
66 Vidal e Silva, 1995: 374; Vidal, 2001:42.
Lucia Hussak Van Velthem é museóloga, doutora em Antropologia Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutora (CNRS-Nanterre). Ocupa o cargo de Pesquisadora Titular do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. É autora de diversas pesquisas antropológicas sobre alimentação, tecnologia, arte, estética e cosmologia entre os Munduruku, Wayana, Aparai (PA), Baré (AM) e pequenos agricultores (AC).
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Arquitetura e culturas indĂgenas no Brasil: tecnologias apropriadas 58
JosĂŠ Afonso Botura Portocarrero
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Introdução Um dos maiores patrimônios brasileiros, ao lado das riquezas naturais e do enorme potencial do seu povo, é ser um país multicultural. Habitam aqui mais de 200 etnias indígenas, falando línguas que pertencem a mais de 30 famílias linguísticas diferentes. Em Mato Grosso, estado localizado no centro da América do Sul, vivem 40 grupos indígenas, cujas terras ocupam cerca de 11% do território do estado, em complexa relação com os segmentos da sociedade não indígena. Tamanha diversidade, como era de se esperar, abriga uma grande quantidade de bens materiais e imateriais, constituindo um rico e pouco conhecido acervo de tecnologias e desenhos, dentre esses o desenho peculiar de suas casas. O desenho atual dessas moradias representa a ponta de uma cadeia evolutiva, da qual se conhece apenas – e parcialmente – a versão existente depois que os não indígenas se puseram em contato com aquelas sociedades. Vestígios mais anteriores são, de modo geral, frutos preliminares de pesquisas arqueológicas. As casas indígenas podem ser caracterizadas como o resultado de um longo período de manipulação do que chamamos de tecnologias apropriadas para condições de vida, que remontam ao holoceno. Em 500 anos de contato, muito de suas técnicas construtivas e de seus desenhos apropriados se perderam sem que pudessem ter sido avaliados. Entretanto, alguns permaneceram mais ou menos conhecidos e estão espalhados pelo mundo, porque foram registrados e divulgados pelas expedições científicas estrangeiras que atravessaram o interior do Brasil, principalmente nos séculos XVIII e XIX. É interessante
notar que as habitações indígenas nem sempre foram o objeto de estudo, porém é possível perceber nos documentos desses viajantes e estudiosos a reprodução do “desenho” das habitações indígenas, o que possibilita caracterizar o modo construtivo de algumas delas. É possível compreender como foram “inventadas” e se desenvolveram, transformando-se, adaptando-se, constituindo-se com características próprias, podendo ser reconhecidas por algumas soluções de desenho ambiental especialmente adequadas, e que podem ser consideradas como raiz ou paradigma para projetos de arquitetura contemporânea. Embora não faça menção às casas indígenas, o etnógrafo Erland Nordenskiöld, no trabalho intitulado The American Indian as an Inventor (Nordenskiöld, 1929) já destacara a criatividade e as invenções dos índios da América do Sul, relacionando uma grande quantidade de descobertas genuinamente a eles atribuídas, chamando atenção e valorizando o seu potencial de modo a permitir uma leitura que podemos hoje chamar como design apropriado. Entre os cientistas, pesquisadores, artistas, viajantes e aventureiros mais conhecidos que estiveram entre os povos indígenas no Brasil e que contribuíram com coragem, perseverança, audácia e observações em campo para que se pudesse reconhecer esse “DNA” criativo, podemos citar nomes como Hercule Florence e Aymé Adrien Taunay, Karl von den Steinen, Max Smith, Wied-Neuwied, Rondon, Lévi-Strauss, Maybury Lewis, Luís de Castro Faria e Curt Nimuendajú, entre vários outros, que nos legaram informações fundamentais para o estudo das casas indígenas. A construção desse legado ao longo de muitos anos nos
24. Etnia yanomami – Festa da Pupunha. Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI. 24
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permite dizer que o desenho indígena é fonte de contínua energia, sendo portador de uma raiz cultural paradigmática, base para uma matriz de desenho sustentável.1 As tipologias construtivas indígenas são passíveis de serem tratadas e incorporadas aos sistemas construtivos existentes na sociedade de modo mais amplo. A seleção tecnológica, na concepção de Fernando de Tudela (1982, p. 30), visa à modificação e melhoria tanto das técnicas modernas, transferidas de outras realidades, de outros países, quanto das técnicas empíricas e tradicionais, podendo gerar a aplicação de novos conhecimentos mais apropriados a partir de sua origem. Ocorre que, na maioria das vezes, as pessoas tendem a considerar a tecnologia como uma constante, ao invés de uma variável com enorme potencial inovador, passível de receber mudanças. Uma postura conservadora impede ou obstaculiza o desenvolvimento de investigações e de tecnologias apropriadas. Assim, um imenso acervo de técnicas que foram cuidadosamente selecionadas é deixado de lado; produtos de longos processos de seleção tecnológica, ao invés de recuperados em face das exigências contemporâneas, continuam esquecidos – como é o caso do desenho das casas indígenas. Alva (1982, p. 3) define o desenho como atividade que utiliza um conjunto de elementos materiais, condições ambientais e de organização para alcançar um comportamento predeterminado de um produto cujas características foram previamente definidas, e chega a propor o termo ecodesenho ou ecoplanejamento para estruturas arquitetônicas e urbanísticas com
atenção especial aos fatores ambientais. Para Alva, nesse sentido, o desenho constitui a mais suave das tecnologias. Esse entendimento sobre o desenho parece ser extremamente acertado quando entendemos a representação das casas indígenas como desenho cultural, da maneira utilizada por Carlos Zibel Costa (1993) com a casa Guarani, para quem esse desenho é carregado de signos da cultura do povo que o produziu. Alva ainda assinala, a respeito, aspectos culturais e políticos implícitos no conceito de tecnologias apropriadas, citando Darrow2 (apud ALVA, 1982, p. 3), que reconhece “que os diversos grupos culturais e geográficos possuem tecnologias diferentes que são apropriadas às suas circunstâncias e que a autodeterminação tecnológica é essencial para a identidade cultural e política”. A compreensão dessas implicações culturais torna fundamental a percepção de Reeddy (1978, apud ALVA, 1982, p. 4)3, de que a tecnologia (o desenho aqui entendido como tecnologia) é comparável a um material genético, como uma espécie de código da sociedade que o concebeu, que o desenvolveu, sendo um fator importante para a preservação da identidade e a autodeterminação de um povo. A seguir, como exemplos da complexidade cultural das sociedades indígenas e de como suas habitações estão inseridas em um universo simbólico mais amplo, serão contemplados dois povos indígenas: os Bororo e os Paresi. Os primeiros são habitantes imemoriais das bordas do Pantanal e os Haliti (autodesignação do povo Paresi) habitam o grande divisor das nascentes do Amazonas e do Paraguai.
1 Ao longo dos últimos anos, essa inspiração e essa energia têm favorecido a constituição de um núcleo de pesquisas na Universidade Fede-
ral de Mato Grosso (Núcleo Tecnoíndia), reunindo antropólogos, arquitetos e estudantes, em uma importante troca cultural com os próprios índios, inclusive com participação do primeiro arquiteto indígena do Brasil, Jucimar Ypaikire, da etnia Bakairi, responsável pela confecção de uma coleção original de maquetes, agregada ao acervo do projeto. Tal acervo tem sido progressivamente compreendido como um banco de memória sobre as casas tradicionais, algumas já não construídas como moradias, devido à crescente influência da cultura e da sociedade não indígena nas aldeias. Os outros membros do núcleo, que coordenam e orientam projetos, são as professoras arquitetas Dorcas Araújo e Yara Galdino e a antropóloga Maria Fátima R. Machado, a quem agradeço pelas contribuições na elaboração deste ensaio. 2 DARROW, K.; PAM, R. Manual de Tecnologia Adecuada. Centro de Estúdios Econômicos y Sociales del Tercer Mundo. México (sem data). 3 REDDY A. K. Background and concept of Appropiate Technology. Documento apresentado em reunião sobre tecnologias apropriadas na Índia em 1978.
A cosmologia e a casa Bororo: Bóe é-wa – aldeia Boe Bái é a palavra do povo Bororo, ou Boe como eles se autodenominam, para designar suas casas. Para se conhecer o Bái é preciso percorrer um caminho que conduz a um significado mais amplo do que aquele que apenas indica uma morada. Por esse percurso pode-se aproximar da casa Bororo. Desvendá-lo é tarefa que requer atenção e prudência, porque se trata de território cuja leitura está sujeita a um conjunto de determinantes gravadas em código edificado na tradição Boe, inacessível ao visitante menos atento. Aqui resumem-se os aspectos considerados mais relevantes para efeito de interpretação de espaço, deixando-se de abordar as questões antropológicas de sua organização social que, por outro lado, já foram objeto de detalhados estudos de antropologia. Quanto à sua origem, a aldeia remete à lenda da inundação geral, da qual sobreviveu um único índio, Merìri Pòro. Este sobrevivente fica ilhado no cume de um morro4, e ali acende um fogo, aquecendo pedras que passa a jogar nas águas; o calor das pedras provoca a evaporação, e faz com que as águas retornem ao seu nível normal. O índio então encontra um guaçuetê fêmea (cerva) e com ela procria. Os primeiros filhos nascem com as características da mãe e são sacrificados. Os que passam a nascer semelhantes ao pai sobrevivem e dão nova origem aos Boe. Estes são dispostos em aldeias circulares, organizadas como antes da inundação5, realizando uma espécie de refundação das suas aldeias. Estas aldeias, construídas ao modo tradicional, circunscrevem-se num diâmetro de aproximadamente 100 metros, em terreno cuja topografia está suavemente inclinada na direção Oeste, do lado em que também deverá estar localizado o curso d’água. A construção começa, segundo a lenda, pelo Bái mána gejéwu ou baìto, forma comum usada pelos Bororo para designar a casa dos homens, que determina o centro do círculo e que tem seu eixo maior na orientação Norte/ Sul. Seu eixo menor Leste/ Oeste divide a aldeia em duas metades exógamas: Eceráe e Tugarége, mas que também divide
na ordem contrária o seu interior: a metade dos homens Eceráe fica dentro da metade Tugarége e vice-versa, como sugere o esquema gráfico da aldeia, construído a partir da Enciclopédia e de Renate Viertler (1976): Na lateral do Bái mána gejéwu, face Oeste, está o bororo – o pátio das cerimônias. Há um caminho em linha reta, perpendicular ao baíto, que liga o bororo ao aíje múga – lugar dos atores. Este lugar fica afastado, externo ao círculo das casas, constituindo-se numa clareira de aproximadamente 20 metros de diâmetro. É lá que os homens preparam-se, fora das vistas das mulheres, para os cerimoniais. O caminho que os une é chamado de aije rea, ou caminho dos espíritos. Jon Cristopher Crocker, referindo-se ao desenho das aldeias, diz que para os Bororo ela é como um modelo ideal, uma planta moral, que estabelece uma ordem normativa e que regula a sua sociedade. Segundo ele: As posições dos clãs no círculo da aldeia são localizadas com referência aos pontos cardeais determinados pelo curso do sol, de maneira que cada clã se encontra em relação geográfica definida com todos os outros. Essas posições refletem aspectos das relações normativas corretas dos clãs inter se. Os Borôro consideram muito importante que as posições das casas em determinada aldeia correspondam tanto quanto possível às indicadas pelo modelo, e entre as obrigações principais dos dois chefes rituais da aldeia está a de determinar a localização das cabanas toda vez que a aldeia se desloca. Na verdade, os clãs que em princípio fornecem estes chefes são conhecidos pelo titulo de ‘Planejadores da Aldeia’ (Bado Jebage).6
Como também observou Sylvia Caiuby Novaes: a aldeia Bororo tem, nas casas que se situam ao redor do círculo, a representação das várias linhagens que compõem esta sociedade. É assim uma espécie de ‘mapa’ da sociedade Bororo7.
4 Toroari, morro do gavião Toroa, está localizado nas cercanias de Cuiabá, sendo conhecido como Morro de Sto. Antônio; faz parte da heráldica
mato-grossense, figurando nos brasões do Estado de Mato Grosso e da cidade de Cuiabá. 5 ALBISETTI, Venturelli. Enciclopédia Bororo. V. 3, p. 431. 6 CROCKER, Jon Christopher. Reciprocidade e Hierarquia entre os Bororo Orientais. In Leituras de Etnologia Brasileira. 1976, p. 167. 7 NOVAES, Sylvia Caiuby. (Org.) As casas na organização do espaço social Bororo. In Habitações Indígenas. 1983, p. 75.
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Portanto, a disposição das moradas no Bóe e-wá, ao redor do círculo, em torno do Bái mána gejewú, possui uma marcação bem definida e imutável. Cada casa representa um clã ou subclã, e por isso não poderia estar em outro ponto diferente daquele definido pelo “mapa” da cosmologia Boe. A maioria dos autores que se dedicaram ao estudo dos Bororo demonstra que a espacialidade da aldeia é uma representação vital para aquele povo. Sobre a separação principal dos partidos, Eceráe – Tugarége, é que está assentada toda a ordem de igualdade e complementaridade dos Boe. Cada metade representa quatro clãs, e cada clã, por sua vez, três subclãs e a partir destes um número variável de linhagens maternas. Os funerais dos Eceráe são feitos pelos Tugarége, e os destes por aqueles. Como são exógamos, cada metade só pode casar-se com membros da outra, regidos pelo princípio da matrilinearidade, isto é, o homem Bororo casado passa a morar na casa da mãe da sua mulher; 8 VIERTLER, Renate Brigitte. As aldeias Bororo. 1976, p. 23.
enquanto solteiro morava no baíto. A criança pertence ao lado e ao clã de sua mãe e a cada clã pertence um conjunto de espécies naturais, animadas e inanimadas que configuram seu patrimônio de cantos, danças, enfeites, armas e outros objetos, nomes pessoais e primazias sobre determinadas matérias-primas. A esse conjunto denomina-se aroe ou iedaga-mage8. No seu cotidiano, em suas festas e cerimônias, o caráter da divisão desenhada pela espacialidade da aldeia regula o equilíbrio entre as partes, numa troca constante de energias. Este movimento chamou a atenção de Claude Lévi-Strauss, que a descreveu comparando-a a um balé: (...) em que duas metades da aldeia obrigam-se a viver e a respirar uma por meio da outra, trocando as mulheres, os bens e os serviços, em meio a uma fervorosa preocupação de reciprocidade, casando seus filhos entre si, enterrando mutuamente seus mortos, garantindo uma à outra que a vida é eterna, o mundo caridoso, e a so-
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ciedade justa. Para comprovar essas verdades e manter essas convicções, seus sábios elaboraram uma cosmologia grandiosa; inscreveram-na na planta de suas aldeias e na repartição das habitações. As contradições em que esbarravam, enfrentaram-nas e reenfrentaram-nas, jamais aceitando uma posição a não ser para negá-la em favor de outra, dividindo e separando os grupos, associando-os e defrontando-os, fazendo de toda a sua vida social e espiritual um brasão em que a simetria e a assimetria se equilibram, como nos elaborados desenhos com que uma bela Cadiueu, mais obscuramente torturada pela mesma preocupação, fere o próprio rosto9.
A divisão do círculo é feita em duas metades. Essas metades, por sua vez, são subdivididas em pequenos setores de terras, assinalados no solo, onde são construídas as casas. Nos extremos Leste e Oeste do semicírculo, formado pelo lado ecerae, estão localizados
respectivamente os setores que abrigam as casas, ou clãs, dos construtores da aldeia de cima – Baadojebage Cobugiwuge – e dos construtores da aldeia de baixo – Baadojebage Cebegiwuge –, chefes tradicionais da aldeia. Situados entre eles, os Kie – os antas – à esquerda dos Cebegiwuge, e os Bokodori – os tatu-canastras –, a direita dos Cobugiwuge. O outro lado do círculo, a metade Tugarege, possui as seguintes subdivisões: no extremo Leste, os Paiwoe – os bugios –, e a sua esquerda os Apiborege – os donos da palmeira acuri; no extremo Oeste do semicírculo, os Iwagududoge – os gralhas –, e a sua direita os Aroroe – os larvas10. Portanto, como se pode “ver”, o que dá sentido a suas vidas está desenhado no espaço da aldeia e esse desenho está inscrito numa cosmologia da qual eles têm a chave. Para se penetrar na casa é necessário passar antes por uma construção intelectual e assim poderemos ler o texto dos Boe, aquilo que para nós está invisível, e finalmente “enxergar” a casa.
9 LÉVI-STRAUSS, Claude. Tristes Trópicos. 1996, p. 229. 10 VIERTLER, Renate. 1976, p. 22. E ainda, os nomes nos modelos são sempre masculinos porque se trata de distribuir terras subordinadas a
homens e não choupanas possuídas pelas mulheres. Idem, p. 148.
O desenho da Háti, a casa Paresí A casa Paresí, háti, aparece pela primeira vez descrita na “breve notícia que dá o capitão Antonio Pires de Campos”, em 1723 (CAMPOS, 1862, p. 437). Pires de Campos havia estado no território destes índios por bastante tempo em 1718, e assim se referiu em seu relatório:
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Naquelas dilatadas chapadas habitam os Parecis, reino mui dilatado, e todas as águas correm para o Norte. É esta gente em tanta quantidade, que se não podem numerar as suas povoações ou aldeias, muitas vezes em um dia de marcha se lhe passam dez ou doze aldeias, e em cada uma destas tem dez até trinta casas, e nestas casas se acham algumas de 30 até 40 passos de largo, e são redondas de feitio de um forno, mui altas e em cada uma destas casas agasalhará toda uma família; [...] (CAMPOS, 1862, p. 443).
No começo do século XX, no ano de 1907, Rondon esteve entre os Paresí, ou Arití, que segundo ele conta era como aqueles índios se autodenominavam, anotando uma breve descrição da háti: Suas casas – (Hatí) – abrigam às vezes mais de 30 pessoas. As redes – (Maká) – são armadas umas sobre as outras. A do marido é sempre colocada acima daquela que pertence à esposa. Nas cabanas além das redes o mobiliário é representado por tocos de madeira sobre os quais se sentam. Nunca se sentam sobre o solo; em falta de um toco desses põem-se de cócoras. Para construir uma de suas grandes casas traçam no chão o contorno da futura habitação e fincam 3 a 4 esteios feitos com as madeiras que denominam Tonoêtô e Makúriceurê, as quais, segundo afirmam, resistem muito às causas de destruição, uma vez enterradas no solo. Foi mesmo por isso que as adotei para o mister de postes telegráficos. A cobertura dessas casas é feita com palha do sapé, as folhas de pacova, da mala-malá, e, raramente do burity. Fazem com o sapé pequenos molhos munidos, cada um, de um pequeno gancho de madeira; esta alça serve para prender o pequeno feixe aos caibros. Para impedir a invasão das águas todo o perímetro do chão da cabana é tomado pela casca do Oné (RONDON, S.d, p. 35).
É interessante a observação de Rondon sobre o desenho, no chão, que os Paresí fazem quando iniciam a construção da háti, e como chamou sua atenção as madeiras duras usada pelos índios como esteios e que foram adotadas pela Comissão como postes telegráficos. Os povos indígenas não desenhavam suas casas e sua execução era feita com base na memória e tradição de seus artífices. Vinte anos depois da passagem da Comissão Rondon, como ficaram conhecidas suas expedições, o etnógrafo alemão Max Schmidt apresenta um relato da hatí, baseado em suas observações da viagem aos campos dos Paresí em 1927, e publicadas posteriormente em 1943 pela Revista de la Sociedad Cientifica del Paraguay: Una tal casa consta de um tejado com dos vertientes curvos, provisto cada uno de sus lados de hastiál, de uma parte saliente, redonda, y de una abertura muy baja que sierve de puerta. Essas dos puertas fronteras no aumbram el interior de la casa sino muy poco. La puerta de una tal casa que yo medi no tênia más de 1,25 m. de alto por 0,60 m. de ancho. La casa fotografiada por mi em Uazírimi tenia 12 m de largo, 7,5 m. de ancho y 5 m. de alto. Las fotografias que hizo Rondon de casas de aldeas habitadas por Kachíniti – y Uaimaré-Paressís muestran que la forma de las casas de los Kozárinis, descrita en lo que precede, era la forma común de las casas de todas las parcialidades de los Paressís (SCHMIDT, 1943, p. 15-16).
Como se pode notar pela leitura comparativa das duas descrições, a casa vista por Schmidt difere daquela encontrada por Campos 209 anos antes, sendo uma de planta redonda e outra de planta ovalada. A casa Bakairi, ãtã, descrita por Karl von den Steinen, também possuía uma construção redonda, o que pode sugerir uma possível ligação ancestral entre as duas. Autora contemporânea, a antropóloga Romana Costa, em sua dissertação de mestrado apresentada no Museu Nacional em 1985, fez a etnografia da casa Paresí, descrevendo-a com medidas que muito se aproximam daquela vista por Schmidt:
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25. Aldeia Parecis de Itiaçurê (Buracão). Expedição de 1907. (RONDON, s. d., prancha sem numeração).
Estas têm o formato elíptico, com duas portas nas extremidades: uma voltada para o nascente e outra para o poente. Sua estrutura é de madeira, designada kwáre-kwáre (aroeira) e coberta por folhas de guariroba. Na aldeia Igómoweké, as casas guardam uma distância de 42 metros, que corresponde ao comprimento do pátio da aldeia. A casa do chefe tem 12 metros de comprimento por 6 de largura e 3 de altura. [...]. (COSTA, R., 1985, p. 116-117).
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Às descrições anteriores podem-se juntar os levantamentos mais recentes, como os da pesquisa de campo do projeto Tecnoíndia, no ano de 2003. Uma informação interessante coletada durante a pesquisa diz respeito ao piso das casas, feitos com terra de formigueiro socada com água, produzindo uma camada dura e lisa, embora permeável, o que facilita a limpeza e mantém o piso com uma boa aparência. Dentre as casas das várias etnias pesquisadas, as háti são das mais interessantes, com a solução da estrutura parede-cobertura bastante simplificada pela disposição das ripas sobre varas diretamente, sem necessitar reforços adicionais, provavelmente em função da relação pé-direito, largura, comprimento ser extremamente equilibrada. Seus acessos estão localizados nos extremos da planta ovalada, em oposição às casas xinguanas, nas quais estes estão centralizados nas laterais do sentido longitudinal. A primeira vista da háti é muito agradável. Suas proporções parecem se enquadrar numa fórmula de proporções que lhe conferem um aspecto plástico reconhecível e único. As háti pesquisadas possuíam planta ovalada, em extensões que variavam de 14 a 20 metros de comprimento por aproximadamente 6 a 9 metros de largura. O pé-direito no centro das casas pode chegar a medir até de 5,5 m. As háti, como a maioria das habitações indígenas, são construídas em dois estágios: primeiro a estrutura principal, constituída por palanques e traves de kwáre-kwáre, ou Aroeira, como conhecemos esta madeira muito dura. Depois uma
estrutura mais leve de ripas que fazem a cobertura propriamente dita, onde irão se fixar as palmas – de sapé, guariroba ou às vezes até de buriti – que farão a vedação da casa, formatando a cobertura-parede que define o design característico da casa. Conhecendo um pouco mais a háti, aquela primeira impressão, de aparente simplicidade, vai sendo desconstruída quando se apreende quão adequado e funcional é o seu desenho. A estrutura de kwáre-kwáre foi feita para durar, em contraste com seu revestimento que pode ser considerado um refil, descartável, trocado em períodos que variam entre quatro até oito anos. Seu desenho inteligente é extremamente adequado e pode ser considerado ambientalmente correto. Toda a matéria-prima utilizada na construção foi selecionada para poder ser extraída da região do entorno da aldeia, e é biodegradável, sendo possível sua reposição ao meio ambiente.11 Do ponto de vista do conforto ambiental, as háti, assim como as demais habitações indígenas consideradas tradicionais, comportam-se muito bem. Possuem pé-direito alto, são frescas durante o dia e aconchegantes durante a noite. As camadas de palha sobrepostas que formam o conjunto parede-cobertura são eficientes como isolante térmico e apresentam alguma permeabilidade ao ar, através de uma infinidade de microfrestas resultantes do seu assentamento, imperceptíveis a olho nu, resultando numa agradável sensação de conforto térmico proporcionada pelo fluxo de ar constante e sutil, como a permitir uma respiração natural para a casa. Além disso, possuem saídas apropriadas para o ar quente na parte mais alta, na junção das faces da cumeeira ou nos seus extremos. A ausência de janelas evita a incidência da luz solar no interior, contribuindo para manter a temperatura fresca. Durante a noite o calor do fogo é conservado e a temperatura interior fica mais agradável do que a exterior, geralmente mais baixa pela proximidade do rio, do córrego, ou simplesmente do orvalho noturno.
11 Atualmente, em face das agressivas condições de ocupação de seu território pelas frentes de expansão da sociedade envolvente e do
agronegócio, os Paresí, como os demais povos indígenas no Brasil, têm encontrado dificuldades para extrair os materiais necessários à construção nas proximidades das suas aldeias, e por isso são obrigados a buscá-los em locais cada vez mais distantes.
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26. Casa Paresí, háti, na aldeia Kotitiko, 2004. Foto J. A. B. Portocarrero. 27. Interior da háti em Kotitiku, março de 2003. Foto M. F. R. Machado.
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28. Detalhe acabamento em palha. Foto J. A. B. Portocarrero. 29. Perspectiva aĂŠrea da estrutura. 30. Perspectiva da estrutura.
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Conclusão Os antecedentes pré-coloniais nos informam, através da etnoarqueologia e da história, que a técnica construtiva, ou tecnologia, utilizada na construção das casas indígenas é fruto de variados estágios de aprimoramento e reconhecimento de materiais, num processo de maturação que aparentemente foi interrompido com a chegada do europeu às Américas. Adequada ao clima e ao relevo, leve e fácil de ser erigida, permitia mudanças rápidas e induzia à vida comunitária característica das aldeias – apropriada, portanto, para o seminomadismo praticado até hoje, como se constata na variabilidade do número de seus habitantes. As pesquisas informam que as casas tradicionais indígenas mantêm algumas características comuns que as tornam reconhecíveis: 1. Cobertura-parede: segundo Castro Faria (1951, p. 24) essa é a característica marcante da casa indígena; a cobertura e as paredes conformam uma peça única de desenho ogival, cujas bases estão fixas no terreno e se encontram amarradas na cumeeira; seu corte transversal apresenta a estrutura com as varas encurvadas, fincadas no solo, e que formatam o desenho de
ogiva no encontro da cumeeira, constituindo a característica singular dessas habitações; o corte transversal triangular é possivelmente de influência pós-contato com os não indígenas; 2. Pé-direito alto: varia até cerca de 8 metros, propiciando um ambiente agradável com influência positiva na temperatura interior; 3. Sem janelas: segundo Curt Nimuendajú� “nunca existem nas casas dos índios”; 4. Possibilidades em algumas casas de abrir e fechar vãos na cobertura-parede: pelo simples levantar da palma utilizada pode-se abrir vãos em qualquer lugar, como se fossem “pequenas janelas”; 5. Estrutura principal independente da cobertura-parede: as palmas são assentadas sobre uma estrutura secundária, semelhante a um ripamento; 6. Espaço interior sem divisões: as casas não possuem paredes internas ou divisórias; 7. Exaustão de ar: eficiente sistema de exaustão térmica através de aberturas localizadas no encontro das cobertura-paredes, complementada pela microexaustão que também acontece entre as palhas da própria cobertura por onde o ar permeia;
71 8. Piso seco: chão batido, sem desníveis, mantido sempre limpo pela varrição; 9. Mobiliário mínimo: normalmente constituído pelas redes, bancos e catres; os utensílios, enfeites e armas ficam pendurados ou presos nos varais das coberturas-paredes, e os alimentos são depositados sobre os jiraus; 10. Área de cocção integrada: o fogo para preparo de alimentos é localizado geralmente na área central das casas; 11. Penumbra interna: por possuírem apenas duas aberturas como portas e não possuírem janelas convencionais, o ambiente interno está constantemente em penumbra; A partir desses princípios, e entendendo o desenho como tecnologia, é possível buscar suporte para inovação nos dias atuais, recuperando o valor das casas indígenas como bem cultural ainda capaz de se refletir num design adequado às necessidades contemporâneas. Ao adotar uma postura de atenção para com as habitações indígenas procura-se intencionalmente reatar uma ligação esquecida na história das tecnologias, a lição pouco apreendida das antigas ou tradicionais casas dos povos que
habitavam na região do que hoje é o território do estado de Mato Grosso. Galhano e Pereira12 em reconhecido texto citam Lucio Costa, para quem deveríamos aproveitar a experiência das casas tradicionais brasileiras, “[...] encarando com simpatia coisas que sempre se desprezaram ou mesmo se procuraram encobrir, a oportunidade de servir-se delas como material para novas pesquisas, e também para que nós, arquitetos modernos, possamos aproveitar a lição da sua experiência [...]”. De fato, as casas indígenas ainda se constituem num acervo de grande potencial para estudos e pesquisas a serem desenvolvidas e eventualmente apropriadas como referências para ocupação racional dos espaços construídos do Centro-Oeste brasileiro. Pés-direitos altos, exaustão térmica, sombra e ambientes integrados são princípios ancestrais que podemos classificar como de sustentabilidade e extremamente atuais, que ajudam a prospectar o futuro. Numa outra dimensão, estes princípios construtivos foram aliados a um design peculiar e competente, e chegam até hoje emanando possibilidades e ligando o passado, o presente e o futuro.
12 OLIVEIRA, Ernesto Veiga de; GALHANO, Fernando; PEREIRA, Benjamim. Construções Primitivas em Portugal. Lisboa: Publicações Dom
Quixote, 1994, p. 9-10.
José Affonso Botura Portocarrero é arquiteto e professor da Universidade Federal do Mato Grosso. Seu livro Tecnologia Indígena em Mato Grosso: Habitação, lançado pela editora Entrelinhas, foi contemplado, em 2011, com o 25º Prêmio Design do Museu da Casa Brasileira.
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s acordes da abertura de “O Guarani” – quase um segundo Hino Nacional Brasileiro, peça obrigatória dos concertos na data nacional de sete de setembro, ouvida até em procissões religiosas – abrem com toda sua pompa e plumas de araras e tucanos nossos comentários sobre o genuíno Art Déco brasileiro1. Sons que remetem à busca de uma identidade nacional, à brasilidade das origens, e que segundo Lucio Costa “contrapõem a nossa mais autêntica seiva nativa, as nossas raízes, à seara das novas ideias oriundas do século XIX.” Se o Romantismo da segunda metade dos anos 1800 busca inspiração nas histórias, lendas e crenças dos verdadeiros donos do Brasil – os índios –, será nas décadas de 1920 a 1950 que a modernidade nacional se veste – ou tenta se despir das influências europeias – com temática indígena em total sintonia com a vanguarda intelectual tupiniquim. “Tupi or not Tupi”, exclamava um dos principais mentores do Modernismo brasileiro, Oswald de Andrade2. Vem da pena de outro participante da Semana de Arte Moderna de 1922, o crítico e poeta Ronald de Carvalho, um protesto, publicado em 3/7/1921, em O Jornal:
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1 “O Guarani”, ópera de 1870, de Carlos Gomes (1836-1896), estreou
Pindorama modernista – influência indígena no Art Déco brasileiro Márcio Alves Roiter
“Antes dos portugueses descobrirem o Brasil, o Brasil tinha descoberto a felicidade.” Oswald de Andrade
no La Scala de Milão, consagrando seu autor, cuja estadia na Itália era custeada pela bolsa oferecida por D. Pedro II. Foi inspirada no romance de mesmo nome, de José de Alencar, publicado em formato de folhetim, entre fevereiro e abril de 1857. A ópera de Carlos Gomes pode ser considerada como a primeira manifestação artística brasileira a receber unânime aplauso mundial. E sua trajetória na vida do país a coloca como nosso primeiro item pop, extrapolando as salas de concerto. A protofonia de “O Guarani” passou a fazer parte da memória coletiva brasileira popular em 1935, quando é criada a emissão radiofônica “Hora do Brasil”, em cuja abertura ecoa a música de Carlos Gomes, num programa de uma hora de duração que ia ao ar de segunda-feira a sábado, com noticiário oficial divulgado pelo DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda, a partir de 1937), em todas as estações de rádio do país. Mesmo depois da saída de Getulio Vargas, em 1945, o programa sobreviveu. Hoje, de segunda a sexta-feira, se chama “A Voz do Brasil”, e vem tendo sua obrigatoriedade contestada. A história contada por Alencar já entrara nas telas dos cinemas brasileiros em 1916, através de uma produção de Vittorio Capellaro, mas em 1920, outra apresentação, de Luiz de Barros e Alberto Botelho consagra o romance de Ceci e Peri, desta vez com cenas filmadas na propriedade de Henrique e Gabriella Bensanzoni Lage, hoje conhecido como Parque Lage. Diversas versões de “O Guarani” para o cinema são conhecidas, a última delas dirigida por Norma Benguell em 1997. 2 Oswald de Andrade (1890-1954) é um dos atores principais da cena Nativista brasileira. Intérprete de um Brasil orgulhoso de suas origens, publica, no curso de sua vida, diversos manifestos com títulos que pretendem imediata compreensão, como o “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, editado no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, em 1924, e o “Manifesto Antropófago”, de maio de 1928. Casado com a pintora Tarsila do Amaral, foram na década de 1920 a “realeza” do movimento Nativista brasileiro.
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31. Aquarela do artista gráfico carioca J. Carlos, década de 1920. Foto Beto Felicio. Coleção Carlos F. de Carvalho. 32. Edificio Itahy: Av. Nossa Senhora de Copacabana, 252. Projeto Arnaldo Gladosch, 1932, arte decorativa no pórtico e no hall por Pedro Correia de Araújo. Foto Acervo Instituto Art Déco Brasil. 33. Torso de índio em cerâmica craquelée, do escultor Hildegardo Leão-Veloso. Petrópolis (RJ), década de 1930. Foto Nelson Monteiro.
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A Arte Decorativa no Brasil ainda está no seu primeiro balbucio. Apesar dos variados motivos que o artista pode colher nas lendas do nosso país e nos deslumbramentos da nossa natureza, ainda preferimos a imitação cômoda e amável da pacotilha estrangeira. Não costumamos olhar para o que temos à mão [...] Cumpre-nos, agora, desde que ninguém ouse disputar-nos o título de campeões no preparo de maionese arquitetônica, variar o menu com outro manjar mais discreto. Por que não aproveitam nossos artistas os motivos ornamentais da fauna, flora, e da riqueza da indumentária nacional? Ainda não exploramos convenientemente a maravilhosa terra que os nossos antepassados descobriram e povoaram. Precisamos, nesse passo, voltar as costas ao litoral, e olhar rosto a rosto a imensidade silenciosa dos sertões. Não está ali todo o Brasil, mas está um Brasil poderoso e deslumbrante que ainda não conhecemos.
Os clamores por Tupã de Ronald de Carvalho foram ouvidos, e em fevereiro de 19223, a brasilidade tenta se casar com a contemporaneidade, através da Semana de Arte Moderna. Uma estética absolutamente brasileira acaba emergindo, ainda na década de 1920, identificada por diversos sinônimos: Nativismo,
Indianismo, Indigenismo e o curioso “matavirgismo” – a partir de mata virgem, cunhado por Mario de Andrade numa carta a Tarsila do Amaral4 – são termos que tentam definir, antes de mais nada, um nacionalismo com todas as letras. Esse nacionalismo será tratado, paradoxalmente à luz do Art Déco, estilo europeu, sobretudo francês, consagrado na Exposição Internacional das Artes Decorativas e Industriais Modernas de Paris, 19255. A marca principal do Art Déco era a geometrização de temas abstratos e figurativos, absorvendo parâmetros do Cubismo – que, desde 1907, com as “Demoiselles d’Avignon” de Picasso, já fora instaurado –, mas tornando estes traços palatáveis à burguesia emergente. Trata-se de estilo pleno de releituras de culturas exóticas – África, Japão, Tailândia6 – e antigas – egípcia, grega, azteca, maia, inca – que ocupou no mundo um amplo espectro geográfico. Podemos dizer que foi o primeiro estilo verdadeiramente globalizado, a se aproveitar dos meios de comunicação modernos como o cinema, a imprensa, o rádio, o telégrafo, o telefone e a televisão, bem como dos novos meios de transporte modernos – os transatlânticos velozes, seus incipientes concorrentes do ar, os aviões (flying boats, barcos voadores) e
3 A Semana de Arte Moderna de 1922, realizada em São Paulo, no Teatro Municipal, entre 11 e 17 de fevereiro, se hoje é considerada deter-
minante no Modernismo brasileiro, à época não teve grande impacto. Foi uma ação entre amigos, patrocinada por ricaços paulistas que não queriam ficar atrás do que se fazia na Europa em termos de Arte Moderna. Mas sem dúvida nenhuma se tornou um marco na valorização dos temas nacionais, entre eles os derivados da cultura indígena. Dentre os expositores, em arquitetura, pintura, escultura, no entanto, só Vicente do Rego Monteiro apresentou trabalhos diretamente relacionados ao tema. 4 Tarsila do Amaral (1886-1973) pode ser considerada a musa do Nativismo brasileiro na pintura das décadas 1920 a 1940. Do casamento com Oswald de Andrade, não só surgiu a marca “Tarsiwald”, como retratos de um Brasil ancestral. Talvez seu mais conhecido óleo, o “Abaporu”, hoje na coleção do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires, coleção Constantini, desde o termo indígena que o batiza, reflete a preocupação de Tarsila com o imaginário da selva brasileira. De um dicionário tupi-guarani foi retirado seu título: Aba: homem; poru: que come. E foi dele que o Manifesto Antropofágico se alimentou. Oswald de Andrade, que recebia a tela como presente de aniversário, em 11 de janeiro de 1928, exclamou: “Isso é como fosse um selvagem, uma coisa do mato”. Tarsila aprendeu na sua temporada parisiense a valorizar as “Artes Primitivas”, hoje denominadas “Artes Primeiras”. Em seus contatos com Brancusi (de quem adquiriu uma escultura, “Prometheus”, de 1911) Picasso, Léger, Lhote, Gleizes, Matisse – todos admiradores das “Artes Primeiras” – absorveu este apreço, e imediatamente o transpôs para sua origem, uma terra de índios, de rico folclore, um mundo mítico ainda inexplorado na década de 1920. Mario de Andrade (1893-1945), poeta, escritor, crítico e pesquisador do folclore brasileiro, foi, ao lado de Tarsila e Oswald, um dos pilares do Modernismo brasileiro. Se o Nativismo tem um herói, esse seria Macunaíma, personagem central do livro de mesmo nome, editado em 1928. Definido pelo autor como “a aceitação sem timidez nem vanglória da entidade nacional”, Macunaíma é uma rapsódia brasileira onde a muiraquitã (amuleto indígena) é também protagonista. As aventuras do “herói sem nenhum caráter”, mistura das raças negra, branca e índia, em busca desse talismã percorrem as páginas deste que foi considerado o livro mais importante do nacionalismo modernista brasileiro. 5 Exposição promovida pelo Ministério do Comércio e Indústria da França, aconteceu entre abril e outubro de 1925, ocupando grande área de Paris, e visitada por quase 16 milhões de pessoas. Com mais de 100 pavilhões, nacionais e estrangeiros queria mostrar ao mundo que os prejuízos da Primeira Grande Guerra eram passado. Com notável variedade de estilos entre seus pavilhões, assim mesmo pode ser cunhada a expressão Art Déco – um diminutivo do longo nome Exposition Internationale des Arts Décoratifs et Industriels Modernes. A partir dos anos 1960, com uma exposição no Museu de Artes Decorativas de Paris “Les Années 25” (1966) o termo passou a definir os objetos, arquitetura, moda etc, que apresentassem características semelhantes, obedecendo à uma forte geometrização herdada do Cubismo, linhas aerodinâmicas, e temas privilegiando a natureza e a figura humana. 6 Em 1931, de novo em Paris, acontece a Exposition Coloniale Internationale, que consagra a vertente “exótica” do Art Déco. Além das colônias francesas de Além Mar, encontravam-se pavilhões de territórios exteriores belgas, dinamarqueses, italianos, dos Países Baixos, e até mesmo de Portugal. A grande ausente, Grã-Bretanha, se justificou diante dos gastos consideráveis com a participação, no ano anterior, na Exposição Internacional Marítima e Colonial de Antuérpia.
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34. Partitura para piano, de Hekel Tavares, “Funeral de um Rei Nagô”, assinada por Flavio, década de 1930. Foto Nelson Monteiro. 35. Projeto de terrina com motivo jabuti da mata e desenhos da cerâmica marajoara, em guache, de Manuel de Oliveira Pastana. Pará, 1928. Foto Nelson Monteiro. 36. Capa do primeiro de 19 álbuns com pranchas inspiradas por temas indígenas, que começam em 1921 e vão até 1930, de August Herborth. Acervo Instituto Art Déco Brasil. 37. Prancha do álbum “Guarany”, de August Herborth. Década de 1920. Foto Acervo Coleção Berardo.
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dirigíveis. O mundo tinha pressa de informação, de estar up to date... De Xangai a Buenos Aires, de Paris a Tel-Aviv, do Rio a Nova York – na arquitetura, artes decorativas, moda, design, cinema, literatura, e até na música, a busca de inovação e de progresso tecnológico definiu as primeiras décadas do século XX. Um capítulo à parte merecem os paquebots, que disseminaram mundo afora o estilo Art Déco, verdadeiras embaixadas flutuantes de seus países de origem, com o melhor do progresso tecnológico nas máquinas e sistemas de funcionamento, com o melhor das artes decorativas, e, o mais importante, abertos ao público (mediante a compra de tíquetes) em cada porto em que atracavam. Eram essas visitações um belo reforço nas finanças das companhias marítimas. Os passageiros desembarcavam, e subiam a bordo os habitantes dos portos, ávidos das novidades, de câmera e bloquinho em mãos, e assim muitas casas e interiores surgiram obedecendo à estética dos transatlânticos. Não surpreende que tantos prédios espalhados pelo mundo reproduzam a estética streamline de decks, janelas de escotilha – em suma, a cartilha arquitetural dos navios. O maior, o mais luxuoso, o mais rápido dos ícones da navegação Art Déco se chamou Normandie e entre 1938 e 1939 saiu da rota costumeira Le Havre (França) – South Hampton
(Inglaterra) – Nova York e veio ao Rio trazendo norte-americanos que se dispuseram a pagar até 130 mil dólares pelas melhores cabines, num cruzeiro de Carnaval, esquecendo o inverno do hemisfério Norte em meio à folia carioca7. Mas voltemos à Taba. A maior ilha fluviocosteira do mundo, Marajó, na Amazônia brasileira, teve diversas fases de desenvolvimento, antes da chegada dos colonizadores portugueses. A mais importante, e que se estenderia de 400 a 1350, denominada Marajoara, deixou uma herança de artefatos finamente decorados, como urnas, vasos, bancos, esculturas, tangas, adereços e talismãs, em pedra, terracota, cerâmica e argila. No início do século XX, as novas invenções – automóvel, avião, hidroavião – aliadas ao espírito aventureiro de muitos arqueólogos, historiadores, antropólogos, jornalistas, comerciantes e até saqueadores, transformam Marajó num destino cobiçado8. Os objetos pré-cabralinos lá encontrados passam a alimentar o mercado de antiguidades. Museus, colecionadores e marchands do mundo inteiro voltaram sua atenção para os exemplares de uma arte em tudo semelhante à praticada pelos Incas – confirmando uma teoria de que os povos do Peru desceram o rio Amazonas, encontraram a Ilha de Marajó e ali desenvolveram a continuação da sua produção. Infelizmente,
7 Foi a bordo do Normandie, ancorado no meio da Baía de Guanabara que – convidada pelo “Rei da Broadway” Lee Schubert, passageiro do cruzeiro, para um jantar no “Grill Room” – a maior artista brasileira dos anos 1930, Carmen Miranda, foi convidada a se apresentar em Nova York, a “fazer a América”. Aceitou, meses depois assinou o contrato e partiu pelo SS Uruguay, para nunca mais voltar. 8 Expedições à Amazônia se tornaram, a partir desta época, favoritas dos aventureiros. Encabeçando uma longa lista, temos o ex-presidente dos EUA, Theodore Roosevelt. Em 1913, acompanhado pelo brasileiro Coronel Mariano da Silva Rondon, resolvem descer o Rio da Dúvida. Nessa expedição Roosevelt quase morreu, e muitos pereceram. Rondon, considerado o maior explorador da Amazônia, é o autor do lema relativo aos índios: “morrer se preciso for, matar jamais”. Em 1925, à procura de uma cidade perdida, uma civilização altamente sofisticada – “Z” – e que supunha encontrar-se em plena Amazônia brasileira, o coronel britânico Percy Harrison Fawcett, conhecido como o último dos exploradores individualistas, desapareceu nas entranhas da floresta.
pouca coisa hoje resta no Brasil, excetuando-se as coleções do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro e no Museu Goeldi de Belém do Pará. Instituições que passaram a ser a Meca dos designers do início do século XX em busca de inspiração para o desenvolvimento de um Art Déco genuinamente brasileiro, raridade entre seus pares internacionais. O governo do Presidente Getulio Vargas, de 1930 a 1945, incluiu no seu programa – sintonizado com outros governos totalitários da época, como a Itália de Mussolini e a Alemanha de Hitler – o “orgulho pátrio”. Tal orgulho busca nas origens indígenas os parâmetros de um projeto de nação, de povo civilizado que doma a selva, progressista, ocupado na criação de uma potência emergente: o “Novo Brasil 1930-1938”. É esta a inscrição do pórtico à entrada da Exposição do Estado Novo, em 19389. E provoca um fenômeno de massa! Na arquitetura10 e na decoração das casas acontece uma verdadeira febre de objetos, móveis, luminárias, tapetes, vasos, enfim, tudo aquilo onde
se pudesse imprimir labirintos, zigue-zagues, gregas e tramas geométricas derivadas dos desenhos indígenas. A televisão, quando se instala no Brasil, se chama TV Tupi, e sua logomarca é um indiozinho, um curumim, que anuncia o primeiro programa, a TV na Taba, em 18 de setembro de 1950. A publicidade aborda constantemente a herança indígena brasileira através dos nomes das lojas11, empresas e prédios que adotam nomenclatura completamente indígena, como até hoje podemos encontrar: Itahy, Itaoca, Hicatu, Itaiuba, Itacolomi, Ipu, entre outros. No entanto, a busca de uma identidade nacional para a arquitetura neste período, tratada sob influência indígena, encontra forte reação nos partidários de uma internacionalização – são os seguidores de Le Corbusier12, contrários a qualquer elemento decorativo, considerado supérfluo. E grandes discussões são deflagradas. Um dos casos mais marcantes é o concurso para construção do Ministério de Educação e Saúde, em 1936. O projeto vitorioso, de Ar-
9 Exposição montada na área da Esplanada do Castelo, Rio de Janeiro, e que celebra os novos projetos nacionais, incluindo maquetes dos novos
ministérios, quase prontos. O pórtico repetia o do pavilhão da Alemanha – ao topo, no lugar da águia e cruz suástica germânicas, as armas da República brasileira – na Exposição Internacional das Artes e Técnicas Aplicadas à Vida Moderna, 1937, em Paris, e considerada a despedida do estilo Art Déco, pelo menos na Europa. No Brasil a duração foi muito maior, até meados de 1950. Durante o longo primeiro governo do ditador Getulio Vargas (ironicamente denominado, pelos EUA, “presidente permanente”), 1930-1945, as manifestações artísticas de cunho nacionalista, explorando as raízes indígenas se tornam extremamente comuns. Surgem artistas como a bailarina Eros Volúsia (1914-2004) capa da revista norte americana Life, em 1941, e que revolucionou a dança brasileira, acrescentando coreografias indígenas, africanas e do folclore brasileiro ao repertório do balé nacional. Importante mencionar a dedicação dos compositores eruditos aos temas nativistas, como Heitor Villa-Lobos (1887-1959), Oscar Lorenzo Fernandez (1897-1947) e Alberto Nepomuceno (1864-1920), entre muitos outros. 10 A corrente Indigenista na arquitetura brasileira acontece em todo o território nacional. Do Amazonas ao Rio Grande do Sul, com exemplos notáveis como, em Belo Horizonte, o Edificio Acaiaca, onde duas imensas cabeças de índio marcam os ângulos do grande prédio de esquina (arquiteto Lúcio Pinto Coelho, 1943). 11 Muitos exemplos: a loja de departamentos O Guarany, da rua Gonçalves Dias esquina com a rua do Rosário, no Rio, especializada em “camisas e chapéus, roupas para banho de mar, cama e mesa, perfumaria”, as Ferragens Cacique, a Fundição Tupy, aguardente Ypioca, queijos Catupiry... Disputavam espaço com as denominações de origem francesa, onipresentes na vida brasileira das primeiras décadas do século XX. 12 Le Corbusier (1887-1965) confessa, entretanto, que para construir o “Cabanon” (tradução livre: barracão), sua casa de verão em Rocquebrune Cap-Martin se inspirou nos barracos das favelas brasileiras. E foi no Rio, em 1929 que viveu um tórrido romance de verão com Joséphine Baker. Ambos voltavam de temporadas em Buenos Aires, a bordo do Giulio Cesare, com destino ao Rio de Janeiro. Os cadernos de viagem e as cartas conservadas na Fundação Le Corbusier comprovam o affair. Se Le Corbusier não se dedicou ao Nativismo, chegou bem perto.
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38. Centro de mesa em cerâmica policromada, atribuído a Correia Dias. Petrópolis (RJ), década de 1930. Foto Nelson Monteiro. 39. Pórtico em cerâmica com desenho de talismã amazônico – muiraquitã. Edifício Itaoca, na rua Duvivier, 43, Copacabana, Rio de Janeiro. Projeto de Anton Floderer e Robert Prentice, 1928.
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chimedes Memória e Francisque Cuchet13, de forte inspiração Art Déco-Marajoara, acaba não sendo construído, depois da pressão dos jovens Lucio Costa e Oscar Niemeyer sobre o Ministro Gustavo Capanema. Surge em seu lugar o prédio esboçado por Le Corbusier. Semelhante situação ocorre na escolha do pavilhão brasileiro para a World’s Fair de Nova York em 1939. Um dos projetos preferidos pela imprensa especializada, como publicado em edição de novembro de 1938 de A Casa, de autoria da Roberto Lacombe e Flavio Barboza:
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arquitetura sóbria, destacando nas grandes massas os motivos marajoaras, cujo espírito de brasilidade demonstra um característico de originalidade e beleza.
Mas, finalmente, o pavilhão construído foi a opção “International Style”, de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, que obteve imenso sucesso, diga-se. Por muitos considerado o retrato da nova arquitetura brasileira, o Pavilhão antecede em vários anos a inauguração do Ministério da Educação e Saúde, ícone desse amálgama de racionamentos do pós-guerra com as lições de Le Corbusier. Em mais um caso de disputa pela representação no exterior de uma linguagem nacional, o Nativismo sai vitorioso durante a exposição O Mundo Português, em 1940, que ocupou grandes espaços à margem do rio Tejo, em Lisboa. O Pavilhão Brasileiro, projetado pelo célebre arquiteto português Raul Lino, recebe decoração interior em feérico estilo Marajoara, assinado pelo mesmo Roberto Lacombe, preterido para a New York World’s Fair14. Desde o início do século XX, ainda sob os efeitos do Art Nouveau, nosso pintor e designer Eliseu Visconti (1866-1944), após frequentar em Paris as aulas de Eugène Grasset, retorna ao Brasil disposto a inovar na Arte Decorativa local. Infelizmente sem muito sucesso, pois o
gosto nacional era aquele denunciado por Ronald de Carvalho. Visconti utiliza temas de inspiração marajoara numa série de vasos, produzidos no ateliê Ludolf, e que só serão expostos em 1926, na Galeria Jorge, no Rio de Janeiro. Muito natural que do Estado do Pará e do Estado do Amazonas surjam artistas com discurso nativista, e entre os principais estão Theodoro Braga (1872-1953) e Manuel Pastana (1888-?). São de Theodoro Braga vasos em metal trabalhado, repuxado, com técnica semelhante à produção do francês Jean Dunand, identificados por Pietro Maria Bardi e hoje nas coleções do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, explorando a temática Marajoara. Theodoro Braga vai ao extremo de encomendar ao arquiteto Eduardo Kneese de Mello sua residência em São Paulo, nos anos 1930, como um painel de utilizações possíveis dos temas marajoaras, desde o exterior da casa até a decoração. Tudo se integra na mesma vertente Art Déco de influência marajoara: pisos em madeiras exóticas brasileiras, grades, móveis, papéis de parede, luminárias, objetos... Não sem razão foi por ele batizada de “Retiro Marajaora”15. Manuel de Oliveira Pastana foi discípulo de Theodoro, e ao lado de uma produção voltada para o academicismo – como o imenso retrato do Almirante Tamandaré ainda hoje visível no prédio Art Déco do antigo Ministério da Marinha, na Praça Mauá, no Rio – pesquisou a flora e a fauna amazônica como ninguém, nos deixando diversos projetos de terrinas, móveis e luminárias, onde resquícios do Art Nouveau se encontram com a geometrização do Art Déco. Um carioca que passou sua infância em Belém, Oswaldo Goeldi (1895-1961), filho do naturalista alemão Emilio Goeldi, considerado o pai da gravura moderna brasileira, nos legou importantes registros de uma arte comprometida com as origens indígenas brasileiras, sobretudo nas ilustrações para os mitos amazô-
13 Archimedes Memória (1893-1960) foi o arquiteto carioca que mais se destacou na vertente eclética, aí incluídas diversas manifestações de
cunho nacionalista. O neocolonial, abordado por ele e seu sócio Frances Francisque Cuchet em diversos projetos, como a sede do Clube Botafogo de Futebol e Regatas, ou o demolido Theatro Cassino no Passeio Público, conviveu com as construções de estilo eclético, cujos principais exemplos são o Palácio Tiradentes, hoje Assembléia Legislativa carioca, ou o Jóquei Clube da Gávea. 14 Publicado com destaque na revista A Casa de novembro de 1938, ocupando seis páginas, o projeto de Roberto Lacombe e Flavio Barboza para a Exposição de Nova York de 1939, concorrente do escolhido, de autoria de Lucio Costa e Oscar Niemeyer, parecia o preferido pela redação desta publicação, muito conceituada à época. 15 Ver “The Jungle in Brazilian Modern Design”, artigo de Paulo Herkenhoff em The Journal of Decorative and Propaganda Arts, The Wolfsonian. Miami, 1995, pp. 256 e 257.
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nicos de Cobra Norato, de Raul Bopp, em 1937. Para Martim Cererê, de Cassiano Ricardo, em 1945, repete suas imagens carregadas de mistério, densas, cheias de sombras, próximas do Expressionismo alemão, de onde Goeldi busca sua maior fonte de inspiração. Diz ele: “eu não sou um selvagem. Eu teria que viver como eles para que a minha imitação fosse genuína” 16. Mas é no Rio de Janeiro – capital federal nessas cinco primeiras décadas do século XX, da vigência do Art Déco Marajoara – onde encontramos os melhores exemplos do Nativismo brasileiro. Um dos ícones da arquitetura Art Déco carioca é o Edificio Itahy, construído em 1932 e localizado à Avenida Nossa Senhora de Copacabana, 252. O projeto de Arnaldo Gladosch (1903-1954) imprime feição streamline ao volume da fachada, mas presenteia a rua, o morador, o flâneur – e, porque não, a cidade –, com uma perfeita definição de Indianismo. O pórtico em cerâmica e hall social, desenhados por Pedro Correia de Araújo (1881-1955), trazem uma verdadeira aula de como casar modernidade e origens indígenas brasileiras. Uma índia-sereia-cariátide musculosa encima a porta em ferro batido, decorada com algas e tartarugas; o piso
do interior em mosaico de cerâmica vitrificada imita ondas do mar, painéis de peixes, algas, cavalos-marinhos; habitantes dos rios e mares – afinal estamos em Copacabana! – completam o cenário. Pedro Correia de Araújo é personagem ímpar na história das Artes Decorativas dessa primeira metade do século XX no Brasil. Nascido na França, filho de nobres pernambucanos exilados em Paris com a família real brasileira, estudou na Academia Ranson, onde conviveu com a vanguarda local, e, de volta ao Brasil, no início dos anos 1920, preferiu pesquisar nossas origens, assumindo sua brasilidade. É também dele a decoração do pórtico e hall do Edificio Manguaba (1936, projeto de Chaves & Campelo Architectos e Engenheiros), à rua Gustavo Sampaio, 220, no Leme, que recebeu a seguinte descrição no Guia da Arquitetura Art Déco do Rio de Janeiro, organizado por Jorge Czajkowski: discreto edifício com proporções harmoniosas, varandas embutidas abauladas, corpos sacados e persianas ‘Copacabana’. Na entrada e portaria, painéis cerâmicos dignos de nota, da autoria de Pedro Correia de Araújo.17
16 O Museu Paraense Emílio Goeldi, em Belém, e o Museu Nacional da Quinta da Boa Vista no Rio de Janeiro, são os locais incontornáveis para quem busca informação sobre a arte dos povos indígenas brasileiros, sobretudo os da cultura Marajoara. 17 Tanto o Itahy, graças à atuação de um síndico, Sr. Flávio Willemsens, consciente do valor arquitetônico do projeto, e que não permite modificações como o gradeamento do imponente pórtico, quanto o Manguaba, que por pouco não é demolido nos anos 1990, salvo graças à intervenção do prefeito Luiz Paulo Conde, presidente de honra do Instituto Art Déco Brasil – são exemplos de resistência. 40 41 42
40. Escultura em tamanho natural em stucco assinada por Hildegardo Leão-Velloso, encomendada para o terraço do antigo Ministério da Fazenda, na Avenida Presidente Antonio Carlos, centro do Rio de Janeiro. Década de 1930. Foto Vicente de Paulo. 41. Relevo “Índios”, em mármore, assinado por Victor Brecheret, que decora o Salão Nobre do Hipódromo do Jóquei Clube de São Paulo, projeto de Henri Sajous. Década de 1940. Clovis França. 42. Edifício Acaiaca, centro de Belo Horizonte, projeto do arquiteto Lucio Pinto Coelho, de 1943. Foto Robin Grow, cortesia da Art Deco & Modernism Society, Melbourne, Austrália.
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Victor Brecheret (1894-1955), considerado o mais importante escultor do Modernismo brasileiro e do Art Déco nacional, aborda o tema nativista em diversas ocasiões. Nos relevos que decoram o edifício e, sobretudo, o Salão Nobre do Jockey Club de São Paulo, projeto art déco de Henry Sajous, lá estão os índios brasileiros, em contraponto aos painéis “La Conquête du Cheval”, em laca de Bernard Dunand, (filho de Jean Dunand, que recebeu a encomenda, mas depois de seu falecimento foi o filho Bernard quem os completou). No entanto, Brecheret, nos anos 1940 e 1950, aprofunda a pesquisa dos temas marajoaras, e em seus últimos anos de vida se transforma num porta-voz da arte marajoara18. Hildegardo Leão-Velloso (1899-1966), escultor, é um dos artistas que mais se destacaram na vertente nativista. Autor de monumentos art déco importantes na paisagem carioca, como o dedicado ao Almirante Tamandaré, na Praia de Botafogo (1937) e a Pinheiro Machado, na Praça Nossa Senhora da Paz, Ipanema (1931), de fatura quase acadêmica, mas onde os pe-
destais são importantes afirmações do Art Déco, Leão-Velloso se dedicou com afinco à corrente nativista. Conseguiu popularizar sua produção através do ceramista Henry Gonot19, o “francês” de Itaipava, um dos artífices da divulgação do nativismo Art Déco brasileiro, e dessa manufatura, assinados ou não por Leão-Velloso, saíram caciques, índias e tucanos em esculturas, pratos, vasos, placas – todos decorados com os temas e cores brasileiros. São de Leão-Velloso os grupos em stucco em tamanho natural que decoram o terraço do Ministério da Fazenda, na Esplanada do Castelo, Rio de Janeiro, no início da década de 1940 – vizinho ao Ministério de Educação e Saúde, projeto apresentado em 1938, através de maquete na Exposição do Estado Novo, já citada. Mostram um índio lutando com o maior felino brasileiro, a suçuarana, (posteriormente editado em cerâmica craquelée pela Cerâmica Meriti) e, ao lado, uma índia com cobra sucuri20. É neste mesmo terraço onde se encontram
18 Brecheret e sua obra nativista já ganharam diversas exposições, como A Arte Marajoara de Victor Brecheret, em 2004, no Centro Cultural
Correios RJ, e que havia acontecido no Japão em 2001; e A Arte Indígena de Victor Brecheret, em 2009, na Caixa Cultural RJ. 19 Henry Gonot, aluno de Edmond Lachenal (1855-1930), um dos principais renovadores da cerâmica art nouveau na França, ainda não mereceu
o reconhecimento devido na história do design brasileiro da primeira metade do século XX. Foi em parte graças à atividade de Gonot que os objetos de inspiração Nativista se tornaram populares. 20 Infelizmente o terraço do antigo Ministério da Fazenda hoje se encontra em péssimo estado de conservação, proibido à visitação, muito distante do tempo em que era uma das atrações da cidade, com o Ministro recebendo nos jardins suspensos todas as celebridades nacionais e internacionais.
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43. Cadeira em imbuia e couro lavrado, acervo Coleção Berardo. Década de 1930. Acompanha mesa da foto 44. Foto Nelson Monteiro. 44. Mesa de escritório em imbuia, fabricante Laubisch-Hirth, acervo Coleção Berardo. Década de 1930. Foto Nelson Monteiro.
os painéis em mosaico assinados por Paulo Werneck (1907-1987), artista do primeiro time, descrevendo cenas brasileiras, com matas e habitantes indígenas da “Terra Brasilis” em foco. Paulo Werneck andou esquecido, mas felizmente começa a ser estudado e redescoberto. No Rio de Janeiro sua presença é inquestionável. Dezenas de painéis em mosaico decoram entradas e empenas de edifícios por toda a cidade, que pouca gente identificava como trabalhos de Paulo Werneck. Finalmente uma situação ultrapassada. Exposições viajando por todo o Brasil foram montadas, sua família tem contribuído para o conhecimento de um grande mestre que, antes de se destacar como artista do concretismo, dedicou-se aos temas nativistas, seja em mosaicos, como os do Edificio Maracati, no Leme, Rio de Janeiro – onde se tornou mais conhecido – ou nas ilustrações para a Lenda da Carnaubeira (1939) e para O Negrinho do Pastoreio (1941)21. Na história do Art Déco nativista brasileiro existem três personagens que não podem ser esquecidos: o pernambucano Vicente do Rego Monteiro (1899-1970), o português Fernando Correia Dias (1893-1935) e o alemão August Herborth (1878-1968). Vicente do Rego Monteiro descobriu o Brasil nas longas temporadas parisienses, onde conjugava trabalho artístico com corridas de automóvel, e até de avião. Um modernista total, avant la lettre! Se em 1925, durante a consagração do estilo Art Déco através da Exposição Internacional das Artes Decorativas e Industriais Modernas, o Brasil não teve um pavilhão – apesar de convidado e dos artigos publicados sobre o evento na Illustração Brasileira22 –, foi com Vicente que deixamos nossa marca! No auge da saison parisiense de 1925, entre 10 e 25 de julho, estreou no Théâtre des
Champs-Elysées – templo modernista projetado por Auguste Perret em 1913, decorado com relevos de Bourdelle (dois deles fazem parte do acervo do Museu de Belas Artes do RJ) e iluminado por René Lalique – o balé Légendes, Croyances et Talismans des Indiens de l’Amazone, adaptado do livro de mesmo nome, com os desenhos de Vicente, uma verdadeira cartilha do Art Déco marajoara. Sucesso total, uma performance inesquecível da estrela do balé do momento, chamado Malkovsky, um russo que os Irmãos Martel23, escultores do primeiro time, já haviam apresentado como ícone a ser consumido por todos, numa série de esculturas em cerâmica produzidas pela manufatura de Boulogne-Sur-Seine. Exposto em 1925, desde abril, quando começou a exposição, no pavilhão “Une Ambasse Française”, no hall do colecionador, esse retrato escultural de Malkovsky com certeza incentivou os franceses e estrangeiros presentes ao evento a lotarem a sala do Théâtre des Champs-Elysées. Vicente ficou tão entusiasmado com o sucesso parisiense que imediatamente criou o Quelques Visages de Paris, listando os principais pontos turísticos de Paris, em gravuras (série de 300) editadas pela Imprimerie Juan Dura, tratados à maneira marajoara. Vicente do Rego Monteiro, num humor bem brasileiro, apresenta o trabalho como sendo desenhos que ele encontrou em plena selva amazônica, nas mãos de um chefe indígena que, incógnito, visitara Paris há pouco. Fernando Correia Dias aporta no Rio em 1914, e se torna um precursor, um verdadeiro mentor do estilo Marajoara-Déco. Exorta os brasileiros a olharem suas raízes e a abandonarem o artificialismo dos parâmetros europeus na prática das Artes Decorativas através do manifesto “O Nacionalismo na Arte”, publicado em 1919, na Revista Nacional.
21 Ver Modernism, revista norte-americana, de 2009, e Paulo Werneck Muralista Brasileiro, catálogo de exposição em 2008, Paço Imperial, RJ. 22 Não só artigos anunciaram a participação brasileira na Exposição de Paris 1925. Segundo nos conta Péricles Memória Filho, no livro Archi-
medes Memória – o Último dos Ecléticos, à página 64: “Em 1925, o Ministro da Justiça e Negócios do Interior João Luiz Alves escolhe e nomeia Archimedes (Memória) como representante do Brasil para a organização da Exposição Internacional de Artes Decorativas e Industriais Modernas, a se realizar em Paris, com base no sucesso alcançado na Exposição do Centenário da Independência. Não se sabe o porquê, mas Archimedes não foi.” Não houve pavilhão brasileiro, é bom que se esclareça. 23 Os Irmãos Joël et Jan Martel, gêmeos nascidos em 1896, e que morreram ambos em 1966, renovaram a escultura francesa. Praticaram uma arte totalmente engajada na Modernidade, e cuja quintessência era Art Déco. Colaboradores e amigos dos principais arquitetos dos anos 1920-1940, tiveram seu ateliê e residência num hotel particulier construído por Rob Mallet-Stevens, ainda hoje de pé, na Rue Mallet-Stevens, no 16ème arrondissement de Paris. Durante a Exposição de Paris de 1925, além da escultura retratando Malkovsky se celebrizaram pelas “Abres Cubistes” (Árvores Cubistas), em concreto armado, no jardim do pavilhão de Mallet-Stevens.
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Começa importante produção cerâmica de vasos, pratos e coupes com a Companhia Cerâmica Brasileira, ao mesmo tempo em que trabalha diversas áreas do design como capas de livros, partituras musicais e ilustrações diversas. Casa-se em 1922 com a poetisa Cecília Meireles, e a estimula a desenhar. Cecília deixou interessante obra nacionalista – não Marajoara, mas embebida de brasilidade. Defensora do folclore brasileiro, Cecília dirigiu o Serviço Nacional de Folclore. Herman Lima, na História da Caricatura no Brasil, assim descreve a importância de Correia Dias: Seu prestígio nas rodas intelectuais da cidade era grande, pelo seu feitio profundamente cordial e por sua fina sensibilidade, donde sua rápida e definitiva adaptação à vida brasileira, que lhe forneceria, com o tempo, o mais rico filão à inspiração e à arte, com o aproveitamento de motivos maravilhosamente decorativos da nossa fauna e da nossa flora.
Assim como Herman Lima, o antropólogo Paul Rivet, fundador e diretor do Museu do Homem, em Paris, numa visita ao Brasil, em 1928, visitando o ateliê de Correia Dias, e 45
registrado numa edição de 1930 da revista O Cruzeiro, afirmou: [...] entre as artes indígenas sul-americanas, a arte dos antigos habitantes da ilha de Marajó e do Baixo Amazonas permanece uma das mais misteriosas. Ela pode ser comparada em beleza às produções mais perfeitas das grandes civilizações andinas. Fazer renascer esta arte, torná-la conhecida no Brasil Moderno, religar o passado ao presente, numa bela tradição estética, é criar, ao mesmo tempo, uma obra artística, patriótica e científica.
De Strasbourg, hoje França, mas território alemão antes da Primeira Guerra, chega ao Rio, em 1920, o professor emérito da Escola de Belas Artes de Strasbourg, August Herborth (18781968). Ceramista importante, além de desenhista talentoso, Herborth é logo convidado pela Manufatura Nacional de Porcelanas, e em seguida estabelece contrato com a Companhia de Porcelana Brasileira, dispostas a reformular sua produção pelas mãos de um designer respeitado. Muito bem sucedido em sua tarefa, Herborth recebe, em 1923, a cidadania brasileira. Mas o que o consagrará é a série de 19 álbuns chamados Guarany, onde desenvolve um repertório
45. Vaso achatado em cerâmica policromada, atribuído a Correia Dias. Petrópolis (RJ), década de 1930. Foto Nelson Monteiro.
de cerca de 470 pranchas, em guache, aquarela e nanquim. São as mais diversas utilizações do vocabulário indígena aplicado a necessidades do design de móveis, vasos, tecidos e até arquitetura. Expõe o resultado dessas pesquisas, efetuadas sobretudo no Museu Nacional, na Escola Nacional de Belas Artes, profere conferências, escreve artigos, mostra aos brasileiros a importância das civilizações pré-cabralinas. Herborth, respeitado artista, através de uma abordagem nacionalista, teve imediato sucesso em terras brasileiras, o que prova a encomenda, ainda no início dos anos 1920, pela Prefeitura de Curitiba, de desenhos de inspiração indígena para suas calçadas em pedra portuguesa até hoje existentes24. Tanto quanto Correia Dias, Herborth ainda não recebeu as devidas homenagens brasileiras. Seria o fato um comprovador da nossa falta de memória? Ou da nossa vergonha pela maneira com que os índios foram sendo sistematicamente dizimados? Interessante notar que em vez de nomes indígenas dos prédios nas cidades brasileiras, e também “Brasil”, “Amazonas”, “Ceará”, orgulhos nacionais, hoje todos têm nomes franceses ou americanos: “Manhattan”, “Chateau Chambord”, e por aí vai... No texto de Paulo Herkenhoff, “Amazônia e Modernidade”, encontramos o fecho para esse estudo abençoado por Tupã: Falava-se de índio e dançava-se sob o tantã da vanguarda parisiense. Há um perfil ético na arte modernista de dotar um projeto cultural para o país, de formular o homem brasileiro. O primitivismo no Brasil não é, como na Europa, uma busca do outro. Buscar o índio em cada brasileiro transformou, portanto, tal primitivismo na busca de um ‘si mesmo’ no outro. No Brasil, a busca modernista da história, de um passado significante, a selva – que em Hegel era espaço “fora da história” – encontrava na Amazônia, com sua herança arqueológica, a única possibilidade de história. 24 Os álbuns Guarany, documento único do interesse de um artista
europeu sobre a vertente Nativista do Art Déco, fazem hoje parte da Coleção Berardo de Art Déco, constituída pelo Comendador Joe Berardo, e até julho de 2012 sendo exibida na Casa das Mudas, Ilha da Madeira, na exposição Art Déco – Colecção Berardo, ‘What a Wonderful World! Ver também: “August Herborth (1878-1968), ein Grenzgänger”, por Arthur Mehlstäubler, na revista Keramos, números 203 e 204, 2009, Alemanha.
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Márcio Roiter é Presidente do Instituto Art Déco Brasil, pesquisador e curador de diversas exposições sobre o tema, no Brasil e no exterior. Conferencista nos Congressos Mundiais de Art Déco Societies de Nova York (2005), Melbourne (2007) e Montreal (2009), bem como na Miami Design Preservation League (2007) e na Americas Society de Nova York (2008). Em 2011, foi agraciado com o Prêmio Cultura, da Secretaria de Cultura do Rio de Janeiro, na categoria Patrimônio Imaterial. Organizador do 11º Congresso Mundial da ICADS (International Coalition of Art Déco Societies), realizado no Rio de Janeiro em agosto de 2011.
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música popular brasileira configura-se como nossa expressão cultural de maior destaque. Sob essa perspectiva, ela pode ser considerada veículo capaz de revelar os pensares e a totalidade dinâmica do povo brasileiro. Roberto Da Matta (1993: 60-61) afirma que essa expressão artística possibilita a “dramatização da vida política, dos valores sociais, dos papéis sexuais, do poder, dos infortúnios, da morte e da doença. [...] [e é] tão importante (no Brasil) quanto a literatura nos países cuja cultura é hegemonicamente burguesa”. Ao transitar livremente por todas as camadas da sociedade, a canção abre caminhos para que seus ouvintes possam compartilhar ideologias e imagens ecoadas por ela. No que se refere aos povos indígenas, podemos observar que eles têm sido tematizados em diversas letras de canções, algumas consideradas emblemáticas para a construção da identidade dessas populações pela sociedade em geral. Neste artigo, nosso propósito é mostrar, por meio da análise de algumas canções, como são apresentadas as identidades e culturas dos indígenas brasileiros, a fim de identificar temáticas que vêm historicamente reforçando estereótipos relacionados a essa população. Para cumprir nosso objetivo inicial, selecionamos as letras que apresentavam o indígena como temática central da canção. Neste artigo, apresentaremos a análise relativa a cinco letras por acreditarmos que estas contemplam de forma satisfatória os nossos propósitos. Para a análise das canções, utilizamos os parâmetros básicos propostos por Napolitano
(2002), que estabelecem dois critérios principais para o estudo da canção: os parâmetros poéticos e os parâmetros musicais (NAPOLITANO, 2002, p. 98). Aqui, enfatizaremos os parâmetros poéticos, por entendermos que esse nível de análise contempla o nosso objetivo de identificar temáticas relacionadas à imagem do indígena. Para a análise contextual, buscamos os estudos desenvolvidos por Renato Ortiz, no seu livro Cultura brasileira e Identidade nacional (1985), no qual o autor apresenta as discussões sobre a identidade brasileira a partir de um panorama cronológico e evidencia as frentes teóricas construídas e estabelecidas ao longo do tempo. Desde o período colonial, o indígena ocupa uma posição coadjuvante na História do Brasil, sendo sempre referenciado a partir do olhar do Outro. A carta de Pero Vaz de Caminha, enviada ao rei de Portugal, em 1500, ao descrevê-los a partir da visão do colonizador, atribui-lhes características pautadas em valores não condizentes com a cultura dessas populações e induz a uma representação do indígena como portador de uma predisposição à ingenuidade e à inocência. Após os primeiros contatos com o indígena, registrados em relatos de viagens, o período compreendido como o Romantismo brasileiro é considerado o que mais trabalhou a imagem dessa população. De acordo com alguns estudiosos, isso é decorrente da tentativa de construção de uma identidade nacional, que deveria ser composta por elementos conside-
rados genuinamente brasileiros. Neste cenário, o indígena foi eleito o símbolo nacional e, ao contrário da imagem corrente do selvagem, foram-lhe atribuídas características próximas às de um cavaleiro medieval, fazendo dele a representação nacional do antepassado mítico (BERND, 2003), dotado de virilidade e fidelidade ao seu senhor, conforme afirma Alfredo Bosi, no livro Dialética da colonização (1992). Nas obras literárias, pode ser percebida a ideia de fidelidade expressa na forma de submissão do indígena ao colonizador, condição fundamental para o relacionamento pretensamente harmonioso entre essas duas culturas. Como consequência desta subserviência, temos a representação de um indígena civilizado, descaracterizado de suas especificidades identitárias e, sobretudo, sem direito a voz. A década de 1930 é outro período da história brasileira que merece destaque para a (con)formação da identidade nacional, visto que traz à superfície ideias difundidas até os dias de hoje sobre a harmonização das três raças que formaram o Brasil. A obra Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, é referência para esse pensamento sobre as misturas culturais e étnicas que se formam no Brasil. Ortiz (1985) sugere que chamemos essa relação harmoniosa entre culturas proposta por Freyre de mito das três raças, pois mito “sugere um ponto de origem, um centro a partir do qual se irradia a história mítica” (ORTIZ, p. 38). Renato Ortiz (1985) pontua que “toda identidade se define em relação a algo que lhe é exterior” (p.7), o que implica dizer que a cons-
trução da identidade depende, primeiramente, do reconhecer o outro, que lhe é externo, como diferente de si próprio. No entanto, para a construção da identidade é necessário também que se tenha um olhar para dentro a fim de encontrar pontos que permitam reconhecer uma identificação. Assim, a identidade se constrói a partir do processo dialógico entre negação a certos valores e afinidade a outros, numa relação que, na medida em que estabelece delimitações, desenvolve um contínuo processo de (re)formulação da identidade. No entanto, é importante salientar que a seleção dos elementos a serem considerados ou não constitutivos da identidade não se dá de forma aleatória. Ela é feita de acordo com a conjuntura do período – podendo-se dizer, portanto, que é fruto de fatores sociais e políticos. Dessa forma, podemos considerar que a noção de identidade varia de acordo com os valores e a maneira de organizar-se dos grupos sociais ao longo do tempo, o que implica dizer que ela é plural quanto à sua interpretação. Como veremos adiante, mudanças de contexto histórico trarão consigo novas formas de pensar as relações sociais, o que, por sua vez, influenciarão nas discussões sobre identidade, em especial sobre a questão da representação indígena no cenário nacional. É importante observar que as imagens dos indígenas forjadas desde o documento fundador da chegada do colonizador à terra brasileira, há mais de cinco séculos, permanecem e ecoam nos dias atuais, conforme veremos nas análises a seguir.
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A respeito das designações “índio” e “indígena” “Índio” e “indígena” geralmente são considerados termos genéricos utilizados para denominar os indivíduos pertencentes aos grupos originários do continente americano pré-cabralino. Segundo o dicionário UNESP do português contemporâneo, ambos os termos se referem ao ser nativo, natural do local (América) onde habita. No entanto, embora hoje esses itens lexicais apresentem semelhanças quanto a sua significação e forma, eles não possuem parentesco etimológico. O termo “índio” surge a partir da concepção errônea dos colonizadores que, segundo a História oficial, ao terem chegado às terras da América, denominaram “índios” aqueles habitantes nativos por acreditarem estar nas Índias. Por sua vez, o termo “indígena” é de origem latina (no qual indu=dentro e gena -de gignere =gerado), cujo significado pode ser “nascido dentro do país” ou nativo. Para este trabalho, utilizaremos o termo indígena por compartilharmos da ideia trazida pelo significado etimológico sobre o indígena como aquele que é originário no local em que vive. Indiferente do termo adotado, o que se verifica é a atribuição pejorativa feita pelo Outro, consubstanciada na intensa discriminação e opressão sofridas pelos povos indígenas ao longo da história brasileira. Ressalte-se que há momentos em que se veiculam concepções sobre o
indígena possuidor de virtudes (como é o caso da concepção indianista/romântica, no qual é caracterizado como o ser forte, puro, guardião da natureza), mas essas qualidades sempre têm como corolário a subserviência ao colonizador. Dessa forma, as caracterizações do indígena em nossa cultura servem como base para se pensar sobre o desconhecimento sobre a cultura indígena por parte daqueles que compartilham as ideias cristalizadas na sociedade, bem como a total desconsideração pelo caráter multiétnico desses povos. Apresentaremos a seguir as letras das canções selecionadas e suas respectivas análises. Para fins didáticos, dividimos este trabalho em categorias que concentram as temáticas utilizadas para caracterizar o indígena nas canções. A elaboração dessas categorias, por sua vez, teve como base, além das canções escolhidas, os estudos de Ortiz (1975) sobre a identidade nacional, o que nos levou a construção de três grupos: O indígena idealizado, O indígena sob a perspectiva de vítima e O mito da democracia racial. Entendemos que a canção, justamente por sua dinamicidade, pode transpor as caracterizações e delimitações feitas nesta pesquisa. Entretanto, nossa intenção, através da delimitação das canções selecionadas em categorias, é traçar as diferentes configurações identitárias sobre o indígena que perpassam o discurso musical.
O indígena idealizado A representação do indígena veiculada a partir dos pressupostos românticos está enraizada no imaginário coletivo e tem no cancioneiro popular um lugar de destaque. O resgate das origens nacionais por meio da construção de um personagem que remontasse ao período inicial da História do Brasil leva os românticos a forjarem uma identidade para o indígena brasileiro que se aproxima dos cavaleiros medievais da Europa. Nas canções, por sua vez, essa visão romântica se evidencia por meio da representação edificante do indígena, na qual
ele é visto como guerreiro, possuidor de virtudes e atributos ocidentalizados. Dessa forma, podemos atribuir à MPB o que Ortiz afirma sobre os autores românticos brasileiros, que “se preocupa[m] mais em fabricar um modelo de índio civilizado, despido de suas características reais, do que apreendê-lo em sua concretude”(1985, p. 19). Foram selecionadas as canções: “Alma de Tupi” (1933), de José Luiz Calazans, “Senhor da Floresta” (1945), de Renê Bittencourt e “Índia” (1952), versão de José Fortuna.
Alma de Tupi (José Luiz Calazans, 1933) Sou caboclo brasileiro, Tenho sangue de guerreiro, Descendente de Tupi, Já andei por outras terras, Tenho visto muitas serras, Como a nossa nunca vi, Tenho amor à minha terra, Que belezas ela encerra, Nesses matos do sertão! Onde os nossos índios bravos, Nunca se fizeram escravos, De qualquer outra nação!
Minha terra tem cascatas, Tem mistérios nestas matas Que traduz belezas mil! Minha terra tem perfume, Que até Deus já tem ciúme, Destas terras do Brasil! Folhas verdes e amarelas, Céu azul cheio de estrelas, Como não existe igual, A imagem da bandeira, Desta terra brasileira, Neste mundo é sem rival.
A canção, composta em 1933, é um texto de exaltação à nacionalidade. Por meio dela, são trazidos elementos consolidados como genuinamente brasileiros, tal como o caboclo, o índio e a natureza. Assim, todos os aspectos associados à brasilidade são formulados de maneira a valorizar o nacional. Ser caboclo, geralmente mostrado de forma pejorativa em vários meios de comunicação, nesta canção é retratado como uma qualidade, visto que, de acordo com os primeiros versos, caboclo é aquele cuja miscigenação tem como antecedente a raça tupi. Dessa forma, o “eu-poético”, ao se afirmar caboclo, insere-se como membro dessa pátria, o que adquire no texto um aspecto qualitativo. A canção compartilha da visão romântica sobre o indígena brasileiro na medida em que o retrata de maneira idealizada. Pelas escolhas le-
xicais como “guerreiros”, “bravos” e da construção da imagem do indígena que não se deixou escravizar devido à sua bravura, recupera-se a representação do indígena possuidor de um passado de glória tal qual os cavaleiros medievais. É importante ressaltar também que essa visão romantizada está indicada pela escolha do autor pela raça tupi, o que pode ser considerado um lugar-comum que se mantém até os dias de hoje. Isso induz a uma generalização dos povos indígenas e sustenta o estereótipo romanticamente simplista de que todos os indígenas são tupis e possuem as mesmas características culturais. Da mesma maneira, a natureza é exaltada na canção, atingindo uma caracterização que se assemelha à representação saudosista da terra de Gonçalves Dias no poema “Canção do Exílio”,
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evidenciando uma relação intertextual, visto que ambos se utilizam da beleza incomparável das terras, das matas e do céu de seu país para construir a imagem da nação ideal. Conforme podemos ver em “Canção do Exílio”: Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores.
E, posteriormente, na canção “Alma de Tupi”:
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Minha terra tem cascatas, Tem mistérios nestas matas Que traduz belezas mil! [...] Folhas verdes e amarelas, Céu azul cheio de estrelas, Como não existe igual
Os versos de ambos os textos são redondilhas maiores, forma métrica de origem medieval bastante marcada pelo ritmo e por isso utilizada frequentemente em letras de canções populares (GOLDSTEIN, 1999). Em todos os versos, a terceira e a sétima sílabas são tônicas, o que lhes imprime um ritmo cadente e traz uma marcação. Se para um poema esse equilíbrio contribui para o tom declamatório, para a canção essa estrutura
facilita a interpretação vocal e sua memorização. Além disso, destaquem-se os campos lexicais ligados à natureza: terra, serras, cascatas, sertão, matos, matas, céu, estrelas, que contribuem para reforçar estereótipos em relação às populações indígenas e, como consequência, a aceitação das imagens veiculadas como sendo verídicas. Características semelhantes serão encontradas na letra que analisaremos a seguir.
Senhor da floresta (René Bittencourt, 1945) Senhor da floresta Um índio guerreiro da raça Tupi Vivia pescando, sentado na margem do rio Chuí Seus olhos rasgados No entanto fitavam ao longe uma taba Na qual habitava, a filha formosa de um morubixaba. Um dia encontraram Senhor da floresta do rio Chuí Crivado de flechas De longe atiradas por outro Tupi
E a filha formosa do morubixaba, quando anoiteceu Correu, subindo a montanha E no fundo do abismo, desapareceu. Naquele momento Alguém viu no espaço, à luz do luar Senhor da floresta De braços abertos, risonho a falar: Ó virgem guerreira Ó virgem mais pura que a luz da manhã Iremos agora, unir nossas almas aos pés de Tupã!
46. Etnia Kamayurá – Ritual feminino (yamurikumã). Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI. 46
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A apresentação idealizada do indígena também está presente no samba de René Bittencourt “Senhor da floresta”, de 1945, por meio do relato de uma lenda indígena. Este gênero narrativo caracteriza-se pela oralidade e pela relação que estabelece com o passado remoto, o que nesta letra adquire a função de criar um histórico da cultura indígena. Esse propósito foi bastante explorado no período em que a canção foi composta, visto que a política da época tinha como projeto a construção de uma identidade nacional, e por isso estimulava a produção de sambas com temáticas nacionalistas, conforme afirma Napolitano (2007). Podemos perceber uma correlação entre a lenda contada com as narrativas medievais, principalmente no que tange à seleção e caracterização das personagens. Na canção, temos a imagem do jovem cavaleiro medieval representado pelo “índio guerreiro” e pela imagem do rei e da princesa, encarnados respectivamente pelo morubixaba e sua “filha formosa”. Evidencia-se, desse modo, a criação de uma História nacional a partir dos parâmetros culturais europeus. No
que se refere às escolhas lexicais, nestes versos vemos também presentes recorrências de palavras semanticamente ligadas ora à natureza, ora às virtudes das personagens, como uma forma de reforçar a ligação intrínseca entre o “índio” retratado e a natureza. O índio, mostrado de forma idealizada, é um “guerreiro” na história, identificado como o “senhor da floresta”. Tal atribuição, título da canção, indica uma relação de poder estabelecido a partir de uma visão ocidentalizada, pois o termo senhor evoca a ideia de domínio deste sobre a natureza. Por sua vez, a filha do morubixaba, associada à mocinha das novelas medievais, é a “virgem mais pura que a luz da manhã”, aproximando-se da imagem explorada nas cenas de Iracema, romance indianista de José de Alencar, de 1865. Nessa obra romântica, a protagonista Iracema é identificada como a “virgem dos lábios de mel” (ALENCAR, 2006, p.15). A seguir, analisaremos outra de letra de canção que, embora seja uma versão de uma música paraguaia, atravessou as fronteiras e ganhou celebridade em terras brasileiras até nos dias atuais:
Índia (Versão: José Fortuna, 1942) Índia seus cabelos nos ombros caídos negros como a noite que não tem luar seus lábios de rosa para mim sorrindo e a doce meiguice desse seu olhar Índia da pele morena, sua boca pequena eu quero beijar Índia, sangue tupi, tem o cheiro da flor Vem, que eu quero te dar Todo meu grande amor
Quando eu for embora para bem distante e chegar a hora de dizer adeus Fica nos meus braços só mais um instante deixa os meus lábios se unirem aos seus Índia levarei saudade da felicidade que você me deu Índia, a sua imagem sempre comigo vai Dentro do meu coração, flor do meu Paraguai
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A canção “Índia”, de José Fortuna, em 1942, é uma versão da canção paraguaia, de mesmo título, de J. Assuncion Flores e Manuel Ortiz Guerreiros. Conforme assinalamos, ainda que não seja originalmente brasileira, esta canção possui um papel emblemático quanto à configuração identitária da mulher indígena. Trata-se de uma guarânia, gênero musical de origem paraguaia difundido no Brasil a partir da década de 1940. Seu andamento lento, de tom melancólico, foi amplamente utilizado pelos compositores de música sertaneja, conforme afirma Tinhorão (s/d). A imagem da índia meiga, de cabelos longos e “negros com a noite” e lábios delicados tem sido frequente em outros textos e, desse modo,
reforça a concepção da beleza da mulher indígena cristalizada socialmente. Os elementos da natureza – noite, luar, flor – reafirmam as generalizações, estereótipos e simplificações que povoam nosso repertório. A referência à raça tupi é retomada como etnia que prevalece. Ressalte-se também a proximidade temática e imagética com o romance Iracema. Nessa perspectiva, essa recorrência de motivos caracterizadores sinaliza para uma homogeneização e apagamento de especificidades culturais dos grupos indígenas. No item que se segue, abordaremos a imagem do indígena como vítima da sociedade, temática bastante recorrente no cancioneiro popular.
O indígena sob a perspectiva de vítima A partir da segunda metade do século XX, tornaram-se mais evidentes composições que denunciam a condição marginalizada a que foram submetidos os diferentes grupos indígenas. As canções “Cara de Índio” (1978),
de Djavan, “Curumim chama cunhatã que eu vou contar (Todo dia era dia de índio)” (1981), de Jorge Ben Jor tematizam os indígenas a partir dessa visão e serão objeto de nossa análise.
Cara de Índio (Djavan, 1978) Índio cara pálida, Cara de índio Índio cara pálida, Cara de índio Sua ação é válida Meu caro índio Sua ação é válida, Valida o índio Nessa terra tudo dá Terra de índio Nessa terra tudo dá Não para o índio Quando alguém puder plantar,
Quem sabe índio Quando alguém puder plantar Não é índio Índio quer se nomear Nome de índio Índio quer se nomear, Duvido índio Isso pode demorar, Coisa de índio Índio sua pipoca, Tá pouca índio Índio quer pipoca Te toca índio
Se o índio se tocar, Touca de índio Se o índio toca, Não chove índio Se quer abrir a boca Pra sorrir índio Se quer abrir a boca, Na toca índio A minha também tá pouca, Cota de índio Apesar da minha roupa, Também sou índio
Em “Cara de Índio”, composição de Djavan, podemos perceber o tom de denúncia à condição marginalizada do índio na sociedade. A repetição de versos e palavras como “índio” contribui para o clima de insatisfação ecoado pela letra. O texto pode ser dividido em estrofes de quatro versos cada, nas quais os versos ímpares contêm ideias repetidas e os versos pares apresentam jogo de palavras de forma que as ideias se tornam contraditórias, conforme podemos ver em: Nessa terra tudo dá Terra de índio Nessa terra tudo dá Não para o índio Quando alguém puder plantar, Quem sabe índio Quando alguém puder plantar Não é índio
A crítica evidencia-se por esse jogo de palavras que mostra a ausência de espaço e de voz reservados ao índio. No verso “Nessa terra tudo dá”, vemos a referência à terra brasileira, conhecida desde as literaturas de viagem
como aquela que “tudo dá”. No entanto, ela é inacessível ao índio, impedido de nela plantar, embora seja Terra de Índio. A partir dessa visão, o índio, à margem da sociedade, perde sua identidade cultural e passa a ser designado genericamente por “índio”, sem abertura para que ele se identifique conforme sua vontade, segundo podemos observar nos versos que se seguem: Índio quer se nomear Nome de índio Índio quer se nomear, Duvido índio Isso pode demorar, Coisa de índio
Ao se afirmar índio, o eu poético se identifica com o sentimento de exclusão social vivido por essa população e demonstra solidariedade à sua condição, como forma de amplificar a realidade marginalizada das populações indígenas para outros grupos sociais. A letra que vem a seguir também traz essa ideia de denúncia.
Curumim chama cunhatã que eu vou contar (Todo dia era dia de índio) (Jorge Ben Jor, 1981) Curumim chama cunhatã que eu vou contar Antes que os homens aqui pisassem Nas ricas e férteis terraes brazilis Que eram povoadas e amadas Amadas por milhões de índios Reais donos felizes Da terra do pau Brasil Pois todo dia e toda hora era dia de índio Mas agora eles só têm um dia Um dia dezenove de abril Amantes da pureza e da natureza Eles são de verdade incapazes De maltratarem as fêmeas Ou de poluir o rio, o céu e o mar
Protegendo o equilíbrio ecológico Da terra, fauna e flora pois na sua história O índio é o exemplo mais puro Mais perfeito mais belo Junto da harmonia da fraternidade E da alegria, da alegria de viver Da alegria de amar Mas no entanto agora O seu canto de guerra É um choro de uma raça inocente Que já foi muito contente Pois antigamente Todo dia era dia de índio
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Esta composição de Jorge Ben Jor inicia-se com um grito de guerra como indicador da indignação do narrador, cuja proposta é recontar a chegada dos colonizadores ao Brasil e as consequências sofridas pelo índio. O enfoque do relato trazido pela canção está na mudança existente a partir da vinda “dos homens”: antes, o índio vivia contente em comunhão com a terra, e agora seu canto é de tristeza. A relação temporal estabelecida entre o antes, em que todo dia era dia de índio, e o agora, em que há somente o consolo do dia 19 de abril como data comemorativa, denuncia a atual condição de exclusão social desses povos. Nesse aspecto, a canção se aproxima à crítica feita na letra de “Cara de Índio”, composta por Djavan. Quanto à representação do indígena, a
canção explora a imagem do “bom selvagem”, possuidor de boa índole por não estar corrompido pela sociedade, sendo, portanto, inocente e “incapaz de maltratar as fêmeas ou de poluir o céu, o rio e o mar”. As escolhas lexicais para denominar esse índio aproximam-no da perfeição ao caracterizá-lo como promotor do equilíbrio ecológico e exemplo do “mais puro, mais perfeito e mais belo”. Todas as qualidades do indígena levantadas pela canção o relacionam ao meio ambiente, o que nos leva a concluir que, ainda que embora a crítica à exclusão social dos indígenas esteja presente, essa é feita em nome de um índio idealizado, incompatível com a real diversidade linguística e cultural das populações indígenas.
Considerações finais Por meio dos exemplos mencionados, percebemos que o cancioneiro popular, elemento relevante na cultura nacional, auxilia-nos a identificar representações sobre o indígena perpetuadas socialmente. As imagens de herói, guerreiro, senhor da floresta, virgem dos lábios de mel, primitivo, atrasado, preguiçoso, indolente, submisso, fiel ou vítima de seu explorador estão cristalizadas no imaginário
coletivo e reforçam estereótipos relacionados às populações indígenas. De modo geral, vimos que as configurações do indígena, veiculadas pelas letras aqui analisadas, associam-no a um passado mítico, distante da realidade atual, o que dificulta a implementação de ações que levem em consideração sua verdadeira pluralidade étnica, linguística e cultural.
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Lúcia Maria de Assunção Barbosa é professora da Universidade de Brasília (UnB) e Doutora em linguística aplicada. Fernanda Tonelli é mestranda do Programa de Pós-graduação em linguística da Universidade Federal de São Carlos e apresentou estudo sobre o tema deste artigo. Em formato de Pesquisa de Iniciação Científica, realizada no período de 2008/2009, com financiamento do CNPq, na Universidade Federal de São Carlos, no contexto do Projeto de Pesquisa “A cor do som brasileiro: temas e designações étnico raciais em letras de canções”, coordenado pela Profa. Dra. Lucia Maria de Assunção Barbosa.
Acervo FUNAI
uma escola indĂgena de cinema Vincent Carelli
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O
projeto Vídeo nas Aldeias começou a introduzir experimentalmente o uso do vídeo em comunidades indígenas há 25 anos, no momento em que a revolução tecnológica do VHS oferecia finalmente a acessibilidade a recursos caseiros de produção audiovisual. Nesta época era muito forte o estranhamento das pessoas a esta proposta: achavam que se estava poluindo, corrompendo a “pureza” da cultura indígena, ao introduzir elementos alienígenas, da nossa civilização, no seu modo “tradicional” de vida. Com a descoberta das Américas, os filósofos do Iluminismo criaram a ficção do “bom selvagem”. Ventríloquos do “novo homem”, eles usaram-no para fazer uma crítica da sua própria sociedade, projetando nele tudo o que eles gostariam de ser e não eram mais. Pintaram então no bom selvagem a inocência, a pureza e a harmonia do homem com a natureza, as maravilhas da sociedade igualitária. Este conceito se cristalizou e se perpetuou de tal maneira que, até hoje, a maioria das pessoas ainda enxerga os índios através desse prisma, e gostaria que eles correspondessem à sua fantasia. Toda e qualquer apropriação dos elementos da nossa civilização pelos índios é vista por muitos como uma degradação, uma perda da pureza, por parte de quem gostaria que os índios mantivessem imaculada sua cultura original. Porém, o entusiasmo com o qual os índios
receberam a proposta do Vídeo nas Aldeias demonstra que pensam diferente a esse respeito. Os índios não querem ser peça de museu, muito menos de zoológico. É claro que eles não são passivos diante do intenso processo de mudança que transforma as suas vidas. Os velhos fazem seu papel de velho, cobrando o respeito pelas tradições, avivando a memória de cada um de seus povos. As novas gerações indígenas têm, por sua vez, seus olhos cada vez mais voltados para o mundo de fora, estampado nas imagens das “telinhas” que hoje chegam a quase todas as suas aldeias. É neste convívio que se atualiza e se recria diariamente a “cultura” de um povo. Todos eles, mais tradicionalistas ou modernizadores, querem ser parte da história contemporânea da humanidade, sem deixar de ser o que são. Além disso, o contato e convívio com a nossa civilização trouxeram muitos problemas que antes não existiam, e as perdas culturais foram enormes. Como dizia o velho Mario Juruna, “não existe o problema do índio, o que existe é o problema do branco”. Com a morte por contágio das nossas doenças de grande parte de suas populações, muitos velhos partiram levando consigo sua sabedoria, e muitos mecanismos tradicionais de transmissão de conhecimento foram obstruídos. Então porque não lançar mão da tecnologia moderna para encaminhá-los de outra forma? O biculturalismo afinal é um fato histórico incontornável.
Valorização do seu patrimônio cultural Toda nova tecnologia oferece uma diversidade de usos, muitos deles insuspeitados até por seus próprios inventores. E a sua apropriação em novos contextos depende de encontrar aquele uso que corresponde às necessidades e ao gosto de cada um. O vídeo foi introduzido nas aldeias usando a sua grande inovação em relação ao filme de película: a possibilidade de sua exibição imediata, e portanto sua apropriação imediata pelos sujeitos filmados. Foi exatamente o procedimento que adotamos: filmar e exibir as imagens após as filmagens. O espelho proporcionado pela “telinha” gerou um choque de realidade, o choque do confronto da autoimagem com aquela exibida na TV. Na primeira experiência do Vídeo nas Aldeias, em 1986, o que saltou aos olhos dos Nambiquara, no norte de Mato Grosso, foi seu visual, com uma mescla de roupas e a falta de rigor nas pinturas e nos ornamentos da celebração. Essa autocrítica estimulou a performance diante da câmera de outras festas abandonadas, numa verdadeira catarse coletiva. Os líderes imediatamente reconheceram a importância de se colocar na telinha e passaram a dirigir o rumo das filmagens. Diante desta revisão critica da própria imagem, o vídeo oferece a possibilidade imediata de sua reconstrução, de modo a melhor
corresponder à sua autoimagem. A possibilidade de registrar histórias, cantos, danças e conhecimentos que ficarão para as próxima gerações fascina e estimula os mais velhos a catalisarem vivências coletivas que possam ser registradas, socializando assim a sua memória com os demais. Em dez anos, além de instrumentalizar o discurso de resistência cultural de alguns líderes indígenas com registros de manifestações culturais, eventos políticos e promoção de intercâmbio entre povos, produzimos uma série de filmes revelando como povos indígenas reagiam à possibilidade da produção da imagem e sua incidência sobre a questão da memória e do patrimônio cultural. Estes filmes permitem ver como a memória ajuda na reconstrução da identidade presente, e que não existe uma “cultura ideal congelada”, mas que a cultura de um povo se atualiza e se recria a cada momento. Assim como isso é verdade para a civilização ocidental, também o é para os índios. Os filmes ajudam o público a entender que nada será como antes e desfazer, afinal, o equívoco histórico do conceito do “bom selvagem”. Esses filmes também foram vitais para fazer os financiadores da cooperação internacional entenderem a importância que esta démarche pode ter num grupo indígena, e continuarem a apoiar o projeto.
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Um processo de autoconhecimento Com dez anos de estrada, o Vídeo nas Aldeias atravessa uma nova etapa: da etapa do simples registro para consumo interno, passamos para a produção de narrativas cinematográficas para outros povos e para o público não indígena em geral. Iniciamos então um processo de formação de jovens adultos, indicados ao serviço de suas comunidades. A produção de documentários sobre a sua realidade, a sua própria intimidade, é um processo de autoconhecimento fascinante, e nesse caso capaz de aproximar gerações. Não é à toa que a maioria dos nossos jovens cineastas são professores em suas aldeias. O professor indígena se tornou um pesquisador da sua própria cultura, capaz de levar conteúdo à sala de aula na aldeia, de criar um novo espaço de transmissão do conhecimento, da língua, da história do seu povo. E o vídeo passou a ser seu instrumento de pesquisa e de transmissão num espaço até mais amplo que a própria sala de aula. O cinema que se ensina no projeto Vídeo nas Aldeias vai na contramão do bombardeio de imagens cortadas em ritmo alucinantes da TV, que hoje chega a quase todas as aldeias. Sendo a TV a única referência cinematográfica destes indígenas, a primeira reação é sempre imitá-la, e cair no fast food midiático. A formação do olhar se dá na linha do cinema direto, um cinema de observação, todo na língua originária, baseado na riqueza infinita do cotidiano – e que espera seus personagens se expressarem livremente. A magia do cinema encanta tanto os índios que o realizam quanto as plateias que assistem aos filmes posteriormente. A filmagem numa aldeia cria um momento especial durante a ofi-
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47. Etnia yawanawá – Festa da Terra. Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI.
cina: rompe o cotidiano, permite estabelecer novos canais de comunicação dentro da comunidade, valoriza temas antes desprezados. Cria-se uma sinergia não só pelo desejo de contar, de se expressar, mas também pela possibilidade de ser visto e reconhecido pelo mundo. O desejo coletivo do filme faz dessas obras criações coletivas. Não há momento mais emocionante para nós, participantes desse trabalho, do que ver um grupo de jovens entrevistando um velho – este feliz por estar sendo indagado – e se espantarem com histórias até então desconhecidas por eles, que chegam mesmo a cobrar do velho: “por que você nunca nos contou essa história?” Ao que o velho responde: “porque vocês nunca perguntaram, nunca se interessaram”. Um processo colaborativo de realizadores/ professores não índios, interagindo com os alunos indígenas e com o coletivo da aldeia, torna a oficina de cinema um processo coletivo de aprendizagem e realização. Cada aluno se descobre, cria seu personagem, sugere cenas, cria fatos, improvisa. O filme resulta de um consenso em que a comunidade se identifica com o resultado e se sente realmente representada. Estes filmes se transformam em verdadeiras carteiras de identidade visuais para percorrer o Brasil e tecer a sua rede de amigos e simpatizantes, com a autoestima necessária para enfrentar a massacrante situação de se sentir uma ínfima minoria. Além disso, contemplam com a descoberta do mundo indígena em sua intimidade e com obras cinematográficas que entraram para a história da produção audiovisual brasileira.
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Uma expressão para o mundo Na sociedade contemporânea, esta civilização da informação, o acesso aos meios de comunicação se tornou vital para a própria sobrevivência. Os índios contemporâneos – uma extrema minoria que detém grande peso simbólico, por ser a raiz da sociedade nacional – entenderam rapidamente que para ser ouvidos e fazer valer seus direitos, precisavam de ações midiáticas. Tanto a questão da preservação do seu patrimônio cultural, quanto o seu reconhecimento e afirmação perante a sociedade nacional são as duas questões estratégicas para os índios. Como uma minoria de 800 mil índios pode ser conhecida no meio da vastidão de 200 milhões de habitantes do Brasil? A visibilidade nacional é uma questão política vital para cada um desses povos. Fazer cinema parece um caminho para romper esse fosso da invisibilidade e estabelecer uma ponte entre esses mundos tão distantes. Um longo trabalho de formação e apoio à produção cinematográfica de um pequeno número de povos – Ashaninka, Huni Kui, Kuikuro, Ikpeng, Kisêdjê, Xavante, Panará, Guarani... – permitiu dar à luz, e difundir, um corpo de filmes de autoria indígena que vieram revelar um novo olhar sobre a realidade indígena, um olhar intimista que aproxima e humaniza os índios, no sentido de nos fazer sentir que, para além das nossas diferenças culturais, somos todos humanos. A produção indígena começou a circular pelos festivais (primeiro os temáticos) e foi aos poucos encontrando seu lugar em festivais e mostras de cinema que não costumavam projetar filmes sobre a realidade indígena – ou melhor, que têm “alergia” à temática por causa
do formato discursivo clássico do filme etnográfico. Fomos percebendo que o diferencial da produção indígena era apreciado de maneira clara pelo público, e que esta produção tinha o poder de transformar o olhar das pessoas sobre os índios. Animados com o bom acolhimento das produções de autoria indígena, começamos a trabalhar na ampliação do espectro de difusão destes trabalhos. Hoje, o Vídeo nas Aldeias tem um corpo de produções cinematográficas muito original, que retrata aspectos totalmente desconhecidos da realidade indígena de uma maneira extremamente intimista, capaz de desconstruir um imaginário preconcebido e equivocado a seu respeito. É uma produção capaz de recolocar os povos indígenas na contemporaneidade do país. Resolvemos publicar uma compilação das melhores obras realizadas pelos índios na última década numa coleção intitulada “Cineastas Indígenas”, que se encontra disponível no mercado. O antropólogo Hermano Vianna, estudioso da cultura digital e pós-moderna, ao assistir à coleção de DVDs “Cineastas Indígenas”, reconheceu com muita sinceridade, em sua coluna no jornal O Globo, que esses vídeos jogaram por terra uma visão completamente romântica dos índios que ele mesmo ainda tinha, ao mostrar um Panará na mata caçando com sua garrafa térmica e seu cafezinho; um Kuikuro pelado do Xingu com sua televisão LCD de 52 polegadas – enfim, a realidade objetiva do dia a dia de cada povo indígena, sem o conhecimento da qual não se pode entender como se dá esse convívio da tradição com a modernidade.
O direito à diferença
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É evidente que no processo de filmagem e de edição dos filmes, de construção da imagem, essa questão do olhar do outro, do olhar do Brasil sobre eles, tem um peso e é discutida. Muitas vezes os próprios índios introjetam o olhar externo sobre eles e hesitam: “não, isso é melhor não botar porque não vai pegar bem. Eles vão rir da gente, vão achar que a gente é isso ou aquilo”. A questão da identidade passa por esse reconhecimento do outro e muitas vezes se debate longamente essas questões durante as oficinas, estimulando os índios no sentido de não se pautar por esse olhar: Você se orgulha disso? Você acha que é legal? Então tem que estar no filme, tal qual ele é; apenas contextualize a situação para não haver desentendimento. A diferença e
a diversidade não podem ser mascaradas, senão pasteurizamos tudo e não contribuímos para superar as incompreensões. A diferença é a diferença, e às vezes choca. Principalmente quando se está falando de diferenças de comportamentos, de usos e costumes, de comportamentos que são tachados como “imorais” numa sociedade e que são naturais para outros povos. Todo este entendimento vai se formando também ao longo da trajetória do cineasta que acompanha projeções de seus filmes em vários contextos, para públicos variados, no Brasil e no exterior. Ele vai interagindo com o público, entendendo as várias leituras do seu trabalho, aprendendo que é preciso contextualizar bem certas questões para ser bem entendido e formulando o foco de seus projetos futuros.
Uma política de inclusão social No governo Lula, com o então Ministro Gilberto Gil e sua equipe na gestão das políticas públicas da cultura, a constatação de que “o Brasil não conhece o Brasil”, e que num “País de Todos” todo cidadão deve ter não só acesso ao consumo de bens culturais como também aos meios para produzir cultura a partir de sua perspectiva, se iniciou uma nova era de valorização da diversidade cultural brasileira, e se democratizou o acesso aos subsídios da cultura. Num diálogo com a sociedade civil, tanto as Secretarias da Cidadania Cultural, como a da Diversidade e da Identidade, traçaram uma política inédita de subsídio para as populações tradicionalmente excluídas de qualquer finan-
ciamento na área da cultura – as populações das periferias dos grandes centros urbanos, grupos da cultura popular, remanescentes de quilombos e os índios – raízes das nossas culturas populares e contemporâneas. Neste contexto de inclusão dos índios na política cultural do Ministério, o Programa Cultura Viva, que subsidiou Pontos de Cultura por todo o Brasil, deu um apoio considerável à rede de aldeias atendidas pelo Vídeo nas Aldeias, possibilitando a compra de computadores para edição dos filmes nas aldeias, a realização de diversas oficinas de formação e a publicação de uma coleção de DVDs com o melhor da produção de autoria indígena.
Os índios na TV brasileira Provavelmente 90% da população brasileira só conhece os índios através da televisão, nos noticiários quando há problemas e disputas, ou nas reportagens e nos documentários feitos por não índios que, na maioria dos casos, lançam um olhar exótico sobre a realidade indígena. Portanto, a TV é a quase única janela para os índios se tornarem conhecidos pela população brasileira numa escala nacional, e ao mesmo tempo, é na TV que são reproduzidos os clichês,
os estereótipos e os equívocos sobre os índios. Quando os autores de novela criam personagens indígenas, aí então entramos para o terreno da caricatura. Decorre disto a importância da existência de um espaço na televisão pública brasileira em que os índios possam nos revelar sua realidade através do seu próprio olhar. Vinte anos atrás, os filmes que o Vídeo nas Aldeias produzia eram recusados pela televisão pública: não tinham o formato adequado, a du-
ração era inadequada para a grade, faltava a linguagem própria da televisão. Nos últimos três anos, trazido pelos ventos da valorização da diversidade cultural, surgiu o programa Auw’ê de documentários sobre a realidade indígena. Apresentado pelo ator Marcos Palmeira, o programa da TV Cultura já exibiu 40 títulos do Vídeo nas Aldeias. Era emocionante ver todos os nossos alunos Brasil afora, sentindo o impacto dessa difusão todo domingo, às 18h, em horário nobre, e de serem descobertos pelos vizinhos com os quais convivem há décadas, sem terem jamais tido a oportunidade de se conhecerem realmente. Muitos telespectadores escreviam para o site do programa, comentando e parabenizando pela iniciativa. Imaginem então a emoção dos moradores das aldeias que tiveram seus filmes exibidos e reprisados em cadeia nacional! Infelizmente, como parte do momento de delicadas transições vividas no Brasil, a TV Cultura encerrou o programa Auw’ê. Hoje
a TV Brasil estuda a possibilidade de levá-lo para sua grade. Por outro lado, o programa Cultura Viva, que possibilitou os Pontos de Cultura, fundamentais para o momento prolífico que o Vídeo nas Aldeias e outras iniciativas têm vivido, tem seu futuro incerto. O Brasil vive um momento de grandes desafios, no qual novos atores entram em cena em busca de viabilização cultural. É necessário olhar os importantes avanços conquistados nos últimos oito anos da era Lula, que por sua vez são resultado de um longo processo de abertura cultural no Brasil. Projetos como o Cultura Viva, do Ministério da Cultura, e um programa indígena numa televisão pública, como era o Auw’ê, são peças tão vitais para o desenvolvimento do país quanto os projetos políticos e econômicos. A experiência do Vídeo nas Aldeias nos mostrou que qualquer classe social pode revelar talentos e gerar produtos que recolocam o Brasil na vanguarda artística internacional.
Os índios nas escolas Em 2008, o governo brasileiro tomou uma decisão ousada, no sentido de instituir a obrigatoriedade do ensino de aspectos culturais dos afrodescendentes e dos povos indígenas nas escolas públicas do ensino fundamental e médio. Esta decisão, que levará alguns anos para ser implementada de fato, implica num enorme investimento na formação dos nossos professores numa matéria que eles nunca estudaram, e em gerar materiais didáticos atrativos e de qualidade sobre estes temas. Conhecendo o poder de sedução das imagens, o Vídeo nas Aldeias tem voltado grande parte de suas energias para a produção de compilações de filmes e livros didáticos para escolas. Em 2010, o Vídeo nas Aldeias fez um projeto piloto, subsidiado pela Petrobras Cultural, que distribuiu 3.000 kits pra 3.000 escolas no Brasil com uma coletânea de 20 filmes de autoria indígena e um guia para assessorar o professor
no uso e nas discussões dos filmes em sala de aula. Esperamos agora trabalhar, com o apoio da UNESCO, numa compilação de filmes sobre crianças indígenas para o jovem público escolar. Imaginem quando nossos filhos e netos puderem se familiarizar e se interessar pela diversidade das culturas indígenas deste país desde cedo, já nas escolas, e estabelecer uma relação lúdica e criativa com a diversidade. Será um privilégio para nós, um redescobrimento do Brasil. Ao conhecer estes povos, teremos mais chances de respeitá-los, e aqueles que serão vistos, de se sentirem mais reconhecidos. É preciso criar no país um ambiente mais favorável em relação aos índios, e permitir que eles, nos lugares mais distantes do Brasil, deixem para trás a vergonha de ser quem são, a vergonha pela qual muitos tiveram de passar em gerações passadas, e passar ao orgulho de ser brasileiro, pertencendo a um povo indígena específico!
Vincent Carelli é indigenista e cineasta. Criou e é Secretário Executivo do projeto Vídeo nas Aldeias.
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Experiência literária em terra indígena Maria Inês de Almeida
Etnia Yawanawá, Festa da Terra. Mário Vilela / Acervo FUNAI
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ma nova prática da escrita está florescendo entre os povos indígenas. Há cerca de 30 anos, com a emergência da educação escolar indígena no Brasil e na América Latina, professores e estudantes indígenas têm se dedicado a escrever, editar e publicar livros. Até 2011, foram publicados no Brasil cerca de 500 livros de autoria indígena, a maioria em línguas indígenas ou bilíngues. A primeira observação sobre este fenômeno literário tem a ver com a autoria. Trata-se, na grande maioria, de livros criados em contexto de produção de material didático para as escolas das aldeias, confeccionados a partir de projetos gráficos pensados coletivamente, em oficinas oferecidas pelos cursos de formação de professores, com a assessoria de pesquisadores universitários. Desde a concepção, os livros indígenas põem em destaque o fato de que, em sua materialidade, todo livro é feito por muitos. Assim também as vozes presentes, que são transcritas, traduzidas, editadas, são impessoais e constituem textualidades estranhas ao universo ficcional da literatura moderna, não correspondendo a nenhuma forma específica de narrativa, nem mesmo àquelas de suas próprias formas poéticas tradicionais, na oralidade. Na maioria das vezes, essas textualidades se imprimem em prosa, com histórias dos tempos de antigamente ou do contato com os outros. Histórias do tempo em que os bichos falavam com os homens, ou em que as plantas ainda eram gente. Do tempo em que as línguas se tornaram estranhas, ou quando os brancos chegaram para tomar a terra. Mas há também os livros “de ciências” e os “de geografia”, em que os mais velhos, em geral, ensinam como se curam as doenças, como se cuida da terra, ou contam sobre os nomes e costumes dos bichos e das plantas, mostram onde passam os igarapés, os lugares onde vivem os homens. A naturalidade com que os indígenas tratam os livros, e com que os fazem, leva a pensar em um aspecto das propostas estéticas colocadas pelos vários movimentos artísticos do último século no Brasil: Modernismo, Regionalismo, Concretismo, Cinema Novo, Tropicalismo, para citar apenas os mais conhecidos. Esse aspecto pragmático da literatura – a poesia existe nos fatos – está essencialmente traduzido nos manifestos de Oswald de Andrade. Tanto o
Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924) quanto o Manifesto Antropófago (1928) chamam a atenção para a concretude do pensamento selvagem. Este é como um jardim de grande biodiversidade, pois pensar selvagem é deixar crescer as inúmeras espécies de imagens, sem hierarquias, tão mais vivas quanto mais ao sabor do prazer que trazem aos sentidos. A literatura como caminho, “roteiros, roteiros...”, é o que podemos ler nos livros de autoria indígena: a bricolagem, a ligação com o mundo auricular, os cantos e os desenhos em junção com o alfabeto, assim como os cipós e a jiboia se entrelaçando na floresta. A transformação do tabu em totem, conforme preconizou Oswald de Andrade. As relações entre os seres viventes são, nos livros, indiscriminadamente contadas, desenhadas, sem que alguma noção de culpa impeça o real de fazer ali sua aparição, mesmo que sutilmente. A contribuição milionária de todos os erros. Cada obra publicada suscita a próxima criação, que absorve as formas e cores das anteriores, e a prática da leitura torna-se, na verdade, uma prática de “legência” (que põe em ação o leitor). O escritor passa ao leitor o desejo de escrever e este, em ato, em potência, faz o laço necessário do texto com a vida. O conhecimento, nessa literatura, é decorrência do prazer da passagem pela paisagem alheia. Tanto para os leitores indígenas, quanto para os não indígenas, o efeito literário mais palpável do encontro com esses livros indígenas – línguas raras entrando no mundo do impresso, desenhos e escritas misteriosas, imagens das aldeias e do mato – é o de uma troca verdadeira, conhecimento mútuo, em que se experimenta ou se vislumbra a cena do outro, outras formas de vida, outros mundos, outras humanidades. Tal impressão da diferença – sobreimpressão, a paisagem do outro – é o traço forte da chamada literatura indígena contemporânea, atualmente publicada em suas variadas formas textuais. Cada projeto gráfico traz a singularidade de uma experiência, por isso talvez se possa pensar na literatura fora de série, fora do sistema, em sua condição absoluta de traço unário, de acontecimento. Como coordenadora do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), tenho participado de vários processos de produção e
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edição de livros indígenas. Cada um constitui experiência única, mas de todos podemos extrair um caminho seguido que é próprio, mas se abre a outros grupos, etnias, aldeias, escolas, indivíduos, no sentido de que chama o outro à responsabilidade do olhar, da voz, de dar corpo a alguma ideia – forma vital. Para exemplificar, uma experiência pode ser marcada como claramente vinculada a esse método de abrir caminhos a outros, como diz a escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol1, o método da escrita. Ligada à formação intercultural de educadores promovida pela UFMG, resultou na publicação do livro: Hitupmã’ãx, ou Curar em português. A experiência desta obra surgiu da dificuldade de diálogo entre os agentes de saúde do governo e os índios. A proposta foi a de um livro que ensinasse os brancos a ler a saúde maxakali, a vida dos Tikmu’un (os humanos mesmo), que conhecem os espíritos que os fazem adoecer. Os antepassados ensinaram aos humanos verdadeiros os cantos que restabelecem o equilíbrio, que os médicos agora ouçam esses cantos. Aprendam a escutar suas linguagens estranhas. Para encontrarmos a forma desse livro, em que melhor se desse esse recado dos Maxakali, pois nós o escutamos, foi preciso organizar vários encontros – oficinas. Suportar a insegurança, o medo, a ignorância, para atravessarmos constelações de signos, informações, restos de civilizações, até perceber que “o começo de um
livro é precioso”2 e mantém todos os livros começando, nessa lógica da “legência”. Na produção do livro, deixamos que todas as falas tivessem a mesma importância, e que os temas fossem escritos e reescritos à vontade, de sorte que um procedimento terapêutico pode se encontrar, em suas várias versões, em páginas diferentes. Horas e horas de depoimentos e conversas gravadas iam sendo transcritas pelos monitores e traduzidas em Maxakali pelos professores dessa etnia. E o desejo de fazer do livro um manual de medicina fez com que a figura de um médico profissional e uma enfermeira da Casa do Índio da cidade de Governador Valadares (MG) fossem a interlocução necessária, para que se estabelecesse o diálogo em termos médico-científicos. Ao nos depararmos com material tão complexo, no momento de confeccionar o projeto gráfico do livro, tivemos que fazer um exercício de abstração e pensar a articulação entre as ciências, da medicina ocidental e do xamanismo, e, por outro lado, fazer o movimento concreto da expressão dessa articulação no espaço literário. Daí, pelo caminho aberto por outras textualidades, vindas inclusive de Portugal, descobrimos que a poesia inscrita no livro da saúde maxakali já estava prenunciada na própria língua portuguesa, em Camões, Fernando Pessoa, Maria Gabriela Llansol, em Sousândrade, em Oswald e em Mario de Andrade, nos irmãos Campos, em Arnaldo Antunes... A experiência
1 A obra da escritora portuguesa Maria Gabriela Llansol (1931-2008) tem orientado o Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras, na Universidade Federal de Minas Gerais, em suas experiências literárias com as comunidades indígenas, fornecendo inclusive alguns conceitos-chaves em suas elaborações teóricas: textualidade, legência, sobreimpressão são alguns dos principais. A estrutura do livro Curar também foi tirada de um diário de Llansol, publicado sob o título Finita (1976), onde está prenunciado: “Há, pois, três livros, o da Paisagem, o do microcosmos do homem, e o da polimorfa mulher”. 2 Título de um livro de M. G. Llansol publicado em 2004.
radical do bilinguismo, da impressão de uma língua em paisagem alheia: nossa história cultural nos autoriza a pensar na tradução como método por excelência, ao se fazer a literatura indígena no Brasil. Então, pegando o mote deixado pelo romance no Ocidente, com a constatação de que o concerto de vozes é estruturante de todos os livros modernos, de que sempre os discursos poderão se entrelaçar na trama textual, de que essa textualidade é mais importante do que a narratividade, deixamos o livro maxakali da saúde, o Curar, se constituir graficamente em três colunas paralelas (“Há, pois, três livros...”), cujos signos perpassam e ultrapassam os alinhamentos, mostrando a decomposição dos saberes através dos movimentos de leitura. Como um prisma, a página do livro compreende o signo em sua tríplice faceta verbal-vocal-visual; e também multidimensional, o ícone, o índice e o símbolo. Ou, em outras palavras, as três dimensões que produzem o texto literário: a paisagem, ou seja, a escrita do que é próprio, do que não se traduz; o microcosmos do homem, ou o discurso do mestre, os códigos e o jargão a serem reconhecidos de longe e indicarem caminhos de leitura; a polimorfa mulher, as vozes na sua procura de paragem, de escuta e em seu movimento para algum conhecimento mútuo. Assim o livro triádico maxakali foi impresso e, quase em seguida, foi escolhido pelos técnicos da Fundação Nacional de Saúde (FUNASA)
como material didático na formação dos agentes de saúde que trabalham com os Maxakali. A aposta dos professores Maxakali de que o que os agentes do governo precisavam de uma ajuda para que pudessem ouvir e traduzir suas falas e cultura foi acertada. O trabalho de colocar, no livro, anamneses inteiras em língua maxakali, em transcrições fonéticas e com guias de pronúncia, para que possam ser lidas em voz alta pelos médicos, na hora das consultas nos hospitais e postos de saúde vizinhos da Terra Indígena Maxakali, resultou na utilização do livro como um manual necessário a cada médico e enfermeira da região, sujeito a atender um paciente maxakali. Assim, através do exemplo do livro Hitupmã’ã / Curar dos Maxakali, podemos verificar que a literatura indígena retoma valores talvez esquecidos pela crítica literária ocidental. Esta, desde o século XVIII, tem separado a fruição artística da função pragmática da cura, da educação, da técnica, da religião, das ciências. O valor “literário” foi sendo determinado como “finalidade sem fim”, como se os demais valores não fossem também, em seu ponto de fuga, sem fim. A ficção não é um atributo das textualidades indígenas, ou de sua literatura, porque todas as histórias contadas, todos os cantos transcritos, todos os desenhos, são igualmente verdadeiros, na medida em que algum dia aconteceram, poderão acontecer, ou estão acontecendo em sua força significante.
Maria Inês de Almeida é Professora das áreas de Literatura Brasileira e Edição na Universidade Federal de Minas Gerais. Diretora do Centro Cultural UFMG. Coordenadora do Núcleo Transdisciplinar de Pesquisas Literaterras: escrita, leitura, traduções.
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O Brasil e a sua culinária indígena Mártin César Tempass
m um mundo cada dia mais globalizado, as cozinhas étnicas ou regionais cruzam as fronteiras nacionais em grande velocidade. No Brasil, por exemplo, um país de dimensões continentais, existem numerosos – e bons – restaurantes franceses, italianos, árabes, japoneses, chineses etc. Reduzindo o foco, nos quatro cantos do país podemos encontrar culinárias gestadas em um determinado estado, como restaurantes mineiros, baianos, gaúchos etc. Esse processo de globalização alimentar, atualmente tão presente, tem o seu início há muito tempo. Há tanto tempo que até podemos dizer que ele surgiu juntamente com a humanidade. Isso porque toda culinária é uma síntese entre tradição e inovação. E a inovação, em boa porção, é captada pela influência de outros grupos, através do contato com outras sociedades que possuem práticas alimentares diferentes das nossas. Mediante este processo, alimentos e técnicas culinárias passam a ser usados em imensas regiões, por povos diferentes, embora em cada local eles apresentem peculiaridades, tanto práticas quanto simbólicas. Foi durante o período das grandes navegações, que culminaram na descoberta de novas rotas comerciais e no acesso a povos até então desconhecidos, que esse processo de globalização alimentar se intensificou. Aliás, o objetivo primordial das navegações era a busca de especiarias, ou seja, a busca de alimentos. Os alimentos – muitos alimentos – começaram a cruzar os oceanos. No caso da colonização portuguesa, por exemplo, alimentos brasileiros e indígenas como o milho, a batata-doce, a mandioca, o tomate, entre muitos outros, foram rapidamente cultivados na África, na Ásia e na Europa. Em sentido contrário a cana-de-açúcar, o café e o coco chegaram até o continente americano e aqui foram cultivados em imensas plantações. Nesse período, toda planta alimentícia era levada para toda parte do mundo onde as condições climáticas permitissem o seu cultivo. Com o passar dos séculos e o desenvolvimento das técnicas agrícolas, dos meios de transporte e das técnicas de conservação, até mesmo a limitação das condições climáticas foi superada. Hoje, se quisermos, podemos consumir tranquilamente muitos alimentos produzidos no outro lado do mundo. E, nesse mesmo sentido, em todo o mundo se consomem ingredientes e
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pratos de origem brasileira, de origem indígena. Hoje é impensável um restaurante francês, italiano, árabe, japonês, chinês – entre tantos outros – sem o feijão, o milho, a batata-doce, a mandioca, o tomate, a abóbora etc. O indígena brasileiro contribuiu, e muito, para a configuração do atual cenário alimentar mundial. Absurdamente, não há no Brasil ou no mundo restaurantes típicos de comidas de grupos indígenas brasileiros. E, mais do que isso, a população brasileira, tanto quanto o resto do mundo, estigmatiza as práticas alimentares dos indígenas. Ou seja, ao mesmo tempo em que todos comem, também todos pensam que não estão comendo “como índios”. Diante do exposto, no presente artigo, de forma bastante rápida, procuro ressaltar o papel dos sistemas culinários indígenas na formação da cozinha brasileira e internacional e a sua importância no processo de surgimento do Brasil. Em seguida busco explicar por que essa contribuição tão importante foi esquecida na história da formação da cozinha e por que a comida relacionada aos grupos indígenas é estigmatizada pelos brasileiros. Nos livros de História encontramos, aqui e ali, relatos sobre a alimentação indígena antes destes terem entrado em contato com os colonizadores. Os cronistas relatam com grande espanto, profunda estranheza e, muitas vezes, muito preconceito a alimentação dos povos tidos até então como “selvagens” ou “primitivos”. Esse tom muda um pouco quando são apresentadas as informações sobre a alimentação dos brasileiros nos primeiros séculos depois do “descobrimento”, mas estes abarcam principalmente a alimentação de portugueses colonizadores e dos escravos. A alimentação indígena é pouco ou quase nada comentada. São raras as 48. Etnia zo’é. Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI. 48
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obras que apresentam, simultaneamente, informações sobre a alimentação de portugueses, negros e indígenas, as “três raças” formadoras do Brasil. Isso, enganosamente, nos leva a crer que não existiu uma relação muito forte entre a alimentação dos três grupos. A alimentação brasileira dos primeiros séculos não pode ser dissociada da alimentação indígena. Na verdade, elas eram uma coisa só. Ou, em outras palavras, a alimentação nos primórdios do Brasil era indígena. E esse modelo alimentar foi fundamental para o sucesso da empreitada colonialista. Sem as comidas e as técnicas produtivas e culinárias dos indígenas os portugueses não teriam se fixado nas terras do Novo Mundo – ao menos não com tanta facilidade. E, sugiro, esse modelo determinou o surgimento do que hoje chamamos de Brasil e de culinária brasileira. Os autores “clássicos” que pensaram a formação da culinária brasileira foram Gilberto Freyre e Luís da Câmara Cascudo. Estes dois autores trazem valiosas informações, mas eles nos passam uma visão muito simplista e reduzida da participação indígena na formação da cozinha nacional. Para eles, os índios não passam de coadjuvantes nesse processo. Contudo, por mais contraditório que possa parecer, é justamente nestes autores que podemos achar pistas que atestam um papel muito mais importante dos grupos indígenas na formação da culinária brasileira. Em outras palavras, nas “entrelinhas” encontramos a verdadeira contribuição indígena. Luís da Câmara Cascudo (1967, 1972 e 1983) e Gilberto Freyre (1966 e 1997), como muitos autores posteriores, trazem as contribuições dos portugueses, africanos e indígenas na formação da culinária brasileira, sendo esta uma
síntese das “três raças”. Ou uma síntese de três cozinhas. Mas as portuguesas e as africanas teriam um peso muito maior nessa junção. Para esses autores, as africanas e portuguesas foram as chefs criadoras, enquanto que as indígenas foram meras ajudantes de cozinha. Os indígenas teriam simplesmente fornecido os seus ingredientes para o que hoje chamamos de culinária brasileira. Os ingredientes seriam indígenas (milho, mandioca, feijão, abóbora, amendoim etc.), mas o savoir-faire e demais componentes da culinária seriam portugueses e africanos. Gilberto Freyre trabalha a alimentação brasileira a partir do Nordeste açucareiro, advogando que o avanço da humanidade depende da sua adaptabilidade alimentar. Nesse sentido, o autor denuncia a pobreza alimentar do período colonial como causa para os problemas de formação do povo brasileiro. O predomínio do latifúndio monocultor privou a população colonizadora de suplementos equilibrados e constantes de alimentação sadia e fresca. O latifúndio fez com que os alimentos proporcionados pela abundância de recursos naturais fossem mal aproveitados. E, a partir da dieta pobre, Freyre procura explicar “importantes diferenças somáticas e psíquicas entre o europeu e o brasileiro” (FREYRE, 1966, p. 45). Neste quadro da monocultura, Freyre deixa de lado a participação dos indígenas na culinária. Na fusão das “três cozinhas”, Freyre indica que os índios teriam contribuído apenas num primeiro momento, logo após os portugueses terem desembarcado de suas caravelas. E, graças a isso, os portugueses conseguiram se estabelecer nestas terras. Logo após, as portuguesas e africanas, valendo-se das espécies cultivadas pelos indígenas, teriam “criado” os pratos da culinária brasileira (FREYRE, 1966). Isso fica evi-
dente em várias passagens das obras do autor. A título de ilustração trago a seguinte citação: Só o grande lazer das sinhás ricas e o trabalho fácil das negras e das molecas explicam as exigências de certas receitas das antigas famílias das casas-grandes e dos sobrados; receitas quase impossíveis para os dias de hoje. [...] tantas são as minúcias, os vagares de regalão, com que o senhor de engenho da Bahia do século XVI explica invenções das senhoras portuguesas, primeiras donas de casa na Colônia: combinações de temperos antigos de Portugal, ou dos modos tradicionalmente portugueses de fazer doces e conservas, com as frutas da terra, com a mandioca, com o milho, com a castanha de caju, com a macaxeira ou com o cará. (FREYRE, 1966, p. 61 – grifos meus).
Em suma, para Gilberto Freyre a “criação” culinária é das portuguesas e africanas. Das indígenas teriam vindo o milho, o caju, a mandioca, o cará etc., mas na condição, somente, de ingredientes (FREYRE, 1966 e 1997). Luís da Câmara Cascudo é ainda mais contundente. O autor afirma não tratar da escassez e da fome, mas da comida e do paladar. Trata da culinária, tida como ciência agradável e inseparável da vida humana. É desta forma que aborda os portugueses e africanos na construção da cozinha brasileira. No que tange aos grupos indígenas, Câmara Cascudo deixa a culinária e o paladar de lado e tece um discurso sobre a escassez e a fome. O paladar inexiste nos indígenas, tudo o que é consumido serve apenas para o sustento. Aos indígenas falta tudo. Falta óleo, doces, sal, acompanhamentos, ovos, leite, frituras, comensalidade etc. (CASCUDO, 1967, 1972 e 1983).
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49. Etnia yanomami – Festa da Pupunha. Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI. 50. Etnia wajãpi – Festa do Pacu Açu: preparação do beiju. Acervo FUNAI.
Para Cascudo, a interação culinária dos indígenas com as outras duas “raças”, tal qual para Freyre, se deu tão somente via troca de ingredientes. “A cozinha brasileira é um trabalho português de aculturação compulsória, utilizando as reservas amerabas e os recursos africanos aclimatados” (CASCUDO, 1983, p. 431 – grifo meu). Ou ainda, “a cozinha do português no Brasil exerceu uma influência irresistível sobre os africanos e amerabas” (CASCUDO, 1983, p. 434). Muitos outros aspectos poderiam ser elencados, mas me basto com a chocante opinião de Câmara Cascudo, expressada no livro História da Alimentação no Brasil, de que a mulher branca foi quem ensinou as indígenas a cozinhar, utilizando ingredientes europeus (CASCUDO, 1967 e 1983)1. Todavia, como já anunciado, nas “entrelinhas” das obras de Gilberto Freyre e Câmara Cascudo aparecem outras informações que entram em contradição com as acima apresentadas. São estas as informações que julgo mais importantes. Freyre (1966) destaca o casamento entre homens portugueses e mulheres indígenas como uma das estratégias mais importantes do processo de colonização do Brasil. Com isso os portugueses conseguiram estabelecer alianças com os indígenas e, mesmo com um número reduzido de indivíduos, se estabeleceram no território. A “miscibilidade, mais do que a mobilidade, foi o processo pelo qual os portugueses compensaram-se da deficiência em massa ou volume humano para a colonização em larga escala e sobre áreas extensíssimas” (FREYRE, 1966, p. 12). O intercurso com a mulher indígena fez com que o português se multiplicasse no território. Tal estratégia também foi acionada em outras colônias portuguesas. [...] onde quer que pousassem, na África ou na América, emprenhando mulheres e fazendo filhos, numa atividade genésica que tanto tinha de violentamente instintiva da parte do indivíduo quanto de política, de calculada, de estimulada por evidentes razões econômicas e políticas da parte do Estado. (FREYRE, 1966, p. 11).
Assim, desde os primórdios, formou-se no Brasil uma sociedade “híbrida de índio”. As
ameríndias foram esposas dos inúmeros europeus que desembarcaram no Brasil. E isso perdurou durante os dois primeiros séculos após o descobrimento, período em que faltavam mulheres europeias no Brasil (FREYRE, 1966). Além de obter esposas indígenas, os portugueses se inseriram em uma rede de parentesco, que lhes proporcionou todo o necessário para a sobrevivência nestas terras estranhas. Através do parentesco o português se inseriu em um sistema de produção/ obtenção/ distribuição de alimentos já há muito estabelecido. Berta Ribeiro (1983) aponta que, num primeiro momento, os portugueses adotaram os alimentos e as técnicas de produção dos indígenas para seu estabelecimento no Brasil. Entretanto, diante do que foi exposto acima, é possível inverter a frase e afirmar que foram os alimentos e técnicas de produção indígenas que adotaram os portugueses. Os portugueses, como uma criança adotada, se inseriram no seio da família indígena e partilharam do sistema culinário dos grupos indígenas. Esmiuçando um pouco mais esta ideia, os casamentos entre portugueses e índias, além do alimento em si, proporcionaram aos colonizadores a inserção na rede de parentesco indígena e de partilha de direitos e deveres desta sociedade. Partilharam, por exemplo, os meios e formas de produção, a reciprocidade, os mutirões e – porque não? – a simbologia alimentar. Tais aspectos facilitaram muito a sobrevivência dos portugueses no Brasil. E – óbvio! – com sogras, cunhadas e esposas indígenas, os portugueses, inseridos nas famílias extensas, também se valeram das cozinheiras indígenas. Em outras palavras, todas as etapas (obtenção, armazenamento, processamento, preparação, consumo etc.) da alimentação dos colonizadores ocorreram no modelo indígena. Nos sistemas culinários dos grupos indígenas. Nos dois primeiros séculos, a cozinha do Brasil foi a indígena. O sistema culinário era o indígena. Ao empregar a noção de sistema culinário estamos, de forma holística, levando em conta todo tipo de encadeamento acionado para que se possa ingerir algum alimento. Os alimentos são “parte inseparável de um sistema articulado de relações sociais e de significados coletiva-
1 Para uma análise mais completa das obras de Freyre e Cascudo conferir Tempass (2010).
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mente partilhados” (GONÇALVES, 2002, p. 9). Assim, o foco não deve recair somente sobre os alimentos propriamente ditos, mas tudo o que direta ou indiretamente lhes diz respeito, ou seja: a cultura. Os alimentos são apenas um dos ingredientes do “cadinho” culinário. Essa noção de sistema culinário nos mostra que nos primeiros séculos de colonização os portugueses não consumiram apenas os ingredientes indígenas, mas consumiram as comidas indígenas com e como os indígenas. Depois, não faltavam mais mulheres brancas na colônia, mas ainda faltavam os ingredientes europeus. Ocorre que, como aponta Freyre (1966), a oferta de ingredientes europeus era muito escassa no Brasil. Poucos eram produzidos no Brasil (baseado na monocultura), e os poucos gêneros que conseguiam ser importados eram excessivamente caros. Segundo Freyre, “tudo faltava: carne fresca de boi, aves, leite, legumes, frutas; e o que aparecia era da pior qualidade ou quase em estado de putrefação” (FREYRE, 1966, p. 53). Essa escassez perdurou até o início do século XIX. Assim, na grande maioria dos casos (excetuando-se os grandes senhores de engenho, que podiam importar seus alimentos) a base da cozinha brasileira continuou sendo indígena. Com isso podemos concluir que não foi a mulher portuguesa quem ensinou as índias a cozinhar, como apontou Cascudo (1967), mas sim o contrário, a portuguesa teve de aprender a cozinhar com as índias. Mais do que simples ingredientes, o savoir-faire indígena também vigorou. Não nego que as mulheres portuguesas tenham “criado”, ou “recriado”, pratos típicos portugueses com os ingredientes indígenas. Ou que mulheres africanas tenham mistura-
do as três diferentes tradições culinárias. Não encontrei nenhuma evidência que desminta isso. Pelo contrário, são inúmeros exemplos de pratos, principalmente doces, nos quais foram acrescentadas as frutas tropicais. Isso quando dispunham de ingredientes europeus e/ou africanos. Aliás, nenhuma cozinha é estática, mas sim dinâmica. Criações, adaptações, transformações são componentes de qualquer cozinha. No entanto, estas “criações”, portuguesas e/ou africanas, não surgiram do nada. Esta “criação” se deu sobre a base culinária indígena, predominante nos primeiros séculos da colonização. A cozinha torna-se “híbrida de índio”, tal qual o povo brasileiro. Tal hibridismo culinário vigora até os dias atuais. Gilberto Freyre, advogando em favor da preservação da culinária brasileira, defende que doce tradicional tem que ser feito com utensílios tradicionais. O uso de algum outro utensílio, que não o tradicional, altera o gosto e já não produz mais o mesmo doce. O interessante é que, dentre os utensílios listados pelo autor, encontramos pilões de pau (grandes e pequenos), colheres de pau (grandes e pequenas), peneiras de taquara, folhas de bananeira, palhas de milho, panelas de barro etc., que perduram até hoje (FREYRE, 1997). Todos os utensílios listados são oriundos dos grupos indígenas. Câmara Cascudo (1983) também chama atenção para a nomenclatura das comidas brasileiras, muitas delas oriundas de línguas indígenas. Moqueca, caruru, paçoca, tapioca, beiju, mingau etc. não são nomes de simples ingredientes, são nomes de pratos que envolvem todo um savoir-faire. São nomes surgidos dentro de um determinado sistema culinário. Este é mais um indício de que a contribuição indígena à culinária brasileira não se resume
simplesmente aos ingredientes. Ou as portuguesas e africanas criaram pratos e os batizaram com nomes indígenas? Os pratos têm nomes indígenas porque são indígenas, mesmo sofrendo modificações ao longo do tempo. Alguns dados apresentados por Paula Pinto e Silva (2005), oriundos de uma ampla pesquisa histórica que envolveu autores e cronistas, podem complementar a compreensão do importante papel dos grupos indígenas no processo de formação da culinária brasileira. Segundo esta autora, por muito tempo, mesmo nas casas mais abastadas, perdurou a maneira indígena de levar os alimentos à boca. Mesmo em casas abastadas não havia mesa, nem bufete, nem aparadores. A comida era então servida sobre esteiras indígenas colocadas no chão, a cuia de farinha ao centro, cada comensal com seu prato de barro, comendo com as mãos, aos bocados. (SILVA, 2005, p. 32).
Esteira, farinha, cuia, panela de barro, comer com as mãos... tudo é indígena. Mais uma vez, não apenas os alimentos, mas também a forma de consumi-los é indígena. O outro aspecto levantado por Silva (2005) se refere à presença de duas cozinhas nas casas dos colonizadores, a de dentro e a de fora. Na cozinha de dentro, em ocasiões especiais, as sinhás preparavam receitas finas, mais “elaboradas”, de influência portuguesa. Na cozinha de fora eram preparadas as receitas do dia a dia, não portuguesas, mais demoradas. Mas estas não eram preparadas pelas sinhás. A cozinha de fora, com certeza, tem origem indígena. Conforme a distinção entre “endocozinha” e “exocozinha” proposta por Lévi-Strauss (1979), é curioso de se notar que no
Brasil Colonial a “endocozinha” era praticada “fora” de casa e a “exocozinha” era praticada dentro dela. Conforme Hernández e Arnáiz (2005), o que se interioriza como tradicional e peculiar de uma cozinha própria é construído a partir das comidas festivas. Os alimentos de festa, ou da “exocozinha”, são preparados com menos frequência, são mais difíceis de preparar, requererem mais tempo (não necessariamente de cocção) e utilizam ingredientes mais caros. Como assinala Ariovaldo Franco (2006), o rotineiro é esquecido e o excepcional é registrado. Ou, como afirma Câmara Cascudo (1967), só os ricos têm interesse em fixar receitas. Isso nos leva à ideia de que, no processo de formação da culinária brasileira, foram registrados com muito mais ênfase os pratos finos, excepcionais, de festa, preparados pelas sinhás nas cozinhas de dentro. Ou seja, a parte portuguesa neste processo foi melhor documentada. Enquanto que a parte indígena, a base da alimentação, os pratos do cotidiano preparados na cozinha de fora, foi, digamos, esquecida. Talvez isso explique o fato de que da culinária indígena, para os autores clássicos e também para os atuais, sejam lembrados apenas os ingredientes. Como afirma Câmara Cascudo, “depois da respiração, a primeira determinante vital é o alimento” (CASCUDO, 1983, p. 395). A alimentação é vital. E, como já argumentado, os indígenas foram muito importantes para os objetivos de colonização do Brasil porque “forneceram” a alimentação aos colonizadores. No entanto, esta importância raras vezes é reconhecida pelos descendentes dessa colonização, sendo comum que os brasileiros ainda caracterizem os indígenas como arredios, indolentes, preguiçosos etc., porque o habitus indígena nos incomoda.
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De fato, o índio é extremamente incômodo, porque demonstra cotidianamente que é possível viver de uma maneira diferente, na sua simplicidade, no despojamento. Para a sociedade brasileira, é incômodo o fato de existirem pessoas que trabalham um mínimo e vivem bem, sem serem exploradas por terceiros, pois os índios não se exploram uns aos outros. A caça e a coleta se distribuem de uma forma mais ou menos tranquila na comunidade. Há uma noção de propriedade coletiva, uma noção de trabalho comunitário no modo de vida indígena, que é inquietante para o modo de vida de uma sociedade burguesa, que é a sociedade do capital, da propriedade privada. (IANNI, 1986, p. 22).
Então esse incômodo é muito antigo. Antes de trazerem escravos africanos, os portugueses se valeram muito dos indígenas como trabalhadores escravos. Centenas de milhares de indígenas, que possibilitaram a permanência dos portugueses nesse continente mediante os seus sistemas culinários, de uma hora para outra passaram a ser capturados e escravizados.2 Em linhas gerais, os indígenas não foram “bons escravos” e, inadaptáveis a longas jornadas de trabalho, foram estereotipados como arredios e preguiçosos. Mas esta configuração muda de acordo com o gênero. Ora, os sistemas culinários são tanto femininos quanto masculinos, mas existe a divisão de tarefas segundo o gênero. Cabiam aos homens indígenas as atividades de caça e pesca e também a derrubada da mata para a abertura dos novos roçados. O plantio, a colheita e a preparação dos alimentos ficavam a cargo das
mulheres indígenas. Assim, quando escravizados os índios homens, postos a trabalhar na lavoura, além da maior jornada de trabalho, estranharam as atividades a que foram designados, tiveram que fazer tarefas desagradáveis a sua condição masculina. Diante disso, sem contar com o óbvio desconforto da escravidão, os índios não desempenharam satisfatoriamente os trabalhos impostos, sendo classificados como arredios e preguiçosos. Já a mulher indígena, mesmo escravizada, continuou realizando as tarefas tidas como agradáveis ao seu sexo, plantando, colhendo e cozinhando, tarefas que já realizava diariamente. Assim, diante da ruptura ocasionada pela escravidão, os índios homens sofreram uma mudança cultural muito mais impactante do que as mulheres. Sobre isso, Freyre afirma que, diante do contato, “do indígena se salvaria a parte por assim dizer feminina de sua cultura” (FREYRE, 1966, p. 220): Inserindo-se na vida dos colonizadores como esposas legítimas, concubinas, mães de família, amas-de-leite, cozinheiras, puderam as mulheres exprimir-se em atividades agradáveis ao seu sexo e à sua tendência para a estabilidade. (FREYRE, 1966, p. 203 – grifos meus).
Embora isso seja um tanto polêmico, se foi a parte feminina da cultura (se é possível dividi-la em partes) que se “salvou”, “salvou-se” também a culinária indígena, tão importante, como procurei demonstrar, para o processo de colonização do Brasil. Como já afirmado, hoje essa importância foi
2 E, muitas vezes, foram capturados com a ajuda de outros grupos indígenas. Os portugueses faziam e desfaziam suas alianças com os
indígenas com muita rapidez. Um grupo que num dia era aliado, no outro, já podia ser inimigo, e o que era inimigo virava aliado. Para uma análise mais abrangente ver Tempass (2012). 51. Etnia zo’é. Mário Vilela/ Acervo FUNAI. 51
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apagada da história brasileira. Em parte, como também já observado, porque o que se registra são as comidas festivas, não as cotidianas. A parte rica fica para a história, a pobre se faz questão de apagar. E, a contribuição portuguesa fica destacada, enquanto a indígena é esvaziada. De outra parte, também temos a questão “civilizatória”. Ocorre que os alimentos separam e classificam as pessoas – em termos étnicos, religiosos, etários, sexuais etc. As comidas são poderosos sinais diacríticos, sendo frequentemente acionados para contrastar grupos em interação (Cf. BARTH, 1988). No caso das diferenças de classes, como bem observaram Bourdieu (1985) e Norbert Elias (1990), as classes mais “elevadas” adotam novos elementos simbólicos, considerados requintados, para se distinguir da massa restante da população. Mas as camadas mais baixas da população vão, aos poucos, adquirindo estes hábitos, o que motiva a classe alta a adotar novos símbolos. É o caso do uso do garfo, por exemplo: antes não se usava garfo na Europa, então os nobres o adotaram para se distinguir dos demais, mas as classes inferiores aos poucos foram também se valendo do garfo, buscando se igualar aos nobres, e com isso foram-se tornando cada vez mais complexos os utensílios culinários e chegamos ao quadro em que os ricos têm dezenas de talheres em torno do seu prato. E quanto mais talheres o indivíduo sabe usar, mais rico ou nobre ele é. No Brasil esses requintes de distinção entraram com enorme força, dando início ao esquecimento da culinária indígena. Se na Europa a questão era distinguir ricos de pobres, aqui no Brasil a questão primordial era distinguir
os “civilizados” dos “selvagens”. Os “finos” dos “grossos”. Os “com” modos dos “sem” modos. Para ser civilizado, tal e qual os europeus, era preciso parar de comer com as mãos, de cozinhar em fogueiras fora de casa, de comer sem sentar a uma mesa... É preciso parar de comer determinados alimentos considerados vulgares e passar a comer os pratos mais “refinados”. Ou, em outras palavras, é preciso parar de comer como um índio. O caminho para a civilização consistiu na negação de tudo que é indígena. A questão dos doces exemplifica bem esse ponto. No início o açúcar era usado como remédio, depois passou a ser um alimento simbólico da elite, posto que era muito caro. Então, para demonstrar seu poderio econômico, a elite passou a abusar do uso de açúcar, adicionando-o em praticamente todas as comidas. Os sabores doces e salgados figuravam simultaneamente nos mesmos pratos. Quando as classes baixas passaram a poder consumir açúcar – muito em função da grande produção açucareira brasileira – este ficou “cafona” e os ricos começaram a separar os sabores doces dos salgados. Então a elite passou a comer primeiramente os pratos salgados e somente depois os doces. E assim foi criada a sobremesa. No Brasil, tanto por influência indígena quanto portuguesa, as comidas também apresentavam ao mesmo tempo os sabores doces e salgados. O mel de abelha ou o mel de engenho (melado) era adicionado a qualquer prato. Em função da distinção, o mel passou a figurar como alimento de “selvagens”, enquanto que o açúcar diferenciava os “civilizados”. Os doces
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“finos” eram os feitos com açúcar3, os do cotidiano eram feitos com melado. E a isso se somou o fato de que agora, por cópia do modelo europeu, os sabores doces e salgados devem se opor. Em suma, para ser “civilizado” é preciso abandonar a alimentação dos “selvagens”. E, talvez, até apagar da memória que nossos ancestrais comeram como e com os “selvagens” (Cf. TEMPASS, 2010). Ainda hoje a culinária indígena não interessa aos “civilizados”. Mas essa fuga do “selvagem” não é o suficiente. Isso é absurdo, mas como “civilizados” temos que levar os benefícios da civilização também para os “selvagens”. “Ide e fazei discípulos!”. Temos que mostrar para os “primitivos” que a alimentação deles é “ruim” e “inadequada” e ensiná-los a comer “do bom e do melhor”, como nós “civilizados” e mais “evoluídos” fazemos. Na esteira desta concepção são formulados inúmeros projetos com políticas públicas alimentares, muitas delas copiadas de países supostamente mais “desenvolvidos”, que visam modificar/ melhorar/ intervir nas práticas alimentares dos ditos “primitivos”.4 E isso ocorre em praticamente todas as aldeias indígenas que resistiram à colonização, das maiores às menores, das mais próximas às mais distantes, seja por iniciativa de missionários, ONGs, agências internacionais, instituições governamentais e/ ou de pesquisa. É comum que quando se fale em melhorar as precárias condições indígenas, a proposta é deixá-los mais parecidos conosco, que somos “civilizados”. E isso também ocorre, e muito, na questão alimentar. Então, em pleno século XIX, os grupos indígenas constantemente estão lutando para manterem os seus padrões alimentares tradicionais. E com a manutenção da sua alimentação também visam preservar a sua cultura. O Brasil, historicamente formado pela fusão de “brancos”, “negros” e “índios”, sempre teve como dirigente a elite “branca” da população. E essa elite, para se diferenciar dos demais brasileiros, passou séculos copiando os absurdos modelos de “civilização” de países europeus. Até décadas atrás o Brasil não passava de uma “cópia”. E essa “cópia” estigmatizou tudo o que era genuinamente brasileiro, negou os valores locais e louvou os importados. Felizmente, percebo que no Brasil está se iniciando um proces-
so de releitura da identidade brasileira, com um olhar mais cuidadoso para os personagens até então considerados coadjuvantes, como os negros, os índios, os pobres, os caipiras etc. Grupos que construíram o Brasil e que merecem ser reconhecidos por isso. E, espero modestamente ter contribuído para isso neste breve texto em que busquei chamar a atenção para o papel dos indígenas na formação da culinária brasileira e a sua importância para o surgimento do Brasil. Para finalizar, gostaria de alertar que as informações apresentadas acima, na verdade, são bem mais complexas. Tentei ser didático e acessível a todos os leitores e por isso aparei diversas arestas do texto. O que quero destacar é que os índios não são todos iguais e, logo, não existe um único modelo alimentar indígena. Eles até podem se valer dos mesmos ingredientes, mas cada grupo vai elaborar os seus alimentos de forma diferenciada, de acordo com as suas culturas. Pouco importa se todos os grupos indígenas brasileiros comem milho e mandioca. Cada grupo tem formas singulares de obter, cozinhar, servir, consumir, tem imaginários diferentes sobre estes alimentos. Como afirma Fischler (1995), culturas distintas, sistemas alimentares distintos. Creio que nisso reside a ocorrência de tantas cozinhas regionais no Brasil. Então, a contribuição indígena para a culinária brasileira não foi “uma”, mas sim “várias”. Cada diferente grupo indígena com quem os colonizadores entraram em contato forneceu um tipo diferente de contribuição. A cozinha brasileira não surgiu em uma única região e num determinado espaço de tempo, como pensam certos autores. Ao contrário, trata-se de uma confluência de todas as regiões e de uma lenta e contínua construção histórica. Desta forma, em cada região, em cada período, diferentes povos indígenas estiveram em contato com portugueses e negros (sem falar nos outros grupos de imigrantes), produzindo uma interação específica. Mapear a contribuição de cada um dos grupos indígenas, nos diferentes períodos, é uma tarefa quase impossível. Como um todo, é possível afirmar que a contribuição indígena para a alimentação brasileira é muito mais complexa do que tem sido noticiado. Notícias que foram recortadas visando a “civilização” europeia.
3 No Brasil o açúcar distinguia os “civilizados” dos “selvagens”, mesmo se este açúcar fosse combinado com ingredientes nativos, tal como os indígenas faziam com o mel (Cf. TEMPASS, 2010). 4 Uma análise detalhada destes tipos de projetos pode ser encontrada em Tempass (2008 e 2009).
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Mártin César Tempass é bacharel e licenciado em Ciências Sociais pela UFRGS, mestre e doutor em Antropologia Social pela UFRGS e cursou pós-doutorado na UNSAN (Buenos Aires). É pequisador vinculado ao Núcleo de Antropologia das Sociedades Indígenas e Tradicionais (NIT) da UFRGS e professor temporário no Departamento de Antropologia da UFPel.
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Cenário contemporâneo da educação escolar indígena no Brasil Gersem Baniwa
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Introdução Este artigo tem como propósito apresentar um panorama atual do processo de desenvolvimento da educação escolar indígena no Brasil, no âmbito da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação. O desenvolvimento de políticas públicas que garantam a permanência dos jovens indígenas em seus territórios com qualidade de vida tem sido a preocupação dos povos indíge-
nas nos últimos anos e os sistemas de ensino têm se esforçado em oferecer o atendimento escolar nas próprias comunidades como uma forma de desestimular o êxodo. A oferta de educação escolar intercultural e multilíngue de qualidade nas aldeias é uma dessas políticas importantes para garantir a permanência dos jovens indígenas nos seus territórios e contribuir para o desenvolvimento socioeconômico de suas comunidades.
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Processo histórico A implantação das primeiras escolas nas comunidades indígenas no Brasil é contemporânea à consolidação do próprio empreendimento colonial português. Isso não quer dizer que os povos indígenas não tivessem seus processos próprios de educação antes da chegada dos portugueses. Processos educativos são inerentes a qualquer sociedade humana, pois é por meio deles que os grupos produzem, reproduzem, difundem seus conhecimentos e valores para garantir sua sobrevivência e continuidade histórica. O modelo de escola trazido e implantado pelos portugueses (com professor, sala de aula, livros, carteiras, disciplinas, currículos, diretor etc.) é totalmente estranho às culturas indígenas tradicionais, mas aos poucos foi sendo necessário e importante para a vida pós-contato. A educação indígena no Brasil colônia foi promovida por missionários, principalmente jesuítas, por delegação explícita da coroa portuguesa, e instituída por instrumentos oficiais como as cartas régias e os regimentos. Esta educação tinha uma missão muito clara de civilizar, cristianizar e de incutir nos índios um sentido de pátria. Em outras palavras, fazer com que os índios deixassem de ser índios (deixassem de falar suas línguas próprias, abandonassem suas culturas, seus costumes, suas terras) para 52
se transformarem em cristãos e patriotas obedientes e submissos, o que facilitaria a posse de suas terras. Em 1906, os assuntos indígenas, e em particular a educação escolar indígena, passam a ser atribuições do Ministério da Agricultura e, em 1910, de um órgão especialmente dedicado à questão, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI). Neste novo quadro jurídico-administrativo, começam a surgir, pouco a pouco, as primeiras escolas indígenas mantidas pelo Governo Federal. A Constituição de 1934 foi a primeira que atribuiu poderes exclusivos à União para legislar sobre assuntos indígenas. Neste cenário, as 66 escolas indígenas organizadas pelo SPI até 1954, assim como as inúmeras escolas missionárias, passaram a representar, junto com as frentes de trabalho, os principais instrumentos institucionais desta “incorporação” prevista em lei, processo marcado pela negação da diferença cultural e pelo assimilacionismo étnico. Este quadro passou a se defrontar com um forte contraponto nos últimos anos da década de 1950: a Convenção n° 107 da Organização Internacional do Trabalho, de 26 de junho de 1957, que trata sobre proteção e integração das populações tribais e semitribais de países independentes, ratificada e incorporada ao cenário brasileiro.
52. I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (CONEEI). Foto MEC.
Educação escolar indígena contemporânea
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A proposta de educação escolar indígena intercultural, bilíngue e diferenciada surgiu como contraponto ao projeto colonizador da escola tradicional oferecida aos povos indígenas. Surgiu na década de 1970 no Brasil. Apenas duas décadas depois, o Governo, através do Ministério da Educação, incluiu o tema na sua agenda de discussão. As iniciativas foram desenvolvidas como estratégias de luta pela recuperação das autonomias internas e conquista de direitos coletivos. Em termos conceituais e políticos, foi a Constituição Federal de 1988 que revolucionou o rumo da política indigenista oficial e, junto, a educação escolar indígena. A Constituição superou de forma definitiva a concepção equivocada da incapacidade indígena que fundamentou o princípio jurídico da tutela, por meio do qual era concedido ao Estado o poder e a responsabilidade de decidir pela vida e destino dos povos indígenas do país. A referida Constituição é explícita quanto à garantia dos direitos dos povos indígenas ao reconhecer suas culturas, tradições, línguas, organizações sociais, crenças, enfim, o direito de continua-
rem vivendo segundo suas culturas, sendo-lhes garantido, inclusive o direito de ingressar em juízo na defesa de seus direitos e interesses, superando a ideia de incapacidade civil e política destes indivíduos e povos. A ideia mais aceita entre os professores indígenas no que diz respeito à educação escolar indígena diferenciada é aquela educação trabalhada a partir da escola, mas tendo como fundamento e referência os pressupostos metodológicos e os princípios geradores de transmissão, produção e reprodução de conhecimentos dos distintos universos socioculturais específicos de cada povo indígena. Uma educação que garanta o fortalecimento e a continuidade dos sistemas de saber próprios de cada comunidade indígena e a necessária e desejável complementaridade de conhecimentos científicos e tecnológicos, de acordo com a vontade e a decisão de cada comunidade. Isso possibilitou apropriar-se dos conhecimentos tecnológicos para ajudar a resolver velhos e novos problemas da vida nas aldeias, sem necessidade de abdicar de suas tradições, valores e conhecimentos tradicionais, antes perseguidos, negados e proibidos pela própria escola.
Base legal A promulgação da Constituição de 1988 inaugurou um período rico de elaboração e aprovação de leis e normas infraconstitucionais com
o objetivo de garantir efetividade aos direitos indígenas, inclusive no tocante ao direito a uma educação escolar intercultural e bilíngue.
Constituição Federal de 1988 Art. 210 – Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. 2 – O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Artigo 231 – São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Artigo 232 – Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. LDB de 1996 – Lei N. 9.394 Artigo 32 – O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Artigo 78 – O Sistema de Ensino da União, com a colaboração das agências federais de fomento à cultura e de assistência aos índios, desenvolverá programas integrados de ensino e pesquisa, para oferta de Educação escolar bilíngue e intercultural aos povos indígenas, com os seguintes objetivos: I – proporcionar aos índios, suas comunidades e povos, a recuperação de suas memórias históricas; a reafirmação de suas identidades étnicas; a valorização de suas línguas e ciências; II – garantir aos índios, suas comunidades e povos, o acesso às informações, conhecimentos técnicos e científicos da sociedade nacional e demais sociedades indígenas e não índias. Artigo 79 – A União apoiará técnica e financeiramente os sistemas de ensino no provimento da educação intercultural às comunidades indígenas, desenvolvendo programas integrados de ensino e pesquisa. Convenção 169/OIT – Promulgada pelo Decreto nº 5.051/2004 Artigo 26 – Deverão ser adotadas medidas para garantir aos membros dos povos em questão a oportunidade de receberem educação em todos os níveis, ao menos em condições de igualdade com o restante da comunidade nacional. Artigo 27 – Os programas e os serviços de educação destinados a esses povos deverão ser desenvolvidos e implementados em cooperação com eles, a fim de atender às suas necessidades particulares, e deverão incorporar sua história, seus conhecimentos e técnicas, seus sistemas de valores e todas as suas demais aspirações sociais, econômicas e culturais. 3 – Além disso, os governos deverão reconhecer o direito desses povos de criarem suas próprias instituições e instalações de educação, contanto que essas instituições satisfaçam às normas mínimas estabelecidas pela autoridade competente em consulta com esses povos. Deverão ser proporcionados os devidos recursos para esse fim.
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Merecem destaque alguns instrumentos normativos e gerenciais: a) O Parecer 14 e a Resolução 03/99 do Conselho Nacional de Educação, que estabelecem no âmbito da Educação Básica, a estrutura e o funcionamento das escolas indígenas, reconhecendo-lhes a condição de escolas com normas e ordenamento jurídico próprio e fixando diretrizes curriculares do ensino intercultural e bilíngue, visando à valorização plena das culturas dos povos indígenas e a afirmação e manutenção de sua diversidade étnica. b) Criação em 2004 da Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI), vinculada ao Ministério da Educação, composta por 20 representantes indígenas e 20 representantes do poder público, incluindo a sociedade civil.
Por ser o instrumento jurídico mais importante da educação brasileira, vale destacar a importância da LDB para a educação escolar indígena, que, em suma, reafirma a diversidade sociocultural e linguística dos povos indígenas, garantindo a eles uma educação escolar pautada pelo respeito a seus valores, pelo direito à preservação de suas identidades e pela garantia de acesso às informações e conhecimentos valorizados pela sociedade nacional (Art. 78). Além disso, atribui à União o encargo do apoio técnico e financeiro a estados e municípios para o desenvolvimento de ações no campo da educação escolar indígena, com a garantia de incorporação de “currículos e programas específicos” e publicação sistemática de material didático específico e diferenciado.
Cenário atual da educação escolar indígena: escolas interculturais A emergência do movimento articulado de professores indígenas criou condições para o surgimento das primeiras escolas indígenas diferenciadas reconhecidas e mantidas pelos sistemas oficiais de ensino. Essas experiências estão hoje espalhadas por todo o território brasileiro. Essas escolas levam em consideração a ideia central da educação escolar indígena intercultural, a de pensar e praticar os processos político-pedagógicos a partir das realidades sócio-históricas dos distintos povos. São, portanto, escolas com projetos político-pedagógicos próprios, capazes de atender às necessidades das comunidades específicas e com autonomia na gestão administrativa, política e pedagógica. As escolas indígenas diferenciadas pautam suas ações e estratégias de transmissão, produção e reprodução de conhecimentos na perspectiva de possibilitar às coletividades
indígenas a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas, a valorização de suas línguas, tradições e ciências, a defesa de seus territórios e outros direitos básicos, além de lhes possibilitar o acesso adequado às informações e conhecimentos técnicos e científicos da sociedade global, necessários para garantir e melhorar as condições de vida. As experiências levam em conta a necessidade da autogestão de todo o processo escolar, que é conduzido pelos próprios povos indígenas, no qual o papel da assessoria e das políticas públicas resume-se a apoiar e oferecer condições técnicas, financeiras e operacionais para efetivação dos projetos. Desta forma, as comunidades indígenas discutem, propõem e desenvolvem seus projetos e ideais de escola, levando em consideração as pedagogias étnicas e projetos coletivos de vida.
Educação básica
Dados relativos ao número de crianças indígenas matriculadas nas escolas indígenas indicam a pouca importância que as famílias indígenas dão ao nível de ensino. Muitos povos indígenas são contrários à educação infantil, por entenderem que, nessa faixa etária, a criança precisa estar sob os cuidados educacionais da família e da comunidade. Segundo as culturas de vários povos indígenas, a criança precisa ser acompanhada permanentemente e em tempo integral pelos pais, para que as eduquem segundo suas tradições e assim possam crescer e construir suas personalidades, habilidades, valores e identidades, de acordo com os princípios e valores do seu povo. De todo modo, percebe-se um crescimento cada vez maior da demanda pela educação infantil, na proporção de 100% nos últimos cinco anos, principalmente entre comunidades e famílias onde, por razões diversas, os pais precisam trabalhar como assalariados fora da aldeia ou da terra indígena, para garantir o sustento da família – razão pela qual decidem deixar seus
135 filhos nas escolas e creches. Os números relativos ao Ensino Fundamental indicam um crescimento significativo na oferta da educação escolar às comunidades indígenas, embalado pela política de universalização do ensino fundamental no Brasil, adotada pelos governos nos últimos 15 anos. O Censo Escolar 2005 (INEP/MEC) revelou que a educação escolar indígena cresceu 40% só nos últimos três anos do governo Lula. Em 2002, havia 117 mil alunos indígenas estudando em escolas indígenas da educação básica. Em 2011, esse número alcançou 200 mil indígenas estudando em mais de 3.000 escolas indígenas. De acordo com o Censo Escolar 2010, dos 179.591 estudantes indígenas, 10.630 estão no ensino médio. Mas esse número representa um crescimento de quase 80% ao ano, uma vez que em 2005 eram 4.749. A oferta de ensino médio é responsabilidade dos Estados. Em 2002, havia 18 escolas indígenas com ensino médio e em 2011 este número saltou para 112 escolas.
Ensino Superior
A ampliação da oferta no ensino fundamental e do acesso ao ensino médio resultou na ampliação da demanda ao ensino superior. Estima-se atualmente mais de 8.000 estudantes indígenas nas universidades brasileiras (3.000 em licenciaturas interculturais, 1.800 bolsistas da FUNAI e 3.200 bolsistas de instituições como universidades estaduais, PROUNI e governos estaduais e municipais). Isso representa mais de 50% dos estudantes indígenas do ensino médio e menos de 1,5% dos que ingressam no
ensino fundamental. A ampliação do acesso ao ensino superior teve início ainda na década de 1990, a partir das propostas de políticas de ações afirmativas adotadas pelos governos, instituições de ensino e pela iniciativa privada. Algumas instituições de ensino superior, como a Universidade Federal do Amazonas (UFAM), adotaram as chamadas políticas de interiorização de ensino e pesquisa ainda na década de 1990, permitindo aos índios oportunidades de participar dos processos seletivos.
Crescimento da oferta/demanda da educação escolar indígena Dados atuais revelam que, a partir de 2002, a expansão anual da matrícula em escolas indígenas aproxima-se da taxa de 10% ao ano.
Nenhum outro segmento da população brasileira apresenta um crescimento tão expressivo no período.
Evolução da oferta de educação escolar indígena – 2002/2006
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Ano
Número de Escolas
Variação escolas
Número de Alunos
Variação/ aluno
2002
1.706
2003
2.060
20,75%
139.556
18,8%
2004
2.228
08,1%
147.571
5,7%
2005
2.324
04,30
164.018
11,1%
2006
2.422
04,20
172.591
5,22%
2011
3.014
117.446
197.000
Fonte: CGEEI/SECAD/MEC
Recursos Humanos – Formação de professores indígenas
A proposta de educação escolar indígena diferenciada foi fundamental para o surgimento de um novo segmento estratégico: o dos professores indígenas. Os números atuais são representativos desse avanço. Vinte anos atrás, o número de professores indígenas não ultra-
passava a marca dos 20% do total dos docentes que trabalhavam nas escolas implantadas em comunidades indígenas. Atualmente, os professores indígenas atuando nas escolas indígenas representam mais de 96% dos mais de 12.000 em atividade.
Quantitativo dos profissionais da educação escolar entre 1981-2006.1 Ano
Categoria funcional
Profissionais
Fonte
1981
Funcionários da educação
205
FUNAI
1990
244 monitores, 320 professores e 131 auxiliares de ensino
695
Comunicação Interna/ FUNAI
1997
1.985 professores indígenas e 652 professores não índios
2.637
Relatório FUNAI
2006
10.928 professores indígenas e 1.928 professores não índios
12.856
CGEEI/MEC–2006
2010
11.820 professores indígenas e 1.200 professores não índios
12.020
CGEEI/MEC
1 Os dados relativos ao período anterior de 2000 foram tomados do relatório de consultoria de Eliene Amorim contratada pelo Conselho Nacional de Educação, com recursos do PNUD e os demais são do Censo Escolar (INEP).
Recursos Financeiros
Nos últimos anos houve um crescimento substancial dos recursos financeiros destinados à educação escolar indígena no país. A principal fonte tem sido o FUNDEB (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica), que neste ano alcançou o volume de R$ 500 milhões, destinado à manutenção e funcionamento das escolas indígenas (o valor per capita por aluno indígena é 20% superior ao aluno não indígena), seguido do Programa de Alimenta-
ção Escolar (merenda escolar), cujo valor per capita por aluno indígena é o dobro do valor per capita do aluno não indígena. Além disso, os recursos da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena (CGEEI/SECAD/MEC) têm sido ampliados, no apoio complementar aos estados, municípios e universidades, no atendimento às escolas indígenas, principalmente, na construção de escolas, formação de professores e material didático diferenciado.
Crescimento orçamentário suplementar de educação escolar indígena 2004/2006/2007 ANO
VALORES
2004
R$ 119.258.368,00
2006
R$ 175.389.617,00
47,06%
2007
R$ 257.971.816,00
47,08%
Fonte: CGEEI/SECAD/MEC 2007.
53. I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (CONEEI). Foto MEC. 53
CRESCIMENTO
137
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Novas perspectivas para a educação escolar indígena: territórios etnoeducacionais e sistema próprio de educação escolar indígena A criação em 2004 da SECAD na estrutura do Ministério da Educação ampliou o diálogo com os povos indígenas e em especial com os professores indígenas, possibilitando a construção e consolidação de uma agenda nacional de educação escolar indígena pautada por um conjunto de questões que, em síntese, expressa as principais preocupações e interesses dos povos indígenas relacionados às suas escolas nos últimos anos. Tais preocupações estão centradas na necessidade de dar efetividade ao regime de colaboração entre os sistemas de ensino, preconizada pela legislação educacional brasileira, para garantir qualidade e eficiência na oferta da educação escolar às comunidades indígenas. É importante destacar que qualidade na educação escolar indígena significa necessariamente garantir a valorização conceitual e prática das pedagogias indígenas no exercício do processo de ensino-aprendizagem. Com o diálogo estabelecido foi possível, a partir de 2008, pôr em marcha a agenda nacional a partir de uma avaliação e redefinição da política nacional de educação escolar indígena. O primeiro passo foi realizar a Primeira Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena (I CONEEI), que teve lugar em Brasília em novembro de 2009, precedida por 1.800 conferências locais (comunidade educativa) e 18 conferências regionais realizadas no decorrer
dos anos de 2008 e 2009. No total, participaram diretamente 50.000 pessoas, entre representantes indígenas (2/3) e representantes de instituições governamentais (1/3). Foi a primeira vez na história do Brasil em que o Estado brasileiro ouviu os povos indígenas sobre o que pensam e desejam para seus processos de educação escolar. A Conferência aprovou um documento final que aponta medidas conceituais, pedagógicas e políticas para avanços mais robustos no desenvolvimento da educação escolar indígena do país. Dentre estas, três merecem destaque pela importância estratégica que representam para o futuro da política nacional de educação escolar indígena. A primeira medida é a reformulação e elaboração das diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar indígena. Para isso, a CGEEI/SECADI/MEC criou um Grupo de Trabalho (GT Diretrizes de EEI) em 2011, a fim de elaborar uma proposta que no início de 2012 deve ser submetida ao Conselho Nacional de Educação para apreciação e aprovação. As novas Diretrizes devem atender toda a educação básica e a formação de professores. A segunda medida é a implantação dos Territórios Etnoeducacionais (TEEs). Os TEEs são áreas definidas a partir da consulta aos povos indígenas e estão relacionadas à sua mobilização política, afirmação étnica e mobili-
dade territorial para efeitos de organização, planejamento e gestão da educação escolar indígena. Essa política propõe construir um novo modelo de planejamento e gestão da educação escolar indígena, tendo como principal referência as formas como os povos indígenas se organizam, as suas especificidades sociolinguísticas, políticas, históricas, geográficas e suas relações intersocietárias. Sua implantação deflagra o processo de mudança conceitual e estruturante da política nacional de educação escolar indígena, por meio da concretização do Regime de Colaboração entre os sistemas de ensino (federal, estaduais e municipais), participação e protagonismo indígena e coordenação compartilhada das políticas da educação escolar indígena em todos os níveis e modalidades de ensino e um plano da ação para cada Território. A política nacional de Territórios Etnoeducacionais foi criada por meio do Decreto Presidencial n. 6.861/2009, após consulta a diversos espaços de participação indígena como a Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena (CNEEI) e a Comissão Nacional de Política Indigenista (CNPI). A implantação dos TEEs teve início em 2010 e deverá ser concluída em 2012, estimados em 34 os Territórios Etnoeducacionais. Até o final de 2011, 25 TEEs já haviam sido implantados. A terceira medida é a construção de um Sistema Próprio de Educação Escolar Indígena para autonomamente organizar, estruturar, fi-
nanciar e normatizar toda a política nacional de educação escolar indígena. Isto porque os atuais sistemas de educação (federal, estaduais e municipais) enfrentam enormes dificuldades, limitações e lacunas jurídicas, administrativas e financeiras para atenderem com eficiência e qualidade as escolas indígenas, uma vez que estão regidos por princípios políticos, jurídicos e administrativos voltados para as escolas não indígenas – e por isso não respeitam e nem garantem os direitos específicos e diferenciados da educação indígena. Os Territórios Etnoeducacionais configuram, neste sentido, o primeiro passo para a criação do Sistema Próprio, na medida em que devem garantir a efetivação dos direitos educacionais dos povos indígenas, com a participação e protagonismo indígena no planejamento e gestão conjunto das ações de educação escolar indígena. De acordo com o Documento Final da I CONEEI, o Sistema próprio deve estabelecer uma nova estrutura organizativa da política nacional de educação escolar indígena, por meio de: A Criação de uma Secretaria Nacional de Educação Escolar Indígena; B Criação de um Conselho Nacional de Educação Escolar Indígena; C Criação de um Fundo Nacional de Educação Escolar Indígena; D Criação de um Sistema de Avaliação das Escolas Indígenas; E Criação de Diretrizes e Bases da Educação Escolar Indígena.
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Avanços conquistados nos últimos anos
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Nas últimas duas décadas aconteceram conquistas extraordinárias no campo da política de educação escolar indígena no Brasil, em grande medida pela articulação dos povos indígenas, mas também por maior sensibilidade dos dirigentes do poder público no processo de redemocratização do país, iniciado nos anos finais da década de 1980. Saímos de algumas poucas escolas em aldeias que tinham por objetivo integrar, civilizar e colonizar os povos indígenas, proibindo suas línguas e condenando suas tradições e culturas, para muitas escolas indígenas bilíngues ou plurilíngues e interculturais, com autonomia político-pedagógica, nas quais 96% de professores são indígenas, garantindo maior protagonismo indígena na condução pedagógica e administrativa das escolas. Nos últimos quatro anos foram feitos esforços por parte do Ministério da Educação, por meio da Coordenação Geral de Educação Escolar Indígena, em busca de maior qualidade nas escolas indígenas, priorizando ações de sensibilização dos sistemas de ensino. Em termos quantitativos houve progressos consideráveis, como mostram o crescimento da oferta em todos os níveis de ensino, o maior aporte de recursos principalmente por meio do FUNDEB, maior articulação com os sistemas de ensino, envolvendo o CONSED, a UNDIME e a criação da SECAD. Os números informam que, a partir de 2002, a expansão anual da matrícula em escolas indígenas aproxima-se da taxa de 10% ao ano. Muitos fatores explicam esta expansão. O primeiro fator é a nova percepção dos povos indígenas quanto à educação escolar, que além de ser um direito básico, é uma estratégia na construção de seus projetos societários de futuro. O segundo fator refere-se à ação contínua da SECADI/MEC junto às secretarias municipais e estaduais de educação, à União dos Dirigen-
tes Municipais de Educação (UNDIME) e ao Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Educação (CONSED) em busca da expansão da oferta, com qualidade, de educação escolar nas comunidades indígenas. Outro aspecto importante é a ampliação de programas federais voltados à qualificação da educação escolar indígena, tais como: formação de professores por meio do Magistério Indígena, que já formou mais de 10.000 professores indígenas em todos os estados do Brasil, e das Licenciaturas Interculturais (PROLIND), que já formaram 500 professores indígenas, com mais 3.000 em processo de formação; programas do FNDE, como o Programa da Alimentação Escolar, com atenção especial para alunos indígenas, que têm um valor per capita superior ao das escolas não indígenas, incentivando e favorecendo a permanência dos alunos em suas escolas; produção de materiais didáticos específicos, que refletem as realidades sociolinguísticas, a oralidade e os conhecimentos dos povos indígenas. Outro avanço político relevante é a ênfase dada pelo MEC no reconhecimento e valorização da diversidade, expressa na criação da SECAD e na expansão dos recursos empregados exclusivamente no desenvolvimento da educação escolar indígena, destinados ao apoio aos sistemas estaduais e municipais de ensino. Estes recursos atingiram, em 2007, o montante de R$ 110 milhões, correspondendo a um aumento sem precedentes na história da dotação orçamentária para essa modalidade de ensino. Além disso, a realização da I Conferência Nacional de Educação Escolar Indígena em 2009 e a agenda de trabalho definida a partir dela, mostram o quanto o Estado brasileiro – e em especial o MEC – está cada vez mais incluindo em sua agenda estratégica a questão da educação escolar indígena.
Considerações finais A crescente demanda dos povos indígenas pela escolarização em todos os níveis de ensino expressa a importância depositada na formação escolar como instrumento de defesa e garantia dos seus direitos, bem como a necessidade de apropriação de novos conhecimentos e tecnologias capazes de contribuir para a solução de velhos e novos problemas que as comunidades enfrentam em seus territórios. A formação escolar é considerada como uma condição necessária para garantir um futuro desejável. A importância dada ao processo escolar de ensino pelas comunidades e povos indígenas vai ao encontro de algumas expectativas etnopolíticas relevantes, como a necessidade de qualificar quadros técnicos indígenas para a gestão territorial, formulação e gestão de projetos de etnodesenvolvimento, a fim de responder aos problemas de sobrevivência alimentar e econômica e atender ao desejo de autonomia. Os povos indígenas se apresentam hoje como um dos segmentos da sociedade brasileira que luta com maior intensidade pelo acesso a escola pública adequada e de qualidade. Atualmente, têm-se mais de 620 territórios indígenas demarcados e homologados, constituindo quase 13% do território nacional. A população indígena apresenta um crescimento demográfico próximo aos 4%, quase o triplo da média nacional. As lideranças indígenas têm clareza da importância estratégica da educação escolar para seus povos, em particular para sua juventude, como possibilidade de um futuro mais promissor. Por tudo isso, as demandas indígenas por uma educação escolar adequada e desenvolvida em harmonia com seus projetos societários de futuro crescem em quantidade e complexidade, trazendo novos desafios aos sistemas de ensino. O Estado brasileiro e em particular o Ministério da Educação tem assumido o desafio de construir políticas cada vez mais coerentes com as aspirações dos povos indígenas e com as determinações constitucionais, mesmo diante de grandes desafios oriundos da diversidade e complexidade da realidade indígena brasileira,
tais como: a) diversidade étnica: são mais de 230 povos, linguística e culturalmente diferenciados, vivendo nos mais diversificados contextos políticos, em todos os biomas e situações ambientais do território nacional, em terras indígenas cuja extensão varia de poucas centenas de hectares a milhares de quilômetros quadrados; b) povos que contam com centenas de anos de contato e outros, como os Xavante, que começam a manter contato permanente com a sociedade nacional a partir dos anos 1950, e outros ainda, como os Enawenê-nawê, contactados somente nos anos 1980; c) um espectro que abrange sociedades monolíngues em língua indígena e sociedades monolíngues em português, passando por níveis muito variados de bilinguismo e, muitas vezes, de multilinguismo; d) povos que contam com apenas algumas dezenas de pessoas ameaçadas de extinção e localizadas em um único território, e outros povos como os Ticuna que são milhares e se espalham por vários municípios e têm parentes vivendo em outros países ou ainda povos, como os Guarani, que estão presentes em vários estados da federação e em outros países, como o Paraguai, onde a língua guarani é uma língua oficial do país, ao lado do espanhol; e) povos relativamente protegidos em seus territórios, como os Yekuana em Roraima e outros que mantêm intenso fluxo de relações com centros urbanos como os Terena e Kaingang. Por fim, é essencial não esquecer que falar de educação escolar indígena no Brasil é falar de 230 povos que ocupam 13% do território nacional. Na Amazônia Legal, as terras indígenas somam 23% da região. Essas terras apresentam indiscutível importância estratégica para o país, haja vista a sua inestimável riqueza em sociobiodiversidade, ainda altamente preservada e protegida por seus habitantes ancestrais. Nesta perspectiva, a presença dos povos indígenas no país representa em sua totalidade um fato de extraordinária importância histórica e constitui um fenômeno social com características, problemas e conquistas específicas.
Gersem Baniwa é Coordenador-Geral de Educação Escolar Indígena no Ministério da Educação, desde 2008.
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RobĂŠrio Nunes dos Anjos Filho
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Introdução No Direito Internacional a expressão “povos indígenas” designa grupos originários de um país ou região que sofreu dominação colonial ou estrangeira, abrangendo 370 milhões de pessoas ao redor do mundo. No Brasil a expressão nomeia povos de ascendência pré-colombiana cujos membros se identificam e são identificados como pertencentes a um grupo étnico cujas características culturais os distinguem dos demais integrantes da nação. Há cerca de 750.000 índios brasileiros, distribuídos em mais de 200 povos. Os principais direitos dos povos indígenas são o direito ao desenvolvimento, à autodeterminação, à manutenção da própria cultura, à diferença, à língua, à terra e à utilização dos seus recursos naturais, à saúde, à educação, à participação, à previdência social, à subsistência, ao trabalho e à obtenção de renda. O primeiro grande marco do reconhecimento dos direitos dos povos indígenas no Direito Internacional foi a aprovação da Convenção nº 107 da OIT em 1957. Atualmente os documentos mais importantes são: a) a Convenção nº 169 da OIT Sobre Povos Indígenas e Tribais em Países Independentes, de 1989; b) a Convenção de Madrid sobre o Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas da América Latina e do Caribe, de 1992; e c) a Declaração Sobre Direitos dos Povos Indígenas da Organização das Nações Unidas, de 2007.
No Brasil as principais bases normativas dos direitos dos povos indígenas são a Constituição de 1988; as duas convenções internacionais acima citadas, que foram integradas ao direito interno com status, no mínimo, supralegal; as Leis n° 5.371/67, que criou a Fundação Nacional do Índio, e nº 6.001/73, que dispõe sobre o Estatuto do Índio; e o Decreto nº 1.775/96, que cuida do procedimento administrativo de demarcação de terras tradicionalmente ocupadas por índios. Há, ainda, um extenso rol de normas legais e infralegais que cuidam dos direitos dos povos indígenas. O sistema normativo brasileiro reserva um relevante papel na defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas para o Ministério Público, em especial o Ministério Público Federal, cuja atuação efetiva, em todos os seus níveis, o transformou em um dos mais importantes protagonistas dessa tarefa. O objetivo do presente texto é apresentar ao leitor, de forma clara e objetiva, os principais aspectos da questão indígena no Brasil, com destaque para o tratamento constitucional do tema e a atuação do Ministério Público Federal. Obviamente uma abordagem exaustiva não faz parte dos planos do autor, tendo em vista os limites propostos para o presente trabalho, entretanto espera-se que aqueles que desejarem aprofundar seus estudos encontrem auxílio na bibliografia indicada nas notas de rodapé.
54. Etnia Kamayurá – Ritual Feminino (Yamurikumã). Foto Mário Vilela/ Acervo FUNAI. 54
A Constituição Federal brasileira de 1988 e os direitos indígenas
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A atual Constituição brasileira é uma das mais avançadas da América Latina em termos de direitos indígenas1, ao lado das constituições da Argentina, Bolívia, Colômbia, Equador, Guatemala, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru e Venezuela. Fazem algum tipo de referência a direitos indígenas também as constituições de Costa Rica, El Salvador, Guiana e Honduras. São omissas as constituições de Belize, Chile, Guiana Francesa, Suriname e Uruguai. Sem dúvida a Constituição atual, dentre todas que fizeram parte da história constitucional brasileira, foi a que mais se comoveu com a questão indígena, o que resultou em uma longa disciplina jurídica do tema, a qual constitui o que se pode denominar “direito constitucional indigenista” brasileiro atual2: manteve as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios no domínio da União (art. 20, XI) e a competência privativa desta para legislar sobre populações indígenas (art. 22, XIV); estabeleceu a competência exclusiva do Congresso Nacional para autorizar, em terras indígenas, a exploração e o aproveitamento de recursos hídricos e a pesquisa e lavra de riquezas minerais (art. 49, XVI); determinou a competência da Justiça Federal para processar e julgar a disputa sobre direitos indígenas (art. 109, XI); conferiu ao Ministério Público a função institucional de defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas (art. 129, V); afirmou que a pesquisa e a lavra de recursos minerais e o aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica dependem de condições específicas legalmente previstas quando essas atividades se desenvolverem em terras indígenas (art. 176, § 1°); assegurou às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem, inclusive no ensino
fundamental regular (art. 210, § 2º); determinou que o Estado deve proteger as manifestações das culturas indígenas (art. 215, § 1°); consagrou a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições indígenas (art. 231, caput); reconheceu aos índios os “direitos originários” sobre as terras que tradicionalmente ocupam (art. 231, caput); afirmou o dever da União de proteger e fazer respeitar os índios, seus bens e terras (art. 231, caput); definiu as “terras tradicionalmente ocupadas pelos índios” (art. 231, § 1°) e disciplinou cuidadosamente o seu regime jurídico (art. 231, §§ 2°, 3°, 4°, 5°, 6° e 7°), além de ter estipulado a competência da União para demarcá-las (art. 231, caput) no prazo máximo de cinco anos a partir da promulgação da Constituição (arts. 231, caput, e 67 do ADCT); outorgou legitimidade às comunidades e organizações indígenas para ingressarem em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo (art. 232). E, o que é importante, isso se deu, felizmente, sob as luzes de um novo padrão de pensamento acerca das relações entre o Estado, a sociedade dominante e os nossos índios. De fato, honrando a alcunha de “cidadã”, a nova Constituição promoveu uma verdadeira mudança de paradigma, derrotando o até então tradicional viés integracionista3 que dominava todo o Direito positivo brasileiro e que ditava um tratamento de teor etnocêntrico que partia da premissa de que os índios viviam em um estágio de desenvolvimento inferior e, portanto, para o seu próprio bem, deveriam ser integrados pelo Estado à comunhão nacional. Em outras palavras, o Direito brasileiro, acompanhando pensamento que durante muito tempo predominou em outras ciências sociais, louvava o abandono de culturas tidas como “primitivas” e a absorção dos grupos humanos
1 Os índios tiveram uma participação ativa no processo constituinte (LACERDA, Rosane. A participação indígena no processo constituinte.
In Caderno Constituição & Democracia, n° 20, março de 2008). 2 Sobre a disciplina constitucional dos direitos indígenas vide, dentre outros: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Arts. 231 e 232. In BONAVIDES,
Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura (coords.). Comentários à Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Forense, 2009, pp. 23992428; ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Breve balanço dos direitos das comunidades indígenas: alguns avanços e obstáculos desde a Constituição de 1988. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (coords.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, pp. 569-604. 3 A rigor, é possível adotar uma distinção conceitual entre os termos assimilação e integração. Nessa visão, o primeiro refere-se a um processo de aproximação cultural que implica perda do elemento diferenciador de um grupo minoritário, ao contrário do segundo no qual a diferença é mantida. Entretanto, considerando os objetivos do presente trabalho e o fato de que muitos dos estudos jurídicos, sociológicos e antropológicos brasileiros não fazem a distinção acima mencionada, utilizaremos aqui a palavra integração no sentido técnico de assimilação.
respectivos pela sociedade “civilizada”. Um bom exemplo dessa orientação era o sistema de incapacidade e de tutela orfanológica ao qual eram submetidos os índios brasileiros até a sua completa assimilação4. Os índios não mais devem estar submetidos a uma tutela orfanológica, como se fossem incapazes de tomar as suas próprias decisões com base em sua vontade livre e consciente, e que, portanto, precisam ter a sua vida e os seus bens geridos pelo Estado. Prova contundente dessa incompatibilidade é a já referida previsão constitucional de que os índios, suas comunidades e organizações, por si sós, independentemente do Estado, possuem capacidade postulatória para ingressar em juízo na defesa de seus direitos e interesses5. A única tutela admissível após a atual Constituição é aquela que, revestida de caráter de Direito público, visa proteger os povos indígenas e os seus bens, sob a perspectiva de que se trata de minorias culturais, independentemente de como os mesmos interagem com a sociedade majoritária.
O comando constitucional pós-1988 veleja no sentido da valorização de todas as culturas presentes nos diversos grupos formadores da sociedade brasileira, sem qualquer escalonamento hierárquico e sem nenhum resquício da antiga pretensão homogeneizadora. A Constituição interdita todo e qualquer entendimento jurídico que insista, de forma direta ou indireta, na tese, já superada, da superioridade cultural da sociedade majoritária. Como corolário do princípio constitucional da proteção da identidade, está garantida a liberdade cultural de todos os grupos integrantes da nossa sociedade, inclusive os indígenas, que podem continuar a exercer a sua identidade própria, se assim desejarem, sem qualquer possibilidade de sofrerem discriminações negativas em decorrência do exercício desse verdadeiro direito à diferença ou à alteridade. A vereda constitucional indica a valorização, o respeito e a proteção do modo de ser e de viver dos índios, criando obrigações estatais a respeito e incluindo a cultura indígena no patrimônio cultural brasileiro6.
A atuação do Ministério Público Federal na defesa dos interesses e direitos dos povos indígenas A nova disciplina constitucional fincou uma sólida base a partir da qual foi intensificada a luta dos índios pelos seus direitos, com o crescimento das demandas no plano extrajudicial e judicial7. Talvez prevendo esse fato, a Constituição cuidou de assegurar que os povos indígenas fossem defendidos da melhor forma possível. Para tanto, não só conferiu legitimidade aos próprios índios, suas comunidades e
organizações para defenderem os seus direitos e interesses perante o Poder Judiciário8, como ainda incumbiu expressamente o Ministério Público da defesa judicial desses mesmos direitos e interesses9. Isso tudo sem prejuízo da possibilidade dos grupos indígenas serem defendidos por outros órgãos ou entidades, como, por exemplo, a União e a Fundação Nacional do Índio (FUNAI).
4 Artigos 7° a 11 do Estatuto do Índio. A tutela era prevista, ainda, no artigo 6°, parágrafo único, do já revogado Código Civil de 1916, segundo
o qual “Os silvícolas ficarão sujeitos ao regime tutelar, estabelecido em leis e regulamentos especiais, o qual cessará à medida que se forem adaptando à civilização do país.” (redação da lei n° 4.121/1962). No que concerne à incapacidade, esse mesmo Código Civil, no seu artigo 6°, inciso III, colocava os “silvícolas” como relativamente incapazes. Sobre a incapacidade e a tutela orfanológica, vide: SOUZA FILHO, Carlos Frederico Marés. O renascer dos povos indígenas para o Direito. Curitiba: Juruá, 1998, pp. 92-109. 5 Artigo 232 da CF/88. Nesse mesmo sentido, dentre outros: SILVA, Paulo Thadeu Gomes da. Direito Indígena, Direito Coletivo e Multiculturalismo. In SARMENTO, Daniel; IKAWA, Daniela; PIOVESAN, Flávia (coords.). Igualdade, diferença e direitos humanos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 587. 6 Para uma visão mais profunda da mudança de paradigma do direito brasileiro em relação à temática indígena, vide: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. Breve balanço dos direitos das comunidades indígenas: alguns avanços e obstáculos desde a Constituição de 1988. In SOUZA NETO, Cláudio Pereira de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (coords.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009, pp. 569-604. 7 Boa parte das questões judiciais e extrajudiciais tem como pano de fundo um choque entre interesses econômicos, supostamente a serviço do desenvolvimento nacional, e os direitos dos grupos indígenas, com destaque para a questão fundiária. Outras vezes o problema está na ausência de efetivação de certos direitos dos povos indígenas, como aqueles relativos à saúde e à educação. 8 Art. 232, CF/88. Essa possibilidade, no plano infraconstitucional, já era prevista no art. 37 da Lei nº 6.001/1973. 9 Art. 129, V, CF/88.
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A Constituição de 1988 também fortaleceu o Ministério Público, trazendo uma série de inovações que modernizaram a instituição e a tornaram uma das mais avançadas no mundo10. Dentre as atribuições determinadas pela nova Constituição encontramos o dever de defender judicialmente os direitos e interesses das populações indígenas11, bem como o de intervir em todos os atos dos processos judiciais nos quais esses direitos e interesses estejam sendo discutidos12. Os deveres constitucionais relativos à defesa dos povos indígenas dirigem-se a todos os ramos do Ministério Público da União (Ministério Público Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, Ministério Público Militar) e também aos Ministérios Públicos Estaduais, guardadas, obviamente, as atribuições judiciais e extrajudiciais respectivas13. Dentro de cada Ministério Público, os seus membros, em todos os níveis da carreira, devem agir pautados por essas determinações constitucionais. Também é possível uma atuação conjunta de membros do
mesmo ramo do Ministério Público ou de ramos diversos, visando a melhor defesa possível dos direitos e interesses dos povos indígenas14. Dentre todos os ramos do Ministério Público no Brasil é o Ministério Público Federal aquele que possui a maior parcela de obrigação quanto ao dever de defender os povos indígenas. E a razão é muito simples. As atribuições do Ministério Público Federal são essencialmente exercidas perante a Justiça Federal, a qual é constitucionalmente competente para processar e julgar não só todas as causas que dizem respeito à disputa sobre direitos indígenas15, como, também, as ações de interesse da União16, entidade a quem a Constituição conferiu o domínio das terras tradicionalmente ocupadas pelos índios17 e o dever de demarcar essas terras, proteger e fazer respeitar todos os bens indígenas18. As atribuições do Ministério Público Federal relacionadas à defesa dos direitos e interesses das comunidades indígenas foram disciplinadas no plano infraconstitucional pela Lei Complementar nº 75, de 199319. Este diploma normativo possibilitou que essas atribuições
10 Para uma visão geral do perfil do Ministério Público na nova ordem constitucional vide: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos. O Ministério Público. In TAVARES, André Ramos (org.). 1988-2008: 20 Anos da Constituição Cidadã. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2008, pp. 178-180. 11 Art. 129, V, CF/88. Em termos de legislação comum, a Lei 6.001/1973 já determinava, nos seus artigos 9º, parágrafo único, 36 e 37, a atuação judicial do Ministério Público em questões envolvendo direitos e interesses indígenas. 12 Art. 232, CF/88. 13 Por exemplo, é atribuição do Ministério Público do Trabalho propor, perante a Justiça do Trabalho, as ações necessárias à defesa dos direitos e interesses dos índios decorrentes das relações de trabalho (art. 83, V, da Lei Complementar nº 75/1993). 14 Acerca das diversas formas de atuação conjunta, vide: ANJOS FILHO, Robério Nunes dos; OLIVEIRA JÚNIOR, Oto Almeida. Breves Anotações Sobre a Atuação Conjunta de Membros do Ministério Público. In CHAVES, Cristiano; ALVES, Leonardo Barreto Moreira; ROSENVALD, Nelson (orgs.). Temas Atuais do Ministério Público: a atuação do Parquet nos 20 anos da Constituição Federal. 2ª edição. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, pp. 241-286. 15 Art. 109, XI, CF/88. 16 Art. 109, I, CF/88. 17 Art. 20, XI, CF/88. 18 Art. 231, caput, CF/88. 19 Vide especialmente os seguintes dispositivos: artigo 5º, III, “e”; artigo 6º, VII, “c”; artigo 6º, XI; artigo Art. 37, II.
sejam exercidas através de instrumentos próprios, como o inquérito civil público e a ação civil pública20. Além disso, expressamente determinou que o Ministério Público Federal exercerá a defesa de direitos e interesses dos índios e das populações indígenas nas causas de competência de quaisquer juízes e tribunais, possibilitando assim, por exemplo, a atuação dos seus membros perante a Justiça Estadual, quando necessário21. Dentro do Ministério Público Federal a defesa dos direitos e interesses das comunidades indígenas deverá ser exercida por todos os seus membros, nos diferentes graus da carreira. Assim, o Procurador-Geral da República, os Subprocuradores-Gerais da República, os Procuradores Regionais da República e os Procuradores da República, cada um nos limites das suas atribuições respectivas, devem se desincumbir dessa importante tarefa. O Procurador-Geral da República, por exemplo, poderá propor, junto ao Supremo Tribunal Federal, ações de controle de constitucionalidade em face de leis ou atos normativos federais ou estaduais que violem os direitos dos índios. Também é possível que algumas funções ou cargos exercidos pelos membros do Ministério Público Federal tenham uma ligação específica com o dever de proteção aos povos indígenas. É o caso, por exemplo, do Procurador Federal dos Direitos do Cidadão e dos Procuradores Regionais dos Direitos do Cidadão, aos quais com-
pete em especial defender os direitos constitucionais do cidadão com vistas à garantia do seu efetivo respeito pelos Poderes Públicos e pelos prestadores de serviços de relevância pública22. Importante destacar, nessa linha, o trabalho desenvolvido pela 6ª Câmara de Coordenação e Revisão do Ministério Público Federal. As câmaras são órgãos setoriais de coordenação, integração e revisão do exercício funcional na instituição, organizadas por função ou por matéria, através de ato normativo, compostas por três membros, sendo um indicado pelo Procurador-Geral da República e dois pelo Conselho Superior, juntamente com seus suplentes, para um mandato de dois anos, dentre integrantes do último grau da carreira, sempre que possível23. Um dos membros de cada Câmara será designado pelo Procurador-Geral para a função executiva de Coordenador24. Conforme a Lei Complementar 75/199325, compete às Câmaras de Coordenação e Revisão: I – promover a integração e a coordenação dos órgãos institucionais que atuem em ofícios ligados ao setor de sua competência, observado o princípio da independência funcional; II – manter intercâmbio com órgãos ou entidades que atuem em áreas afins; III – encaminhar informações técnico-jurídicas aos órgãos institucionais que atuem em seu setor; IV – manifestar-se sobre o arquivamento de inquérito policial, inquérito parlamentar ou peças de informação, exceto nos casos de competência originária do Procu-
20 Artigo 6º, XI. 21 Pode ser necessária autorização do Procurador-Geral da República, como chefe do Ministério Público Federal, bem como do Conselho
Superior do Ministério Público Federal (artigos 49, XV, “d”, e 57, XIII, ambos da Lei Complementar 75/1993). 22 Vide, principalmente, os artigos 11 a 16 e 40 a 42 da Lei Complementar 75/1993. 23 Artigos 49, IV; 57, III; 58 a 60 da Lei Complementar 75/1993. 24 Artigo 61 da Lei Complementar 75/1993. 25 Artigo 62 da Lei Complementar 75/1993.
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rador-Geral; V – resolver sobre a distribuição especial de feitos que, por sua contínua reiteração, devam receber tratamento uniforme; VI – resolver sobre a distribuição especial de inquéritos, feitos e procedimentos, quando a matéria, por sua natureza ou relevância, assim o exigir; VII – decidir os conflitos de atribuições entre os órgãos do Ministério Público Federal. Nesse contexto, a 6ª Câmara de Coordenação e Revisão, criada em 199326, tem a missão de atuar na matéria relativa aos índios e grupos minoritários, como quilombolas e populações tradicionais (seringueiros, geraizeiros, quebradoras de coco, pescadores artesanais, ciganos, povos de terreiro, pomeranos, faxinalenses, caiçaras e comunidades de fundo de pasto). A 6ª Câmara, por meio dos seus membros, titulares e suplentes, bem como contando com a ação dos seus representantes nos Estados, servidores e estagiários, vem exercendo um relevante papel no cumprimento, pelo Ministério Público Federal, do seu dever constitucional de proteção dos direitos e interesses dos povos indígenas brasileiros. Para tanto, no âmbito externo a 6ª Câmara atua como instrumento facilitador da interlocução do Ministério Público Federal com o Governo, o Poder Legislativo, as organizações não governamentais e a sociedade em geral, podendo promover reuniões, expedir recomendações, manter intercâmbio e encaminhar informações técnico-jurídicas aos órgãos ou entidades públicas ou privadas que atuam no
setor. Cabe destacar a participação da 6ª Câmara, como observadora, do Conselho Nacional dos Povos Indígenas e do Conselho Nacional de Recursos Genéticos. Internamente, a 6ª Câmara presta apoio aos membros do Ministério Público Federal que exercem atribuições vinculadas às questões relativas aos povos indígenas, coordenando, revisando e integrando a atuação judicial e extrajudicial em todo o país. Seu principal desafio é fomentar a participação e a compreensão dos membros do Ministério Público Federal que irão atuar nessa matéria. No desempenho dessa tarefa a 6ª Câmara, dentre outros instrumentos, pode editar enunciados; emitir orientações aos membros do Ministério Público Federal sem caráter vinculante com vistas a manter a uniformidade do exercício funcional27; promover encontros nacionais ou regionais que fornecem diretrizes gerais ou homologam orientações do colegiado; manter bancos de dados com iniciativas judiciais e extrajudiciais; criar Grupos de Trabalho28; e desenvolver projetos vinculados ao planejamento estratégico da instituição29. Tendo em vista o compromisso com a transparência e o controle social democrático, a 6ª Câmara tem disponibilizado na rede mundial de computadores dados estatísticos, relatórios anuais e muitas outras informações acerca da atuação dos membros do Ministério Público Federal na área da defesa dos direitos e interesses dos povos indígenas30.
26 Resolução nº 06, de 16 de dezembro de 1993, do Conselho Superior do Ministério Público Federal. Trata do tema também a Resolução nº
20, de 06 de fevereiro de 1996, do Conselho Superior do Ministério Público Federal. 27 Art. 7º, II, da Resolução nº 20, de 06 de fevereiro de 1996, do Conselho Superior do Ministério Público Federal. 28 Atualmente a 6ª Câmara mantém três Grupos de Trabalho relacionados aos direitos e interesses dos povos indígenas: Grupo de Trabalho
sobre Educação Indígena; Grupo de Trabalho sobre Registro Civil; e Grupo de Trabalho sobre Saúde Indígena. Fonte: http://ccr6.pgr.mpf.gov. br/documentos-e-publicacoes/relatorios-de-atividades-1, acesso em 10/10/2011. 29 Em relação aos projetos inseridos no planejamento estratégico e que tratam direta ou indiretamente da temática indígena, estão em andamento os seguintes: “Direito à diversidade sociocultural: estudos comparados”; “Construção de banco de dados de atuação do MPF na matéria referente à 6ª CCR”; “Digitalização e indexação de documentos da 6ª CCR”; “Criação e manutenção do site da 6ª CCR”; “Realização de Oficina de Trabalho sobre os Povos Indígenas da Região Nordeste”; “Discussão do Regime Jurídico da contratação dos professores indígenas”; “Criação do GT – Recursos Genéticos e Conhecimentos Tradicionais”; “Acompanhamento da transição da atenção à saúde indígena da FUNASA para o Ministério da Saúde”; e “Acompanhamento do ensino superior indígena”. Fonte: http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/documentos-e-publicacoes/ relatorios-de-atividades-1, acesso em 10/10/2011. 30 http://ccr6.pgr.mpf.gov.br/, acesso em 10/10/2011.
Conclusão Há sérios obstáculos a se enfrentar na luta judicial e extrajudicial pela concretização dos direitos e interesses dos povos indígenas no Brasil. Muitos ainda não estão sintonizados com o novo paradigma constitucional de respeito à diferença e de inexistência de hierarquia entre as culturas dos diversos povos que formam o conjunto de brasileiros. Lamentavelmente ainda há preconceito contra os índios e a sua cultura, o que por vezes resulta em posições ideologicamente contrárias aos povos indígenas, revelando nítido inconformismo com o novo modelo constitucional. Esse inconformismo é especialmente grave em relação à questão fundiária, havendo forte oposição à cristalina disposição constitucional que acarreta a nulidade, extinção e ausência de efeitos jurídicos dos atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras tradicionalmente ocupadas por índios31. Por isso, não raro a
questão indígena é permeada por conflitos que culminam em atos de violência física e moral, bem como em situações de devastação ambiental, desamparo educacional, desatenção à saúde, preconceito, desigualdade, racismo, exclusão, miséria e fome. A alteração desse quadro exige uma firme atuação de larga magnitude, envolvendo muitos atores públicos e privados, como as diversas esferas do governo, o mercado e a sociedade civil. O Ministério Público Federal, em todas as suas instâncias, tem feito um notável esforço para bem cumprir o seu papel, consciente de que o protagonismo constitucionalmente determinado à instituição e aos seus membros pode ser o ponto determinante para a construção de uma nova realidade, mais condizente com a Constituição, o Estado Democrático de Direito, o pluralismo, a tolerância e o direito à diferença.
31 Art. 231, § 6°, CF/88.
Robério Nunes dos Anjos Filho é Doutor em Direito pela USP, Mestre em Direito pela UFBA. Presidente Honorífico do Instituto Brasileiro de Direito Constitucional (IBEC), é Professor de Direito Constitucional e Procurador Regional da República na 3ª Região.
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Um relato em imagens
A saga dos irm達os Villas Boas
Este artigo reproduz os textos e imagens utilizados na exposição kuarup – a última viagem de orlando villas boas, organizada pela aori Produções com fotografias de Renato Soares e do acervo da família Villas Boas.
A
s imagens e textos aqui reproduzidos buscam recuperar um pouco do imenso legado humanístico, social e político dos irmãos Villas Boas. Por quase seis décadas, Orlando (1914-2002), Cláudio (1916-1998) e Leonardo (1918-1961) fizeram do contato, da convivência e da solidariedade com inúmeros povos indígenas o seu impulso vital. Quando se integraram, em 1943, à Expedição Roncador-Xingu, organizada pelo governo Vargas (1930-1945), os pouco mais de 40 milhões de brasileiros ainda viviam próximos da faixa litorânea e, praticamente, desconheciam o interior do País. Era o início do que se chamou de Marcha para o Oeste, em cujo caminho nasceram dezenas de cidades e vilas, campos de aviação, estradas e obras de infraestrutura. Orlando, Cláudio e Leonardo perceberam que os povos indígenas, até então isolados, seriam literalmente massacrados pelo processo de interiorização do País se não recebessem a devida proteção do Estado brasileiro. O empenho pessoal dos Villas Boas resultou, em 1961, na criação do Parque Nacional do Xingu, atualmente denominado Parque Indígena do Xingu. É considerado pela UNESCO o mais belo mosaico linguístico-cultural das Américas. Um pouco dessa verdadeira epopeia está registrada nas fotografias e textos a seguir. As trajetórias dos Villas Boas não são apenas as vidas de três indivíduos. São veios essenciais da construção de uma nação tolerante, solidária e plural entre seus povos e suas culturas. (AORI Produções)
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55. Em 1942, no viaduto do Chá, em São Paulo, na companhia de Cabral, um amigo de infância. Nessa época, Orlando trabalhava na Esso, Cláudio era empregado da Companhia Telefônica Brasileira e Leonardo ganhava a vida em uma empresa de importação. Nenhum dos três estava satisfeito com a vida na cidade grande.
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56. Os três irmãos, em 1944. Usando do subterfúgio de se fazerem passar por caboclos, os Villas Boas conseguiram incorporar-se à Expedição em Barra Goiana, atual Aragarças (GO), após uma rocambolesca viagem, na qual remaram por 22 dias no rio Araguaia. 57. O primeiro índio com quem fizeram amizade, Izarari Kalapalo, em 1946, na região do rio Kuluene.
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58. Os Villas Boas com trabalhadores no rio Xingu, em 1948. Inicialmente contratados como servidores braçais, logo Cláudio foi nomeado chefe do pessoal, Leonardo responsável pelo almoxarifado e Orlando secretário da base. 59. Embarque de burro, dezembro de 1947. 60. Expedição ao rio Xingu, na década de 1940. 61. Príncipe Albrecht, da Baviera, com Orlando e Leonardo, no Xingu, em 1948.
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62. Orlando com araras, rio das Mortes, julho de 1949. A travessia desse curso d’água, em 1945, foi, segundo Orlando, “o verdadeiro início da Expedição”. Ali foi instalada sua base principal. 63. Cláudio, no centro, de camisa branca, com os índios Kayabi e Suyá, abrindo uma pista de pouso, no início dos anos 1950. Segundo Orlando, “Observamos que cada vez que parávamos para fazer um trabalho – montar um posto ou abrir um campo de pouso – os índios reagiam. Tentavam nos atacar. Quando reiniciávamos a marcha, acompanhavam-nos à distância, mas não nos hostilizavam. Isso deixou claro que eles só se preocupavam quando pensavam que iríamos nos fixar em suas terras”.
64. Orlando conduz o Ministro João Alberto Lins de Barros (1897-1955) em visita ao Xingu. Ex-líder tenentista e ex-interventor federal em São Paulo, João Alberto presidia a Fundação Brasil Central, responsável pela Expedição Roncador-Xingu. 65. Leonardo, Orlando e Cláudio, início dos anos 1950.
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66. Orlando, o médico Noel Nutels, Leonardo e Darcy Ribeiro no gabinete do Presidente Café Filho, em 1954, para discutir a formação do parque do Xingu. 67. Leonardo, o Presidente Jânio Quadros, Orlando e Afrânio Oliveira, secretário particular do mandatário, em 1961. As boas relações com Jânio vinham da juventude e em muito contribuíram para a implantação do Parque Nacional do Xingu, naquele ano.
“Nosso conceito de integração atende a nossos interesses, nunca aos do índio. É preciso salientar que uma integração no sentido antropológico e social da palavra é irrealizável. Em relação ao Brasil, pode-se afirmar que o processo usado no contato entre as duas sociedades – a primitiva e a nossa – não é semente de destruição de sua cultura, mas da própria criatura. Vemos com desesperança e desamparo comunidades desaparecerem. Vemos tombarem vastas áreas de florestas, numa luta incontida e ansiosa por novas riquezas. Por que essa ocupação apressada, essa concorrência desenfre-
ada com os donos das terras, os índios? Há pressa em semear o capim no lugar da mata. Há urgência em que o boi, essa criatura que só vive num deserto de homens, substitua tudo, pisoteie tudo.” Orlando Villas Boas (1914-2002) VILLAS BOAS, Orlando. Discurso proferido na Universidade Federal de Minas Gerais, em 12 de dezembro de 1972, In LARA MESQUITA, Fernão et alli, O Xingu dos Villas Boas, Agência Estado/ Metalivros: São Paulo, 2002, pág. 29.
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68. Marina foi para o Xingu em 1963, aos 26 anos. “Peguei o avião em São Paulo com intenção de permanecer alguns meses no Parque. Acabei ficando quase a vida toda”. 69. Orlando e Marina na rede, Xingu, dezembro de 1963. Eles se casaram seis anos depois. 70. Orlando joga futebol no posto Diauarun, ao norte do Parque, em 1967.
“Orlando, Cláudio e Leonardo Villas Boas compuseram as vidas mais extraordinárias e belas de que tenho notícia. Pequeno-burgueses paulistas, condenados a vidinhas burocráticas medíocres, saltaram delas para aventuras tão ousadas e generosas que seriam impensáveis se eles não as tivessem vivido. Só se compara à de Rondon a façanha desses três irmãos, que se meteram pelo Brasil adentro por matas e campos indevassados ao encontro de índios intocados pela civilização.” Darcy Ribeiro RIBEIRO, Darcy in VILLAS BOAS, Orlando. A Marcha para o Oeste, São Paulo: Editora Globo, 1984.
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71. Cláudio e Noel Nutels (1913-1973), anos 1960. Nutels, um médico sanitarista nascido na Ucrânia e radicado no Brasil desde a infância, integrou-se à expedição em 1948. Nas palavras de Orlando, “Por mais de 30 anos ele prestou inestimáveis serviços às populações indígenas e menos favorecidas”. 72. Orlando cumprimenta o cacique Aritana Yalawapeti, um dos principais líderes da região, em novembro de 1974. Os Villas Boas e diversos caciques reuniram-se nessa ocasião, no Alto Xingu, para denunciar a invasão de terras por brancos (Foto Marcos Arruda/O Globo).
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73. Orlando, Orlando Filho e Noel, na aldeia Yalawapeti, em 1981. Vilinha nasceu em 1970 e Noel, em 1975. Os dois passaram a primeira infância entre os índios e tiveram de se adaptar na volta a São Paulo. 74. Orlando com o chanceler Willy Brandt, o presidente da República Federal da Alemanha, Richard von Weizsäcker e Adolf Theobald, em Bonn, durante o recebimento do prêmio GEO, do governo alemão, em 1984.
“A festa havia terminado. Chamamos de festa por causa da luta e das flautas na fase final, mas em verdade o que assistimos foi o mais importante cerimonial dos índios desta região. Os mortos são representados por toras de madeira (...) plantadas no centro da aldeia. Cada família enfeita o seu “morto” com os melhores e mais caprichosos enfeites que possuem, e a seu pé choram um dia e uma noite. Para trás, dois contadores, com o corpo um pouco curvado, seguram com a mão
esquerda um arco que serve como cordão, enquanto com a direita sacodem o maracá, que marca o ritmo do canto que entoam. (...) Ao pé de cada tora de madeira um pequeno fogo é ativado a noite toda pela família, que dele não se desgarra um só minuto. A essa tora de madeira dão o nome de Kuarup. (...) O Kuarup é a encenação da lenda da criação. Só se justifica a cerimônia quando morre um índio de linhagem, que outro não é senão aquele que foi criado pelo herói Criador, Mavutsinin.” Extraído de VILLAS BOAS, Orlando; VILLAS BOAS, Cláudio. A Marcha para o Oeste, Editora Globo: 1994,
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75. Última visita ao Xingu, em julho de 1998, durante o Kuarup em homenagem ao seu irmão Cláudio, morto naquele ano. Segundo Orlando, “Hoje podemos dizer, sem dúvida alguma, que a Expedição Roncador-Xingu foi o que justificou o estabelecimento efetivo de Brasília, a atual capital do país. A estrada Belém-Brasília, a Brasília-Cuiabá e a própria Transamazônica surgiram da Fundação Brasil Central”. 76. Última visita ao Xingu, julho de 1998.
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77. Orlando, Marina, Orlando Filho e Noel, em casa, S達o Paulo, 2000.
O Kuarup de Orlando Orlando Villas Boas foi homenageado pelos índios do Xingu poucos meses após sua morte, em 19 e 20 de julho de 2003. A cerimônia contou com a presença de mais de 2.000 índios, além de familiares e numerosos amigos. O Kuarup realizou-se na aldeia dos Yalawapiti, uma tribo que se recompôs a partir da ação dos Villas Boas. Isso deu à celebração uma enorme força simbólica. (...) Sua preparação levou vários dias, nos quais a aldeia anfitriã pescou e recolheu alimentos para receber as outras tribos durante a cerimônia. O tronco é colocado no centro da aldeia, para simbolizar aquele que se foi. Durante a cerimônia, os índios de todas as etnias presentes utilizam apenas dois tipos de pintura corporal. O primeiro são os traços geométricos simbolizando o peixe. Outros pintam círculos, que representam a onça. Os dois animais foram transformados por Mavutsinin, no ato da criação, em índios comuns. O Kuarup se encerra com o huka-huka, a luta do peixe contra a onça.
O Kuarup de Orlando foi como o primeiro Kuarup. Nele, tudo parecia remeter aos tempos de Mavutsinin. Da escolha ao corte da madeira (que na língua dos Yalawapiti se denomina mari), da pesca com timbó, da preparação do tronco de madeira, que dessa vez reinou sozinho no centro da aldeia, simbolizando Orlando; da homenagem dos homens, da triste, porém vigorosa melodia dos maracá-êp, entrecortada pelo choro das mulheres carpideiras, que dura toda uma noite, da luta dos huka-huka – tudo transcorreu como no mito do primeiro Kuarup. Pelo Kuarup, Orlando se fez duplamente presente. Primeiro porque ele era o homenageado por toda aquela gente que, unida, evocava o retorno de seu espírito. Segundo, porque sem ele não haveria mais ninguém dançando ou cantando naquele local que, provavelmente, seria pasto batido por bois em grandes latifúndios. Pelo Kuarup, os índios do Xingu deram vida a Orlando, sobretudo porque é na vitalidade da cultura que une crianças, jovens e velhos que ele continuará vivo, assim como Cláudio, Leonardo e Álvaro, enquanto existir esse lugar mágico que se chama Xingu.
Marina Lopes de Lima Villas Bôas Orlando Villas Bôas Filho Noel Villas Bôas
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Vincent Carelli
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Lucia Maria de Assunção Barbosa
Márcio Alves Roiter
José Afonso Botura Portocarrero
Lucia Hussak van Velthem
Filipe Eduardo Moreau
TEXTOS DO BRASIL