O Lago Negro

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S贸 existe tr锚s pessoas no mundo para quem eu prepararia um prato de batatas fritas depois da meia-noite. A elas eu dedico esse livro.


“…o esquecimento é a única vingança e o único perdão.” Jorge L. Borges

Sob a máscara do esquecimento e do equívoco, invocando como justificação a ausência de más intenções, os homens expressam sentimentos e paixões cuja realidade seria bem melhor, tanto para eles próprios como para os outros, que confessassem a partir do momento em que não estão à altura de os dominar. Sigmund Freud, in 'As Palavras de Freud


Prólogo – Você voltou... – sussurrou ela com sua voz doce. – Acho que nunca fui embora, para falar a verdade – respondi, ouvindo minha própria voz dizendo coisas que meu cérebro não ordenava. Ela piscava os olhos numa sincronia perfeita. De segundo em segundo, seus cílios longos e arredondados acompanhavam o movimento como as asas de uma borboleta. Eu voltara para aquele cenário mais uma vez. Estar ali era estranhamente reconfortante. Sentia falta de vê-la. No tempo que estive ausente, as árvores ficaram mais secas e enegrecidas, o tapete que nos ligava já perdera muito de sua iluminação fluorescente arroxeada, cortando agora todo o chão xadrez, continuando até algum lugar onde minha visão não alcançava devido à parca iluminação. Um único feixe de luz caía sobre nós, como num palco de teatro. Olhando ao meu redor, maravilhado como sempre, percebi que as árvores balançavam freneticamente, todavia nenhum vento chegava até nós, deixando imóveis seus longos cabelos. A impressão era de que havia algum tipo de domo transparente evitando que toda aquela natureza sombria nos afetasse. À parte de minha observação, ela caminhava para um canto do piso com seus pés delicados silenciosos, chegando até uma cadeira de veludo preta e fazendo sinal para que eu me sentasse na outra que estava disposta à sua frente. Obedeci no mesmo instante. Seus olhos estavam fechados agora; ela usava um vestido preto aveludado com um corselete cruzado em suas costas, salientando suas formas atraentes. A saia era em camadas, volumosa, como aquelas roupas de madames dos séculos passados. Observava o movimento do pano sob a pele alva, o seios apertados no vestido, subindo e descendo com o movimento de sua respiração. Sentei-me devagar, vendo-a abrir um sorriso iluminado. – Conseguiu entender onde estamos? – perguntou-me com a voz melodiosa. – Estamos na sua mente. Um riso ecoou por todo canto; o som era uma canção transmitindo-se em tons cada vez mais baixos e distantes. Eu costumava ter medo desse riso - um medo do tipo que, em vez de afastar-me de sua presença, me mantinha ainda mais preso a ela. – Estamos na sua mente... Essa é a forma como você pensa que é a minha mente. – Então, teoricamente, é sua mente – concluí ironicamente. Suspirei e olhei o céu. Não havia estrelas, nem lua, apenas uma leve iluminação do lado de fora do possível vidro. Então, o sentimento me tomou. Minha garota não me disse nada, mas eu sentia o impulso, a atração, sabendo que em breve estaríamos caminhando por aquele tapete infinito em direção ao desconhecido. Pensar em me embrenhar em meio àquelas árvores, enfrentar o vento, a escuridão, me causava um arrepio irracional. Eu nunca fora o tipo de garoto com medo do escuro. Era aquele escuro que eu temia. O lugar onde ele terminava. – Eu quero que você abra os olhos, V – disse a ela, com delicadeza.


– Não gosto que me chame assim. Eu tenho um nome. – Me desculpe. – Não peça desculpas – retorquiu, abrindo os olhos. – Na realidade eu não sou real. Não agora. Sou um conto que sai de seus sonhos. – Também não gosto quando você me lembra que eu estou sonhando. – Na realidade meus olhos não são roxos – continuou, ignorando minha fala. Então eu encarei seu rosto de verdade, como há anos não fazia. Passei grande parte de minha vida preso nesse sonho sem ao menos parar para fitar seu rosto de verdade, para dar forma a ele. Só conseguia ver uma face disforme e duas lamparinas roxas no lugar dos olhos. Agora, elas viravam os olhos perfeitos conhecidos. Seu rosto se desenhou com traços bem delineados, delicados e inteiros. Nesse momento eu soube o quanto a amava. – Seus olhos são lindos – sussurrei, encarando-a sem medo de assustá-la com meu fascínio. V me devolveu um olhar com lágrimas à espreita. Queria abraçá-la, contudo sabia que se a tocasse acabaria acordando, e eu tinha que chegar até o fim. – Vamos, querido, é hora de sairmos daqui. Levantou-se e passou por trás de minha poltrona, caminhando lentamente até o fim do piso xadrez, onde parou para me esperar. – Qual a cor dos olhos das outras garotas com quem você sonha? – perguntou-me com a voz monocórdia. – Não sonho com outras garotas. – Não minta. – Eu nunca mentiria para você. – Mas esconde-se de mim... Não me procura. – Sou um covarde – declarei, elevando a voz. O som ecoou por um tempo considerável, até ela virar de costas para me olhar. Havia pena em sua expressão. Aqueles olhos pareciam pedras, joias raras que nunca haviam sido descobertas. Pedras preciosas que só existiam nos meus sonhos. – Você é um covarde. Talvez eu também seja... Talvez eu tenha morrido, ou mesmo nunca existido. Isso você só saberá se tentar me encontrar. – Nós não podemos! – exclamei como um lamento. – É covardia. – Ela não alterou a voz. – Bem... Nós temos pouco tempo, você sabe. – Então olhou para o caminho que parecia se abrir e a luz passou a ficar um pouco mais intensa. – Siga-me e não tenha medo. Nós não somos crianças na verdade. Isso é só um sonho. Encarei seu corpo esguio se encolher até se tornar uma menina. Os cabelos negros compridos se encolheram e ficaram claros, louros da cor do ouro. Isso aconteceu rodeado de uma poeira roxa. Num instante ela se tornou apenas uma garotinha indefesa. Quando dei por mim também tinha rejuvenescido. Meu coração acelerou. A menina dos olhos roxos me olhou novamente, parecia corajosa. Depois, sorriu sem mostrar os dentes, virou-se e passou pelo vidro invisível. Segui-a pelo caminho tortuoso sem saber


onde ia chegar. A penumbra me atrapalhava a percepção do local como um todo, só conseguia distinguir as árvores balançando com o vento sem sentir sequer uma brisa. Pensei em sua frase sobre estar morta ou nunca ter existido. Temi que ela estivesse certa. Isso tornaria difícil minha missão de encontrá-la. Aliás, naquele momento, o que me amedrontava era pensar que, quando chegássemos ao destino para onde nos conduzia, V nunca mais voltasse, me deixando privado de sua existência que só se resumia àqueles sonhos. Eu amava aquela garota, só conseguindo sentir isso de verdade quando estava sonhando. Ao acordar, o sentimento se escondia num recanto de meu coração de pedra, até parecer não ter estado ali. Continuamos caminhando em silêncio. O chão pedregoso foi ficando gramado, cada vez mais. Sentia o cheiro de umidade e a sensação em minha pele da proximidade do local temido, mas esta parou antes que o encontrássemos. A escuridão estampada à nossa frente era como uma cortina negra separando um antes e um depois. – É agora – sussurrou. – Nós podemos parar, se você quiser. – Primeiro me explique o que aconteceu – pedi, esperando que algo novo se revelasse. Ela sorriu ironicamente sem me olhar nos olhos. Seus dentes brilharam na escuridão, juntamente com o cristal arroxeado em seu olhar. – Você tem que me encontrar. De verdade, eu digo. Não consigo dar mais respostas aqui. Sua mente está limitada. – Não sei quem você é – argumentei. – É, você não sabe. Era como conversar comigo mesmo. Na verdade eu estava mesmo conversando com minha própria mente, mas minha garota habitava nela. Era com ela que eu queria falar sem contaminar aquela conversa com meus próprios erros. – Vamos continuar – falei, tentando ser corajoso. Então, para minha surpresa, ela saltou na escuridão. Um desespero me tomou por completo, fazendo-me saltar logo atrás. Talvez eu acordasse com a adrenalina ou com a dor de uma queda feia num chão duro. Porém não houve nenhum baque. Meu corpo encontrou o chão numa leveza que me fez lembrar mais uma vez que aquilo tudo não era real. E lá estava ela, iluminada por uma poeira de luz arroxeada, vestindo calças jeans e blusa de renda branca. Adolescente, dessa vez. – É aqui, não é? O fim. – Ela assentiu. – Posso segurar sua mão? – Não, você vai acordar. Eu quero ver a água primeiro. Demos mais alguns passos, dessa vez lado a lado, sem nos tocar. Logo a escuridão começou a ser invadida por um brilho negro, feixes entorpecidos de luz emanavam de ondas calmas que refletiam diretamente nos olhos dela. Aos poucos, aquelas ondas se uniram numa visão perfeita de um vasto e negro conjunto de águas impetuosas, agitadas pelo vento. O lago negro. – Eu gosto de vir aqui, ficar olhando a água enquanto você está acordado. – E o que isso significa? – Você sabe, eu não posso entrar ali de novo.


– E ele não está mais ali... Você teme que os outros venham atrás de você? – Ela torceu os lábios e fez um gesto afirmativo. – Isso não vai acontecer. V, você foi forte. Essa vingança não a levará a lugar algum. – Não me chame assim... – Desculpe-me – interrompi. Ela se aproximou devagar enquanto eu jazia imóvel, esperando o momento de cercá-la bem perto. Quando ficou a poucos centímetros de mim pude sentir o cheiro de sua pele; era perfeito como uma flor do campo, uma tarde na beira da praia calma, uma fruta madura tirada da árvore no momento exato. Então estendeu a mão como se fosse acariciar meu rosto, mas gesticulou no ar para não me tocar. Minha barriga gelou só de imaginar como seria a textura de sua pele. – Você vai me ver, em breve. – Como você sabe? Eu não tenho nenhuma pista... – Shhhh... – fez ela, gesticulando com a ponta dos dedos em meus lábios. – Você tem, sim. É só procurar dentro dos livros... Tem muitos livros para serem abertos. Você só se atentou a um deles. – Sim, eu farei isso. – E me prometa uma coisa. – Tudo que você quiser. – Quando me encontrar, não tente desvendar essa história toda. Talvez você descubra que foi tudo uma invenção de verdade e que por trás da lenda existe uma história real perturbadora. Insista mesmo assim. – Mesmo que você não queira? – Sim... Mesmo que eu não queira. Dei um passo atrás negando com a cabeça e sentindo-me tonto. – Nós não podemos... – sussurrei. – Você é um covarde. Sabe que ficaremos juntos. – Talvez esse seja só um desejo que eu nego quando estou acordado. – Você nem pensa nisso, muito menos quando está com a Déb, ou com uma das tantas outras garotas. Mas você nunca sonhou com elas. Esse é um privilégio só meu. Retornei à posição próxima a ela, depois gesticulei como se acariciasse seus cabelos. Ela fechou os olhos aproveitando o toque imaginário, talvez fingindo senti-lo. – Leia para mim. – Eu prometo. Ao abrir de seus olhos, eu pude ver os pequenos focos de luz deles se apagando, fundindose com a escuridão do cenário mórbido. Atrás dela estava a casa de madeira no meio da vegetação. Havia uma janela aberta cuja luz acesa me permitia ver a silhueta de um homem a nos observar. Um calafrio me subiu à espinha, mas não quis dizer nada a ela. – Você vai acordar! – exclamou com decepção. – Eu estou... Acho que tem algo aqui que me deixa com medo... Atordoado.


As águas se agitaram e finalmente eu pude sentir o vento. Ela se afastou de mim como se estivesse sendo puxada por um fantasma. Sua boca se abriu num grito de desespero, mas a voz estava abafada. Tentei alcançar seus braços que se estendiam em minha direção pedindo socorro, porém fui puxado para o outro lado. A última coisa que eu vi foram seus olhos apagados desaparecerem nas águas raivosas do Lago Negro.


Primeira Parte Loucura e Sanidade


Verônica

Capítulo 1 Atualmente...

A linha entre loucura e sanidade é muito tênue. Uma fronteira frágil. Todo mundo já deve ter visto ao menos um filme sobre o assunto, quem sabe até mesmo lido em um livro ou num artigo científico. Existem graus de conhecimento sobre isso, desde a mãe da sua vizinha que tinha um tio desequilibrado, a um médico famoso por suas pesquisas e inovações na área. Ambas, loucura e sanidade, são fatores que nos fogem do controle, por isso precisam de representações. Seres humanos costumam criar símbolos para dizer a si mesmos que não perderam o controle sobre algo, quando na verdade nunca o tiveram. A mente. Algo indubitavelmente incontrolável, mas que insistimos em dizer dominar. Pessoas que se julgam sãs, com mentes saudáveis, quando param para pensar nos loucos a correr pelas ruas, ou nos trancafiados em hospitais, sentem-se inundados de uma repulsa disfarçada de pena, o que os motiva a buscar mais e mais sua própria sanidade. Para mim os loucos são esses. Sonho com um mundo em que os loucos vivam nas ruas e internem-se os ditos sãos em hospitais horrendos, com paredes tomadas pelo mofo e comida com cheiro de lavagem. Eu estou na fronteira agora. Percorri um longo caminho até aqui e não sei bem se quero sair. Talvez a linha de separação seja o melhor lugar para se estar. De um lado há um lago de águas negras e sinto-me atraída a mergulhar de cabeça nele; do outro lado há um porão empoeirado e um bebê olhando-me de forma sonolenta, curiosa, talvez, mas lutando para se manter acordado. Esse olhar me faz fazer uma escolha. – Pode dormir, querida. Vai ficar tudo bem. – Sei que estou mentindo. Nos vinte anos em que estive nesse mundo, muitas coisas me perturbaram. Uma delas foi deparar-me com perguntas sem respostas. Agora estou trancada nesse porão imundo e percebo que todas as minhas perguntas não passaram de disfarces sórdidos de minha mente, ocultando as verdadeiras questões. Eu fiz as perguntas erradas. Odeio-me por isso, pois sei que talvez eu morra aqui dentro e então minha alma vai vagar por ai, insaciada pelas questões que fui covarde demais para fazer; pelas repostas que me neguei a encontrar por puro medo. Um medo que fantasiei ter deixado para trás, mas que foi o grande demônio a assombrar os meus dias.


Já tinha perdido a conta de quantos tiros haviam sido dados há alguns segundos. Agora não sei se foram reais ou se os imaginei. A vela em minha mão vai apagar em breve, e a escuridão vai negar-me a vista dos olhos de Lizandra. Sinto medo de perder a cabeça se isso acontecer. Sinto raiva por não ter uma lanterna ou algo mais moderno para iluminar meu esconderijo. Lembro-me do celular no bolso da calça. Logo ele vai ficar sem bateria também. Seguro o impulso de jogá-lo no chão e gritar minha raiva, meu desespero, mas sei que não posso fazer isso. Então encontro um sofá velho, espano as teias de aranha com a manga do casaco e acomodo Lizandra nele, causando seu adormecimento instantâneo. Ela parece tranquila, sem saber que corremos perigo. Com meus braços livres, sinto o alívio do peso que foi retirado deles, então cedo meu corpo no chão gelado ao lado da garotinha, depois me aninho com o rosto enfiado nos joelhos dobrados. Desejo ter enlouquecido, imaginado, tudo o que me aconteceu até aqui. Tudo poderia ser fruto de minha mente enlouquecida para compensar a vida que me foi negada, preenchendo as lacunas que se abriram desde então, cujas eu não tive coragem de fazer por mim mesma. Talvez eu estivesse morta há muito tempo. Afogada no rio depois de cair daquela ponte e meu corpo tivesse sido levado ao fundo onde jamais seria encontrado, preso ao cinto de segurança. Tudo depois disso pode ter sido um sonho: Enzo, Vovó, as aulas de natação, os livros, as viagens, as sessões de terapia e Liam. Isto pode ter sido a maior de todas as minhas alucinações. – Foco, Verônica. Foco, foco, foco... – fico repetindo para poder escutar minha voz e sentir-me viva. Escuto passos no andar de cima. Ele ainda está vivo e vai dar um jeito de nos tirar daqui. Puxo as mangas do casaco de lã e esfrego-as no meu rosto para sentir seu toque aveludado. Os passos se distanciam, ouço quando as águas do Lago Negro se agitam. O real. É como se algo pesado fosse jogado sobre ele. Meu coração dispara. Medo, expectativa. Eu vou chorar, sei que vou. Lizandra nunca chora e eu desejo ser como ela. Aproximo-me da porta, escuto as águas. Penso no livro que não terminei de escrever, depois rio de mim mesma, um riso amargo e irônico, odiando-me por pensar que aquelas palavras escorridas foram o motivo de minha vida estar agora em perigo. Fecho os olhos, tento me ver de cabelos bagunçados caídos sobre o rosto, a maquiagem escorrida, mãos trêmulas tentando segurar a vela. Sinto pena de mim e nessa hora meu coração dói. Não porque eu estava prestes a morrer, mas porque eu odeio sentir pena. É um sentimento que me incomoda, sempre incomodou, que inunda meu coração com ácido, me faz contorcer por dentro. Se sentir pena dos outros sempre foi ruim, sentir pena de mim mesma foi pior do que tudo que já tinha vivido. Num lampejo de lucidez, pego meu celular sem sinal, ligo o gravador de voz e mando uma mensagem breve para qualquer pessoa que o encontrar depois: “Eu sou Verônica Cattani, a pessoa mais fracassada e maluca que você vai conhecer aos vinte anos de idade. Se eu morrer hoje, quero que ao menos alguém saiba como foram meus últimos momentos, pois eu sei que minha mãe gostaria de saber que morri em paz. Não vai ser assim, mas se caso você conseguir falar com ela, então minta. Diga que encontrou essa gravação em meu celular, mas depois que ouviu, acabou a bateria e o aparelho caiu no chão, se estilhaçou


inteiro. Diga que ouviu minha voz calma, não sobressaltada, ofegante como está agora. Diga que eu a agradeci por ter tentado ser uma boa mãe mesmo que eu não aceitasse, que pedi desculpas por tê-la culpado por tudo. Acima de tudo, diga a ela que a amo.”

O celular cai de minhas mãos, mas não se estilhaça, apenas escorrega pelo chão como se tivesse vontade própria e procurasse um lugar seguro. A porta se abre, uma luz intensa molda a silhueta de um homem. Ele desce as escadas em minha direção, enquanto eu ouço sua respiração chiada. Ele se aproxima, levanta Lizandra do sofá, depois me olha intensamente. Não consigo ver seu rosto, só sei que seu olhar pousa sobre mim com o peso de mil toneladas e isso é o que basta para me apagar. Sem dor, nem lampejo, atinjo o chão e caminho devagar para um mar de escuridão.


Meses antes...

Dizem que o passado é algo que vive dentro de você, por mais esforços que faça para esquecê-lo. Dizem que ele molda seu futuro, que influencia suas decisões e que acaba passando a fazer parte de quem você é, não importando o que escolheu fazer com ele. Gostaria que isso não fosse verdade. Batalhei muito por um pedaço de sanidade longe do meu passado. Passei no vestibular em primeiro lugar na universidade que sempre sonhei e planejei me desligar um pouco dele, agora que iria começar uma nova vida. Mas todos os caminhos que resolvi tomar me levaram ao porão daquela casa em que tudo teria um fim. Ouvi dizer que, nos últimos instantes antes da morte, toda sua vida passa como um filme diante dos olhos. Isso é mentira. O que via agora não acontecera há muito tempo. Um verão, apenas. Meu pé direito foi o primeiro a tocar o chão de Lagoana, algo que poderia parecer um sinal auspicioso para alguns. Mas, como tudo em minha vida, foi exatamente o oposto. O primeiro contato na nova cidade não me pareceu muito promissor. Desconfio que a umidade relativa do ar estivesse quase no ponto em que você respira água, e seus cabelos parecem prontos para pular da cabeça em busca de um pouco de sol. Fui avisada da completa falta de luz solar da cidade, mas nunca imaginei que no Brasil houvesse um lugar como aquele: enevoado, úmido e deserto, como se fosse um cenário desses filmes de terror antigos. O caminhão de mudanças parou atrás do nosso carro, exatamente ao meio dia de uma tarde de verão, no mês de Março. Um vento gelado soprou em minha pele assim que coloquei os pés no solo gramado da praça central, insistindo em contradizer o que mandava a estação. Não havia uma alma viva passeando por lá, mas algumas vozes abafadas vinham de um restaurante pequeno, que só ostentava uma placa discreta: "Cozinha da Mama". Pelo jeito, alimentava os sete mil habitantes de Lagoana. – Onde ficam os universitários? – perguntou Enzo, assim que desceu do carro, a voz lutando para parecer otimista. – Em qualquer lugar, menos aqui – respondi, percorrendo os olhos por todo o canto. O motorista pulou do caminhão e verificou o endereço num papel amassado que eu tinha lhe entregado na mesma manhã, antes de deixarmos a cidade. – A placa ali atrás dizia "Vila Universitária"– justificou. – Mas eu não vi nenhum condomínio por aqui. O sotaque caipira do homem denunciava suas origens interioranas. O som de R e o T sobressaltados me lembrava das conversas com meu Avô, a quem não via há quase um ano, desde meu último aniversário em que fez questão de me visitar em casa. Ele chorou quando disse que meus olhos lembravam os de meu pai, depois disso ficou em silêncio durante o resto da noite. – Acho que vocês devem estar no lugar errado – disse uma voz rouca atrás de nós. Virei e me deparei com um senhor franzino usando óculos escuros, roupas bem arrumadas, como se voltasse de um casamento, ou de um velório. Enzo apressou seu sorriso mais educado.


– O senhor poderia nos orientar? Precisamos chegar a um local chamado... – Pousada dos forasteiros... Sim, eu sei onde querem ir. É pra onde vão todos os intrusos que invadem a nossa terra. – A voz do homem saiu rouca e pausada, com um leve chiado no peito. Enzo e eu nos entreolhamos, um pouco assustados, confesso. Não era a melhor recepção que havia tido em minha vida, mas certamente não era a pior. – Me desculpe, senhor, mas eu preciso mesmo de uma orientação aqui. O homem olhou em volta e depois examinou o motorista, que se contorcia de frio dentro de uma regata branca, toda surrada pelo trabalho de carregar o caminhão com nossas coisas. Quando saímos de São Paulo, o calor estava insuportável. – Vocês devem contornar essa pracinha até chegarem à parte de trás da igreja. Logo que virem a imagem do Anjo de pedra, peguem a saída à direita e sigam reto pela estrada. Vocês vão percorrer uns quatro quilômetros, mas a estrada é cheia de curvas e a mata se fecha sobre ela numa parte do trajeto, por isso não acelerem demais. Enfim, verão o prédio de vidro da universidade. Logo ao lado fica a Pousada dos Forasteiros. – Sua longa explicação foi interrompida por um acesso de tosse. Olhei para Enzo mais uma vez. Nós costumávamos nos comunicar no silêncio, por isso sabia que ele me dizia sobre sua sensação de não sermos bem vindos ali, bem como da esperança de encontrar alguma hospitalidade com os outros intrusos. Ninguém nos tinha alertado sobre alguma hostilidade entre alunos e os cidadãos de Lagoana, nem sobre o fato de a Pousada ficar fora da cidade. – O senhor precisa de ajuda? – perguntei, vendo que a tosse não passava. Ele fez um sinal negativo com as mãos e enfim se recuperou. – A idade chega até para os mais jovens, garota dos olhos estranhos. Um arrepio percorreu minha espinha. – O que o senhor disse? – questionei, com a sensação de ter ouvido errado. – Desculpe, menina, mas seus olhos – ele deu dois passos em minha direção – são diferentes. Eu não sou bom decorando nomes, então vou me lembrar de você por causa deles. – O senhor quer dizer que são lindos, não é mesmo? – interrompeu Enzo, agora se colocando ao meu lado. Aquele senhor e eu nos olhamos por um tempo, como se tivéssemos meio hipnotizados um com o outro. Eu via um rosto cansado, um pouco arrogante, mas claramente se defendendo do desconhecido que representávamos, enquanto o que ele via era um mistério para mim. Era como se visse mais, como outras pessoas não podiam. – Mais do que isso... – murmurou ele. – Obrigado pelas informações, senhor... – Ancião. Me chame assim, por favor – interpôs, depois virou as costas, caminhando para longe de nós com as pernas meio vacilantes. – Preciso chegar antes que comam tudo, aqueles mortos de fome de uma figa. Minha garganta roncou querendo perguntar algo involuntariamente, mas não encontrei as palavras. O braço de Enzo passou pela minha cintura me puxando para si, só então percebi que estava gelada e que minha blusa fina de malha e a calça jeans não me protegeriam daquele clima estranho.


– Assustador... – sibilou Enzo, olhando para onde o Ancião caminhava. – Bom... Esperamos que ao menos as instruções estejam certas, e ele não seja de todo senil. – Se todos nessa cidade forem assim – intrometeu-se o motorista -, no lugar de vocês, eu sairia correndo daqui. É em lugares como esse que corpos aparecem boiando. – Obrigada, Pedro, muito otimista! – retrucou Enzo com seu tom venenoso. – Mas é verdade! Você já tinha visto essa cidade no mapa? – Vimos no catalogo de Universidades – respondi. – Ao menos vocês tem água de sobra para encontrar os cadáveres. Senti vontade de rir com a irritação que emanava de Enzo por conta das palavras de Pedro. O homem entrou de volta no caminhão dando partida no motor logo em seguida. Depositei um beijo rápido no rosto de meu namorado impaciente e entrei no carro, deixando-o do lado de fora ainda examinando o ambiente. A névoa que sobrevoava o local ficou um pouco mais amena permitindo-me ver as casas em volta da praça, todas muito rústicas, mas bem arrumadas, com jardins cuidados e portões altos. Enzo se juntou a mim e ligou o carro, ao som da buzina apressada de Pedro. – O pior é que o idiota tem razão. Esse lugar é muito deserto. – Do jeito que eu gosto – provoquei-o com meu melhor sorriso cafajeste. – Você gosta de coisas macabras...

*** Em quinze minutos de uma viagem incomumente silenciosa, avistamos o prédio da Universidade Federal Interiorana de Lagoana, com sua fachada de vidro e a cúpula azul onde ficava a biblioteca, exatamente como dizia no folheto. Ao redor do prédio, apesar do tempo nublado e da névoa quase transparente, pessoas circulavam vestidas em roupas modernas, expressando-se com a normalidade almejada. Nada de olhares e carrancas ameaçadoras. Soltei um suspiro dramático de alivio enquanto o carro encostava-se à calçada do outro lado da UFI, em frente ao condomínio. Olhei para Enzo que fitava o prédio com um sorrisinho satisfeito, o que me fez sorrir também, pois sabia o quanto ele havia sonhado com o momento de chegar a Universidade, estudar o que sempre sonhara, dedicar horas a fio aos seus livros prediletos e se sentir livre das amarras de sua família conservadora. Esse último julgamento na verdade fica a meu critério, já que sempre me senti sufocada com os Cervantes. É certo que eles me julgavam uma má companhia para seu filho, por conta de minhas roupas escuras e meu cabelo pintado de preto. Nada disso me fez abandonar o lápis preto em volta do olho, nem minhas camisetas estilizadas das minhas bandas favoritas, muito menos meu par favorito de coturnos ou o All Star de cano alto. Todavia, não eram as minhas roupas o problema. Eu tinha um passado que os incomodava. Não era boa o bastante para o prodígio de cabelos cor de cobre, olhos verdes, massa muscular mediana, voz grave e uma miopia charmosa que o fazia ter um estilo nerd sexy. Quando o conheci, era um nerd gordinho com espinhas purulentas; mesmo assim ele significou o mundo todo para mim. Tínhamos doze e catorze anos respectivamente. A mãe dele disse aos jornais que seu filho era um herói, e depois disse à minha mãe que certamente sua ligação


comigo acabaria com o tempo. Pobre Giovanna. Estávamos juntos havia oito anos, e a ligação comigo fez de Enzo um homem de uma mulher só. Eu. – Estamos em casa! – interrompi-o em seu sonho, certamente cheio de retrospectiva. Ele segurou meu rosto e me olhou bem de perto. – Bem-vinda ao curso de Jornalismo, Verônica Cattani. – Bem-vindo à liberdade, Enzo Cervantes. Então nos beijamos pela milionésima vez, mas essa tinha gosto de novidade. Havia um disparo no coração e um amontoado de promessas de coisas novas: uma vida juntos, agora dividindo uma casa, mesmo que fosse um apartamento minúsculo num prédio barulhento cheio de universitários exalando hormônios e música ruim. – Parece um bom lugar para escrever seu livro, finalmente? Olhei em volta para o cenário movimentado, depois para o céu, onde um pouco de luz do sol lutava para penetrar. Ao longe havia um planalto esverdeado, uma torre de celular alta de onde se poderia adivinhar ver toda a cidade e a parte rural também. O predomínio de vegetação era evidente, o cheiro de água próxima também. – Parece perfeito, na verdade. – Então você vai me contar sobre o que é? – Ele ergueu uma sobrancelha por cima dos óculos tentando me fazer aquela careta sedutora com a qual conseguia quase tudo. – Depois de anos de mistério, acho que vou adiar mais um pouco. Você será o primeiro leitor do meu manuscrito, isso eu prometo. Fomos interrompidos nesse momento por um grupo barulhento de pessoas que passava na frente do carro, também pela imagem de um Pedro tanto quanto entediado, esperando do lado de fora do caminhão pelas próximas instruções. – Nós temos que ir – comunicou-me ele, com um tom que sugeria que nossa conversa ainda continuaria. A Pousada dos Forasteiros ficava logo em frente ao portão principal da universidade. Era um condomínio fechado de cinco blocos, cada um pintado de uma cor diferente, embora fossem cores de tons neutros. – Pedro! – chamou Enzo. – Bloco 3, apartamento 4. O homem assentiu, já mal humorado pela viagem e, acredito, que por ter que fazer sozinho o trabalho pesado, já que Enzo contava com uma coluna um pouco dolorida demais para um jovem de vinte e dois anos. – Vou tentar ajudá-lo. Puxei minha mala pesada do porta malas deixando-a cair com as rodinhas no chão. Enzo fitava o resto das coisas meio inseguro, custando a ceder e causar algumas dores indesejadas. – Eu vou atrás de vocês. Abri espaço entre o grupo barulhento e entrei pelo portão de ferro puxando a mala. Ouvi quando um dos rapazes fez algum comentário malicioso sobre o tamanho dos meus quadris, que eu creio nem serem tão impressionantes assim, dando graças a Deus pelo novo ano que se iniciava. Olhei para trás, peguei-o cochichando com outro garoto da mesma idade e com uma moça que me sorria sem graça.


– Algum de vocês poderia ajudar meu namorado a pegar a última mala? Ele tem um probleminha com dores nas costas. – Então lancei um sorriso amarelo que logo dispersou os dois rapazes na direção de Enzo, prontamente se oferecendo para carregar a mala pesada. Vi-o agradecer e me acenar. A moça que sobrou se aproximou de mim, me estendeu a mão sorrindo de forma simpática. – Seja bem vinda ao fim do mundo! – saudou-me com uma voz cantada. Sorri de volta um pouco sem entusiasmo, pensativa a respeito do comentário. – Não parece ser tão ruim assim – retruquei, retomando meu caminho através do portão. Ela me seguiu. Tinha olhos apertados e era bem mais baixa que eu, algo que não era incomum, já que a vida me presenteara com pernas compridas e finas que não eram de meu agrado. A moça tinha cabelos louros cacheados, seios protuberantes na camiseta de malha fina e uma cintura muito fina, como uma pinup moderna. Não parecia o tipo que faria amizade com uma garota magrela de ombros curvados e cabelos escorridos, como eu. – A propósito, meu nome é Caroline, mas pode me chamar de Carol. Ouvi seus saltos batendo no piso das escadas que davam para o primeiro andar do primeiro bloco. Eu com meu All Star preto de cano alto por cima do jeans escuro, senti-me ainda como uma colegial. – O meu é Verônica, e você pode me chamar de Verônica. Carol riu com mais entusiasmo do que eu esperava, depois tocou meu ombro como um gesto típico de agradecimento por um momento de risadas. – De onde vocês vêm? – Somos de São Paulo – respondi simplesmente, procurando pelo corredor que dava acesso ao terceiro bloco. A rodinha da mala fazendo barulho no piso laminado, os sapatos caros dela acompanhando o movimento. – São de tão perto! Vocês poderão fugir daqui assim que quiserem e estarão em casa em pouco mais de uma hora. Ah, que inveja! – fez, imagino que revirando os olhos para acompanhar o tom de voz exausto. – Eu venho de Minas Gerais. Aqui era a única cidade onde havia o curso de Jornalismo com a grade que eu sempre sonhei. Levei dois anos para passar no vestibular, agora não entendo por que é tão difícil entrar na UFI, já que mais da metade dos alunos que se muda para Lagoana desiste no primeiro semestre. Quando ela finalmente parou para respirar, resolvi que não queria rejeitar aquela nova amizade espontânea só porque ela parecia com uma das garotas que gozavam de mim no colégio. Afinal, Carol não falava de forma arrogante como as garotas faziam, nem usava tanta maquiagem ou perfume. – Conheci um tal Ancião que pode parecer a justificativa perfeita. Será que todos na cidade são tão hostis? Ela deu dois passos à minha frente e começou a andar de costas para poder me olhar. Tinha uma empolgação natural nos olhos, seu peito se movia apressadamente enquanto falava. – Você nem imagina o quanto! O pessoal da cidade nos odeia. Não vendem pão ou cigarro para o povo aqui da Universidade. Uma vez tive que descer para o centro porque no supermercado tinha acabado a comida congelada, e eu queria comer uma comida descente. Quando entrei no restaurante, aquele chamado "Cozinha da Mama", todo mundo ficou me olhando como se eu fosse de outro planeta.


– Conheço o sentimento – respondi em tom baixo. – Mas não dizem que todas as cidades onde construíram uma UFI cresceram de forma absurda, trazendo benefício para todos os moradores, e etc., etc., etc.? Ela se virou novamente e ficou ao meu lado. – Em todas as outras cidades, menos aqui. Parece que os Lagoanenses são um povo fechado a inovações e crescimento. Só há uma família rica por aqui, que vive de uma indústria antiga de tratamento de água. Mas ninguém sabe nada deles aqui na Universidade. Dobrei um corredor e avistei Pedro abrindo a porta do elevador. Ele carregava cinco caixas empilhadas em um carrinho. Fiquei me perguntando como iria arrastar minha estante de livros e a cama que tínhamos comprado. O restante dos móveis já fazia parte do apartamento. –Temos tudo aqui: supermercado, lojas, papelaria e livrarias. Todo o comercio é dirigido por alunos e famílias de alunos. Não é como estar em São Paulo, ou Sorocaba, mas é suficiente para sobreviver. – Isso é o que basta, não é mesmo? Carol mordeu o lábio e assentiu. Chegamos ao apartamento depois de andar apenas dois andares no elevador. Carol me acompanhou o tempo todo, ignorando a presença de Pedro e sua respiração barulhenta, como a de um cavalo depois de uma corrida. Ela não parava de falar sobre os alunos que viviam dos comércios no bairro universitário, citando o nome de cada um deles para que eu pudesse me localizar e conhecer o pessoal depois. Era tanta gente, o fluxo era tão rápido, que eu mal guardei dois nomes. Pedro descarregou as caixas em um longo sofá em formato de “L”, que estava posicionado embaixo de uma grande janela de mosaico azul transparente. A sala era grande. Tinha uns doze metros quadrados, enquanto que um estreito corredor levava a uma pequena cozinha, um minúsculo banheiro, depois a um quarto que media no máximo seis metros quadrados. Tinha também uma janela de vidro e uma porta para a varanda. – É exatamente igual ao meu... – comunicou ela, olhando para a sala empoeirada. – Exceto que seu sofá é vermelho, e o meu tem um tom de marrom horrível. – Eu ficaria com o marrom. Odeio cores fortes. – Vermelho é a cor da paixão. Todo mundo deveria gostar de vermelho – disse, se esparramando no sofá. Uma nuvem de poeira se levantou do estofado, mas a garota nem se abalou. – Vocês vão morar juntos? – perguntou-me, agora com certo cuidado. – Sim... Vida nova. – Casados na Universidade. Daria uma ótima matéria. Larguei a mala no chão, caminhei até a janela mosaico, passando por uma estante preta alta na qual havia uma televisão velha, também empoeirada, mas em bom estado. – Estamos juntos desde sempre. Creio que já estamos preparados para dividir o guardaroupas. – Desde sempre? – Eu tinha doze anos quando o conheci. Tenho vinte agora.


Carol sorriu encantada, mas havia um vinco de dúvida em sua testa. Aquele mesmo sinal de preocupação que eu sempre via nas pessoas quando contava a elas que Enzo e eu nunca havíamos nos relacionado com mais ninguém. Fomos os primeiros de tudo um para o outro. O primeiro beijo, a primeira transa, a primeira briga, a primeira reconciliação... Parece que as pessoas em geral não achavam isso bonito. Tinha algo estranho na forma com que nos olhavam. Era como se fossemos errados. Isso me deixava louca. Porém o sorriso romântico de minha mais nova conhecida não me deixou ficar irritada com ela, afinal era a primeira pessoa no mundo que havia vindo falar comigo espontaneamente. – E seus pais, não se importam de vocês morarem juntos? Hesitei em responder, justificando-me que aquelas perguntas se deviam ao espírito de jornalista, curioso demais. Algo que eu conhecia bem, embora minha curiosidade não fosse voltada à vida das pessoas. – Minha mãe e eu não somos muito próximas. Meu pai morreu há oito anos. Ela abaixou a cabeça, acho que queria dizer que sentia muito, mas não teve tempo, já que Enzo e os dois rapazes entraram pela porta carregados de caixas e falando alto. Ele a fitou com espanto, pois sabia de minha dificuldade em abrir a porta para estranhos, porém era um espanto positivo, já que sempre me incentivara a fazer mais amigos e a ser mais comunicativa sobre mim mesma, dizendo que eu não tinha nada do que me envergonhar em meu passado. – Essa é a Caroline, mas você pode chamá-la de Carol – falei, erguendo os ombros e sorrindo com todos os dentes. – E esse é o Enzo, meu namorado. Os dois se cumprimentaram e logo Enzo me apresentou Paulo e Vinicius, ambos de Minas Gerais e estudantes de Veterinária. Carol era vizinha dos dois, contou detalhes constrangedores sobre os ruídos que vinham da parede ao lado, cochichando que tinha um relacionamento instável e baseado em sexo com Vinicius. Os três novos conhecidos nos ajudaram com a arrumação quando Pedro foi embora, aliviado por ter conseguido montar minha estante rapidamente e poder dar o fora daquela cidade que o assustava tanto. Carol me ajudou a colocar os livros no lugar, enquanto comentava sobre meu bom gosto por história da imprensa e os exemplares envelhecidos e desgastados de Machado de Assis, meu ídolo desde sempre. Ela disse ser fã de sagas adolescentes sobre fantasia, e contou que sonhava em escrever a sua própria. No mesmo instante pensei naquele enredo fantasioso e misterioso que brotava em minha imaginação desde meus catorze anos; lembrei de Liriel me perseguindo em sonhos com seus olhos púrpura, seus cabelos que mudavam de cor frente a grandes mudanças. Eu escreveria, finalmente, o livro que me perseguia, mas mantive isso em segredo naquele momento, pois pensava que contar sobre Liriel, os Nefillins e os Vampiros, quebraria toda a magia que tinham para mim. Eles tinham que ser poupados para minhas páginas. Meus personagens deviam estar vivos em algum lugar, e eu gostava mesmo de pensar assim. Daria vida a eles em breve. A mera ideia disso me causava frios na barriga. No fim da tarde, os novos conhecidos foram embora para seus apartamentos deixando um convite para a festa que aconteceria a noite, a fim de comemorar a chegada dos novos alunos, no clube que ficava do outro lado de UFI. Fechei a porta com uma sensação de alívio pelo silêncio que se estabeleceu e respirei fundo o cheiro de limpeza do ar.


Sentei-me ao lado de Enzo no sofá vermelho confortável que eu tinha mudado de lugar, e me deitei em seu peito. – Gostou do nosso novo lar? – perguntou-me, de olhos fechados. – Muito – respondi, fechando também os meus. – Não vai ligar para a sua mãe? – Só amanhã... – murmurou contrariado. – Ela precisa começar, desde já, a se acostumar com a minha distância. – Acho que deveria ligar para ela, ao menos para dizer que está vivo. Especialistas dizem que a ansiedade de separação tem que ser superada aos poucos, e não de forma abrupta assim. – Ela vai sobreviver a uma noite. Levantei a cabeça e observei seu rosto lívido, ainda com os olhos fechados. Sabia que não era uma atitude normal. – Enzo, o que aconteceu? Ele abriu um dos olhos, me fitou por um tempo antes de ceder e suspirar. Curvou-se, colocando o cotovelo sobre os joelhos, fazendo um ruído de irritação. – Ela me deu mais um daqueles sermões antes de sair de casa, e nós tivemos uma briga feia. – Ela acha que sou louca – completei. – Que eu faço mal pra você, que atraso sua vida, que vou trazer problemas. – Você nunca fez nada de errado. Não acho justo que falem isso – justificou com a voz cansada e monótona, me olhando de lado. Aquilo já não me surpreendia mais. As pessoas acham que eu sou psicótica. Confesso que eu mesma já pensei sobre isso algumas vezes, mas depois me dei conta de que tenho muitas dúvidas na vida para ser louca. Pessoas lúcidas é que vivem de incertezas, os loucos tem certezas demais e por isso vivem em outro mundo. Não que essa seja uma resposta convincente, mas eu me apego nisso e não posso me deixar abalar. – Uma vez minha mãe me disse que um dia Giovanna o convenceria de que é bom demais para mim, então você me trocaria por uma moça loira com próteses de silicone, médica, rica e confiante. Ele riu de forma pesarosa. – Sua mãe sabe que você é melhor do que uma médica, rica e confiante. – Ela sabe que eu sou dez vezes mais inteligente que você. – Você deveria amá-la por isso! Larguei as costas de volta no sofá, irritada pelo rumo do assunto. Odiava que falassem de minha relação com minha mãe. Anna e eu não éramos o modelo ideal de mãe e filha. Eu guardava rancor por ela ter me trancado depois que meu pai se foi. É certo que ela insistiu em ter algum vínculo comigo, mas desistiu rapidamente e fez uma viagem longa assim que voltei para casa. Logo, minha estadia com minha avó paterna me fez ter vontade de morar com ela para sempre, o que acabou mesmo acontecendo. Desde os quatorze anos vivi com Antonietta, que era divorciada de Giuseppe, meu avô. Anna me visitava com certa frequência, pagava algumas de minhas contas com o dinheiro da


herança de meu pai, me deu um carro de presente quando fiz dezoito anos, junto com a senha de minha conta bancária que me permitiria ter uma vida tranquila enquanto cursava a faculdade. – Não quero falar de minha mãe agora – respondi, seca. – Você nunca quer. – E por que insiste, então? Ele se virou em minha direção, penteou uma mexa de meus cabelos com os dedos, ficando perdido em pensamentos logo em seguida. – O que acha de começar a deixá-los naturais agora? A mudança no assunto não me surpreendeu. – Eu acho que não! Eles estão bem e saudáveis assim. – Mas eu tenho saudade da cor que tinham antes... Levantei-me subitamente e encostei-me ao balcão que separava a sala do corredor. – Então me troque por uma médica loira, rica e confiante. – Essa conversa sempre toma rumos assim, não é, Verônica? – retrucou, claramente irritado como de costume. Eu sabia que minhas respostas eram infantis, imaturas mesmo, mas quando dava por mim já estava respondendo torto. Meu ciúme e insegurança com relação a ele às vezes eram irracionais. Era como se, de repente, minha mente se desligasse da razão e eu visse todas as mulheres lindas e confiantes olhando para ele, querendo tomar meu lugar, desejando-o e se oferecendo. E a meu ver todas eram melhores que eu. Depois que a crise passava, eu percebia que tinha sido loucura minha. Eu via numa mulher qualquer que tivesse seios maiores ou um pouco mais postura, uma ameaça por terem o que eu não tinha: autoestima. Estabilidade. Minha terapeuta certa vez me disse que eu poderia ter aquilo tudo. Eu estava curada, só precisava acreditar em mim. Mas o frasco em minha bolsa dizia o oposto. – Me desculpe... – cedi, depois de uns segundos de reflexão. – Você sabe que eu odeio quando você me diz como me sentir, que devo ligar para a Anna, que devo deixar meu cabelo como era. É como se quisesse me consertar... Me sinto quebrada, de novo. Ele se levantou e colocou meu rosto entre suas mãos. – Você não está quebrada, nem nunca esteve. Só acho que se esconde atrás de cabelos negros, pois tem medo de encarar a si mesma. Cansei de dizer isso. – Vamos parar com esse assunto. – Puxei seus óculos do rosto e fitei os lindos olhos por trás deles. – Nós temos coisas mais importantes no presente momento para resolver. Ele me encarou profundamente, apertando os olhos como fazia quando ficava excitado. O assunto morreu ali mesmo e a festa para qual fomos convidados ficou no esquecimento por hora.


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