cartas entre mundos

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ac r t a

e r t n se

s o d mun

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de: J u l i a n a

Linhares



Salvador, Dezembro de 2020

para os leitores :

Aos que aqui me lêem, este livr o de cartas é um convite: entre. Ele convida para um encontro de mundos, a se estruturar a partir das fissura s, das fricções e dos paradoxos gerados na zona de contato entre mundos - possivelmente incomuns. A partir da encruzilhada en tre as histórias e narrativas partilhadas, este livro de cartas convida, também, à criação de um outro mundo, de uma terceira trama, trançada d esde o encontro. É, portanto, neste (não-)lugar, en tre mundos, que eu pretendo entrar, a fim de deixar revelar formas de ver, sentir e perceber o cosmos.



Reúno, aqui, fragmentos. Colo cartas que escrevi e que não foram (e nem necessariamente serão) endereçadas aos seus destinatários. Elas existem entre o silêncio e o som das ondas.


coloco-me à deriva; entre o “entre” que demarca o lugar da fronteira

é que eu não sou daqui e a tensão existente na margem

é que eu também não sou de lá [ .. ].

O que existe entre o silêncio e o som não se limita a presença ou ausência de ruído, compondo-se, também, do que existe dentro e além destas dicotomias. Para além, assim, da luz e sombra, da cheia e da vazante, da causa e do efeito e da lógica determinista e linear acerca das coisas do mundo, a deriva revela que, entre uma onda e outra, existem retornos, enraizamentos, respiros e apnéias. Existe todo um litoral entre o fim de um mar e o recomeço do outro.


o que existe “entre” também convida a entrar., A adentrar, a mergulhar e habitar o não-lugar, a desterritorialização e o não-pertencimento.

a deriva não é silêncio. ouço o som de tudo.

Perfaço-me, assim, entre as marés, as luas, os movimentos, as coexistências e as cocriações que habitam os entre-mundos e, habitando esse não-lugar, essa zona de fricção, percebo fissuras e espirais que, antes, eram obscurecidos por mim mesma.



Caro desconforto, tornamo-nos mais próximos desde meu último recomeço. A mudança para Salvador marcou, em mim, fins de (cômodos) mundos os quais eu pertencia. E marcou também o recomeço que aqui me faz te escrever. Minha desterritorialização convidou-me ao seu encontro, mas foi a fricção causada pelas forças de (re)criação dos meus mundos, aqui, que me fizeram mergulhar em ti. É que meu corpo conta histórias de um passado que, ainda, conforma presentes; E eu habito um corpo branco na cidade de maior população negra do país. e, ainda, que sangram (o corpo e a cidade). A branquitude, que é o meu lugar nesta fala, subscreve vidas não-brancas num lugar de precariedade, ao seguir conferindo desigualmente, com base em um sistema de raças, condições de amparo, cuidado, suporte e infraestruturas aos sujeitos no mundo.


Historicamente foram projetados e induzidos aos corpos nãobrancos atributos de perigo, indignidade, autorresponsabilidade e desvalor, destituindo suas possibilidades de existência, prosperidade e triunfo. Isto, a fim de manter confortáveis privilégios que seguiram pautando políticas de vida sob normativas racistas e etnocêntricas. Pertenço, portanto, à uma ancestralidade na qual as bases de sua estruturação assentam-se em colonialismos e violências de todas as escalas, sendo torturante (não como para os que foram e são torturados pela minha raça) e incômodo (sabendo que este incômodo não sinto na pele) ocupar este lugar. Portanto, entender-me como uma mulher racializada, neste lugar, é um apelo e é uma dívida. E, mesmo sabendo que você não mata a mim e aos meus, diariamente, encontro-me contigo, caro desconforto.


Venho encarando o silêncio que estes encontros me causam. Este silêncio - necessário -, pode inverter lugares e atualizarem as histórias, possibilitando que outros corpos falem, recontem e recriem memórias e narrativas antes ditas de apenas de um (o meu) lugar. Porém, também, este silêncio (que me cala) é um fiel guardião dos privilégios, como bem diz Maria Aparecida Bento. E um silêncio assim, calado, caminha junto ao conforto da manutenção dos lugares e dos privilégios. Portanto, afogo-me em ti, caro desconforto, vislumbrando, ainda que no horizonte, uma (possível?) reparação histórica. Entre respiros e apnéias, voz diz um corpo branco em Salvador-Ba



Em silêncio, a busca é por romper silêncios. neste processo,

encontro-me com as histórias que meu corpo branco conta sobre mim e sobre o mundo e, a quem possa interessar, convido a escrita de cartas para mim, entregando-me à vulnerabilidade - íntima de tantos outros corpos - de ouvir as histórias, injúrias e enunciados que o meu corpo conta. assim, do desconforto que atira e engatilha impulsos, ensaios, incertezas e centelhas., arrisco e experimento num mundo racista, a fim de retirar meu silêncio do esconderijo, e entrego-me a movimentar-me

(mas só desde que arrisco-me a existir nesta descomodidade.)


carta para Marisol de La Cadena

1

Minhas inquietações são acarinhadas quando leio suas palavras. Elas me reforçam a reflexão acerca das limitadas formas pelas quais entendemos e imaginamos o mundo, na medida em que partimos de uma única visão e percepção da vida, que só configura associações a partir de similaritudes e equivalências. Há nuances e dimensões que não se apresentam sob uma única cosmopercepção de mundo e, como você mesma diz, as palavras podem referir-se a coisas diferentes, de acordo com o mundo pela qual ela foi proferida. E aceito seu convite para exercitar e aprender a captar para além do que minha própria prática e política de pensamento interpreta. Todas as verdades podem (e são) verdadeiras. Estando nossa percepção de nós e do mundo em constante construção, a exposição de outras narrativas e histórias que expandam os limites da nossa prévia e limitada percepção


é parte do processo. Escutar, ver e perceber outros mundos, distintos e incomuns., recria e transforma conceitos, reprojeta perspectivas e indica outras formas de agir e sentir. E é quando mundos que não são absolutamente similares ou confluentes encontram-se é que abrem espaço para o surgimento de alianças inesperadas, de "incomunidades", como você as descreve. Estas, configuradas a partir do que excede o comum, o idêntico e o familiar, estabelem-se desde suas divergências, fricções e dissensos e caminham em direção ao comum, não sendo este uma coisa só. Abarcando tantas das minhas inquietações, Marisol , você me desperta para a potência do encontro e da escuta. Também, trança os descontornos e as diferenças que, não em busca de encontrar suas equivalências, convida à criação de terceiras tramas - entre mundos, E, assim, por fim, te agradeço pelo seu olhar gentil. Ele inspira o meu. 1

DE LA CADENA, Marisol. Natureza incomum: histórias do antropo-cego. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 69, p. 95-117, abr. 2018



Ouvir as águas: elas ensinam.. e eu devia ter me lembrado das minhas.. .

As águas, quando encontram-se com uma pedra, elas mobilizam forças que, quando não escapam ou fissuram a pedra, tensionam e movimentam todo o fluxo de um rio. e, Nesse acontecimento, a pedra não deixa de existir, nem torna-se neutra perante a força que a fricciona. Nem mesmo este encontro narra ou pretende compor a natureza dos corpos dágua, porém movimenta uma paisagem - que só pode ser vista se olhada de forma ampliada.


Querida Salvador, Entre escassas condições de vida e moradia que seguem acometendo sua atual configuração, as práticas de vida cotidianas que são enunciadas pelos soteropolitanos, com toda a certeza, excedem a racionalidade das narrativas anteriores acerca deste lugar e tensionam as lineares interpretações acerca do seu passado, tão presente. Nesta espiral, é impossível narrar sua história de um único lugar e sob a perspectiva única da escravização e da sobrevivência. É preciso ver com olhos de gente. E, para além dos olhos, as gentes. Não para sobrepor a dimensão da violência e da desigualdade, que são cotidianamente afirmadas e lembradas no viver cotidiano dessa cidade, de maior população negra de um país racista.


Mas para não deixar de perceber a vida que pulsa, cria e impulsiona para além e apesar da violação de direitos de existência, da precariedade politicamente imposta e das mazelas conferidas aos corpos e espaços negros nesta sua espacialidade. Aqui, há resistência, mas, também, há vida. Há criação, há transcriação, a vida que não só escapa, mas alarga, e produz cidades e mundos. dentro e além dessa cidade conformada para ser de São Salvador. [ .. ].

Afinal, porque não teria? e, ao final, como fazer isso?




carta de uma arquiteta e urbanista Enquanto arquiteta e urbanista inquieto-me acerca das formas pelas quais vemos e agimos nas cidades (brasileiras, racistas, classitas e n.eoliberalizadas) Coletivamente, somos informados por uma perspectiva única de vida, de moradia e de cidade que, reforçada e disciplinada por normativas brancas, elitistas e etnocêntricas, próprias do regime político que nos é imposto, nos induzindo a perceber e atuar com base em uma narrativa homogênea e hegemônica sobre as formas de vida, moradia e de produção de mundos. Fudamentamo-nos em parâmetros e categorias que dizem-se neutros, universais e mínimos e reproduzimos discursos e visões de mundo vinculadas à noções uníssonas de qualidade, dignidade e adequação. Chimamanda Adichie (2009) argumenta que o perigo das histórias únicas é que elas criam estereótipos, e estereótipos são incompletos, servindo a determinados sujeitos. E estas noções, que sinalizam "transparência" por trás de modelos universais,


produzem efeitos nas práticas urbanas e nos discursos acerca destas, programando uma noção de ideal (de uma classe), de paraíso (herdada de uma perspectiva espiritual), de um modo de vida digno (para uma determinada civilização) e de moradia adequada (para um sujeito universal). Fabulados por forças que servem ao sistema de dominação racista, colonial e capitalísta, escondem também silêncios, protegem confortos, exaltam diferenças, afim de conchavar, nelas, desigualdade, Assim, provoco (a mim mesma e ao campo) sobre despirnos dos padrões e chaves de leitura apriorísticas e uníssonas acerca do viver e morar na cidade, permitindo o alargamento desta perspectiva. e o que escapa a essas totalizações? Seria, no encontro com estes escapes e fugitividades, como e por onde podemos estabelecer nossa práticas, a fim de configurar e deixar revelar outras cosmopercepções que possibilitem reparações e rompimentos com as dinâmicas hegemônicas que separam o "eu" e o "outro"?


O encontro não é um ponto, ele é a vírgula que conecta; é a relação entre as diferentes frases, é a textura que compõe a trama; e é também o respiro, nesta relação de coisas e forças. é a pausa. Certamente existe muito entre o silêncio e tudo aquilo que não é palavra. Certamente existem muitos mundos no encontro entremundos. e certamente eles não são, nem apenas seu fundamento, nem mesmo apenas a amálgama.

‘ Há nesse verbo“‘compreender’’ o movimento das mãos que tomam o entorno e o trazem a si. Um verbo de fechamento, quiçá de apropriação. Prefiramos a ele o gesto do dar-com, que cria uma abertura na totalidade‘‘.

de: Édouard Glissant 2 Pela opacidade. Trad. Keila Prado Costa e Henrique de Toledo Groke. Revista Criação & Crítica, (1), 2008, pp. 53-55. [original no livro Poétique de la relation, 1990].

2



para os que se permitem afetar - pelas suas e pelas minhas experiências. E aos que buscam, para além de reafirmar diferenças ou buscar confluências, desenhar portas para construções coletivas de mundos:

Alguma força me faz acreditar nas cartas como caminhos possíveis para o encontro e construção de mundos. Talvez porque mobilize afetos, tempos, lugares e respiros. Da intimidade da minha casa, de onde as escrevo, mobilizo sentimentos pelos quais me deixo afetar e abro-me aos que ainda não me tocaram. Na mesma medida, vislumbro que o meu afeto também afete. Não estou em busca de criar conceitos nem paradigmas. Estou interessada no que acontece quando meu mundo encontra o seu - através desta ancestral ferramenta de comunicação, de encontro e de ficção.. Entre as cartas que irão e as que, por sorte, virão, encaro e fricciono verdades, perspectivas e crenças que, nutridas por raízes situadas e circunscritas em determinadas essências, revelam ambiguidades, dissensos, desvios e complexidades


que traçam caminhos comuns. Assim, do meu mundo, te escrevo. sem, ao menos, conhecer o seu (mundo), mas sabendo que, provavelmente, vivemos diferenças, encaramos distintas impossibilidades e talvez, daí, de onde você vê o mundo, as palavras, sentidos e razões tenham outras cores, nuances e significados. Assim, este espaço entre cartas (que não é um lugar) permite a fala e a escuta, movimenta linguagens e perspectivas que, possivelmente, transformam e constrem outras percepções de si e do todo. É que sinto que existe bem mais do que a diferença entre os opostos, entre a sombra e a luz, o preto e o branco e o dentro e o fora - e por isso aposto na potência instauradora dos encontros entre-mundos. Pois eles não se resumem à diferença de "um" ou do "outro", nem mesmo se configuram como a amálgama de seu agrupamento, mas perseveram como uma terceira trama, trançada a partir e desde o acontecimento do encontro - em constante processo de relação.



Desde as contradições, complexidades e sentimentos mobilizados em imagens, narrativas e imaginários descritos nos encontros entre incomuns, são despensados conceitos, histórias e práticas na cidade.

. .como no encontro das facetas na fita de moebius


Lucas, os infinitos desafios, descontornos e convergências impossíveis que atravessaram no sso encontro fizeram-me acreditar na po tência das incomunidades. O encontro entre o seu silêncio e a minha utopia (de quem não sentia na pe le as dores das suas impossibilidades) gerou uma faísca, uma centelha que, partindo da im aginação de algo que, talvez, nunca foi e nem seria possível, fissurou infinitos. E, hoje, te ver sentado na calçada, na porta do mundo, é a teoria que por tanto tempo busquei construir com palavras.


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