Revista mente cérebro especial 50

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EDIÇÃOESPECIAL

mente cérebro SCIENTIFIC AMERICAN

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p s i c o l o g i a • psicanálise • neurociência segmento

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O Q U E H A D EN O V O S O B R E SEU

REGENERAÇÃO NEURAL • PLASTICIDADE • ARKINSON E ALZHEIMER • SONO • BIOLOGIA DOS DESAFIOS


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segmento


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carta da editora

Bem-vindo ao futuro

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á mais de 2.300 anos, Aristóteles teria escrito a famosa frase: "O todo é maior do que a simples soma de suas partes". Essa ideia interessante - amplamente utilizada pela Gestalt - pode ser legitimamente aplicada a uma das mais sofisticadas áreas do conhecimento: a neurociência. Nas últimas duas décadas, a tecnologia transformou a nossa compreensão do mundo - e também do cérebro, esse complexo universo em miniatura, ainda tão misterioso. Alguns cientistas defendem até mesmo que exista um paralelo entre processos neurológicos e a massa cósmica. Dentro de nossas cabeças, no interior de milhões de células nervosas que compõem o sistema cerebral, as informações se propagam de forma extremamente rápida e eficiente, numa espécie de sinfonia microscópica que permite desde o controle dos batimentos cardíacos até fazer planos para as próximas férias ou ler este texto. | O acesso fácil a séculos de conhecii £ mento permite que novas ideias se aglu| tinem a uma velocidade surpreendente a e conexões até há pouco tempo impeng

sadas sejam estabelecidas. Para cientistas que estudam o funcionamento cerebral, essas possibilidades parecem ainda mais evidentes. Nesse sentido, não seria exagero dizer que os avanços tecnológicos estão remodelando nossa forma de pensar sobre nosso potencial. Nesta edição especial, segundo volume de Neurociência - O que há de novo sobre seu cérebro, a seleção de artigos de especialistas e pesquisadores dessa fascinante área do conhecimento compõe um painel de alguns dos principais avanços nesse campo e suas repercussões disso. Hoje, técnicas que até recentemente seriam consideradas obras de ficção já permitem novas compreensões. No nível celular, por exemplo, já é possível saber que neurónios se atualizam, gerando uma espécie de coleção de experiências vivas que favorecem o aprendizado. Em relação à memória, alguns trabalhos sugerem que as recordações são armazenadas em diferentes regiões do cérebro, de acordo com a "idade" de cada uma delas. As repercussões desse conhecimento podem - e devem - aproximar-se do

cotidiano das pessoas e as informações obtidas têm potencial para ajudar a melhorar a qualidade de vida de homens, mulheres e crianças em todo o planeta. Um exemplo? Algo bem simples: ao contrário do que muitos já disseram, sabemos atualmente que dormir não é perda de tempo, pelo contrário. Tirar uma soneca "afrouxa" as conexões neurais que criam sustentação para fixar conhecimento. Outra linha de estudo apresentou recentemente uma nova compreensão da barreira hematoencefálica, passando a considerar essa proteção do cérebro um órgão vivo, passível de alterações, o que deve favorecer o tratamento de doenças como câncer cerebral, esclerose múltipla, Parkinson e Alzheimer. Naturalmente, há ainda muito a ser revelado nesse campo tão vasto, mas parece inegável que estamos em um caminho irreversível rumo ao futuro. E isso pode ser muito bom. Boa leitura.

GLÁUCIA L E A L ,

editora glaucialeal@editorasegmento.com.br


sumario

O que h á de novo sobre s e u cérebro 2 CAPA: ARTE DE JOÃO SIMÕES SOBRE IMAGEM DE LISA A L I S A / S H U T T E R S T O C K

06 De olho nos neurónios p o r Christoph Koch

A observação do cérebro em funcionamento já é uma realidade; descobertas recentes indicam que temos células específicas para reconhecer lugares e pessoas

10 A geografia dentro da cabeça p o r Ed Lein e Michael J. Hawrylycz

Trabalho inédito revela profundas diferenças neurológicas entre o cérebro de camundongos e o de humanos, o que levanta questões sobre o uso generalizado desses animais como "substitutos" experimentais

18 A energia escura p o r Marcus E. Raichle

Parte da atividade neural ocorre em circuitos não relacionados a eventos externos; cientistas identificam esse processo com a massa invisível do universo

26 Onde moram as lembranças p o r Moheb Costandi

Estudo sugere que as recordações são armazenadas em diferentes regiões do cérebro, de acordo com a "idade" de cada memória

mente c é r e b r o

Presidente: Edimilson Cardial Diretoria: Carolina Martinez, Mareio Cardial, Miriam Cordeiro, Rita Martinez e Rubem Barros Diretor editorial: Rubem Barros Editora-chefe: Gláucia Leal Subeditora: Fernanda Teixeira Ribeiro Editor de arte: João Marcelo Simões

Estagiária: Jullyanna Salles (redação) Colaboradores: Ana Salles (arte), Edna Adorno, Maria Stella Valli e Ricardo Jensen (revisão),

Processamento de imagem: Paulo Cesar Salgado Produção gráfica: Sidney Luiz dos Santos PCP: Isabela Elias PUBLICIDADE Gerente: Daisy Fernandes daisy@editorasegmento.com.br Executivo de negócios: Almir Lopes almir@editorasegmento.com.br Escritórios regionais: Brasília - Sónia Brandão - (61) 3225-0944/ 3321-4304/ 9973-4304 - sonia@ editorasegmento.com.br Paraná - Marisa Oliveira - (41) 3027-8490/9267-2307 -parana@editorasegmento.com.br TECNOLOGIA Gerente: Paulo Cordeiro Analista programador: Diego de Andrade Analista de suporte: Nildo Silva

OS ARTIGOS PUBLICADOS NESTA EDIÇÃO SÃO DE RESPONSABILIDADE DOS AUTORES E NÃO EXPRESSAM, NECESSARIAMENTE, A OPINIÃO DOS EDITORES. 4

I mentecérebro I Neurociência 2


30 A viagem pelos neurónios por Silvio Rizzoli, Benjamin Wilhelm e William Zhang

62 Reparos secretos durante o sono por Jason Castro Ao contrário do que muitos imaginam, dormir não é perda de tempo, aliás, pelo contrário. Tirar uma soneca "afrouxa" as conexões neurais que criam sustentação para fixar conhecimento

Dentro das células nervosas as informações se propagam de forma misteriosa; esse universo microscópico permite desde o controle dos batimentos cardíacos até a leitura deste texto, por exemplo

36 O cérebro regenerado

68 O ataque invisível

por Lydia Denworth

por Christof Koch

Descobertas recentes sobre células-tronco impulsionam pesquisas a respeito do uso promissor desse material para tratar esclerose, demência, lesões da medula e câncer

44 Driblando obstáculos

Alguns protozoários infectam hospedeiros, tanto humanos quanto outros animais, moldando seu comportamento

74 Aula de anatomia

por Jeneen Interlandi

por Andreas Jahn e Wibke Larink

Uma nova compreensão da barreira hematoencefálica como órgão vivo e mutável pode revolucionar o tratamento de doenças como câncer cerebral, esclerose múltipla, Parkinson e Alzheimer

52 Interruptores cerebrais

Desde a antiguidade, cientistas desenharam o cérebro; vários eram excelentes observadores detalhistas e também artistas. Suas obras, às vezes bizarras, resultam em uma viagem por imagens traçadas ao longo de cinco séculos

82 A biologia dos desafios

por Eric J. Nestler

Novas pesquisas sobre epigenética podem contribuir para melhor compreensão e tratamento de doenças mentais e dependência química; proposta é descobrir como "ligar" e "desligar" os genes sem alterá-los

MARKETING/WEB Diretora: Carolina Martinez Gerente: Fabiana Gama Analista de marketing digital: Amanda Noronha Analista de marketing: Leonardo Bussolo Desenvolvedor: Jonatas Moraes Brito Analistas web: Lucas Carlos Lacerda e Lucas Alberto da Silva Coordenador de criação e designer: Gabriel Andrade EVENTOS Coordenadora: Priscilla Rodrigues Assistente: Josiane Rodrigues OPERAÇÕES Diretora: Miriam Cordeiro Gerente de assinaturas: Beatriz Zagoto Gerente de e-commerce: Mariana Monné Vendas avulsas: Cinthya Muller Eventos assinaturas: Ana Lúcia Souza e Camila Leal Vendas governo: Cláudia Santos Analista de marketing circulação: Gabriela Froes Vendas telemarketing ativo: Cleide Orlandoni Contas a pagar: Simone Melo Faturamento: Weslley Patrik Recursos humanos: Cláudia Barbosa

Compreender as bases neurais da resiliência pode ajudar pesquisadores e clínicos a criar intervenções psicológicas e farmacológicas para melhorar a forma como as pessoas lidam com as adversidades

Planejamento: Roseli Santos Contas a receber: Viviane Carrapato Fiscal: Fernando Carvalho Mente e Cérebro é uma publicação mensal da Editora Segmento com conteúdo estrangeiro fornecido por publicações sob licença de Scientifíc American.

Gehirng£eis Spektrum der Wissenschaft Verlagsgesellschaft, Slevogtstr. 3-5 69126 Heidelberg, Alemanha Editor-chefe: Carsten Kõnneker Gerentes editoriais: Hartwig Hanser e Gerhard Trageser Diretores-gerentes: Markus Bossle e Thomas Bleck Fale com a redação: redacaomec@editorasegmento.com.br CENTRAL DE ATENDIMENTO AO LEITOR De 2 a 6 feira, das 8h às 20h, sábado das 9h às 15h (exceto feriado) São Paulo (11) 3512-9484 Rio de Janeiro (21) 4062-7623 e-mail: atendimento@editorasegmento.com.br a

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Neurociência 2 n° 50, junho/julho 2015 ISSN 1807943-1. Distribuição nacional: DINAP S A Rua Kenkiti Shimomoto, 1678. IMPRESSÃO: Edigráfica

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De olho nos neurónios A O B S E R V A Ç Ã O D O C É R E B R O E M F U N C I O N A M E N T O JÁ É U M A R E A L I D A D E ;

DESCOBERTAS

R E C E N T E S I N D I C A M , POR E X E M P L O , Q U E T E M O S C É L U L A S N E U R A I S N O

HIPOCAMPO

ESPECÍFICAS PARA R E C O N H E C E R D E T E R M I N A D O S LUGARES, OBJETOS E PESSOAS

por Christoph Koch

desejo de entender e acompanhar a dinâmica ^ d o s próprios pensamentos é antigo. Na ficção, M o "cerebroscópio" é um dispositivo que permiti^ ^ I Í I ^ ^ ria a façanha de fazer isso em tempo real ou, no máximo, com atraso de frações de segundo. Uma curiosa variação dessa engenhoca seria o "autocerebroscópio", equipamento que possibilita às pessoas acompanhar o próprio cérebro em ação, observando a atividade bioelétrica transitória de todas as células neurais - ou seja, o trabalho da própria mente. Essa ideia, porém, pode parecer insana, até porque, sabemos, a observação é capaz de modificar o objeto sobre o qual nos debruçamos (seja uma célula, um indivíduo, um órgão e t c ) . A neurociência, no entanto, respondeu a essa questão mais rápido do que se esperava e, por estranho que pareça, essa possibilidade de observar a si mesmo desse ângulo não está tão distante da realidade. m

O AUTOR C H R I S T O P H K O C H é professor de biologia cognitiva e comportamental do Instituto de Tecnologia da Califórnia. 6

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O neurocirurgião Itzhak Fried, pesquisador da Faculdade de Medicina David Geffen, da Universidade da Califórnia, e seus colegas aperfeiçoaram uma técnica para pacientes de epilepsia. Ela consiste na aplicação, na cabeça, de eletrodos


permitindo a inserção de fios minúsculos diretamente na massa cinzenta. Utilizando técnicas sofisticadas de eletrônica e avançados algoritmos de detecção de sinais, esses eletrodos em miniatura detectam os fracos e rápidos sinais emitidos por um grupo de no máximo 50 neurónios existentes no fundo do cérebro e permitem que o próprio paciente detecte indícios de aproximação de uma crise epilética. Mas, antes, cabe um resumo dos conhecimentos anteriores. As descargas neurais hipersincronizadas que caracterizam os chamados surtos epiléticos são transtornos neurológicos comuns que podem, em alguns casos, afetar o cérebro todo. Atualmente, esses espasmos cerebrais episódicos e recorrentes costumam ser controlados com drogas que reduzem a excitação e promovem a inibição de circuitos subjacentes. No entanto, a medicação nem sempre funciona. Quando uma anormalidade localizada - como a cicatriz de um tecido ou a perda de conexões do desenvolvimento - é suspeita de disparar a crise, os neurocirurgiões podem optar por remover o tecido que provocou o episódio. Para diminuir efeitos colaterais, é fundamental determi-

nar exatamente o local onde o surto se origina; testes neuropsicológicos, escaneamento cerebral (fTvIRI) eeletroencefalogramas (EEG) ajudam a identificar esse ponto. Mas quando nenhuma patologia estrutural é detectada externamente, é possível recorrer a procedimentos invasivos. Nesses casos, o neurocirurgião insere dez ou mais eletrodos no tecido mole do cérebro, por meio de pequenos orifícios perfurados no crânio, que ficam ali implantados por uma semana ou mais. Nesse período, enquanto os sinais conduzidos pela fiação são continuamente monitorados, o paciente permanece no hospital. Quando um surto ocorre, os médicos especificam a origem da atividade cerebral anómala. A posterior remoção ou destruição da parte agressora de tecido reduz o número de surtos - e às vezes os elimina totalmente. Itzhak Fried é um dos pioneiros dessa prática que requer grande perícia. O especialista coordena uma equipe que aperfeiçoou uma variação do monitoramento da epilepsia na qual os eletrodos são ocos. Sob sua supervisão, um grupo do meu laboratório, formado pelos pesquisadores Rodrigo Quian Quiroga, Gabriel Kreiman e Leila Reddy, descobriu


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G E N T E FAMOSA: uma espécie de "substrato celular" do ideal platónico de jennifer Aniston nos permite reconhecer a atriz, ainda que ela esteja com um novo penteado e roupas c o m as quais não a vimos antes

8 I mentecérebro I Neurociência 2

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um extraordinário conjunto de neurónios na selva do lobo temporal medial, fonte de muitos surtos epiléticos. Essa região cerebral profunda, que inclui o hipocampo, transforma percepções sensoriais, principalmente visuais, em memórias.

Contamos com a participação de vários pacientes epiléticos. Enquanto aguardavam o surto WÊÈ mostramos a eles cerca de 100 I » imagens de pessoas, animais, edifícios e objetos diversos, sendo algumas das imagens bem familiares e consideradas afetivamente significativas para os participantes do estudo. Esperávamos que uma ou mais dessas fotos pudesse induzir alguns dos neurónios monitorados a disparar uma explosão de "potenciais de ação". A maior parte do tempo, no entanto, os pesquisadores ficaram de mãos vazias, embora, às vezes, tivessem encontrado neurónios que respondessem a categorias de objetos, como animais, cenas externas ou rostos variados. Mas novos neurónios foram muito mais destacados. Uma dessas células localizadas no hipocampo respondeu somente a fotos da atriz Jennifer Aniston, mas não às de outras mulheres loiras ou atrizes em geral; além disso, foram ativadas respostas a sete fotos muito diferentes de Jennifer. Encontramos neurónios que reagiram a imagens de Madre Teresa, a animaizinhos de estimação e ao teorema de Pitágoras (a2 + b2 = c2). Essas células e outras com funções similares - pois por alguma razão existem provavelmente milhares delas no lobo temporal medial - codificam um conceito, como Jennifer Aniston, independentemente de a pessoa ver sua foto ou ouvir seu nome. Imagine-as como o substrato celular do ideal platónico de Jennifer Aniston. Não importa se a atriz está sentada ou correndo, se seu cabelo está preso ou solto, mais longo ou com um novo corte; desde que a pessoa a reconheça, seus neurónios são ativados.

Algo, entretanto, é certo: ninguém nasce com células seletivas para Jennifer Aniston. Como um artista pacientemente esculpindo a Vénus de Milo ou a Pietà em blocos de mármore, os algoritmos da aprendizagem do cérebro entalham campos sinápticos nos quais despontam os neurónios conceituais. Toda vez que encontra determinada pessoa ou objeto, um padrão similar de neurónios salientes é gerado em regiões corticais específicas. As redes do lobo temporal medial reconhecem esses padrões repetitivos e dedicam a eles determinados neurónios. Ou seja: você possui células neurais que codificam membros da família, amigos, colegas de trabalho e gente famosa que vê na televisão, seu laptop, o logotipo da Mente e Cérebro, aquele quadro que você aprecia muito e inúmeros outros seres e objetos. Por outro lado, não possuímos células conceituais para coisas ou pessoas que encontramos raramente - como a garçonete que lhe serviu um cafezinho na semana retrasada naquela padaria aonde você raramente vai. Mas, se posteriormente vocês se encontrarem, conversarem longamente e ela se tornar sua amiga, passando a fazer parte de sua vida, as redes do lobo temporal medial reconhecerão que o mesmo padrão ocorreu repetidamente e deverá enredar neurónios encarregados de representar a garçonete. Células conceituais demonstram claramente que a especificidade da experiência consciente tem uma contrapartida direta no nível celular. Digamos que você esteja recordando a cena emblemática de Marilyn Monroe sobre a grade do metro tentando impedir que o vento levantasse sua saia. Essa percepção consciente será produzida por uma coalizão de certo número de neurónios, talvez de centenas ou milhares deles - mas não de bilhões, como se pensava há até alguns anos.

"VER" CONCEITOS O neurocientista Moran Cerf, Fried e colegas do meu laboratório juntaram várias "células de conceito" numa tela externa para que pudessem visualizar os pensamentos de uma paciente. Embora revolucionária e bastante difícil de implementar, a ideia é aparentemente simples. Ela exigiu três anos de esforços, principalmente por parte de Cerf, que recrutou para sua empreitada um especialista em segurança de computadores e um diretor de cinema entre os alunos forma-


dos pelo Instituto de Tecnologia da Califórnia. Ele desenvolveu várias experiências e, em uma delas, registrou a ativação de um neurônio de uma paciente, em resposta a imagens do ator Josh Brolin (que a mulher conhecia de seu filme favorito, Osgoonies) e outro neurônio, acionado em resposta à cena já mencionada de Marilyn Monroe. A paciente olhava para o monitor onde eram exibidas essas duas imagens superpostas com a atividade das duas células e controlava até onde conseguia ver Brolin ou Marilyn na imagem híbrida. Sempre que a voluntária concentrava seus pensamentos no ator, o neurônio associado era ativado com mais intensidade. Cerf montou o feedback de tal forma que quanto mais essa célula era acionada em comparação à outra, mais visível Brolin se tornava e mais a imagem de Marilyn enfraquecia - e vice-versa. A imagem na tela continuou mudando até que somente ele ou ela permanecia visível e só então o teste terminava. A paciente adorou o exercício porque podia controlar o filme só com o pensamento. Quando ela se concentrava na loira sensual, o neurônio associado aumentava a taxa de ativação e as células para o "conceito competitivo", no caso Brolin, diminuíam sua atividade. Enquanto isso, a grande maioria dos neurónios permanecia inalterada. É como se houvesse duas pessoas envolvidas

Na ficção, o cerebroscópio é um aparelho capaz de revelar pensamentos; na vida real cientistas se empenham em encontrar meios de rastrear o que passa pela cabeça das pessoas

nesse experi mento, lembrando a forma como o titereiro Craig ocupava a mente do ator John Malkovich no filme Quero ser John Malkovich, de 1999. Uma é a mente da paciente, instruindo seu cérebro a pensar em Marilyn. A outra é a que está agindo contra a vontade consciente - isto é, as células neurais do lobo temporal medial que regulam os correspondentes aumento e redução de atividade. Mas ambas são parte do mesmo cérebro. Então quem controla quem? Quem é o titereiro e quem é o títere? Toda a complexidade das interações entre mente e corpo é evidenciada aqui. A paciente não sente uma coceira toda vez que o neurônio de Marilyn é ativado; ela não pensa: "inibição, inibição, inibição", para afastara imagem de Brolin da tela. Na verdade, a mulher não tem absolutamente ideia alguma do que se passa em sua cabeça. No entanto, pensar em Marilyn se traduz num padrão específico de atividade neural. Os eventos na área dos fenómenos de sua mente têm paralelo concreto nos neurónios. E os abalos mentais e cerebrais ocorrem simultaneamente. ®

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M A I S

A filosofia da percepção. Walter J . F r e e m a n . E s p e c i a l Mente e Cérebro n° 4 6 , C o n s c i ê n c i a , p á g s . 26-36, 2 0 1 4 . C o n s c i o u s n e s s s c i e n c e : real progress and lingering misconceptions. N e d B l o c k et

al, Trenas in cognitive scien-

ces, p á g s . 5 5 6 - 5 5 7 , 2 0 1 4 .

A P E R C E P Ç Ã O C O N S C I E N T E da c o n h e c i d a cena de Marilyn Monroe sobre a grade do metro tentando impedir que o vento levantasse s u a saia é produzida pela coalizão de neurónios

C o n s c i o u s n e s s : confessions o f a romantic reductionist. Christoph Koch. Roberts Publishers, 2 0 1 1 .

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A geografia dentro da cabeça C I E N T I S T A S DE VÁRIAS PARTES DO PLANETA SE E M P E N H A M EM C R I A R "ATLAS" D O C É R E B R O C O M B A S E N O M A P E A M E N T O C O M P L E T O DA A T I V I D A D E D E T O D O S O S G E N E S C E R E B R A I S DE SEIS A D U L T O S . ESSE T R A B A L H O I N É D I T O REVELA

PROFUNDAS

D I F E R E N Ç A S N E U R O L Ó G I C A S E N T R E O C É R E B R O DE C A M U N D O N G O S E O DE H U M A N O S , O QUE LEVANTA QUESTÕES SOBRE O USO G E N E R A L I Z A D O DESSES ANIMAIS COMO " S U B S T I T U T O S " E X P E R I M E N T A I S DE PESSOAS

p o r E d L e i n e M i c h a e l J. H a w r y l y c z

N OS AUTORES E D L E I N é neurobiólogo, e M I C H A E L j . H A W R Y L Y C Z , matemático do Allen Institute for Brain Science, e m Seattle, juntos, dirigem a concepção e a análise de projetos do atlas do cérebro de c a m u n d o n g o s , de m a c a c o s resos e de h u m a n o s . 10

I mentecérebro I Neurociência 2

o momento em que você lê estas palavras, seus olhos passam pela página coletando padrões aos quais sua mente atribui significado. Enquanto isso, seu coração se contrai e relaxa, o diafragma sobe e desce, controlando a respiração, os músculos das costas se tensionam para manter a postura e milhares de outros aspectos básicos da vida consciente, subconsciente e inconsciente continuam presentes. O suporte físico para toda essa atividade são aproximadamente 86 bilhões de neurónios e número equivalente de células de apoio no interior do crânio. Para neurocientistas, mesmo o ato de ler uma revista é uma façanha maravilhosa - e, talvez, explicite um problema complexo da ciência: ainda não conseguimos explicar completamente como o cérebro humano atua e por que um macaco não é capaz de raciocinar como nós. Neurocientistas vêm estudando intensamente o funcionamento cerebral há mais de um século, embora às vezes ainda se sintam como exploradores que desembarcaram em um continente recém-descoberto, onde os primeiros a chegar estabeleceram os limites e contornos gerais. No início


da primeira década do século passado, o cientista alemão Korbinian Brodmann fatiou cérebros humanos e os colocou no microscópio para examinar o córtex cerebral - as camadas externas da massa cinzenta, que lidam principalmente com percepção, pensamento e memória. Ele dividiu então o córtex em dezenas de regiões com base na aparência das células e na área que ocupavam. Aos poucos se formou a ideia de que, em cada região, cada aglomerado de células de um tipo particular opera um conjunto específico de atribuições. Alguns neurocientistas contestaram essa teoria de que a função é dividida por localização, mas o modelo de divisão retornou com novas ferramentas, principalmente a ressonância magnética funcional (flVIRI), capaz de registrar como partes do cérebro "se iluminam" (consomem oxigénio) quando as pessoas lêem, sonham ou até mesmo mentem. Cientistas têm explorado essa tecnologia para construir "mapas" que associam as imagens obtidas por essas ferramentas ao comportamento humano no mundo real. Uma escola de pensamento mais recente, no entanto, considera que o cérebro é mais parecido com uma rede social

informal que com uma máquina com rígida divisão de trabalho (a comparação com uma máquina, aliás, está bastante desatualizada). Na nova abordagem as conexões que um neurônio faz com outras células cerebrais determinam seu comportamento muito mais que a posição, e certa região é influenciada fortemente por experiências passadas e atuais. Se esse conceito estiver correto, podemos esperar observar sobreposição de atividade entre os locais específicos envolvidos com as responsabilidades do cérebro. Testar essa hipótese será um desafio complexo: circuitos cerebrais são difíceis de identificar, e os bilhões de neurónios em um cérebro humano conectam talvez 100 trilhões de ligações ou sinapses, mas há pesquisas em andamento para desenvolver novas ferramentas necessárias para a tarefa (veja quadro na pág 76). Em 2003, quando o Projeto Genoma Humano publicou a sequência de letras do código do DNA, nós e nossos colegas do Allen Institute for Brain Science, em Seattle, vimos uma oportunidade para usar o novo catálogo de 20 mil ou mais genes humanos e melhorar sistemas de escaneamento para examinar o cérebro sob nova perspectiva. Percebemos que, 11


O CONCEITO DE Q U E o hemisfério esquerdo é especializado e m f u n ç õ e s como matemática e o lado direito contribui mais para o p e n s a m e n t o criativo pode estar bem estabelecido na cultura popular, m a s não há evidência disso e m modelos genéticos

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combinando as ferramentas da genética com as da neurociência clássica, poderíamos mergulhar profundamente na selva inexplorada: seria possível mapear partes do genoma ativas e dormentes em todo o volume cerebral. Esperávamos que esse mapa exibisse um conjunto muito diferente de genes ativados, digamos, entre a parte do cérebro que lida com a audição e partes que controlam o tato, o movimento ou o raciocínio. A meta - que levamos quase uma década para completar - era produzir atlas tridimensionais estabelecendo o local onde genes individuais operam no cérebro sadio de humanos e de camundongos. Atualmente trabalhamos para incluir macacos na pesquisa. Esses mapas moleculares sugerem limiares inestimáveis para o que é "normal", ou pelo menos típico - de forma semelhante à sequência de DNA de referência produzida pelo Projeto Genoma Humano. Esperamos que esse atlas acelere o progresso da neurociência e da descoberta de medicamentos, permitindo que cientistas explorem sua curiosidade fundamental sobre a estrutura da mente. Essas visões sobre o funcionamento interno do cérebro humano e de roedores já produziram algumas surpresas. Uma delas está ligada ao fato de que, embora cada pessoa seja singular, os padrões de atividade genética são muito semelhantes em todos os cérebros humanos. Apesar de nossas diferenças, compartilhamos uma geografia genética comum em nosso cérebro. Além disso não encontramos grandes diferenças em ações de genes entre o lado esquerdo e o lado direito do cérebro. Embora camundongos

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sejam usados na maioria das pesquisas de neurociência e nos ensaios iniciais de uso de medicamentos, ficam claras com esses novos resultados as diferenças marcantes em escala genética. Essa constatação põe em xeque o uso desses animais como modelo para a compreensão da neurobiologia de nossa espécie.

BENDITOS RATINHOS Ninguém havia feito um mapa genético completo do cérebro de um mamífero antes. Para trabalhar com os muitos detalhes, partimos do menor, o cérebro de um camundongo. Eles têm quase tantos genes quanto o homem, exibem apenas a trimilésima parte da massa do nosso cérebro. Em três anos processamos mais de 1 milhão de fatias de cérebro de camundongos, embebendo cada uma com marcadores visíveis que permaneciam sempre que determinado gene fosse expresso - ou seja, que o gene fosse utilizado. Ele é copiado do DNA em um pequeno pedaço de RNA chamado transcrição. Esse é o ponto intermediário a caminho do produto final, codificado por um gene, em geral uma proteína que funciona na célula, tanto numa reação enzimática como peça de um mecanismo celular. Algumas transcrições de RNA desenvolvem trabalho útil diretamente, sem nunca terem sido traduzidas em forma de proteína, e conseguimos encontrar cerca de mil tipos desses RNAs não codificantes, além de todos os genes codificadores de proteínas. Mais que aprimorar nossas técnicas, o projeto do camundongo trouxe uma de nossas primeiras surpresas. Claro que, como acontece com humanos, quase todas as células do camundongo contêm um conjunto completo de cromossomos e pelo menos uma cópia de cada gene no genoma do animal. Em células maduras uma fração considerável desses genes é silenciosa em determinado momento, o que significa que nenhum RNA está sendo produzido deles. No entanto, quando completamos o atlas do camundongo, em 2006, vimos que muitos genes dos ratos mais que quatro em cada cinco - funcionavam em algum outro lugar no cérebro dos animais no momento em que morreram. Neurobiólogos sabem que, na maioria das vezes, padrões de atividade genética mudam durante a vida em escala de tempo de horas, e essas alterações persistem por muitas horas após a morte. Con-


forme começamos a planejar a criação de um atlas do cérebro humano, questionamos se esse cérebro mostraria um nível igualmente elevado de atividade genética - e mais importante: se os padrões específicos de atividade se assemelhariam aos observados em camundongos. Recebemos nosso primeiro cérebro humano no verão de 2009. Era de um homem negro de 24 anos. Doado pela família, foi escaneado por ressonância magnética para produzir um modelo virtual tridimensional do órgão intacto e, depois, congelado, num período de 23 horas após a morte acidental do doador - rápido o suficiente para captar os padrões normais de RNA. Embora fosse asmático, o homem tinha boa saúde geral. Para lidar com a variação de 3 mil vezes no porte do cérebro do camundongo, mudamos de técnica para medir a expressão do gene. O cérebro congelado foi cortado em fatias finas, tingidas com corantes e fotografadas em detalhe. Depois, anatomistas usaram laser para seccionar amostras microscópicas de cerca de 900 estruturas que havíamos pré-selecionado em locais de todo o cérebro. Biólogos moleculares testaram cada amostra usando um microarranjo de DNA, dispositivo produzido em massa que mede simultaneamente a quantidade de RNA presente em cada gene codificante de proteína no genoma humano. Depois de termos coletado dados do primeiro cérebro dessa maneira, reunimos todos os resultados em um banco de dados informatizado. Poderíamos selecionar qualquer gene e verificar quanto de seu RNA correspondente estava presente em cada uma das 900 estruturas amostradas e, assim, observar a intensidade com que o gene estava sendo expresso, horas antes de o doador morrer. Ao escolhermos um gene após o outro, foi emocionante ver surgir padrões muito diferentes. Agora, a exploração verdadeira poderia começar.

TONS DE CINZA Logo no início, conforme analisávamos dados sobre o primeiro cérebro em detalhe, observamos inesperadamente que os padrões de expressão genética no hemisfério esquerdo eram espelhados, quase que exatamente, no hemisfério direito. O conceito de que o lado esquerdo do cérebro é especializado em determinadas funções, como a matemática e a linguagem, e que o lado direito

contribui mais para o pensamento artístico e criativo pode estar bem estabelecido na cultura popular, mas não vimos nenhuma evidência dessas diferenças em padrões genéticos. Confirmamos essa descoberta com o segundo cérebro examinado. Os resultados foram tão conclusivos que estudamos apenas um hemisfério em cada um dos quatro cérebros processados desde então; essa descoberta acelerou a construção do atlas por um ano ou mais.

Na maioria das vezes, padrões de atividade genética mudam durante a vida em escala de tempo de horas, e essas alterações persistem por muitas horas após a morte

Como vimos em camundongos, a maioria dos genes - 84% dos diferentes tipos de transcrições de RNA que buscamos - permaneceu ativa em algum local nos seis cérebros humanos. O órgão realiza uma gama ampla e incomum de tarefas, e o atlas revelou que conjuntos distintos de genes trabalham em cada região importante, contribuindo para funções específicas. Os doadores dos cérebros estudados foram homens e mulheres, jovens e idosos, negros, brancos e hispânicos. Alguns tinham cérebro grande; outros, menor. Apesar das diferenças, os seis cérebros exibiam padrões altamente consistentes de atividade genética. Em mais de 97% do tempo, quando vimos RNA sendo produzido em um gene numa parte de um cérebro, o mesmo processo ocorria na maioria dos outros. Começamos analisando os conjuntos de genes ativos nas diversas partes cerebrais. Comparamos, por exemplo, os genes usados mais frequentemente no antigo mesencéfalo - que compartilhamos com os répteis - com os genes altamente ativos no córtex cerebral. Neurologistas sabem há muito tempo que as células das regiões mais primitivas do cérebro - estruturas como o hipotálamo, o hipocampo e a ponte, responsáveis por controlar a temperatura corporal, a fome, a memória espacial e o sono - se juntam em núcleos distintos que se comportam de forma bem diferente entre si. Descobrimos que muitos desses núcleos expressam conjuntos distintos de genes. Dentro dessas estruturas primais há uma cacofonia de "vozes genéticas" simultâneas. O córtex, no entanto, é diferente tanto na estrutura celular quanto na atividade genética: 13


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Padrões s u r p r e e n d e n t e s Os autores e seus colegas descobriram que o padrão da expressão ou atividade genética no cérebro de camundongos (abaixo) difere substancialmente do padrão de humanos adultos (veja pág. ao lado), tanto homens quanto mulheres de raça e idade variadas. A grade aponta diferenças em atividade em mais de 100 locais em cada cérebro.

Na cabeça do camundongo Algo em torno de 9 0 % d o s genes codificadores de proteínas no D N A humano aparecem t a m b é m e m c a m u n d o n g o s de alguma forma, m a s , quando os autores examinaram cerca de mil d e s s e s genes c o m u n s para ver como realmente s ã o u s a d o s no cérebro de camundongos, descobriram diferenças e m atividade e m cerca de u m terço dos genes compartilhados. U m a olhada rápida no gráfico revela, por exemplo, que o padrão geral de atividade genética fora do córtex cerebral é bem diferente e m c a m u n d o n g o s e e m h u m a n o s . C a m u n d o n g o s s ã o amplamente utilizados no lugar de h u m a n o s e m ensaios de drogas e pesquisas de neurociência, e e s s e resultado reforça as preocupações de que a prática pode produzir resultados enganosos em alguns c a s o s .

Mesencéfâlo

^

* Como interpretar este gráfico

2

Como uma tabela em um atlas rodoviário que lista a distância entre

|

duas cidades, este gráfico mostra a "distância genética" entre dois locais no

i

cérebro - ou mais precisamente, o número de genes que difere marcadamente

5

em nível de atividade (ou seja, em quanta proteína é gerada) de um lugar

o

a outro. Cada local físico, como este no tálamo de camundongo, aparece

.<

tanto na fileira quanto na coluna. (Apenas as colunas dos núcleos do cerebelo estão

|

marcadas aqui.) E m cada ponto dessa fileira, o tamanho e a cor do ponto representam

5

a diferença de atividade entre este local em particular no tálamo e o local da amostra em

=j

uma parte do cérebro representada pela coluna que cruza. O s primeiros pontos na fileira,

|

por exemplo, indicam que relativamente poucos genes são expressos de forma muito

o o

diferente no tálamo do camundongo e nos núcleos do cerebelo.

-<

Pouca diferença e m atividade genética

14

I mentecérebro I Neurociência 2

» • • • • • • • Grande diferença e m atividade genética

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Na cabeça do ser humano Outra surpresa surgiu quando cientistas examinaram os padrões detalhados da atividade genética e m cérebros humanos. E m todo o córtex cerebral - a parte de nosso cérebro que evoluiu mais recentemente e que está envolvida em funções altamente complexas, singulares a humanos, como leitura, conversa e raciocínio de alto nível - , a atividade genética é altamente consistente (indicada por trechos relativamente uniformes, de cores claras). O m e s m o acontece com o cerebelo, centro do controle motor, mas a maioria das outras regiões do cérebro mostra muito mais variação interna nos níveis de expressão genética. Elas incluem estruturas como o hipocampo, a ponte e a medula - que os humanos compartilham com aves e outros vertebrados de relação distante; e s s a s estruturas controlam funções relativamente simples, como a respiração, a fome e o sono.


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E m b u s c a d o u n i v e r s o d e n t r o d o crânio Vários projetos bem financiados e plurianuais estão em desenvolvimento na Europa e nos Estados Unidos para investigar a impressionante complexidade do cérebro. Alguns desvendam conexões neurais no interior do órgão. Outros criam modelos tridimensionais de resolução ultra-alta do cérebro humano ou mapeiam a "expressão" ou atividade genética no cérebro de outros animais. SyNAPSE é um programa da Darpa que tem por objetivo criar análogos digitais do cérebro com chips neurossinápticos que incluem 10 bilhões de neurónios eletrônicos unidos por 100 trilhões de sinapses. Em 2012 um grupo da IBM relatou que um supercomputador do Lawrence Livermore National Laboratory simulou, em prova de conceito, meio segundo de atividade entre os 530 trilhões de neurónios altamente simplificados, conectados a quase 137 trilhões de sinapses. http://research.ibm.com/cognitive-computing/neurosynaptic<hips.shtml

nética do cérebro de macacos resos em desenvolvimento, desde a fase pré-natal precoce até 4 anos de idade. O projeto, financiado pelos NIH, está em andamento no Allen Institute. http://blueprintnhpatlas.org O Projeto BigBrain, uma cooperação entre cientistas alemães e canadenses, produziu um modelo tridimensional de cérebro humano de uma mulher de 65 anos com resolução de 20u, nítido o suficiente para discernir células individuais. https://bigbrain.loris.ca

The Mouse Brain Connectivity Atlas, do Allen Institute for Brain Science, em Seattle, infecta neurónios com vírus que tornam proteínas fluorescentes conforme penetram nas células. Os vírus luminosos marcam os braços ramificados e estendidos das células nervosas que se ligam a circuitos longos e complexos. http://connectivity.brain-map.org

O Human Connectome Project, lançado em 2010 pelos NIH e um consórcio de universidades, está recrutando 1.200 adultos sadios, inclusive centenas de pares de gémeos e seus irmãos não gémeos, para reunir imagens detalhadas do cérebro, sequências genéticas e perfis comportamentais para um banco de dados de referência. http://humanconnectome.org

O Non-Human Primate Brain Atlas está mapeando a expressão ge-

O EyeWire, desenvolvido no Instituto de Tecnologia de Massachusetts

é composto de vários tipos de células dispostas em uma lâmina de camadas múltiplas de seis estratos de massa cinzenta. Essa área evoluiu relativamente há pouco tempo e se expandiu, tornando-se, proporcionalmente, muito mais proeminente em humanos que em outros animais. É a massa cinzenta que dá origem à complexidade singular do comportamento humano e da personalidade individual. Nós, naturalmente, questionamos: nessa parte mais humana do cérebro, a complexidade da função surge de grandes diferenças entre os genes 16

I mentecérebro I Neurociência 2

(MIT), permite que o público faça parte do trabalho envolvido no mapeamento de caminhos de neurónios cerebrais. http://eyewire.org O Blue Brain Project, uma iniciativa conjunta inaugurada em 2005 pela IBM Research e pelo Instituto Federal Suíço de Tecnologia, em Lausanne, utiliza um supercomputador para construir um cérebro virtual em software. O projeto simulou uma coluna do porte de uma cabeça de alfinete de cerca de 10 mil neurónios empilhados do córtex de um rato. http://bluebrain.epfl.ch O Human Brain Project, sucessor do projeto Blue Brain, foi lançado em outubro de 2013 pela União Europeia. O projeto de dez anos tem orçamento de US$ 1,6 bilhão, conta com computadores de alta potência, comparáveis aos usados pelo centro de física de partículas perto de Genebra que administra o Grande Colisor de Hádrons. http://humanbrainproject.eu

sendo expressos em uma parte do córtex em relação à outra? Afinal Brodmann dividiu o córtex em dezenas de partes bem definidas, e esperávamos que os diversos papéis que cada parte desempenha no comportamento humano surgisse de conjuntos diferentes e correspondentes de genes a serem postos em uso. Mas o atlas sugere que a resposta é negativa: a atividade genética no córtex em qualquer tipo de célula é muito homogénea na massa cinzenta, da testa à parte posterior do crânio. Descobrimos que cada tipo de célula corti-


cal tem uma assinatura genética distinta, mas, de forma surpreendente, poucas fronteiras nítidas aparecem na geografia genética-com a notável exceção do córtex visual na parte posterior do cérebro, que processa a informação dos olhos. O cerebelo, localizado na base do cérebro, outra estrutura que se expandiu em humanos recentemente, parece um mar de homogeneidade. Esses resultados são difíceis de conciliar com o conceito inspirado em Brodmann de que o córtex se divide perfeitamente em partes dedicadas a funções específicas, cujo comportamento é regido pelos genes em operação no seu interior. Em vez disso, o atlas apoia uma teoria alternativa: genes definem cada um dos vários tipos de células, da mesma forma que a estrutura básica de uma pequena coluna de córtex organiza as células desses tipos diversos da superfície do cérebro, na parte inferior do córtex. Mas o córtex como um todo se compõe de muitas cópias dessa coluna básica. O modo como o córtex se comporta em geral parece depender muito mais das formas específicas com que os neurónios estão conectados em circuitos - e no histórico de estímulos que atingem esses circuitos - do que o que ocorre em mudanças na atividade genética de uma região para outra.

SEMELHANÇA C O M M A C A C O S Quando comparamos cerca de mil genes ativos no córtex de camundongos e do homem, ficamos surpresos ao descobrir que quase um terço deles é expresso de forma bastante diferente. Alguns genes são silenciosos em uma espécie, mas não na outra, enquanto muitos outros são usados em proporções muito diferentes. O grau de semelhança entre o camundongo e o homem é significativo, pois quase todos os experimentos neurológicos e ensaios de medicamentos são realizados primeiro em camundongos. Os roedores são baratos, se reproduzem rapidamente e são fáceis de controlar e examinar. No entanto, terapias bem-sucedidas em camundongos quase nunca se traduzem em tratamentos eficazes para pessoas. A variação na expressão genética entre as duas espécies pode ajudar a explicar por que isso acontece. Em contraste marcante, os dados que analisamos até agora em macacos resos sugerem que menos de 5% dos genes são expressos no

cérebro deles de forma significativamente diferente, quando comparado ao nosso. O trabalho de nosso consórcio em um atlas do cérebro de macacos ainda está em progresso, assim o número pode mudar quando coletarmos mais informações. No entanto, a observação de que a atividade genética no cérebro de humanos e no de macacos é basicamente semelhante aponta de novo para a fiação entre os neurónios do nosso cérebro, e não para a atividade genética no interior celular, como a fonte provável de nossa singularidade como espécie. Além disso, fica claro que precisamos de informações mais detalhadas sobre o cérebro humano nas mãos de pesquisadores e empresas farmacêuticas para ajudá-los a distinguir os alvos de drogas que podem ser modelados em camundongos daqueles que devem ser estudados em animais mais estreitamente relacionados com os humanos. Desde que lançamos o atlas do cérebro do camundongo em 2007, ele foi usado em mais de mil estudos científicos. Em relação ao atlas do cérebro humano, exposto à visão da opinião pública com os dois primeiros cérebros em 2010, os próximos passos lógicos serão melhorar a resolução e a finalidade do mapa. Descobrimos que não compreenderemos o papel que a atividade genética exerce na função cerebral até medirmos os padrões de expressão gênica em células cerebrais individuais. Fazer isso é realmente um grande desafio para um órgão tão grande e complexo como o cérebro humano, mas surgem novas tecnologias que permitem a neurogeneticistas medir a codificação de proteínas do RNA a partir de células individuais. Essas ferramentas possibilitam também a detecção de todas as partes transcritas de RNA, o que poderia esclarecer se os RNAs que não dão origem a proteínas - denominados matéria escura do genoma - desempenham papéis significativos no cérebro. Para facilitar o trabalho de cientistas que pesquisam distúrbios do cérebro (como autismo, Alzheimer e Parkinson) e auxiliá-los a usar o atlas, o Allen Institute tornou todos os dados e um visor interativo digital chamado Brain Explorer disponíveis gratuitamente na internet. Esperamos que essas primeiras tentativas de entender o funcionamento do cérebro humano pelo seu mapa genético pavimentem o caminho para que outros possam construir sobre ele de forma sem precedentes. ®

miiiiiimiiimimiiiimmiimmmi! PARA SABER MAIS An anatomically comprehensive atlas o f the adult h u m a n brain t r a n s c r i p t o m e . M i chael j . H a w r y l y c z et a l . , e m Nature, v o l . 4 8 9 , p á g s . 391-399; 20 de s e t e m b r o de 2 0 1 2 . Transcriptional architecture o f the primate neocortex. A m y B e r n a r d et

a l . , e m Neuron, v o l . 7 3 , n° 6, p á g s . 1 0 8 3 - 1 0 9 9 ; 2 2 d e março de 2012.

O aplicativo da T h e Brain Explorer e o s d a d o s d o Allen Brain Atlas e s t ã o d i s p o n í v e i s on-line e m http://human. brain-map.org/static/brainexplorer

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A energia escura B O A P A R T E DA A T I V I D A D E N E U R A L - D E 60%

A 80%

— O C O R R E EM C I R C U I T O S

NÃO RELACIONADOS A EVENTOS EXTERNOS; CIENTISTAS IDENTIFICAM

ESSE

P R O C E S S O COM A MASSA INVISÍVEL DO U N I V E R S O

p o r M a r c u s E. R a i c h l e

I O AUTOR M A R C U S E. R A I C H L E é professor de radiologia e neurologia da Escola de Medicina da Universidade de Washington e m Saint Louis. É membro do Instituto de Medicina dos Estados Unidos e da Academia Nacional de Ciências. 1 8 I mentecérebro I Neurociência 2

magine que você esteja quase adormecendo numa espreguiçadeira, com uma revista no colo. De repente, uma mosca pousa em seu braço. Você apanha a revista e tenta afastar o inseto com ela. O que aconteceu em seu cérebro depois que a mosca assentou? E o que ocorreu pouco antes? Muitos neurocientistas supõem que boa parte da atividade neural no cérebro em situação de repouso se equipare ao estado controlado, sonolento. Conforme essa hipótese, a atividade no cérebro em repouso representa : nada mais que ruído ocasional, semelhante ao padrão de j "chuviscos" na tela de TV quando uma estação está fora j no ar. Então, quando a mosca pousa no seu antebraço, o j cérebro se concentra na tarefa consciente de esmagá-la. No I entanto, análise recente produzida por tecnologias de neu-1 roimagem revelou algo notável: mesmo quando a pessoa está sentada, sem fazer absolutamente nada, o cérebro está em grande atividade.



Neuroimagens mostram que há um nível persistente de atividade "de fundo" quando a pessoa está em repouso; esse modo padrão, como é chamado, pode ser crítico no planejamento de ações

Acontece que, enquanto sua mente está em descanso - quando você sonha acordado em uma cadeira, está adormecido na cama ou anestesiado para cirurgia - , áreas dispersas do cérebro "conversam" entre si. E a energia consumida por essa ativa troca de mensagens é cerca de 20 vezes a usada pelo cérebro quando responde conscientemente a uma mosca importuna ou a outro estímulo externo. A recente descoberta de um sistema cerebral que recebeu o nome de "rede do modo padrão" (DMN, sigla da expressão em inglês default mode network) foi fundamental para a compreensão do funcionamento padrão do cérebro. O papel exato da DMN na organização da atividade neural ainda está em estudo, mas se acredita que seja fundamental na organização de memórias e sistemas que precisam de preparação para eventos futuros: o sistema motor, por exemplo, tem de estar acelerado e pronto quando sentimos cócegas devido à presença de uma mosca no braço. Cientistas acreditam que cabe à DM N um papel crítico na sincronização de todas as partes do cérebro: como corredores numa competição de atletismo, é preciso que estejam "preparadas" quando é disparado o tiro de partida. Se a DMN de fato predispõe o cérebro para a atividade consciente, como se supõe, investigações sobre esse processo deverão levar a pistas sobre a consciência. Além disso, neurocientistas têm razões para suspeitar que interrupções do funcionamento

da DM N sejam a base de erros mentais simples e até uma gama de complexas perturbações cerebrais, da doença de Alzheimer à depressão. A ideia de que o cérebro está constantemente ocupado não é nova. Um dos primeiros proponentes dessa hipótese foi o psiquiatra alemão Hans Berger, criador do eletroencefalograma, que grava a atividade elétrica no cérebro por meio de um conjunto de linhas ondulatórias sobre um gráfico. Em ensaios sobre suas descobertas, publicados em 1929, Berger deduziu, a partir das incessantes oscilações elétricas detectadas pelo aparelho, que "temos de supor que o sistema nervoso central está sempre - e não só durante o estado de vigília - num estado de considerável atividade". Mas as ideias dele a respeito de como o cérebro funciona foram amplamente ignoradas, mesmo depois que métodos de captação de imagem não invasivos se tornaram rotina em laboratórios de neurociência. Em primeiro lugar, em 1970, veio a tomografia por emissão de pósitrons (PET, do inglês positron-emission tomography), que mede o metabolismo da glicose, fluxo sanguíneo e absorção de oxigénio como substituto para a extensão da atividade neuronal, seguida em 1992 pela captação de imagem por ressonância magnética funcional (fMRI, defunctional magnectic resonance imaging), que mede a oxigenação do cérebro com o mesmo propósito. Essas tecnologias são mais que capazes de analisar a atividade cerebral, focada ou não, mas a maioria dos estudos levou inadvertidamente à impressão de que, na maior parte, as áreas do cérebro permanecem tranquilas até que sejam requisitadas a desempenhar alguma tarefa específica. Como é de esperar, neurocientistas que fazem experimentos com captação de imagens

Pistas para e n t e n d e r o m u n d o Pesquisadores já sabem há algum tempo que do fluxo virtualmente infinito em torno do cérebro, apenas um filete de informações vai para os centros de processamento neurológicos. Embora 6 milhões de bits sejam transmitidos através

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I mentecérebro I Neurociência 2

do nervo óptico, por exemplo, somente 10 mil bits chegam à área de processamento virtual do cérebro; e, destes, apenas algumas centenas participam da formulação da percepção consciente - o que é escasso demais para gerar uma percep-

ção significativa por si mesma. A descoberta sugeriu que o cérebro provavelmente faz constantes predições sobre o ambiente externo, em antecipação a insignificantes impulsos sensoriais que chegam a ele do mundo exterior.


tentam esmiuçar com precisão as áreas do cérebro que permitem o aparecimento de determinada percepção ou conduta. As melhores concepções de estudo para definir essas regiões simplesmente comparam a atividade cerebral durante duas condições relacionadas. Se os pesquisadores quisessem ver que áreas do cérebro são importantes durante a leitura de palavras em voz alta (a condição de "teste"), em oposição a observar as mesmas palavras silenciosamente (a condição de "controle"), por exemplo, eles procurariam diferenças em imagens daquelas duas condições. E, para ver claramente essas diferenças, essencialmente subtrairiam os pixels nas imagens de leitura passiva daqueles encontrados na imagem vocal; e aceitariam a suposição de que a atividade dos neurónios nas áreas que permanecem "acesas" seriam as necessárias para ler em voz alta. Qualquer vestígio do que se chama de atividade intrínseca - a atividade constante que fica ao fundo (background activity) - seria deixado no chão da sala de montagem. Representar dados dessa maneira facilita a visualização de áreas do cérebro que são "acesas" durante determinado comportamento, como se elas se mantivessem inativas até que fossem requisitadas para determinada tarefa. Ao longo de anos, no entanto, nosso grupo e outros manifestaram curiosidade sobre o que acontece quando alguém simplesmente descansa e deixa a mente divagar. Esse interesse surgiu de um conjunto de pistas provenientes de vários estudos que sugeriram a extensão dessa atividade "por trás da cena". Uma pista veio com a mera inspeção visual das imagens. As fotos mostravam que áreas em muitas regiões do cérebro se mantinham bem ocupadas tanto nas condições de teste quanto nas de controle. Em parte por causa desse "ruído" de fundo compartilhado, diferenciar uma tarefa a partir do estado de controle por meio do exame de imagens cruas separadas é difícil, se não impossível, e isso se consegue apenas com uma sofisticada análise computadorizada de imagens. Análises posteriores indicaram que desempenhar determinada tarefa aumenta o consumo de energia do cérebro à razão de menos de 5% da atividade de base subjacente. Boa parte da atividade geral - de 60% a 80% de toda a energia usada pelo cérebro - ocorre em circuitos não relacionados a nenhum evento externo.

E m descanso

Métodos não invasivos, como tomografia por emissão de pósitrons e captação de imagens por ressonância magnética funcional, inicialmente não capturavam sinais de atividade de fundo no cérebro quando o paciente não estava fazendo nada - e assim forneciam um quadro impreciso da atividade neural. N E N H U M A ATIVIDADE,

ATIVIDADE FOCADA,

c o m o sonhar acordado

c o m o ler

ANTIGA HIPÓTESE E s c a n e a m e n t o s do cérebro originalmente pareciam sugerir que, e m s u a maioria, os neurónios permaneciam e m repouso até que f o s s e m exigidos para a l g u m a atividade, c o m o ler; nesse ponto o cérebro s e "acendia" e despendia energia para emitir os sinais necessários à tarefa. N E N H U M A ATIVIDADE

ALTA A T I V I D A D E

NO CÉREBRO

NO CÉREBRO

NOVA HIPÓTESE Experimentos adicionais recentes c o m neuroimagens d e m o n s t r a r a m , no entanto, que o cérebro mantém alto nível de atividade, m e s m o quando nominalmente " e m repouso". De fato, leitura ou outras tarefas rotineiras exigem energia adicional m í n i m a , não mais que u m aumento de 5 % e m relação à que já está sendo c o n s u m i d a q u a n d o o cérebro s e encontra nesse estado de "linha de base" altamente ativo. ALTA A T I V I D A D E

A T I V I D A D E M A I S ALTA

NO CÉREBRO

NO CÉREBRO

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C O M O O T I R O que faz corredores dispararem na largada de uma competição de atletismo, a rede de modo padrão ( D M N , na sigla em inglês) tem papel importante na sincronização de todas as partes do cérebro

Com a devida licença dos colegas astrónomos, nosso grupo deu a essa atividade intrínseca o nome de energia escura do cérebro - referência à energia não visível, mas que representa a maior parte da massa do universo. A questão da existência dessa energia neural escura também surgiu quando observamos quanto é reduzida a informação dos sentidos que de fato alcança as áreas internas de processamento do cérebro. A informação visual, por exemplo, sofre perdas significativas ao passar do olho ao córtex visual. Felizmente, uma observação intrincada, embora casual, feita durante estudos P E T - e mais tarde corroborada por exames de ressonância magnética funcional (flVIRI) - abriu caminho para a descoberta da DMN. Em meados dos anos 90, notamos, por acaso, que, surpreendentemente, algumas regiões do cérebro tinham queda do nível de atividade a partir do estado de repouso, quando os pacientes desempenhavam alguma tarefa. Essas áreas em particular uma seção do córtex parietal medial (perto do meio do cérebro, envolvida com a lembrança de eventos pessoais na nossa

Funcionamento de regiões cerebrais ativadas quando a mente se dispersa ajuda a compreender distúrbios da consciência 22

I mentecérebro I Neurociência 2

vida) - registraram essa queda enquanto outras áreas estavam empenhadas em executar uma tarefa definida, como ler em voz alta. Perplexos, atribuímos à parte que demonstrava o maior índice de depressão a sigla MM PA (medial mystery parietal area, em português, área parietal medial de mistério). Uma série de experimentos com PET confirmou então que o cérebro não permanece desocupado quando não está empenhado numa atividade consciente. De fato, a M M PA, como a maioria das outras áreas, permanece constantemente ativa até que o cérebro se concentre em alguma tarefa nova, e nesse momento algumas áreas de atividade intrínseca diminuem seu ritmo. No começo, nossos estudos foram recebidos com ceticismo. Em 1998 um ensaio nosso sobre essas descobertas foi rejeitado, porque o relato da diminuição de atividade seria um erro em nossos dados. Ele sugeriu que, na verdade, os circuitos eram ativados na fase de repouso e desligados durante a realização da tarefa. Outros pesquisadores, no entanto, reproduziram nossos resultados tanto para o córtex parietal medial quanto para o córtex pré-frontal medial (ambas as regiões relacionadas com "imaginar o que outras pessoas estão pensando", bem como com aspectos do nosso estado emocional). As duas áreas são agora


consideradas importantes nichos da D M N . A descoberta nos permitiu uma nova maneira de considerar a atividade intrínseca do cérebro. Até o aparecimento dessas publicações, os neurofisiologistas nunca haviam pensado a respeito dessas regiões como um sistema - do mesmo modo como pensamos nos sistemas visual e motor - , como um conjunto de áreas específicas que se comunicam umas com as outras com o intuito de permitir que uma tarefa seja realizada. A ideia de que o cérebro pudesse exibir essa atividade interna ao longo de múltiplas regiões quando em repouso havia escapado à visão tradicional de neuroimagem. Será que só a DM N apresentava essa propriedade, ou ela existia mais genericamente em toda a extensão do cérebro? Uma surpreendente descoberta na maneira como entendemos e analisamos a fMRI deu o espaço de que necessitávamos para responder a essas perguntas. O sinal de fMRI normalmente é mencionado como nível dependente de oxigénio do sangue (Bold, sigla em em inglês de blood oxygen level-dependent). É considerado sinal porque o método de captura de imagem se baseia em mudanças no nível de oxigénio no cérebro humano induzidas por alterações no fluxo sanguíneo. O sinal Bold de qualquer área do cérebro, quando observado em estado de acentuado repouso, flutua lentamente, com ciclos que ocorrem de modo geral a cada dez segundos. Flutuações lentas assim foram consideradas mero ruído, e dessa forma os dados detectados pelo escâner eram simplesmente eliminados a fim de melhor resolver a atividade cerebral por meio da tarefa em particular, cuja imagem estava sendo capturada. O descarte dos sinais de baixa frequência foi questionado em 1995, quando o pesquisador Bharat Biswal e seus colegas da Medicai College de Wisconsin observaram que, mesmo quando um paciente permanecia imóvel, o "ruído" na área do cérebro que controla os movimentos da mão direita variava. Isso ocorria em uníssono com atividade semelhante na área do lado oposto do cérebro associada aos movimentos da mão esquerda. Recentemente, o pesquisador Michael Greicius e seus colaboradores da Universidade Stanford encontraram as mesmas flutuações sincronizadas na DMN num paciente em repouso.

A descoberta estimulou uma enxurrada de atividades em laboratórios no mundo todo, inclusive o nosso. Com isso, a atividade intrínseca dos principais sistemas do cérebro foi mapeada. Esses notáveis padrões de atividade apareceram mesmo sob anestesia geral e durante o sono leve - sugerindo que eram uma faceta fundamental do funcionamento do cérebro e não apenas ruído. Com esse trabalho, ficou claro que a DMN é responsável por apenas uma parte, ainda que crítica, da atividade total - e a noção de que um modo padrão de função do cérebro se estende a todos os sistemas do órgão. Em nosso laboratório, a descoberta de um modo padrão generalizado veio com um primeiro exame da atividade elétrica cerebral conhecida como potenciais corticais lentos (SCPs, na sigla em inglês), em que grupos de neurónios "disparam" aproximadamente a cada dez segundos. Nossa pesquisa determinou que as flutuações espontâneas observadas nas imagens Bold eram idênticas às dos SCPs: a mesma atividade, detectada por meio de diferentes métodos de pesquisa. iiiitiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiitiiiiiiiiiiiiiiiiiitttiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiitiiiiiiiiitiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiim

A r e d e d o m o d o padrão Um grupo de regiões do cérebro que colaboram entre si, conhecido como rede do modo padrão (DMN), parece ser responsável por boa parte da atividade que ocorre quando a mente não está focalizada e ainda desempenha um papel-chave no funcionamento mental. POSTO DE COMANDO A D M N consiste e m diversas áreas do cérebro amplamente separadas, entre elas as ilustradas abaixo. HEMISFÉRIO INTERNO

HEMISFÉRIO EXTERNO

DIREITO

ESQUERDO ^Córtex yetal

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Córtex

Córtex

pré-frontal

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Ligações "malfeitas" de áreas do cérebro podem levar a perturbações que vão desde doenças degenerativas até transtornos mentais

Passamos então a examinar o propósito dos SCPs, já que eles se relacionam a outros sinais elétricos neurais. Como Berger mostrou em primeiro lugar e muitos outros confirmaram desde então, a sinalização cerebral consiste em um amplo espectro de frequências, que vão dos SCPs de baixa atividade até mais de 100 ciclos por segundo. Um dos grandes desafios da neurociência é entender como os sinais de diferentes frequências interagem. Acontece que os SCPs têm um papel determinante. Tanto nosso trabalho quanto o de outros pesquisadores demonstram que a atividade elétrica em frequências acima daquelas dos SCPs sincroniza-se com as oscilações, ou fases, dos SCPs. Como observado recentemente por Matias Paiva e seus colegas da Universidade de Helsinque, a fase ascendente de um SCP produz um aumento na atividade dos sinais em outras frequências. A orquestra sinfónica proporciona uma metáfora adequada, com sua integrada "tapeçaria" de sons provenientes de múltiplos instrumentos que tocam no mesmo ritmo. Os SCPs equivalem à batuta do regente. Só que, em vez de manter o tempo para um conjunto de instrumentos musicais, esses sinais coorde-

nam o acesso que cada sistema cerebral exige para o vasto depósito de memórias e outras informações necessárias para sobreviver num mundo complexo e em permanente mudança. Os SCPs garantem que as computações corretas ocorram de maneira coordenada, exatamente no momento adequado. Mas o cérebro é ainda mais complexo que uma orquestra sinfónica. Cada sistema especializado - um que controla a atividade visual, outro que ativa os músculos - apresenta seu próprio padrão de SCPs. O caos é evitado porque os sistemas são todos diferentes. A sinalização elétrica de algumas áreas do cérebro tem precedência sobre outras. No topo dessa hierarquia situa-se a D M N , como supremo condutor, capaz de garantir que não haja "interferência de sinais". Essa organização não surpreende, já que o cérebro funciona como uma espécie de federação de componentes interdependentes. Ao mesmo tempo, essa intrincada atividade interna às vezes deve ceder às exigências do mundo exterior. A fim de fazer essa acomodação, SCPs na DMN diminuem quando há necessidade de vigilância, por causa da absorção de impulsos sensoriais novos ou inesperados - por exemplo, você de repente se dá conta de que queria passar na padaria ao voltar de carro para casa. O sistema interno de mensagens SCP se reativa assim que diminui a necessidade de atenção focada. O cérebro oscila continuamente

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Consciência e doença A rede do modo padrão abrange regiões envolvidas com graves perturbações cerebrais. Discernir precisamente quais aspectos dessa rede são afetados pela doença de Alzheimer, depressão e outros distúrbios ajudará a encontrar novos diagnósticos e tratamentos. ALZHEIMER Áreas do cérebro que atrofiam com a doença se sobrepõem muito próximas de importantes centros da D M N . DEPRESSÃO Pacientes apresentam diminuição das conexões entre uma área da DMN e regiões ligadas ao processamento da emoção.

I mentecérebro I Neurociência 2

ESQUIZOFRENIA Muitas regiões da DMN demonstram níveis mais altos de emissão de sinais; a importância dessa descoberta ainda está sendo investigada.


A ORQUESTRA SINFÓNICA, com instrumentos que tocam no m e s m o ritmo, pode s e r u m a analogia adequada do f u n c i o n a m e n t o neurológico: s i n a i s c o o r d e n a m o a c e s s o que cada s i s t e m a cerebral exige para manter u m vasto depósito d e m e m ó r i a s e outras informações

por causa da necessidade de equilibrar respostas planejadas com demandas imediatas. Os altos e baixos da DMN proporcionam uma visão mais próxima de alguns dos mais profundos mistérios do cérebro. A DMN já propiciou aos cientistas fascinantes vislumbres da natureza da atenção, componente fundamental da atividade consciente. Em 2008 uma equipe formada por pesquisadores de vários países relatou que, por meio da observação da D M N , conseguiu antecipar em até 30 segundos num escâner um erro que um paciente ia cometer num teste computadorizado. Um erro sobreviria se, na ocasião, a rede padrão assumisse o controle e diminuísse a atividade em áreas envolvidas com a concentração focada.

dentro do escâner enquanto a DMN e outros nichos de energia escura silenciosamente exibem suas qualidades. Esse tipo de pesquisa já lança nova luz sobre doenças. Estudos de imagens do cérebro descobriram conexões alteradas entre células cerebrais nas regiões DMN de pacientes com doença de Alzheimer, depressão, autismo e até esquizofrenia. A síndrome de Alzheimer um dia talvez seja caracterizada como doença da DMN. Uma projeçãodas áreas cerebrais afetadas por Alzheimer se encaixa com perfeição num mapa das áreas que formam a DMN. Esses padrões não só deverão servir de marcos biológicos para diagnósticos como proporcionarão visões mais profundas das causas da doença e das estratégias de tratamento.

No futuro imediato, a energia escura do cérebro deverá fornecer pistas sobre a natureza do estado de consciência. Como reconhece a maioria dos neurocientistas, nossas interações conscientes são apenas uma pequena parte da atividade do cérebro. O que acontece abaixo do nível de consciência - envolvendo a energia escura do cérebro, por exemplo - desempenha papel crítico para criar o contexto no qual experimentamos a percepção consciente. Além de oferecer uma visão dos eventos subjacentes à experiência cotidiana, esse estudo fornece novas pistas para entendermos importantes doenças neurológicas. E para isso o paciente só precisará permanecerem repouso

Com o olhar voltado para o futuro, pesquisadores precisam agora juntar aos poucos o esquema de como a atividade coordenada entre os sistemas cerebrais (e dentro deles) opera no nível de células individuais - e como a DMN faz com que sinais químicos e elétricos sejam transmitidos através dos circuitos cerebrais. Novas teorias serão então necessárias para integrar dados sobre células, circuitos e sistemas neurais inteiros, a fim de produzir um quadro mais amplo sobre como o modo padrão de funcionamento do cérebro atua como organizador principal de sua energia escura. Com o passar do tempo, a energia neural escura pode até ser revelada como a verdadeira essência do que nos faz pulsar. ©

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P A R A S A B E R

M A I S

I m p r o v i n g effect s i z e a n d power with multi-echofMRI and its i m p a c t on understanding t h e neural s y s t e m s supporting mentalizing. M i c h a e l L o m b a r d o . bioRxiv, 2015. Infra-slow E E C fluctuations are correlated with resting-state network dynamics in f M R I . T u i j a H i l t u n e n . The

Journal ofNeuroscience

34.2,

págs. 356-362, 2014. D i s e a s e and the brairTs dark energy. D o n g y a n g Z h a n g e M a r c u s E. Raichle, e m Natu-

re Reviews Neurology, vol. 6, p á g s . 15-18, janeiro de 2 0 1 0 .

Spontaneous fluctuations in brain activity o b s e r v e d with functional magnetic resonance imaging. M i c h a e l D. F o x e M a r c u s E. R a i c h l e , e m Nature Reviews Neuroscience, v o l . 8 , p á g s . 700-711, setembro de 2007.

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Onde moram as lembranças E S T U D O S U G E R E Q U E AS R E C O R D A Ç Õ E S SÃO A R M A Z E N A D A S EM D I F E R E N T E S R E G I Õ E S DO C É R E B R O , DE A C O R D O C O M A " I D A D E " DE CADA

MEMÓRIA

por Moheb Costandi

N O AUTOR M O H E B C O S T A N D I é neurobiólogo do Laboratório Welcome de Farmacologia Molecular da College de Londres. 26

I mentecérebro I Neurociência 2

a década de 20, o psicólogo americano Karl Lashley condicionou camundongos a encontrar a saída de um labirinto. Em seguida, provocou lesões aleatórias no córtex cerebral de cada um dos animais, na tentativa de atingir a região que armazenasse o que ele chamava de "engrama", isto é, fragmentos de informações, e colocou os roedores novamente no labirinto - ele acreditava que aquele que tivesse o "lugar da memória" prejudicado não conseguiria sair. No entanto, todos eles agiram como se já conhecessem o local, achando a saída com facilidade, independentemente da região do córtex afetada. Lashley cogitou que as recordações não eram fixadas em um lugar específico do cérebro, mas armazenadas de forma difusa no sistema neural. O que determinava essa distribuição, porém, permanecia um mistério.



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E s t r e l a s operárias Os astrócitos, o tipo mais comum de células da glia, cujo formato remete a uma estrela, têm papel importante na consolidação de memórias. Segundo um estudo do Instituto Max Planck, na Alemanha, publicado na revista Nature Neuroscience, eles fortalecem as conexões entre os neurónios, o que contribui para a fixação das lembranças. Até há algum tempo, acreditava-se que essas células tinham apenas função de suporte e nutrição dos neurónios. Segundo o neurobiólogo Ruediger Klein, autor do estudo, os astrócitos cuidam da eliminação do neurotransmissor glutamato da fenda sináptica (espaço entre as extremidades de um neurônio e sua célula de conexão). "Os astrócitos sugam glutamato do espaço sináptico, o que facilita as conexões", diz Klein. O mecanismo foi descoberto enquanto cientistas investigavam a molécula sinalizadora EphrinA3, encontrada na membrana dos astrócitos de camundongos. Sem ela, o transporte de glutamato para fora da sinapse diminuía significativamente. Para o neurobiólogo, pesquisar o papel dos astrócitos e relacioná-los às sinapses pode ser importante para compreender o desenvolvimento de doenças neurológicas como a epilepsia e a esclerose lateral amiotrófica. (Da redação)

QUANDO P E N S A M O S no que p a s s o u , o sistema cerebral ativa elementos e os reagrupa; as células gliais têm papel importante

* * * *

nesse processo, pois contribuem para o fortalecimento d a s sinapses

7 * x

Décadas depois, a neurocientista canadense Brenda Milner descreveu o caso do americano Henry Molaison, conhecido como H.M., que sofria de amnésia e de problemas de memória espacial e tinha dificuldade de aprender novas habilidades motoras. Após relacionar os sintomas e observar o cérebro do paciente, Brenda e outros colegas concluíram que o hipocampo, estrutura localizada nos lobos temporais, parecia ter papel decisivo na consolidação de lembranças, pois é o local onde se dá a conversão da informação em memória de curta e longa duração. Mais recentemente, foi demonstrado que o córtex frontal também está envolvido no processo. Agora, um estudo conduzido pelos neurocientistas Christine Smith e Larry Squire, da Universidade da Califórnia, mostra que as recordações são armazenadas no hipocampo ou no córtex frontal de acordo com a "idade" da memória. Por meio de ressonância magnética funcional (MRI), foi registrada a atividade do cérebro de 15 voluntários saudáveis e sem histórico familiar de doenças neurodegenerativas, enquanto eles respondiam a 160 perguntas sobre notícias divulgadas pela mídia ao longo dos últimos 30 anos. O experimento parece simples, mas Christine e Squire tiveram de considerar vários fatores que podiam interferir no resultado. Por exemplo, quando somos questionados sobre algo que aconteceu, nosso cérebro, ao mesmo tempo que processa a pergunta, aciona a memória para respondê-la. Dessa forma, os neurocientistas tinham de atentar se o que ativava uma região neural específica era a elaboração da pergunta ou a recordação. Esperaram alguns minutos depois de cada questão e se certificaram de que cada voluntário a havia entendido. Outro fator a ser considerado era se as lembranças estavam associadas a episódios da vida pessoal dos voluntários, o que podia torná-los mais fáceis de evocar.

ARQUIVOS MENTAIS Em geral, nossa capacidade de lembrar um fato diminui com o tempo. Logo, os voluntários obviamente se recordaram melhor dos acontecimentos mais recentes que dos mais antigos. Os pesquisadores observaram, no entanto, que não havia uma relação direta com o tempo transcorrido desde o acontecimento 28

I mentecérebro I Neurociência 2


e a riqueza da lembrança: com frequência, os participantes falaram de recordações muito antigas de maneira muito detalhada. Ao analisarem as imagens cerebrais captadas durante as respostas, Christine e Squire verificaram que a atividade do hipocampo e da amígdala (estrutura do lobo temporal medial que empresta um colorido emocional aos acontecimentos) era menos expressiva quando os indivíduos evocavam fatos remotos. No entanto, essa redução foi verificada apenas em relação a episódios que ocorreram até 12 anos antes surpreendentemente, quando as recordações tinham mais de uma década, essas regiões voltavam a apresentar atividade. Observou-se que a ativação nos lobos temporais frontais, parietais e laterais era mais intensa quando os participantes se lembravam de fatos mais antigos, mas se mantinha constante quando eles falavam de suas memórias mais "frescas". Esse estudo pode ajudar a entender distúrbios que causam lapsos de memória, como Alzheimer e Parkinson, e mesmo lesões que não parecem estar associadas a nenhuma doença neurodegenerativa. H.M., que apresentava alterações no hipocampo, não tinha apenas dificuldade

Com o passar do tempo, os registros migram do hipocampo para o córtex frontal, estrutura mais apta para recuperar informações antigas

de armazenar memórias recentes, mas também fatos anteriores ao surgimento de suas crises de amnésia. Curiosamente, a maioria das pessoas se lembra com nitidez de ocorrências de um passado longínquo, enquanto acontecimentos nem tão antigos nem tão recentes são esquecidos gradualmente. O estudo de Christine e Squire sugere que, com o passar do tempo, o armazenamento de uma lembrança migra do hipocampo para o córtex frontal.

Lashley, em parte, estava certo. Mas por que as velhas lembranças são transferidas do hipocampo para o córtex frontal? Talvez porque acionar memórias antigas exija sinapses mais fortes e um maior número de associações. Pesquisas recentes apontam que a elaboração da memória nessa parte do cérebro é mais complexa, envolvendo uma rede neuronal extensa e mais conexões. Podemos supor, portanto, que o córtex frontal é uma estrutura mais apta a recuperar lembranças codificadas há mais tempo. ®

iiiimimimimimiiiiimiiiiiimimi P A R A S A B E R

M A I S

Mais neurónios, mais equilíbrio. M a z e n A . K h e i r b e k e René H e n . Mente e Cérebro n ° 2 6 1 , p á g s . 32-37, o u t u b r o de 2 0 1 4 . D o e n ç a de A l z h e i m e r : o c u i d a d o no d i a g n ó s t i c o . M a r i a A m é l i a X i m e n e s . Re-

vista Portal de Divulgação, n° 41, 2014. Memória, aprendizagem e esquecimento. Antonio C a r l o s de O l i v e i r a C o r r ê a . Atheneu, 2010.

P a r a não e s q u e c e r PRESTE ATENÇÃO. "É incontestável que a memória é intensificada pela atenção", diz o professor Michael Anderson, da Universidade de St. Andrews, Reino Unido. Portanto, faça um esforço consciente para pensar sobre onde você deixa as chaves ao chegar. Dizer em voz alta "estou colocando as chaves sobre a mesa também ajuda a fixar a informação. SEJA ORGANIZADO. Memórias são como correspondências, diz Anderson. É preciso bem pouco esforço para abri-las e jogar todo o conteúdo sobre a mesa, mas, quando você precisar encontrar uma, não será tão fácil. Arquivá-las de formas relacionadas costuma facilitar. Portanto, quando precisar se lembrar de alguma coisa, tente ligá-la a uma memória forte. EMOCIONE-SE. Estímulo emocional intensifica as memórias, mesmo quando

não são propriamente "emotivas". Adam Anderson, da Universidade de Toronto, Canadá, mostrou às pessoas quadros neutros de casas e rostos e, depois, imagens com forte apelo emocional. Resultado: cenários neutros eram mais lembrados quando acompanhados por cenas emocionalmente estimulantes. REVISE. Recuperar itens da memória aumenta a probabilidade de se recordar deles no futuro e impedir que sejam removidos e substituídos por novas memórias. Portanto, repita o nome da pessoa que você acabou de conhecer depois de 30 segundos e mais uma ou duas vezes em intervalos crescentes entre as repetições. "A razão de a maioria das pessoas não ter boa memória para nomes é que elas são preguiçosas", diz Michael Anderson. (lessica Marshall, jornalista)

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A viagem pelos neurónios D E N T R O DAS C É L U L A S N E R V O S A S AS I N F O R M A Ç Õ E S S E P R O P A G A M DE F O R M A M I S T E R I O S A ; N E S S E U N I V E R S O

MICROSCÓPICO,

P E R F E I T A M E N T E O R G A N I Z A D O , O M O V I M E N T O SE R E P E T E M I L H Õ E S DE V E Z E S , P E R M I T I N D O D E S D E O C O N T R O L E DOS B A T I M E N T O S CARDÍACOS ATÉ A LEITURA DESTE T E X T O , POR E X E M P L O

por Silvio Rizzoli, B e n j a m i n W i l h e l m e W i l l i a m Z h a n g 30

I mentecérebro I Neurociência 2


M OS AUTORES S I L V I O R I Z Z O L I é fisiologista, pesquisador do Instituto Europeu de Neurociência, em Gõttingen. B E N J A M I N W I L H E L M e W I L L I A M Z H A N G são pesquisadores do m e s m o laboratório.

ais de 100 bilhões de células nervosas se encarregam de nossos pensamentos. Assim como os empregados de uma empresa, são divididas em áreas de produção e competência: cada neurônio é especializado em um âmbito específico da elaboração dos sinais e da coordenação dos comportamentos. E, exatamente como numa empresa, o cérebro funciona somente se aqueles que têm a tarefa de transmitir as informações se comunicam entre si com eficiência. Mas como se dá esse processo? As células nervosas transmitem informações sob a forma de impulsos elétricos, os potenciais de ação. Estes se difundem pelos prolongamentos da célula, em cujas terminações estão presentes minúsculas protuberâncias em forma de botão, as sinapses. Cada neurônio é conectado a outras células nervosas através de mais de 10 mil desses minúsculos pontos de contato. Existem dois tipos de sinapse, dependendo de como transmitem a informação: as elétricas - relativamente raras - e as químicas [veja quadro na pág. 33). No primeiro tipo, o


Circulação frenética Proteína adesiva

Neurotransmissores

Membrana pré-sináptica

Fenda sináptica

Membrana pós-sináptica

Os neurónios transmitem os impulsos através de pontos de contato em forma de botão, as sinapses. Quando um sinal elétrico alcança a zona pré-sináptica, as vesículas repletas de neurotransmissores liberam seu conteúdo na fenda que as separa do neurônio adjacente. Esses se agarram primeiro à membrana pré-sináptica com a ajuda de proteínas especializadas com as quais se fundem: um processo conhecido como exocitose. Os neurotransmissores livres migram através da fenda sináptica e vão ligar-se a recepto32

I mentecérebro I Neurociência 2

res na membrana pós-sináptica do neurônio adjacente. Os receptores permitem a passagem de íons de sódio para o interior da célula, através dos quais se origina um novo potencial de ação. Na membrana pré-sináptica se formam por germinação novas vesículas por meio de proteínas de revestimento - a chamada endocitose que retornam para o pool de vesículas. Aqui são preenchidas novamente com os neurotransmissores, à espera do impulso elétrico seguinte.


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S i n a p s e s elétricas

Quase todo contato através do qual os sinais passam de uma célula nervosa à seguinte pertence às sinapses químicas. Os impulsos elétricos provocam a liberação de mensageiros químicos que, atravessando a fenda sináptica, alcançam a célula adjacente, onde desencadeiam novamente um sinal elétrico (veja ilustração na pág. 32). É um processo trabalhoso, que requer tempo. As sinapses

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elétricas transmitem os sinais mais rapidamente, e consistem em proteínas, as conexinas, que formam sutis canais entre células adjacentes. Desse modo permitem a transmissão direta do estímulo elétrico. Essa modalidade de transmissão dos sinais tem, no entanto, uma desvantagem: diferentemente da sinapse química, os pontos de contato elétrico não podem modular o estímulo. Enquanto

sinal elétrico é transmitido pelo contato entre as membranas de dois neurónios. Estas sinapses fazem o papel de mediadoras, entre outras coisas, nos estímulos elétricos das células musculares cardíacas, permitindo a contração do coração. A maior parte dos neurónios, porém, apresenta sinapses químicas, separadas da célula receptora da chamada fenda sináptica, com apenas 20 nanômetros (1 nanômetro é uma unidade de medida que equivale a 1 bilionésimo de metro). Visto que um potencial de ação não conseguiria ultrapassar esse espaço, os estímulos elétricos devem ser convertidos em sinais químicos que, ao contrário, superam os obstáculos sem dificuldades. Essas moléculas, os neurotransmissores, se encontram nas células transmissoras no interior de vesículas de membrana esferoidais. Assim que é gerado um potencial de ação, as vesículas se fundem com a membrana celular na terminação de uma sinapse - a membrana pré-sináptica - e liberam a molécula mensageira na fenda sináptica: é a chamada exocitose ou endocitose (veja ilustração ao lado).

profissional dos correios precisa entregar cartas todos os dias. Isso vale também para as vesículas sinápticas, que, depois de serem fundidas com a membrana plasmática e terem liberado a carga na fenda sináptica, são absorvidas, por meio da invaginação da membrana pré-sináptica, a chamada endocitose (veja ilustração na pág. 32). Nesse ponto são preenchidas com os neurotransmissores e se encontram em um pool, ou reserva, de vesículas à disposição para outro transporte de sinais. Mas de que modo as vesículas atingem sua meta? Há tempos sabemos que estão presentes, além das vesículas recicladas, novas vesículas de membrana no corpo celular de um neurônio. Elas migram ao longo da célula com o auxílio das proteínas motoras, pertencentes a longas estruturas similares a trilhos, os microtúbulos. O modo como se deslocam nas sinapses é um •

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estes últimos transferem o potencial de ação para as células adjacentes, a via indireta com as moléculas mensageiras permite reforçar ou enfraquecer o sinal, dependendo do contexto. Consequentemente, apenas a transmissão química permite a plasticidade sináptica, o fundamento de todas as funções superiores do cérebro, como a aprendizagem e a memória.

0,03

PERCURSO EM Z I G U E Z A G U E : para seguir seu movimento nos neurónios, u m a única vesícula foi marcada com um corante fluorescente. E s s a s imagens obtidas c o m o microscópio S T E D indicam a migração de duas vesículas de membrana (em branco e em amarelo), em u m tempo de 324 milésimos de segundo. Ambas as estruturas esferoidais flutuam livres através da célula. N a última imagem, os 600 fotogramas do filme foram sobrepostos, revelando a distribuição das vesículas no axônio e na sinapse (a protrusão em forma de botão).

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MISTÉRIOS DA MIGRAÇÃO Os pequenos transmissores se difundem através do espaço sináptico e alcançam os receptores nas membranas das células receptoras que, por sua vez, ativam uma cascata química. Esta transforma novamente o sinal químico em impulso elétrico, que se propaga ao longo do neurônio até suas sinapses. E a cada vez o ciclo recomeça. Além disso, o sinal que tem origem na célula receptora pode ativá-la ou inibi-la. Cada vesícula é uma espécie de carteiro: para que o fluxo das informações não enfraqueça, o

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Os detalhes finos dos tecidos com pouco contraste não são visíveis ao microscópio óptico comum. Entretanto, se os marcarmos com uma substância fluorescente e a irradiarmos com uma luz de comprimento de onda curta (seta azul em A), esta emitirá uma luz de comprimento de onda maior (fluorescência, seta verde), visível ao microscópio. Com a microscopia confocal de fluorescência (B, à esquerda) um fino raio luminoso focalizado (seta azul) é rasterizado na amostra. Um revelador captura e registra a luz emitida (em verde) e um computador reconstitui uma imagem da amostra. No entanto a resolução é muito baixa para representar vesículas sinápticas individuais com diâmetro inferior a 50 nanômetros, por isso as vesículas desaparecem em uma estrutura indistinta (embaixo, à esquerda). Tudo muda graças à microscopia STED (B, à direita); neste caso um segundo laser (em laranja) reduz a fluorescência da amostra por meio da chamada "extinção da emissão" - como se uma borracha removesse a cor pintada nas margens. Desse modo os pontos da imagem, os pixels, se tornam menores e não são mais desfocados (abaixo, à direita).

Amostra c o m

Estímulo

Fluorescência

constraste insuficiente

B Microscopia confocal

Microscopia S T E D

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Pixels grandes - Imagem desfocada

34

I mentecérebro I Neurociência 2

Pixels pequenos - Imagem c o m foco

enigma: nadam livres ou fazem intercâmbio entre sinapses? O mistério depende das dimensões: com seus 50 nanômetros de diâmetro, não são visíveis ao microscópio óptico. E a microscopia eletrônica não pode investigar o movimento. Para visualizar estruturas de pequenas dimensões como as sinapses nas células in vivo, utiliza-se o microscópio de fluorescência. Marcam-se partes específicas do tecido com moléculas fluorescentes, para estimulá-las em seguida com uma luz de comprimento de onda específica. As partículas enviam então comprimentos de onda identificáveis ao microscópio como estruturas luminosas (ver ilustração ao lado). Mas o poder resolutivo do microscópio de fluorescência tradicional é limitado a 200 nanômetros, devido ao comprimento da onda da luz: quanto maior o comprimento da onda que atinge a amostra de tecido, menor é a resolução da imagem. Quando visualizamos as vesículas sinápticas individuais com a microscopia de fluorescência, também se iluminam as áreas adjacentes: isso torna o método inadaptado para seguir o movimento de uma única vesícula. Nos últimos anos houve grandes avanços na microscopia de alta resolução, a "nanoscopia". Uma das técnicas de vanguarda é obra do físico Stefan Hell, do Instituto Max PlanckdeGõttingen. A chamada microscopia STED (da sigla stimulated emission depletion, em inglês) se baseia no princípio da "emissão estimulada" imaginada já em 1917 por Albert Einstein. À luz de um raio laser que incide sobre a amostra tratada com corantes fluorescentes (veja ilustração ao lado) é sobreposta uma segunda luz, o raio STED. O raio reduz a superfície evidenciada e a resolução aumenta em até dez vezes. Graças a essa técnica conseguimos seguir uma vesícula na sinapse para descobrir como migra do sítio de estocagem para a membrana pré-sináptica. Em 2008, cultivamos neurónios murinos do hipocampo em lâminas até que tivessem formado ligações sinápticas. Em seguida marcamos as vesículas com um corante fluorescente e as filmamos no microscópio STED. Para nossa grande surpresa, descobrimos que as vesículas de membrana pareciam deslocar-se de modo aleatório no interior da sinapse, e apenas raramente nadavam por muito tempo em uma direção precisa (veja ilustração acima). Muitas das vesículas filmadas, em particular aquelas no pool


Vesículas e m m o v i m e n t o As vesículas sinápticas seguem caminhos diferentes através das células nervosas: no movimento intrassináptico (seta verde) nadam do chamado pool de vesículas para a membrana pré-sináptica para liberar os neurotransmissores, possibilitando a comunicação entre as células cerebrais. Por meio do processo chamado endocitose novas vesículas de membrana se formam. As sinapses são então preenchidas com os neurotransmissores e migram imediatamente para o pool de vesículas. Muitas se deslocam também entre as sinapses (seta roxa), um movimento definido como intersináptico.

de vesículas, quase não mudavam de posição; outras, ao contrário, corriam até 8 micrômetros por segundo através do prolongamento celular. Entretanto, visto que as vesículas velozes também mudavam constantemente de direção, o raio efetivo de movimento permanecia limitado. Além disso, observamos que a vesícula migrava para cima e para baixo não apenas no interior, mas também entre sinapses associadas (veja Ilustração acima): em média, por minuto 60 vesículas entravam em uma sinapse e saíam. Também esses movimentos intersinápticos não pareciam seguir uma direção precisa.

PROCESSOS ARBITRÁRIOS Para descobrir se o movimento se baseia na simples difusão ou, ao contrário, prossegue "sobre trilhos" como no transporte das vesículas de nova síntese do corpo celular à sinapse, destruímos com substâncias tóxicas específicas os microtúbulos e os filamentos de actina dos neurónios. Ao longo dessas proteínas filiformes são transportados numerosos constituentes celulares. Disso resultou que as substâncias tóxicas reduziram a mobilidade das vesículas individuais, sem provocara interrupção do tráfego na sinapse. Assim deduzimos que algumas vesículas são transportadas ativamente, e que, no entanto, boa parte migra por difusão.

Se as mensagens na sinapse flutuam de modo aleatório, como é possível que nosso sistema nervoso transmita as informações de maneira tão rápida e precisa? Será que o potencial de ação que chega gera ordens no sistema? Em 2010filmamos o movimento das vesículas enquanto estimulávamos eletricamente as células. Além disso, introduzimos entre dois eletrodos a lâmina com as células nervosas em cultura. Logo que aplicada a corrente, originou-se da chapa um campo elétrico que gerou o potencial de ação nos neurónios, o qual se difundiu no tecido nervoso; em seguida observamos a migração das vesículas. Não eram influenciadas pelo potencial de ação que chegava; difundiam-se aparentemente sem objetivo através da sinapse ou permaneciam paradas. Apenas as vesículas vizinhas à membrana pré-sináptica se fundiam com esta e liberavam seu conteúdo na fenda sináptica. Nossas observações com a microscopia STED permitiram então supor que a transmissão dos sinais se baseia em processos arbitrários. No entanto, funciona igualmente bem porque, para nós, pelo fato de algumas vesículas estarem sempre em movimento, um número suficiente estará inevitavelmente próximo à membrana sináptica: com a chegada de um potencial de ação se fundirão por ordem desta última, liberando sua carga em seguida. Portanto, basta que se controle apenas a fusão. O

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P A R A S A B E R

M A I S

Princípios de neurociências. Erick K a n d e l e o u t r o s . Artmed ( 5 . ed.), 2014. a

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O cérebro regenerado DESCOBERTAS RECENTES SOBRE CÉLU LAS-TRONCO

IMPULSIONAM

P E S Q U I S A S A R E S P E I T O DO USO P R O M I S S O R D E S S E M A T E R I A L PARA TRATAR E S C L E R O S E , D E M Ê N C I A , L E S Õ E S DA M E D U L A E C Â N C E R

por Lydia D e n w o r t h

O

neurocirurgião Ivar Mendez, da Universidade de Saskatchewan, no Canadá, demonstra em vídeo seu trabalho no tratamento da doença de Parkinson. Exibe um homem de meia-idade, com a legenda: "Sem medicamento". O rosto do paciente tem o típico olhar sem brilho causado pelo distúrbio. Mendez lhe pede que erga cada uma das mãos e feche os dedos, mas ele tem muita dificuldade para cumprir a orientação. Embora tente, não é capaz de se levantar da cadeira sem usar as mãos. Quando consegue andar, marcha lentamente e se atrapalha, outra característica comum de pacientes com Parkinson, doença neurológica progressiva que atinge cerca de 1 milhão de americanos, a maioria com mais de 60 anos.

A AUTORA LYDIA D E N W O R T H é divulgadora científica, autora de / can hear you whisper: an intimate journey through the science ofsound and language (Posso ouvir você sussurrar: u m a viagem íntima através da ciência do s o m e da linguagem), Dutton, 2014. 36

I mentecérebro I Neurociência 2

Na sequência, aparece no vídeo o mesmo homem após oito anos, depois de Mendez ter transplantado células de dopamina de um feto para o cérebro do paciente. Esses neurónios, localizados numa porção do mesencéfalo chamada substância negra, são responsáveis pela secreção do neurotransmissor dopamina, fundamental para a realização de movimentos, destruídos na doença de Parkinson. Na filmagem, apesar dos anos que se passaram, o paciente parece ter rejuvenescido. Quando lhe é pedido que faça as mesmas tarefas solicitadas anteriormente, ergue suavemente os braços e abre e fecha os dedos rapidamente. Com os braços cruzados sobre o peito, se levanta da cadeira com aparente facilidade e anda com confiança pelo corredor.



ACÉLULA-TRONCO ostenta um núcleo verde de incandescência

Nos últimos 25 anos, desde que os primeiros pacientes receberam transplante de células-tronco em um ensaio clínico no Hospital Universitário de Lund, na Suécia, os cientistas têm estudado maneiras de aplicar a terapia no tratamento de Parkinson. As células estaminais são matéria-prima biológica de enorme potencial porque podem gerar novas unidades, dando origem a células especializadas, graças à capacidade de se dividir indefinidamente. A partir daí, podem ser utilizadas para reparar danos cerebrais de doenças degenerativas, como Parkinson. No entanto, é difícil obter essas células. Até agora, as estruturas transplantadas em humanos derivaram de tecidos de bebés abortados. Os cientistas também realizaram o procedimento em animais com produto retirado de embriões humanos. Delicadas questões políticas e éticas limitam o acesso em ambos os casos. Além disso, células fetais são escassas. Dois grandes ensaios clínicos com o uso desse material, publicado em 2001 e 2003, foram considerados falhos por causa dos resultados amplamente variáveis; os pacientes não apresentaram melhora suficiente para concluir o estudo. Além disso, alguns desenvolveram graves efeitos colaterais e muitos cientistas desistiram da abordagem. O u t r o s , porém, perseveraram. Agora, novas evidências mostram que o transplante pode funcionar, como no caso do paciente de Mendez. Além disso, os cientistas estão otimistas graças a possíveis novas fontes de células, isentas de conotações éticas. Este ano, o neurologista Roger A. Barker, da Universidade de Cambridge, vai coordenar o 38

I mentecérebro I Neurociência 2

primeiro grande ensaio clínico de uma década de terapia celular para Parkinson. É p r o v á v e l que e s s a s d e s c o b e r t a s impulsionem pesquisas para outras doenças com o uso desse material. Muitos cientistas estudam como aplicar a terapia celular no caso de diabetes, lesões da medula espinhal e várias formas de câncer (veja quadro na pág. 40). Além dos avanços no tratamento de Parkinson, a abordagem tem demonstrado progressos significativos com doenças da retina. Ensaios clínicos em andamento propõem formas de utilizar as células epiteliais do pigmento da retina para tratar degeneração macular. De acordo com o Instituto de Medicina Regenerativa da Califórnia, em tese não há doença em que a terapia com células estaminais não possa ser aplicada. Em cada caso, os requisitos dependem das dificuldades inerentes de gerar o tipo específico de célula que os cientistas pretendem substituir. O biólogo celular Ole Isacson, da Universidade Harvard, envolvido na pesquisa, diz que o progresso dos estudos sobre a doença de Parkinson tem sido particularmente promissor porque a dificuldade debilitante de movimento, característica da doença, tem uma causa relativamente simples: a perda de dopamina. Os pesquisadores podem facilmente gerar neurónios dopaminérgicos a partir de células-tronco. Geralmente, a terapia ajuda a restaurar a mobilidade (redução de tremores e melhora na marcha), mas não age em todos os aspectos da doença. Os pacientes ainda podem sofrer de demência, problemas gastrointestinais e distúrbios do sono, por exemplo. No entanto, na melhor das hipóteses, podem ganhar 20 a 30 anos de excelente qualidade de vida com uma única intervenção, praticamente sem uso de medicamentos. "Ainda não há cura, mas é possível transformar o percurso natural da doença de Parkinson", afirma Barker.

NÍVEL DE ÁGUA Um tremor leve na mão ou em alguma outra extremidade, não raro, é o primeiro sinal de Parkinson. O sintoma é seguido pela rigidez dos músculos, postura curvada e característica dificuldade de andar. Os sinais foram descritos pela primeira vez pelo cirurgião inglês James Parkinson, em 1817. A dificuldade de movimento está relacionada à perda de um neurônio dopaminérgico chamado A9 (localizado na subs-


tância negra) que, entre outras coisas, controla o início do movimento. No momento em que os primeiros tremores aparecem, os pacientes já perderam cerca de 70% dos neurónios A9. "Podemos pensar nesse limite como um nível de água: nesse patamar as células começam a "afundar" em uma avalanche de problemas de movimento", compara Isacson. Desde a década de 60, a doença de Parkinson é tratada com medicamentos que substituem a dopamina ausente no cérebro. L-dopa é um precursor do neurotransmissor. Doses dessa pequena molécula atravessam a barreira hematoencefálica e penetram em suas células, que a convertem em dopamina e a liberam. Outras

drogas conhecidas como agonistas de dopamina estimulam seus receptores na ausência do neurotransmissor, imitando assim seus efeitos. Os medicamentos melhoram os sintomas de Parkinson, mas seus benefícios diminuem ao longo do tempo. Além disso, provocam efeitos colaterais, como períodos sem mobilidade e movimentos bruscos adicionais. Na década de 90, os médicos desenvolveram uma terapia alternativa chamada estimulação cerebral profunda (DBS, na sigla em inglês), uma inserção cirúrgica de um eletrodo que fornece impulsos elétricos para alterar diretamente a atividade neuronal em uma área específica do cérebro. A abordagem pode trazer excelentes

Substituição d e neurónios m o r t o s Os cientistas podem criar células-tronco a partir de tecidos do próprio paciente, produzindo fornecimento ilimitado. Depois de extrair as células (por meio de biópsia, por exemplo), os pesquisadores as manipulam quimicamente para que voltem a um estado embrionário. Depois, são transformadas em neurónios de dopamina (ou outras células) e transplantadas no cérebro. Um dos tratamentos consiste em injetar neurónios dopaminérgicos imaturos através do crânio no putâmen e na substância negra (direita). Por enquanto, todos os pacientes foram tratados com material derivado de tecido fetal; nenhum recebeu células adultas reprogramadas.

Depois as manipulam para que se transformem e m imaturos neurónios de dopamina.

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Cientistas

Cirurgião injeta e s s e material purificado no

E m seguida as c l a s s i f i c a m , selecionando apenas aquelas que s e assemelham aos neurónios dopaminérgicos.

cérebro do paciente. O médico retira células da pele do paciente e realiza u m a biópsia.

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O f i c i n a d e reparação d e células Durante décadas, os cientistas têm explorado o uso de células como ferramenta para o tratamento de muitos distúrbios. Apesar das promessas, reparar danos no corpo por meio de células-tronco permanece em fase experimental. Abaixo, um pequeno panorama do progresso que o tratamento poderia trazer em cinco complexas patologias.

40

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Condição médica

Patologia

Tratamento c o m células-tronco

Fase de investigação

Esclerose lateral amiotrófica (ELA)/ Doença de L o u Gehrig

Células do cérebro e da medula espinhal que controlam o movimento morrem, levando à paralisia

Transformar as células-tronco em novas unidades de apoio neural poderia amenizar danos nos neurónios motores

Células transplantadas aparentemente retardaram a progressão da doença em pacientes em estágio inicial; os resultados preliminares de 2012 surgiram de um estudo clínico que avaliava a segurança do tratamento

Câncer de cérebro

Glioma de alto grau: barreira hematoencefálica dificulta o tratamento, impedindo que medicamentos alcancem o cérebro

Células-tronco neurais poderiam alcançar organismos malignos no cérebro e produzir agentes para matar o câncer sem danificar o tecido sadio

Estudos de segurança em humanos começaram em 2010. Até agora, os pesquisadores não observaram efeitos adversos e esperam iniciar os testes para estabelecer a dose ideal

Esclerose múltipla

Inflamação no cérebro e danos na medula espinhai e mielina, material que envolve células nervosas e permite transmitir sinais de forma eficaz

Células-tronco da própria medula óssea do paciente poderiam ser usadas para gerar um novo sistema imune; alternativamente, células modificadas poderiam reabastecer a mielina

Em 2013, a Administração de Drogas e Alimentos (FDA, na sigla em inglês) aprovou o primeiro teste clínico nos Estados Unidos para testar a segurança da injeção de células-tronco no líquido cefalorraquidiano de 20 pacientes

Lesão da medula

Fibras nervosas do cérebro e da medula espinhal são danificadas ou rompidas, levando à paralisia completa ou parcial

Células-tronco poderiam estimular e orientar o crescimento de fibras nervosas rompidas, embora um tecido cicatricial extenso pudesse impedir a regeneração

Pesquisadores estão recrutando pacientes para um experimento de segurança que será concluído em 2016

Diabetes tipo 1

Ataca o sistema imunológico do corpo e destrói as células do pâncreas que produzem insulina

Células-tronco embrionárias amadurecidas como produtoras de insulina poderiam substituir o tecido pancreático perdido

Em 2012, pesquisadores relataram ter curado diabetes em ratos com a terapia com células estaminais. Eles se candidataram na FDA para iniciar testes em humanos


resultados. Por exemplo, entre 45% e 70% dos pacientes com Parkinson que receberam o tratamento no Centro Médico da Universidade da Califórnia em São Francisco apresentaram melhora. No entanto, ao longo do tempo, o quadro voltou a piorar porque a estimulação não é capaz de compensar a perda contínua de dopamina. Já a terapia celular é desenvolvida para restaurar diretamente as células mortas no processo da doença. Hoje, é possível perceber as dificuldades dos grandes estudos clínicos iniciais com terapia celular. Por exemplo, muitos pacientes selecionados estavam em estágios avançados da doença além de terem muita idade, o que influenciou na qualidade dos resultados. Os cirurgiões costumavam transplantar partes de tecidos, que incluem outros materiais que provocam reações imunitárias, em vez de realizar infusão de substância com um único tipo de célula. Além disso, o procedimento não era padronizado, e os estudos eram concluídos sem tempo suficiente (dois anos em média) para detectar todos os efeitos do transplante celular.

MENOS QUE O NECESSÁRIO Os pacientes da equipe de Mendez apresentam os melhores resultados entre aqueles que receberam a terapia celular contra o Parkinson. O neurocirurgião começou o trabalho com transplante de células fetais no final de 1990, quando estava na Universidade de Dalhousie, na Nova Escócia. Ele aperfeiçoou a preparação das células de maneira que estimulassem o crescimento de unidades puras, o que substitui o transplante de tecidos. Mendez desenvolveu um injetor computadorizado para padronizar o processo, que usa para atingir duas áreas do cérebro: a substância negra, onde se originam naturalmente as células dopaminérgicas, e o putâmen, aonde seus axônios precisam chegar. Dez pessoas tratadas por Mendez melhoraram significativamente na escala de classificação padrão de Parkinson, que mede a evolução da doença. Em uma análise post-mortem de cinco pacientes, publicada em 2008, Mendez e Isacson, que trabalham juntos há cerca de dez anos, descobriram que os neurónios enxertados sobreviveram sem sinais de degeneração por até 14 anos. "O método faz toda a diferença. Temos mais experiência, além de técnicas e instrumentos capazes de introduzir

essas células em segurança no cérebro humano", garante o neurocirurgião. Agora, o maior desafio é obter o material de forma viável e suficiente. Por enquanto, as células transplantadas são colhidas do mesencéfalo de fetos abortados entre seis e nove semanas. Essas unidades já se diferenciaram em neurónios dopaminérgicos, mas ainda mantêm a capacidade de gerar novos neurónios depois de enxertadas no cérebro. "No entanto, não são a resposta", reconhece Mendez. Política à parte, nunca haverá o bastante para todos os pacientes que precisam. Em 1998, o biólogo celular James A. Thomson e seus colegas da Universidade de Wiscosin-Madison apresentaram uma alternativa, selecionando a primeira linhagem de células-tronco embrionárias. Eles trabalharam com o blastocisto de um embrião humano, uma breve fase de desenvolvimento precoce quando o aglomerado de células (de 20 a 30) é capaz de se desenvolver em qualquer uma entre mais de 200 tipos. Diferentemente daquelas contidas no tecido fetal que iniciaram a diferenciação, as pluripotentes têm potencial para produzir qualquer conjunto celular. A equipe de Thomson colheu e estimulou as células em laboratório para que se dividissem. O resultado foi uma fonte infinita e renovável mantida em ambiente controlado e sem a exigência de novos embriões. Ainda havia complicações éticas pelo uso original de material humano, mas nesse momento a terapia celular em larga escala parecia possível. O desafio era estimular as células-tronco embrionárias a se transformar em unidades específicas necessárias para tratar uma doença: neurónios dopaminérgicos para Parkinson ou células produtoras de ínsula para diabetes, por exemplo. No mesmo ano, o grupo de Isacson repetiu o experimento, mas com camundongos. Os pesquisadores diferenciaram neurónios A9 a partir de blastocistos do animal. Depois de injetar as células no cérebro dos ratos, observaram que continuavam vivas e formavam ligações com outros neurónios. Em 2002, o grupo demonstrou que o mesmo

Células-tronco podem se dividir indefinidamente e originar unidades especializadas capazes de reparar danos cerebrais provocados por doenças degenerativas 41


procedimento foi capaz de restaurar o movimento e a mobilidade de uma ratazana com uma versão de Parkinson induzida por drogas. Vários grupos de pesquisa apontaram resultados semelhantes com roedores. Imediatamente os cientistas tentaram criar neurónios A9 de células estaminais embrionárias humanas - mas essa etapa foi mais difícil. "Foi um grande fracasso durante dez anos. Esperávamos que as células reagissem bem, o que não ocorreu", diz o biólogo celular Lorenz Studer, do Memorial Sloan Kettering Câncer Center. Em 2007, uma abordagem alternativa trouxe grandes avanços, quando a equipe do biólogo Shinya Yamanaka, da Universidade de Kyoto, no Japão, descobriu como criar células-tronco a partir de tecidos da própria pessoa. Primeiramente, os pesquisadores "reprogramaram" bioquimicamente as células de um rato adulto, levando-as de volta a um estado semelhante ao de células-tronco embrionárias. A partir daí, poderiam ser usadas como base para a derivação de um tipo totalmente diferente, como um neurônio. Em essência, a equipe de Shinya encontrou uma maneira de criar uma fonte ilimitada de células-tronco a partir de células adultas da pele,

Neurônio hospedeiro

Q U A N D O DERIVADO DE UMA CÉLULA-TRONCO É INjETADO N O CÉREBRO, o neurônio

(vermelho)

cresce e s e conecta aos já existentes (roxo). A capacidade

das células

transplantadas de s e

Área alvo

integrar nos circuitos cerebrais estabelecidos é essencial para restaurar funções 42

I mentecérebro I Neurociência 2

Célula hospedeira

evitando, assim, as questões políticas e éticas que cercam a pesquisa com embriões. A descoberta rendeu ao biólogo o Nobel em Fisiologia ou Medicina de 2012. Além disso, se as células estaminais pluripotentes induzidas se originam no paciente em tratamento, o risco considerável de rejeição do sistema imunológico desaparece. "Resolveram um problema muito grande", diz Mahendra Rao, diretor do Centro dos Institutos Nacionais de Saúde de Medicina Regenerativa.

MACACOS ESPERTOS Um ano após a descoberta de Shinya, a equipe de Isacson criou neurónios A9 de dopamina a partir das células adultas reprogramadas de roedores. Os cientistas implantaram os neurónios em camundongos com sinais de Parkinson, o que provocou melhora no quadro, conforme relataram em 2008. Depois, trabalharam com um macaco com a patologia induzida pordrogas. Os pesquisadores colheram células da pele do primata e as manipularam para que voltassem a um estado embrionário. Em seguida as diferenciaram em neurónios dopaminérgicos e reaplicaram no cérebro do animal. Por dois anos, monitoraram o macaco, e, em 2013, apresentaram os resultados em conferências: exames de tomografia computadorizada (PET scan) mostraram que os neurónios de dopamina enxertados haviam sobrevivido e crescido. Aproximadamente após oito meses do transplante, o distúrbio motor havia desaparecido. Análises feitas depois da morte dos animais mostraram que os novos neurónios haviam estabelecido conexões nas áreas onde foram enxertados. No mesmo ano, outros centros de pesquisa, como o laboratório do biólogo celular Su-Chun Zhang, da Universidade de Wisconsin-Madison, além de Shinyia e seu colega Jun Takahashi, também relataram sucesso em experimentos similares. "Agora, os três grupos demonstram, sem sombra de dúvida, que as células enxertadas podem sobreviver e se diferenciar no tipo adequado, integrando-se estruturalmente no cérebro", garante Zhang. Por enquanto, o macaco tratado por Isacson é o único observado por um período maior, cerca de dois anos, que demonstrou recuperação funcional. Estudos de longo prazo em andamento com mais animais pretendem confirmar a segurança e eficácia do procedimento. Mendez e Isacson afirmam


e ainda assim ser necessário seguir o mesmo processo de aprovação, a terapia terá um custo proibitivo. Uma alternativa é aprovar a produção genérica de células-tronco induzidas em vez de linhas separadas. Outra solução, que sacrifica alguns benefícios da resposta imune, seria a criação de um banco de no máximo 500 células estaminais reguladas derivadas de tecido adulto, o que poderia ser geneticamente compatível com 75% a 90% da população, afirma Isacson.

TRATAMENTO REVOLUCIONÁRIO

R O C E R BARKER, pesquisador da Universidade de Cambridge: neurologista vai coordenar o primeiro grande ensaio clínico de uma década de terapia celular para Parkinson

que células derivadas do próprio paciente são o futuro. Eles acreditam que poderão seguir com ensaios clínicos dentro de poucos anos. Outros grupos de pesquisa apostam em células estaminais embrionárias humanas. Em 2011, a equipe de Studer as diferenciou com sucesso em neurónios de dopamina, demonstrando que, quando transplantadas em ratos, camundongos e macacos com sintomas de Parkinson, podem sobreviver e levará recuperação funções motoras. Recentemente, Studer recebeu uma doação de 15 milhões de dólares para aperfeiçoar a técnica e produzir células com base nas diretrizes de Boas Práticas de Fabricação (GPM, na sigla em inglês), uma garantia de qualidade que assegura medicamentos produzidos e controlados de acordo com as normas de qualidade. "Agora, temos um protocolo que nos faz acreditar que estamos prontos", diz Studer. Em paralelo com esse trabalho, ele planeja selecionar pacientes para um estudo clínico, provavelmente o primeiro a usar células estaminais embrionárias. S A falta de regulamentação é uma das razões ã que dificulta o uso desse material. "O terreno é í novo, células não são um tipo de droga ou dispo^ sitivo", diz Barker, da Universidade de Cambridge. | Então, o que são? Por enquanto, são normatiza1 das por linhagem de produção, e cada conjunto l cultivado em laboratório precisa ser considerado | seguro. Se forem produzidas por paciente, com | todo o potencial da tecnologia mais recente,

No próximo experimento, a equipe de Barker irá implantar células-tronco no cérebro de 20 pacientes na Europa e acompanhar outros 130 com a progressão natural da doença de Parkinson. Hoje, mais experientes depois das falhas de procedimento dos primeiros estudos, são mais criteriosos no uso de tecido fetal, na seleção de pacientes, preparação e enxerto do material e no tempo de acompanhamento do estudo multicêntrico. Barker afirma que a pesquisa Trans Euro pretende demonstrar que o tratamento é capaz de reparar danos no cérebro. "O processo é muito importante. Acreditamos que seja o trampolim para a próxima geração de terapias celulares", diz. Apesar da maior complexidade teórica, povoar o cérebro com novas células dopaminérgicas ainda não é, obviamente, mais eficaz que abordagens atuais, como a DBS, que traz resultados mais rápidos. Além disso, há outros tratamentos promissores em desenvolvimento. Por exemplo, no início deste ano, pesquisadores do Imperial College London relataram resultados animadores dos primeiros testes de terapia genética em pacientes com Parkinson. O tratamento consiste na introdução de genes nas enzimas produtoras de dopamina no corpo estriado, uma parte do cérebro médio que contribui para o controle do movimento. No entanto, muitos pesquisadores acreditam que os obstáculos que ainda restam na elaboração e validação da terapia com células-tronco para o tratamento de Parkinson podem ser superados. Mahendra Rao, responsável pela supervisão do trabalho em medicina regenerativa em andamento no N I H , afirma que, até agora, os resultados têm sido encorajadores e os define como "os primeiros passos para um tratamento revolucionário". ift

liiiimiiiiimiiiiiiiiiiiiiiiiiiimiiiiiii P A R A S A B E R

M A I S

Induced pluripotent stem cell-derived neural cells survive and mature in the non- h u m a n primate brain. M . E. E m b o r g e o u t r o s e m Celi Reports, v o l . 3 , n° 3 , p á g s . 646-650, 28 de m a r ç o de 2013. Fetal d o p a m i n e r g i c t r a n s plantation trials a n d the future o f neural grafting in Parkinson's d i s e a s e . R. A . B a r k e r e o u t r o s e m Lancei Neurology, v o l . 12, n° 1, págs. 84-91, janeiro de 2013. T h e r a p e u t i c application o f stem cell technology toward the treatment o f Parkinson's d i s e a s e . K. N i s h i m u r a e J . Takahashi e m Biological and

Pharmaceutical Bulletin, v o l .

36, n ° 2 , págs. 1 7 1 - 1 7 5 , 2 0 1 3 .

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Driblando obstáculos U M A N O V A C O M P R E E N S Ã O DA B A R R E I R A H E M A T O E N C E F Á L I C A C O M O Ó R G Ã O V I V O E MUTÁVEL P O D E R E V O L U C I O N A R O T R A T A M E N T O DE D O E N Ç A S C O M O C Â N C E R C E R E B R A L , ESCLEROSE MÚLTIPLA, PARKINSON E ALZHEIMER

por Jeneen Interlandi

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urante uma de suas famosas experiências com Icorantes, no final do século 19 - que acabaria fpor levar à cura da sífilis e a um Prémio Nobel de Medicina - , o pesquisador Paul Ehrlich tropeçou em um enigma que assombra a medicina ainda hoje. Ao injetar corante na corrente sanguínea de camundongos ele penetrou em todos os órgãos, exceto no cérebro. Rins, fígados e corações tornaram-se púrpura-azulado-escuro, um tom evidente e forte facilmente visto pelas lentes do microscópio. Mas, curiosamente, o cérebro permaneceu numa cor pálida, branco-amarelada. Quando um de seus alunos injetou o mesmo corante diretamente no cérebro, aconteceu o oposto: o cérebro tornou-se azul, e os outros órgãos não. É óbvio, concluiu o estudante, que deve existir uma barreira - em alemão Blut-Him-Schranke - entre o cérebro e o sangue.

A

A U T O R A

J E N E E N I N T E R L A N D I é jornalista científica, especializada em história da ciência e da medicina pela Universidade de Harvard. 44

I mentecérebro I Neurociência 2

Levaria meio século e um microscópio 5 mil vezes mais potente que o de Ehrlich para alguém encontrar essa barreira oculta no interior dos vasos sanguíneos do cérebro. O cérebro humano médio abriga cerca de 640 km de vasos. Eles se dobram e se retorcem em uma infindável série de curvas emaranhadas, envolvendo cada um dos 100 bilhões ou mais de neurónios do cérebro humano. As paredes desses vasos são revestidas por células endoteliais. É certo que elas forram o interior de toda a vasculatura do organismo, mas são muito mais compactas nos vasos cerebrais que em outras partes do


corpo, o que explica por que nem os corantes de Ehrlich, nem a maioria dos medicamentos disponíveis, conseguem atingir o cérebro a partir da corrente sanguínea. Muito antes de poder visualizar essa barreira, médicos tanto a reverenciavam quanto a evitavam. "Durante séculos havia o consenso de que ela existia por algum motivo e não deveríamos mexer nela", observa o biólogo vascular Lester Drewes, especialista em barreira hematoencefálica da Universidade de Minnesota. Ele ressalta, porém, que esse consenso mudou. Cientistas sabem hoje que esse "muro" vibra, as células do sangue e do cérebro estão constantemente se comunicando e se influenciando mutuamente. Várias passagens moleculares incorporadas na membrana endotelial (que recobre o interior dos vasos sanguíneos) regulam o tráfego, bloqueando algumas substâncias enquanto controlam outras. Mesmo os glóbulos brancos, que se acreditava serem grandes < demais para penetrara barreira, se deslocam regularmente de 2 um lado para outro para patrulhar invasores. < Cientistas adotaram o termo "unidade neurovascular" | para descrever melhor o que se vê: não apenas uma parede £ composta de células endoteliais, mas um tipo de órgão vital, | que consiste em vários tipos de células diferentes, inclusive I as que rodeiam os vasos e desempenham seu papel crucial s no desenvolvimento, envelhecimento e doença. Graças a I outra revolução, em microscopia, estão observando esse

órgão de mais perto e de forma mais clara que nunca. Na Universidade de Rochester a visão através de "dois fótons" no microscópio da pesquisadora Maiken Nedergaard é infinitamente mais fascinante que até mesmo Ehrlich poderia ter imaginado. É claro que, ao contrário dele, ela observa um cérebro ainda dentro de um camundongo vivo, respirando. Ela tirou um pouco do crânio do animal, injetou corante na sua circulação e agora observa a barreira hematoencefálica em tempo real: células individuais atravessam fora da corrente sanguínea através das paredes dos capilares, que consistem em uma única camada de células endoteliais. O movimento é impressionante, especialmente considerando-se como a barreira era inacessível quando Maiken iniciou a carreira, há mais de 20 anos. Antes do advento da microscopia de dois fótons - uma forma avançada de imagens que consegue penetrar os 300 micrômetros (um) superiores do córtex - pesquisadores não conseguiam fazer muito melhor que Ehrlich; estudavam o tecido morto fixado em lâminas de microscópio tradicionais. Esses tipos de experimento, segundo Maiken, revelaram muito pouco a biólogos sobre como a barreira hematoencefálica realmente funciona. Isso porque o fluxo sanguíneo é essencial ao bom funcionamento tanto do cérebro quanto da barreira - só que o quanto era essencial foi uma surpresa e animou cientistas que a estudam. 45


Em vários estudos recentes, Maiken e seus colegas mostraram que quando determinado agrupamento de neurónios é estimulado os vasos sanguíneos circundantes aumentam em diâmetro, enviando mais sangue e nutrientes para esses neurónios no momento exato em que os neurónios começam a disparar. Se o estímulo é diminuído os vasos se contraem, e a entrega de nutrientes diminui. Os capilares são laçados pelos astrócitos e pericitos - células que envolvem todo o sistema vascular e que parecem facilitar a comunicação entre o sangue, o endotélio e os neurónios, e também são orbitadas por outras.

MUITO RÁPIDO Entre as células, Maiken fica mais intrigada com as microgliais, macrófagos residentes no sistema nervoso central, ou células de defesa; as micróglias "patrulham" o cérebro e a medula espinhal buscando células danificadas e agentes infecciosos, que são devorados. Micróglias defeituosas já foram relacionadas a doenças neurodegenerativas, como Alzheimer e Parkinson, e Maiken suspeita que seu papel nessas doenças possa estar ligado à falha na tarefa de proteção à barreira hematoencefálica. A pesquisadora pondera que sempre que células endoteliais morrem, como acontece naturalmente ou em resposta a uma lesão, essa perda deve deixar uma abertura temporária na barreira e que as células endoteliais sobreviventes seriam lentas demais para fechar, dado que são vedadas por ligações conhecidas como "zônulas de oclusão". A presença dessas ligações significaria que, em cérebros sadios, algum outro tipo de célula deve agir para fechar essas lacunas. Em uma série de experimentos Maiken usou laser para romper capilares do cérebro em camundongos vivos. Em cerca de dez a 20 minutos, segundo ela, micróglias cercaram completamente a área danificada.

As micróglias "patrulham" o sistema neurológico e a medula espinhal buscando células danificadas e agentes infecciosos, que serão devorados 46

I mentecérebro I Neurociência 2

"Elas revestiram os capilares com velocidade incrível, foi realmente muito lindo." Atualmente, sua equipe tenta descobrir se as micróglias são, na verdade, a primeira linha de defesa - a equipe de emergência que surge e fecha temporariamente a barreira até as células endoteliais danificadas serem

reparadas ou substituídas. "Pode-se imaginar", prossegue Maiken, "que se as micróglias não funcionam corretamente, pequenos vazamentos não são reparados tão rápido, e ocorre neurodegeneração." A hipótese dela é apenas uma das muitas que estão sendo testadas enquanto cientistas trabalham para entender o papel que a barreira hematoencefálica desempenha na doença. Tomemos, por exemplo, a esclerose múltipla (EM), doença caracterizada por episódios de dor muscular debilitante, dormência e problemas de visão. Os médicos já sabem, há tempos, que a EM resulta da quebra de mielina, revestimento elástico que recobre e isola os axônios (os "fios" que emitem sinais) de neurónios assim como a borracha envolve fios de telefone, mas por que esses ataques ocorrem em episódios e o que os desencadeia permanecem um mistério. Uma lista cada vez maior de exames de ressonância magnética sugere que os ataques de EM são precipitados por rupturas na barreira hematoencefálica. Essas aberturas anormais permitem que vários glóbulos brancos atravessem dos capilares para o cérebro e ataquem a mielina. Com base em alguns novos estudos, cientistas agora acreditam que moléculas de oxigénio altamente reativas podem atacar e, assim, enfraquecer a barreira, basicamente enferrujando-a, e que antioxidantes, que bloqueiam os efeitos das moléculas reativas, podem tornar-se bons estabilizadores da barreira. "Sempre encaramos a EM como uma doença do sistema imune", surpreende-se Drewes. "Agora estamos começando a pensar nela como uma doença da barreira hematoencefálica." O mesmo parece ocorrer com a epilepsia. Médicos e cientistas sabem, há algum tempo, que as convulsões correspondem a interrupções temporárias da barreira hematoencefálica, mas até recentemente a maioria supunha que essas rupturas eram consequência das convulsões e não o motivo desse processo. Essa interpretação começou a mudar. Pesquisadores da epilepsia da Universidade de Amsterdã descobriram que interromper artificialmente a barreira hematoencefálica de ratos é um modo confiável de aumentar o número de convulsões que esses animais sofrem e que quanto mais a barreira de um rato for interrompida, maior a probabilidade de o animal desenvolver epilepsia dos lobos temporais. Estudos realizados na Cleveland Clinic, tanto em porcos quanto em pessoas, também evidencia-


Atravessando a fronteira Ao mesmo tempo que a barreira hematoencefálica protege o cérebro de muitas substâncias nocivas, também pode manter fora outras que podem curar doenças. Introduzir fármacos no cérebro para tratar um tumor ou testar uma terapia para Parkinson e Alzheimer tem sido um desafio. Agora cientistas experimentam técnicas promissoras que permitem fazer o que antes era impensável: abrir com segurança a porta de entrada do cérebro apenas o tempo suficiente para deixar a medicação passar.

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BARREIRA

HEMATOENCEFÁLICA

E s s a estrutura é c o m p o s t a de c é l u l a s endoteliais que r e v e s t e m as p a r e d e s dos v a s o s s a n g u í n e o s .

PASSAGEM

BEM-SUCEDIDA

Neurocientistas acreditavam ser muito perigoso manipular a barreira hematoencefálica! Atualmente u s a m cateteres, bolhas de gás, ultrassom para passar m e d i c a m e n t o s sorrateiramente pelo tecido cerebral.

SOLUÇÕES

MICROCATETERISMO

MICROBOLKAS

HIPEROSMÓTICAS

Médicos introduzem um minúsculo

O m é d i c o injeta no paciente u m a

Algumas soluções, como o ma-

cateter n o s v a s o s s a n g u í n e o s d o

s o l u ç ã o de soro c o n t e n d o bolhas

nitol, s u g a m u m i d a d e de tecidos.

cérebro e u s a m m a n i t o l para abrir

gasosas microscópicas. Assim

Q u a n d o m é d i c o s injetam manitol

u m a p e q u e n a parte da barreira pró-

que a t i n g e m o cérebro, u m feixe

n u m a artéria que chega até o cé-

x i m a ao local que d e s e j a m tratar.

de u l t r a s s o m focalizado faz

CAVALOS DE TRÓIA

rebro, ela absorve água de células

D e p o i s i n j e t a m d r o g a s a t r a v é s do

vibrá-las e m u m local e s p e c í f i c o ,

O nome sugere u m a substância es-

do cérebro, fazendo-as murchar.

m e s m o cateter. E s s e m é t o d o já é

p r o v o c a n d o a abertura da barrei-

condida. E s s a s drogas realmente v ê m

Então, as z ô n u l a s de o c l u s ã o se

u s a d o para a d m i n i s t r a r a g e n t e s

ra h e m a t o e n c e f á l i c a e permitin-

atreladas a u m c o m p o s t o que desliza

a b r e m , e as drogas p a s s a m .

anticoagulantes após A V C

do a p a s s a g e m de d r o g a s .

através da barreira hematoencefálica.

47


ram que as convulsões ocorreram depois (não antes) de a barreira ser rompida. Cientistas de outras instituições identificaram duas proteínas da barreira cujo mau funcionamento pode estar relacionado à doença de Alzheimer. Uma delas (conhecida como RAGE) traz a molécula beta-amiloide da corrente sanguínea para o cérebro, a outra (LRP1) a expulsa. Quando o equilíbrio entre as duas é perturbado - com excesso ou carência de beta-amiloide - surgem placas no cérebro associadas ao Alzheimer. Embora as aplicações clínicas estejam longe de ocorrer, a descoberta proporcionou pelo menos algum motivo de

esperança: em experiências com camundongos pesquisadores conseguiram prevenir o acúmulo de beta-amiloide, bloqueando o funcionamento do gene que dá origem à proteína RAGE em células endoteliais. Talvez seja possível que as drogas inibidoras da RAGE, atualmente em desenvolvimento, possam conseguir o mesmo feito em seres humanos. É evidente que o reparo de vazamentos na barreira é apenas metade do desafio. A outra parte está em criar aberturas deliberadas para que medicamentos necessários possam atravessar. Até agora médicos descobriram pelo menos uma forma comprovada de fazer isso.

Guardiã d a s células c i n z e n t a s Oxigénio e dióxido de carbono difundemse livremente do sangue até o cérebro e vice-versa (A). Além disso, pequenas moléculas lipossolúveis atravessam a membrana lipofílica. Desse modo, penetram no cérebro agentes como álcool, nicotina, cafeína, ecstasy ou heroína, perturbadores do funcionamento regrado do órgão. As moléculas maiores, porém, bem como as substâncias hidrossolúveis, não conseguem transpor a barreira tão facilmente. Para o transporte de nutrients vitais como glicose, aminoácidos ou vitaminas existem mecanismos especiais

de transporte (B). A proteína G l u T l , por exemplo, leva glicose para o interior do cérebro através da ligação da molécula de glicose ao transportador (1 e 2), que então muda de conformação para liberar a glicose no interior da célula (3). O açúcar atravessa o citoplasma (4), unese a outra molécula de GluTl localizada na membrane oposta da célula (5) e é, finalmente, liberado para o cérebro (6). As diferentes moléculas de aminoácidos também possuem transportadores específicos que, tal qual a G l u T l , não necessitam de energia para agir. Já as bombas de exportação (C)

trabalham com gasto energético. Essas bombas transportam substâncias ativas lipossolúveis - esteroides, antibióticos, citostáticos, betabloqueadores ou substâncias inibidoras de reações imunológicas - de volta à corrente * sanguínea. Até hoje, são conhecidos 15 transportadores dessa natureza. O mais importante desintoxicador cerebral, a p-giicoproteína, também chamada de proteína de resistência a multidrogas, pertence a essa família de proteínas, podendo atuar em conjunto. A transcitose mediada por receptores (D) representa outro importante

AS D I F E R E N T E S VIAS D E T R A N S P O R T E E M E C A N I S M O S D E A Ç Ã O A) D i f u s ã o d e m o l é c u l a s

B) T r a n s p o r t e d e n u t r i e n t e s

lipofílicas p e q u e n a s e de gases

C ) B o m b a de transporte ativo

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de substâncias estranhas

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B o m b a d e e x p o r t a ç ã o (por e x e m p l o , p-giicoproteína)

Proteína de transporte (por e x e m p l o , G l u T l )

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48

I mentecérebro I Neurociência 2

Por exemplo: oxigénio, álcool, nicotina, ecstasy

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9

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Nutriente \ ) <« (por e x e m p l o , g í i c o s e j

Substâncias estranhas, lipofílicas (porexempjo, m e d i c a m e n t ooss) j »

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9


A prioridade atual é encontrar o maior número possível de maneiras de fazer isso. Com toda sua complexidade, o trânsito entre a corrente sanguínea e o cérebro é regido por um conjunto extremamente simples de regras. Para a travessia, um composto deve ser menor que 500quilodáltons (unidade padrão para indicara massa em escala atómica ou molecular), como a maioria dos antidepressivos, antipsicóticos e soníferos, para conseguir usar um dos portais de entrada naturais embutidos na própria barreira. Pela maioria das estimativas, 98% de todos os medicamentos deixam de atender a esses critérios, o que significa que atravessam

mecanismo de condução de nutrientes. No caso da transferrina (molécula transportadora de ferro no sangue), por exemplo, ela une-se aos receptores de membrane da célula endotelial e desse modo atinge o seu interior. Quando a transferrina carregada de ferro encaixa em seu receptor (1), a membrana endotelial sofre invaginação (2). No interior da célula, ocorre a formação de uma vesícula composta pela porção da membrana que contém o receptor e seu carregamento (3). Do lado oposto do citoplasma, a vesícula se funde novamente à membrana celular (4), a transferrina é liberada do

a barreira em quantidades tão ínfimas que são inúteis - ou sequer chegam a fazer a travessia. No passado, ações para explorar essas regras foram inconsistentes. Tornar as drogas mais solúveis em lipídeos, por exemplo, permitiu que penetrassem a barreira hematoencefálica com relativa facilidade, mas como os cientistas logo descobriram, essa estratégia teve várias desvantagens. Algumas drogas cruzaram e foram expulsas rapidamente, outras ficaram presas na própria membrana e não puderam executar seu trabalho. Entretanto, todas penetraram outros órgãos do corpo, com uma alarmante falta de discriminação.

receptor e se difunde para o interior do cérebro (5). Esse mecanismo é também usado por moléculas maiores como a insulina para atravessar as células endoteliais. Os pesquisadores miraram-se no exemplo da transcitose para inserir drogas terapêuticas no cérebro (E). O bioquímico Gert Fricker, de Heidelberg, desenvolve, junto com seus colegas, meios de transporte para os medicamentos que passam despercebidos peia barreira e introduzem sua carga no cérebro como se fossem cavalos de Tróia. Os pesquisadores preenchem minúsculas vesículas

constituídas de lipídios - os chamados lipossomos - com as substâncias ativas. Cada lipossomo carrega até 30 mil moléculas em seu interior e está unido a um anticorpo que se encaixa, por exemplo, no receptor da transferrina. Assim, as drogas que parecem ser substâncias endógenas "enganam" o organismo e ultrapassam a cancela. Primeiro, são "pescadas" pelos receptores das células endoteliais (1), depois atravessam a célula em vesículas da membrana invaginada (2 e 3) e, por fim, são liberadas para o interior do cérebro (4 e 5), onde escapam do lipossomo (6) e podem exercer seu efeito terapêutico.

C O M O O S P E S Q U I S A D O R E S E N C A N A M A BARREIRA D) Transcitose d e m o l é c u l a s grandes

HEMATOENCEFÁLICA

E) Exemplo: o "táxi" d o s m e d i c a m e n t o s

49


Quando médico residente, o neurocirurgião Edward A. Neuwelt trilhou um novo caminho, há mais de 30 anos. Diretor do Programa de Barreira Hematoencefálica da Universidade de Saúde e Ciência de Oregon (OHSU, na sigla em inglês), Neuwelt desenvolveu o primeiro procedimento cirúrgico para romper a barreira. De início ele injeta uma solução chamada manitol numa artéria que atinge o cérebro. Como o manitol é hiperosmótico, ou seja, contém muito mais soluto que as células endoteliais do cérebro, a solução suga a água das células fazendo com que murchem como dedos embebidos em água por muito tempo. O encolhimento abre as zônulas de oclusão, deixando lacunas grandes o suficiente para passarem medicamentos transportados pela mesma artéria. Em algum ponto entre 40 minutos e duas horas, as células endoteliais retornam ao tamanho normal, reformulam as zônulas de oclusão e novamente vedam a barreira.

ABRE-TE SÉSAMO Por quase duas décadas Neuwelt vem usando essa técnica para romper a barreira hematoencefálica de um tipo muito específico de paciente: com tumores cerebrais que poderiam responder à quimioterapia se medicamentos pudessem passar. Uma dessas pessoas era Joanie Lafferty, de 57 anos, mãe de três filhos. Em 2007 ela foi diagnosticada com linfoma no sistema nervoso central (câncer que começa no sistema linfático e se espalha para o cérebro). Médicos acreditavam que ela teria cerca de um mês de vida. Quando chegou à O H S U - duas semanas após a biópsia inicial do cérebro - , o lado direito de seu corpo estava paralisado. A companhia de seguros havia alertado contra o procedimento, alegando ainda ser experimental e que passível de provocar acidente vascular cerebral, epilepsia permanente, ou até sua morte. Mas Joanie tinha pouco a perder.

Pela maioria das estimativas, 98% dos medicamentos atravessam a barreira em quantidades tão ínfimas que são inúteis - ou sequer chegam a fazer a travessia 50

I mentecérebro I Neurociência 2

Assim, apenas algumas semanas após o diagnóstico, Neuwelt e sua equipe introduziram um cateter através da virilha da paciente até a artéria carótida esquerda para enviar ao cérebro duas soluções: o manitol hiperos-

mótico, seguido rapidamente por metotrexato quimioterápico. No dia seguinte, repetiram o procedimento, usando a carótida direita. Um mês depois, e todos os meses, durante um ano, Neuwelt e sua equipe repetiram o protocolo: primeiro pela artéria esquerda, depois pela direita, o manitol rompia a barreira hematoencefálica para que o metotrexato pudesse atravessar e atacar o tumor. Ao final de seu segundo tratamento, ela pôde sair do hospital sem cadeira de rodas. Dois meses depois, ela estava em remissão completa e, mais de oito anos depois, continua assim. Para pacientes com menos de 60 anos a equipe de Neuwelt se orgulha de uma sobrevida média de 13 a l 4 anos, com resultados significativamente melhores, comparados ao tratamento padrão de radiação em todo o cérebro. É óbvio que nem todos os medicamentos contra o câncer podem passar pela barreira, e nem todos os tumores cerebrais podem ser tratados dessa forma. Até agora, apenas algumas drogas foram testadas e se mostraram seguras. Como o procedimento envia manitol da carótida para todo o cérebro e, assim, abre muito a barreira, acarreta riscos de inchaço em tecidos, infecção e toxicidade. Mesmo enquanto Neuwelt e sua equipe trabalham para refinar seu procedimento e ampliar sua aplicação, médicos em outros locais desenvolvem alternativas. Uma das mais promissoras é microcateterismo direto. Como a técnica de interrupção da barreira de Neuwelt, esse método também consiste em inserir um cateter dentro de vasos sanguíneos e usar manitol para erguer a barreira, mas em vez de parar na artéria carótida, o microcateter segue todo o caminho até o cérebro e abre apenas uma minúscula porção da barreira, perto do local da patologia. "É um procedimento muito direcionado", aponta John Boockvar, neurocirurgião do Hospital Lenox Hill, líder do ensaio clínico. Se isso será uma vantagem ou desvantagem ainda está para ser provado. Por um lado, abrir menos a barreira reduz o risco de inchaço dos tecidos e convulsões, sem mencionar a quantidade de tecido cerebral exposto à quimioterapia tóxica. Mas, como Neuwelt enfatiza, a especificidade do local é uma desvantagem quando se refere ao tratamento de doenças de todo o cérebro, como câncer ou mesmo Alzheimer avançado. O microcateterismo já é utilizado rotineiramente para enviar agentes anticoagulantes para o


cérebro de vítimas de acidente vascular cerebral. Atualmente, Boockvar e sua equipe estão testando a eficácia do envio de várias drogas antitumorais. Segundo eles, a técnica poderia ser usada para tratar Alzheimer, Parkinson ou, teoricamente, qualquer doença do cérebro para as quais existem medicamentos que precisam de ajuda para cruzar a barreira. Outra estratégia para romper a barreira envolve ultrassom e microbolhas (bolhas de gás microscópicas). Uma solução salina contendo microbolhas é injetada na corrente sanguínea. Aplica-se um feixe de ultrassom que faz as bolhas vibrarem rapidamente, abrindo as zônulas de oclusão com localização precisa. Drogas injetadas na corrente sanguínea também podem passar para o cérebro nessa região. Pouco tempo depois, as zônulas de oclusão se recuperam, fechando novamente a barreira. Pesquisadores das universidades Harvard, Columbia e outras instituições desenvolvem a técnica de microbolhas e ultrassom focalizado, que tem se mostrado segura em macacos e vem progredindo rapidamente em direção a ensaios em humanos.

PEQUENOS E LENTOS Claro, abrir a barreira não é a única maneira de introduzir medicamentos; outro modo de fazer isso é esgueirá-los por portais existentes na barreira, anexando-os a compostos que usam esses portais naturalmente. Cientistas que trabalham desenvolvendo essas drogas se referem a elas como cavalos de Tróia, o que é exato. O medicamento não está escondido no interior do composto conhecido, mas é atrelado à extremidade, como um vagão. Em alguns casos o método funciona. Um cavalo de Tróia desenvolvido pela Genentech conseguiu reduzir placas no cérebro em 47% em experimentos com roedores. Esse fármaco em particular penetra no cérebro pelos mesmos receptores que transportam ferro através da barreira. Medicamentos similares (não só para Alzheimer, mas para outras doenças neurodegenerativas) estão sendo desenvolvidos na Universidade da Califórnia em Los Angeles e em outros locais, progredindo lentamente na direção do mesmo objetivo: remédios prontos para testes em humanos. Enquanto isso, evidências da importância da barreira vão se infiltrando rapidamente no estudo de doenças nos processos fundamentais

O C A P I L A R C E R E B R A L (vermelho)

é pouco permeável, m a s pequenas moléculas

podem alcançar u m astrócito (laranja),

(azul)

provedor da célula nervosa (verde)

de desenvolvimento e envelhecimento, o início e o fim da própria existência. Experimentos na década de 20 sugeriram que a barreira era imatura em recém-nascidos, convicção que ainda persiste entre biólogos do desenvolvimento e pesquisadores da barreira, mas estudos recentes demonstram que as zônulas de oclusão se formam quase ao mesmo tempo que os vasos sanguíneos começam a penetrar no cérebro embrionário. Na verdade, cientistas começam a suspeitar que a barreira desempenha um papel crucial durante o desenvolvimento, propiciando ao cérebro um ambiente interno adequado, sem o que os neurónios não poderiam crescer e se conectar. Mas, à medida que envelhecemos, isso muda. Pesquisadores acreditam que alterações sutis na barreira hematoencefálica-uma reorganização da vasculatura cerebral, talvez, ou pequenos e lentos escapes na própria barreira - abram caminho para a neurodegeneração relacionada à idade, em todas as permutações nocivas. ®

miiiiiiiiiiiiiimiiiimiiimmiiiiimi P A R A S A B E R

M A I S

Neuropsychiatric disease relevance o f circulating antiN M DA receptor autoantibodies depends on blood-brain barrier integrity. C . H a m m e r , B. Stepniak, A . Schneider, S. Papiol, M T a n t r a . Molecular Psychiatry. Nature, o u t u b r o de 2014. Engaging neuroscience to advance translational research in brain barrier biology. E d w a r d A . N e u w e l t et a l . e m

Nature Reviews Neuroscience,

vol. 12, n° 3, págs. 169-182, m a r ç o de 2 0 1 1 . Development o f the bloodbrain barrier: A historical point ofview. D o m ê n i c o Ribatti, Beatrice Nico, Enrico Crivellato e Marco Artico e m A n a t o m i c a l Record, part B: New Anatomy, vol. 289, n ° l , págs. 3-8, 2006.

51


Interruptores cerebrais NOVAS PESQUISAS S O B R E E P I G E N É T I C A P O D E M C O N T R I B U I R PARA M E L H O R

COMPREENSÃO

E T R A T A M E N T O DE D O E N Ç A S MENTAIS E D E P E N D Ê N C I A Q U Í M I C A ; PROPOSTA É DESCOBRIR C O M O " L I G A R " E " D E S L I G A R " OS G E N E S SEM ALTERÁ-LOS

p o r E r i c 3. N e s t l e r

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A U T O R

E R I C J. N E S T L E R é professor de neurociência e diretor do Instituto Friedman do Cérebro, no Centro Médico Monte Sinai, na cidade de Nova York. Seu laboratório investiga os m e c a n i s m o s moleculares que levam à dependência química e à depressão. 52

I mentecérebro I Neurociência 2

ateus é professor de história. Seu irmão gémeo, Greg, é dependente químico. (Os nomes verdadeiros foram omitidos para preservar a privacidade.) Ambos saíram-se bem no ensino médio: eram aplicados em sala de auta, bons atletas em campo e relacionavam-se bem com os colegas. Como a maioria dos jovens, de vez em quando os irmãos furtivamente tomavam cerveja, fumavam um cigarro e experimentavam maconha. Quando estavam na faculdade provaram cocaína. Para Greg, a experiência teve sérias consequências. No início ele conseguia assistir às aulas e manter contato com os amigos. Mas logo a droga tomou conta de sua vida: ele deixou de frequentar a escola e teve uma série de empregos de baixa qualificação em lojinhas e lanchonetes. Raramente permanecia no trabalho por mais de dois meses; geralmente era despedido por faltar demais ou por discutir com os clientes e colegas. Seu comportamento tornou-se cada vez mais estranho - às vezes era violento. Roubava para sustentar a dependência


e foi preso. Inúmeras tentativas de tratamento falharam, e quando a Justiça determinou que Greg, então com 33 anos, fosse encaminhado a um hospital psiquiátrico para avaliação, ele estava desamparado e sem ter onde morar, renegado pela família. O que tornou Greg tão suscetível aos encantos da cocaína - a ponto de a droga praticamente ter destruído sua vida? E como seu irmão gémeo, exatamente com a mesma constituição genética, escapou de uma experiência semelhante? O fato de o consumo de drogas levar algumas pessoas à dependência, enquanto outras passam incólumes pelas imprudências da juventude e continuam a viver normalmente, intriga pesquisadores há bastante tempo. A novidade é a abordagem neurocientífica mais atualizada, inspirada em descobertas de outras áreas. Nos últimos dez anos, os biólogos que estudam o desenvolvimento embrionário e do câncer encontraram um amplo espectro de mecanismos moleculares no qual o ambiente é apontado como responsável por mudanças no comportamento dos

genes sem alterar a informação neles contida. Em vez de produzir genes mutantes, essas modificações epigenéticas marcam os genes de forma que podem alterar seu nível de atividade - em alguns casos definitivamente. Nós e outros pesquisadores descobrimos sinais de que mudanças epigenéticas pelo uso de drogas ou estresse crónico podem mudar a forma como o cérebro responde à experiência: forçando a pessoa a reagir com resiliência ou a sucumbir ao vício, depressão ou uma série de outros transtornos psiquiátricos. Embora ainda estejamos engatinhando na compreensão dessa poderosa interação molecular entre genes e ambiente, esperamos que nosso escasso conhecimento resulte em tratamentos mais eficazes para essas situações - e ofereça novos insights sobre como as doenças mentais são transmitidas entre gerações. Nossos esforços para desvendar as influências epigenéticas em doenças mentais estão ajudando a preencher as lacunas deixadas por décadas de pesquisas anteriores sobre as origens genéticas da dependência química, depressão, 53


Estudos sobre modificações epigenéticas de genes, que diferem das mutações genéticas (abaixo), fornecem vários insights novos sobre doenças mentais. Os dois tipos de alteração podem perturbar o funcionamento do cérebro e de outros tecidos.

Resultado

Mutações genéticas geralmente alteram a funcionalidade

Proteína codificada

do RNA

O s nucleotídeos do gene (letras do código) f o r m a m u m a cópia da proteína (acima). U m a letra

Enzima &

G e n e ativo

errada ou outra mutação pode desorganizar a proteína resul-

Nucleotídeo

tante (abaixo) ou pode aumen-

(rosa)

tar ou diminuir excessivamente sua produção. Proteína anómala

DNA

Mutação

Mudanças epigenéticas geralmente alteram a atividade Marcas químicas conhecidas c o m o marcas epigenéticas encontram-se nos genes, no próprio D N A ou nas proteínas histonas e m torno das quais o D N A se enrola (abaixo). Mudanças na combinação dessas marcas podem alterar o comportamento de u m gene, desativando-o de m o d o a inibir a síntese da proteína, ou ativando-o, tudo isso s e m alterar a informação que ele contém.

Proteínas histonas

Cauda da histona Marcas epigenéticas Gene desativado: A l g u m a s m a r c a s epigenéticas inibem os genes promovendo u m enrolamento condensado da cromatina ( D N A complexo, c o m histonas e outras proteínas) impedindo assim que os genes sejam lidos; às vezes, grupos metil d e s e m p e n h a m esse papel. G e n e s inativos

1

Grupo/

Cromatina

metil

Gene ativado: Outras marcas, c o m o os grupos acetil, tendem a estimular a atividade gênica ajudando a desenrolar a cromatina. f/L— Grupo a c e t i l \

^

\

.

Proteína

G e n e ativo

>

1

A localização d a s estruturas na imagem é apenas aproximada. 54

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autismo, esquizofrenia e outros transtornos psiquiátricos. Como a maioria das condições clínicas comuns, esses distúrbios neurológicos são altamente hereditários: cerca de metade do risco de dependência química ou depressão é genética - maior que o risco genético para hipertensão arterial e vários tipos de câncer. Mas os genes não são tudo. Mesmo com genes idênticos não há garantia de que duas pessoas enfrentarão a mesma doença. Ao contrário, transtornos psiquiátricos são desencadeados em pessoas geneticamente suscetíveis por inputs ambientais - como uso de drogas ou estresse, por exemplo - e podem até ser influenciados por eventos moleculares aleatórios que ocorrem durante o desenvolvimento. Duas pessoas jamais passarão exatamente pelas mesmas experiências ou terão o mesmo histórico de desenvolvimento de dificuldades. Então surge a pergunta: como esses inputs podem levar a doenças mentais? Num certo contexto a resposta é óbvia: a natureza e a criação chegam juntas às células nervosas do cérebro. Elas processam tudo o que experimentamos - tanto assistir a um filme, receber um abraço, consumir cocaína ou pensar no que preparar para o jantar - e depois partilham a informação entre si liberando e reconhecendo compostos químicos chamados neurotransmissores. Esses compostos são capazes de ativar ou inibir células nervosas isoladas e ativar ou desativar uma série de genes preparados para reagir. Dependendo dos genes afetados por determinado neurotransmissor é possível perceber como uma célula nervosa reagirá a uma experiência. Em última análise isso determina como uma pessoa se comporta. Muitos desses efeitos são de curta duração. A exposição à cocaína, por exemplo, ativa o centro de recompensa do cérebro levando a uma euforia passageira. A sensação desaparece rapidamente e o sistema se reinicia sozinho. Outra pergunta sem resposta é como as drogas, estresse ou outros estímulos podem produzir efeitos de longo prazo, fazendo com que a pessoa sucumba à depressão ou ao vício. O que muitos neurocientistas estão considerando é: e onde entra a epigenética? Compreender por que a epigenética atraiu nossa atenção ajuda a entender como a atividade gênica é regulada. Em termos sim-


pies, um gene é uma extensão do DNA que normalmente especifica a formação de uma proteína; já essa estrutura realiza a maioria dos processos celulares, controlando o comportamento das células. O DNA não é lançado ao acaso no núcleo da célula. Ao contrário, ele é enrolado em torno de aglomerados de proteínas chamadas histonas - como linha num carretel - e depois é ainda mais condensado em estruturas chamadas cromossomos. A combinação de proteína e DNA nos cromossomos é chamada cromatina. Esse empacotamento do DNA faz mais que manter a organização do núcleo; ele também ajuda a regular o comportamento dos genes residentes. Um empacotamento mais apertado tende a manter os genes num estado inativo, impedindo o acesso de mecanismos que os ativem. Numa célula nervosa, por exemplo, genes que codificam enzimas hepáticas são guardados em regiões cromossômicas densamente empacotadas. Mas, quando um gene é necessário, a seção de DNA onde ele se encontra desenrola-se um pouco, tornando-o acessível ao mecanismo celular que transcreve o DNA em um filamento de RNA. Na maioria dos casos o RNA funciona como um modelo para produzir a proteína codificada. Estimular um neurônio, por exemplo, pode habilitar essa célula a acelerar a transcrição dos códigos do gene para certos neurotransmissores, aumen-

tando a síntese dessas moléculas mensageiras. O fato de um segmento de cromatina estar afrouxado (pronto para ser ativado) ou condensado (desligado permanente ou temporariamente) depende de marcas epigenéticas: etiquetas químicas presas às histonas residentes ou ao próprio DNA. Essas etiquetas podem ter várias formas e juntas compõem um tipo de código que indica se a cromatina está fortemente empacotada e se os genes subjacentes devem ser transcritos (ver quadro à esquerda). Um gene isolado pode estar mais - ou menos - ativo, dependendo de como sua cromatina foi marcada. Modificações epigenéticas são produzidas por uma grande variedade de enzimas: algumas adicionam etiquetas químicas e outras removem. O pesquisador C. David Allis, da Universidade Rockefeller, chamou essas enzimas de "escritores" e "apagadores" do código epigenético. Uma enzima conhecida como histona acetiltransferase, que une um grupo acetil a uma histona, por exemplo, é um escritor, e uma histona desacetilase, que remove essa marca, é um apagador. As marcas atraem então outras proteínas que agem como "leitores". Elas prendem-se a etiquetas epigenéticas específicas e podem afrouxar ou condensar a cromatina circundante convocando outras proteínas reguladoras que estimulam ou reprimem a transcrição de gene residente.

DUAS P E S S O A S jamais passarão exatamente pelas m e s m a s experiências ou terão o m e s m o histórico de desenvolvimento e dificuldades

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Epigenética d a dependência auímica Estudos com camundongos mostram que exposição continuada à cocaína altera o equilíbrio de marcas epigenéticas em genes do centro de recompensa do cérebro. Essas alterações tornam os animais mais sensíveis aos efeitos da droga e mais propensos à dependência.

O QUE MUDA EXATAMENTE? Uma única dose de cocaína é suficiente para alterar o panorama epigenético de genes no núcleo accumbens - parte do centro de recom pensa. Na ausência da droga ( © ) , predominam as marcas metil, mantendo a cromatina afetada fortemente enrolada e seus genes inativos. Na presença da cocaína os grupos acetil predominam e a cromatina afrouxa ( © ) . Então vários genes que codificam proteínas envolvidas numa resposta prazerosa à droga são ativados. Núcleo

accumbens

Sem cocaína

Exposição crónica

Exposição inicial à cocaína

Alta

HHH

Baixa

B

C Gene

A

B

C

i

D

Depois de uma semana sem drogas: a atividade gênica volta ao normal

I

Depois de uma semana sem drogas: alguns genes permanecem superativos

jull A

B

C

D

EFEITOS DURADOUROS A exposição inicial à cocaína aumenta temporariamente a atividade de muitos genes (representados esquematicamente por mudanças em B, C e D, à direita), mas a atividade logo retorna ao normal. Exposição contínua, no entanto, produz efeitos mais complexos: diminui a sensibilidade de alguns genes à droga (B, extrema direita), enquanto aumenta ainda mais a atividade de outros (Ce D ) . Alguns genes permanecem superativos por períodos anormalmente longos. A localização d a s estruturas na imagem é apenas aproximada. 56

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O ambiente pode influir na atividade gênica regulando o comportamento de escritores e apagadores epigenéticos - e consequentemente a etiquetagem e reestruturação da cromatina. Às vezes as etiquetas persistem apenas por um breve intervalo, por exemplo para permitir que uma célula nervosa responda rapidamente a um estímulo forte produzindo uma onda contínua de liberação de neurotransmissor. Geralmente as etiquetas são mantidas por meses ou anos - ou até pela vida toda: fortalecendo ou enfraquecendo as conexões neurais envolvidas no armazenamento de lembranças.

COMPULSÃO À DEPENDÊNCIA A adição e a remoção de grupos acetil e metil e outras marcas podem ajudar o cérebro a responder e adaptar-se a desafios e experiências ambientais. Mas estudos com animais têm mostrado que esses processos epigenéticos benéficos podem desaparecer em condições como dependência química e depressão, quando a alteração do arranjo normal de modificações pode servir para ativar desejos, induzir sentimentos de frustração ou predispor um animal a um comportamento mal adaptado. Exames de tecido cerebral humano retirado após a morte sugerem que o mesmo processo pode ocorrer em humanos. Descobertas relacionadas à dependência química construídas a partir de pesquisas anteriores mostram como o uso excessivo de drogas se apodera do centro de recompensa natural do cérebro. Pesquisas identificaram grandes mudanças na ativação de genes em resposta a cocaína, opiáceos e outras substâncias que provocam dependência. Alguns desses trabalhos mostraram que mudanças na "expressão" do gene persistiram mesmo após meses de abstinência. Em relação aos efeitos de longa duração que as mudanças epigenéticas podem apresentar, há cerca de dez anos começamos a estudar se a cocaína poderia alterar as etiquetas epigenéticas que regulam a atividade dos genes no centro de recompensa do cérebro. A cocaína é uma droga poderosa que vicia tanto animais como pessoas. Portanto, seus efeitos de longo prazo podem ser facilmente estudados em experimentos de laboratório. Uma única dose de cocaína provoca mu-

Em alguns casos, uma única dose de cocaína é capaz de provocar alteração drástica na expressão gênica

danças drásticas e generalizadas na expressão gênica. Isso pode ser mensurado por concentrações de RNA mensageiro - resultado direto da ativação dos genes. Uma hora depois de camundongos receberem a primeira injeção de cocaína, aproximadamente 100 genes foram reativados. Ainda mais interessante foi o que ocorreu quando os animais foram continuamente submetidos à droga. Um grupo de genes, ativado pela exposição aguda à cocaína, torna-se silencioso se receber doses diárias. Esses genes ficam "dessensibilizados" à droga.

Mas um número muito maior de genes comporta-se exatamente ao contrário: embora se tornem temporariamente ativos em resposta à exposição inicial à droga, o uso contínuo aumenta ainda mais seus níveis de atividade-em alguns casos durante semanas após o animal ter recebido a última injeção. Além disso, esses genes continuam sensíveis à cocaína, mesmo depois de o animal ter sido exposto à droga por um período curto. O consumo contínuo de cocaína prepara então esses genes para futura ativação - permitindo, basicamente, que eles se "lembrem" dos efeitos da recompensa da droga. A preparação também ajuda o animal a reincidir, facilitando o caminho para a dependência. A intensificação da sensibilidade decorre de alterações dos genes. Usando técnicas poderosas para catalogar as marcas epigenéticas de todo o genoma do camundongo conseguimos demonstrar que a administração contínua de cocaína reconfigura seletivamente um conjunto de etiquetas acetil e metil em centenas de genes do centro de recompensa do cérebro. Coletivamente essas mudanças tendem a afrouxar a estrutura da cromatina, tornando esses genes mais predispostos à ativação por exposição posterior à droga. Novamente, muitas dessas mudanças são temporárias - permanecendo algumas horas depois de o animal receber a dose. Outras, no entanto, são mais duradouras: registramos alterações que persistiram por pelo menos um mês e estamos observando períodos ainda mais longos. 57


EXPERIMENTOS COM C A M U N D O N G O S em laboratório mostram que algumas mudanças de comportamento influenciadas pelos genes duraram meses, outras podem perdurar por toda a vida; em humanos o mecanismo parece similar

BIOQUÍMICA DA C O C A Í N A Também começamos a manipular os mecanismos dessas mudanças persistentes. Descobrimos que a administração contínua de cocaína inibe a atividade de certos apagadores, que removem grupos acetil, e de escritores específicos, que adicionam grupos metil inibidores. Cromatina mais fortemente acetilada - ou metilada - permanece num estado mais aberto, relaxado, tornando seus genes residentes mais sensíveis à ativação. A exposição crónica à cocaína também manipula a atividade de outros escritores e apagadores no centro de recompensa do cérebro, deixando em seu rastro um conjunto de marcas epigenéticas que favorecem a ativação gênica. Reforçando essa observação, verificamos que quando induzimos a atividade desses escritores e apagadores artificialmente para imitar os efeitos do consumo crónico da droga, mas sem administrá-la, tornamos o animal mais sensível aos efeitos prazerosos da cocaína - uma das marcas registradas da dependência química. Mudanças nas atividades do escritor e apagador que acompanham a exposição crónica à cocaína também são duradouras, o que pode ser responsável pelas alterações de longo prazo na atividade dos genes marcados - e n a forma como o animal responde a uma série de experiências futuras. Como o centro de recompensa do cérebro reage a essa ampla variedade de estímulos - incluindo alimentos e sexo - , manipular a atividade dos neurónios no centro de

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recompensa pode simplesmente alterar a forma como o animal se comporta. Adaptações neurais que afetam o comportamento de longo prazo também estão portrás de um quadro psiquiátrico crónico, mais comum e debilitante: a depressão. Como no caso da dependência química, aspectos desse transtorno também podem ser facilmente estudados em animais. Trabalhamos com camundongos submetidos a frustração social contínua. Camundongos machos de conduta passiva formaram pares com animais mais agressivos. Depois de um período de dez dias de ameaças, os animais dóceis exibiam sinais de depressão humana: não participavam mais de atividades de que gostavam (sexo, consumo de doces) e tornaram-se mais ansiosos, introvertidos e menos ousados; ou até comiam demais a ponto de se tornarem obesos. Algumas dessas mudanças duraram meses e foram revertidas pela administração contínua do mesmo antidepressivo usado no tratamento de humanos. Observando mais cuidadosamente o DNA de camundongos percebemos mudanças nas modificações epigenéticas de cerca de 2 mil genes do centro de recompensa do cérebro. Medimos um aumento de uma marca epigenética específica em 1.200 desses genes-uma forma de metilação de histona que reprime a atividade gênica. Isso mostra que a depressão pode desativar genes importantes na ativação da parte do cérebro responsável pelo bem-estar, criando um tipo de "cicatriz molecular". Notamos que muitas das alterações induzidas pelo estresse podem ser revertidas se os camundongos são tratados durante um mês com imipramina - um antidepressivo amplamente prescrito para humanos. Mudanças epigenéticas similares foram detectadas em amostras de cérebro de pessoas vítimas de depressão na época em que morreram. Embora a depressão seja um problema comum na população humana, nem todas as pessoas são igualmente vulneráveis. O mesmo acontece com camundongos. Aproximadamente um terço dos machos que receberam uma dose diária de frustração social aparentemente resistiu à depressão: apesar de terem sido submetidos ao mesmo estresse impiedoso, não apresentaram a introversão ou o desinteresse mostrado pelos companheiros suscetíveis. Essa


resiliência atinge até o nível gênico. Mas várias mudanças epigenéticas induzidas por estresse que observamos em camundongos suscetíveis não ocorrem em camundongos resilientes. Ao contrário, esses animais apresentam modificação epigenética de um conjunto adicional de genes do centro de recompensa, que não sofre o mesmo tipo de modificação em camundongos, que se tornaram deprimidos. As descobertas sugerem que esse padrão alternativo de alterações é benéfico e que a resiliência é mais que apenas uma falta de vulnerabilidade: ela envolve um programa epigenético ativo que pode ser convocado para combater os efeitos do estresse crónico. Descobrimos também que camundongos resilientes, epigeneticamente modificados, tinham vários dos mesmos genes cuja atividade voltou ao normal em camundongos deprimidos tratados com imipramina. Um subconjunto desses genes é conhecido por impulsionar a atividade do centro de recompensa do cérebro e, assim, evitar a depressão. Essas observações reforçam a hipótese de que em humanos os antidepressivos podem funcionar, ao menos em parte, ativando alguns dos programas epigenéticos protetores que atuam em pessoas menos propensas à depressão. Se isso for verdade, além de procurar drogas que bloqueiam os efeitos maléficos do estresse crónico, também poderemos identificar alternativas que estimulem os mecanismos naturais da resiliência no cérebro. Observamos que os efeitos discutidos até aqui persistem por um mês - o período mais longo que examinamos. Mas modificações epigenéticas podem promover mudanças comportamentais que perduram pela vida toda, como foi demonstrado pelo pesquisador Michael Meaney, da Universidade McGill, e seus colegas. Meaney estudou os efeitos dos cuidados maternos em modificações epigenéticas e no comportamento posterior dos filhotes. Os pesquisadores observaram que algumas ratas (mães) exibiam altos níveis de comportamento maternal, lambendo e ajeitando seus rebentos. Outras eram menos diligentes. Filhotes de mãe mais zelosa eram menos ansiosos e produziam menos hormônio do estresse quando perturbados que filhotes criados por mãe mais passiva.

Além disso, fêmeas criadas por mãe protetora também se tornaram mães zelosas. Posteriormente, o grupo de Meaney mostrou que os efeitos do comportamento maternal são intermediados, ao menos em parte, por mecanismos epigenéticos. Uma comparação entre filhotes criados por mãe passiva e filhotes tratados agressivamente revelou que os primeiros mostram mais metilação do DNA que os últimos nas sequências reguladoras do gene que codifica o receptor de glicocorticoide - proteína presente na maioria das células do corpo que intermedeia a resposta do animal ao cortisol, hormônio do estresse. Essa metilação excessiva detectada no hipocampo - região do cérebro envolvida na memória e aprendizagem - induz as células nervosas a produzir menos desse receptor. Como a ativação do glicocorticoide no hipocampo induz o corpo a produzir menos cortisol, a redução epigenética no número de receptores piora a resposta dos animais ao estresse, tornando-os mais ansiosos e amedrontados - caracteres que persistem pela vida toda. Os efeitos do glicocorticoide no receptor pode ser apenas parte da história. Frances Champagne, da Universidade Colúmbia, e seus colegas descobriram diferenças epigenéticas semelhantes no gene que codifica o receptor de estrogênio em filhotes criados por mãe ativa e em filhotes criados por passiva. É provável então que marcas epigenéticas de vários outros genes estejam envolvidas na programação de respostas a - e, portanto na herança de - algo tão complexo como o comportamento maternal. Aparentemente, nessas condições mudanças epigenéticas produzidas numa geração podem ser transmitidas para a seguinte mesmo que não passem pela linha embrionária. O comportamento da mãe altera a regulação epigenética dos genes no cérebro do filhote e ele, posteriormente, exibe o mesmo comportamento, o que altera a marcação epigenética e o comportamento de seus descendentes. Um desafio decisivo para as próximas décadas será explorar o que estamos aprendendo sobre modificações epigenéticas e comportamento para desenvolver métodos mais aprimorados para o tratamento de diversos transtornos psiquiátricos. Nós e outros pesquisadores descobrimos que as drogas que mantêm as histonas revestidas com grupos


acetílicos - inibindo as enzimas que apagam essas marcas - apresentam poderoso efeito antidepressivo. Além disso, embora a criação passiva de filhotes esteja associada a mudanças na metilação do DNA, Meaney descobriu que as mesmas drogas podem promover um comportamento estimulante, porque o aumento de metilação pode opor-se aos efeitos repressivos da metilação excessiva. Embora esses resultados sejam promissores, os inibidores atualmente no mercado provavelmente não são eficazes no combate às doenças mentais. Os apagadores acetil - histona deacetilase - regulam a marcação epigenética nas células de todo o cérebro e de todo o corpo, por isso medicamentos que os desabilitam indiscriminadamente apresentam sérios efeitos colaterais e podem ser tóxicos. Uma alternativa seria produzir medicamentos capazes de inibir seletivamente formas de histona deacetilase intensificadas em áreas do cérebro mais afetadas em determinadas

condições psiquiátricas, por exemplo o centro de recompensa. Outra opção seria identificar novas proteínas envolvidas em modificações epigenéticas do cérebro. Mas a abordagem mais promissora seria determinar que genes estão sujeitos à modificação epigenética na depressão ou na dependência química: genes para receptores de neurotransmissores específicos ou sinalizadores de proteínas envolvidos na ativação neural. Podemos então concentrar nossos esforços para criar medicamentos visando diretamente a atividade desses genes específicos - ou as proteínas dos genes. Uma questão intrigante que ainda deve ser respondida é: até que ponto as mudanças epigenéticas que acompanham condições neuropsi-quiátricas são hereditárias? Nos experimentos de Meaney os ratos herdavam certos padrões de comportamento - e o respectivo perfil epigenético - da mãe. Mas essas mudanças, diretamente influenciadas pelo comportamento, ocorrem no cérebro;

M i n h a mãe, e u m e s m o Estudos com ratos mostram que a epigenética pode influenciar o comportamento maternal e esse efeito pode ser transmitido de uma geração para outra agindo somente no cérebro dos filhotes, sem alterar células germinativas. Quando os filhotes nascem, os genes envolvidos na regulação das respostas ao estresse são guarnecidos com marcas metil inibidoras, que aumentam a sensibilidade ao estresse. Se os filhotes forem criados por uma mãe tranquila e zelosa, muitos dos grupos metil se diluem, tornando os animais mais calmos. Ao tornarem-se adultos, esses filhotes também serão pais e mães mais zelosos e tranquilos. Mas se os filhotes forem criados por mãe medrosa e passiva seus genes receberão marcas metil e eles se tornarão adultos nervosos e pais negligentes.

A localização d a s estruturas na imagem é apenas aproximada.

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não são transmitidas por marcas nos genes de células germinativas que formam um novo embrião. Uma questão mais provocativa é: essas experiências podem provocar mudanças epigenéticas nos espermatozóides e óvulos e serem então transmitidas diretamente aos descendentes?

HERANÇA E COMPORTAMENTO Certamente é razoável pensar que estresse crónico ou dependência química podem alterar a atividade de genes nos espermatozóides e óvulos; afinal os hormônios do estresse e as drogas não estão confinados ao cérebro, mas fluem pelo corpo todo, incluindo os testículos e ovários. O que é difícil entender, no entanto, é como essa mudança nas células sexuais pode manter-se por gerações. Modificações epigenéticas adquiridas são apagadas durante o tipo de divisão celular que dá origem aos espermatozóides e óvulos. Outra pergunta é: como alterações no embrião, se isso ocorrer, influenciam a atividade dos genes apenas em determinadas partes do cérebro ou nos órgãos endócrinos do adulto? Estudos intrigantes sugerem que algumas modificações epigenéticas podem ser herdadas. Vários grupos descobriram que roedores cronicamente estressados geram prole particularmente sensível ao estresse. Isabelle Mansuy, da Universidade de Zurique, e seus colegas, por exemplo, isolaram filhotes de camundongo do convívio materno durante as primeiras duas semanas de vida e notaram que, quando adultos, os filhotes machos mostraram sinais de depressão. Quando os machos cruzavam com fêmeas normais a prole resultante também mostrava comportamento similar à depressão em adultos, mesmo que não tivessem sofrido estresse durante a criação. Essa transmissão de vulnerabilidade ao estresse está correlacionada a níveis alterados de metilação do DNA de vários genes específicos, tanto nos espermatozóides como no cérebro. Num estudo similar que realizamos usando nosso modelo de frustração social submetemos camundongos machos a estresse crónico. Depois de um mês permitimos que os machos se acasalassem e descobrimos que os filhotes apresentavam um forte aumento na suscetibilidade à depressão. Depois demos mais um passo adiante: se as modificações

epigenéticas que tornam os camundongos suscetíveis à depressão fossem realmente hereditárias, então as mudanças teriam atingido as células sexuais dos animais. Retiramos então espermatozóides dos machos intimidados e fertilizamos óvulos de fêmeas normais. Descobrimos que praticamente toda a progénie dessa união artificial era normal: os filhotes mostraram apenas uma ligeira tendência à introversão e ansiedade típica dos pais. Esse experimento não é definitivo, porque as marcas epigenéticas devem ser, de alguma forma, retiradas dos espermatozóides durante o processo de fertilização in vitro. Mas os resultados parecem indicar que as fêmeas que cruzaram com machos intimidados tratavam seus filhotes de forma diferente das que cruzaram com machos normais - ou que nunca encontraram os pais de sua prole. Por isso, a depressão dos filhotes pode ter se originado de experiências comportamentais anteriores e não de uma herança epigenética direta transmitida pelos espermatozóides e óvulos. Isso não significa que a t r a n s m i s s ã o transgeracional seja impossível. Atualmente, no entanto, não temos evidências definitivas que confirmem os fatos. Para resolver a questão precisamos desenvolver ferramentas experimentais que permitam identificar modificações epigenéticas relevantes nas células germinativas - e determinar se essas modificações são necessárias e suficientes para induzir a transmissão dos caracteres observados. O biólogo do século 18 Jean-Baptiste Lamarck tornou-se conhecido pela teoria dos caracteres adquiridos. De acordo com essa teoria, caracteres que os organismos adquirem durante a vida - uma musculatura bem trabalhada, por exemplo - podem ser transmitidos a seus descendentes. Agora sabemos que os genes desempenham papel dominante na determinação da psicologia e funções das pessoas. Ao mesmo tempo, os cientistas estão cada vez mais predispostos a aceitar que a exposição ao ambiente e as diferentes experiências (incluindo ocorrências aleatórias) ao longo do desenvolvimento e da vida adulta podem modificar a atividade de nossos genes e, portanto, as formas como esses caracteres se manifestam. Mas ainda há muito trabalho pela frente. ®

miiiimmiimimiiiiiiiimiiiiiiiiiMi P A R A

S A B E R

M A I S

Epigenética: C o m o a ciência está revolucionando o que s a b e m o s sobre hereditariedade. R i c h a r d F r a n c i s . Zahar, 2015. G e n e s de pai e m ã e não s ã o igualmente e x p r e s s o s : I m p l i c a ç õ e s para d o e n ç a s g e n é t i c a s e s í n d r o m e s irmãs. Felipe da Fonseca Silva Couto, A n n a Karolinne N a s c i m e n t o , Greice Elen de M e l l o G a r c i a , R e n a t o da Silva Cordeiro Colenghi, R o b e r t P o g u e . Revisto de

Medicino e Saúde de Brasília,

Vol.

3, 2, 2 0 1 4 .

T h e epigenetic landscape o f addiction. I. M a z e a n d Eric J. Nestler, e m Annals of the

New York Academy of Scien-

ces, v o l . 1 2 1 6 , p á g s . 9 9 - 1 1 3 , janeiro de 2 0 1 1 . Epigenetic t r a n s m i s s i o n o f the i m p a c t o f early s t r e s s a c r o s s g e n e r a t i o n s . T. B. F r a n k l i n et a I . , e m BiológicaI

Psychiatry,

v o l . 6 8 , n° 5,

págs. 408-415, I de setembro de 2 0 1 0 . o

Epigenetic regulation o f genes in learningand memory. T. L. R o t h , E. D. Roth e j . D. S w e a t t , e m Essays in Biochemistry, v o l . 4 8 , n° 1 , p á g s . 263-274, setembro de 2010.

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Reparos secretos durante o sono AO C O N T R Á R I O DO Q U E M U I T O S I M A G I N A M , D O R M I R NÃO É PERDA DE T E M P O . ALIÁS, P E L O C O N T R Á R I O . T I R A R U M A S O N E C A " A F R O U X A " AS C O N E X Õ E S N E U R A I S Q U E C R I A M S U S T E N T A Ç Ã O PARA FIXAR C O N H E C I M E N T O , R E S T I T U I N D O AO S I S T E M A C E R E B R A L UM ESTADO MAIS SAUDÁVEL E FLEXÍVEL

por Jason Castro

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O AUTOR J A S O N C A S T R O é pesquisador, pós-doutorado e m neurociências no Centro de Neurociências da Universidade de Pittsburgh. 62

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ivemos numa sociedade que a todo momento nos convida à vigília. Obrigações, demandas de trabalho e opções de diversão não faltam. São tantas as possibilidades de distração que muitas vezes dormir parece um desperdício - é como se, em comparação com a urgência imposta pela vigília, o sono fosse enfadonho e improdutivo. De fato, o cérebro adormecido não prepara projetos para apresentar na reunião na empresa nem responde à lista atrasada de e-mails. Exceto durante os sonhos, nesse estado ninguém tampouco ama, planeja as próximas férias ou realiza muita coisa que cause admiração. No entanto,


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Neurónios de ratos acordados apresentaram maior atividade elétrica em relação a camundongos que dormiam, indicando que as células em repouso formam ligações mais fracas

é justamente durante as horas tranquilas, enquanto a mente está em repouso, que o cérebro faz o trabalho essencial para todos os atos criativos: edita a si mesmo. Guarda o que pode ser útil e t a m b é m joga muita coisa fora. Em sua nova teoria sobre a finalidade do sono, o neurocientista Giulio Tononi, pesquisador da Universidade de Wisconsin-Madison, propõe que dormir para registrar o que aprendemos também pode estimular o enfraquecimento de conexões cerebrais. Seus estudos sugerem que, conforme a mente consciente se acomoda no sono, as ligações neurais que criam sustentação para o conhecimento parcialmente "se soltam". Embora esse desmantelamento noturno possa parecer, à primeira vista, um ato de autossabotagem cerebral, o neurocientista acredita que, na verdade, trata-se de um mecanismo que melhora a capacidade do cérebro de codificar e armazenar novas informações. Os benefícios do sono para o aprendizado e a memória são amplamente aceitos na comunidade científica. Segundo a visão predominante, as lembranças recém-formadas são repetidas durante o sono e, durante esse processo, são registradas de forma mais intensa. No entanto, de acordo com Tononi, ao unir essas memórias, os circuitos neurais podem ser fortalecidos somente algumas vezes até chegar a sua força máxima. Ele e seus colegas reuniram evidências de que o sono também serve como um botão de reset que, de maneira uniforme, afrouxa conexões neurais para colocar o cérebro de volta em um estado flexível para que a aprendizagem possa ter lugar. A teoria é controversa. Alguns pesquisadores do sono consideram o resultado ainda muito preliminar e apresentam a hipótese de que o sono seja um momento de consolidação e reforço da memória. Ainda assim, se Tononi estiver certo, dormir pode não ser apenas organizar memórias do passado recente - mas também garantir espaço para as

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memórias de experiências ainda não vividas. A aprendizagem ocorre quando uma experiência, como ouvir uma nova música ou andar por uma cidade desconhecida, por exemplo, impõe um padrão de atividade em grupos de neurónios. A experiência altera interconexões de células: ligações entre neurónios coativos se fortificam enquanto aquelas fora do movimento se enfraquecem. Assim, as células se tornam interligadas de maneira funcional. Esta trama dedica-se a preservar um fragmento específico da experiência: a memória. Mais tarde, durante períodos "desligados" - particularmente quando estamos dormindo - o padrão registrado pela experiência se repete, conduzindo a alterações celulares que estabilizam o processo. Embora grande parte dos pesquisadores conceba o sono como essa recapitulação de aprendizagem durante o dia, Tononi enxerga um problema em potencial nessa hipótese: se as ligações entre neurónios, as sinapses, fossem reajustadas e fortificadas ao longo de dias e noites consecutivas, as células neurais se tornariam " s a t u r a d a s " . Assim como acontece com os pixels de uma imagem muito brilhante, um conjunto de sinapses uniformes potencializadas forneceria pouca informação. Da mesma forma, um cérebro nessas condições não teria como armazenar novas experiências. Tononi também observou algumas propriedades interessantes das ondas cerebrais que ele e outros pesquisadores haviam registrado em pessoas dormindo. Cientistas há muito tempo sabem que as "ondas lentas" do s o n o - f a s e de descanso profundo em que fica mais difícil despertar- são necessárias e restauradoras. Mesmo assim, dois fenómenos específicos ainda chamavam a atenção de Tononi. Primeiro, ele identificou que pessoas privadas do sono de ondas lentas tendem a compensar o período com turnos mais longos e intensos desse tipo de sono mais tarde. Além disso, o neurocientista notou que a intensidade do sono profundo - medida como amplitude em gravações de ondas cerebrais - cessa conforme a noite avança. Ambas as observações lhe forneceram exemplos de homeostase (a alternância de forças opostas para manter o equilíbrio do sistema biológi-


F O F O C A M I C R O S C Ó P I C A : nesta imagem ampliada de u m a s i n a p s e (a conexão entre dois neurónios), u m a extensão de u m a célula neural envia u m sinal químico e elétrico através da pequena abertura entre os neurónios para atingir a membrana da célula recipiente

co). O sono de ondas lentas parece "puxar" o cérebro de volta a algum tipo de equilíbrio que a vigília havia perturbado. Tononi procurou desvendar o processo biológico que embasa as mudanças no sono de ondas lentas. Ele sabia que sua intensidade estava relacionada com a força total das sinapses. Quando os neurónios disparam em conjunto, conduzem grupos de conexões neurais à ativação em sincronia. A corrente elétrica que flui através das células neurais cria o sinal de ondas lentas (gravado com eletrodos implantados no couro cabeludo). Tononi acredita que estar acordado pode levar a uma proliferação ou ao reforço de sinapses e que a intensidade inicial elevada do sono de ondas lentas reflete essas redes celulares fortificadas. Se de alguma forma as sinapses se rompem durante este período de sono, este enfraquecimento poderia explicar por que os sinais do sono diminuem ao longo da noite. Para embasar sua hipótese - apelidada por ele de "homeostase sináptica" - Tononi

observou diretamente como as conexões se alteram entre o sono e a vigília. Em um estudo publicado em 2008, o neurocientista e seus colaboradores colheram tecido cerebral de alguns ratos em vigília e de outros animais enquanto dormiam. Para cada amostra de tecido, os pesquisadores usaram anticorpos radioativos para, de maneira seletiva, marcar várias proteínas que existem apenas nas sinapses. Curiosamente, eles encontraram quantidade significativamente maior de proteínas nos ratos acordados do que nos animais em repouso. Conclusão: existem menos sinapses no cérebro adormecido, ou seja, nessa condição as conexões têm menos recursos para comunicação eficaz - isto é, são mais fracas. A hipótese ganha força com outro estudo, do cientista Xiao-Bing Gao e seus colegas da Universidade Yale. Em colaboração com Tononi, a equipe de Gao gravou a atividade elétrica de neurónios individuais em fatias de tecido cerebral de roedores cochilando e


C i c l o vigília-sono a o l o n g o d a v i d a Por se caracterizar pela alternância de dois estados comportamentais bem distintos, o ciclo vigília-sono é o ritmo circadiano mais evidente no ser humano. No entanto, o que vale para a fase adulta não serve necessariamente para outras etapas do desenvolvimento.

Nos bebés, por exemplo, o ciclo vigília-sono se expressa de forma mais fragmentada; tendência semelhante é observada em idosos. Nos adolescentes, há um atraso dos ritmos circadianos relacionado ao processo de maturação sexual do organismo.

CRIANÇAS ATÉ 5 ANOS É muito variável a idade e m que a criança começa a dormir exclusivamente à

BEBÉS O ser humano nasce com relógios biológicos imaturos. Dormem muitas vezes ao dia e acordam várias vezes à noite. A exposição ao ciclo claro-escuro e a interação social sincronizam os ritmos do bebé, que passa a acordar menos à noite e a dormir menos de dia.

noite. Enquanto algumas

ADOLESCENTES

c o m pouco mais de 1 ano

A puberdade e s t á

p a s s a m o dia todo despertas,

relacionada a u m atraso

outras, aos 4 ou 5 anos,

dos ritmos. N a prática,

ainda necessitam de u m

os adolescentes tendem

cochilo à tarde. Antes disso,

a dormir e acordar m a i s

porém, muitas exibem, por

tarde. Q u a n d o e s t u d a m

ADULTOS

volta do segundo ano de

na parte da m a n h ã , o

vida, dois episódios de sono

resultado é privação

diurno, um de m a n h ã e

parcial de s o n o ,

outro à tarde.

sonolência excessiva

monofásico do ciclo

diurna e déficit de

vigília-sono na idade

aprendizado.

adulta, as diferenças

U m a vez consolidado o padrão circadiano e

individuais na alocação do s o n o ficam m a i s evidentes. H á q u e m prefira dormir e acordar cedo e há q u e m não tolere fazer o m e s m o . Entre os dois extremos, muitos parecem ser mais

flexíveis.

IDOSOS Tendem a adiantar os horários de dormir e de acordar. Também é comum fragmentarem o sono, como os bebés. Não está claro, porém, se o hábito de cochilar de dia é inerente ao envelhecimento. Alguns estudos sugerem que idosos sadios e ativos são menos propensos à fragmentação do sono.

66

I mentecérebro I Neurociência 2


em alerta. Constantemente, os neurónios se comunicam entre si por meio de pequenas correntes elétricas transportadas por meio das sinapses. Quanto mais intensa for a corrente que flui através delas, mais fortes serão as conexões. Os neurónios de roedores previamente acordados demonstraram descarga elétrica mais rápida e vigorosa do que a de animais em repouso, indicando que enquanto o cérebro dorme, os neurónios têm conexões sinápticas mais ténues. Os resultados sugerem que o cérebro alterna estados de ligações entre células neurais fracas e fortes durante o ciclo dia-noite.

E F E I T O S E S P E C I A I S : cientistas c o n t a r a m por meio de u m a m a r c a fluorescente conexões neuronais no cérebro e m repouso e m alerta de moscas-das-frutas. N a célula

MOSCAS SONOLENTAS Se enquanto nos entregamos aos braços de Morfeu as sinapses são remodeladas, os pesquisadores devem ser capazes de ver os sinais estruturais dessas mudanças. As conexões através das quais os neurónios se comunicam podem variar em número e tamanho. Em geral, quanto maior a quantidade e o tamanho das sinapses, mais "informações elétricas" podem viajar entre dois neurónios conectados. Os cientistas podem visualizar sinapses deixando marcas fluorescentes nas proteínas que trabalham em ambos os lados da fenda sináptica. Em 2011, Tononi e os neurocientistas de Wisconsin Daniel Bushey e Chiara Cirelli relataram o uso dessas técnicas para controlar o tamanho e o número de sinapses em moscas-das-frutas (veja ilustração acima). Eles forçaram algumas moscas a ficarem a c o r d a d a s , colocando-as em u m a caixa giratória - na parte superior da rotação, os insetos sonolentos cairiam e acordariam para verificar se protelar o sono impediria o encolhimento e a retração de sinapses. Surpreendentemente, de acordo com a hipótese de Tononi, os pesquisadores observaram maior densidade e tamanho de sinapses - em alguns casos, duas vezes maiores - no cérebro das moscas que haviam sido forçadas a permanecer acordadas em comparação com as moscas em repouso. Em um estudo ainda mais recente, Tononi e sua equipe estenderam esses resultados a ratos. Ao rotular neurónios do córtex do cérebro desses mamíferos com indicadores fluorescentes, os pesquisadores observa-

fluorescente (em verde), a estrutura longa é o axônio, principal canal de i n f o r m a ç õ e s recebidas do neurônio. A s s i n a p s e s s e f o r m a m n a s m i n ú s c u l a s protuberâncias arredondadas n a s t e r m i n a ç õ e s

ram o crescimento e a retração de espinhas sinápticas - minúsculas protuberâncias arredondadas nos neurónios onde ocorrem as sinapses. Eles verificaram que a densidade total de conexões aumentou com a vigília, manteve-se elevada enquanto os animais estavam privados de sono e diminuiu somente após dormirem.

T Ó N I C O PARA ADORMECER Antes que a homeostase sináptica possa ser considerada o principal motivo para dormir, os pesquisadores precisam encontrar maiores evidências de que algum aspecto mensurável da função neural - aprendizagem, memória ou percepção, por exemplo - é melhorado pela diminuição de sinapses e comprometido quando essas atividades são de alguma forma restringidas. Porém, há consenso de que não será fácil demonstrar essas provas. Intuitivamente, sabemos que dormir é restaurador; muitas metáforas tentaram capturar esta ideia. O sono é um tónico, um bálsamo. A sabedoria popular afirma: "Nada como uma boa noite de sono entre um dia e outro". "Dorme que passa..." Ou, como disse Shakespeare, dormir "entrelaça com cuidado os fios separados e cortados". Ele não podia saber que o sono nos renova desfazendo no cérebro as malhas entrelaçadas durante o dia para que possamos viver e aprender novamente. Mas, de alguma forma, intuía. ©

miiimiiiiiiiiiiiiiiiimiiimiiiiiiiim

PARA SABER MAIS Distúrbios do sono. N a y r a Cesaro Penha Ganhito. Casa do Psicólogo, 2 0 0 1 . Sleep and waking modulaten spine tu mover in the adolescente mouse córtex. S. Maret e outros e m Nature Neuroscience, v o l . 14, págs. 1418-1420, novembro de 2 0 1 1 . Sleep and synaptic homeostasis: structural evidence in D r o s o p h i l a . D. B u s h e y , G . Tononi e C. Cirelli e m Science, vol. 332, págs. 1576-1581,24 de j u n h o de 2 0 1 1 . Sono e saúde. R u b e n s Reim ã o , L u i z a Elena L. Ribeiro do Valle, Eduardo L Ribeiro do Valle, Sueli Rossini. Novo Conceito. 2010.

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O ataque invisível ALGUNS PROTOZOÁRIOS INFECTAM HOSPEDEIROS, TANTO HUMANOS QUANTO OUTROS A N I M A I S , M O L D A N D O S E U C O M P O R T A M E N T O ; P E S Q U I S A D O R E S SE P E R G U N T A M A G O R A SE ESSES M I N Ú S C U L O S INTRUSOS PODERIAM PERMANECER A VIDA INTEIRA NO O R G A N I S M O D E U M A P E S S O A , C O N T R O L A N DO-A S E M S E U

CONHECIMENTO

por Christof Koch

O O

A U T O R

C H R I S T O P H K O C H é professor de biologia cognitiva e comportamental do Instituto de Tecnologia da Califórnia. 68

I mentecérebro I Neurociência 2

antigo debate sobre livre-arbítrio constantemente evocado por teólogos, filósofos e estudiosos do psiquismo parece insolúvel, portratar-se de uma questão metafísica que, na prática, causa muita discussão e pouco resultado. No entanto, o senso comum e uma grande quantidade de pesquisas psicológicas e neurocientíficas revelam que não somos tão livres como acreditamos. Nossos genes, a cultura a que pertencemos e a educação que recebemos interferem em nosso sistema de valores, em nossas crenças e comportamentos de formas que frequentemente escapam do nosso controle consciente. A indústria da propaganda, que conhece muito bem o poder dessa ascendência, gastou



iiiiiiiiiiiiiiiiiimiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiM

Mulheres inteligentes, h o m e n s tolos Quando o biólogo evolucionista Jaroslav Flegr, de Praga, considerou, pela primeira vez, nos anos 90, a tese de que a toxoplasmose poderia afetar o cérebro humano e, a longo prazo, alterar a personalidade, houve grande agitação entre os especialistas. Ele entrevistou mais de mil pessoas que haviam sofrido da forma aguda da patologia ou adoecido de uma infecção desconhecida, e perguntou-lhes sobre características pessoais. Flegr comparou os resultados com outros referentes a pessoas sadias. Conclusão: as mulheres infectadas se tornaram mais inteligentes, descontraídas e afetuosas; já os homens, mais tolos, ciumentos e rebeldes. Em outros estudos, o pesquisador percebeu que pessoas infectadas pela toxoplasmose se envolviam com mais frequência em acidentes de trânsito. O motivo seria o fato de que o patógeno aumentava nos afetados a disposição para assumir riscos mas, ao mesmo tempo, reduzia sua capacidade de reação - de forma semelhante ao que ocorre com os roedores.

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Flegr parecem grotescas: afinal, normalmente o homem não se encaixa no esquema de presas dos gatos. Portanto, do ponto de vista evolucionário, a manipulação do homem pelo parasita parece não ter sentido. Mas Flegr argumenta que o homem pré-histórico certamente foi vítima de grandes felinos no decorrer da evolução. "Além disso, os parasitas nem sempre percebem que o seu hospedeiro do momento significa um beco sem saída e simplesmente continuam executando seu programa de sabotagem", explica o biólogo.

"Quanto mais tempo a pessoa ficar infectada, mais intensamente mudará", diz Flegr. No entanto, ele admite que até agora existem apenas correlações estatísticas, não associações causais comprovadas, e reconhece que os processos neuroquímicos que podem ter levado às alterações precisam ser mais bem estudados. À primeira vista, as conclusões de

Quando as teses de Flegr pareciam estar caindo em esquecimento, um estudo do especialista em parasitas Kevin Lafferty, da Universidade da Califórnia em Santa Barbara, reavivou o interesse pela toxoplasmose. O pesquisador busca comprovar que a influência do ser unicelular de apenas alguns micrômetros explica não apenas características de personalidade individuais, mas é também corresponsável pelas diferenças de mentalidade entre pessoas pertencentes a variadas culturas. Lafferty comparou dados sobre as taxas de infecção em 39 países com modelos de cultura de cada região - entre eles, padrões de pensamento profundamente arraigados e perfis frequentes em cada população. Ele questiona se uma injeção poderia estimular desejos e a formação de valores e traços como tendência tanto para a

em 2010 aproximadamente US$ 0,5 trilhão no mundo todo para influir nas decisões dos consumidores. Ditaduras extremistas, como a da Coreia do Norte, permanecem no controle porque utilizam com eficiência formas insidiosas e penetrantes de propaganda. Mas com todo esse empenho, isso nem sequer se aproxima do que é capaz de fazer "naturalmente" o organismo unicelular Toxoplasma gondii (ou T. gondii) - um dos mais difundidos parasitas: ele se instala no cérebro do hospedeiro induzindo-o a agir desordenadamente, e até a fazer coisas que provocariam sua morte, sempre a serviço do benefício do invasor. É

como um filme hollywoodiano de segunda linha, mas neste caso real. Sabemos que as doenças podem nos deixar menos ativos, causar incapacitações e, no pior dos casos, até nos matar. Esse organismo, no entanto, é muito mais específico. A seleção natural deu origem a patógenos que se infiltram no sistema nervoso e alteram circuitos cerebrais para atingir sua meta final: a replicação, como um vírus de computador que reprograma e infecta a máquina. O T. gondii age dessa forma. Ele se reproduz sexualmente somente no intestino de gatos, embora possa manter-se indefinidamente

I mentecérebro I Neurociência 2


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um

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competição e a autoconfiança quanto para a insegurança, por exemplo. Há ainda outro aspecto a ser considerado: os indícios da ligação entre toxoplasmose e esquizofrenia. Uma equipe coordenada pelo psiquiatra Edwin Fuller Torrey, do Instituto Stanley de Pesquisas Médicas de Bethesda, no estado americano de Maryland, encontrou anticorpos contra o patógeno da toxoplasmose no sangue de esquizofrênicos com frequência duas vezes maior do que no sangue de pessoas sadias. Quando tratou células humanas infectadas com o Toxoplasma gondii em uma placa de cultura com o antipsicótico haloperidol, o crescimento dos parasitas foi inibido. O medicamento para I N O F E N S I V O PARA F E L I N O S , letal para fetos h u m a n o s : micrografia do trofozoíto, forma esquizofrenia chegou mesmo a recuperar em ativa do protozoário Toxoplasma gondii ratazanas infectadas o medo natural em relação à urina do gato de forma tão efetiva quanto a subsExiste, porém, o outro lado da moeda: utilizar as mestância utilizada para tratar toxoplasmose, a pirimetamina mas substâncias de nossas células neurais torna mais fácil Mas não foi apenas o transmissor da toxoplasmose que se interessou pelo cérebro humano: o vírus da raiva é também parasita cerebral. Alguns pesquisadores acreditam que ele assegura a própria existência ao infectar determinados neurónios do sistema límbico e do córtex cerebral que tornam suas vítimas sujeitas a acessos de raiva e a agressões físicas. O comportamento manipulado aumenta a probabilidade de que o patógeno seja transferido para um novo hospedeiro. Como nossas redes neuronais se adaptam constantemente às condições ambientais em alteração, con seguimos reagir de forma flexível a novos desafios.

em qualquer animal de sangue quente. Felinos infectados espalham pelas fezes milhões de células chamadas oócitos, que dão origem aos óvulos. Absorvidos por todos os tipos de animais, incluindo cães, roedores e humanos, eles infectam regiões "nobres" do organismo, como os músculos e principalmente o cérebro, para escapar do ataque ao sistema imunológico do hospedeiro. Escondidos, permanecem "adormecidos" na forma de cistos, protegidos por uma parede celular resistente, em estado latente de infecção (toxoplasmose), e induzem o cérebro do hospedeiro a agir contra sua própria sobrevivência.

para os parasitas influenciar nosso comportamento de forma imperceptível, já que os próprios predadores produzem substâncias mensageiras, ou interferem no metabolismo de seus anfitriões involuntários. Como as substâncias químicas liberadas pelos parasitas são frequentemente idênticas às de seus hospedeiros, os cientistas ainda não são capazes nem mesmo de decidir se o comportamento da vítima é consequência direta de manipulação ou resultado de outra reação. De qualquer forma, parece mais provável que o parasita estimule a produção de neuromoduladores no hospedeiro em vez de produzi-los. (Da redação)

A toxoplasmose tem sido estudada principalmente em ratos e camundongos. Essas duas espécies apresentam aversão visceral e inata a gatos por razões obviamente compreensíveis. Para comprovar isso basta borrifar um pouco de urina de felino em um canto: o roedor vai evitar esse lugar como se fosse uma praga. Já o animal infectado perde esse medo congénito. Por alguma razão, ele até parece ser levemente atraído pelo odor de seu predador. Essa é uma situação desastrosa para o ratinho, porque aumenta a probabilidade de ser caçado. Por outro lado, é um ótimo negócio para o T. gondii, pois quando o 71


Antipsicóticos para tratar esquizofrenia têm sido eficazes no combate à toxoplasmose; parece haver uma misteriosa relação entre a patologia psiquiátrica e o agente causador da doença infecciosa

gato devora a presa doente e seu cérebro contaminado, o T. gondii se aloja no hospedeiro final, onde se reproduz, completando o ciclo de vida.

PERDENDO A TIMIDEZ

A manipulação comportamental induzida por esse protozoário é bem específica. O roedor infectado não parece doente: tem peso normal, movimenta-se apenas um pouco mais freneticamente que outros camundongos, faz sua higiene e interage perfeitamente com seus companheiros. Observe como esse caso é diferente do de animais com hidrofobia, outra infecção nefasta também conhecida como raiva. O animal perde a timidez instintiva, atacando agressivamente outros (a famosa síndrome do cachorro louco), espalhando o vírus da raiva pela mordida. Mas como o T. gondii só se reproduz em felinos, é preciso que seu hospedeiro seja comido especificamente por gatos - e não por qualquer carnívoro. E como gatos caçam presas vivas e não comem carni-

EXPOSIÇÃO AO PERIGO: subir u m a encosta s e m segurança ou dirigir e m alta velocidade pode ser resultado de c o m a n d o s silenciosos de parasitas alojados no cérebro 72

I mentecérebro I Neurociência 2

ça, o protozoário não precisa matar imediatamente seu hospedeiro temporário. Como o efeito T. gondii produz as traiçoeiras mudanças no hospedeiro? Experimentos desenvolvidos pelos pesquisadores Joanne P. Webster, do Imperial College de Londres, e Robert Sapolsky, da Universidade Stanford, mostraram que ratos e camundongos infectados não se transformam no equivalente murídeo do herói do Anel do nibelungo de Wagner, Siegfried, que não conhecia o medo. Os roedores ainda evitam espaços abertos, continuam a ter hábitos noturnos, mantêm a aversão pela urina de outros predadores e continuam a temer sons associados ao ruído de passos. Será que os protozoários podem comprometer o faro de roedores? Afinal, se eles não conseguem sentir o cheiro de mais nada, como poderão evitar locais com odor de urina de gato? Curiosamente, porém, camundongos infectados evitam alimentos que tiverem um cheiro que lhes pareça estranho, repulsa que se desenvolveu, em parte, porque durante séculos os humanos tentaram controlar os roedores usando veneno. O animal contaminado também responde adequadamente ao cheiro de sua prole. Vários tipos de observação permitem obter pistas de como os parasitas afetam o animal.


Primeiramente, a densidade de cistos na amígdala é quase duas vezes maior que a de outras estruturas cerebrais envolvidas na percepção do odor. Partes dessa região cerebral foram associadas à ansiedade e à sensação de medo. Em segundo lugar, o genoma do T. gondii contém dois genes relacionados com genes de mamíferos que -participam do processo de controle da dopamina, molécula vinculada a sinais de recompensa e prazer no cérebro (incluindo o de humanos). Talvez por isso, o medroso protozoário faz com que ações suicidas, como vagar por locais frequentados por gatos, sejam mais prazerosas para um roedor infectado.

MEIO BILHÃO DE INFECTADOS O que atribui a esse cenário selvagem de evolução proporções épicas para a humanidade é a estimativa de que, em todo o mundo, mais de 500 milhões de pessoas estejam contaminadas pelo Toxoplasma gondii. Dependendo da região, 15% a 8 5 % da população está infectada. No Brasil, seis em cada dez apresentam a contaminação, mas muitos não sabem disso, já que a toxoplasmose ocorre, em geral, sem consequências perceptíveis. São exceções os pacientes com sistema imunológico debilitado e os fetos (por isso mulheres grávidas devem evitar ter contato com locais onde os gatos se aninham). A ciência sabe, há muito tempo, que pacientes com esquizofrenia apresentam uma probabilidade duas ou três vezes maior de carregar anticorpos contra o T. gondii que pessoas não esquizofrênicas. Além disso, drogas antipsicóticas que bloqueiam a ação da dopamina, como o haloperidol, geralmente usadas no tratamento de esquizofrenia, também são eficazes no combate à toxoplasmose em ratos e em seres humanos. E alguns adultos infectados continuam a desenvolver sintomas psicóticos similares aos apresentados por pacientes esquizofrênicos. Pouco se conhece sobre como e onde esse patógeno age no cérebro humano. A ligação exata entre o T. gondii e as doenças psiquiátricas é muito atraente, porém, permanece misteriosa. Argumentações recentes chegam a discutir o papel do Toxoplasma gondii na formação de diferentes hábitos culturais, dependendo da

R O E D O R E S I N F E C T A D O S perdem o medo de gatos: muitos parecem sentir-se levemente atraídos pelos s e u s predadores

taxa de infecção da população. Um estudo prospectivo que acompanhou recrutas da República Tcheca numa estrada segura durante os 18 meses de serviço militar obrigatório encontrou uma taxa de acidentes seis vezes mais alta em motoristas infectados. Será que os jovens com toxoplasmose têm reações mais lentas ou dirigem de forma mais agressiva? Recentemente, neurocientistas cognitivos descobriram que desejar praticar um ato livremente (chamado de autoria ou ação) é, em princípio, uma sensação subjetiva e consciente igual à consciência de ver um céu azul-celeste ou de sentir uma lancinante dor de dente. Quando me envolvo num ato perigoso, como segurar a ponta da corda num lance muito íngreme de uma parede de granito enquanto escalo, por exemplo, sinto "como se eu decidisse livremente" fazer isso, qualquer que seja o sentido metafísico que essa situação possa ter. No entanto, minha ação é, muito provavelmente, provocada por uma multiplicidade inesgotável de fatores não acessíveis à minha introspecção consciente incluindo, possivelmente, alguns minúsculos parasitas unicelulares alojados em meu cérebro, que me induzem a agir de acordo com suas ordens silenciosas. ®

iiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiniiii P A R A S A B E R

M A I S

E x p o s u r e to microorgani s m s a n d adult psychiatric d i s o r d e r s : t h e c a s e for a c a u s a l role o f T o x o p l a s m a gondii. R o b e r t H . Y o l k e n , E. Fui ler Torrey, e m Immunology and Psychiatry, págs. 13 7145. S p r i n g e r I n t e r n a t i o n a l Publishing, 2015. T h e history a n d life cycle o f Toxoplasma gondii. Jitender P. D u b e y , e m Toxoplasma Gondii, p á g s . 1-17,2014. Manipulation o f host behavior by T o x o p l a s m a gondii: w h a t is t h e m i n i m u m a proposed proximate mec h a n i s m should explain? Ajai V y a s e R o b e r t Sapolsky,

e m Folia Para sito lógica, v o l . 57, n ° 2 , p á g s . 8 8 - 9 4 , 2 0 1 0 .

T h e effect o f T o x o p l a s m a gondii on animal behavior: playing cat and mouse. J o a n n e P. W e b s t e r , e m Schi-

zophrenia Bulletin, vol. 33, n° 3, p á g s . 7 5 2 - 7 5 6 , 2 0 0 7 .

73


Aula de anatomia DESDE A ANTIGUIDADE, MUITOS ESTUDARAM A ANATOMIA

HUMANA;

VÁRIOS ERAM NÃO APENAS EXCELENTES CIENTISTAS E OBSERVADORES

DETALHISTAS,

MAS T A M B É M A R T I S T A S . S U A S O B R A S , ÀS V E Z E S B I Z A R R A S , R E S U L T A M EM U M A V I A G E M POR I M A G E N S TRAÇADAS AO L O N G O DE C I N C O S É C U L O S

por Andreas Jahn e Wibke Larink

Jjjjjj ^ ^ ^ o m o seria bom ver a própria alma", cogitou m um dia o filósofo francês François Marie ^ Arouet, conhecido como Voltaire (1694-1778). ^ ^ I ^ ^ E s s a ânsia pelo conhecimento já era experimentada pelos estudiosos da Antiguidade - para eles, no entanto, ainda não estava claro onde exatamente o "espírito" ficava. Embora alguns pesquisadores já suspeitassem que sentimos, pensamos e decidimos com o cérebro, Aristóteles (384-322 a.C), por exemplo, considerava o coração o órgão central. Para ele, a massa mole na cabeça do homem funcionava apenas como uma espécie de refrigerador para o sangue. Até a Idade Média era comum que os cientistas obtivessem seus conhecimentos principalmente pelo estudo de textos antigos. Apenas poucos - como o médico grego Herófllo de Chalcedon (cerca de 330-250 a.C.) - empunharam a faca e olharam eles próprios o que havia por baixo do crânio. Na Renascença surgiu a urgência de novos rumos para as pesquisas. E a partir de então, os anatomistas passaram a saciar sua curiosidade com a dissecção de cadáveres - apesar de terem de enfrentar alguns obstáculos, como

Leonardo da Vinci (1452-1519) descreve: "Ainda assim (a dissecação) fascinar-te, talvez teu estômago te impeça, e se este não te impedir, talvez te impeça o temor de passar as horas noturnas em companhia do cadáver esquartejado, despelado e de aparência terrível". Muitos pesquisadores registraram aquilo que viram em desenhos e gravuras. Muitos deles nos deixaram imagens fascinantes, de grande valor estético. Pode ser que os antigos anatomistas nem sempre tenham acertado em suas conclusões, porém, suas obras nos fornecem uma visão do desenvolvimento de uma ciência hoje conhecida como estudo do cérebro. Algumas imagens podem parecer estranhas aos olhos do homem contemporâneo, mas vale lembrar que cada cientista é filho de seu tempo. Não sabemos como os pesquisadores futuros vão julgar nossos conhecimentos atuais - e talvez os olhem com um leve sorriso no rosto. Mas nem por isso deixamos de explorar o universo interno. As imagens a seguir convidam a uma viagem por meio milénio de estudos neurocientíficos.

OS AUTORES A N D R E A S J A H N é doutor e m biologia e jornalista. Wibke Larink é doutora e m ciências h u m a n a s , professora de arte e filosofia do colégio Immanuel-Kant-Cymnasium, em Hamburgo, e desenvolve pesquisas sobre a função de imagens científicas. Ela é autora do livro Bilder von Gehirn (Imagens do cérebro, não publicado no Brasil), do qual foi selecionada a iconografia deste artigo. 74

I mentecérebro I Neurociência 2


ALBERTO M A G N O P E Q U E N A C Â M A R A PARA A ALMA, 7506 Os estudiosos da Idade Média ainda seguiam a tradição do médico grego Galeno de Pérgamo (129-199 d . C ) . Para ele, as cavidades cerebrais, os ventrículos, eram a "morada da a l m a " . A obra Philosophia naturalis, do bispo alemão Alberto Magno (12061280), impressa apenas em 1506, mostra os ventrículos como esferas perfeitas - emolduradas por uma faixa escrita, semelhante à auréola de um santo. No primeiro ventrículo, Magno acreditou que residia a força da imaginação (imaginatio) e de julgamento (aestimatio); ao segundo atribuiu a fantasia (phantasia) e a compreensão (cogitatio); a terceira pequena câmara serviria, segundo ele, para armazenar dados acessíveis à lembrança imediata (reminiscentia) e memória (memoria), de forma mais ampla.


CHARLES ESTIENNE P A I S A G E M M Ó R B I D A , 7546

DE L A N A T O M I E , E T DISSEC.DES

PARTIES

Assim como Vesal, seu contemporâneo Charles Estienne (1504-1564) não confiava nas teorias de sua época, preferia realizar ele mesmo as autópsias. Para sua Dissection des parties du corps humain (Dissecação de partes do corpo humano), o médico francês transferia seus objetos de estudo da mesa de autópsia para o ar livre, onde apontava crânios cortados ao meio, como se fossem ovos cozidos, diretamente para o observador. Os detalhes anatómicos do cérebro ficam em segundo plano no rico cenário da paisagem. Eles são esclarecidos com uma legenda que parece estar gravada em uma pedra: A: a abóbada do cérebro, que chamamos de psallioide ou concha; B: o início da parte em forma de verme, da membrana que serve como barreira entre os ventrículos anteriores; C: uma glândula chamada conarion; D: comprimento e extensão da parte em forma de verme; E: pequenas nádegas do cérebro, assim como as faixas e as partes que contornam a parte em forma de verme; F: canal ou passagem entre o terceiro e o quarto ventrículo. iiiiiiiiiiiiiiiiiiiimiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiimiim

ANDREAS VESAL V I S Ã O C O P I A D A , 7555

A estrela da anatomia na Renascença se chama Andreas van Wesel - mais conhecido como Andreas Vesalius ou Vesal (1514-1564). O médico belga nos concede em sua obra publicada pela primeira vez em 1543, De humani corporisfabrica (Sobre a construção do corpo humano), uma visão até então totalmente desconhecida do cérebro: de baixo. Aqui revelam-se os nervos cerebrais, inclusive o cruzamento dos nervos ópticos, o quiasma óptico (H). Não é de admirar que essa xilogravura tenha sido tantas vezes reproduzida por vários anatomistas.

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I mentecérebro I Neurociência 2


L E O N A R D O DA VINCI MODELO CEBOLA, CERCA DE 1500

De forma genial, Leonardo da Vinci (1452-1519) era tanto o artista quanto o cientista da Renascença. Diferentemente das representações anatómicas da Idade Média, seus desenhos baseiam-se em observações reais de cadáveres. Como uma cebola, ele foi descascando camada por camada, para chegar à parte mais interna do corpo humano. Da Vinci mostra essa analogia em um desenho do corte transversal de uma cebola (no alto) e de uma cabeça, provavelmente feito entre 1487 e 1500. Mas, curiosamente, aqui não se vê nenhum cérebro - nessa época, ele ainda estava preso à teoria medieval das três células, que considerava os ventrículos, ou seja, as cavidades, as estruturas fundamentais do cérebro. Consequentemente, apenas deixou o tecido "incómodo" de fora. Só em um desenho posterior ele delineou o córtex cerebral, tornando-se pioneiro nesse tipo de registro.

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RENÉ DESCARTES C O R P O E ALMA, 7677

GODEFRIDUS BIDLOO T E A T R O D O C É R E B R O , 1685 A anatomia cerebral foi perfeitamente apresentada pelo médico holandês Godefridus (ou Govard) Bidloo (1649-1713), que se destacava também como poeta e dramaturgo. Para sua Anatomia humani corporis (Anatomia do corpo humano), ele serrou um crânio, tirando sua parte anterior, de forma que a parte interna repousou sobre a superfície onde antes era o rosto. Ele fixou o cérebro com uma pulseira e duas pedras e o envolveu com tiras de tecido, como se fossem cortinas abertas, liberando o palco para o cerebelo e permitindo a visão das profundezas do crânio até a medula.

René Descartes (1596-1650) transformou o homem em um ser dividido: com sua diferenciação entre o corpo material e o espírito, o filósofo, matemático e cientista francês foi um dos precursores do dualismo dos tempos modernos. Mas qual a influência do espírito sobre o corpo? Descartes considerava a glândula pineal uma intermediária entre os dois, capaz de transmitir, por meio de seus movimentos, os desejos para o cérebro. Como ele não ousou publicar suas teses "hereges" em vida, seu ensaio De homine (Sobre o homem) só foi lançado postumamente, em 1662. A edição de 1677 mostra um corte do cérebro desenhado porGérard van Gutschoven (16151668) com a glândula pineal ( H ) .

FREDERIK RUYSCH Q U E S T Ã O D E O P I N I Ã O , 7697 O anatomista e botânico holandês Frederik Ruysch (1638-1731) interessava-se por novos métodos de pesquisa. A ilustração publicada pela primeira vez em 1697 mostra a técnica com a qual ele fabricava seu preparado: com um canudo injetava cera ou tinta nos vasos sanguíneos do cérebro que, assim, se tornam visíveis. Ruysch queria provar que o córtex cerebral é composto essencialmente de vasos sanguíneos. 78

I mentecérebro I Neurociência 2




J A C Q U E S FABIEN G A U T I E R D'AGOTY J O G O D E C O R E S , 1748

FRANZ JOSEPH GALL F I N A M E N T E D I V I D I D O , 7870 Até o século 19, a anatomia estava presa às mãos masculinas - e o "material" anatómico também era considerado masculino, como se fosse óbvio. Uma das primeiras reproduções de um cérebro explicitamente feminino, na qual a perspectiva de Vesal, por baixo, é retomada (veja imagem na pág. 76), aparece na obra do médico alemão Franz Joseph Gall (1758-1828) e seu colaborador Johann Spurzheim (17761832), publicada entre 1810 e 1819. Gall subdividiu o cérebro em 27 regiões nas quais são representadas características de personalidade. Com isso, o "órgão da alma" foi decomposto em diversas partes. A doutrina de Gall, a frenologia, segundo a qual as características psíquicas dependiam da forma do crânio, já foi superada há muito tempo. No entanto, sofisticados exames de neuroimagem usados atualmente revelam diversas funções de diferentes áreas cerebrais.

Jacques Fabien G a u t i e r dAgoty (1717-1785) apresentou sua gravura em cobre real na corte francesa de Luís XV, trazendo cor aos estudos do cérebro. Curiosamente, apesar de seu estado desolador, as cabeças abertas de Anatomie de la tête (Anatomia da cabeça, 1748) parecem sussurrar segredos no ouvido uma da outra.

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A biologia dos desafios A

Compreender as bases neurais da resiliência pode ajudar pesquisadores e clínicos a criar intervenções psicológicas e farmacológicas para melhorar a forma como as pessoas lidam com as adversidades

lgumas pessoas têm mais facilidade de lidar com adversidades que outras. Vários fatores concorrem para isso. Hoje se sabe que, desde o início da vida, tanto a carga genética quanto as experiências vividas por uma pessoa influem na formação de circuitos neurais que fundamentam a força psicológica e a maneira como os desafios serão encarados. Diante de uma ameaça, o cérebro deflagra uma cascata química que induz o enfrentamento ou a fuga. Substâncias químicas cerebrais podem enfraquecer essa resposta, tornando o indivíduo mais resistente aos efeitos negativos do estresse. Um ciclo químico determinante começa quando o hipotálamo expele o hormônio liberador de corticotropina (CRH), que provoca a secreção na corrente sanguínea do hormônio adrenocorticotrópico (ACTH) pela pituitária, fazendo com que as adrenais (próximas ao rim) liberem o hormônio cortisol. Esse hormônio aumenta a habilidade de responder a situações desafiadoras, mas, em níveis muito elevados, pode com o tempo provocar danos permanenHipotálamo

Neuropeptídeo Y s u p r i m e os efeitos do C R H e m várias regiões cerebrais

3 % 9

.

Pituitária

Lócus cerúleo Hipocampo

ACTH

> 0 D H E A , ou desidroepiandrosterona, neutraliza os efeitos Adrenal

do cortisol, um hor-

(perto do rim)

mônio do estresse

A localização das estruturas cerebrais na imagem é apenas aproximada 82

I mentecérebro I Neurociência 2

tes. Para evitar prejuízos à saúde, o organismo procura diminuir a resposta ao que nos assusta ou incomoda. Psicoterapia e alguns medicamentos podem estimular a produção de substâncias "controladoras de estresse". A resistência psíquica, chamada de resiliência, depende de caminhos neurais relacionados ao medo, à recompensa e à regulação de estímulos sociais e emocionais. Esses circuitos se sobrepõem em determinadas estruturas cerebrais. A amígdala, por exemplo, não só regula o medo, mas também tem papel importante na recompensa, através do processamento de emoções positivas. O núcleo accumbens, o centro de recompensa, também influencia comportamentos como sociabilidade e ligações amorosas. O córtex pré-frontal medial desempenha papel nos três circuitos e ajuda a regular interações e emoções sociais, repassando informações para outras regiões responsáveis por decisões mais complexas. Como resultado da sobreposição e conexões entre esses circuitos, a maneira como a pessoa enfrenta o medo está relacionada à sua capacidade de se manter otimista mesmo diante de situações de estresse e de procurar viver experiências sociais gratificantes em tempos difíceis. Os cientistas acreditam que a resiliência também esteja relacionada à ativação do córtex pré-frontal esquerdo. Quando ativada, essa região na superfície do cérebro, logo atrás da testa, envia sinais inibitórios para a amígdala, o que diminui a ansiedade e as emoções baseadas no medo, deixando a região frontal do cérebro livre para planejar e definir metas. Dessa forma, a pessoa é mais capaz de perseverar, de manter a autoimagem positiva e a esperança em situações de estresse e de elaborar um plano de ação sem se sentir oprimida pelo medo ou por outras emoções. Entender as bases biológicas da resiliência pode ajudar pesquisadores e clínicos a criar intervenções psicológicas e farmacológicas para melhorar a forma como as pessoas lidam com as adversidades. S


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