Jornalismo Científico e Pesquisa na Amazônia

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Jornalismo Cient铆fico e Pesquisa na Amaz么nia


Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) Pós-Graduação em Jornalismo Científico José Seixas Lourenço Reitor Clodoaldo Alcino Andrade dos Santos Vice-reitor Marcos Ximenes Ponte Pró-reitor de Pesquisa, Pós-graduação e Inovação Tecnológica José Antônio Oliveira Aquino Pró-reitor de Ensino Aldo Gomes Queiroz Pró-reitor de Planejamento Institucional Arlete Moraes Pró-reitora de Administração


Manuel Dutra Samuel Lima (organizadores)

Jornalismo Cient铆fico e Pesquisa na Amaz么nia

Florian贸polis

2013


Editora Insular

Jornalismo Científico e Pesquisa na Amazônia Manuel Dutra Samuel Lima (organizadores e preparação de originais)

Conselho Editorial Dilvo Ristoff, Eduardo Meditsch, Fernando Serra, Jali Meirinho, Natalina Aparecida Laguna Sicca, Salvador Cabral Arrechea (ARG)

Editor Nelson Rolim de Moura

Projeto gráfico Carolina Dantas

Editora Eletrônica Fotos Silvana Fabris Acervo dos organizadores Capa Luciana Leal Jornalismo científico e pesquisa na Amazônia. Manuel Dutra e Samuel Lima (organizadores). Florianópolis: Insular. 2013. 176 p. ISBN 978-85-7474-671-5 1. Jornalismo científico. 2. Pesquisa. 3. Amazônia. I. Título. CDD 070

Editora Insular Rodovia João Paulo, 226 Florianópolis/SC – CEP 88030-300 Fone/Fax: (48) 3232-9591 editora@insular.com.br – www.insular.com.br – twitter.com/EditoraInsular

Insular Livros Rodovia José Carlos Daux, 647, sala 2 Florianópolis/SC – CEP 88030-300 Fone: (48) 3334-2729 insular livros@gmail.com


“As coisas tangíveis tornam-se insensíveis à palma da mão. Mas as coisas findas, muito mais que lindas, essas ficarão” (Carlos Drummond de Andrade)



Sumário 13

Um olhar sobre a pesquisa na Amazônia Manuel Dutra, Samuel Lima

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Prefácio – O mundo da ciência nas terras do Tapajós Alessandra Carvalho

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Insetos têm beleza natural, afirma pesquisador Adenomar Neves de Carvalho, entrevistado por Lenne Santos

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Fazer ciência na Amazônia depende do campo a ser pesquisado Anselmo Alencar Colares, entrevistado por Ednaldo Rodrigues e Ormano Sousa

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Com um projeto de ciência e vida Celson liga a Amazônia à Europa Celson Pantoja Lima, entrevistado por Ronilma Santos

51

Semiótica e libertação nas palavras Jogo, forma e estilo na literatura Cristina Vaz Duarte da Cruz, entrevistada por Júlio César Guimarães

61

Terras Caídas são fenômeno único que só o Rio Amazonas apresenta Deize de Souza Carneiro, entrevistada por Alessandra Guimarães Mizher e Gilmara dos Reis Ribeiro


71

A indústria do turismo em Santarém: potencialidades e grandes desafios Erbena Silva Costa, entrevistada por Joab Ferreira e Milton Corrêa

81

Autorreconhecimento indígena: do estigma à consciência adquirida Frei Florêncio de Almeida Vaz, entrevistado por Ercio do Carmo Santos e Joelma Viana dos Santos

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Pesquisas com animais Peçonhentos podem salvar vidas Hipócrates de Menezes Chalkidis, entrevistado por Cristiane Sales e Márcia Reis

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Terra-preta de índio é o ouro negro da Amazônia Lilian Rebellato, Entrevistada por Maria Lúcia Morais

Indígenas em solo socialista e capitalista; 107 na Venezuela, quais as diferenças?

Majahua Tapuia, entrevistada por Jeso Carneiro

Conhecimento científico como base para construção 115 de uma nova Amazônia

Manuel Dutra, entrevistado por Moisés Sarraf


Peixes da Amazônia podem desaparecer 121 com o aumento da temperatura

Marcos Prado Lima, entrevistado por Adriana Pessoa e Aritana Aguiar

Tecnologias da informação podem ajudar a vencer 131 déficit histórico na educação

Paulo Henrique Lima, entrevistado por Raimundo Clecionaldo Vasconcelos Neves e Ambelino Minael Andrade Cunha

Mudanças climáticas e sustentabilidade no debate 139 nacional sobre a Amazônia

Raimunda Nonata Monteiro, entrevistada por Fábio Pena

Agronegócio e agricultura familiar: é possível 149 conciliar interesses em conflito?

Sandro Viegas Leão, entrevistado por Ailanda Ferreira Tavares e Alciane Ayres A distância entre intenção e gesto na questão 157 ambiental no Oeste do Pará

Antônia do Socorro Pena da Gama, entrevistada por Jota Ninos

Garimpos e desmatamento fazem do mercúrio 165 um vilão dos rios e igarapés

Ynglea Georgina de Freitas Goch, entrevistada por Val Araújo



Um olhar sobre a pesquisa na Amazônia Manuel Dutra1 Samuel Lima2

E

ste livro digital traz uma coletânea de entrevistas realizadas pelos alunos e alunas do Curso de Pós-Graduação em Jornalismo Científico, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), sediada na cidade de Santarém, no Pará, bem no coração da Amazônia. São trabalhos que se incluem nas tarefas da última disciplina, “Linguagens: Jornalismo, Ciência, Tecnologia”, que foi ministrada pelo Prof. Dr. Samuel Lima, da Faculdade de Comunicação da UnB, presentemente colaborador-docente do Departamento de Jornalismo da UFSC, em Florianópolis. Não há aqui necessidade de realçar o aspecto de pioneirismo de tal iniciativa, notadamente numa região da qual o imaginário nacional/global distingue quase tão somente a natureza, processo que torna (quase) invisível a cultura e a ciência, isto é, o fazer humano aí existente e que, a cada dia, adquire maior consciência de sua responsabilidade local/global, no sentido de produzir conhecimento como que a partir de dentro e não mais, apenas, esperar que “viajantes”, como os de outrora, sejam os únicos a conduzir esse discurso iniciado no tempo das descobertas históricas.

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Coordenador do curso de Pós-graduação (Lato Sensu) em Jornalismo Científico da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). É Doutor em Mídia e Teoria do Conhecimento pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 2005). Docente da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (FAC/ UnB) é, atualmente, professor-visitante do curso de Jornalismo da UFSC.

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A UFOPA faz hoje o esforço por ser um ambiente de encontro entre saberes, dos laboratórios clássicos da ciência à sabedoria tradicional cujo senso comum alimenta tantos problemas de pesquisas, tantas hipóteses e novos achados. Assim também, a instituição quer ser lugar de encontro de quantos, amazônidas, brasileiros e estrangeiros, estejam dispostos a escrever e reescrever a autonomia na produção do conhecimento científico. A realização de um curso assim, fora dos chamados grandes centros não apenas nacionais, mas distante dos dois grandes centros regionais onde se concentra o grosso da pesquisa sobre a Amazônia, Belém e Manaus, só foi possível graças ao espírito pioneiro do reitor na nova universidade pública, a primeira do interior da região, professor José Seixas Lourenço. A proposta foi de imediato encampada pelo pó-reitor de Pós-Graduação, Pesquisa e Inovação Tecnológica, professor Marcos Ximenes, ambos ex-reitores da Universidade Federal do Pará (UFPA). Portanto, a iniciativa contou com o entusiasmo da instituição como um todo, que tem no pioneirismo uma de suas marcas mais profundas. A ideia matriz é a produção do conhecimento no coração da Amazônia, capaz de gerar um acervo que precisa ser socializado, e um dos primeiros e, espera-se, mais eficazes meios para a disseminação desse acervo no seio da sociedade é a participação de jornalistas. Daí a ideia deste curso, cujo objetivo final é a capacitação de profissionais da mídia, no sentido de que possam, com mais facilidade, dialogar com o cientista, penetrar no universo conceitual do fazer metódico, interpretar relatórios de pesquisa, elaborar pautas de modo autônomo para, afinal, transformar esse saber em notícias e reportagens compreensíveis e agradáveis ao grande público, notadamente numa região e num país onde a pesquisa é majoritariamente processada em laboratórios custeados pelo recurso público. Não se trata de visualizar um jornalista porta-voz, mas de um profissional crítico que, dentro daquilo que é específico de sua atividade, possa contribuir para com a melhoria da educação e do domínio do saber, a começar daquele saber sobre o chão em que 14


pisamos, indispensável para que a sociedade e os indivíduos se situem conscientemente no mundo, assim fazendo as suas opções de vida presente e futura. A prática do jornalismo científico impõe, por conseguinte, o desafio da produção de um conhecimento novo sobre os fatos científicos, algo que se consolida na linguagem jornalística, acessível à sociedade. Este curso resulta de colaboração interinstitucional e interdisciplinar. É produto de um acordo de cooperação científica e técnica entre a Universidade Federal do Pará e a Universidade Federal do Oeste do Pará, por meio de seus reitores Carlos Maneschy e José Seixas Lourenço. Conta, até agora, com a participação decisiva de professores-pesquisadores na área da Comunicação/Jornalismo Científico desde o instante da construção do eixo disciplinar do curso. Assim, a várias mãos, trabalhamos professores-pesquisadores de Santarém e de Belém, no Pará, de Natal (RN), do Estado do Rio de Janeiro (Niterói) e de Florianópolis (SC). São eles Anselmo Colares (UFOPA), Alessandra Carvalho (UFRRJ), Socorro Veloso (UFRN), Otacílio Amaral, Alda Costa, Fábio Castro e Manuel Dutra (UFPA) e Samuel Lima (UFSC). A partir de um banco de dados preliminar, portanto, incompleto, reunindo 95 pesquisadores, quase todos pertencentes ao quadro de docentes-pesquisadores da UFOPA e de outras universidades da região, entre doutores e mestres, os alunos fizeram as suas escolhas de pautas, levando em conta uma temática variada. As entrevistas aparecem neste e-book em ordem alfabética dos entrevistados. Lenne Santos ouviu o entomólogo Adenomar Neves de Carvalho, que define: “Insetos não são pragas, eles têm a sua importância biológica”; Ednaldo Rodrigues e Ormano Sousa dialogam com o pedagogo Anselmo Colares que afirma uma crença: “O conhecimento não pertence a um ou outro grupo, por isso não pode ser negado. Índio, negro, pobre ou rico todos precisam ter acesso aos saberes”; Ronilma Santos entrevistou o pesquisador das ciências de computação, Celson Lima, que resumiu: “A gente não vive sem energia e sem os meios de comunicação. Se tirar isso, a vida das 15


pessoas para, param os negócios, para a educação, para tudo!”; Júlio César Guimarães conversou com semioticista Cristina Vaz de quem ouviu: “A forma literária do autor é singular na medida em que ele tenha uma ligação íntima com o seu texto. É plural na medida como ele se liga ao coletivo”; Alessandra Guimarães Mizher e Gilmara dos Reis Ribeiro foram desvendar com a geógrafa Deize de Souza Carneiro o fenômeno das terras caídas do Amazonas: “A bacia amazônica é única. Não há comparação com nenhuma outra no mundo. Ela foge a todas as regras, principalmente pela quantidade de água, dimensão territorial, localização geográfica com áreas de contribuição dos dois hemisférios, com pluviosidade do norte ao sul”. Joab Ferreira e Milton Corrêa ouviram uma fonte especializada naquilo que é decantado como saída ao desenvolvimento da Amazônia, o turismo. Erbena Silva Costa crê que “o turismo precisa do auxílio de muitas outras disciplinas para ser entendido. Basta você ver um curso de graduação em turismo, ele é generalista”; Ercio do Carmo Santos e Joelma Viana dos Santos entrevistaram o religioso e antropólogo Florêncio de Almeida Vaz estudioso da causa indígena que afirma: “A mídia teve um papel decisivo na autoidentificação dos indígenas daqui, e a Rádio Rural de Santarém principalmente. Os programas estimulam a valorização da identidade, do modo de vida, da defesa da terra”; Cristiane Sales e Márcia Reis dialogam com o biólogo Hipócrates de Menezes Chalkidis, que lidera pesquisa sobre animais peçonhentos na região e confessa: “Nós estamos trabalhando agora com os venenos, para saber até que ponto nós podemos contribuir para uma cura mais rápida, para diminuir as sequelas, ou até mesmo para eliminá-las”; Maria Lúcia Morais entrevistou a arqueóloga Lilian Rebellato que revela alguns segredos da terra-preta: “Fertilidade e estabilidade. Não apenas da matéria orgânica, mas dos nutrientes do solo. A terra-preta tem muito fósforo e cálcio, nutrientes que a planta precisa, além de magnésio e manganês”. Jeso Carneiro ouviu a antropóloga de origem índigena, Majahua “Isa” Tapuia, que lhe falou entre outras coisas sobre o fato de 16


“os Estados e a sociedade não sabem tratar o diferente, ou seja, a diferença é tratada com a supressão. O modelo de desenvolvimento em todo o planeta é capitalista, depredador e excludente”; o jornalista Moisés Sarraf, da revista Amazônia Viva (que não integra a turma de alunos do Jornalismo Científico), contribui entrevistando o pesquisador Manuel Dutra que adverte: “Se quisermos divulgar os achados científicos na Amazônia, em todos os ramos da ciência, teremos que ser particularmente críticos e vigilantes”; Adriana Pessoa e Aritana Aguiar conversaram com o biólogo Marcos Prado Lima, especialista em peixes da região que trabalha com os dados de mudança climática: “Imaginemos um cenário daqui a 100 anos, com um aumento de três graus na temperatura do planeta. Algumas espécies podem se adaptar, mas outras podem simplesmente desaparecer”; Cléo Neves e Minael Andrade dialogam com o pesquisador Paulo Lima, que discute educação à distância na Amazônia, revelando “como moradores de comunidades longínquas do interior da Amazônia modificaram suas vidas através da educação utilizando ciência e tecnologia num programa à distância do ensino médio rural”. Fábio Pena entrevista a jornalista e pesquisadora Raimunda Nonata Monteiro, que vê com preocupação o fato de que “nos últimos anos a Amazônia também deixa de ter um papel importante na agenda da discussão de meio ambiente, tanto internamente quanto em nível internacional”; Ailanda Ferreira e Alciane Ayres foram ouvir o economista Sandro Augusto Leão, que pesquisa sobre agronegócio e agricultura familiar e analisa o caso da soja na região: “Houve um problema em 2006, um grande conflito socioambiental. O fato de que a soja estava tirando os trabalhadores rurais e suas famílias de suas comunidades, de Belterra e de outras áreas”; Jota Ninos encarou o diálogo com a pesquisadora e ativista ambiental Antônia do Socorro Pena da Gama, que tratou entre outras coisas de sua passagem recente pelo poder público municipal. Ela reconhece que “é mais fácil aplicar políticas ambientais quando se trabalha numa ONG, do que na gestão pública”, por causa da política e 17


da burocracia; fechando a obra, Valdilene Araújo entrevista a bióloga Ynglea Georgina de Freitas Goch, especialista na pesquisa sobre contaminação de mercúrio, que é categórica: “Não são apenas os garimpos que poluem, tem colaboração também do desmatamento, pois sabemos que a remoção da vegetação do solo gera perda dos nutrientes e leva sedimentos para lagos, igarapés, rios chegando ao mar”. O que se apresenta neste e-book é pouco, nada mais que um trabalho de aula, em parte como preparação para os Trabalhos de Conclusão que serão apresentados na segunda quinzena de agosto, sob a forma tradicional de monografias, mas também sob as formas de audiovisuais, programas para rádio e sites na internet. Todo esse acervo será também disponibilizado na internet, dentro do princípio de que jornalista, quando estudante, não produz a informação/ notícia apenas para ser lida e avaliada pelo professor, mas destina-se ao leitor/ouvinte/espectador/internauta, à sociedade, enfim. Por esse princípio, aqui estão estas entrevistas, à disposição de especialistas e do leitor cidadão não especialista. A crítica será muito bem-vinda.

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Prefácio O mundo da ciência nas terras do Tapajós Alessandra Pinto de Carvalho*

Q

uando fui convidada a escrever este prefácio, fiquei em dúvida se deveria escrevê-lo como jornalista, como professora, como pesquisadora de jornalismo científico ou como leitora e cidadã. Qual o caminho para me desvencilhar de todos estes olhares ao escrever sobre a coleção de entrevistas feitas pelos meus alunos jornalistas com pesquisadores e professores radicados em Santarém? Optei por dizer o que significa esta obra para a leitora leiga, mas interessada em divulgação científica. Em primeiro lugar, fico feliz de poder ler em um único volume sobre o trabalho que estes professores estão desenvolvendo na cidade, cada um em sua área, com seus objetivos específicos. E a minha alegria se amplia quando sei que muitas outras pessoas, leigas como eu, vão poder ter acesso ao pensamento destes especialistas e saber um pouco do que eles fazem, “além de dar aulas”. A divulgação do trabalho de pesquisadores e pensadores - com o uso de um vocabulário coloquial – é um instrumento necessário para que todos saibamos que existe gente empenhada em praticar o desenvolvimento do conhecimento científico na região. Este tipo de ação pode responder a pergunta rotineira “o que a pesquisa aca*

É santarena. Jornalista formada pela Universidade Federal do Pará; mestra em comunicação científica e tecnológica e doutora em comunicação pela Universidade Metodista de São Paulo. Professora do curso de jornalismo da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro. Colaboradora no curso de jornalismo científico da UFOPA.

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dêmica traz de bom para a nossa vida?”, também ameniza o senso comum de que “cientista é esquisito” ou de que “cientista só tem no sul do país”. Neste livro, vemos que em Santarém há pesquisadores que vieram de todas as regiões do país; há os que saíram daqui para o “mundo” e voltaram; e os que sempre viveram aqui e conhecem bem a vida amazônica. Mas todos enfrentam as mesmas dificuldades de conseguir verbas para as pesquisas e, também de comunicar à sociedade o que estudam e produzem. Esses estudiosos, como podemos ver, não são somente “caras malucos enfiados em laboratórios”. Eles são pessoas sérias, que andam no meio da gente, metem o pé na lama, fazem festas, tem filhos e paixões. O laboratório desse pessoal pode ser aquele branco do imaginário popular, mas também pode ser o colorido (ou cinza) das ruas. Esta série de entrevistas traz um pouco do mundo social dos cientistas (como diria Pierre Bourdieu), objetos de pesquisa, visões de mundo e engajamento social. Para ser pesquisador, é preciso aprender a olhar ao redor com sincero interesse, curiosidade e dedicação. É preciso trabalhar e estudar muito, como enfatiza o engenheiro; o entomólogo nos alerta que temos muito que aprender com os insetos e sua capacidade de sobrevivência às mudanças do ambiente; o educador ressalta que todo conhecimento gerado pertence à humanidade; o antropólogo enfatiza que o saber construído na universidade precisa ser “devolvido” a todo o momento às comunidades estudadas; é preciso encontrar meios e políticas para que a região não fique com os restos dos projetos econômicos, sociais e tecnológicos é o que nos dizem todos os entrevistados nas entrelinhas. O trabalho feito pelos alunos da especialização em jornalismo científico da Ufopa, com a orientação do professor Samuel Lima, é um exercício didático e profissional. Mas também é uma prova de que muitas atividades feitas em sala de aula e nos laboratórios de prática podem extrapolar os muros da universidade. Comparti20


lhar os resultados deste tipo de experiência, que podia ser restrita à sala de aula, é o que desejamos para aumentar a possibilidade não apenas de agregar informações, mas ajudar a alimentar um espírito crítico sobre os atores do local e sobre o espaço em que vivemos, Santarém e o mundo. Na universidade, chamam este tipo de ação de “prática de extensão”. Aos pesquisadores que lerem este livro, gostaria de sugerir que, diante do possível, realizassem mais intercâmbios de divulgação científica com a população. O formato desta abertura à sociedade pode ser de vários tipos, seja por meio de contato direto em palestras ao público geral, ou atendendo a jornalistas e, com isso os ajudando a compreender a seriedade do trabalho que é feito por vocês. E parabenizo aos que já vêm fazendo este tipo de atividade. Há pessoas que não estão na universidade e precisam saber o que vocês estão fazendo. Aos jornalistas, gostaria de pedir que dessem mais espaço aos pesquisadores nas pautas jornalísticas e nas salas de aula. Vamos valorizar a existência de um time de professores e estudiosos residentes em Santarém, e apelar menos para respostas e análises superficiais ou clichês sobre os problemas da região e da sociedade. Aliás, é bom evitar o lugar-comum em todos os aspectos, e até mesmo na abordagem do pesquisador. O trabalho jornalístico também pode ser criativo. Assim, desejo que este encontro entre jornalistas e pesquisadores seja um incentivo ao estreitamento da relação entre estes dois universos profissionais. Mas especialmente espero que este material seja espalhado e aproveitado nas escolas, e que muitos dos jovens leitores possam ser “picados” pela curiosidade, pela vontade de fazer crescer o conhecimento e de gerar práticas e políticas para o engrandecimento da região amazônica.

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Insetos têm beleza natural, afirma pesquisador

A

denomar Neves de Carvalho, doutor em Ciências Biológicas (Entomologia) pela Universidade Federal do Paraná (2006), é professor Adjunto II da Universidade Federal do Oeste do Pará UFOPA). Suas pesquisas se concentram na área de Zoologia, com ênfase em Taxonomia dos Grupos Recentes, atuando principalmente nos seguintes temas: Hemiptera, Auchenorrhyncha, Cicadellidae e Xestocephalinae.

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Entrevistado por Lenne Santos1

M

eticuloso. Organizado. Tímido, ou simplesmente: taxônomo. O pequeno espaço de 12 metros quadrados, que exala um forte cheiro de naftalina, é o local onde o pesquisador Adenomar Neves de Carvalho passa a maior parte do seu dia. Mas o tamanho do laboratório de Entomologia da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) não reflete a importância que tem para a conservação da biodiversidade amazônica. É aqui que estão abrigadas coleções didáticas e científicas de espécies animais – é assim que ele prefere identificá-los: “insetos não são pragas, eles têm a sua importância biológica”. O trabalho do biólogo, que prefere se autodefinir como professor-pesquisador, acaba de ganhar repercussão internacional. Ele classificou recentemente a espécie Paraportanus longispinu, da família das cicadelidae, encontradas nas florestas dos estados do Amapá e Amazonas. E o trabalho não para: mais quinze espécies estão em fase de classificação para a publicação, cujos resultados devem ser publicados em breve. Carvalho faz parte de um reduzido grupo de pesquisadores que estuda a espécie. São apenas cinco especialistas nessa área em todo o Brasil. A entrevista a seguir foi concedida em seu laboratório, numa tarde chuvosa do mês de fevereiro de 2013, um dos meses mais molhados do inverno amazônico que vai de dezembro a junho. *

Jorgelene dos Santos Oliveira é jornalista formada pela Universidade Estadual de Ponta Grossa (1996) e graduada em Letras pela Universidade Federal do Pará (1992). Especialista em Jornalismo e Mídia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 2003). É Professora titular do Instituto Esperança de Ensino Superior (IESPES), e das Faculdades Integradas do Tapajós (FIT), com sede em Santarém (PA). Mestre em Antropologia pelo Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais área de concentração em Antropologia da Universidade Federal do Pará (UFPA, 2008). Pós-graduanda em Jornalismo Científico da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), onde trabalha também como assessora de imprensa.

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Como foi a sua opção pela pesquisa acadêmica? A biologia entrou na minha vida por acaso. Eu queria ser advogado, porém não podia sair da cidade de Barra do Garça (MT) para cursar a faculdade. Entrei na Faculdade de Biologia da Universidade Estadual do Mato Grosso e, por influência de uma professora de entomologia, comecei a fazer iniciação científica. Decidi terminar o curso e quando tive a oportunidade de sair, já era tarde demais. Hoje me sinto realizado como pesquisador da área. Como o senhor define a entomologia, sua área de atuação? Entomologia é a organização dos seres vivos, ou seja, a classificação e a organização da vida. Atualmente há 1,5 milhão de espécies de seres vivos descritas. Boa parte, ou 925 mil, são insetos. Esses animais precisam ser organizados num sistema que facilite o resgate das informações que são geradas a cada dia. Assim como organizamos nossa casa, nossa a cozinha, como, por exemplo, o armário, com gaveta em que colocamos cada talher em seu lugar, também aplicamos esse sistema de organização para os seres vivos. Esse é então o papel do taxônomo, o de organizador? Lidamos cotidianamente com coleções entomológicas, o taxônomo atua como um classificador, um profissional que deve ter profundo conhecimento da ecologia e da distribuição dos animais, sobretudo dos que estão em museus, guardados ali por décadas. É um trabalho complicado, difícil. Temos o cheiro da naftalina porque esse material ajuda a afugentar as pragas das coleções e esse cheiro fica impregnado. Eu ressalto ainda que algumas características de personalidade como a timidez e a preocupação excessiva com a organização que podem ser consideradas negativas são muito bem-vindas nos profissionais da área da entomologia. Vamos falar especificamente sobre sua descoberta, “cigarrinha”, como se deu esse trabalho? 25

a nova


É uma pesquisa que vem desde 2006. Eu recebi essa coleção entomológica coletada aqui na floresta amazônica e que pertence ao Instituto de Pesquisa da Amazônica (INPA), com sede em Manaus. Eu recebi no período de conclusão do meu doutorado, em Curitiba (2006), na época não tive tempo de incluir o material na minha pesquisa. Porém percebei que havia um grande número de espécies não descritas ao analisar previamente a coleção. Foi lá que identifiquei a espécie Paraportanus longispinu, da família das cicadelidae. Além dessa, há pelo menos mais 15 espécies a serem classificadas. O senhor está conseguindo cumprir esse objetivo? O volume de trabalho é muito grande. Há poucos pesquisadores nessa área no Brasil. Ainda temos que dividir o trabalho de taxonomia com as atividades de sala de aula. Tenho 20 horas/aula por mês para fazer pesquisa, mas é pouco. Esperto que em 2013 consiga desenvolver boa parte do trabalho que precisa ser feito. Ou vou precisar de pelo menos dez anos para catalogar as outras 15 espécie que estão por ser descobertas nesse material que tenho aqui. Suas

pesquisas foram feitas a partir de coleções coletadas

Amazonas também aqui no Pará? nos estados do

e

Amapá. Essas

espécies ocorrem

Ainda não tenho dados suficientes para afirmar se essas espécies ocorrem aqui na região de Santarém. Mas posso adiantar que, pela fitofisionomia da floresta amazônica que mantém um padrão, certamente a Papaportanus Longispinu também pode ocorrer aqui no Pará, em Santarém. Há

alguma previsão de publicação de novos artigos, com a

descrição de novas espécies?

Em 2013, pretendo escrever novos artigos, um deles está previsto para ser publicado na revista de Museu de História Natural do Rio Grande do Sul. Precisamos atrair pessoas que tenham interesse em 26


entomologia para que possamos começar a responder perguntas do tipo: em que nível está a degradação ambiental? Há muito material coletado, que fica guardado cerca de 20 anos à espera de um pesquisador se interessar nessa área. O

senhor é um pesquisador de renome internacional e po-

deria, se quisesse, optar apenas pela área da pesquisa, porém faz questão de se autodefinir como professor-pesquisador e dividir o tempo com as atividades de sala de aula.

Por quê?

Eu fui um dos primeiros a ser contratados pela UFOPA, fiz o primeiro concurso, cujo edital foi publicado em 2010. Respondendo diretamente à sua pergunta: Há duas questões a serem consideradas. Primeiro, no Brasil para fazer pesquisa é necessário estar ligado a uma instituição de ensino superior, principalmente a universidades federais. São poucas as agências de pesquisa que não são espaços de ensino como, por exemplo, a Embrapa, o ICMbio, Museu Goeldi etc. A outra questão é que, atuando em sala de aula, além de contribuir na formação de novos pesquisadores, posso apresentar os resultados da pesquisa em primeira mão. Um artigo demora dois anos para, desde sua construção, ser publicado. Já na relação direta com os alunos eu tenho oportunidade de debater os primeiros resultados de pesquisas logo no primeiro mês de estudo. Também tenho paixão por ministrar aulas. Gerar mais conhecimento produzir pesquisa. Na

universidade o senhor tem a opção de interagir com os

alunos, mas de foram geral, como esse conhecimento pode chegar até a população?

Sou um pesquisador. Meu objetivo é produzir conhecimento e esse conhecimento é altamente técnico. De maneira direta a população não se beneficia com esse conhecimento. Nós escrevemos para a comunidade científica. O retorno de imediato é, sem dúvida, para os meus alunos que cursam a disciplina Entomologia e quando passam a compreender que os insetos têm um papel importante na 27


natureza, vital para o ecossistema e oferecem mais benefícios que prejuízos. O

senhor refere-se aos insetos como animais, eles não são

pragas?

É uma visão equivocada imaginar que insetos são pragas. De forma geral, o leigo, digo aquela pessoa que não está na academia, tem inseto como praga, como coisa ruim. Quando vê um, matar é a primeira atitude. Isso se deve, em parte, a uma campanha das multinacionais produtoras de inseticidas hoje eufemisticamente chamados de insumos agrícolas. O pequeno agricultor, na sua lavoura, quando vê um gafanhoto acredita que é indício de praga. Se tiver condições, aplica inseticida. O próprio agricultor é quem acaba criando a praga. A falta de manejo adequado pode propiciar que uma população de insetos, que não traz nenhum prejuízo, a se tornar um inseto que traz prejuízo. Aproveito para desmistificar essa noção de que inseto é sempre praga, de que inseto é nocivo e que tem que matar, tem que exterminar. Essa visão equivocada não deu certo apesar da chamada revolução verde dos anos 1960 terem investido pesado em produtos químicos para exterminar os insetos. O que tem ocorrido é que os insetos estão cada vez mais resistentes. E quais são as consequências disso? Quem mais sofre com a ação desses inseticidas somos nós que comemos alimentos contaminados pelos agrotóxicos. Ocorre também a contaminação da água e do solo, o que causa prejuízos a nossa saúde. Os seres humanos surgiram muito depois dos insetos, há pelos menos 12 mil anos. Temos muito o que aprender com os insetos, como por exemplo, como sobreviver num planeta em constante mudança. Vivemos momentos de grandes mudanças, o aquecimento global é apenas uma delas. Então, aprender como os insetos sobreviveram às mudanças e entender como eles subsistiram a tudo pode ajudar muito, pois certamente passaram por mudanças muito mais drásticas que essas as quais vivemos hoje, e ainda 28


assim sobreviveram e são maioria, não só em número mas também em biodiversidade. Como um dos locais de maior biodiversidade do planeta a Amazônia é um local onde há ainda muito o que se pesquisar. Como o senhor analisa isso. Há muitas lacunas de conhecimento quando se trata do estudo de animais, sobretudo insetos. Por exemplo, especialistas em insetos da família da taxonomia de cicadellidae, são apenas cinco no Brasil. Apenas eu, estudo essa espécie na Amazônia, os outros quatro estão no eixo sul-sudeste-centro oeste. Nosso objetivo é desenvolver pesquisa com a cigarrinha. Isso faz parte da vontade de entender a biodiversidade da Amazônica. Fui atraído para cá pela UFOPA. Pareceu-me muito interessante trabalhar numa universidade no interior da Amazônia e tive o projeto aprovado pela Fundação Paraense de Apoio à Pesquisa (FAPESPA/CNPQ). Foi o primeiro passo para me fixar aqui na região. Quais os desafios de fazer pesquisa na Amazônia? É um desafio muito grande fazer pesquisa na Amazônia, aliás, tudo na pesquisa é difícil. Hoje estou na área do ensino porque é um dos poucos locais em que se faz pesquisa no país. A maior dificuldade é conseguir recursos. Fala-se muito na liberação de dinheiro para pesquisa na Amazônia com o intuito de atrair pesquisadores, porém quando chegamos aqui não recebemos toda a infraestrutura necessária. Eu estou aqui há três anos, e não posso reclamar muito. Tenho um laboratório, mas há colegas que nem mesa têm. Essas pesquisas exigem equipamentos caros. Faltam locais apropriados, dentro da própria universidade. Para fazer pesquisa é necessário recursos e também produtividade acadêmica que são as publicações como, por exemplo, livros, capítulos de livros e artigos. Um grande problema é que muitas vezes o pesquisador submete um projeto ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ), o projeto tem mérito científico, porém o pesquisador não 29


tem produtividade suficiente para a aprovação do projeto. Aí, não temos dinheiro para pesquisa. E se não temos dinheiro não fazemos pesquisa e se não fazemos pesquisa não temos produtividade acadêmica. Enfim, acaba se formando um círculo vicioso. O número de artigos publicados é a moeda do CNPQ. Esse é um dos maiores desafios que temos hoje. Mas há também a questão das grandes distâncias amazônicas, como o pesquisador lida com isso? Esse é outro grande desafio. Muitos insumos para a pesquisa não são encontrados aqui. Temos de mandar buscar fora, chegam aqui com um custo mais alto. Isso leva tempo. Precisamos planejar tudo com uma antecedência bem maior. O meu bolsista, muitas vezes tem de fabricar seus equipamentos para pesquisa. Isso também ajuda a desenvolver a criatividade e a superar desafios. Sou otimista e acredito que isso tende a melhorar. Ou seja, as dificuldades são muitas. Mas creio que essa situação é passageira. Sou otimista. O senhor costuma afirmar que “Entomologia é arte”. Pode explicar melhor? Sim, os insetos são seres muito ornamentados e de colorações exuberantes que encantam qualquer observador. A Entomologia é a ciência que estuda os insetos, então, um entomólogo que trabalha com morfologia, por exemplo, precisa possuir habilidades para ilustrá-los, fotografá-los. O resultado final da maioria dos estudos é uma verdadeira obra de arte!

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Fazer ciência na Amazônia depende do campo a ser pesquisado

A

nselmo Alencar Colares, professor e pesquisador da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), atua na área de educação, com mestrado (1996) e doutorado (2003) pós-doutorado (2012) pela Unicamp-SP. Sua pesquisa de doutorado trata do o processo histórico da educação na Amazônia: “Colonização, catequese e educação no Grão-Pará”. Possui amplo conhecimento de sua área com trabalhos desenvolvidos em várias cidades da Amazônia, inclusive em Porto Velho (RO), onde é membro de curso de mestrado da Universidade Federal de Rondônia (UFRO).

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Entrevistado por Ednaldo Rodrigues1 e Ormano Sousa2 O modelo de educação na Amazônia, desde os tempos do Grão-Pará até os dias atuais, indica resquícios seculares, com a segmentação do processo educacional formal que se tem hoje. Isso pode ser um equívoco a maquiar a suposta garantia da acessibilidade ao saber a índios e negros. O conhecimento ainda está restrito a determinados segmentos sociais e concentrado nas metrópoles da região – Belém e Manaus, principalmente – em detrimento do interior. Esta é a visão de Anselmo Alencar Colares , professor e pesquisador da Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). “O conhecimento não pertence a um ou outro grupo, por isso não pode ser negado. Índio, negro, pobre ou rico todos precisam ter acesso aos saberes”, defende. Nesta entrevista, Colares fala do passado e seus reflexos na educação contemporânea.

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Manoel Ednaldo Rodrigues é graduado em Comunicação Social, com habilitação em jornalismo pelo Instituto Esperança de Ensino Superior IESPES-PA – 2009. Especialização em andamento em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA e em Metodologia do Ensino Superior pela UNINTER. Sócio fundador e membro vitalício da Academia de Letras e Artes de Santarém (ALAS). Atualmente é mestrando em Ciências da Comunicação pela Universidade Federal do Pará (UFPA), no Programa de Pós-Graduação Comunicação, Cultura e Amazônia (PPGCOM). Ormano Queiroz de Sousa é licenciado em Letras pela Universidade Federal do Pará e especialista em Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa e Literatura (Faculdade Internacional de Curitiba – Facinter), em Gestão Escolar (Centro Universitário Luterano de Santarém – Ulbra). Cursa a especialização em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará. Acumula experiências em jornalismo radiofônico, impresso e online e na docência nos cursos de Jornalismo do Instituto Esperança de Ensino Superior (Iespes) e das Faculdades Integradas do Tapajós (FIT).

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O que o motivou a estudar a colonização, catequese e educação no Grão-Pará? Inicialmente agradeço a minha escolha como fonte desta entrevista, alguém que atua na área da educação para discutir a temática sobre jornalismo científico. Nem sempre os pesquisadores da área das Ciências Humanas, principalmente da educação, são vistos como cientistas, embora sejam pesquisadores. É mais comum se entender que cientistas são aqueles que classicamente são vistos em laboratório testando os resultados de seus estudos. A escolha que fizeram, na minha opinião, já faz parte de um novo olhar do jornalista sobre esse enfoque. Sinto que essa nova visão pode contribuir com um novo entendimento a respeito do que é ciência. Fico à vontade para falar sobre a educação no aspecto científico, afinal, a educação tem como objeto do estudo a própria educação. A sua tese destaca a educação no período da colonização. Ainda hoje a educação tem um perfil ou traços daquele período? A minha tese me permitiu múltiplas leituras. Está focada no objeto educação e, como tal, se realiza a partir de uma interface com várias outras áreas. Ao olhar para esse objeto – em função da concepção teórico-metodológica adotada, o materialismo histórico-dialético –, tive de fazê-lo em sintonia com outros campos: econômico, cultural, social, religioso, todos ao mesmo tempo. Com isso, fiz descobertas tanto pessoais como para efeitos de transmissão aos alunos. Fiz descobertas sobre a educação e sobre outros campos. Como o estudo tinha a vertente da história, a preocupação era buscar no passado uma explicação para situação que vivenciamos hoje. Queria compreender como isso aconteceu e depois, de certa forma, evitar os modelos não conduzidos corretamente, situações de imposição de padrões do mais forte sobre o mais fraco; evitar que isso se repita no presente. 33


Para

se compreender esse processo o senhor pesquisou até

mesmo a etimologia da palavra colonização.

Retomando esse sentido, ainda existe uma colonização na educação hoje? O estudo que desenvolvi me permite dizer que, nas sociedades divididas em classes, os interesses são distintos. Consequentemente, não é possível ter uma educação única, mas diferenciada em decorrência da existência dessas classes. Mundialmente ocorre essa divisão. Isso implica projetos de sociedades diferenciados. Embora se tenha um modelo de educação nacional, com política e legislação definidas e pensadas nacionalmente, na concretização em sala de aula, nas escolas, ainda se tem muitas limitações. Falo aos meus alunos que não há mais proibição para acessar os espaços de estudo, como acontecia no período colonial, quando havia um impedimento formal para índios, e principalmente aos negros. Hoje, a proibição não é explícita. As pessoas são impedidas de acessar determinados ambientes por vários fatores e, consequentemente, de acessar o conhecimento, assim, as pessoas se autoexcluem de determinados ambientes educacionais, especialmente na Amazônia, em decorrência de suas peculiaridades geográficas, econômicas e sociais. A falta de instalação de determinados cursos de pós-graduação no interior da Amazônia é um dos instrumentos de exclusão. Quais os impactos provocados pelo modelo educacional praticado pelos jesuítas em relação ao que se tem hoje? Como a influência dos jesuítas se configura em sua pesquisa? Como fomos colonizados pelos portugueses, vigorava em Portugal um sistema de estado em que havia uma integração estado-igreja. Não se tratava de uma interdependência, mas algo muito mais forte. Tratava-se de uma relação política, econômica e ideológica. Estudiosos mais críticos consideram uma relação visceral. A educação não visava os fins do governo, mas religiosos; era atribuição da igreja e não de Estado. Isso veio a mudar quando Sebastião Carvalho, o Marquês de Pombal, assumiu o controle político em Portugal, que tinha na Amazônia um braço forte, Mendonça Furtado [Francisco 34


Xavier de Mendonça Furtado, que foi presidente da Província do Grão-Pará, responsável pela mudança dos nomes dos vilarejos ao longo da região do baixo Amazonas, inclusive Santarém], que conduziu muito bem a nova política educacional. O Marquês de Pombal teve a percepção de mudar a concepção educacional. A educação passa a ser atribuição governamental e não mais da igreja. A única forma de promover essa mudança foi expulsar os jesuítas do Brasil, embora, essa não tenha sido a única razão. Houve também outros motivos, como o fator econômico. Os jesuítas estavam na América do Sul, Brasil e parte do Uruguai e Argentina onde havia uma grande produtividade, devido à melhor condução na gestão da agricultura. Mas houve choque com a cultura europeia... Sim, considero que a colonização dos portugueses foi menos traumática em relação aos espanhóis [o domínio espanhol na América Latina]. Onde os espanhóis chegaram, ficaram menos vestígios culturais dos povos que ali viviam do que por onde os portugueses passaram. A educação que se processou no período colonial, foi conduzida pela igreja, e quando falamos isso, concretamente quem fez foram as ordens religiosas. A primeira ordem religiosa que para cá veio foi a dos franciscanos. Eles chegaram a fazer um trabalho educacional, mas foram infelizes. A tática foi fracassada. Eles iam catequizando os índios e iam avançando mata adentro, para o interior, catequizando. Abandonavam, por onde já haviam passado, e os relatos mostram que, na volta, já estava tudo desfeito. Muito dos franciscanos foram comidos por índios antropofágicos no retorno. Houve muitos mártires franciscanos no período colonial. Já os jesuítas fizeram outro modelo. Ao invés de avançarem, passaram a criar aldeias e os índios catequizados iam buscar outros para a catequese e traziam para os aldeamentos. Depois é que os jesuítas avançavam. Foram estratégicos. Não podemos esquecer de que os jesuítas eram militares. Foi uma ordem criada por Inácio de Loyola, um militar espanhol. Os jesuítas, então, usavam a tática dos militares com a 35


forte hierarquia da igreja. Essa combinação: militarismo-obediência hierárquica, deu muito mais resultados no processo de educação que aconteceu no Brasil. Os jesuítas tiveram forte influência na educação no Brasil e na Amazônia, no período colonial. Nos

primeiros séculos da colonização havia explícito pre-

conceito contra os índios, discriminados por não terem

“lei, fé e nem rei”, conforme os escritos da época de Pero de Magalhães Gandavo. Hoje, se tem educação indígena e quilombola, esses princípios não podem contribuir para segmentar e discriminar ainda mais o indígena e o negro? Entendo essa reflexão como algo da mais alta importância. A visão que se tinha naquele período era de que a Europa havia atingido um estágio de civilização e se sentia com a responsabilidade levar essa civilização a outros lugares, semelhante ao que ocorreu com os Estados Unidos que atingiram um nível de democracia e que, por isso, acreditavam que deveriam levar essa democracia aonde não havia, mesmo que fosse preciso derrubar os governos ali instalados. Havia uma selvageria em outros locais e uma civilização nos países europeus católicos, especialmente Espanha e Portugal, que se viram com a tarefa de colonizar e civilizar o mundo. Associado a isso, nascia o modo de produção capitalista com a ideia de progresso. Na Amazônia, isso ainda é muito forte e está associado ao conceito de civilização, enquanto que conviver com o mato associa-se a um estado selvagem. O modelo de progresso está associado ao desmatamento. Ainda hoje tem muita gente que pensa que não pode ter produção sem o domínio forte do homem sobre aquilo que é natural. Vejamos situações como esse desmatamento enorme aí [área de 200 hectares às margens da rodovia Fernando Guilhon, em Santarém, que foi devastada para fins de expansão urbana por uma empresa particular, impondo riscos graves ao igarapé e lago do Juá], mas se você for conversar com as pessoas, as opiniões são muito divididas, e muitos são favoráveis. 36


Os europeus, com essa visão de progresso, com autoincumbência de civilizar esses povos, fizeram com que viesse pronta, com um modelo educacional, uma visão de mundo a ser transmitida. Para implantar esse novo conceito, os colonizadores tiveram que afastar a visão aqui existente. Com isso, deu-se pouco espaço à cultura local. Hoje nota-se um movimento bem diverso, uma compreensão de que as diferentes culturas devem ser respeitadas, preservadas. Isso, no entanto, pode levar a outro extremo: uma supervalorização dessas diferenças a ponto de produzir os guetos e até se isolarem. É muito difícil esse ponto de equilíbrio que seria a inter-relação, a interculturalidade. Haveria uma forma de se estabelecer uma interculturalidade no campo da educação, sem que se tenha a intenção de se fazer uma homogeneização de conteúdo, levando em consideração essa pluralidade cultural? Imagino que sim. Mas para isso é preciso partir do entendimento de que a educação escolar é o resultado de um produto histórico da humanidade. Todo o conhecimento que a humanidade gerou não pertence a um ou a outro, dessa forma não vejo por que se negar esse conhecimento. Independente de ser índio, negro, pobre ou rico todos precisam acessar os saberes. O conhecimento existente hoje nos campos da matemática, física, química, biologia e tantos outros jamais pode ser negado a quem quer que seja. Em nome do discurso de valorizar a cultura desses segmentos, acaba-se por simplificar a educação que recebem. Não há um risco também com essa segmentação, com a educação mais específica, de sacramentar quem é ou não incapaz de acessar determinado saber? Eu vejo nesse contexto uma nova forma de colonização. Certo dia, discutindo com professores da USP por ocasião de um trabalho em parceria com a Unicamp, estabeleceu-se um debate com base na visão de Paulo Freire em oposição ao professor Saviani [Der37


meval Saviane, pesquisador da Unicamp, uma das referências dos estudos educacionais no Brasil na atualidade]. Embora os dois se aproximem, também se distanciam. Os pesquisadores da USP, discípulos da teoria freireana, defendem a valorização dos saberes que as pessoas constroem em sua trajetória de vida e isso não pode ser ignorado jamais. Os seguidores de Saviani, ligados à Unicamp, defendem que a escola tem uma especificidade e que não se deve abrir mão disso. No momento em que se propõe a substituição das ações de professores e diretores de escolas pela participação da família, aí falta compreensão do processo. É salutar e importante a participação da família, mas quem pode fazer isso com competência é quem recebeu a formação e esses sujeitos são os professores e os diretores de escolas. São duas visões que têm suas aproximações e suas divergências. Veja a importância do processo educativo no fenômeno presente na construção das hidrelétricas que estão sendo construídas no estado de Rondônia, onde a mão de obra qualificada está com as pessoas que tiveram acesso aos saberes nas melhores escolas do país. No mais, o grosso que forma o quadro de trabalhadores são pessoas de baixa escolaridade, de pouca qualificação profissional. Vejo isso de forma temerosa. Ao se fazer dessa forma, segmentando a educação, supostamente se está valorizando as culturas, mas isso pode gerar grandes consequências. Não defendo esse modelo de sociedade, mas no momento é isso que se tem e para se evitar um choque maior, tão desfavorável, faz-se necessário estabelecer o mínimo de equilíbrio. E isso passa por uma educação escolar efetiva. Essa visão capitalista da educação não acaba camuflando uma suposta valorização do setor, quando se vê uma estrutura, na realidade, corroída? O capitalismo tem o poder de decompor o meio onde atua, mesmo que a proposta seja bem intencionada, mas a fúria pelo lucro destrói qualquer boa intenção. O capitalismo gera a necessidade do desejo, que não é o mesmo desejo das necessidades básicas, como a de 38


comer. Isso pode ser suprido com uma refeição, mas se o desejo é de comer determinada coisa, aí muda o conceito de necessidade básica. Desmistificar esse entendimento é muito difícil, haja vista que o próprio educador faz parte desse sistema e isso inclui a realidade amazônica. Aqui o dano é bem maior devido ter saído de uma fase de profundo atraso e se incorporado à revolução tecnológica. Passa a ter contato ou até mesmo acessar esses novos benefícios, como o celular, por exemplo, e outros aparelhos que se transformaram rapidamente em verdadeiros fetiches. Mais que necessidade, passa a ser desejo, ou seja, todos estão instrumentalizados pela estratégia de mercado. Por isso, o sistema se torna praticamente indestrutível. Como o senhor percebe a complexidade amazônica ao olhar as sociedades mais antigas, como a dos cacicados, fazendo uma relação com o processo educacional? A grife Amazônia pouco contribui com os temas da educação na região. Isso porque as produções científicas partem dos centros urbanos, sobretudo os mais avançados, e acaba se falando de Amazônia de forma homogênea. Os maiores centros estão concentrados nas capitais Belém e Manaus, e funcionam historicamente como a cabeça pensante de uma região que vai além das metrópoles. Com isso, tem-se uma cabeça grande é um corpo atrofiado. Assim, a educação é deformada, poucos dominam grande parte do conhecimento e produzem suas teses a partir de uma realidade mais urbana. Por outro lado, grande maioria das pessoas é impedida de acessar os saberes. Produzir conhecimento científico, nem pensar... Até que ponto é possível falar de uma história da educação na Amazônia, quando a maioria dos escritos se limita a falar de Belém como dando conta da Amazônia ou do Pará. Na verdade, se discute superficialmente Belém. Quando se inclui Rondônia no contexto nos deparamos com realidades totalmente diferentes que despertam diversos olhares de cultura, de sociedade e de progresso, com um modelo de distribuição de renda mais equânime, diferente da cabeça grande e o corpo atrofiado do Pará e do Amazonas. 39


O que significa fazer ciência na Amazônia levando em consideração as peculiaridades locais? Fazer ciência na Amazônia, assim como em outras regiões, dependendo do campo da pesquisa, pode-se ter muitas dificuldades ou grandes facilidades. Desde os primórdios os estudos científicos estão ligados à ideia de progresso. Se o pesquisador estiver ligado a um projeto capaz de impulsionar ainda mais esse progresso, certamente terá financiamento, patrocinador, visibilidade. A partir do surgimento do capitalismo, na medida em que avança a ideia de progresso, avançam também as mazelas. A forma de fazer ciência que visa a compreender e criticar os modelos impostos pelo sistema não terá o mesmo apoio. Fazer ciência em sintonia com o sistema é diferente de fazer ciência se opondo ao modelo que o sistema defende. Grande maioria dos cientistas ligados à educação faz parte dos críticos do modelo do sistema vigente. Por isso, os incentivos são mais escassos e consequentemente os estudos avançam mais lentos.

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Com um projeto de ciência e vida Celson liga a Amazônia à Europa

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elson Pantoja Lima é professor adjunto e pesquisador da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Graduado em Ciências da Computação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC, 1986), mestre em Engenharia Mecânica pela UFSC (1994) e doutor em Engenharia Electrotécnica e Computadores pela Universidade Nova de Lisboa (2001). Possui pós-doutorado obtido junto ao Centre Scientifique et Technique Du Batiment, CSTB, Sophia Antipolis, França (2002). Desde Junho de 2012 ocupa o cargo de Diretor do Instituto de Engenharia e Geociências da UFOPA.

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Entrevistado por Ronilma Santos* Na Amazônia existe um potencial para o desenvolvimento de modelos principalmente ligados à geração de energia, que já existem em outros lugares, mas não tem nada específico para a região, ou seja, aplicado aqui. O custo dos painéis é alto, o custo das baterias também é muito alto. A Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) começou a fazer pequenos projetos também nesse sentido. A ideia é que isso se materialize em termos de pesquisa. Entre outros temas, essa é uma das questões abordadas aqui pelo pesquisador da instituição Celson Pantoja Lima . Olhar tranquilo e sorriso amigável, à primeira vista a forma simples de conversar esconde o conhecimento científico adquirido ao longo dos anos. Tem em seu currículo títulos como doutorado em Engenharia Electrotécnica e Computadores pela Universidade Nova de Lisboa (UNL), com pós-doutorado pelo Centre Scientifique et Technique du Bâtiment (CSTB), em Sophia Antipolis, França. Poliglota, fala fluentemente inglês, francês, espanhol, italiano, além do português. O pesquisador Celson Pantoja Lima, 47 anos, retornou a Santarém (PA), em fevereiro de 2011, após quase 20 anos de estudos no Sul do Brasil e Europa. A entrevista foi realizada em sua sala de trabalho na UFOPA, onde atualmente é professor-pesquisador em Engenharia de Software e Diretor do Instituto de Engenharia e Geociências.

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Ronilma Santos é jornalista, graduada em comunicação social, com habilitação em Jornalismo pelo Instituto Esperança de Ensino Superior – Iespes. Aluna do curso de pós-graduação em Jornalismo científico pela Universidade Federal do Oeste do Para (UFOPA). Iniciou suas atividades como repórter na TV Amazônia – Afiliada da Rede TV em Santarém (PA) e atualmente é repórter na TV Tapajós, afiliada da Rede Globo em Santarém.

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A entrevista começa, o pesquisador se preocupa em arrumar o local, as cadeiras, não conseguindo disfarçar um pequeno grau de timidez, confirmado na hora das fotos, quando cruza os braços e comenta não gostar muito da situação [risos]. Mas logo desanda a falar revelando a imensa vontade de compartilhar o conhecimento adquirido em prol de melhorias à educação e ao desenvolvimento do lugar onde nasceu.

Você trabalhou por vários anos na Europa como pesquisador e professor. Por que decidiu voltar para Santarém? Eu sempre quis voltar para Santarém, durante todo esse tempo que estive fora, nunca perdi o contato com a cidade, com as pessoas, aqui tenho família e amigos. Tanto que boa parte das minhas férias, eu vinha passar aqui. Aproveitei para estudar, me qualificar, mas sempre quis voltar. Então quando abriu concurso para UFOPA, na minha área, eu fiz, passei e voltei. Boa parte da minha família está aqui, mas minha vinda pra cá foi motivada também por achar que aqui eu posso contribuir para o desenvolvimento da região de uma forma muito mais produtiva do que em grandes centros já estabelecidos. E nossa região precisa disso! Fora do Brasil, você participou de vários projetos, como em 2009, quando esteve na final mundial da competição Imagine CUP no Cairo, categoria de software design, como mentor da equipe do departamento de Engenharia Electrotécnica da Universidade Nova de Lisboa. Como você acha que a tecnologia pode ajudar a resolver alguns dos problemas da

Amazônia? Dentro da sua área, você tem um projeto especifico para Amazônia? O meu projeto para Amazônia é um projeto de vida, na realidade, é muito mais abrangente do que um projeto tecnológico, a experiência acumulada nos projetos, a experiência de ter vivido na Europa, isso pode se materializar de muitas formas, na verdade já está se 43


materializando. Por exemplo, as ligações que tenho com as universidades de lá, me permitem enviar alunos para estudar na Europa, também nos permitiu assinar um convênio de cotutela de doutorado, com o doutorado da UFOPA. Ou seja, se o aluno quiser, ele vai sair daqui com dois diplomas, um brasileiro e um europeu. E como funciona essa parceria? Bem, o aluno da UFOPA vai até Portugal, faz seis meses ou um ano de trabalho no doutorado da UNL [Universidade Nova de Lisboa] e, ao fazer isso, ganha o direito de uma dupla diplomação e isso é fruto da minha relação com aquela universidade. Nosso projeto começou agora, a primeira turma foi formada no ano passado e agora a gente começa a trabalhar a partir do dia 19 de fevereiro deste ano, são 14 alunos, dos 41 que se inscreveram. Então são projetos desse tipo que pretendo trazer para região. Eu ainda tenho muitos projetos na Europa, aqui eu ainda não tenho muita coisa de concreto, em termos de projeto, tenho um na área de redes móveis, por exemplo. Redes móveis? Fale-me mais sobre isso. O projeto é bem simples, na verdade é uma continuação do projeto que eu tinha na Europa. Qual é a ideia? Agentes de comunicação precisam todos de um servidor, então a gente não tem rede. Na telefonia, se eu não tiver o sinal da Oi, nem da Vivo, não consigo falar com ninguém, no entanto os dispositivos têm capacidade de comunicação, têm protocolo. Qual é a ideia? Fazer uma rede sem servidores centrais, cada nó da rede (cada celular, por exemplo) é um retransmissor e amplificador da rede, dita ad hoc. Isso pode ser muito útil, principalmente nas regiões onde os sinais não chegam. Eu posso falar com outras pessoas, enviar SMS, usando uma rede wifi. Então foi isso que nós tentamos fazer aqui, isso é uma pequena extensão. O outro projeto, que também é uma pequena extensão do trabalho desenvolvido em Portugal, originário do controle de sensores, é o de aplicações de sistemas domóticos, ou seja, conforto basea44


do em automação para espaços habitacionais. O termo “domótica” resulta da junção da palavra latina “domus” (casa) com” robótica” (controle automatizado de algo). Permite o uso de dispositivos para automatizar rotinas e tarefas de uma casa. Normalmente são feitos controles de temperatura ambiente, iluminação e sons, distinguindo dos controles normais por ter uma central que comanda tudo, que às vezes é acoplada a um computador e/ou internet. Os alunos aqui fizeram e aplicaram esse modelo também. A gente não tem inovação, é só aplicação da tecnologia, porque esses modelos já existem, eu trouxe de lá pra cá. O

avanço da tecnologia é um assunto que tem despertado

bastante o interesse da sociedade de forma geral...

... Posso dizer duas coisas válidas nesse contexto! A gente não vive sem energia e sem os meios de comunicação. Se tirar isso, a vida das pessoas para, param os negócios, para a educação, para tudo! Aqui na nossa região, a gente tem potencial para desenvolver modelos principalmente ligados à geração de energia, que já existem em outros cantos, mas não tem nada específico para a Amazônia, ou seja, aplicado aqui. O custo dos painéis é alto, o custo das baterias também é muito alto. A UFOPA começou a fazer pequenos projetos também nesse sentido, a ideia é que isso se materialize em termos de pesquisa, na questão de sobrevivência, é preciso fonte local de geração, nós temos biomassa, temos muitas coisas que podemos aproveitar e fazer. Em relação à comunicação é a mesma coisa, a internet é um problema sério em Santarém, todo o avanço que houve nessa área não justifica a precariedade do serviço na cidade, é um problema para bancos, para os comerciantes... Todas as empresas hoje fazem serviço pela internet, então a parte social é importante, mas eu até colocaria em segundo plano, a internet é importante para educação, é importante nas escolas, nas universidades. Os alunos precisam desse acesso, muitos conhecimentos são extraídos através da internet, a rede facilita muito. As grandes instituições do mundo também estão 45


na net, as universidades de Harvard e MIT fizeram um site só delas, para divulgar as aulas, investiram milhões nesse negócio. E o que a gente tira daí, é que bons conteúdos podem ser extraídos da net. Como a falta

de políticas públicas relacionadas a um acesso

de qualidade da internet pode comprometer a educação na

Amazônia? Já compromete. As escolas do interior não tem acesso ao mar de conhecimento disponibilizado pela web. Também passam ao largo de potenciais melhorias no processo de ensino-aprendizado que é oferecido pelos serviços da grande rede. A manutenção da ausência só vai piorar o estado atual das coisas. Quais projetos que, em sua opinião, poderiam ser implantados na região, para igualar as oportunidades dos estudantes daqui aos das regiões desenvolvidas, ou até mesmo de países desenvolvidos? Infraestrutura e investimento na formação de professores capacitados para explorar os recursos da tecnologia, motivando os alunos a irem mais além. Existe também o projeto “sociocultural” que passa pela valorização dos profissionais da área da educação, somente os do ensino fundamental e os do ensino médio, que devem ser vistos como agentes vitais na formação dos nossos alunos. E certamente a família não pode se furtar a desempenhar o seu papel de “educador”, também, como acontece nas sociedades mais desenvolvidas em termos de educação. Pais precisam acompanhar os filhos, as tarefas, a leitura, e assim por diante. Você

acha que esse avanço tecnológico tem feito com que

“sistema”? Já que hoje tudo é feito através do computador, como você falou no início. Quando a internet e os serviços ligados a ela param, a vida das pessoas também acaba parando, de certa forma. a sociedade vire refém de um

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Se eu acho que a gente virou refém? Acho que “refém” é uma palavra muito forte, é que a tecnologia evoluiu tanto que ela está presente em todas as áreas da vida, principalmente a tecnologia computacional, a gente não vive mais sem computador e a rede é nosso meio de ligação; nós nos acostumamos à tecnologia, o computador deixou de ser artigo de luxo, sem ele a gente não consegue trabalhar, é uma necessidade real, assim como precisamos de coisas básicas no dia a dia, a rede virou uma coisa básica. Em Santarém, o problema não é a tecnologia, tecnologia nós temos, é a falta de seriedade na prestação dos serviços, como os de internet, a falta de controle que deveria ser rigoroso da Anatel e companhia. Em Santarém falta uma ação planejada para acabar com esse problema de uma vez por todas. Aparelhos

celulares, smartphones, computadores e outros

tantos hoje agilizam o processo de comunicação.

Mas quanto

à fragilidade desse processo tecnológico, como garantir o sigilo das informações repassadas através desses meios como e-mails, mensagens de textos e ligações, já que em algum lugar essas informações ficam armazenadas?

Não. É impossível. A partir do momento em que a gente tem um servidor no meio do caminho, porque tudo deve passar por um ou mais servidores, por exemplo, meus e-mails estão armazenados em um lugar que eu nem sei qual é, se eu sou uma pessoa influente, quem me garante que alguém não pode violar meus e-mails e vender minhas informações? A garantia que tenho é zero, porque é um servidor que não sei onde está e nem quem tem acesso a ele. Vivemos

numa época em que as inovações ocorrem de for-

ma surpreendente.

Antes, por exemplo, quase ninguém posDepois ele passou a ser um aparelho quase tão comum quanto a televisão. O aparelho celular, tablets, iPad, enfim, e tudo surgindo com muita agilidade. Você acha que essa rapidez de ofertas tecnológicas é boa? suía computador.

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Eu vejo sim! Depois que vi o primeiro computador pessoal (Nexus 1600) chegar ao Brasil, acompanho os avanços. Há sempre um lado bom em tudo isso. A única questão é a utilização que as pessoas fazem da tecnologia, como utilizam esses meios, há o lado maléfico claro, a pornografia, a venda de drogas pela internet... O lado bom é poder interagir de forma rápida e eficiente. Até as redes sociais tem o lado bom, de poder reencontrar amigos, eu utilizo redes sociais. É claro que também tem um lado ruim, que acaba sendo um vício, uma droga, atrapalha a concentração dos alunos nas aulas, por exemplo, qualquer atualização os alunos querem postar na internet, tem que saber utilizar, assim como tudo na vida. Você acha que a internet é uma forma de narcisismo virtual? Sim, a internet oferece uma forma de narcisismo virtual, as pessoas querem sempre se exibir, contar o que estão fazendo, onde estão, com quem estão, o que estão comendo, e muitas vezes o que elas publicam nem é a realidade delas. Por exemplo, em muitos perfis da rede, as pessoas têm mais de mil amigos. Você acha mesmo que as pessoas têm mil amigos? Hoje as pessoas deixam de ir a festas para ficar na internet, deixam de se relacionar de forma verdadeira, para ficar na internet, deixam de fazer amigos para ter contatos. “Precisamos rapidamente humanizar a tecnologia antes que ela nos desumanize”. Essa citação é do filósofo Martin Buber. Você concorda com esse ponto de vista? De certa forma sim, mas também depende da utilização máquina/ pessoa-pessoa/máquina. Como fazer para que a tecnologia aproxime as pessoas... Eu não sei, acho um pouco complicado. Há países que possuem visões diferentes da tecnologia, onde a TV é controlada, onde a leitura é privilegiada. É preciso olhar para a tecnologia e fazer um bom uso dela, saber como ela pode contribuir positivamente para nossa vida. 48


Você é considerado por muitos uma pessoa muito inteligente. Isso é devido ao seu trabalho com os computadores e a tecnologia? Você se considera de fato uma pessoa inteligente? Na verdade, eu sou um cara que trabalhou muito, que batalhou muito, sempre fui um dos melhores alunos da sala, mas sou um cara organizado, disciplinado, me concentro no que eu quero. No entanto eu era o cara também que organizava as festas na turma. Na hora de trabalhar e estudar sou sério e empenhado, esforço-me para obter os melhores resultados, mas na hora de festa, também levo a sério [risos].

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Semiótica e libertação nas palavras Jogo, forma e estilo na literatura

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ristina Vaz Duarte da Cruz é doutora em Letras (Teoria Literária e Literatura Comparada) pela Universidade de São Paulo (2005) no âmbito da Semiótica das Instâncias, com pós-doutorado em Ensino de Línguas pelo Instituto de Educação da Universidade de Estolcomo. Atualmente é professora titular de Língua Portuguesa e Semiótica na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

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Entrevistada por Júlio César Guimarães* A pesquisadora Cristina Vaz toma todo o cuidado na escolha das palavras. É detalhista, como se estivesse escolhendo um vestido de noiva na vitrine de uma loja. Seleciona as ideias. Influenciada pela teoria a Semiótica da Instância, de Jean-Claude Coquet, ela é autora de “A forma literária em Nathalie Sarraute”, 2007, resultado da pesquisa de doutorado em Teoria Literária pela Universidade de São Paulo (USP). Vaz analisa e expõe de forma clara dois livros de Sarraute, escritora nascida em Ivanovo, na Rússia, a 18 de julho de 1900, mas que foi levada para França ainda criança onde cresceu e produziu mais de 20 obras, sendo referência para o revolucionário movimento literário “Nouvelle roman”. Nesta entrevista, ela expõe os eixos principais de suas pesquisas, explorando obras da escritora francesa Nathalie Sarraute (19001999).

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Júlio César Guimarães cursa a Especialização em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). É bacharel em Comunicação Social com Habilitação em Jornalismo pelo Instituto Esperança de Ensino Superior (2009). Atua como assessor de comunicação da Secretaria Municipal de Saúde (SEMSA) de Santarém (PA). É repórter da Rede Brasil Amazônica (RBA) em Santarém (PA), emissora afiliada à Rede Bandeirantes (BAND). E-mail: <julio.stmpa@gmail.com. Blog: www.juliocesarguimaraes.wordpress.com>.

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Como tudo iniciou? Minha graduação, onde conheci a semiótica pela primeira vez, foi na França. Fiz a graduação na Paris VIII, uma faculdade que tem uma história interessante, pois foi formada graças a revolução de maio de 1968, dos estudantes. Ela surgiu como uma opção interdisciplinar [movimento científico que tem fundamentação na história da ciência moderna, a partir do século XX] e livre em relação ao modelo tradicional que havia na França, muito autoritário, em que o professor não tinha contato com o aluno. Paris VIII surgiu para democratizar o ensino. Além disso, propor linhas interdisciplinares. No departamento no qual eu estava, que era de Letras Modernas, fazia francês, só que era uma universidade livre; o aluno podia escolher as disciplinas para seu currículo. Havia, por exemplo, professores que ofereciam ao todo, 30 cursos e você poderia caminhar como bem intencionasse, seja através da empatia com a área do professor, seja com a disciplina você podia fazer a sua grade. E aí o que eu fiz? Encantei-me pelos estudos de Jean-Claude Coquet, que é um semioticista, seguidor de Benveniste de Mello Point. Encantei-me pela linha de pesquisa dele e fiz a opção de fazer 80% do meu curso baseado nas propostas de Coquet. Foi aí que comecei a me especializar na semiótica. Todas as disciplinas que me influenciam são na área de semiótica. Toda a minha formação foi pautada nessa pesquisa de semiótica. Primeiro Semiótica Literária, depois jornalística, análise de artigos de jornais. E o seu percurso na pós-graduação? Fiz um mestrado sobre três artigos de jornais que saíram sobre a Teologia da Libertação [termo elaborado pelo padre peruano Gustavo Gutiérrez, autor do livro “A Teologia da Libertação”, de 1971]. O interesse pela teoria da libertação é por causa do aniversário de 500 anos do descobrimento da América Latina e com o interesse pela Teologia da Libertação, encontrei um caminho que era tentar ver os discursos sobre política, nesses três artigos, ligados à religião. Fiz o mestrado nessa linha em semiótica. Quando cheguei ao Brasil, 53


tive dificuldades para achar um orientador que entendesse que a semiótica era muito interdisciplinar, porque a semiótica feita na USP [Universidade de São Paulo] era voltada muito para a linguística e não tinha uma tomada em filosofia, uma filosofia mais aberta para a fenomenologia, não havia essa linha de pesquisa; então, o lugar que encontrei para continuar minhas pesquisas não foi na Linguística, não foi na Língua Francesa, como era o que fazia na França, foi em Teoria Literária porque o Departamento de Teoria Literária na USP aceita linhas interdisciplinares. Acabei fazendo um doutorado em Teoria Literária. A minha orientadora me deixou com ampla margem para trabalhar de maneira interdisciplinar, pegando textos de uma autora e o compromisso com o Departamento foi estudar um assunto da Teoria Literária. Apliquei a semiótica para a questão da Forma Literária que era um assunto muito caro para os teóricos da literatura. A Forma Literária seria o jeito dos autores escreveram. E mais do que um jeito, um formato mental que faz que um livro seja de um autor e só dele, que não possa ser copiado. O chamado estilo? O estilo tem uma componente [composição] que é a forma. O estilo seria o jeito de escrever, a forma é essa bagagem que estrutura o pensamento do escritor permitindo-lhe fazer opções para determinadas construções sintáticas [de sintaxe, parte da gramática que estuda a disposição das palavras na frase e das frases no discurso], que ele tenha um número de linhas para o seu parágrafo. A forma é mais ampla. O estilo está para o leigo. O teórico da literatura vai falar de forma. A Forma Literária é esse arcabouço mental que faz com que um texto seja diferente de outro. A palavra estilo leva mais para uma sofisticação do jeito de escrever e não é bem isso que a forma estipula, mas todo esse arcabouço mental que faz a diferença entre os textos e ser único. Aí está a questão. Um grande escritor é aquele que tem forma literária única, que não pode ser copiado e que vai ficar na história como sendo um único estilo. Ninguém escreve como Shakespeare, ninguém escreve como Machado de Assis. Cada grande escritor deixou uma forma para ser absolvida. 54


Posso dizer que a forma contempla o estilo? Isso... São, digamos, detalhes? O estilo do autor é como você falasse assim: “— O buraco da porta e o caixilho da porta”. Caixilho vai ser a palavra do técnico, especialista, e o buraco da porta é para um leigo que olha e fala: “— A porta passa por aqui”. A palavra estilo é ligada ao vocabulário leigo, como a gente fala dos autores em geral. A palavra “forma” é um componente mais técnico da área da teoria literária. A forma implica não só o jeito de pensar e de seguir um estilo, mas implica as escolhas lexicais [escolha das palavras], as escolhas de formato do texto, não só a estruturação dos parágrafos como a pontuação. Tudo o que vai compor um jeito de escrever. Quando fiz a tese de doutorado, minha proposta era conseguir encontrar uma verbalização para o que fosse a forma, como estrutura que deixa o autor ser singular, que seja um exemplo na literatura, que fique marcado na história da literatura, o que faz da forma literária de cada autor tenha um componente plural e singular. A forma literária do autor é singular na medida em que ele tenha uma ligação íntima com o seu texto. É plural na medida como ele se liga ao coletivo. Para uma forma ser única, precisa ter duas componentes: uma componente singular, daquela relação do autor com o próprio texto e trazer também um componente coletiva, que faça o link desse texto com o coletivo. Isso foi a conclusão da minha tese em que o autor só fica na literatura e só permanece, nunca é esquecido, quando consegue ter ao mesmo tempo, na forma literária, as componentes singular e plural. Se você fica ligado ao seu texto e não consegue alcançar o coletivo, você não é um grande autor. Minha tese diz isso: se você tem uma coisa e não tem outra, você não se insere na história literária. É preciso ter as duas componentes. 55


Dê um exemplo... Provei isso, analisando semioticamente dois textos da Nathalie Sarraute. O primeiro [“Tropismos”, de 1939] e o último [“Abram”, de 1997]. Vi numa dimensão micro, em análise do texto, o que é essa forma singular e essa forma plural. Fiz um caminho que poderia na microestrutura representar o que ela tinha feito no coletivo. O que ficou grandemente marcante foi observar como essa autora conseguiu fazer o link coletivo dela. A componente plural da forma literária dela. Outra coisa que ficou muito marcante foi que a forma literária dessa autora impedia, o que a gente referisse ao que ela põe em cena a palavra personagem, a palavra narrativa, todos esses termos foram ultrapassados. A forma literária que ela criou impede que a gente use os termos da narratologia [o seguimento de fatos reais ou imaginários comuns em contos e histórias] para falar dos textos dela. Por quê? Bem, a forma literária dela ultrapassa... Você está vendo que fiz a capa em duas cores. Veja que as letras estão como que mergulhadas umas nas outras, pois não existe linha entre a ficção e o real. Ela coloca em cena uma forma literária que quebra a linha entre ficção e real. Quebrando essa linha, não se pode mais falar em personagem, ficção, pois esses termos se referem quando você tem uma separação entre real e ficcional. O que ela põe em cena nos textos dela impede que a gente faça essa cisão. O real e a ficção são uma coisa só. Então

o que eram os textos dela?

baseado em fatos reais?

Romance

ou um relato

Nenhuma coisa, nem outra. Deixa eu pegar um exemplo... [folheia o livro] Ela fala das palavras... [folheia o livro] As palavras que estão em cena... [folheia o livro] Não tem uma estória... [folheia o livro]... Ela fala das palavras, as palavras que estão em cena... [folheia o livro] Os textos dela são baseados na palavra? Como? Sim, a palavra é o assunto do texto, a escolha das palavras para você falar qualquer coisa. Aqui, oh, vou dar um exemplo, ler um 56


pedacinho do texto dela. Esse é o texto IV do livro dela “Abram”, “Ouvrez” [em francês] que é o ultimo texto, escrito aos 97 anos. Ela escreveu: — Vocês parecem incomodados... O que aconteceu com vocês? — Vocês que estavam lá o tempo todo, vocês devem ter percebido alguma coisa? — Claro que não, vocês nos viram... Nós respondemos prontamente a todas as convocações... — Foi fácil, era a mais banal das conversas. O que quer que fosse... Impossível de se dar um passo em falso... — Logo que a secretária eletrônica foi acionada, nós viemos cumprimentar como se deve alguém simpático, gentil... — Mas vocês que recebiam o que chegava do outro lado da ligação, vocês sabem bem o que os colocou nesse estado... Então, digam-no... — A gente não está se sentindo bem... — Por quê? Façam um esforço... — Ora, alguma coisa aconteceu com a palavra “é”, que em francês se pronuncia “C’est”... — Com “C’est”? — Sim, “C’est” foi maltratado diante de nós, seu “t” foi retirado... — E foi necessário aceitá-lo sem fazer nada. — Retirado o seu “t”? Como? — Logo que o fone foi retirado do gancho, veio de lá, precedendo “Antonin”, um “C’es” amputado de seu “t”... C’es... Antonin... e não “C’est’Antonin”... Aí ela fala de uma frase que foi pronunciada na secretária eletrônica e fica um delírio em volta dessa frase. Então isso não é contar uma história. Isso é uma discussão em forma dialogal. Você vê que são diálogos [mostra o texto para o entrevistador]. Não tem uma estória, só existe uma discursão de palavras. Ela faz uma análise daquela situação? Daquela palavra... 57


Qual foi a palavra nesse texto? “C’est’Antonin”... [ao aportuguesar a pronuncia fica: Cét’Antantonan] Mas o que quer dizer no texto essa palavra? Essa palavra vem do Francês que significa: “É o Antônio”. Só que em francês você pode falar “C’est’Antonin” ou “C’es... Antonin...”. Na verdade a regra diz que você tem que fazer a elisão, que é a ligação entre os dois sons, criando o terceiro que é a letra “t”: “C’est’Antonin”. Só que a pessoa que diz isso, omite a ligação entre as palavras e não forma essa letra “t”. Não formando essa letra “t”, fica um erro em língua francesa, mas a pessoa que fala, fica mais tranquila com ela mesma. Sabe por quê? Porque existe uma onomatopeia que “t’Antonin” significa “êxitante” e a pessoa que fala ao telefone, não quer se passar por “exitante”, então ao em vez dela falar “C’est’Antonin”, como se você estivesse dizendo “É o “exitante”, faz-se um erro na língua francesa pra quebrar a língua francesa e não deixar que se faça uma explicação subliminar nessa língua. Então nos jogos de discurso dela são todos voltados para quebrar os limites da língua francesa. Você poderia dar um exemplo? Acho que no Brasil alguns autores fazem isso em pequenos momentos dos seus livros. Ou, por exemplo, não sei se você pegou aquele artigo do Machado de Assis sobre Dom Casmurro [ela se refere a um artigo em construção intitulado “Semiótica e Interdisciplinaridade”], quando você pega o Dom Casmurro e escolhe o uso de sintaxe curta para descrever a casa de Matacavalos, ele também quer chegar aos limites da língua portuguesa-brasileira. Ele fica tentando mostrar sintaticamente o quanto aquela casa foi racional. Você pode perceber que as frases são curtas, lapidares. O segundo capítulo do Dom Casmurro é uma compilação de frases muito curtas e lapidares para demostrar o quanto é racional aquele espaço que ele [Machado de Assis] estava descrevendo. Muitos autores fazem isso para tentar chegar aos limites da língua. E a 58


Nathalie Sarraute tentou chegar aos limites da língua sem contar uma história. Só discutindo palavras e jogos de palavras. Sem se aprofundar muito nas situações, no contexto, mas se aprofundado bastante na discussão do uso da palavra. Ela tem até o livro do uso da palavra. Um dos livros que ela estudou, escreveu, se chama “O uso da palavra”, ainda não foi traduzido em português do Brasil, só de Portugal. Então ela foi única em sua forma de escrever? Olha... Da maneira como ela faz, foi única. Porque isso mostra que ela foi uma pessoa que criou uma forma literária de escrever. Só que ela faz parte de uma corrente de literária maior que se chamava “Nouvelle roman” [“Novo romance”]. Teve muita gente que escreveu de maneira revolucionária com a forma literária. Tem o texto muito famoso que se chama “O pão”, nele se descreve o pão como se fosse uma montanha, com crateras, as cascas de pão eram as crostas que você podia observar da terra, um texto absolutamente descritivo que fala do pão e do relevo do pão. Essa coisa de tentar focalizar o microscópico, o que é muito pequeno, para tentar chegar numa dimensão maior, foi uma vertente da escola literário que é o “Nouvelle roman”, uma escola que surgiu ali pelos anos 1940 e 1950 do século XIX e que chegou até os nossos dias porque pessoas escreveram até o final do século, como Nathalie Sarraoute, que morreu em 1999.

59



Terras Caídas são fenômeno único que só o rio Amazonas apresenta

D

eize de Souza Carneiro é mestre em Geografia pela Universidade Federal Fluminense (2009) e graduada pela Universidade Federal do Amazonas (2004). Pesquisa na subárea Geografia Física, com ênfase em Geomorfologia Fluvial, Pedologia e Geomorfologia. Atualmente é professora da Universidade Federal do Oeste do Pará, no Instituto de Engenharia e Geociências.

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Entrevistada por Alessandra Guimarães Mizher1 e Gilmara dos Reis Ribeiro2 Ainda na infância, as viagens de barco pela região amazônica estimularam Deize de Souza Carneiro, 32 anos, a investir nos estudos hidrográficos. Amazonense de Barreirinha, formou-se em geografia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) há oito anos. O título de Mestre foi pela Universidade Federal Fluminense. Veio em seguida se aprofundar na dinâmica fluvial e nas implicações para o ordenamento territorial na fronteira Brasil, Colômbia, Peru. Há dois anos, Deize faz parte do corpo docente da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Ela é professora no Bacharelado Interdisciplinar em Ciências da Terra e no Bacharelado Profissionalizante em Geologia, do Programa de Ciências da Terra. E não para por aí. A pesquisadora também estuda o fenômeno das “terras caídas”, ocorrência, segundo ela, peculiar do Rio Amazonas. Foi na sala dos professores do Programa de Ciências da Terra no campus Tapajós da UFOPA, em meio a mapas e imagens de satélites, que Deize contou um pouco de sua história e de como surgiu o interesse em conhecer a fundo os rios da região amazônica. Nenhum detalhe passou despercebido aos olhos da pesquisadora.

1

2

Alessandra Guimarães Mizher é graduada em Jornalismo no Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH). É pós-graduada em Marketing Político, na Escola do Legislativo da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e atualmente é aluna do curso de Especialização em Jornalismo Científico, na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Atuou como jornalista em diversos veículos de comunicação no estado de Minas Gerais e Pará como jornal O Tempo, jornal Pampulha, Estado de Minas, jornal Hoje em Dia, revista Encontro e TV Tapajós, afiliada à Rede Globo. Gilmara dos Reis Ribeiro, graduada em Letras, habilitação em Língua Portuguesa, pela Universidade Federal do Pará (UFPA), campus Santarém. Atualmente é mestranda em Letras, na área de Estudos Linguísticos (linha de pesquisa Estudos Discursivos), na Universidade Federal de Viçosa (UFV), e aluna do curso de Especialização em Jornalismo Científico, na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

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“A bacia amazônica é única. Não há comparação com nenhuma outra no mundo. Ela foge a todas as regras, principalmente pela quantidade de água, dimensão territorial, localização geográfica com áreas de contribuição dos dois hemisférios, com pluviosidade do norte e sul. A característica topográfica da região com os Andes e os escudos no norte e no sul também influenciam bastante”. Esta é uma das inúmeras constatações da pesquisadora, que aprofunda o tema na entrevista a seguir.

Como surgiu o interesse em pesquisar os rios e se aprofundar em geomorfologia fluvial da Amazônia? Eu sou geógrafa e me interessei por estudar o meio ambiente desde o período da graduação. A vontade de compreender a geomorfologia fluvial surgiu pela minha vivência com os rios. Nas viagens, eu já ia percebendo os fenômenos e passei a me interessar por esse tema. Pesquisei o tema “A morfodinâmica fluvial e as implicações para o ordenamento territorial na fronteira Brasil, Colômbia e Peru”. Estudei a dinâmica do rio em si, que abrange os processos de erosão, transporte e deposição dos sedimentos que as águas correntes promovem. São fenômenos naturais. A sedimentação que ocorre dentro de um canal do rio é natural, faz parte do trabalho dele que é medido por essa capacidade de transportar e depositar sedimentos. Existe

algum diferencial da bacia hidrográfica da região

amazônica?

A bacia amazônica é única. Não há comparação com nenhuma bacia hidrográfica do mundo. Ela foge a todas as regras principalmente pela quantidade de água, dimensão territorial, localização geográfica com áreas de contribuição dos dois hemisférios, com pluviosidade do norte e sul. A característica topográfica da região com os Andes e os escudos no norte e no sul também influenciam bastante. É todo um contexto climático, de localização, latitude, temperatura e umidade. São condições particulares que fazem da Amazônia uma 63


região diferenciada e que não é possível ser comparada a nenhum outro lugar do mundo. E

o fenômeno de

Terras Caídas

pode ser considerado uma

peculiaridade desta região?

Com certeza. O fenômeno “terras caídas” não é simplesmente uma erosão fluvial comum, que acontece em todos os rios. Ele tem particularidades e uma definição própria. As terras caídas têm mecanismos que não acontecem em outros rios, como, por exemplo, o movimento de massa. Alguns estudos mostram que ocorrem movimentos de massa na margem do rio. Mas, teoricamente, esse movimento dentro do canal do rio não é muito aceito. O movimento de massa é o desmoronamento, queda em blocos e acontece mais na vertente, na encosta e não na margem do canal. O que acontece na margem do canal é erosão fluvial. Só que aqui na região é diferente. O rio Amazonas pode chegar a ter 110 metros de profundidade com uma variação do nível do rio de 11 a 12 metros entre seca e cheia. Assim, a força da gravidade, que é o principal fator de movimento de massa que acontece na vertente, acaba atuando também na margem, pela variação e pela altura desse pacote. A queda não acontece somente pela batida da água na margem no período de cheia, como seria no caso da erosão fluvial. A chuva também influencia nesse processo, aumentando o peso do pacote e fazendo a encosta cair em movimento de massa. A bacia amazônica é atípica. Aqui acontecem fenômenos em grandes dimensões, que não dá para dizer que é uma simples erosão fluvial. O termo “terra caída” é regional e é um fenômeno típico do rio Amazonas. Como os ribeirinhos entendem esse particular fenômeno? Existe muitos saberes, muitos conhecimentos. Conhecimento científico, popular, filosófico, religioso. Eu respeito muito o conhecimento tradicional. Enquanto para mim é uma falésia fluvial, para o ribeirinho é barranco ou desbarrancamento. É um nome que faz sentido para ele. E ele vai dar uma explicação tão lógica quanto a 64


do cientista. Uma vez, um jornalista de Manaus, na década de 70, publicou uma matéria sobre o surgimento de um banco de areia no encontro das águas do Rio Negro e Solimões. Na época, ele ouviu tanto técnicos quanto ribeirinhos. Os técnicos do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia) explicaram que o rio perdeu a competência de transportar os sedimentos por algum motivo e esses sedimentos acabaram depositando no fundo. Assim, no período de vazante, a ilha apareceu. Já os ribeirinhos acreditavam que era uma cobra grande embaixo da ilha que se locomoveu e se acomodou no encontro das águas. Aí a corrente do rio bateu na cobra e os sedimentos pararam no obstáculo, formando a ilha. Isso mostra que a lógica do ribeirinho é a mesma do técnico, o que muda é o obstáculo. Enquanto para os técnicos o obstáculo é uma rocha, galhos, raízes, uma árvore ou até um bicho morto, para o comunitário é uma cobra grande. Os ribeirinhos não encaram apenas como algo sobrenatural. A explicação pode estar vinculada ao mito, ao imaginário, mas eu vejo como uma maneira de entender e conscientizar do perigo de viver em áreas de risco, evitando catástrofes, mortes e perdas. Uma vez eu perguntei o porquê de cobra grande e eles disseram que, quando o fenômeno está acontecendo, a terra treme e surge um barulho alto e sai bolhas de ar de dentro do rio, como se a cobra tivesse soltado. É possível citar as principais causas das “terras caídas”? Pela dimensão da bacia hidrográfica, as causas são mais naturais do que antrópicas [causada pelo homem]. É claro que, em casos locais, pode haver causas antrópicas. Em Fátima de Urucurituba, por exemplo, a mudança da rota das embarcações é citada por moradores como causa. Mas se a gente for analisar o conjunto, as causas naturais são mais influentes, como a questão tectônica, o clima, a velocidade e vazão do rio, a pressão hidrostática, a força da gravidade, período geológico, dentre outros. O rio Amazonas é gigantesco, com a maior vazão do mundo e uma grande capacidade de transportar sedimentos. Existem outros fatores que tornam a situação 65


ainda mais complexa, como a estrutura da região. Se você for conversar com um geólogo, ele vai falar do ponto de vista geológico, estrutural. Eu, como sou geógrafa, especialista em dinâmica fluvial, explico do ponto de vista da hidrodinâmica, da geomorfologia fluvial. A

destruição da mata ciliar, por causa da ocupação humana,

não agravaria o fenômeno?

Para a margem do rio Amazonas não tem jeito. Em Fátima de Urucurituba, que deve ter uns 30 ou 40 metros de profundidade, as raízes das árvores chegam a um ou dois metros. A água está batendo lá em baixo. A erosão acontece abaixo da influência da cobertura vegetal. Por isso, não dá para dizer, no caso do rio Amazonas. Nos rios menores, braços e igarapés, a retirada da mata ciliar vai influenciar sim. É possível fazer controle de erosão em rio com poucos metros de largura e de profundidade, mas no caso do rio Amazonas não tem como. Então

é importante para a população local conhecer o fe-

nômeno para entender que vai ter que sair dali? tar o problema?

Como evi-

É, exatamente. Quando estudei a dinâmica fluvial na fronteira Brasil, Colômbia e Peru, em meu mestrado, uma comunidade inteira mudou quatro vezes. Em outro caso, perto de Manaus, uma comunidade desenvolveu uma técnica de afastar a casa sem desmontá-la, em uma espécie de trilhos. Eles escavam no esteio da casa, suspendem um pouquinho e arrastam a casa inteira para o final. Eles se programam. Mudam primeiro a escola, depois a igreja, a sede, o campo de futebol. Depois eles vão de casa em casa, numa forma de cooperação. Em Fátima de Urucurituba, a comunidade está localizada em uma área onde há erosão, em uma curva, por exemplo. Só que nem sempre foi assim. Se conversar com eles, vão dizer que antes era uma praia, área de deposição. O fato acontece em razão da mudança do canal. O rio segue a lógica do menor esforço, seguindo 66


a gravidade. Uma intervenção para evitar o problema só é possível através da engenharia, mas deveria haver um estudo em longo prazo, com muitos dados, para que essa alteração não cause uma consequência pior rio abaixo. Os

Santarém afirmam que existia. O surgimento da

moradores mais antigos de

ilha na frente da cidade não seguiu esse mesmo raciocínio?

esta ilha

A ilha foi se formando aos poucos, lá embaixo. Eu li uma informação que a cada ano, a planície amazônica recebe 10 ou 12 centímetros de sedimentos. O rio trouxe a sedimentação aos poucos e, com o surgimento do obstáculo, a sedimentação foi se confirmando. O nível do rio baixou e a ilha apareceu. A dinâmica é muito grande aqui, o processo é contínuo. Essa ilha pode ter sido formada pelos sedimentos de Fátima de Urucurituba? Não dá para a gente afirmar, porque teria que pegar sedimentos de lá e comparar com os sedimentos da ilha, mas a lógica é essa. Erode aqui, deposita ali. Erode em uma margem, deposita na margem seguinte. A margem côncava erode, a convexa é a que recebe. É

Óbidos, no Pará, rio Amazonas apresenta sua maior profundidade? verdade que próximo ao município de

o

Não é bem assim. Há um grupo internacional, chamado Projeto Hibam, que estuda a bacia amazônica e que faz medição da vazão do rio de três em três meses. Essa medição é feita há 20 anos e nunca foi constatado mais de 80 metros de profundidade próximo a Óbidos. Mas já foi relatado no município de Itacoatiara, no Amazonas, pontos de 120 metros de profundidade. Mas tudo depende do nível do rio na época. Mas é relativo porque a medição é pontual. Um ponto pode ser bastante fundo, mas depois de poucos metros não ser mais. O fato é que próximo à Óbidos, o rio Amazonas não tem a maior profundidade. O mais importante é que pela sua formação 67


geológica, não existem muitos canais paralelos na região. Em outros pontos do rio Amazonas há alguns braços e canais por onde a água passa. Assim, a água da bacia se dispersa. Em Óbidos, por causa da formação geológica, isso não acontece. Toda a água que vem dos rios anteriores passa, necessariamente, em frente ao município. A pressão da água e a velocidade são muito grandes e faz com que o canal tenha formação simétrica, o que significa dizer que a profundidade de 80 metros medida na região, está em quase toda a seção transversal. A maior importância do rio nessa região é que é possível medir a quantidade de vazão quase total do Amazonas. Aí o rio é mais estreito, com apenas 2 quilômetros de largura. Por isso, Óbidos é chamada de estação-chave, onde se consegue dizer muita coisa sobre a dinâmica hidrológica e sedimentológica da bacia. Isso é o mais importante, muito mais que a profundidade. O Rio Amazonas é um rio considerado novo? O novo está associado à energia. Há uma teoria de linha americana da Geomorfologia que foi muito divulgada no início do século XX, sobre tipos de erosão. Ela entende a evolução do relevo como um estágio de juventude, maturidade e civilidade; como um percurso de vida. Quando o rio é jovem, a superfície vai sendo modelada mais rapidamente e depois vai rebaixando e ficando uniforme e com pouca energia. Há um equilíbrio entre os processos de erosão e deposição. Os rios Tapajós e Arapiuns são mais velhos que o Amazonas, e neles há um equilíbrio entre o processo de erosão e deposição. A idade do rio está vinculada à energia, ao estágio, à característica dele. O rio Amazonas tem uma capacidade de manter, de erodir, de transportar sedimentos e remodelar o leito e, por isso, ele tem essa cor; a energia é muito grande e mantém os sedimentos em suspensão. Os que têm pouca energia não conseguem transportar ou já transportaram, já trabalharam todos os materiais que tinham ao longo do tempo. 68


A

senhora participa do projeto

logia, história e turismo”.

“Roteiros Santarenos:

geo-

Qual o objetivo desse trabalho?

É um projeto interdisciplinar na área de geoconservação, uma área da Geologia, da Geografia. O objetivo é despertar na população o interesse por conhecer os ambientes geológicos. Tentamos contribuir para criar uma consciência ambiental e patrimonial. Cada área tem uma importância para o equilíbrio do meio ambiente. Buscamos uma maneira de conhecer, estudar o local, a região, por isso propomos levar os alunos para fazer uma pesquisa e, ao mesmo tempo, já dar essa consciência. A vocação de Santarém é o rio, a natureza, as praias, que são ambientes geológicos, patrimônios que precisam ser conservados. Acreditamos que o projeto contribui para um turismo mais consciente.

69



A indústria do turismo em Santarém: potencialidades e grandes desafios

E

rbena Silva Costa é graduada em Turismo pela Universidade Federal do Pará (1985) e em Administração de Empresas pela Faculdade de Administração de Brasília (2010). Especialista em Recursos Humanos pela Universidade Estadual da Paraíba (2002) é Mestre em Turismo e Hotelaria pela Universidade do Vale do Itajaí (Univali, Santa Catarina, 2005).

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Entrevistada por Joab Ferreira1 e Milton Corrêa2 Santarém, repleta de belezas naturais e com uma rica cultura, ao longo dos anos se transformou em um importante destino turístico, não só para brasileiros, mas para gente do mundo inteiro. Não é difícil andar pela Orla da cidade ou passear por Alter do Chão e se deparar com um casal, ou pequeno grupo, formado por pessoas que não são naturais da região. Esse fato é um importante impulsionador da economia local, já que os turistas são consumidores em potencial. Tanto é que o turismo aparece como principal atividade econômica do setor terciário. No entanto, apesar de tantos atrativos que encantam os turistas, como as belas praias que se formam às margens dos rios ou a Floresta Nacional do Tapajós (Flona), o município ainda não oferece a estrutura necessária e desejada pelos visitantes. E para competir de igual para igual com os mais badalados destinos turísticos nacionais, os desafios são grandes. É exatamente sobre este contexto que a pesquisadora Erbena Silva Costa analisa os fatores que impedem Santarém de se tornar, de fato, um importante polo impulsionador do turismo na região. Nessa entrevista, concedido nos últimos dias de janeiro de 2013, em Santarém, a pesquisadora fala mais sobre a chamada vocação turística do Tapajós e região. 1 2

Joab Barbosa Ferreira é bacharel em Comunicação Social, graduado em Jornalismo pelas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT). Pós-graduando em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Milton José Rêgo Corrêa é bacharel em Comunicação Social, graduado em Jornalismo pelo Instituto Esperança de Ensino Superior (Iespes). Jornalista profissional com passagens no rádio, televisão e jornal impresso em Santarém (PA). Dos seus 53 anos, mais de 30 foram, até hoje, vividos na intensa labuta jornalística, buscando dia e noite os fatos relevantes para transformá-los em notícias. É o repórter mais conhecido na metade oeste do Pará, por cujas cidades já andou cumprindo pautas as mais diversas. Pós-graduando em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa).

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Nos últimos anos tem havido muitos debates sobre a definição de turismo como ciência. Alguns pensadores acreditam que, de fato, turismo seja uma ciência. Outros pensam ser apenas uma atividade econômica. Qual a sua opinião sobre isso? Eu acredito que está evoluindo para isso. Não existe, ainda, um corpo teórico próprio. Marusca [Martini Moesch] fala sobre uma epistemologia do turismo. Outros, inclusive da USP, onde tive a oportunidade de ter contato, falam que o turismo é uma atividade econômica. Uns ainda chegam a falar que é uma indústria. Então existe controvérsia entre os acadêmicos e teóricos com relação ao turismo. O livro [“Por uma epistemologia do Turismo”] da Marusca faz uma abordagem que a gente não tem ainda, entender o turismo como uma ciência. É uma atividade econômica, mas não é uma indústria, essa história já foi abolida. Então é considerada uma atividade econômica multiplicadora. Então, como entender o turismo? O turismo precisa do auxílio de muitas outras disciplinas para ser entendido. Basta você ver um curso de graduação em turismo, ele é generalista. Eu preciso saber a administração – para administrar o empreendimento –, preciso do psicólogo – para entender a motivação do turista –, do sociólogo – para entender a relação entre o visitante e o visitado –, do antropólogo – para entender a cultura de um povo –, eu preciso do contador – para poder fazer o balanço, a parte financeira da minha empresa –, e por aí vai... Então, é muita coisa. Por isso ainda está sendo discutido. Partindo desse ponto científico, quais investimentos em pesquisas são necessários para alavancar o turismo regional e gerar mais oportunidades?

Eu acredito que tenha que haver investimentos em inovação. Inovação não é só fazer um microchip de computador, ou algo tecno73


lógico. Inovar é até você fazer algo diferente em coisas realizadas diariamente. O turismo, fazendo parte do setor terciário, de serviços, é um setor que depende, principalmente, da qualificação das pessoas, da hospitalidade e arte de receber. Porque o turista quando vem, vai ter contato com as pessoas. É baseado na interação humana. A pessoa que chega, ela convive, ela vai ser atendida por um monte de pessoas que moram naquela cidade. Santarém, hoje, é um destino indutor, é uma cidade turística, mas o que mais acontece é o turismo de negócios. Dentro do turismo, como atividade geral, existem vários segmentos. O turismo de negócios, na verdade, é algo espontâneo. Hoje o mercado de Santarém, em termo de empresariado, não precisa fazer muita coisa, o turista vem. Então os hotéis têm uma ocupação muito boa. Mesmo sem investimentos o turista vem. Agora, quando houver uma explosão de empreendimentos hoteleiros, principalmente, de rede, com uma administração que não seja familiar, que comece a ver de uma forma diferente, aí vai haver um despertar de repente. Mas tem que haver essa integração do setor privado, do público – fomentando, dando condições – e a própria comunidade tem que estar envolvida, fazendo a sua parte, seja não jogando lixo na rua, seja mantendo o ar hospitaleiro, para poder receber bem o turista. Como fazer para integrar os vários setores de uma sociedade e para o turismo caminhar melhor? Primeiro, tem que haver vontade política das pessoas que estão no poder, que podem decidir alguma coisa. Elas têm que absorver o que é o turismo. Tem que haver uma maior sensibilização do turismo. Enquanto isso não acontecer, um vai ficar jogando a culpa para o outro e ninguém vai fazer nada. Se houver, realmente, a integração dos três fatores principais envolvidos, vai funcionar. Agora tem que ter parceria, tem que ter vontade. Porque se não tiver vontade para fazer, para despertar para isso, não vai acontecer. A gente não sente aqui essa integração, essa união. Inclusive já aconteceram momen74


tos de o SEBRAE, que é um órgão de consultoria e treinamento, fazer várias reuniões para discutir o assunto e aparecer uma pessoa. O mercado, no momento, tem uma movimentação espontânea. Se eu tenho uma loja em que todo mundo vai lá e compra, por que eu vou gastar em propaganda, por que vou estar reunido em busca de melhorias? Não vou, eu vou ficar porque estou tranquilo. Quando isso mudar, porque a gente acredita que vai mudar, as pessoas vão despertar para a concorrência, para inovação, para valorização da cultura. Tem coisas que a gente está perdendo e não dá valor. Por exemplo, ainda hoje tem gente que vem de fora para visitar o Museu do Índio em Alter do Chão. E onde foi parar o museu? [O museu foi fechado em 1997. Sem manutenção, o prédio acabou desabando. No local, hoje, funciona um estacionamento de um hotel]. Os casarões e prédios históricos contam a história do local, e a gente está vendo tudo isso se perder. E por que isso ocorre? Porque as pessoas têm visões imediatistas. “Eu não quero nem saber se estou acabando com tudo, só quero saber que eu estou ganhando com tudo”. Querem resultado no curto prazo. E quando se fala em sustentabilidade, tem que ser em longo prazo. Tem que se trabalhar para buscar estratégias de as coisas acontecerem. Tem que ter pesquisa. O que é preciso Santarém?

para o desenvolvimento do turismo em

Eu acredito que para o turismo realmente acontecer, em qualquer lugar que seja, é preciso de recursos naturais, infraestrutura básica e de recursos humanos capacitados. Temos recursos naturais? A natureza aqui é exuberante. Temos. Nós temos pessoas qualificadas? Nós temos recursos humanos aí, sim. Qualificados. E aí vem a questão crônica, o calcanhar de Aquiles, que é a infraestrutura. O turista quer a beleza natural, claro, mas ele quer conforto. Ele quer também às 22h30, 23h, num domingo, encontrar um bom restau75


rante. Ele quer algo para ser feito, em termo de entretenimento, de lazer. E o que temos em relação a isso? Os empresários do ramo investem de alguma forma. Mas, o poder público onde é que fica? Porque não é papel do empresário privado, por exemplo, duplicar a Fernando Guilhon, não é papel do empresário colocar iluminação na estrada de acesso ao aeroporto. O problema então é a falta de iniciativa do poder público? Sim, e vou dar um exemplo básico. O turista que vem aqui chega de avião. Aí, tem dois voos ao mesmo tempo. É aquela vergonha. O aeroporto não suporta a demanda, a quantidade de pessoas. Não é possível acomodar de forma confortável, é gente se empurrando, se atropelando. Fica aquela confusão para pegar a mala. Depois você vem para a estrada que não tem iluminação. Aí você pensa: “pronto, cheguei à selva mesmo”. Eu já vi gente falar assim para mim. Então a primeira impressão que a pessoa tem da cidade é essa. E quando ele vai embora, é a última que leva, também. O turismo é o imaginário das pessoas. Você quer buscar novas experiências. E você não tem a oportunidade de fazer isso aqui em Santarém. Quando se faz pesquisa sobre qual a motivação do turista, os mais instruídos colocam a questão do saneamento básico. E é outra coisa que também nós não temos aqui. Cheguei a ouvir de um gestor público, de governos passados, em um auditório, que aqueles urubus que ficam rondando lá na Orla é algo que o turista achava típico daqui. Que era algo atrativo. Em outro momento, também foi falado que a maneira como as pessoas adentram nas embarcações é uma coisa regional. Se uma pessoa dessas, ao atravessar de um barco para outro, escorrega, quebra uma perna ou algo do tipo, isso é um problema. Tudo isso faz parte da infraestrutura. Falta dar importância ao turismo? Eu vejo que falta um maior entendimento do poder público sobre as vantagens que o turismo bem planejado pode trazer para cidade. 76


O turismo é uma atividade econômica, quando bem planejado ele traz melhoria na qualidade de vida. Ele eleva a autoestima de um povo. Há uma maior distribuição da renda, por ser uma atividade multidisciplinar e tem um efeito multiplicador muito grande. A Organização Mundial do Turismo já contabilizou 52 setores impactados diretamente pelo turismo, quando ele acontece. O turismo gera empregos diretos e indiretos. Acontece, também, outra situação cultural. Muita gente nunca saiu daqui, então não tem parâmetros, não tem como imaginar. Quando você vai para outras cidades mais desenvolvidas, quando volta, parece que está voltando no tempo. Tem gente que passa anos sem vir a Santarém, e quando vem, diz: “nossa, parece que a cidade não muda!”. Claro que a gente não vai maquiar nada para mostrar, mas temos que tentar maximizar o que é positivo e minimizar o que é negativo. Um dos pontos negativos de Santarém, e região, é a questão do lixo. Boa parte desse problema é causado pela própria população. Como trabalhar essa educação ambiental? É preciso ver muitas questões de forma continuada. Não adianta fazer mutirão e limpar tudo uma vez por ano. Tem que haver algo mais constante. As pessoas adultas, que já têm aquela concepção formada, ideias e maneira de agir, não vão mudar de uma hora para a outra. Não vão! Vai ser um trabalho árduo, mas tem que ter persistência. Tudo volta para a união. Se não houver uma constância, de fazer com frequência, não vai surtir resultados. Tem que ser o tempo todo. Claro, crianças são mais fáceis de ensinar. Além de serem propagadoras. Mas é preciso criar estratégias, mecanismos. Tem que ter persistência, porque se não tiver não vamos conseguir. O que você faria se fosse secretária de turismo de Santarém? Um bom começo seria exatamente chamar os envolvidos na atividade, mesmo sabendo que muitos não iriam. Mas teríamos que 77


chamar todas as pessoas envolvidas e realmente dialogar com essas pessoas, ver quais são as dificuldades, quais são as sugestões para melhorar, e conversar. Mas além de conversar, é importante que se articule melhorias para o município. Um dos problemas de Santarém é o custo para se chegar aqui. Tem a TAM e tem a GOL. A concorrência é mínima. Existe quase que um monopólio. Eu tenho um oligopólio, duas grandes empresas monopolizam o mercado. Então esse gestor público deveria articular e negociar a vinda de outras empresas e que tivesse sustentabilidade. Onde vamos colocar isso, se a infraestrutura do aeroporto não comporta? Vai ficar lá do lado de fora? Tirar a guarita dos guardas e colocar lá? Mas também não adianta ficar com utopia, sonhando com o que não vai ter. Temos que procurar trabalhar o que tem, para poder com o tempo, melhorar. Se o conhecimento não é valorizado, as coisas não vão acontecer. Tem que chamar quem conhece quem realmente sabe. Às vezes não é porque você fez um evento, ou um determinado empreendimento, que você sabe. Você deu sorte e está lá. Tem que buscar mesmo onde está o conhecimento. Trabalhar

mais com o turismo regional não seria uma boa

alternativa de desenvolvimento?

Manaus, apesar de ter um contexto mais ou menos parecido, vem muita gente de Manaus para cá. Temos que atentar para esses mercados. Tem muita gente de Belém e Manaus que nunca veio a Santarém. Esses mercados regionais podem ser trabalhados para trazer mais gente. Qual a sua perspectiva quanto ao futuro de Santarém? O que eu consigo vislumbrar são boas perspectivas. A gente tem que acreditar, e havendo essa vontade política, as coisas vão acontecer. Mas não basta só vontade, tem que ter ações voltadas para isso. Começa pela via de acesso, que tem que ser olhada com muito carinho para que a gente não se sinta constrangido ao chegar 78


ao aeroporto, por exemplo, e ver aquela situação. Ao ver alguém embarcar por via fluvial e ter que passar por situações constrangedoras, difíceis. Isso a gente acredita que deve ser focado para que haja melhorias nesse sentido. E o mais nós temos. Recursos naturais e pessoal qualificado, falta a infraestrutura básica para poder alavancar o turismo e Santarém sair dessa situação de potencial, que vem se arrastando há anos e anos, e que alcance o patamar que mereça e possa realmente propiciar oportunidades aos que trabalham no setor. No improviso não dá mais para acontecer, tem que buscar o rigor científico, da pesquisa, saber o que está acontecendo em outras localidades.

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Autorreconhecimento indígena: do estigma à consciência adquirida

F

rei Florêncio de Almeida Vaz, doutor em Ciências Sociais com concentração em Antropologia, pela Universidade Federal da Bahia (2010). Atualmente é professor na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase em estudos sobre povos indígenas, atuando principalmente em conflitos e identidade indígena no Brasil.

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Entrevistado por Ercio do Carmo Santos1 e Joelma Viana dos Santos2 Cara de índio, sorriso largo, pensamento firme. Assim é Frei Florêncio de Almeida Vaz, 48 anos, religioso da Ordem dos Frades Menores, da Custódia São Benedito da Amazônia. Nascido em Pinhel, comunidade ribeirinha, à margem do Rio Tapajós, município de Aveiro, de uma família de nove irmãos, dedicou-se aos estudos na área social. A sede de conhecimento o ajudou a ir além das florestas. Na cidade grande, através das ciências sociais, mergulhou fundo em suas origens. Compreendeu que seu modo de vida, antes considerado caboclo, era indígena. Essa autoafirmação o ajudou a encontrar sinais, compreender o porquê de alguns se autoafirmarem indígenas e outros não. Vaz buscou responder às indagações em sua pesquisa de doutorado entre os anos de 2005 e 2010, nos municípios de Aveiro, Belterra e Santarém. Uma nova história começa a ser escrita no Baixo Tapajós. “A gente sabe que é descendente de índio, mas não queremos ser índio”, reconhece o pesquisador, que nesta entrevista analisa essas transformações culturais características do momento contemporâneo.

1

2

Ercio do Carmo Santos, graduado em Ciências Sociais, com ênfase em Ciência Política, pela Universidade Federal do Pará, Campus Santarém. Atualmente é coordenador da Pastoral da Comunicação da Diocese de Santarém, e especializando em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Joelma Viana dos Santos é graduada em Letras e Artes, pela Universidade Federal do Pará, Campus de Santarém. Atualmente é coordenadora do setor de jornalismo da Rádio Rural de Santarém, e especializanda em jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA.

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O senhor se considera índio. Quando começou esse processo de autoafirmação? Começou de uma forma muita lenta, a partir do estudo de filosofia no Instituto de Pastoral Regional (IPAR), em Belém, entre 1987 e 1989. Nessa época, eu tinha vários professores na área de ciências sociais, história, que chamavam a atenção para a cabanagem, leitura de livros sobre os índios na Amazônia, que foram despertando a curiosidade não só da minha história, mas a história do povo ao qual eu pertencia. Mas eu ainda não me identificava como indígena, apesar de participar da causa ajudando o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). Trabalhava entendendo que os indígenas eram os outros. Não eu! Em 1999 me mudei para o Rio de Janeiro para continuar o curso de ciências sociais na UFRJ, e foi lá que comecei a ler intensamente autores sobre a Amazônia, que mencionavam a nossa identidade, principalmente dos caboclos. Na época fiz um trabalho de pesquisa de campo, na comunidade Parauá, Rio Amorim (região do Tapajós). Lá foi possível problematizar que os moradores dessa comunidade não tinham orgulho da identidade cabocla, e que outras identidades eram possíveis, como a indígena. Li sobre a história dos povos indígenas do Nordeste, que estavam se organizando e se assumindo como indígenas. Questionei: se os indígenas do Nordeste estão se assumindo porque os da região do Baixo Tapajós não podem se assumir? Ainda no Rio de Janeiro eu comecei a me assumir como índio, até porque as pessoas me chamavam de índio, por causa do cabelo liso, das minhas características. Em 1997 volto para Santarém e, com outras pessoas, começamos a criar o Grupo Consciência Indígena. O processo se expandiu a partir de 1998 com o reconhecimento da comunidade Taquara. E como é esse processo? Bom, tem um aspecto individual, que é psicológico. Depende de uma superação de vários traumas, vergonhas. Eu diria que nos últimos anos está mais favorável. A pessoa que hoje quer se identificar como indígena tem muito mais compensações simbólicas. Ela vê 83


o índio na televisão de uma forma positiva, não apenas como o selvagem, aquilo que causa vergonha. Ser índio tem recompensas simbólicas e inclusive materiais. No sentido coletivo, que é o que está acontecendo aqui na região e no Brasil inteiro, o que leva uma comunidade a se assumir como indígena é a mudança de concepção que a sociedade tem em relação ao índio. Hoje os povos indígenas são sujeitos coletivos de direitos. A Constituição Brasileira e o Direito Internacional asseguram a essas comunidades o direito à terra, a uma educação e a uma saúde diferenciados. Essa mudança de postura do Estado favoreceu esse processo. Mas nem todas as comunidades do Baixo Tapajós se autoidentificam. Por quê? Bom, outros grupos, mesmo sabendo da sua ascendência indígena, conseguem recompensas materiais e simbólicas de outras formas, por isso não se consideram indígenas. Existem comunidades aqui no Tapajós que dizem: “a gente sabe que é descendente de índio, mas não queremos ser índio”. Em geral essas comunidades estão associadas à ONG Saúde e Alegria, ao Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais de Santarém. No caso do sindicato a demanda é por terra, por exemplo, no PAES – Projeto de Assentamento Agroextrativista, que dá segurança jurídica a esses moradores. Outras comunidades que se identificam como indígenas vão para a FUNAI reivindicar demarcação de suas terras. E assim as pessoas vão se definindo. Esse processo é muito dinâmico. Está em plena vigência. O senhor mencionou benefícios simbólicos, poderia esclarecer de que se trata? O simbólico é essa nova imagem que o indígena tem, e que traz orgulho. Por exemplo, as moças sempre tiveram vergonha de seus cabelos lisos. Ter cabelo associado a um indígena era um estigma. Nos últimos anos, essa realidade tem mudado. Uma moça aqui no Pará foi eleita à garota Fantástico por ter os traços indígenas. Então, indígena passou ser algo bom e bonito. Isso influencia as pessoas. 84


Como o senhor vê a postura do Estado quando, de um lado, faz o reconhecimento dos povos indígenas, e do outro entra em choque, sobretudo, quando se fala de demarcação da terra? O Estado é contraditório, pois há dentro dele várias forças. De um lado a sociedade civil, antropólogos, Igreja. Do outro, fazendeiros, militares, grandes empresas. A composição do Estado mudou, e hoje eu diria que as forças do capital estão muito mais poderosas do que na época em que foi aprovada a Constituição Federal [Promulgada em 5 de outubro de 1988]. Hoje, se o Estado pudesse extinguir os direitos indígenas, faria com certeza. Como não consegue facilmente, protela, não atende, cria burocracias. Então eu diria, não foi o Estado, por ser bonzinho, que criou esses direitos, mas foram os próprios indígenas e seus apoiadores que conquistaram. Os

povos indígenas têm direitos garantidos, mesmo assim há

quem questione e afirme que esses povos têm muito mais direitos que os não indígenas...

Essa é uma afirmação dita correntemente na imprensa, e acaba chegando ao senso comum, a ponto de algumas pessoas dizerem que os índios são privilegiados. “Porque índio tem tudo agora. Índio pode tudo”. Não é bem assim. Se você for analisar a realidade dos fatos, esses direitos indígenas são muito mais formais do que na prática. Por exemplo, a saúde indígena. O índio tem direito sim a uma saúde diferenciada, onde seja preservado seu modo de vida, sua crença nos pajés e nos banhos. Porém, não há respeito, ele deve ser tratado por um médico e não por um pajé. A educação indígena deve preservar a cosmovisão, o modo próprio de ter conhecimento. Mas isso não acontece. Existem aldeias em que professores ministram aulas como em qualquer outra escola. Então não procede a acusação de que os índios são privilegiados. Eles têm, sim, direitos, só que não são respeitados. 85


Atualmente quantas comunidades se autoafirmam como indígenas? E o que mudou no modo de vida? De 1998 até hoje já são 54 comunidades. Em 15 anos é uma coisa fantástica do ponto de vista numérico. Com relação ao modo de vida, eu diria que não mudou nada, ou mudou pouca coisa. As mudanças se fazem notar em alguns momentos. Por exemplo, se a FUNAI visita a aldeia, naquele dia os moradores se pintam de urucum, de jenipapo, colocam cocares, cantam o hino nacional em Tupy Guarany como uma forma ostensiva para mostrar ao Estado e aos antropólogos que eles são indígenas. É o que acontece com qualquer povo, na hora de se mostrar para os outros, colocam as suas indumentárias. O que quero dizer é que a mudança maior não é tanto no modo de vida, mas na consciência, a forma como se veem. Você só percebe no contato, na convivência. Porque,

no cotidiano, eles não procuram agir como nesses

momentos especiais?

Porque no cotidiano estão vivendo entre eles, e não têm pra quem destacar esta distinção. Agora, se há conflitos, é preciso mostrar as armas da diferença. Isso acontece com qualquer aldeia. No

resumo da sua pesquisa, o senhor pretendia identificar

os principais sinais diacríticos da compreensão dos nativos. que são esses sinais?

O

A cara indígena é uma das coisas que eu coloco na minha tese. As pessoas descobriram que a cara delas é indígena. Pode parecer meio óbvio, mas não é. Nos últimos tempos, percebem que existe uma cara indígena: é o cabelo, o olho puxado, a tonalidade da pele. As pessoas recuperaram sua autoestima com relação aos seus traços físicos. Esse é um dos sinais diacríticos que marcam essa diferença frente ao outro. Os outros sinais estão ligados à crença na pajelança, nos encantados, em toda essa cosmovisão. A roupa também, mas muito pouco. Eu diria que os indígenas daqui sabem que, mesmo sem usar tanga, colocar arco, são indígenas. As pessoas, depois de 86


séculos de convivência com a sociedade não indígena, têm outra ideia do que é ser índio, e ser índio não é mais andar nu, também não é usar as roupas de índio, eles são índios do jeito que são. Por isso que eu digo que o sinal diacrítico maior aqui na região não é a roupa, nem a pintura. Está muito mais ligado à cara de índio e às suas crenças. A mídia tem feito parte desse processo? Como? A mídia teve um papel decisivo na autoidentificação dos indígenas daqui, e a Rádio Rural de Santarém principalmente. Os programas estimulam a valorização da identidade, do modo de vida, da defesa da terra. Os programas de televisão desta região não são muito preconceituosos em relação aos indígenas. Sempre que tem eventos, talvez por falta de opção, eles mostram. Em outras regiões, a televisão é muito mais preconceituosa, como em Mato Grosso do Sul e Roraima. Então eu posso dizer que a imprensa local foi muito positiva na legitimação dessas comunidades; o jornal Gazeta de Santarém, por exemplo, chegou a ir a algumas aldeias para publicar cadernos sobre isso, e outros jornais impressos produziram matérias sobre o assunto. Não há pontos negativos da mídia no processo? Sim, quando setores da mídia se submeteram a um tipo de projeto político que negava os indígenas. Estou falando basicamente do jornal O Impacto, que em 2009 e 2010 deu ampla divulgação às ideias do senhor Inácio Régis, quando chegou a dizer que os índios não eram mais índios porque tinham sangue misturado com nordestinos, com pessoas de Belém. Absurdos como esse eram divulgados, também, por telejornais contra os indígenas. Como na época não havia, digamos assim, uma massa crítica que pudesse argumentar, isso passava como ciência. Mas graças a Deus isso passou, hoje temos os cursos de Antropologia e de Arqueologia, e esse senhor não aparece mais em público e nem na imprensa para repetir essas baboseiras porque seria desacreditado na hora. 87


Como

Antropologia, o senhor consegue “casar” o cientista com o Florêncio engajado nos movimentos sociais e com os povos indígenas que estão se autoafirmando? pesquisador na área da

A Antropologia, sabendo que o antropólogo, no seu trabalho, tem um envolvimento afetivo e político com a população a partir da qual estuda, nos dá alguns instrumentos teóricos para que não sejamos vítimas dessas pré-noções, pré-conceitos. Então eu, como antropólogo, tenho que fazer o tempo toda uma vigilância teórica e epistemológica para que eu não reproduza as minhas ideias. Eu sou católico, sou indígena, e como fazer para que, ao observar essa realidade, não apenas reproduza, mas faça uma observação crítica, que procure fazer as recomendações necessárias? Uma delas é o trabalho de campo, através de entrevistas com pessoas. Eu posso não gostar daquela pessoa, então não vou entrevistá-la para que a sua visão não contradiga os meus argumentos. Mas na Antropologia eu preciso da opinião dela, então vou ter que ouvi-la. Uma vez pesquisando, comparando com outras realidades, lendo o que outros antropólogos já produziram, esse estudo de comparação ajuda para que não caiamos na armadilha de uma Antropologia do senso comum. Se eu produzir uma antropologia frágil teoricamente, eu vou passar vergonha daqui a cinco anos. O resultado das suas pesquisas já retornou às comunidades? Sim, a começar nos encontros com essas comunidades indígenas, no programa “A hora do Xibé”, na Rádio Rural, em assessorias, nas igrejas e em outros ambientes. As ideias que eu divulgo, indiretamente são as minhas conclusões. É algo que é devolvido o tempo todo para as comunidades.

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Pesquisas com animais Peçonhentos podem salvar vidas

H

ipócrates de Menezes Chalkidis é mestre em Biociências (Zoologia) pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é professor titular das Faculdades Integradas do Tapajós (FIT). Publicou artigos em periódicos especializados e trabalhos em anais de eventos. Participa atualmente de cinco projetos de pesquisa, atuando na área de Zoologia, com ênfase em Herpetologia. Desenvolve trabalhos em ecologia de comunidades de serpentes na região amazônica.

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Entrevistado por Cristiane Sales1 e Márcia Reis2 Hipócrates de Menezes Chalkidis, 34 anos, é sergipano de Aracaju. Desde 2000 é pesquisador e sonha em contribuir para responder algumas questões ecológicas chaves. Sua perspectiva é compreender os fatores que influenciam a vida do homem e dos animais da Amazônia, garantindo assim a conservação e a sustentabilidade humana. Ele destaca o estudo sobre as serpentes da Floresta Nacional do Tapajós como a mais relevante, porque até então não se conhecia nada sobre esses répteis na região. O estudo permitirá a formulação de políticas públicas que viabilizem a implantação de planos de manejo na região, garantindo a eficácia do tripé do ecologicamente correto, economicamente viável e socialmente justo. No horizonte de pesquisa de Chalkidis há um objetivo nobre: salvar vidas. O estudo é financiado pelo ministério da Ciência e Tecnologia através do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Toxinas (INCTTtox). Baseia-se no conhecimento acerca da história natural, diversidade, sistemática e estudo das toxinas de algumas espécies de animais peçonhentos da região Oeste do Pará. Antes dessa pesquisa não se conhecia ao certo a composição de espécies na região. O pesquisador crê que seu trabalho trará à Amazônia um dos maiores acervos sobre ecologia sistemática. 1

2

Cristiane Silva de Sales é graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pelo Instituto Esperança de Ensino Superior – IESPES (Santarém). Atualmente é jornalista na empresa rádio e TV Amazônia/ Rede TV, fazendo especialização em jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA. Márcia Cristina Reis Pedroso é graduada em Letras e Artes, pelo Centro Universitário Luterano do Brasil, Campus de Santarém. Atualmente é coordenadora do setor de jornalismo da Tv Guarany, e especializanda em jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará – UFOPA.

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Qual

o objetivo em pesquisar animais peçonhentos na

zônia?

Ama-

A Amazônia desponta como uma das áreas de maior ocorrência de acidentes por animais peçonhentos no Brasil. Então por isso que se resolveu estudar esses grupos aqui na região. Há vários objetivos, mais dentre os mais de vinte, o principal é este. Como se fez a escolha dos animais estudados? O principal critério foi o número de acidentes e o grau de conhecimento a respeito das toxinas de cada uma. A partir daí se julgou necessário estudar estes animais, para saber o grau de sua toxidade, e até que ponto são venenosos ou como esse veneno pode ser revertido. Qual era a estrutura para pesquisa no inicio do estudo? A estrutura inicial era a mínima possível, basicamente estrutura física. Com relação à implantação desses projetos, nos ganhamos não apenas estrutura física, mas equipamentos laboratoriais para desenvolver o mínimo da pesquisa e também profissionais qualificados para isso. De que forma a pesquisa é desenvolvida? Depende muito do objetivo do trabalho, então desde manutenção de espécies em cativeiros até a descrição da peçonha, e o trabalho em si com a peçonha é mais refinado, que seguem campos diferentes. O procedimento inicial é ir a campo, coletar essas espécies, trazer para o laboratório, deixá-las confinadas no biotério e depois nós fazemos a extração de veneno, de serpentes e escorpiões. Só depois disso, nós mandamos para os grupos de pesquisas fazerem suas análises refinadas. Daí os trabalhos seguem em campos diferentes. Ao todo 132 armadilhas foram montadas para a captura de material para a pesquisa. Os estudos por enquanto estão sendo realizados apenas na área do Km 83 da Floresta Nacional do Tapajós (Flona), 91


mas devem se estender para as áreas de cerrado e área de cultivo no planalto com o objetivo de identificar, se a composição de animais peçonhentos é diferente nas áreas alteradas e nas conservadas. O material já coletado até o momento está sendo triado, analisado e identificado para em seguida dar início as publicações científicas. Em

quanto tempo foram apresentados os primeiros resulta-

dos do estudo?

E quais foram eles?

Dois anos. Foram vários resultados. O principal deles é referente às diferenças na composição do veneno entre jovens e adultas, de jararacas. É que a fêmea, salvo engano, tem maior toxicidade quando está no período jovem, quer dizer que o veneno está mais concentrado. Se uma pessoa for picada por ela apresentará maiores sequelas, porém, com toda toxidade do veneno, ele não é capaz de levar a pessoa à morte, o índice de mortalidade é baixo. Até por conta da estrutura do animal. A

partir desses resultados a pesquisa se fortaleceu em seu

objetivo inicial, ou ganhou novos rumos?

Ela se fortaleceu, já respondeu a alguns questionamentos iniciais, e serviu também para reforçar os vínculos entre as instituições. A partir das primeiras perguntas já respondidas, que não podem ser divulgadas, e que poderemos dar sequência á pesquisa. Os estudos devem avançar para as áreas de cerrado e cultivos de soja, para saber se a composição da espécie é diferente conforme ambiente, se a composição do veneno também se altera conforme a disponibilidade de presas, o que já foi parcialmente confirmado no caso das jararacas, Bothropsatrox [Um gênero de serpentes da família Viperidae]. Quais as dificuldades Amazônia?

encontradas para fazer pesquisa na

O número de estudantes universitários no trabalho de pesquisa é restrito. O trabalho de pesquisa é amplo mais necessita de mão de obra qualificada para ir a campo, interpretar os dados e publicá92


-los. Então essas parcerias serviram para nos dar mais suporte financeiro, e de pessoal voltado para esta área, porque nós fazemos a pesquisa básica, do dia a dia, se fossemos fazer pesquisas mais avançadas nós teríamos que ter um aporte intelectual, um aporte financeiros maior, e agora nós temos. A nossa região, tem bons trabalhos de pesquisa, mas essa falta de mão de obra não permite que trabalhos sejam publicados com maior frequência. Nós já passamos daquela fase de conhecer o básico, agora queremos conhecer muito mais. Um exemplo disso é o número de serpentes na nossa região, tínhamos uma vaga noção de um trabalho que publicamos em 2005, no qual nos tínhamos área de várzea, cerrado e mata de terra firme, agora sabemos que somente na mata de terra firme temos 55 espécies. Agora precisamos saber quantas destas tem potencial para pesquisa. Detectamos que jararaca e cobra coral são as que melhor respondem a alguns questionamentos. Qual a quantidade de animais catalogados até o momento? Nós pegamos 500 escorpiões e algo em torno de 100 jararacas. E quanto aos investimentos na pesquisa? Os investimentos estão ocorrendo, e, isso é gradativo, a partir do momento que mais pessoas estão se formando, mais mestres, novos doutores também, a fixação de doutores na região, tudo isso perpassa pelas pesquisas que estamos fazendo, então a partir daí acredito que mais pessoas vão se interessar e vai começar a mexer com alguns objetivos que estavam parados. Porém, a falta de investimento em Ciência e Tecnologia atrapalha e muito o crescimento dos trabalhos de pesquisa em nossa região, de forma que esses investimentos acontecem de modo polarizado e uma das saídas acaba sendo a união junto a Instituições que desenvolvem pesquisas, caso contrário o isolamento é inevitável. Além disso, as parcerias e publicações trazem para nossa região um grande respaldo, permitindo aumentar o conhecimento da aracno e herpetofauna possibilitando o acesso a recursos mais vultosos. 93


Qual a contribuição desse projeto para a sociedade? Olha, nós podemos contribuir primeiro, conhecendo melhor a ecologia desses animais, entendendo melhor como é o mecanismo dos acidentes, como se da a dinâmica dos acidentes, a partir daí pegando as informações dos sinais e sintomas que os pacientes apresentam, nós estamos trabalhando agora com os venenos, para saber até que ponto nós podemos contribuir para uma cura mais rápida, para diminuir as sequelas, ou até mesmo para eliminá-las. Tratamento soroterápico mais eficiente, esse é o principal objetivo dessa fase da pesquisa, de que forma um soro pode eliminar uma doença. A pesquisa contribuirá também com um vasto material a ser ofertado à comunidade acadêmica, científica e à população em geral. Deverá ser disseminado através de livros, cartilhas e artigos, cada público contará com material apropriado para o melhor entendimento dos resultados do trabalho. Instituições como o Instituto Butantan, Faculdades Integradas do Tapajós (FIT), UFOPA entre outras são os principais beneficiadas com a pesquisa porque agrega os novos resultados aos já existentes gerando benefícios significativos a sociedade. Já é possível usufruir do resultado das pesquisas no combate a picada de animais peçonhentos? Sim, sim, sim, nós já tivemos uma experiência há dois anos, onde reduzimos a zero, o número de acidentes na Flona do Tapajós, só com a intervenção de educação ambiental. Só de palestras, nós fizemos quatro palestras na área do Km 83, na BR-163 Santarém-Cuiabá e dessas quatro palestras até hoje não tivemos nem um acidente. Simplesmente utilizamos a informação para que as pessoas tivessem cuidado. Antes eles tinham medo, tinha receio, os animais estão lá, é o habitat deles, por isso a resistência desses moradores aos animais, então eles conheceram a biologia a ponto de evitar qualquer acidente. Uma informação básica de duas horas serviu para evitar muitos acidentes. 94


Qual a situação atual das pesquisas? O andamento dos trabalhos de pesquisa segue o cronograma de ação planejado pela equipe, e recentemente ganhou um novo aditivo que deve prolongar os estudos por mais dois anos. Tem muito chão, tem muito chão. Eu acredito que estamos entre 40 a 60%, em um ano de pesquisa. Na parte de Ecologia temos dois anos, aí já conhecemos, já fechamos. Já em toxicologia estamos engatinhando. A pesquisa está dividida em três partes. Vocês chegaram a descobrir alguma nova espécie de animal? Provavelmente uma nova espécie de serpente, eu estou indo agora para Belém para levar essa espécie, foi encontrada na Flona. Nós temos chaves de identificação, e ela não se agrupou a nenhuma. E qual é essa espécie? Isso é ouro [risos]... Não podemos revelar ainda nada sobre o assunto. Como você avalia a pesquisa na região, já que para a comunidade esse tipo de animal peçonhento parece ser muito comum, e não tem um grande valor? Bom, uma serpente pode salvar vidas, com alguns compostos você pode fazer um remédio, tem remédio que tem seu princípio ativo no próprio veneno, pode diminuir a pressão arterial, arritmia cardíaca. E uma entrevista anterior, você disse que a conclusão desta pesquisa trará para a Amazônia um dos maiores estudos em ecologia sistemática, indicando um grande avanço científico. O que realmente significará o resultado final deste estudo? O resultado deve integrar pesquisadores e pesquisas, vai juntar informação básica e informação avançada, então na nossa região nunca chegamos a um conhecimento tão amplo, desde o bicho no 95


campo até o subproduto no laboratório, nunca tivemos isso. Eram pesquisas passáveis, um fazia ecologia, o outro um pouco de molecular, quando conseguia recurso fazia um poucos do veneno, agora não, estamos numa linha onde você sabe onde começa e onde termina. Isso é lucro total, para todas as instituições. Temos pessoas entrando no doutorado por causa do nosso projeto, então a formação de recursos humanos à região talvez seja o maior ganho, a maior contribuição que o projeto poderia dar. E

quando vamos poder conhecer a espécie de serpente des-

coberta?

Vai demorar, o processo de descrição demora. No mínimo entre os trabalhos laboratoriais e começar testes com seres humanos, leva uns cinco anos, ainda passa por mais cinco anos de analises e testes laboratoriais, para só depois ser lançado no mercado. Vai em torno de dez a quinze anos, no mínimo.

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Terra-preta de índio é o ouro negro da Amazônia

L

ilian Rebellato é doutora em Geoarqueologia pela University of Kansas (EUA). Professora da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), onde coordena o Laboratório de Arqueologia Curt Numuendaju e o Grupo de Pesquisas em Terras Pretas e Mulatas da Amazônia (ArqueoTerra), que desenvolve estudos com solos antrópicos aplicados à compreensão da morfologia dos sítios arqueológicos da região.

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Entrevistada por Maria Lúcia Morais1 Solo antrópico encontrado em sítios arqueológicos na Amazônia, a terra-preta de índio ou terra-preta da Amazônia é rica em nutrientes, com grande potencial para a agricultura, numa região de solos pobres, inférteis e pouco propícios ao cultivo. Este é o objeto de estudo da arqueóloga Lilian Rebellato, uma simpática paulista que adotou Alter do Chão, município de Santarém (PA), como lar e a Amazônia como local de trabalho. Doutora em Geoarqueologia pela University of Kansas (EUA), a pesquisadora desenvolve metodologias de análises químicas e físicas da terra-preta, aplicadas à compreensão da morfologia de sítios arqueológicos. Professora na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Rebellato também coordena o Laboratório de Arqueologia Curt Nimuendaju, que congrega pesquisas, em caráter multidisciplinar, em parceria com outras universidades e instituições brasileiras e estrangeiras. Nesta entrevista, concedida em sua residência, explica a sua relação com a Arqueologia e revela “segredos” da terra-preta, foco de interesse de pesquisadores de diferentes partes do mundo. Fala também das perspectivas de sua área de conhecimento para a Amazônia e, mais especificamente, para Santarém, especialmente com a instalação da UFOPA na região.

1

Maria Lúcia Sabaa Srur Morais é servidora concursada da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), desde 2010, onde atua como coordenadora de Comunicação Social. É jornalista graduada pela Universidade Federal do Pará (UFPA), com especialização em Jornalismo Digital. Foi bolsista de pesquisa em comunicação no Museu Paraense Emílio Goeldi. É co-autora do e-book “Pesquisa em Comunicação de Ciência na Amazônia Oriental Brasileira: A experiência recente no Museu Paraense Emílio Goeldi”, publicado pelo Museu Goeldi (2010).

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Como surgiu o seu interesse pela Arqueologia? Sempre tive curiosidade de entender o passado, as diferentes formas de sociedades tradicionais, como elas sobreviviam, extraíam matéria-prima. Quando eu era pequena, estava sempre ligada à natureza. Gostava de pescar com meu pai e, quase sempre, encontrávamos, nas fazendas do interior de São Paulo, fragmentos cerâmicos e lâminas de machados, que até hoje as pessoas chamam de “pedra de raio”. O meu pai sempre falava: “Ah, isso é do pessoal que morava aqui antes”. Durante minha preparação para o vestibular nutri uma dúvida muito grande entre as Ciências Humanas e Exatas, porque sempre gostei de Química, Física e também de História e Geografia. Vi na Arqueologia uma ciência na qual poderia dialogar com as demais áreas do conhecimento, mas como na década de 1990, havia no Brasil um único curso de graduação em Arqueologia na Estácio de Sá, uma instituição privada no Rio de Janeiro, optei por fazer Ciências Sociais na Unicamp, o que foi bastante proveitoso, por ter um diálogo estreito com a Antropologia. E como a Arqueologia entrou de fato na sua vida? Em 2000 vim a Santarém fazer um trabalho em algumas comunidades e a região me chamou muito a atenção. Quando retornei a São Paulo, o antropólogo Pedro Paulo Funari, que havia sido meu orientador de iniciação científica na graduação, me falou: “Se você tem interesse em atuar na Amazônia, tem o Eduardo Neves que está precisando de gente para formar uma equipe na Amazônia Central”. Iniciei meu Mestrado em Arqueologia pela USP em 2003, já desenvolvendo a ideia de trabalhar também com a química de solos. Nessa época, pesquisando isso no Brasil, só havia a Dirse Kern, do Museu Goeldi, e o Marcondes Lima da Costa, geólogo da UFPA, que também foi o orientador da Dirse. Entrei em contato com a Dirse e fomos para um congresso sobre terra-preta. Foi quando conheci todo mundo e decidi que esta era a área que eu realmente gostaria de trabalhar. 99


O que é a terra-preta? A terra-preta é um solo antrópico, gerado pelas ocupações pré-colombianas, apesar de também apresentar datações pós-colonização. As práticas culturais que levaram à formação desse solo continuaram existindo e algumas ainda existem nos dias atuais. Um exemplo básico é a queima que as populações fazem até hoje, a chamada “queima fria”, onde você recolhe as folhas do quintal e coloca fogo, um fogo com baixa temperatura que faz muita fumaça. Isso preserva a matéria orgânica por muito tempo e eleva o PH do solo, que é muito ácido na Amazônia, gerando uma grande estabilidade da matéria orgânica. E quais são as mais antigas? Essa é uma controvérsia muito grande. O arqueólogo Eurico Miller obteve uma datação de cinco mil anos com terra-preta em Rondônia, só que esse sítio foi alagado por uma hidrelétrica. Como não tem como re-escavar o sítio, fica sempre a dúvida se a única amostra datada não foi contaminada durante o processo de coleta. De datação absoluta com publicação, são 2.500 anos antes do presente. Quais são as principais características desse solo? Fertilidade e estabilidade. Não apenas da matéria orgânica, mas dos nutrientes do solo. A terra-preta tem muito fósforo e cálcio, nutrientes que a planta precisa, além de magnésio e manganês. Por outro lado, ela apresenta deficiência de zinco e potássio. Outra característica marcante é que a terra-preta se regenera. Ela é mais apropriada para a agricultura familiar, de pequena escala ou de uma agricultura que equilibra os nutrientes, como na plantação conjugada de milho e mandioca. Na região do Lago do Maicá, aqui em Santarém, quilombolas da comunidade do Bom Jardim afirmam que estão cultivando esse tipo solo há 40 anos. A terra-preta também se exaure, mas a perda é menor em comparação com os solos tropicais. Porém, com a mecanização da agricultura o solo perde rapidamente 100


os nutrientes já que uma área muito maior do solo fica exposta à lixiviação e erosão. O que a terra-preta representa para a Arqueologia? Uma forma para se entender práticas e atividades humanas no passado. Tanto para interpretar as áreas de atividades, onde se comia, dormia, jogava o lixo, e todas as dinâmicas que compõem um assentamento, como, por exemplo, a composição da dieta alimentar. Com a matéria orgânica bem preservada é possível encontramos sementes, que nos ajudam a identificar as espécies que estavam sendo consumidas, assim como as espinhas de peixes e outros restos faunísticos. Além disso, a terra-preta fornece subsídios para entender a vegetação no passado, reconstruir a paisagem vegetal e compreender as mudanças que a ocupação humana gerou através do tempo. Nas áreas de terra-preta, a vegetação e a densidade de espécies são muito mais variadas, seja de plantas domesticadas, semidomesticadas ou selvagens. A variedade de espécies úteis para as sociedades humanas é muito maior em áreas de terra-preta e essa paisagem foi manipulada no sentido de prover ao assentamento os alimentos e outros gêneros de matéria-prima, como madeira para queima, construção de casas e canoas. Como são os sítios de terra-preta em Santarém? Toda a cidade Santarém é um grande sítio arqueológico de terra-preta. No centro da cidade existe um pacote de terra-preta de pelo menos três metros de profundidade. É impressionante! Em Alter do Chão também temos um sítio muito grande. Há manchas de terra-preta por todo o planalto de Belterra. E com um pacote de pelo menos 50 centímetros de profundidade. Agora precisamos entender a dinâmica dos assentamentos, fazer um mapeamento cronológico sistemático para entender quando e como essas populações saíram de Santarém e foram para Belterra, Alter do Chão, Itaituba, se foi um processo simultâneo ou resultante do processo de colonização na Amazônia. 101


Por que a terra-preta desperta o interesse de pesquisadores de diversas áreas do conhecimento e de diferentes partes do mundo?

Na Arqueologia, os pesquisadores brasileiros iniciaram estudos sobre terra-preta, associada às atividades humanas, ainda na década de 1980. Hoje, a terra-preta é um projeto internacional e interdisciplinar muito consolidado. Há uma rede de troca de informações, de papers, e quem a lidera é o pesquisador norte-americano Willian Woods, meu orientador no doutorado. No Brasil, o Charles Clement tem essa posição de informativo, e o Marcondes Lima também se mantém publicando, junto com a Dirse Kern. Na UFOPA, estamos trabalhando para consolidar um grupo, não apenas da universidade, mas internacional, para continuar atraindo pesquisadores, uma vez que toda essa história começa a partir dos estudos realizados em Belterra e Santarém. Quais as pesquisas que você está coordenando na UFOPA? Coordeno o projeto Geoarchaeology in the Amazon, que tem por objetivo reconstruir a história da ocupação pré-colonial, por meio dos estudos da terra-preta, sobre sua formação e sobre as práticas humanas que levaram a essa formação. Outra meta é georreferenciar as áreas de terra-preta nas áreas de abrangência do projeto, entre os rios Curuá-Una e Tapajós e, ao sul, pelo menos até Itaituba. Você também orienta um projeto de iniciação científica voltado para comunidades quilombolas. Como é esse projeto? Esse projeto também está inserido no Geoarchaeology in the Amazon, com uma vertente que busca conhecer as práticas de manejo atual de terra-preta pelas comunidades tradicionais. A ideia é de cooperar com os quilombolas no sentido de trabalhar as áreas de plantio para identificar carência de nutrientes no solo, visando à recuperação de áreas desgastadas pela intensa produção de alimentos. Vamos trabalhar com as comunidades de Bom Jardim, Murumuru, 102


Murumurutuba e Tiningu, localizadas ao longo da rodovia Curuá-Una, em frente ao Lago Maicá. São comunidades que se recusam a utilizar fertilizantes químicos e agrotóxicos. O que é interessante, pois, com a ajuda de um agrônomo, poderão desenvolver a produção de alimentos orgânicos certificados, agregando mais valor aos seus produtos. Outra ideia é trabalhar com o manejo agroflorestal, com o plantio e o beneficiamento do pau-rosa, em parceria com o professor de química da UFOPA, Lauro Barata, analisando se a terra-preta apresenta ou não melhor qualidade e produtividade na produção de óleos essenciais. Você

Arqueologia Curt NiUFOPA. Como o laboratório está sendo estruturado? coordena o

Laboratório

de

muendaju, que ganhou um novo espaço na

Apesar de todas as dificuldades inerentes aos processos burocráticos, a universidade tem apoiado bastante na árdua tarefa de equipar o laboratório de arqueologia e dotá-lo de capacidade para realizar as pesquisas demandadas para a região. Além de estruturar toda a parte de análise do material arqueológico com equipamentos de ponta, queremos implementar uma rica biblioteca técnica para consulta de nossos alunos. Como já temos uma coleção importante de material cerâmico e de líticos, precisamos também finalizar nossa reserva técnica, pois se constitui uma grande responsabilidade a salvaguarda de toda essa coleção. Na UFOPA, qual o perfil do aluno que busca a Arqueologia? O perfil de nossos primeiros alunos está se consolidando com um público mais maduro, que muitas vezes já tem uma profissão, e que possuía uma curiosidade ou um desejo reprimido de ser arqueólogo. Geralmente os alunos mais jovens olham as carreiras não tradicionais como um risco, principalmente para se conseguir um emprego, preferindo, num primeiro momento, as carreiras mais tradicionais, como Direito e Medicina. O que eles ainda não sabem é que a Arqueologia é uma área em franca expansão no mercado de trabalho. 103


No momento, o país precisa de mão de obra especializada para o desenvolvimento de grandes projetos e os arqueólogos se encaixam nessa demanda. E qual a perspectiva desse mercado para a Amazônia? De grande expansão, uma vez que os grandes empreendimentos necessitam do licenciamento ambiental, que inclui o levantamento da fauna, da flora, dos recursos hídricos e, também, dos recursos arqueológicos. Num primeiro momento, com a prospecção, para identificar a existência ou não de sítios arqueológicos na área a ser impactada e, posteriormente, com o salvamento do mesmo, e esse trabalho só pode ser feito por uma equipe de arqueólogos. O que acontece atualmente é que a maioria das empresas que fazem esse serviço na Amazônia é do sul e sudeste do país. Há um mercado realmente importante surgindo aqui, inclusive para a população local. Ao se vincular esse trabalho de prospecção e salvamento a uma universidade estamos possibilitando maior acesso à pesquisa, articulando mestrados e doutorados, e gerando conhecimento, que não ficará restrito ao setor privado. Qual a perspectiva dessa área em Santarém? O que vejo para Santarém é o estabelecimento de um centro de referência em Arqueologia, pelas condições tanto históricas, de conhecimento já produzido em pesquisas realizadas desde o século 19 na região, como também estruturais, que a universidade está propiciando. Nosso desafio na universidade é integrar a arqueologia de contrato com a arqueologia acadêmica e não deixar que esse conhecimento seja apenas de gaveta, que só as pessoas que trabalharam nos projetos tenham acesso às informações. E como a Arqueologia é uma ciência multidisciplinar, por essência, que aborda tanto aspectos sociais, culturais, como os aspectos naturais que impactaram os sítios arqueológicos, a partir das ações das populações que neles habitaram, queremos, a partir de Santarém, ampliar o leque de 104


abordagens abrindo espaços para os pesquisadores interessados em desvendar os segredos da ocupação humana na Amazônia. Como é ser mulher e arqueóloga? Geralmente gosto do trabalho de campo, apesar de ser fisicamente muito puxado. Não é uma questão de gênero, mas de disposição física para aguentar. Alguns homens têm dificuldade de receber ordens de uma mulher. Isso nunca aconteceu comigo, não sei o porquê (risos)... Mas sempre procuro manter essas relações com bom humor, tratar todo mundo bem, indistintamente. Essa é a minha política: procurar não exercer uma autoridade truculenta, mesmo porque deve haver respeito pessoal com a equipe de escavação, tanto faz se são alunos, trabalhadores braçais ou pesquisadores. Na Arqueologia da Amazônia, grande parte dos pesquisadores que se sobressaem são mulheres: Denise Schaan, Denise Gomes, Beth Meggers, Ana Roosevelt, entre outras. Há uma grande quantidade de pesquisadoras na carreira de arqueóloga. Isso diminui um pouco o preconceito e a visão masculina do arqueólogo no campo.

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Indígenas em solo socialista e capitalista; na Venezuela, quais as diferenças?

M

ajahua Tapuia, 48 anos, é antropóloga nascida em Santarém (PA), com mestrado no Equador. Lá, escreveu “Povos Indígenas do Baixo Tapajós, rostos contemporâneos do Brasil”. É também especialista em “Povos Indígenas, Direitos Humanos e Cooperação Internacional”, pela Universidad Carlos III (Espanha). Na gestão da governadora do Pará Ana Júlia Carepa (2009-2012) chefiou a Coordenadoria de Proteção dos Direitos dos Povos Indígenas.

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Entrevistada por Jeso Carneiro* Qual a política de Estado dispensada aos indígenas por uma nação socialista, sul-americana e na qual vivem 42 povos indígenas (600 mil índios), como é o caso da Venezuela? Qual a política de Estado, por outro lado, de uma nação capitalista, sul-americana e na qual vivem 225 povos indígenas (800 mil índios), como é o caso do Brasil? Só uma pessoa que conhece as duas realidades, com participação ativa no movimento indígena da América Latina e lastro intelectual, poderia responder com autoridade a essas duas questões. Pois bem: essa pessoa existe – nasceu e mora em Santarém (PA), mantém estreita sintonia com os povos indígenas venezuelanos, prepara-se para o voo do doutorado na sua carreira acadêmica e, melhor ainda, é indígena. Majahua “Isa” Tapuia , 48 anos, é antropóloga com mestrado no Equador, com o trabalho “Povos Indígenas do Baixo Tapajós, rostos contemporâneos do Brasil”, com base no estudo realizado em 2003 na comunidade Muratuba, do povo Tupinambá, Rio Tapajós, município de Santarém. Mãe de três filhos (Maíra, Uirá e Huaido, todos na universidade), ela é referência no Pará quando o assunto versa sobre educação indígena. A antropóloga passou quase um ano na Espanha em 2011 fazendo curso de especialização em Povos Indígenas, Direitos Humanos e Cooperação Internacional, na Universidad Carlos III, em Madrid. Nesta entrevista, ela detalha aquelas duas questões antes levantadas: *

Jeso Carneiro é graduado em Administração pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Pós-graduado em Ensino Superior e Língua Portuguesa, ambos pela Universidade Federal do Pará (UFPA). É repórter, há mais de 25 anos, com passagens pelo rádio, televisão, jornal impresso e, nos últimos oito anos, na mídia eletrônica (Blog do Jeso – http:// www.jesocarneiro.com.br/). Atua também como professor no ensino médio do Pará.

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O

movimento indígena amazônico-brasileiro tem pautas em

comum com o movimento indígena sul-americano?

A luta em geral do movimento indígena mundial é por garantir os direitos humanos e indígenas. Ao nível geral, a realidade desta população no mundo não é distinta. Ou seja, a reivindicação básica é a garantia jurídica das terras, o controle dos recursos naturais e a oferta dos serviços públicos, tais como saúde, educação, transporte, comunicação, etc. A agressão ao patrimônio material e imaterial milenar e contemporâneo dos povos indígenas é uma realidade em todos os países dos cinco continentes. Expressões do tipo: “índio bom é índio morto” ou o “índio é um empecilho para o progresso” são escutadas em todos os idiomas. Em

outras palavras: o

Estado,

seja em qualquer país, sempre

tratou os indígenas com desdém, como estorvo.

É isso?

Os Estados e a sociedade não sabem tratar o diferente, ou seja, a diferença é tratada com a supressão. O modelo de desenvolvimento em todo o planeta é capitalista, depredador e excludente. Não importa onde tu estejas, o regime vai te alcançar. Se o Estado, em nome do progresso e do desenvolvimento, precisar fazer hidrelétricas, rodovias, portos, base militar, o que seja, e tiver um algum empecilho, será removido. E nós, indígenas em todo o planeta, estamos nos lugares férteis, planos, minerados, etc. A luta é, e sempre será, pela garantia a existir e viver respeitando a memória dos ancestrais. Isso somente será possível quando o Estado entender o valor da nossa cultura como construção coletiva que precisa seguir existindo. A luta é pela vida indígena em todo o planeta. O que une os povos indígenas do Brasil, de modo especial da Amazônia, com os da Venezuela? A realidade indígena não é diferente nem em termos políticos e tampouco culturais. Nossa matriz étnica cultural está centrada em três grandes núcleos, que são: Karib, Aruak e Tupi, ou seja, troncos 109


culturais que enraízam todos esses mais de dois milhões de habitantes indígenas sul-americanos e obviamente que nos conecta com os parentes da Venezuela, em particular os amazônicos. Conhecendo de perto a realidade da Venezuela, sigo convicta de que o Estado, quando quer fazer que não existe essa de privatização no caso das políticas indigenistas, as quais exigem muito recurso e vontade política. A Venezuela tem 600 mil indígenas. É o único Estado que tem um ministério e orçamento próprio para cuidar das questões indígenas e isso faz a diferença. Contudo o problema da burocracia é a mesma em todos os Estados e isso acaba prejudicando em muito as conquistas e os avanços em termos de garantias de direitos. O

modelo socialista venezuelano para os povos indígenas

tem sido benéfico?

Na Venezuela, os indígenas têm quatro cadeiras no parlamento federal, estadual e municipal. Todo indígena entra direto para universidade no curso que desejar e com apoio do governo, tem legislação secundária em todos os campos, terra, mineração, recursos naturais, saúde, educação. E o nó venezuelano onde se encontra? Lá, o movimento indígena é frágil, ou melhor, não está organizado. Todas as conquistas são feitas pelo próprio governo. Que ações implementadas na Venezuela poderiam, na sua opinião, ser adotadas nos demais países sul americanos em favor dos indígenas? Podemos citar alguns exemplos interessantes de políticas publicas. Acredito que a política de vivenda [casa] digna para os indígenas das comunidades e das cidades; a criação de um vice-ministério somente para cuidar dos indígenas urbanos, reconhecendo essa população como sujeito de direito. Criação do ministério para os povos indígenas, intercâmbio de conhecimento e informação com indígenas 110


de outros países – Equador, Brasil e Bolívia – através de termo de cooperação técnica. E o inverso. Há alguma ação ou política indígena no Brasil do tipo exportação? Infelizmente, não. Qual a sua crítica ao movimento indígena no Brasil? Dias desses li essa frase de uma liderança indígena: “As lideranças indígenas nacionais não sabem defender nossos direitos”. Fiquei pensando sobre essa afirmação, precisa muito para a gente avançar e conseguir garantir os direitos humanos e indígenas. Para enfrentar um agente do governo, de empresa, de organismo internacional, é preciso conhecimento, informação. Geralmente os nossos dirigentes indígenas nacionais não têm formação técnica, foram formados na luta. Isso não é o bastante para entender uma linguagem burocrática e eles acabam refém dos assessores, dos técnicos. Cite um exemplo. Um clássico é a luta de Belo Monte [Usina hidrelétrica que se constrói no rio Xingu, no Pará]. As reivindicações são superficiais, os acordos são manipulados e as respostas nunca vêm, porque nós não damos seguimento às pautas de reivindicações. Terminada a negociação, geralmente tudo que foi solicitado foi atendido no papel, não na prática e muitas vezes a gente vai olhar o que foi e o que não foi atendido quando vamos fazer outra pauta de negociação e o que acontece sempre vamos discutir e solicitar o mesmo, e a bola de neve somente aumenta. E quem sofre com isso é a população indígena que está nas aldeias. Os que estão nas cidades nem sempre acabam escapando. Não existe ultimamente movimento de base sustentando as propostas dos líderes indígenas nacionais.

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Por que, no Pará, palco de Belo Monte, com tantas nações, aldeias e indígenas não despontam lideranças fortes e respeitadas? Desgraçadamente, as pessoas, as ideias, as irresponsabilidades se repetem e é isso que atrapalha muito. O Pará até hoje não consolidou uma organização indígena. Aqui o problema é excesso de soberania. Temos os povos de maior tradição cultural e a negociação da representação política é longa e tem alguns que não querem ter essa paciência e atrapalham os processos e acabam prejudicando também a formação de uma organização política de representação de interesses coletivos. Todas as conquistas que tivermos no governo do PT [através da ex-governadora petista Ana Júlia, de 2009 a 2011] não continuaram no governo do Jatene [atual governador paraense, filiado ao PSDB]. Não são conquistas dos petistas, são direitos garantidos que foram consagrados para melhorar a vida dos 58 povos indígenas existentes neste estado. Nesse contexto, a vida indígena hoje no Pará é precária. E ao movimento indígena santareno, qual a sua crítica? A compreensão sobre a questão indígena e os direitos indígenas é limitada por grande parte dos integrantes do movimento indígena local. Isso dificulta a união dos povos para lutar pelo bem comum. A ausência de informação sobre direitos e as prerrogativas do direito singular e coletivo é insatisfatória, também. Algumas lideranças de distintos povos se entendem “representantes” dos povos, e não é assim. A representação política de um povo é feita por suas autoridades próprias, de maneira singular e direta. Não existe um entendimento no movimento sobre o que é soberania, autonomia e autodeterminação de um povo, e às vezes as pessoas se autoproclamam líderes de povos, dos quais não são integrantes. Qual a consequência dessa desunião? Por causa dessa ideia de algumas lideranças de tratar os indígenas como de fossem fieis de uma igreja, tipo esses são meus índios, eu 112


é que determino o destino dos deles, não se avança nas conquistas. Isso prejudica, atrapalha. Acredito que, neste momento, devido à falta de sensibilidade e egoísmo de algumas lideranças, o movimento indígena local está sofrendo perdas irreparáveis. Vamos ter que lutar para garantir as conquistas já alcançadas, e como fazer se todo mundo quer ser o/a cacique, incluindo-me nesse jogo? A Funai [Fundação Nacional do Índio] não foi instalada, o Distrito Sanitário Especial Indígena também não, o INSS não nos atende. Os indígenas ainda têm que apresentar a carta do sindicato. Os relatórios de demarcação estão todos parados na Funai e os problemas de invasão se multiplicando. Enquanto isso, o pessoal que está na direção do CITA [Conselho Indígena Tapajós-Arapiuns], que deveria está liderando essa luta, só sabe reunir para fazer carta dizendo que os tapuias não existem como povo, numa estreita compreensão do que é um povo. Somos a soma de um conjunto de parentes espalhados pelos Brasil e Colômbia, e por alguma razão muito especial minha avó Clarinda Tapuia se manteve firme com este nome, apelido, considere o que seja. É uma identidade que alude ancestralidade e milenaridade, da qual somos herdeiros.

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Conhecimento científico como base para construção de uma nova Amazônia

M

anuel Dutra é jornalista profissional, professor e pesquisador no Curso de Comunicação/Jornalismo da Universidade Federal do Pará. Detentor de três Prêmios Esso Região Norte, é doutor em Ciências Sócio-ambientais (Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido) pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da Universidade Federal do Pará (2003). Atua nas linhas de pesquisa mídia/discurso e mídia/meio ambiente.

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Entrevistado por Moisés Sarraf* A entrevista a seguir foi concedida pelo jornalista Manuel Dutra, coordenador do Curso de Jornalismo Científico resultado de acordo de cooperação técnica e científica entre a Universidade Federal do Pará e a Universidade Federal do Oeste do Pará. O texto foi publicado na revista Amazônia Viva, de periodicidade mensal, patrocinada pela Vale e editada e encartada pelo jornal O Liberal, de Belém. Trata-se da edição de setembro 2012, número 13, ano 2 da referida publicação. A notícia sobre ciência pode e deve ser tão útil e agradável como a notícia sobre qualquer outro assunto, desde que sejamos competentes para produzi-la. Qual a relação entre o armário de ervas e unguentos das residências amazônicas e tubos de ensaio de instituições de pesquisas na região? Para o jornalista e professor de Comunicação Social da Universidade Federal do Pará (UFPA), Manuel Dutra, essa ponte entre o conhecimento científico e o saber tradicional é necessária para “nos afirmarmos como povo autônomo”. Esse é, para ele, um aspecto fundamental para pesquisadores e divulgadores que trabalham dentro da Amazônia. Avalia Dutra: “Se quisermos divulgar os achados científicos na Amazônia, em todos os ramos da ciência, teremos que ser particularmente críticos e vigilantes”. Ganhador de três prêmios Esso Região Norte, doutor em Ciências Socioambientais no Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA) da UFPA e autor, entre outros, do livro “A natureza da mídia: os discursos na TV sobre a Amazô*

Moisés Sarraf é graduado em Comunicação Social – Jornalismo, pela Universidade Federa do Pará (UFPA). Atualmente é repórter dos cadernos Poder e Atualidades do jornal O Liberal, em Belém (PA). Trabalha também como repórter na revista Amazônia Viva, que é encartada mensalmente no mesmo jornal.

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nia, a biodiversidade e os povos da floresta”, o jornalista aponta os porquês de notícias sobre os resultados científicos – alcançados dentro de estados nortistas – terem a obrigação de percorrer os rios e igarapés da bacia amazônica.

Qual o seu conceito de divulgação científica? Há peculiaridades nesse campo dentro da Amazônia? Divulgação científica e jornalismo científico são temas relativamente controversos. Quero me ater aqui mais às noções de jornalismo científico. É claro que a sociedade precisa tomar conhecimento do que se produz nos laboratórios das universidades e outros institutos, especialmente no Brasil onde cerca de 90% da pesquisa são pagos com recursos públicos. Afinal, a ciência é para o bem da sociedade, o que, infelizmente, nem sempre acontece. Entendo o conceito de divulgação/jornalismo científico como um produto – o texto, a fala, o audiovisual, o hipertexto como resultado da capacidade do jornalista de dialogar com o pesquisador e assim obter as informações básicas, fiéis ao relatório de pesquisa, a fim de passar ao leitor/espectador/ouvinte a informação ao mesmo tempo dentro dos parâmetros científicos quanto compreensíveis aos leitores não especializados. A controvérsia que sugiro advém do fato de muitos profissionais que se dedicam a esse tipo de jornalismo especializado se tornarem espécies de assessores de entidades de pesquisa e, como tal, terminam por perder o senso indagador e crítico que deve permear todo texto jornalístico. Creio que esse ponto de vista vai na direção universal da produção do texto científico para públicos não especializados. Na Amazônia, imagino que a peculiaridade se dá mais pelas próprias peculiaridades da região, um espaço subalterno, historicamente visitado e anunciado ao mundo por estudiosos de outros países, produtores de um discurso não raro tomado como “verdade” acabada. Se quisermos divulgar os achados científicos na Amazônia, em todos os ramos da ciência, teremos que ser particularmente críticos e vigilantes para, 117


como jornalistas, não nos tornarmos divulgadores de pontos de vista externos à região, lendo sem interpretar relatórios que visam a interesses não amazônicos ou brasileiros. Como

gerar interesse pelo conhecimento científico?

que a sociedade precisa ter acesso a essas informações?

Por

Todo ser humano é, por natureza, curioso, deseja saber do mundo que o rodeia. Sem conhecimento não temos como nos situar no mundo. Isso pode e deve ser feito com a contribuição do jornalismo, seja ele rotulado de científico ou não. Desde sempre as sociedades humanas buscaram o conhecimento dentro das particularidades do lugar e do momento de suas existências. Com o avanço da ciência, esse conhecimento tende a se aprofundar e assim possibilitar melhores condições de vida, mas também mais desgraças, como se vê com a contribuição da ciência para a produção de armas inimagináveis no passado. Mas a mesma ciência produz hoje remédios e tecnologias outras que nos oferecem melhores chances de sobrevivência e bem-estar. Gerar interesse pelo conhecimento científico em nossos leitores é algo que depende, no caso do jornalismo, de um interesse anterior, do próprio jornalista. Se este não tem esse interesse, não haverá como motivar os leitores. A notícia sobre ciência pode e deve ser tão útil e agradável de ler como sobre qualquer outro assunto, desde que sejamos competentes para produzi-la. Precisamos nos insurgir contra certos mitos, como aquele do cientista abilolado, o cientista maluco, etc., como se tal atividade fosse exclusiva de pessoas incomuns. O que o jornalista precisa, repito, é compreender o trabalho de pesquisa, entender seus significados, conceitos e a sua utilidade. Qual o panorama da comunicação científica nos estados nortistas? Creio que o grosso dos jornalistas que se dedicam a essa área trabalham em institutos de pesquisa, diversos deles prestando um bom serviço à comunidade. Mas o ideal é que a própria imprensa incen118


tive a reportagem autônoma sobre ciência, livre das regras de uma simples assessoria. Assim, os leitores poderiam informar-se por meio de textos interpretativos, com opiniões diversas sobre uma nova descoberta científica, por exemplo, e não apenas textos sobre um determinado grupo de pesquisadores que fez isto ou aquilo. Como criar vias de comunicação entre as pesquisas na região e a população amazônica? O jornalista pode contribuir, mas não pode fazer isso sozinho até porque isso não é a sua atribuição específica. A imprensa pode assumir uma espécie de contribuição, digamos, pedagógica, ajudando a disseminar o conhecimento metódico produzido nos laboratórios. Como fazer estes resultados chegarem ao grosso da população cabe, prioritariamente, à escola fundamental e secundária, às universidades, às organizações populares. A disseminação do conhecimento científico deve ser uma preocupação geral da sociedade, a começar pelos responsáveis pela educação. Agora, outro mito deve ser superado: o de que o conhecimento científico é “naturalmente” superior ao conhecimento tradicional. Aliás, é o acervo de conhecimentos dos antepassados que fornece os objetos, as questões e as hipóteses para a pesquisa científica. A Amazônia possui um imenso manancial de conhecimento tradicional que jamais deve ser relegado pelos projetos de pesquisa científica. Se os nossos antepassados não tivessem esse conhecimento, sequer teriam sobrevivido menos ainda se reproduzido e criado as condições para a existência do mundo contemporâneo. Qual

Amazônia? Como ela pode impulsionar o desenvolvimento na região? o valor estratégico da divulgação científica na

O conhecimento é a base para as transformações de que a Amazônia necessita. É lugar comum afirmar que não possuímos aquilo que não conhecemos. Precisamos, então, possuir a Amazônia e o ponto de partida para essa posse é justamente o conhecimento das coisas 119


da região que habitamos, em todos os setores, do mineral, ao vegetal, o potencial hídrico, pesqueiro e, com destaque, o conhecimento das culturas de que nossa região é tão exuberante. Fico preocupado porque me parece que esse não é foco da maioria dos nossos cursos universitários da forma como deveria ser. Menos ainda da escola fundamental. Claro que a ciência tem princípios universais, mas ela se realiza, por meio da pesquisa, num lugar e num tempo histórico determinados. Assim, o conhecimento que pode ser útil à Finlândia, por exemplo, pode não ser útil à Amazônia em certo momento. Como dito, historicamente a ciência que se produziu sobre a nossa região foi produto de pesquisadores de fora do ambiente amazônico. Não podemos repetir esse caminho, que foi típico das heranças coloniais. Isso não significa que não devamos buscar a troca de experiências e conhecimentos com pesquisadores de qualquer parte do Brasil e do mundo. Precisamos conhecer a nós mesmos e aos nossos potenciais para nos afirmarmos como povo autônomo, capaz de se relacionar com o restante do Brasil e com os demais povos em pé de igualdade.

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Peixes da Amazônia podem desaparecer com o aumento da temperatura

M

arcos Prado Lima é graduado em Ciências Biológicas pela UFPA (2005) e em Educação Física pela UEPA (2004). Mestre em Genética, Conservação e Biologia Evolutiva pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (2009), é doutorando do curso de Genética, Conservação e Biologia Evolutiva pelo INPA e professor Assistente II da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Atua nas áreas de Genética e Biologia Molecular.

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Entrevistado por Adriana Pessoa1 e Aritana Aguiar2 “A Universidade tem o papel de contribuir para o desenvolvimento sustentável da região. Temos que crescer com sustentabilidade”. Esta é a convicção do biólogo e professor Marcos Prado Lima, referindo-se à contribuição da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) ao desenvolvimento de pesquisas que beneficiem a região. O jovem pesquisador gosta de ler ficção, estudou em escolas públicas e confessa ser apaixonado pela região onde nasceu. Lima tem as atenções voltadas para a preservação da vida de espécies para as próximas gerações e quer deixar sua contribuição. Preocupado com o meio ambiente, em sua tese de doutorado ele estuda os efeitos das mudanças climáticas na fisiologia e expressão gênica de peixes da Amazônia, tendo como modelo uma típica espécie da região: o tambaqui. A proposta se baseia em cenários climáticos previstos para os próximos 100 anos, levando em conta a emissão de gases poluentes da atmosfera. O estudo é realizado através do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA) e deve ser concluído em dois anos. “Imaginemos um cenário daqui a 100 anos, com um aumento de três graus na temperatura do planeta. Algumas espécies podem se adaptar, mas outras podem simplesmente desaparecer. Por isso que tudo é realizado considerando várias condições e com cautela,

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Adriana Pessoa Cunha, graduada em Comunicação Social/Jornalismo pelo Instituto Esperança de Ensino Superior (Iespes), especializando-se em Marketing pela mesma instituição e em Jornalismo Científico pela Ufopa. Atualmente é chefe de reportagem na RBA TV Santarém. Aritana Aguiar de Sousa, graduada em Comunicação Social /Jornalismo pelo Instituto Esperança de Ensino Superior (Iespes), especializando-se em Jornalismo Científico, pela Ufopa. Atualmente é produtora de jornalismo na RBA TV Santarém.

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não do dia para a noite. Mas, podemos afirmar que algumas espécies não vão conseguir se adaptar e vão deixar de existir. É uma perda muito grande pra biodiversidade do planeta”. Esta questão é mais detalhada pelo pesquisador nesta entrevista.

Como surgiu a ideia de estudar os efeitos das mudanças climáticas sobre o tambaqui? Quando entrei no mestrado, tinha uma visão muito restrita na questão da genética, limitada a Santarém. Ao ser aprovado para o mestrado, em conversa com o meu orientador, Dr. Adalberto Val, recebi a oferta de um projeto que já tinha financiamento próprio para trabalhar. No doutorado eu elaborei a ideia de trabalhar com esse tema cujo objetivo é compreender qual efeito real das mudanças climáticas, nos peixes, principalmente os da Amazônia. O tambaqui está sendo utilizado como espécie sentinela, e o principal motivo, além da necessidade de ter uma espécie para extrapolar, é que o tambaqui é um animal extremamente plástico. No doutorado, a gente especifica mais o estudo em determinada linha de trabalho, não teria como abrir a pesquisa para várias espécies. Não é meu objetivo compreender uma espécie específica, mas sim, os efeitos da elevação da temperatura e emissão de gases de efeito estufa em peixes de água doce, principalmente da Amazônia. A pesquisa está sendo realizada no INPA, em Manaus, mas a coleta de alguns peixes, também engloba a nossa região. O que significa dizer que “o tambaqui é uma espécie extremamente plástica”? A plasticidade é a capacidade que ele tem de se adaptar a um novo ambiente, e no caso do tambaqui, há uma grande capacidade. Em cativeiro, por exemplo, ele se cria facilmente, diferente de outras espécies como o pirarucu. No ambiente natural ele também surpreende, adaptando-se a muitas adversidades que podem surgir. 123


Como aplica a metodologia dessa pesquisa? Os animais são submetidos a quatro salas construídas no Laboratório de Ecofisiologia e Evolução Molecular do INPA, medindo cada um 25 metros cúbicos, totalmente isoladas e integradas a um centro de controle automatizado onde são monitoradas continuamente a temperatura, a concentração de CO2 (gás carbônico), e oxigênio, fotoperíodo e umidade. São seis peixes em cada aquário, cada sala possui oito aquários. A sala de controle possui as mesmas condições ambientais detectadas em tempo real por sensores localizados numa área florestal preservada, enquanto as outras três terão temperaturas estimadas pelo Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas para os próximos 100 anos, de acordo com o nível de emissão de gases de efeito estufa pela humanidade: Cenário brando (B1), com temperatura 1,5ºC acima da sala de controle e concentração de CO2 a 600ppm; intermediário (B2), com temperatura 2,5º C acima da sala de controle e CO2 a 800ppm; e extremo (A2), onde a temperatura está 4,5ºC acima da sala de controle e concentração de CO2 a 1.250ppm. É importante destacar que no planeta, a quantidade normal gás carbônico diluído em oxigênio é de 382ppm (parte por milhão), então logo no primeiro cenário a gente quase dobra esse valor. Só para que a gente possa perceber a gravidade dessas previsões para o ser humano e outros animais. Como ocorre o monitoramento? Todos os resultados são comparados com a sala controle e entre si. A sala 01, que imita o cenário brando, comparamos com a controle; a sala 02, que imita o cenário intermediário, a gente compara com o controle e com a sala 01 (brando), e a sala 03 que imita o cenário rigoroso, é comparada com todas as outras. Quanto

tempo a pesquisa com esses animais deve durar para

obter os resultados desejados?

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A gente delimita um tempo de acordo com cada organismo. Não pode ser muito, porque os organismos têm a capacidade de se adaptar ao cenário, por mais adverso que ele seja. Portanto nós delimitamos três períodos para avaliação. Os animais são expostos aos cenários em cinco dias, depois 15 dias e por último, 30 dias. Nós humanos e outros organismos, animais e plantas também temos essa capacidade. Só que temos um limite. Temos um estresse orgânico para suprir o aumento de temperatura, que é a sudorese. Esses animais não podem suar, mas eles têm outras alterações, eles aumentam o batimento opercular, conhecida como guelra, por exemplo, e isso aumenta o seu metabolismo. Nesse trabalho a gente faz comparações que são mais rápidas. Faz-se no tempo zero, que é o brando, para iniciar o experimento para ter como comparar o organismo quando ele entrou na sala. E vamos fazer nessas três modalidades, extrapolando os 60 dias. Nesse período nós vamos verificar como ocorre essa cadeia de eventos capazes de fazer ou não o tambaqui se adaptar ao aumento do calor e CO2. Será que nos cinco dias ele manifestou rapidamente, essa inquietação e alterações bioquímicas? Mas com 60 dias, o organismo se adaptou àquela situação ou não? A gente não sabe. É isso que estamos tentando descobrir. Com relação à captura, existe um tamanho ideal e de onde a espécie é retirada? Nossos animais são de cativeiro, de reprodução artificial. A gente não pode retirar do rio, porque se não vamos expor o animal a um novo cenário diferente e podem surgir outros fatores que vão interferir no resultado. O animal da natureza está acostumado a procurar o seu alimento, o de cativeiro está acostumado a ser alimentado e tem um espaço reduzido para viver, como o do aquário. A nossa ideia é diminuir as variáveis. Por isso, é importante que o animal viva em condições semelhantes à vida em um aquário desde o nascimento. Quanto ao tamanho, os peixes utilizados na pesquisa são do mesmo porte. Uma outra forma que encontramos de diminuir as variáveis. 125


Com os trabalhos iniciados, quais os resultados preliminares? Sim. Nós estamos com a parte piloto do projeto, que é o primeiro. Então, é uma exposição, por um tempo menor, para verificar o que a gente precisa alterar. Nesse primeiro momento, percebemos que os aquários onde os peixes estavam não eram adequados, por que eles tinham uma tampa, que estava reduzindo a troca de oxigênio e CO2, com o ambiente externo. Tivemos que fazer outros tipos de aquários, agora abertos. Mas, não totalmente por que o peixe pode pular. Colocamos uma rede. Tudo isso está sendo pensado, no trabalho. Além dessa experiência inicial, percebemos algumas alterações fisiológicas, por exemplo, o peixe fica mais ativo por conta do aumento da temperatura da água. Tudo indica que existe um grupo de genes, que é ativado nessas circunstâncias, chamados genes de choque térmico, que podem estar relacionados à adaptação da espécie. Então

não é possível saber se o tambaqui vai sobreviver ou

resistir caso o ambiente fique mais quente?

Sabemos através de outros estudos que cada espécie tem uma tolerância. O tambaqui, em especial, tem uma tolerância muito grande, mas até que ponto? Não sabemos por quanto tempo ele vai resistir e se manter saudável. Imaginemos um cenário daqui a 100 anos, com um aumento de três graus na temperatura do planeta. Algumas espécies podem se adaptar, mas outras podem simplesmente desaparecer. Por isso que tudo é realizado considerando várias condições e com cautela, não do dia para a noite. Mas, podemos afirmar que algumas espécies não vão conseguir se adaptar e vão deixar de existir. É uma perda muito grande pra biodiversidade do planeta. No caso do tambaqui, o que tem ocorrido quando ele é submetido ao calor? Ele fica agitado, mais ativo, e isso é negativo, porque quanto mais ele se agita, mais consome energia, fica cansado e vai precisar de mais 126


alimento. Se a temperatura eleva e a quantidade de alimento disponível para ele não aumenta, o peixe tem um emagrecimento, e isso com o tempo vai reduzir a imunidade dele, e a espécie pode morrer por uma doença ou simplesmente chegar a uma exaustão. Nesse caso, da fome ser maior e haver a falta de alimento, é possível a espécie desenvolver canibalismo? Sim, inclusive seus próprios filhotes e larvas o peixe pode passar a utilizar como alimento, porque se torna uma necessidade de sobrevivência. O tambaqui se alimenta preferencialmente de frutas, em condições normais, mas se ele for submetido, pode vir a se alimentar até de outras espécies. Existe

uma hipótese de resultado para sua pesquisa, vocês

imaginam que o tambaqui vai resistir ao cenário extremo?

Acreditamos que o peixe vai conseguir sobreviver por um período curto, mas não o tempo de vida que ele tem num cenário normal. Vocês estão prevendo a mudança em algumas características do animal, ou só redução do tempo de vida? Não, é muito provável que ele tenha também alteração no tamanho, peso, e as condições imunológicas do organismo (tornando-se mais suscetível a doenças) então tudo isso deve ser alterado já no cenário intermediário e principalmente no ambiente extremo. Nesse

caso, porque é interessante compreender a questão

das mudanças climáticas?

Para que se compreenda também a necessidade de desenvolver ações para diminuir as consequências dessas emissões de gases tóxicos. E compreender como ocorrem as alterações e o que precisa ser feito para reduzir, para que o efeito do aumento da temperatura nos peixes e em outros organismos não seja tão grande. Porque, enfim, dependemos desses organismos para sobreviver. 127


Qual é o grande benefício que a sua pesquisa vai oferecer à sociedade? Nosso objetivo é identificar qual é o grupo de genes responsável pela adaptação do tambaqui a esses cenários e se ele vai conseguir ou não se adaptar. Por exemplo, se o peixe se adaptar ao cenário brando e ao intermediário, mas morrer no cenário extremo vai significar que a principal espécie de peixe comercializada na Amazônia pode desaparecer em 100 anos se as mudanças climáticas globais permanecerem. Significa que em 100 anos podemos não ter mais o tambaqui para o consumo, tanto de origem natural, como de cativeiro, porque a temperatura vai interferir nos dois ambientes. E isso não deixa de ser um alerta para a sociedade, trata-se de um peixe que uma espécie símbolo da Amazônia e que poderá desaparecer se a situação não mudar. E se o tambaqui, que tem essa capacidade adaptativa grande, morrer, imagine outras espécies como o pirarucu, que é mais sensível, ou o curimatã, que também tem essa sensibilidade. Para se ter uma ideia da resistência do tambaqui, eu coloquei o peixe nadando em água aquecida a mais de 40ºC, é possível ver a água fumaçando e ele sobreviver, mesmo sob um estresse grande, isso num período de tempo curto. E isso acontece na natureza, num igarapé, por exemplo, que é um corpo d’água de pequeno volume, pode chegar a essa temperatura. Imagina esses lagos de várzea em nossa região, na cheia, eles se comunicam com o rio, mas na seca ele chega a um ponto em que se torna um córrego, e perde todo o contato com o rio, então ele fica isolado e com a evaporação que continua ocorrendo, a quantidade de água desse lago diminui, então ele fica mais sujeito à variação de temperatura. Um exemplo é quando a gente vai à praia e próximo à areia, a água está quente, mais lá no fundo a água está mais fria, então quanto menos água, maior será a temperatura por conta da radiação solar. Então nós queremos mostrar para a sociedade qual o efeito que essas mudanças climáticas podem causar nos peixes e, a partir daí, 128


tentar sensibilizar não só os governantes, políticos, mas também a sociedade, para que também façam a sua parte. O

senhor acha que, a partir de pesquisas como essa, aumen-

tam as nossas possibilidades de obter vida mais extensa para os organismos, como é o caso dos peixes da região amazônica?

Sim. A gente tem a possibilidade de entender melhor o que ocorre na nossa região, e a partir dessa compreensão, gerar políticas públicas que, de fato, mudem a realidade atual, ou a realidade quando for o caso de mudar.

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Tecnologias da informação podem ajudar a vencer déficit histórico na educação

P

aulo Henrique Lima é graduado em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (1994). Consultor da Comissão Econômica para América Latina e Caribe – CEPAL. Foi consultor do Rimisp – Centro Latinoamericano para el Desarrollo Rural, Santiago, Chile e da Organização Internacional do Trabalho (OIT). Atualmente é um dos coordenadores do Projeto Saúde & Alegria (PSA) em Santarém (PA), instituição civil sem fins lucrativos que atua em comunidades tradicionais na Amazônia.

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Entrevistado por Raimundo Clecionaldo Vasconcelos Neves1 e Ambelino Minael Andrade Cunha2 Uma pesquisa feita em 2011 pelo historiador e professor Paulo Henrique Lima, carioca, 46 anos, solicitada pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (CEPAL)sobre a utilização das tecnologias da informação, aplicadas à educação pelo Centro de Mídias da Secretaria de Educação do Estado do Amazonas, aponta os principais obstáculos encontrados no processo da universalização do ensino médio e na aplicabilidade das novas tecnologias por causa da falta de infraestrutura e pela inexistência de cultura de uso digital. No entanto, o pesquisador defende o modelo do Centro e Mídias para a Educação, como processo inclusivo e de qualidade no ensino médio no campo. O resultado da pesquisa foi apresentado 2012 em Santiago do Chile, no Seminário Internacional “La tecnología digital frente a los desafíos de una educación inclusiva en América Latina. Algunos casos de buenas prácticas”. Sala Celso Furtado, CEPAL. O enfrentamento da universalização da educação com qualidade na Amazônia mostra que é uma tarefa de dimensões gigantescas. O déficit histórico da educação no interior ou no campo, como ultimamente o Ministério da Educação vem tratando a questão, somente nos últimos anos é que vem sendo tomado como política pública. 1

2

Raimundo Clecionaldo Vasconcelos Neves é graduado em Pedagogia, com habilitação em Supervisão Escolar, ULBRA (2000). Mestre em Teologia pela EST (2010). Pós-graduado (lato sensu) em Educação Especial pela FACINTER (2007) e em Psicologia Educacional com ênfase em Psicopedagogia Presentiva na UEPA (2007). Especialista em Ciências da Religião (IESPES, 2007) e em Gestão Educacional (CEUS/ULBRA, 2007). Pós-graduando em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). É jornalista e comentarista esportivo. Ambelino Minael Andrade Cunha é jornalista e radialista, graduado em Comunicação Social – Habilitação em Jornalismo pelo Instituto Esperança de Ensino Superior (IESPES, Santarém/PA, 2009). Pós-graduando em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA).

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No Estado do Amazonas, o ensino fundamental, até da década de 1950, estava restrito às sedes municipais. No início dos anos a 1960, a realidade urbana apresentava alguns avanços, mas os Estados da Amazônia e do Nordeste registravam os piores resultados na educação nacional. Nos anos da ditadura militar, mesmo com as dificuldades e dos graves problemas decorrentes da perseguição aos opositores do regime, da censura e do arbítrio, o estado acaba por criar condições para a universalização do ensino no Brasil. Com o fim do regime militar e a abertura democrática, a partir de 1985, o país respira novas possibilidades para a educação, e intelectuais como Paulo Freire e Darcy Ribeiro retornam do exílio e contribuem efetivamente para um novo debate sobre a educação no Brasil, resultando na criação da lei 9394/96 que versa sobre a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, ressignificando a educação nacional. Um dos aspectos transformadores da realidade da educação Amazônica verificou-se em 1996 com a proclamação da Década da Educação, influenciada pela Declaração Mundial sobre a Educação para todos, escrita na reunião de Jomtien, Tailândia, em março de 1990. A partir de 2007 o Estado do Amazonas, baseado na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional (LDB), avançou na formação continuada de seus professores através do programa PROFORMAR – programa de Formação e Valorização de Profissionais da Educação. Porém, algumas dificuldades metodológicas levaram a Universidade do Estado do Amazonas a adotar outras técnicas de ensino mediado por tecnologias. Levando em consideração que o Amazonas é o maior estado do Brasil, com uma área de 1.570.745,680 km², se constitui na nona maior subdivisão mundial, sendo maior que as áreas da França (547.030,0 km²), Espanha (504.782,0 km²), Suécia (357.021,0 km²) e Grécia (131.940,0 km²) somadas, seria o décimo oitavo maior país do mundo em área territorial, pouco superior à Mongólia, com seus 1.564,116 km². 133


O Amazonas possui mais de 20 mil quilômetros de vias navegáveis e é cortado por grandes rios como o Amazonas/Solimões e Rio Negro. O Estado mantém a parte mais conservada da floresta tropical (98% de florestas preservadas). As estradas de rodagem são muito poucas em extensão e representam a ligação entre poucas cidades. A principal e mais popular forma de deslocamento é pelos rios, pelos “barcos de recreios” ou “motores de linha”. Dessa forma, vivendo na região amazônica há dez anos, Paulo Lima revela seu amor e encanto por uma terra que apresenta grandes desafios para o desenvolvimento da população que vive na floresta, mas, que tem uma identidade marcante de um povo que resiste ao poder dominante e conta sua própria história. É nesse universo que esta entrevista revela como moradores de comunidades longínquas do interior da Amazônia modificaram suas vidas através da educação utilizando ciência e tecnologia num programa à distância do ensino médio rural.

Como a sua presente pesquisa começou? A CEPAL é um órgão de pesquisa ligado ao sistema das Nações Unidas (ONU) que tem uma tradição de avaliar em vários campos, não só o da educação, mas, também, saúde, combate à pobreza, combate à fome e à violência. Eles procuram avaliar boas práticas. Como exemplo, temos o Abaré, que é um projeto de saúde fluvial ribeirinha. Trata-se de uma unidade móvel que foi reconhecida internacionalmente como uma solução de inclusão social inovadora, ao invés de as pessoas que não têm acesso ao médico, pelo fato de morarem seis, oitos, quinze horas em viagem de barco de Santarém, mas, o barco só sai da comunidade duas vezes por semana. Então, além das distâncias, a questão financeira pesa muito para que os moradores dessas comunidades possam ter direitos à saúde. Esse exemplo é considerado uma boa prática. O contexto desse trabalho é parecido sobre o Centro de Mídias para a Educação no Estado do Amazonas. Eles souberam do projeto, me convidaram para eu fazer essa pesquisa. 134


Quais as pessoas envolvidas na pesquisa? Entrevistei o secretário de Educação do Estado do Amazonas, o gestor do Centro de Mídias para a Educação do Amazonas, também, as pessoas que participam em campo. Eu fui a uma escola do município de Presidente Figueiredo e outra no município de Parintins, muito isoladas, sem energia, mas onde existe um professor que intermedeia os conhecimentos que vêm de Manaus do Centro de Mídias. Nessas condições é possível assegurar uma aula de qualidade para os alunos? O programa é uma réplica à distância do ensino médio regular. A grande questão do ensino médio no Brasil e nos países com dimensões maiores e com grandes áreas rurais é manter um ensino médio de qualidade, estimulante para o adolescente, que é um sujeito em crise, em descoberta. Além disso, outra questão é a evasão escolar, se no ensino regular esses desafios são grandes, imagina na zona rural, pois não temos professores com formação de nível superior que morem nas comunidades, principalmente o município de Benjamim Constant que tem dimensões continentais. Logo, para mantê-lo na escola, são necessárias intervenções criativas, ousadas. Neste sentido, as tecnologias de informações fazem a diferença nessas escolas. Qual é a novidade que esse projeto apresenta? Quando se pensa em educação à distância, logo vem à mente a internet, onde se utiliza, por exemplo, a plataforma Moodle, ou seja, ambiente virtual que através da internet se posta os trabalhos acadêmicos e é nesse ambiente virtual que ocorre todo o processo de ensino e aprendizagem. No entanto, para a nossa realidade isso não funciona, pois temos problemas com a banda larga. Logo, o projeto implantado do ensino médio presencial com mediação tecnológica oferece um ensino com metodologia diferenciada, inovadora, com 135


implantação de redes de serviços de comunicação multimídia, onde num processo interativo, observa-se: dados, voz e imagem transmitida do Centro de Mídias de Educação, que fica na sede da Secretaria de Educação em Manaus. Como

promover a universalização do ensino na região ama-

zônica?

O Brasil, desde 1996, através da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBN) modifica, inova, e, sobretudo, tenta pagar uma dívida social com a educação. Nesta direção o Estado do Amazonas compreendeu que era necessário investir na formação, na qualificação dos professores. Lá são mais de 15 mil professores com nível superior, e isso faz toda a diferença, pois além de qualificar o professor, oportuniza a inclusão de alunos nas escolas que ficam nas comunidades, promovendo, então, a universalização da educação com qualidade. Qual é a metodologia utilizada? A metodologia prevê aulas ao vivo, transmitidas pela televisão, proferidas por um professor ministrante, do estúdio localizado na sede da Secretaria de Educação, em Manaus, as quais o aluno assiste na sala da escola de sua comunidade. Sob orientação de um professor que estará presente em sala, chamado professor presencial, o aluno interage com o professor ministrante, posicionando-se diante de uma webcam, que transmitirá sua imagem, sua voz e dados, do que resultará um diálogo efetivo, em tempo real, garantindo a completa comunicação entre os participantes do processo de ensino e aprendizagem. Quais

as dificuldades que o projeto tem para se consolidar

como políticas públicas?

O direito à educação deve ser assegurado a todos. No entanto, faz-se necessário investimento financeiro e, sobretudo, do Produto 136


Interno Bruto (PIB), para que se garanta o acesso, a permanência e o sucesso dos alunos nas escolas. Outra dificuldade é a questão da logística dos equipamentos, do deslocamento dos professores para as comunidades, da variação climática que ocorre na região amazônica, interferindo diretamente na manutenção do projeto. Por outro lado, a dificuldade do projeto em dialogar com as etnias indígenas. Para se ter uma ideia, no Amazonas, são 67 etnias, constituídas de aproximadamente 87 mil pessoas, as quais devem ser computados 12 grupos isolados e a maior parte na região do Vale do Rio Javari, e 52 terras indígenas, sobre as quais não se tem registro, afora aqueles habitantes das três sedes municipais, os deslocados, inclusive para Manaus. Os 86 mil conhecidos ocupam 171 terras indígenas, que juntas compõem uma área de mais de 28 milhões de hectares, o que equivale a mais ou menos 33% de todas as terras indígenas do país.

Diante

dessa realidade ainda falta uma política específica

para que a universalização ocorra, também, com a educação indígena?

No Amazonas hoje temos o maior contingente de povos indígenas habitando nessa região. Existem grupos que não falam português e eu não conheço nenhum programa que ministre aulas nas línguas próprias dessas etnias. Os grupos que participam do projeto falam a língua portuguesa. Deveria existe outro centro tecnológico voltado para a educação indígena. Quais são os investimentos financeiros? São 6,1 mil comunidades rurais amazonenses. O investimento atual da Secretaria de Educação do Amazonas no Centro de Mídia é de US$ 5,2 milhões por ano, em média. O projeto atende cerca de 25% da demanda por ensino médio das comunidades rurais.

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Quais os resultados apresentados pela pesquisa? Constamos que houve melhora nos resultados do processo ensino/ aprendizagem, a dinâmica pedagógica favoreceu a interação entre aluno e professor, o projeto reproduz o ambiente de sala de aula a milhares de quilômetros, respeitando as diferenças entre o rural e o urbano. Há baixas taxas de abandono e reprovação, conclusão do curso por parte dos alunos, professores que ministram aulas na sede são todos mestres e doutores. É preciso, contudo, ressaltar que não se trata de um projeto de uso de tecnologias de informação e comunicação para combater a brecha digital, mas sim, decididamente, um projeto de universalização da educação com qualidade para populações isoladas geograficamente.

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Mudanças climáticas e sustentabilidade no debate nacional sobre a Amazônia

R

aimunda Nonata Monteiro é graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pará (1990). Doutora em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pela Universidade Federal do Pará (2003), é professora adjunta I da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA) . Suas pesquisas se concentram principalmente nos seguintes temas: desenvolvimento sustentável, desenvolvimento regional, desenvolvimento rural, crédito rural e florestas tropicais.

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Entrevistada por Fábio Pena* Como o Brasil vem tratando o tema das mudanças climáticas? Esta é a questão central abordada num estudo produzido por Raimunda Nonata Monteiro , doutora em Ciências Socioambientais e professora do Instituto de Ciências da Sociedade, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). A pesquisadora se somou ao meteorologista João Feitosa, também professor da UFOPA, na elaboração do estudo intitulado Debate Nacional de Mudanças Climáticas e Sustentabilidade, que aborda a percepção brasileira sobre fenômenos atribuídos às mudanças climáticas no âmbito d governo, da sociedade e dos meios acadêmicos. Nascida em Santarém, no Pará, Raimunda Monteiro tem um olhar especial sobre a Amazônia, dando um enfoque sobre o papel desta região nesse debate. Nesta entrevista, feita no final de janeiro de 2013, em Santarém, a pesquisadora fala das principais questões de suas pesquisas, refletindo sobre os avanços e retrocessos da questão ambiental que, segundo ela, por um lado ganhou em marco regulatório, mas, por outro, é pressionada pela imposição de outros temas na agenda pública, como a crise econômica internacional e o momento de desenvolvimento do Brasil. A pesquisadora alerta ainda para uma possível perda de protagonismo da Amazônia nos debates ambientais.

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Fábio Pena é graduado em pedagogia pela Universidade Federal do Pará, pós-graduando em Jornalismo Científico na UFOPA. Atua no campo da comunicação comunitária, educomunicação e é coordenador de educação e comunicação no CEAPS – Projeto Saúde & Alegria em Santarém.

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A questão das mudanças climáticas está cada vez mais em evidência no mundo e aqui no Brasil também, especialmente com a realização da Rio + 20, em 2012. A senhora produziu um trabalho que apresenta um cenário sobre como está se

Brasil, e um papel de destaque. Por quê? tratando este tema no

aponta que o país tem tido

Bem, o Brasil, a partir principalmente da cúpula dos povos, em 1992, já inspirado em grande medida no processo de democratização que a constituição de 1988 consolidou, permitiu esse protagonismo ao país. A democratização do país, o fortalecimento dos movimentos sociais, a criação de uma massa crítica, foram fatores que se combinaram para que a questão ambiental emergisse nos anos 90 no Brasil e envolvesse a sociedade. Os movimentos sociais que lutaram contra a ditadura agora traziam o ingrediente ambiental para sua pauta política. Isso fortaleceu uma capacidade de influência da sociedade que empurrou os governos a assumirem e avançarem nos seus compromissos pactuados entre os países, a partir de Eco 92. E creio que o protagonismo que o Brasil tem hoje vem deste contexto político. Se a sociedade não houvesse se mobilizado, dificilmente o país se destacaria nas negociações internacionais sobre mudanças climáticas. No

seu estudo a senhora diz que o

Brasil

ainda necessita

de pesquisas que respondam de maneira mais contundente às mudanças climáticas e à relação dessas mudanças com os eventos extremos que estão ocorrendo aqui, como sendo de fato consequência do aquecimento global.

Então, que bases o Brasil possui em relação às mudanças climáticas?

A parte da pesquisa, o embasamento científico das mudanças climáticas, vejo como algo dinâmico. Por exemplo, o Ministério da Ciência e Tecnologia está investindo em pesquisas para dar suporte ao desenvolvimento de conhecimentos nessa área no país, para articulação dos cientistas brasileiros nas redes internacionais. Enfim, acho que isso caminha bem. O que eu acho que demonstra um 141


comprometimento maior do Brasil é o arcabouço institucional que o país criou para articular as ações públicas nesse sentido. Temos, por exemplo, a política nacional de mudanças climáticas. Dentro dela, temos os pactos formados com os setores considerados mais impactantes em emissões de gases do efeito estufa (GEE). Em dezembro de 2011 o Ministério do Meio Ambiente concluiu os pactos setoriais pela redução nos diversos setores, como transportes, indústria, e até o agronegócio. Busca-se um comprometimento dos segmentos que emitem gases do efeito estufa. Isso cria um arcabouço interno no país que dá condições para se pensar em políticas estruturantes, já na perspectiva das reduções de emissões, ajudando no compromisso que o Brasil assumiu de redução em torno de 38, 9% das emissões de GEE até 2020. Porém, eu vejo limites, ligados às vontades políticas de um ou outro governo de manter essas políticas vivas e a sociedade monitorar. E

nesse contexto em que tivemos a

Rio + 20,

como o país

ficou entre o que já vinha construindo e o que resultou da conferência?

Um dos maiores avanços para o Brasil com a Rio + 20 foi o pacto das maiores cidades, porque são as cidades que poluem, são cidades que são referência, que influenciam em políticas globais. As cidades fizeram um acordo nesse sentido, representando um avanço e um engajamento de grandes players, grandes agentes. Do ponto de visto dos temas do desenvolvimento sustentável, que são mais amplos do que mudanças climáticas, pois entra pobreza, economia, nós tivemos retrocessos porque não ficaram expressos os compromissos. Nem dos governos centrais, nem de governos que já tinham um papel mediano nessas relações. A Rio +20 remeteu para instâncias técnicas a continuidade da construção das propostas. Nesse sentido, houve um esvaziamento político em nível global, agravado por um contexto de crise internacional, em que os países estavam mais preocupados com seus problemas econômicos. Após a Rio + 20 a questão ambiental sai da grande pauta. Porém, no caso do Brasil, 142


aspectos que são acúmulos que o país já tinha, como os marcos regulatórios para a questão florestal, para gestão dos recursos hídricos, para a gestão dos resíduos sólidos e o das mudanças climáticas, esses avanços não são afetados pelo maior ou menor engajamento de uma cúpula como a Rio + 20. Esses aspectos internos avançarão dependendo muito mais da capacidade interna da sociedade de cobrar. Existe

toda uma preocupação com a

das mudanças climáticas. debate?

Que

Amazônia

nesse debate

lugar ocupa esta região nesse

Eu avalio que falta mais conhecimento, mas está se construindo com novas pesquisas para validar as percepções da influência das florestas tropicais, não só da Amazônia, porque temos florestas tropicais no Vale do Congo, na África, e na Ásia. Então, sem dúvida nenhuma, essas florestas jogam um papel muito importante no clima mundial. Há divergências entre os cientistas sobre que intensidade exerce essa influência. Porém, não há como negar os impactos. Nas minhas pesquisas de campo, trabalhando principalmente com agricultores, busco muito captar as percepções deles das mudanças em microclimas, em climas em nível regional, percebidos ao nível de uma geração ou do que eles conseguem reportar a partir de duas ou três gerações. E é interessante o quanto é perceptível uma alteração do regime das chuvas, aumento do período de seca. Em regiões onde tivemos um desflorestamento extensivo com a supressão de água superficial, de igarapés, com o assoreamento de rios, a percepção dessas mudanças é muito forte. Em relação à pergunta mais geral, sobre qual o papel que a Amazônia joga nessa discussão do clima, eu vejo que nos últimos anos a Amazônia também deixa de ter um papel importante na agenda da discussão de meio ambiente, tanto internamente quanto em nível internacional. Vejamos um indicador, que foi na Rio+20. Houve uma secundarização do papel das florestas tropicais como um todo. O governo brasileiro, apresentando dados que mostram a redução 143


nos desmatamentos, atingindo índices dentro das metas estabelecidas, fazendo o ordenamento territorial que destinou às áreas públicas que eram objetos de maior pressão, enfim, criando um ambiente institucional com maior controle, e assim lançando o foco para outras demandas. No entanto, as questões estruturais que levam ao desmatamento ainda persistem e a situação de ameaça ainda não foi resolvida. E é uma pena. Por exemplo, as questões da Amazônia estão secundarizadas, praticamente invisíveis dentro da agenda da imprensa. De vez em quando um fato aqui e outro ali, mas uma agenda afirmativa do que seria promover um desenvolvimento para a Amazônia em bases sustentáveis por causa da importância da manutenção das suas florestas, não vemos nada de substancial. Tivemos

avanços no ordenamento territorial, criação de

reservas, assentamentos, mas parece que isso não vem acompanhado de uma mudança significativa de qualidade de vida da população que vive nessas áreas.

Por exemplo, na Reserva Extrativista Tapajós/ Arapiuns, em Santarém, uma das maiores do país. Embora os moradores tenham maior acesso às políticas públicas básicas, por outro lado, na geração de renda parece que não avançou tanto. O que a senhora acha que está faltando? Acho que houve avanços institucionais na questão ambiental, no tema das mudanças climáticas. Temos uma política nacional de gestão florestal, uma política nacional de desenvolvimento de povos e comunidades tradicionais, que inclusive é uma reivindicação política dessas populações que vivem nas reservas. No campo da gestão, o governo Lula deu um choque no avanço da fronteira que estava vindo de forma avassaladora a partir de meados dos anos 1990 a 2005, principalmente com a lei de gestão de florestas públicas, como a criação do Distrito Florestal Sustentável da BR-163. As florestas públicas, passando a ser regidas por conselhos que juntam sociedade e governo, com acesso controlado das empresas a esses estoques. 144


Enfim, esses anos é como se fossem estruturadores de marcos de regulação, anos estruturadores de políticas que, pela primeira vez, vão dar atenção para setores que antes não tinham. Porém, criar as unidades de conservação sem promover uma economia sustentável nas áreas ocupadas pelos extrativistas, pelos agricultores familiares, sem que tudo isso funcione de uma forma articulada, é deixar essas as áreas continuarem sofrendo pressão. No entanto, a implementação real de um modelo de desenvolvimento, das reservas extrativistas, ainda não aconteceu para um povo que, em grande medida, não vive só do extrativismo há muito tempo. Vivem também de uma agricultura de subsistência, da pesca. Que sua juventude em grande medida não quer morar na reserva extrativista, quer ir para a cidade. Onde é que vai ser oferecido um emprego pra esses jovens, se esse emprego vai continuar sendo centralizado nas zonas urbanas? Se a condição da renda para eles vai continuar sendo centralizada na cidade, se a produção deles continuar desvalorizada pelo mercado? Vai ser muito difícil segurar esse povo nessas áreas. Se for mantida uma situação de pobreza prolongada em que essas mudanças venham muito lentas, o que vai ocorrer? A própria ideia, a validade da Reserva Extrativista do ponto de vista de dominabilidade por eles poderá vir a ser questionado depois por oportunistas, e eles mesmos abrirem mão dessa modalidade de uso da reserva. É preciso desenvolver políticas para isso, inclusão produtiva, não é? Pois é, e é aí que nós temos uma disparidade. A Amazônia também tem uma situação pouco privilegiada em relação às políticas de desenvolvimento do país. Por quê? O Brasil continua pensando, para a Amazônia, o padrão de desenvolvimento que foi realizado e que é dominante nas outras regiões do país. O Brasil não conseguiu pensar em instrumentos de desenvolvimento apropriados para uma vocação florestal. 145


A

nossa região tem essa vocação?

florestal?

O

que seria essa vocação

Olha, o exemplo da Costa Rica, que é muito parecida com a Amazônia Central, um pouco com a Amazônia Ocidental. Lá eles mostram que a economia pode se estruturar a partir de várias modalidades de atrativos turísticos, a partir dos recursos aquáticos e da floresta. Aqui a gente pensa em floresta, mas não pensa em como podemos manejar nossos rios, agregar valor aos produtos da pesca. Em relação à pesca, nós temos o mesmo sistema que nós temos com as florestas. O filé da floresta é exportado, não fica nada aqui. O filé do pescado não fica aqui. A sociedade local fica com os restos. E

nem são gerados sistemas produtivos que promovam uma

economia local sustentável...

Exatamente. Não agrega valor, não gera empregos aqui. Nós temos várzeas. Temos que pensar: vou proteger a floresta. Ótimo! Mas se você incrementar uma produção de alimentos nas várzeas, você se torna um exportador de alimentos. Precisamos de uma economia agrícola para a várzea, uma produção de alimentos nas áreas já alteradas, já ocupadas por trabalhadores familiares de forma racional. A floresta utilizada não só de forma exclusivista em torno da madeira, mas buscar o uso múltiplo dessa floresta. Nós podemos ter desde o uso em biotecnologia, até o aproveitamento de subprodutos como resinas, corantes, couros, tecidos, que podem ser desenvolvidos se houver uma política de pesquisa, tecnologia, fomento, crédito, e infraestrutura local. Porque o que acontece é que se busca o asfaltamento da BR-163 [Cuiabá-Santarém], se faz um porto ali para a soja, mas os ribeirinhos, os trabalhadores rurais continuam sem infraestrutura nenhuma para sua produção. O que nós temos são macropolíticas para macroagentes econômicos, e a economia real, que está aqui em baixo que pode ser desenvolvida para ocupar uma mão de obra da região, não está ainda enquadrada nas políticas públicas. Nós temos esse vácuo. Nossos rios não estão sendo pensados para a pesca, estão sendo pensados para 146


a energia. Nossos minérios estão quase todos em fase de pesquisa e sendo exportados dentro do modelo antigo. Então, eu vejo avanços em relação a marcos regulatórios, em ordenamento territorial, em sistemas de gestão, mas em relação à economia ainda vemos se reproduzir um modelo tradicional, atrasado e reducionista em relação às potencialidades econômicas da região. E ainda autoritário, porque é de fora que vêm as grandes decisões sobre o que vai ser investido na região.

147



Agronegócio e agricultura familiar: é possível conciliar interesses em conflito?

S

andro Viegas Leão é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Pará (1999) e mestre em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (2006). É professor e pesquisador da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Pesquisa e atua na área de economia, com ênfase em economia política, atuando principalmente nos seguintes temas: economia brasileira, desenvolvimento socioeconômico, políticas públicas de desenvolvimento rural, agronegócio na Amazônia.

149


Entrevistado por Ailanda Ferreira Tavares1 e Alciane Ayres2 O economista e professor Sandro Augusto Leão, 40 anos, natural de Altamira, está pesquisando desde 2011 as dinâmicas regionais a partir da expansão do agronegócio de grãos, especialmente soja, sob a ótica das estratégias de atores sociais diferenciados, e a institucionalização de políticas voltadas para a organização e regulação da atividade agropecuária na região de Santarém. Em seu local de trabalho, na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Sandro Leão confessa que é a primeira vez que conversa com jornalistas para expor esse projeto. Após um rápido bate-papo, o economista relatou que a agricultura familiar também está inserida em sua pesquisa, como uma forma de expansão na região. Segundo o estudo, a economia rural da região, até a década de 1960, era predominantemente extrativista, coexistindo com a pequena criação de gado e a agricultura. No entanto, esta conjuntura sofre drásticas mudanças, principalmente a partir de 1970, quando chegam à Amazônia investimentos federais. No município Santarém, Oeste do Pará, devido a várias estratégias, a agricultura acaba por se consolidar como uma das frentes de expansão promissora e dinâmica. 1

2

Ailanda Ferreira Tavares é jornalista formada pelo Instituto Esperança de Ensino Superior – IESPES, em 2010. Especialista em Crise de Imagem pela Universidade de Fortaleza. Pós-graduanda em Jornalismo Científico da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Atualmente é assessora de imprensa na secretaria municipal de Educação, em Santarém (PA). Alciane Ayres da Mota é jornalista formada pelo Instituto Esperança de Ensino Superior – IESPES, em 2010. Pós-graduanda em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará. Atuou profissionalmente no período de janeiro de 2007 a maio de 2012, nos cargos de produtora, nas afiliadas da Globo/Tv Tapajós e Record News/NITV. E como repórter de imprenso, nos jornais Diário do Pará/Sucursal Diário do Tapajós e O Impacto. Exerce atualmente função de Assessora de Imprensa concursada na Secretaria Municipal de Cultura, no município de Santarém/PA, desde agosto de 2012.

150


Quais

as principais políticas públicas que incentivam a agri-

cultura familiar?

Hoje o Brasil tem política nacional de assistência técnica para agricultores familiares. E essa técnica desenvolvida pela EMATER (Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural) muda o caráter da assistência técnica rural, priorizando os produtores. Porque antes era geral, atendia grandes e pequenos agricultores e no final não atendia ninguém. Essa nova política trouxe a prioridade para a agricultura familiar. Agora o técnico se especializa nas culturas voltadas para este fim e por região, não mais para o agronegócio, mesmo porque aqui em Santarém as culturas são diferentes das culturas do Sul, por exemplo. Hoje, o governo federal tenta articular políticas do próprio governo federal com as políticas voltadas para agricultura familiar, para abrir canais de comercialização. Um exemplo é o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) que, por lei, as escolas têm que oferecer aos alunos 30% de produtos da agricultura familiar, e se articula também com política nacional de Segurança Alimentar, que se preocupa que cada brasileiro tenha acesso a uma alimentação saudável, orgânica, in natura e de qualidade e principalmente da região. Antes, a merenda escolar continha muitos alimentos enlatados, agora os produtos são mais saudáveis. A segurança alimentar entra como uma política transversal, tanto no Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF) como no PNAE, criando esses critérios, essas normas, essas leis, para termos uma alimentação de qualidade. Em comparação com a grande agricultura, 80% das feiras e mercados recebem frutas, verduras da agricultura familiar, não do agronegócio. O plano-safra do agronegócio visa a incentivar e financiar grandes agricultores ligados a produtos de exportação: soja, milho, gado etc. Já no plano-safra da agricultura familiar, o valor é menor, porque o agronegócio tem uma articulação muito forte com a base do governo. 151


Como estão as linhas de créditos voltadas para a agricultura familiar? Até 1996, a agricultura familiar não era reconhecida como uma categoria de trabalhadores rurais pelo Estado. Ou seja, depois de muitos conflitos agrários, foram criadas políticas públicas e linhas de crédito. Os assentados emprestavam um valor, e pagavam apenas 55% do valor, ou seja, tinham o rebate de 45%, depois de dois anos, porque a agricultura é a atividade que produz alimentos para a mesa do brasileiro. O governo tem uma lógica econômica de baratear o valor da alimentação, que é a referência básica para o salário mínimo, e é por isso que a agricultura familiar é considerada uma atividade estratégica no país. Um dos principais problemas para os produtores é o credito rural. Os produtores da Amazônia não conseguiram se adaptar ao modelo que foi criado. Eles pegam o dinheiro e têm dois anos para pagar, e depois desse tempo têm que pagar integralmente. Os produtores gastam em outras coisas e os que realmente investem na agricultura não têm o costume de guardar. E isso dificulta o crescimento dos pequenos produtores. Com a mudança no quadro territorial com a criação do município de Mojuí dos Campos, desmembrado do município de Santarém, como fica a concentração da produção e a exportação para outros estados? As mudanças dependem da organização política dos municípios e também do asfaltamento da BR-163 (Cuiabá-Santarém). Então o asfaltamento da BR-163 vai ser uma referência para saber a dinâmica de cada um. Nós precisamos saber, o quanto Santarém depende disso. Não que, com essa rodovia, vá melhorar ou vai se desenvolver. Mas vai se criar uma situação de possibilidades, tanto para Santarém, como Belterra e Mojuí dos Campos. Com a estrada vai haver um grande crescimento demográfico. Virão novas empresas, novos investidores, vão abrir outras possibilidades, maior fluxo de comercial, maior fluxo de pessoas. Não só aqui, mas em outros municípios. 152


O asfaltamento da BR-163 vai abrir um padrão comercial, concorrência entre empresas. Isso vai servir para movimentar Mojuí e Belterra, consideradas hoje como cidades isoladas. Se formos sair do município de Santarém para Altamira e Marabá que são cidades que têm estradas que ligam ao Sul, a Belém e ao Nordeste, perceberemos uma dinâmica econômica, de empresa, de pecuária. Porque a pecuária daqui é uma pecuária voltada para a região. A pecuária aqui é tem pouquíssimo dinamismo, não exportamos a carne, só atendemos o mercado local. O senhor participa do projeto Observatório da Economia Amazônica e Desenvolvimento Regional. Qual a linha dessa pesquisa? E como está o andamento dos trabalhos? O Observatório é um projeto amplo que tem vários subprojetos. Um dos subprojetos é o meu, que explica as entradas da expansão do agronegócio. A expansão do agronegócio é meu tempo de referência e a referência de dinâmica que eu pego. E podemos relacionar que o PIB de Santarém aumentou. E um dos fatores que fez esse PIB aumentar foi o agronegócio, a soja, a Cargill, entre outros elementos. Essa minha pesquisa parte de uma análise territorial, eu analiso como essas empresas de agronegócios trouxeram para a região de Santarém, incluindo Belterra e Mojuí, os produtores de soja. Houve uma nova dinâmica: econômica, social e política, e tudo isso não aconteceu de forma separada, mas de forma articulada. Com o agronegócio no ano 2000 tivemos uma grande configuração territorial. Essa configuração não aconteceu somente com a soja, mas com a pecuária, com a agricultura familiar, e também com a mineração, que não está aqui de forma física. Não temos uma exploração mineral na região de Santarém, mas há uma articulação territorial da Alcoa, da Mineração que se articula no território, que tem peso político no território, e que às vezes dá incentivo. Esse território na minha pesquisa é um território-rede, é um território-zona e não é um território fixo, que se articula fora da área que se encontra. 153


Há conflitos desencadeados pela cultura da soja na região Oeste do Pará? Eu parto dessa análise territorial que é a soja, em relação ao agronegócio. Houve um problema em 2006, um grande conflito socioambiental. O fato de que a soja estava tirando os trabalhadores rurais e suas famílias de suas comunidades, de Belterra e de outras áreas, tirando o padrão tradicional, e colocando na cidade. Essas mudanças geraram alguns problemas para região, o maior deles foi a saída dos agricultores familiares de suas terras, chamado também como o processo de “expulsão” (mercado de terra), resultando na migração dos produtores familiares para outras cidades ou outras comunidades. O Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais fez campanha para que as terras fossem devolvidas. Mas começou também a ter a articulação dos movimentos sociais da região com Organizações Não Governamentais (ONGs), como é o caso do Greenpeace. O

que proporcionou a estabilidade para o agronegócio na

região?

Articulação política. A base sempre foi muito forte. E essa articulação resultou em denúncia contra o desmatamento. Logicamente, com agronegócio teve aumento do desmatamento para abrir áreas. Por mais que o discurso governamental dissesse que a soja viria para uma área desmatada, tinha grandes áreas de florestas secundárias, só que florestas secundárias aqui, podem ser florestas de cem anos. E teve toda essa briga por posições políticas. Isso é resultado dos movimentos sociais, do desmatamento, das articulações políticas. O governo, mediante essa demanda, entrou para resolver o conflito. Criou-se um artifício institucional e surgiu a moratória da soja. Foi um acordo assinado pelos produtores de soja, pelos exportadores, como a Cargill, assinado pela Associação Nacional de Produtores de Oleaginosas. O Greenpeace levou uma galera para Europa e anunciava que a soja da ração que alimentava os frangos da McDonald’s vinha de Santarém, de desmatamento e de expulsão de trabalhadores. Depois disso, houve um alarme e a imprensa in154


ternacional divulgou sobre o desmatamento na Amazônia, através das denúncias do Greenpeace. Ao se falar em moratória, o governo criou alguns mecanismos institucionais como o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e o Licenciamento Ambiental Rural (LAR). Primeiramente, os grandes fazendeiros iriam se cadastrar na Secretaria de Meio Ambiente (SEMA) Estadual, informando nos endereços dos pontos de GPS, e a partir daí o CAR passa a fazer o monitoramento das ações de desmatamento. Isso

significa que o agronegócio sempre ficará em baixa na

região devido ao acordo da moratória da soja?

Aqui na região de Santarém, muitas fazendas fecharam, no entanto não foi por causa da moratória. Mas, por conta de estudo de mercado. Quais as estratégias dos atores sociais em Santarém? Um ponto de escoamento para a soja. Quando asfaltarem a BR-163, os custos cairão. A produção de soja, em Santarém, Belterra e Mojui, com a BR-163, vai ficar mais movimentada. E com isso haverá um aumento nas plantações. Mesmo porque as áreas dessas regiões, incluindo Santarém, são propícias para a plantação de soja devido a área ser plana, o que facilita a atividade mecanizada.

155



A distância entre intenção e gesto na questão ambiental no Oeste do Pará

A

ntônia do Socorro Pena da Gama é mestre em Desenvolvimento Sustentável do Trópico Úmido pelo Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA/UFPA, 2004) e doutoranda em Educação na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atuou como educadora popular no Centro de Apoio aos Projetos de Ação Comunitária (CEAPAC, 1988-1990). Coordenou diversos projetos no Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM, 1997 até 2006). É professora assistente e pesquisadora da Universidade do Oeste do Pará (UFOPA).

157


Entrevistada por Jota Ninos* Atuar no movimento social, depois no governo e viver o dilema do personagem principal do musical “Calabar, o elogio da traição” (de Chico Buarque) que tenta explicar seu sentimento durante o ataque mortal aos seus pares: “(...) Se trago as mãos distantes do meu peito, é que há distância entre intenção e gesto”. Antônia do Socorro Pena da Gama, 49 anos, viveu de perto essa experiência nos últimos 30 anos. Aguerrida ambientalista nos anos 1980, hoje ela tenta explicar as ações de um governo do qual participou e que é acusado de permitir uma das maiores agressões ao meio ambiente de sua cidade. Ela reconhece que “é mais fácil aplicar políticas ambientais quando se trabalha numa ONG, do que na gestão pública”, por causa da política e da burocracia. Essa experiência vai estar em sua dissertação de mestrado com o título “Educação ambiental formal e não formal para o manejo dos recursos pesqueiros da várzea de Santarém, Pará”, título provisório que revela um pouco dos dois mundos que vivenciou alternadamente. Esta entrevista foi feita no início de 2013, quando Santarém assistia a um novo conflito ambiental por causa de um empreendimento imobiliário instalado às margens de um paraíso ambiental da cidade.

*

João Georgios Ninos (Jota Ninos) é descendente de grego e completa 50 anos em 13/07/2013. É jornalista profissional e radialista há quase 30 anos, atuando no Pará. Graduado como Bacharel em Jornalismo pelo Instituto Esperança de Ensino Superior (Iespes, 2010). Pós-graduando em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Atualmente é Analista Judiciário concursado pelo Tribunal de Justiça do Pará. Mantém um blog na internet (www.jotaninos.blogspot.com), além de apresentar o programa radiofônico semanal “Bazar Brasileiro” (www.radioruraldesantarem.com.br).

158


Por

que aquilo que se defende como ambientalista não se

consegue implementar, na sua totalidade, como gestor ambiental?

É isso que quero estudar e defender na minha tese, na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas]. Pela minha experiência, hoje sei que é mais fácil aplicar políticas ambientais em programas de um instituto de pesquisa como o IPAM (Instituto de Pesquisas Ambientais da Amazônia), onde atuei, do que na gestão pública. Há muitos entraves burocráticos e políticos na gestão pública e os resultados são menores. Vou ter a possibilidade de estudar e avaliar como essas políticas foram aplicadas em dois governos municipais: do qual participei e o atual [de Raimundo Alexandre de Vasconcelos Wanghon (PSDB), iniciado dia 01/01/2013]. De antemão, levanto a hipótese de que é importante compreender a metodologia de um programa de educação ambiental. Em Santarém, temos diferentes ecossistemas: de várzea, de rios e do planalto. O governo de Maria [do Carmo Martins Lima, de 2005/2012] conseguiu integrar em sua política pública, diversas ONGs. Já Alexandre, foi vice-prefeito durante oito anos do governo anterior [Joaquim de Lira Maia, de 1997/2004], que era contra essas parcerias e as tratava como inimigas. Acredito que o arranjo de gestão entre governo e ONGs é fundamental para as políticas públicas e quero tentar provar isso em minha tese. Santarém vivencia, nos últimos anos, diversos conflitos por causa de grandes projetos econômicos e imobiliários – que se implantam sem apresentar Estudos de Impacto Ambiental – e quase sempre vencem barreiras judiciais geradas pelas organizações não governamentais e pelo Ministério Público. Como resolver esses conflitos? Há dois aspectos a serem focados nesse tema e o primeiro é o jurídico. Santarém vive uma instabilidade jurídica. O processo de expansão imobiliária e fundiária deve ser trazido para a esfera da legalidade. Por exemplo, quando ocorreu o conflito com a “invasão de sojeiros”, após a instalação da Cargill [multinacional exportadora de 159


grãos, que instalou no final dos anos 1990 um terminal graneleiro em Santarém, questionado na Justiça até hoje por possíveis danos ao meio ambiente], um proprietário adquiria dez lotes e usava “laranjas” para legalizá-los perante o INCRA, mas ele decidia sozinho pelo desmatamento de todas as áreas, num processo que extinguiu comunidades e consolidou o processo de especulação fundiária e gerou conflitos. De lá pra cá, os “sojeiros” tiveram que se legalizar no Cadastro Ambiental Rural (CAR) e regularizar suas áreas. Mais de 300 produtores de grãos tiveram que se regularizar para ficar na região. E quem não fez teve que cair fora: ou foi pra cadeia ou voltou de onde veio. Se tivessem chegado dentro da legalidade, muitos teriam percebido que aqui não havia área apropriada e nem um boom da soja. A Cargill também se instalou na região sem fazer o EIA/RIMA [Estudo de Impacto Ambiental/Relatório de Impacto ao Meio Ambiente] e até hoje enfrenta uma batalha judicial. Isso se aplicaria a todos os projetos a serem criados? Claro! A legislação diz que tem que fazer, então deveria ser feito em todos os projetos. Nós teríamos que fazer uma adequação, pois quando você faz a lei, já vem um debate anterior, um estudo anterior que diz o que pode ser feito. Assim, hoje, os projetos da Cargill e de Belo Monte acabaram virando conflitos jurídicos, pois o que era para fazerem antes, fizeram à revelia, depois. A senhora falou de dois aspectos nesse debate. Qual seria o outro aspecto? Seria o aspecto socioambiental. Eu acho que existem conflitos de interesses e de gestão. Santarém é uma cidade que está em expansão, que tem o Plano Diretor e o de Uso do Solo. Quando você usa uma política dessas, você trabalha com diferentes atores e diferentes interesses. Aí olha a contradição das políticas: você faz um projeto como o Minha Casa, Minha Vida [projeto habitacional do governo Federal em parceria com as Prefeituras] para construir cinco mil unidades habitacionais. Sabe o que significa isso, olhando do ponto de vista am160


biental? A várzea vai se arrebentar, pois para fazer tijolo, telha, você vai ter que pegar aquela terra da várzea para botar nas olarias pra fazer esse material. Você vai ter que desmatar uma área para construir as casas. Então você entra num outro problema, nos conflitos, na disputa dos recursos e na disputa dos interesses. Eu diria que esse processo de expansão é muito complexo hoje, porque ele mexe com diferentes interesses, mexe com uma regulamentação legal, e te confesso que ainda não estudei os detalhes jurídicos do processo do Minha Casa, Minha Vida ou da Buriti [empresa responsável pelo loteamento de uma grande área de terras na rodovia Fernando Guilhon, na entrada da cidade, que enfrenta protesto de ambientalistas locais pelo possível impacto na área do lago do Juá]. Mas eu disse, um dia desses, para o Podalyro [Neto, atual secretário municipal de Meio Ambiente, que revogou todas as licenças ambientais dadas pelo seu antecessor, Marcelo Corrêa, em meio ao embate judicial das áreas citadas]: “Eu acho um equívoco a forma como vocês estão revogando tudo”. É preciso estudar caso a caso, do ponto de vista jurídico, biológico, socioeconômico, em várias dimensões, o que eu acho que não aconteceu nem com a Buriti e nem com o Minha Casa, Minha Vida. Mas há outros projetos de expansão imobiliária menores, onde fazendas de gado foram transformadas em loteamento. Eu não sei qual foi o impacto nessas áreas, mas acho que não se pode dar o mesmo tratamento para esses loteamentos em relação aos projetos de expansão da rodovia Fernando Guilhon. Mas

não há contradição no seu discurso, já que anterior-

mente a senhora disse que

“todos” os grandes projetos que

afetem os recursos naturais devam passar por um estudo de

EIA/RIMA,

levando-se em conta que, no caso da

Buriti,

a

administração passada não tomou essa providência e licenciou o início das obras sem esse estudo?

Eu, pessoalmente não me aprofundei neste aspecto, nem do ponto de vista jurídico, nem do ponto de vista ambiental. Causou-me espanto o desmatamento feito pela Buriti. Eu não concordei e acho que é um equívoco começar um projeto desse jeito. Minha história, 161


minha consciência pessoal não alcança esse tipo de empreendimento feito dessa forma. Eu acho que a grande perda para Santarém em relação a essa área, antes da chegada da Buriti, foi que a UFOPA e o município de Santarém, não tenham trabalhado para ali instalar a nova universidade, que seria um lugar ideal para o campus. A universidade gastou muito dinheiro na aquisição de outras áreas, mas poderia ter canalizado somente para esta, e nós teríamos um resultado muito melhor e construiríamos um processo novo para aquela área. Mas a UFOPA, agora que existe o conflito, já se mostra interessada em rever sua posição e criar no local um parque ambiental. Isso é possível no atual estágio deste processo?

Eu não acredito nisso, pois é uma área privada. O que está em questão agora é o licenciamento ambiental. Eu acho que o cancelamento das licenças pela atual gestão apenas transfere a competência para o governo estadual, mas o licenciamento vai acontecer. O cancelamento foi um gesto muito mais político do que uma preocupação com o meio ambiente. Sendo assim, a senhora acredita que, já estando a área impactada, não é possível que ativistas e governo tentem resgatar a área ou evitar um mal maior? É bom lembrar que a Floresta da Tijuca, no Rio, foi refeita. Ou seja, tecnicamente é possível reverter a situação. Com

sua experiência tanto no ativismo ambiental como na

gestão pública, o que a senhora sugere neste caso?

Enquanto estive no governo da Maria do Carmo (PT) briguei para transformar o Juá em uma APA [Área de Proteção Ambiental], o que implicaria trabalhar com outras regras, do ponto de vista ambiental. Se você tem uma área de preservação ambiental, o tratamento pode ser diferenciado. A primeira coisa a fazer é consolidar essa APA e determinar os limites e o que nós queremos fazer com essa área e determinar o plano de uso. O que antecede o processo jurídico é o 162


estudo técnico, o que pode e o que não pode e o que deve e o que não deve. Se a gestão quiser, ela implanta a APA, que já foi criada pela Câmara Municipal. Como tem um conflito estabelecido, o ideal é você delimitar o espaço. O técnico do IBAMA, quando deu entrevista [no momento em que a obra foi embargada preventivamente] disse que do ponto de vista técnico estava tudo certo. Pode ser que esteja, mas não seria bom ouvir outros institutos de pesquisa para avaliar se realmente está certo? Não estou duvidando do técnico, mas se ele diz que do ponto de vista legal está certo e do ponto de vista ambiental há assoreamento, então o município tem que consolidar a APA e proteger as riquezas naturais ali existentes, como o lago, o potencial pesqueiro, a mata ciliar, a população tradicional. Do ponto de vista do projeto de expansão do município, vai ter que estudar, vai ter que rever o Plano Diretor, o Plano de Uso do Solo. Por isso que eu digo que a expansão da cidade pode ser necessária, mas também é uma contradição, porque você cria um instrumento para resolver o problema da moradia e você tem grandes problemas ambientais. Essa é a contradição de Santarém. E como se resolve essa contradição, principalmente quando no meio do conflito as decisões judiciais acabam pendendo em favor dos grandes projetos já implantados?

Eu não tenho resposta para o processo de expansão de Santarém, pois está acontecendo de forma acelerada. Eu estou surpresa com a quantidade de loteamentos que surgiram. Não

seria esta expansão imobiliária uma consequência do

anúncio de novos projetos de desenvolvimento econômico na região, como as

UHEs Belo Monte e Tapajós ou a estrada de ferro pela rodovia BR-163, com investimentos que vêm da China, para transformar Santarém num corredor de exportação de produtos agrícolas? Eu diria que essa expansão estaria mais ligada às políticas nacionais econômicas, que facilitaram o crédito bancário. A maioria das 163


pessoas que buscam estes loteamentos sabem que pode fazer empréstimos a juros baixos na Caixa Econômica e terão os benefícios do programa Minha Casa, Minha Vida. Por isso é preciso pensar e planejar a cidade, a partir dessas políticas. E o maior problema desse conflito é que você não discute, mas tem que pensar no modelo de desenvolvimento que nós queremos. Então, a senhora acredita que nos últimos 20 anos, desde a criação da Divisão de Meio Ambiente, no governo Ruy Corrêa, na qual inclusive a senhora indicou o responsável, até hoje os agentes políticos foram incapazes de implementar uma política ambiental condizente com essa expansão fundiária e imobiliária, causando os conflitos existentes na atualidade?

Vou te dizer um problema que eu identifico e que é a principal causa pela luta do Estado do Tapajós [a região Oeste do Pará tem uma luta mais que centenária pela autonomia política da região, que desembocou no plebiscito para a criação do Estado do Tapajós, em dezembro de 2011, quando foi derrotado pelos eleitores da capital]. Somos uma região com o Estado de Direito ausente em alguns aspectos. Se a Secretaria Estadual de Meio Ambiente (SEMA) estivesse aqui na região Oeste do Pará, com escritório e técnicos, acompanhando os problemas e fazendo parceria com os municípios, provavelmente estes problemas não estariam acontecendo. No caso da Buriti, os agentes do meio ambiente usam linguagens diferentes: o Ibama diz uma coisa, as secretarias de Meio Ambiente do município e do Estado dizem outra. Então temos uma divergência que seria desnecessária se tivéssemos uma maior presença do Estado. Somos uma região abandonada, do ponto de vista da gestão pública e sofremos as consequências desse processo.

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Garimpos e desmatamento fazem do mercúrio um vilão dos rios e igarapés

Y

nglea Georgina de Freitas Goch é doutora em Biologia (Ecologia), pelo Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA, Manaus – 2007). É professora e pesquisadora no Instituto de Ciências e Tecnologia das Águas, da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Atua na área das Ciências Biológicas, Ecologia, Meio Ambiente e Contaminação Aquática.

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Entrevistada por Val Araújo* Em algumas espécies de peixes foram encontrados teores de mercúrio acima dos níveis aceitos pela Organização Mundial de Saúde. Por isso é aconselhável que o ribeirinho não coma peixe todo dia, se não ele poderá ter problemas de saúde. Principalmente quando consomem peixes carnívoros como o tucunaré, a piranha e a cachorra, que comem outros peixes, e estão no topo da cadeia antrópica que vem acumulando a substância. A afirmação é da pesquisadora da Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA), Ynglea Georgina de Freitas Goch. A pesquisadora acredita que é necessário desconstruir certos mitos, como a contaminação de rios por mercúrio na região. “Não são apenas os garimpos que poluem, tem colaboração também do desmatamento, pois sabemos que a remoção da vegetação do solo gera perda dos nutrientes e leva sedimentos para lagos, igarapés, rios chegando ao mar”. Apaixonada pela região, onde mora e pesquisa, Ynglea desenvolve pesquisas na área das Ciências Biológicas, Ecologia, Meio Ambiente e Contaminação Aquática. Conhecedora do jargão “a união faz a força”, desde a graduação ela atua em grupos de pesquisas. Já obteve o prêmio de melhor pesquisa no XII Congresso Brasileiro de Ecotoxicologia, em 2012, com o trabalho “Dinâmica Espaço-Temporal de Mercúrio em Água e na Comunidade Planctônica (Fito e Zooplâncton) dos rios Tapajós, Amazonas e Arapiuns, Pará, Brasil”.

1

Valdilene Araújo da Trindade graduada em Comunicação Social – com habilitação em Jornalismo pelas Faculdades Integradas do Tapajós (FIT). Pós-graduanda em Jornalismo Científico pela Universidade Federal do Oeste do Pará (Ufopa). Endereço eletrônico: <val_jornalista@hotmail.com>.

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Ynglea Goch é professora do Instituto de Ciências e Tecnologia das Águas, da UFOPA. Aqui ela fala de suas pesquisas e sobre o desenvolvimento de projetos científicos na Amazônia “com olhar amazônico”.

O que motivou a senhora a estudar biologia nesta região? Na verdade foi por carência de cursos na cidade. A minha vontade era fazer biomedicina, mas era um curso que não existia em Santarém, e por vínculo familiar preferi permanecer na cidade. Terminei o antigo segundo grau, fiz o vestibular e ingressei na primeira turma de biologia da Universidade Federal do Estado do Pará (UFPA), campus Santarém. No decorrer da graduação, fui percebendo que tinha feito a escolha correta, graças a Deus, deu tudo certo. Qual a importância de fazer iniciação cientifica? No inicio do curso, em 1994, ganhei uma bolsa de pesquisa e comecei a trabalhar no antigo Projeto Várzea, hoje Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM). Trabalhando com o manejo dos recursos pesqueiros, fazendo tabulação dos dados coletados, participei do projeto de manejo do pirarucu na região das várzeas. Então, fui me inserindo na questão da pesquisa. Depois convivi com uma parceria entre a UFPA e Universidade de Québec, em Montreal no Canadá, com um grupo forte que trabalha com mercúrio, e comecei a desenvolver pesquisas com essa substância e seu impacto no ecossistema aquático. Como é desenvolver pesquisa na Amazônia? Não é fácil. Falta mais estrutura para manter as pesquisas. Por outro lado, temos a facilidade de estar dentro do nosso ambiente de trabalho. Enquanto há pessoas de outros estados e de outros países que sonham em estudar na Amazônia, nos estamos aqui e isso viabiliza 167


as pesquisas. Com a proximidade do objeto de pesquisa é mais fácil entender o nosso ecossistema, do que para os pesquisadores que vêm de fora. É mais rápido identificar uma espécie de peixe, porque eu sempre comi esse peixe desde criança, não estou vendo pela primeira vez. Ser da região me permite agilidade na compreensão e conclusão das pesquisas. Compartilhar

conhecimento com outros pesquisadores que

não são originários da região é importante?

Sim, não é fácil realizar pesquisa sozinha. Temos que ter uma visão ecossistêmica, ou seja, do todo. Quando vamos estudar um igarapé, não vamos analisar apenas o igarapé, precisamos identificar que espécies de peixes existem nele, como é a qualidade da água. Qual tipo de vegetação tem nas margens do igarapé e se está sendo retirada. Qual vegetação que tem que ser recolocada e recomposta? Por que, quando retiramos a floresta do solo, ele é tão facilmente assoreado? Essa não é minha área, o que fazer? Por isso a parceria é necessária. Uma pesquisa só avança quando o pesquisador faz parte de um grupo com pesquisadores de várias áreas, que conseguem pegar uma temática e entender aquela problemática. Como é desenvolver pesquisa em grupos? É gratificante colaborar com o conhecimento para beneficiar a sociedade. Estar inserida em grupos e em orientações de projetos é estender meu conhecimento e somar com os demais colegas. Desde 2010 faço parte do grupo de pesquisa de Mamíferos Aquáticos da Amazônia (MAQUA), que analisa os hábitos alimentares, disponibilidade de alimentos, épocas de reprodução, disponibilidade e uso de habitat, dinâmica de populações e uso de telemetria dos mamíferos aquáticos na bacia amazônica (boto rosa, tucuxi, peixe-boi, ariranha e lontra). Nessa mesma época participei do grupo de Manejo em Ecossistema Amazônico (MECA), que estuda a relação das comunidades com os recursos agroflorestais. 168


No XII Congresso Brasileiro de Ecotoxicologia, em 2012, a senhora participou da pesquisa que ganhou o primeiro lugar na categoria estudante de graduação sócio e não sócio. que representa esse prêmio?

O

Representa um grande reconhecimento da pesquisa na Amazônia. A pesquisa teve duração de um ano, com coletas em quatro períodos (enchente, cheia, vazante e seca), nos rios Tapajós, Arapiuns e Amazonas. Foi gratificante fazer parte desse projeto como coorientadora do aluno de graduação Brendson Carlos Brito, que teve seu projeto premiado. Isso significa estender e compartilhar o conhecimento além dos muros da universidade. E fazer parte da equipe formada pelos pesquisadores José Reinaldo Pacheco Peleja, Sâmea Cibele Freitas da Silva, Fábio Andrew Gomes Cunha, Rívolo de Jesus Bacelar, Daniela Bianchi e Cárlison Silva de Oliveira foi muito bom. Qual aspecto mais importante desse tema para a sociedade? É elucidar e esclarecer a sociedade que tanto o desmatamento quanto o garimpo são formas de lançamento de mercúrio no sistema aquático. Antes se imaginava que eram apenas os garimpos que lançavam mercúrio no meio ambiente. Então pode desmatar, se desmata não faz mal algum. É o contrario, o desmatamento causa o lançamento dessa substância para a água, o efeito estufa e outras coisas. Esse projeto serve para zonear projetos de implantação de desenvolvimento sustentável. Em

décadas anteriores, o uso de mercúrio, principalmente

na região de garimpo, poluiu rios, lagos e igarapés na região, matando peixes e causando problemas de saúde a população.

Como funciona o processo de acumulação de mercúrio?

O mercúrio entra no ecossistema como mercúrio inorgânico, que está no solo e vem para o ambiente no momento em que se retira a floresta. A água da chuva leva sedimentos para o lagos, igarapés e rios. E nesse ambiente aquático ocorre o processo de metilação que 169


é a transformação do mercúrio inorgânico, que não causa dano à saúde, em mercúrio inorgânico, o metilmercúrio, contaminando os organismos microscópicos que estão na cadeia alimentar de espécies maiores como animais silvestres e peixes, e propaga a substância, chegando aos seres humanos. Em

que profundidade o mercúrio pode ser encontrado na

região?

Depende do solo. Aqui na Amazônia o solo é diversificado, podemos encontrar mercúrio em um metro de profundidade. E a absorção de mercúrio varia também. Por exemplo, o solo arenoso possui menos sedimentos, mas tem uma capacidade maior de lavar, levar e carrear mais mercúrio para o solo. Então você deve estudar diferentes solos e águas. Temos a água preta e clara, grosseiramente falando, a água preta possui mais acidez e tem a capacidade de bioacumular mais mercúrio. Então não é correto afirmar que a contaminação de mercúrio na Amazônia vem apenas de garimpos? Não, esse mito foi quebrando quando pesquisador francês Jacques Cousteau veio para a Amazônia, e estudou varias espécies de peixe. A partir daí se iniciaram outras pesquisas como a do pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA), Bruce Forsberg, que estuda a dinâmica do mercúrio na Amazônia, e foi quem verificou alto teor de mercúrio em cabelos de ribeirinhos e em peixes no rio Negro, questionando o alto teor encontrado em cabelos e peixes, em regiões sem garimpos. E constataram que as águas pretas são mais ácidas. Por isso é necessário ter cuidado para não desmatar essas áreas e jamais implantar garimpos nelas. Porque somando o desmatamento e o garimpo, há um resultado avassalador. Sabemos que Santarém é abundante em recursos hídricos, temos os rios Tapajós, Amazonas e Arapiuns. Qual deles é mais propicio para a contaminação de mercúrio? 170


O que tende a ter águas mais acida é o rio Amazonas porque carreia sedimentos para dentro dele. No entanto, o teor de mercúrio é maior no Tapajós, apesar de não ter águas pretas, e sim pelo fato de drenar áreas desmatadas. Já o rio Arapiuns possui níveis de acidez semelhante ao Tapajós. Em primeiro lugar em níveis de acidez está o Tapajós, em segundo o Arapiuns e por último o Amazonas. Mais nada comparado, ainda, ao rio Negro, que tem teor de acidez altíssimo. Esses

resíduos encontrados são oriundos do desmatamento

ou de garimpos de Itaituba?

Como estamos coletando amostras em regiões bem aqui abaixo, é muito difícil que esse resíduo seja ainda de garimpo. O mercúrio encontrado faz parte da química da água. Efeito do processo de desmatamento aqui da região. O

teor de mercúrio encontrado em

aos seres humanos?

Santarém

é prejudicial

Em algumas espécies de peixes foram encontrados teores acima do permitido pela Organização Mundial de Saúde. Por isso é aconselhável que o ribeirinho não coma peixe todo dia, se não ele vai ter problema. Principalmente quando consomem peixes carnívoros como o tucunaré, a piranha e a cachorra, que comem outros peixes, e estão no topo da cadeia antrópica que vem acumulando a substância. Quais os tipos de sintomas que podemos identificar quando o ser humano é contaminado por mercúrio? O resíduo atinge o sistema neuronal que afeta a coordenação motora e a visão fica reduzida. Os idosos sentem mais facilmente esses sintomas devido à idade, e possuem outros problemas também, somado o consumo de alimentação contaminada, ele vai acumulando. Qualquer um de nós, se formos analisar nosso cabelo, podemos encontrar níveis de mercúrio tolerável. Não são alarmantes. 171


Em Santarém

há muitos igarapés que, em sua maioria, passam

por varias comunidades.

Eles estão contaminados?

É complicado, algumas áreas estão contaminação e outras não. Temos dentro da cidade os igarapés Urumari e Uruará que não possuem condições de balneabilidade em especial no período das chuvas. Há nascentes que estão próximas do aterro sanitário do Perema e que estão comprometidas. Já em outros locais, como na estrada de Alter do Chão, os igarapés do Jutuarana, Sorrisal e São Brás estão ainda em níveis toleráveis ao consumo. E que tipos de prevenções podem ser realizados para manter o equilíbrio ambiental? E como a universidade pode contribuir? Algumas pessoas nem sabem que medidas tomar. A universidade tem a função de informar a população. Fazemos pesquisas que muitas vezes são publicadas em revistas, livros e sites e até mesmo em outras línguas. E a nossa população não conhece essas pesquisas. Precisamos divulgar a ciência para que a sociedade possa se prevenir e ser reeducada ambientalmente. Para isso acontecer é necessário que a sociedade como um todo colabore, para que tenha um meio ambiente de todos para todos.

172





Este livro foi impresso para a Editora Insular em agosto de 2013 176


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