Afundação Roberto Marinho A série Denúncia da Editora Tchê!, com Afundação Roberto Marinho, de Roméro C. Machado, oferece, não só ao público tradicionalmente leitor, mas também ao julgamento de toda a sociedade brasileira, talvez o título mais polêmico das últimas décadas. Num empreendimento editorial de enorme ousadia, um notável trabalho de investigação jornalística. Primeiro volume da Trilogia Global, este livro é um empreendimento corajoso que aborda tema considerado por muitos mítico e inenarrável. De indiscutível credibilidade, quer pela fartura documental, quer pela privilegiada autoridade do autor (Roméro foi auditor da Rede Globo, contro-ller da Fundação e assessor da Vice-presidência de Operações da Rede), a obra enfoca a luta pelo poder, dentro e fora da empresa, e as mais inimagináveis ilicitudes, desde a falsificação de concorrência até a obtenção ilegal de verbas, passando por transações em dólares não registradas (caixa-dois), compra de notas frias para prestação de contas com o MEC, e "operações" envolvendo José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, Vice-presidente das Organizações Globo e responsável pela vitória de Escrito nas Estrelas, música interpretada porTetê Espíndola, no Festival dos Festivais. O júri tinha escolhido Mira ira. Como um jurado não podia saber do voto do companheiro, foi fácil para Boni falsificar o resultado. Na mais poderosa indústria televisiva do país, o poder fabrica outra espécie de indústria: a política do abuso. Incontáveis personagens — todos com seu honrado nome de batismo declarado — envolvem-se em falcatruas que a argúcia e a honestidade quase suicida do autor auscul-taram. De forma impiedosa e transparente, este inacreditável reino da safadeza acaba, finalmente, de ser retratado com fidelidade. Afundação Roberto Marinho é um dos livros mais denunciadores que a bibliografia brasileira já registrou.
O Autor Roméro da Costa Machado nasceu a 11.09.48. Reside no Rio de Janeiro e foi aprovado para Agente Fiscal de Tributos entre os setenta primeiros lugares entre milhares de participantes. Foi auditor nas seguintes empresas: Auditor, Coopers IkLybrand, Boucinhas-Campos e Claro, Grupo Portland/Lone Star (Cimento Mauá) e, por último, Rede Globo (holding). E controller: Grupo Portland/Lone Star e Fundação Roberto Marinho. Além disso, foi Assessor Especial do Vice-presidente da Rede Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni.
Resumo A imagem da Rede Globo no espelho televisivo é recebida nos lares brasileiros com um fervor admirativo que quase não comporta críticas, e uma fidelidade de um público responsável por altíssimos índices de audiência que torna o que seria um simples lazer num autêntico costume nacional. Esta imagem, aparentemente irretocável, agora posta à prova de forma inédita em Afundação Roberto Marinho, ameaça desfazer-se, ou melhor, adquirir seus verdadeiros contornos, sua face mais real, a que o vídeo é incapaz de captar. Em seu primeiro volume, a Trilogia Global, de Roméro C. Machado, investe impiedosamente contra um mundo que a televisão mais mascara do que revela. Aqui temos a devassa da Fundação, com os desmandos e estratagemas internos cujo único objetivo é acobertar a fabricação de fortunas pessoais e ações políticas que certamente envergonhariam Maquiavel. Mais do que acender o rastilho da explosiva Trilogia, este livro de abertura oferece às mais variadas faixas de leitores e a todos os profissionais de Comunicação um exemplo notável de coragem pessoal e honestidade de ofício. O autor, auditor durante anos na poderosa Rede e mais tarde controller na Fundação Roberto Marinho, "olhos e ouvidos do dono", além de assessor de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, vê-se justamente pela extensão de suas funções, frente a frente com as mais inimagináveis falcatruas. Acusar? Incriminar? Ou simplesmente registrar os infindáveis buracos negros do universo dos corruptos cada vez mais em expansão? Dúvidas quase intransponíveis, cujos obstáculos morais, econômicos, sobretudo de autopreservaçâo (principalmente física) geralmente direcionam para uma desistência culposa ou, na maioria das vezes, para uma negociação indigna de interesses mútuos. Sem fazer vistas grossas ou sem aliar-se às quadrilhas de importantes executivos (todos com seu "santo nomezinho" devidamente apontado), o perigo é iminente, certo. Roméro corre todos os riscos, menos o de relapso em sua atividade; expõe-se à sanha mafiosa, menos à covarde cumplicidade de quem irresponsavelmente preferiria lavar as mãos. Mãos ousadas, astutas, que tão logo desligaram-se do imenso mar de lama Global, escreveram um dos livros mais denunciadores que a bibliografia brasileira já registrou.
Afundação Roberto Marinho Roméro C. Machado. ÍNDICE
A título de introdução Prefácio Explicação necessária Antes da primeira auditoria A primeira auditoria São Paulo, aqui vou eu A segunda auditoria O primeiro confronto
A Título de Introdução Este livro é o primeiro de uma trilogia, a ser complementada com outros dois; sendo um composto de uma história seqüencial e segmentada, Inside Globo, e outro com histórias isoladas. Atrás do Espelho. Como o Afundação Roberto Marinho está situado no interregno de duas fases de auditoria, deveria conter, por isso mesmo, toda a fase adestrita à Fundação Roberto Marinho. Entretanto, por uma questão de clima, o autor optou por reconstituir uma pequena fase pré-auditoria, bem como dar uma pequena seqüência à fase pós-auditoria, fazendo com que os inícios e fins de cada livro sejam irrelevantes, quer por não ficarem presos ao tempo, quer por não pretenderem encerrar um principio moral e pedagógico. Gostaria de ressalvar que todos os diálogos deste livro são rigorosamente verdadeiros em sua essência. Entretanto, como nem todos eles foram gravados, e a maioria foi reproduzida de memória e anotada à época, poderá ocorrer o uso de sinônimos para algumas palavras ditas, até mesmo uma ligeira distorção, principalmente em virtude da pontuação, do ritmo. Porém, não há qualquer modificação na essência e conteúdo dos mesmos. O Autor.
Prefácio* *Assunto de responsabilidade de Francisco Eduardo Ribeiro, Responsável Geral pela Auditoria de todas as empresas das Organizações Globo.
Foi deixada uma página em branco, em sinal de silêncio, uma vez que zilhões de razões que conheço, impedem Francisco Eduardo Ribeiro de utilizar este espaço para expor os seus motivos e/ou justificar sua posição diante de todos os fatos de que ele é ciente. A despeito de eu haver alertado, durante anos, sobre a sua posição de cavalo em A revolução dos Bichos, e de caixeiro-viajante em A Morte do Caixeiro-Viajante, e que de nada adiantaria ele tentar se superar, trabalhando cada vez mais, pois o futuro seria inexorável, e nada deteria a decretação do seu ostracismo, e até mesmo a implacável perseguição, tão logo o Dr. Roberto morresse ou delegasse a administração das empresas a inimigos seus. Ele, Francisco Eduardo, transformou-se em assistente de sua própria agonia e morte, em vida; amargando a ingratidão, mais uma vez, e pagando alto preço por não atentar para o que se desenhava como óbvio.
Explicação Necessária Tudo o que compõe estes livros foi objeto de relatórios internos e/ou relatos verbais a pessoas tidas como responsáveis internos pelos assuntos aqui abordados. A minha promoção a Controller da Fundação não representou o esperado por mim, pois abri mão desta posição ao ver que se tornava inútil o meu trabalho e que nada mudaria dentro daquela instituição, e não ser que a fizesse sangrar, indo tão fundo quanto achava que devesse ir. Poderia ter envelhecido ou me aposentado na confortável posição de Controller-Conivente, caso me dispusesse a aceitar coisas como elas estavam. Foram dadas (por mim) aos dirigentes da Fundação todas as oportunidades de recomeçar e higienizar, a partir de um processo de lavar roupa suja dentro de casa. Neste sentido, foi tentada toda a sorte de comunicação com o Secretário-Geral da Fundação. Mas a certeza da impunidade fez com que a alta direção da Fundação supusesse a minha acomodação e meu amedrontamento diante de tão grandes e graves problemas, sentindo-se seguros pelo cinturão de fidelidade, apostando contra a minha obstinação ou, o mais infantil, contra a minha crença nos meus princípios. 0 mesmo aconteceu com o assunto-objeto dos dois outros livros, que a despeito de relatórios formais, e até mesmo após um rompimento verbal decretado por mim, foi objeto de descaso, tratado como se destituído de aplicabilidade de prática. Assim como na Fundação, onde recomendei o afastamento de todos os diretores, o que era considerado hipótese absurda (consumando^e mais tarde), o mesmo aconteceu em relação ao restante das Organizações Globo, onde propus a higienização, eliminando-se contrabando, sonegação, desvios de recursos para o exterior e toda a sorte de falcatruas. Principalmente, a nãomanipulação de homens públicos — defensores dos interesses da Globo. Assim como na Fundação, foi tentada toda a sorte de comunicação com as pessoas responsáveis dentro das Organizações Globo, alertadas inclusive, e principalmente, para o fato de que seriam tornados públicos todos estes assuntos, caso eles não fossem resolvidos internamente. Esgotados todos os recursos de diálogo, após haver dado ciência, por carta e telegrama da intenção de edição destes livros, a José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, Boni vice-presidente das "Organizações Globo"; a João Carlos Magaldi, Diretor da "Central Globo de Comunicações"; a
Francisco Eduardo Ribeiro, Responsável pela Auditoria de todas as empresas das "Organizações Globo"; a Nilo Sérgio de Almeida, Diretor Administrativo e Financeiro da Editora Globo, e haver mostrado intenção de ceder prioridade de edição destes livros à própria Editora Globo — desde que sanadas todas as irregularidades denunciadas; impondo, inclusive, sérias e pesadas multas caso não fossem editados tais livros —, vi-me obrigado e compelido a tornar público todos estes assuntos, através da publicação por uma editora ou editoras, que satisfizesse(m) aos meus interesses enquanto autor. Não espero nenhum grande movimento em torno da apuração de responsabilidades dos denunciados, até porque estamos no Brasil, um país de covardes e de corrupção institucionalizada. Mas o inverso, que eu seja alvo de investigação, denúncias, boatos, verdades fabricadas, e até mesmo, objeto de processo — hábito muito comum neste país colonizado por presos e degregados —, onde processa-se o acusador ao invés do acusado; e uma vez provada a acusação, não se toma nenhuma providência contra o acusado, e seus crimes considerados como Cotidiano brasileiro. Mas, ainda que demore séculos, ainda que ultrapasse o tempo da minha existência, ainda que o regime da republiqueta mude, ainda que se censure a obra, ela será atemporal e subsistirá. Enquanto a verdade do dia anunciada pela televisão, se desfará qual bolha de sabão. E a história fará a sua parte.
Antes da Primeira Auditoria Rua Jardim Botânico, 266. Para os funcionários existem: a Emissora (Rua Lopes Quintas e Von Martius), o 266 e o Teatro (Fênix). Lógico, a Globo não é só isto. Existem trocentos endereços em diversas casas diferentes. Mas a base é esta: Emissora — 266 — Teatro. Mais um dia. Igual a tantos outros, igual a qualquer outro. Passo na portaria fingindo colocar o crachá, para não ter que usá-lo, pois detesto este penduricalho. O segurança observa de longe, já sabendo que não vou colocá-lo. Às vezes, ele, o segurança, só de birra vem atrás de mim. Eu aperto o passo e tento rapidamente chegar ao elevador. Ando bem rápido, ele também. Conto com que um dos elevadores esteja no hall. De passagem, vejo o elevador de serviços com a porta fechada e um dos sociais quase fechando. Corro, seguro a porta, ela se abre. Fico de frente para o segurança. Olho para ele, de dentro do elevador. Ponho as mãos na cintura, e abrindo o paletó deixo que veja que estou sem o crachá. Rio com os olhos e fico absolutamente sério, ao mesmo tempo em que o elevador fecha a porta e sobe rapidamente ao 79 andar. Eu gosto deste jogo de gato e rato com o segurança, principalmente porque isto é super importante para ele e absolutamente desimportante para mim. E como tenho aversão à segurança tipo ordis é ordis, divirto-me sendo um equilibrista em cima do limite de legalidade e ilegalidade. Principalmente, pela atroz dúvida que o assalta diariamente: eu vou colocar o crachá ou não (Incrível ... isto é importante para ele). A minha implicância é que segurança só pára e incomoda quem não tem nada com a história. IMa Globo, por exemplo, já entrou uma velha maluca na sala do Dr. Roberto, que ninguém sabe de onde veio. Tem dezenas de ambulantes vendendo tudo: de empadinha até tóxico e contrabando grosso. Mas o segurança só pára funcionário, a trabalho. Isto acontece diariamente, mais de uma vez, pois em minhas saídas esporádicas para o almoço ou lanche a cena se repete. Às vezes com variações. Coloco o crachá na frente do segurança e, logo em seguida, ao dar as costas, finjo tirar o crachá e aperto o passo para o elevador. Ele vem seco para cima de mim. No meio do ha// paro, mexo com alguém e viro-me para o segurança, exibindo o crachá. Ele quer morrer. Olha para mim. Finge que não houve nada e fica fazendo hora. Entro no elevador e à medida que o elevador ameaça fechar a porta eu tiro lentamente o crachá, como num debochado streap-tease, e olho para o segurança interrogativamente. Chego ao 7º andar e cumprimento os habitues que chegam cedo (no horário). No primeiro salão estão os administrativos e a galera (trainees, assistente, semi-seniores, etc). No segundo salão está a elite, setor fiscal, especiais, supervisores e assessores). Ao todo uns 30 funcionários.
Coloco o paletó nas costas da cadeira, cumprimento o pessoal da segunda sala e vou papear no salão da galera. Embora isto seja muito mal visto por alguns colegas elitizados, que desconhecem o doce sabor da simplicidade e de se permitir a irresponsabilidade da vulgaridade. Brinco com a secretária (Norminha) e com o Azulão (Edson). Provoco a treinizada e inicio um barata-voa de catarse. Sento-me à mesa coletiva e começo a puxar assunto com o March, que não gosta de conversar antes de ler o jornal. E aí, para variar, e só para encher o saco, fico puxando assunto com ele, até ele não agüentar mais e fechar o jornal. O March agüenta o quanto pode. Até que desiste e resolve se vingar: — O Azulão] (Azulão é o apelido do Edson, pois todo contínuo da Globo é obrigado a andar vestido de azul.) Vai buscar um café pro Chips para ver se ele para de encher. (March apelidou-me de Chips, pois na época eu tinha uma moto com bagageiro. E com moto de bagageiro, terno, capacete e calculadora financeira presa ao cinto da calça, eu era o próprio personagem do seriado Chips ). Todo mundo gozava todo mundo, observando-se uma certa hierarquia: trainee não fala, só diz: "Sim senhor!", "Não senhor!" e "Posso ir embora?" e a lei máxima: Pato novo não mergulha fundo. Respeitando-se esta hierarquia, o riso era livre. E as gozações gerais. Lógico, existiam os preferidos: Pedrinho Bilé (puxa-saco oficial do Francisco, e cagüete contumaz); Fernando Chileno (também chamado de Que Pasa ou Repassa, pois ele não fazia o seu trabalho e sempre repassava para alguém). Gozava-se, também, os dotes físicos de cada um: March era o Velhinho; Nilo era o Careca; Alberto, o Garnizé; Luiz Carlos era o Baixinho. Todo mundo, praticamente, tinha apelido. Até Francisco, quando a galera estava com bronca, virava Chico-Peste (sem ele saber). Mas o clima era o da mais perfeita união. Broncas pessoais à parte, o clima era sempre bom. Salvo quando Pedrinho chegava, pois ninguém gosta de cagüete, ou de empregado-patrão. Parecia combinado. Ele chegava e todo mundo calava a boca, mas o riso continuava, contido. Luiz Carlos, um misto de profissional, competente e cinicamente consciente das coisas realmente importantes, só chegava atrasado. E ele conseguia, religiosamente, chegar 5 a 10 minutos antes do Francisco. Raras foram as vezes que Francisco conseguiu chegar cedo. Ele sempre chegava depois das 11 horas, e nunca pegava Luiz Carlos chegando tarde. Houve mesmo uma vez, em que o Francisco ligou de casa, umas 10 horas, e Luiz Carlos, raridade, tinha chegado cedo. Não sei porque cargas d'água, Francisco pediu para chamar o Luiz Carlos ao telefone, e, sem graça e sem assunto, começou a dar esculacho. No ato, Luiz Carlos saiu-se com uma tirada seca: "Olha aqui... eu estou no trabalho e você em casa. Eu estou trabalhando desde as nove horas e você está acordando agora. Quer dar esporro? Venha até aqui. Não aceito bronca por telefone. Bronca só ao vivo e a cores". E desligou o telefone. Sério, para, logo em seguida, imaginar a cara estupefata do Francisco, e esboçar um riso cínico de pequeno triunfo pessoal. Uma hora mais tarde, Francisco entrava bufando pela porta, carregando, como sempre, duas malas de relatórios, que ele levava para tudo que era canto, e com o paletó solto nos ombros. Gritando: — Luiz Carlos, venha cá no meu escritório. Ele ia, meio rindo, meio sacana, mas com a certeza dos que estão certo. Bronca a portas fechadas, no inicio até que ouvíamos os berros. Mas logo sumiam. E meia hora após, Luiz Carlos, com a habilidade política habitual, conseguia fazer Francisco esquecer os problemas momentâneos com os quais estava envolvido e lembrar-se dos grandes problemas envolvendo todo o staff. Aí, era sagrado, Francisco puxava o follow-up e saía cobrando. Sobrava esporro para todo mundo. Do boy ao último assessor. Numa dessas, a bronca já havia passado pelo boy, pela secretária, pelos datilógrafos, pela galera, já entrara na sala da elite, começou a sobrar para o Luiz Carlos que estava cheio de relatórios e não os liberava. Aí, a bronca foi em seqüência: Fernando Chileno, que controlava e não controlava a parte administrativa; Nilo, que estava cheio de relatórios (sem efeito) e não os colocava para fora (não os editava). E, logo, a coisa ia chegando em mim. Uma vez, entre raros momentos, vi Francisco ficar bravo com Nilo, pois Nilo era mais velho do que Francisco, e já esteve, anteriormente, em cargo superior ao dele (quando éramos da Boucinhas, Campos, Coopers and Lybrand Auditores Independentes). E Nilo era uma espécie de ídolo do Francisco. Pois bem, naquela oportunidade, Francisco esbravejou: — Porra, Nilo! Não sei porque você está com estas merdas destes relatórios e não edita. . . (Não sei porque, mas o coloquial do tratamento parece, às vezes, vulgar e infantil, ou infanto-juvenil. Mas, a despeito deste tratamento, a postura era rigorosamente profissional.)
Nilo retrucou: — Mas, Francisco... Só tem relatório bobo e ponto babaca. Para editar troço sem efeito é melhor não editar. Você acha que eu vou mandar um Sumário Executivo pro RIM (Roberto Irineu Marinho) e RM (Roberto Marinho) sem efeito? Francisco: — Sem efeito é o cacete! Você é que está ficando velho e não quer levantar o rabo da cadeira. Daí, fica serviço sendo feito nas coxas, sem supervisão. E vocês passam por cima dos elefantes e não enxergam. O diálogo era duro, rasteiro, mas objetivo, eficiente e franco. Ninguém mandava ninguém às fezes. Era à merda, mesmo. E nem esbravejava: — Caspite! — Era um bom e sonoro: — Porra! — Machado! (Meu nome de guerra), o que você está fazendo? Pronto! Sobrou pra mim. Retruquei: — Estou com um effective-ness para fazer. Tenho dois relatórios de serviços especiais. Estou preparando testes para candidatos, e tenho que preparar material para treinamento, além do serviço todo da parte fiscal. No duro, isto não era nada. Era o meu refresco quando não estava à mil por hora, envolvido em operação pega-ladrão e apaga-fogo. Francisco: — Pára com tudo isto e pegue um dos serviços do Nilo. O Luiz Carlos também. Chileninho também. Cada um pega um trabalho e eu quero ver isto pronto para ontem. Vamos dividir o serviço e vocês que se virem. Quero tudo pronto até o fim da semana. Para mim coube: — Fundação Roberto Marinho. Histórico da Fundação: trabalho feito há vários anos. Nunca teve problema. Tem auditoria interna (da Globo) e externa. É fiscalizada pelo poder público. Tem tudo controlado. Nunca houve um ponto grave em relatório. Os relatórios dos anos anteriores eram de uma folha só. Ou seja, empresa sem problema nenhum. Nilo: — Machadinho, meu amigo (em tom de deboche), vais pegar um servicinho beleza. Nada para fazer. Nada para relatar. Falei pro Francisco: — Vou levar dois auditores da equipe especial. Tudo bem? Francisco: — Porra nenhuma! Programe a equipe especial para outro serviço. O serviço da Fundação é babaca e você faz até sozinho em menos de 24 horas. — Faço em 5 minutos — retruquei. — É só copiar o relatório, de uma folha só, do Nilo. Agora, se você quer um troço direito, deixa eu fazer ele direito — disse, malcriadamente. Francisco: — Está bem! (O Francisco nunca teve muita paciência para discutir comigo.) Vá até lá e veja o que precisa. Mas se não der nada você vai compensar as horas perdidas com a equipe. — Tudo bem — falei. Já estava habituado, e compensar era trivial-simples, pois trabalhávamos em ritmo louco, quase sem tempo para almoçar. Na maioria das vezes sandubando, ou então comendo em cima da mesa de trabalho. Trabalhando até às 11 horas, meia-noite. E o pior, declarando no Time-Sheet que só trabalhávamos 8 horas por dia (para dar exemplo e não criar contingências trabalhistas, justo dentro da auditoria). Saí da sala e ao atravessar o salão da galera, March, que vivia sentado à mesa coletiva, ironizou: — É, Chips, quero ver é agora. . . Fazer altos relatórios com a tua equipe especial e equipe fiscal é mole . . . Quero ver fazer altos relatórios num trabalho feijão com arroz. — O March, — retruquei — até parece que você quer nivelar por baixo. Você duvida que eu vá lá e arranque mais do que num serviço especial ou apaga-fogo ou pega-ladrão? Isto é igual ao caso do cara que era vendedor de sapatos e foi mandado para uma visita a uma tribo africana. Ele voltou e disse que era impossível vender sapatos, pois lá ninguém usava sapato. Todos andavam descalços. Enquanto que um colega seu, com a mesma incumbência, mandou um telex de resposta: "Estou vendendo tudo que é sapato, pois aqui todos andavam descalços e eu estou calçando todo mundo". E, em auditoria é assim: nunca vi empresa sem problema. E quando não aparece problema, é sinal que há encrenca braba. É uma questão de ponto de vista — completei. — A mesma coisa pode ser vista de mais de uma forma, É visão ou miopia. E sabe do quê mais, velhinho? Vá procurar sua turma. Vá arranjar um trabalho. Veja se sai daqui do escritório, que este negócio de auditoria com o rabo sentado na cadeira nunca deu camisa a ninguém. E você está ficando com, craca no rabo de fazer auditoria da BEC e Starlight aqui no Brasil, sem nunca saber como são as coisas lá nos Estados Unidos. Nisto, vem entrando o entregador de malotes (Lessa), que traz sempre escondido, numa segunda sacola, vários tipos de sanduíches e salgadinhos para vender de sala em sala. E o March,
no ritmo, pega o maloteiro: — Aí, ô do malote! O que que leva dentro? Vende um sanduba pro Chips que o mal dele é fome. E eu tô aturando um papo de maluco aqui que não é mole. — Olha a brincadeira, seu March. — Disse, humildemente. — Dentro eu não levo nada, não senhor. Na sacola tem sanduíche de ovos mexidos, pasta de atum, bolinho de carne, e empadinhas. Vai querer? — Perguntou, olhando para mim e pro March. — Nem pensar — falei. — Sanduíche de ovos repugnantes, sardinha espremida com maionese, boi ralado e empada que sobrou do restaurante da Central. Prefiro ir "sandubar" na padaria — disse em tom de brincadeira. — Aí, Chips! Vamos comer, que teu mal é fome. Quem sabe, depois do almoço, você consegue ir na Casa do Bispo (Sede da Fundação) e ficar tomando chazinho com biscoitinho com o Jair Lento (Diretor Financeiro) e depois dizer: nada a comentar ... nada a relatar. Está tudo em ordem. — Insistia o March, no firme propósito de provocar-me a todo custo. — O, March . . . Deixa eu sair. Eu vou almoçar decentemente no Hotel de Trânsito (da Marinha). Vou até a Fundação, e vou fazer um trabalho como você nunca viu. Vai ser tão bom que você até vai ter o que fazer: conferir a datilografia do meu relatório. Tchau e bença. — Encerrei, como quem não quer mais aquele tipo de conversa e está se preparando para encarar as coisas com a seriedade necessária. Embora possa parecer o contrário, mas nós tínhamos uma necessidade quase que mórbida de sermos e nos tratarmos de forma vulgar e coloquial, quando em nosso ambiente de trabalho, no escritório. Quando no desempenho das funções de autoditor - auditando empresas — éramos sérios, frios, formais, e absolutamente distantes e imparciais no trato com pessoas. Creio que isto era uma compensação, ou "válvula de escape" para a pressão a que éramos submetidos.
A Primeira Auditoria A vida de auditores é sempre ingrata. Em geral você é odiado por onde passa. Todos desejam muito mal a você. Ninguém gosta de um auditor. Com raras exceções, só suas mães lhes são caras (a alguns nem isto). Talvez por isso o auditor guarde um incomum e solitário senso de humor, e excessivo instinto de auto-recreação; rindo, permanentemente, de sua própria desgraça, e fazendo piada de tudo que lhe seja adverso. Particularmente, eu tinha até um certo receio em ficar endurecido e "perder a ternura'" E de que, anos e anos a fio fazendo quase que sempre a mesma coisa, tornasse-me automático e insensível. Eu sempre me policiei muito para não me distanciar da condição de ser humano. Ou seja, eu não queria que fosse normal e trivial descobrir a falcatrua, desvendar intrincados rombos e trambiques, e viver jogando pólo-diretor (esporte que se resume a bater em baixo e ver o diretor cair) ou como era comumente chamado: "pega-ladrão". Mas fazer auditoria, na Globo, e não pegar ladrão era quase que impossível. E, às vezes, eu me perguntava: Para que tanta técnica? Para que tanto estudo tributário? Para que refinado Management, Business and Administration, se na Globo a coisa era policialesca e rastaqüera? Era como pescar num barril. (Bem parecido com um país chamado Brasil.) Eu questionava muito esta condição de auditor-policial, vez que toda técnica e estudo de auditoria eram violentamente desvirtuados para um imediatismo policialesco. E esta, positivamente, era uma condição que me incomodava muito, motivo de longas brigas minhas com o Francisco. Lutar contra a maré?. Sempre! É difícil você colocar ordem no desordenamento institucionalizado. É como pregar no deserto. Certas coisas são possíveis ou não em função de quem faz. Ou seja, a administração, na Globo, é totalmente pessoal (o que contraria tudo que é norma ou técnica); uma determinada coisa pode ou não ser aceita, unicamente, em função de quem pratica a ação. Dois exemplos clareiam bem este assunto. 0 primeiro é o "caso do Jaboti" e o segundo, o da impunidade". Certa feita, após concluir brilhantemente um trabalho, um colega vem me prestar contas do serviço, que supúnhamos arrasador. Entretanto, frustrado, disse ele que a coisa dera em água.
— Mas como? Nós temos tudo provado, constatado. . . Como? — Eu estava estarrecido. Ele então esclareceu: — Quando eu falei com o diretor envolvido, ele me esclareceu calmamente: "O que você faria se visse um jaboti em cima da árvore?" Respondi: "Sei Ia', uai..." E o diretor: "Não. Não é isso. Você deve dizer: 'Jaboti não sobe em árvore. Quem será que colocou o Jaboti na árvore?' Lembre-se: aqui na Globo é mais importante saber quem colocou o Jaboti na árvore, do que o fato do Jaboti estar trepado nela." Mais tarde pude constatar a religiosidade desta regra, na Globo. O segundo caso é de um outro auditor, que eu havia encarregado de uma revisão fiscal e que deixou passar um "ponto" enorme, envolvendo uma fantástica contingência fiscal. Nota: Contingência, em auditoria, é algo sobre o qual pesa o risco de vir a ser pago um valor por uma irregularidade. Fui igual a uma fera para cima dele: "Como? Mas como você não viu um troço deste tamanho? Como você pode engolir uma mosca assim?" E ele, calmo como um monge: "Ué, nós não estamos impunes!'" "Impune é o cacete. Nós não estamos impunes e nem imunes. Eu não aceito este tipo de brincadeira", adverti seriamente. Ele, sem perder a calma: "Você é engraçado. Quer descobrir uma coisa errada, que não será consertada, nem sequer levada em conta. Ou melhor; quer saber o quanto seria devido pela contingência se nós fôssemos pagar o que nunca pagaremos. Não é melhor abandonarmos isto e pegar desvios, roubos, falcatruas, etc, que dão mais ibope no relatório, e dão demissão?" A minha vontade diante do real era de chorar. Era duro constatar no que estávamos nos transformando. E, o pior, era real. Era duro ter que dar razão à retilinidade do raciocínio dele, e á cruel prostituição de nossas funções. Respirar. Engolir. Respirar. Ir em frente. Minha vida não era muito diferente da dos demais mortais. E era o bastante. Vivia, profissionalmente, no mundo da televisão, mas com grande ojeriza pelo meio artístico. E em minha privacidade era cinófilo, ou "cachorreiro". Muito embora nada tenha a ver uma coisa com a outra, pude experimentar, de perto, a proximidade e a fusão destas vidas; e como a proximidade delas influir no meu comportamento. O Jornal Nacional noticiava uma "ilha de tranqüilidade", é não tocava nos assuntos censurados e proibidos. Era fim de ditadura. Porém, a coisa estava na base do vira-não-vira, temgolpe-não-vai-ter-golpe. É hoje. É amanhã. Os militares estão unidos e coesos. Correi. (Este era o clima.) Fora do campo profissional, minha vida particular tinha pouca variação: Não confiava em ninguém, a não ser nos meus cães. (Um canil de fila brasileiro. Cães extremamente fiéis para comigo e violentamente agressivos para com terceiros.) E justamente este hobby cinófilo complementava um quadro bastante eclético e altamente bizarro. Permitia a tranqüila convivência, por exemplo, entre um torturador e um torturado; um terrorista de direita e um terrorista de esquerda. Neste brasileiríssimo ambiente surrealista convivia tranqüilamente no meu universo particular; — HNRB, ou Prof. Reis, ou Reis Júnior, ou Doutor Reis, ou o terrível Dr. Barreto. Matador frio, responsável pelo extermínio de dezenas, talvez centenas de "ladrões", "assassinos" e "inimigos do regime". Hoje, anistiado pela "anistia-recíproca", H. exerce, tranqüilamente, suas atividades "profissionais". É dono de uma personalidade incomum, capaz de apostar gratuitamente sua vida contra a de um marginal, e de entrar na Rocinha ou Cidade de Deus debaixo de cerrado fogo cruzado e avançar celeremente até arrancar, sozinho, o marginal de dentro de seu barraco. (Isto, para ele, é a glória.) Sua maior satisfação é a caçada humana, apostando sua própria pele nisto. De preferência, sozinho. Sua maior irritação é prender bandido e ter que dá-lo de presente a delegado high-society para posar para fotografia do jornal do dia seguinte. Amigo fiel, prometia que, em nome desta amizade, caso o regime virasse novamente e voltasse à tortura, eu e Andréa teríamos um fim indolor. (Isto, para ele, era uma grande prova de "lealdade" e "amizade".) Chamava-me carinhosamente, de "guerreiro". (Pela minha "capacitação" ideológica e política, por eu ser pára-quedista militar, com curso de comando, guerrilha urbana e na selva, e por curso militar de sobrevivência.) Ele tentava a todo custo, e sem sucesso, saber das
notícias off da Globo, e em transformar-se em mais um extrema direita. Era criador de fila brasileiro, dono do Canil Xambioá (nome bastante sugestivo). — Andréa Blumen, ex-Déa Duarte. Terrorista. Trotskista. Militante torturada no Recife, trocou de identidade no Rio de Janeiro. Hoje chama-se Andréa Blumen. Era criadora e juíza de fila brasileiro, dona do Canil Curumaú. — Walter Jacarandá. Torturador, preso e identificado por suas vítimas. (Pouco discreto e pouco prudente.) Criador de boxer, dono do Canil Morumbi. (Se fosse criador de fila, teria mais sucesso; pelo menos como torturador.) — Chacal (Por motivos de segurança, prefiro não identificá-lo nominalmente, assim como a outros exterminadores profissionais, cujos codinomes não quero citar.) Exterminador frio, agia sempre como agente infiltrado na esquerda. Junto com Reis Júnior desmontou vários aparelhos. Carrega um sem número de mortes nas costas. É handler de cães de luxo. — José Sales e Regina Rache. Membros ativos e Iíderes de extrema esquerda. Segundo Dr. Barreto, agitadores profissionais e de altíssima periculosidade. Criavam fila e bulldog francês, eram donos do Canil Luxemburgo. — Marlize K. de Biase. Militante superativa de esquerda. Junto com José Sales e Regina Rache era, segundo Dr. Barreto, pessoa muito perigosa para a estabilidade do regime. Em caso de golpe, deveria ser neutralizada de imediato. Criadora de fila, dona do Canil Jiruá. — Comandante Paulo. Único da "curtíssima" lista que não morava em Jacarepaguá. Era comandante do Forte, em Niterói. Sua única aparição pública foi na capa da Veja e Isto é, posando ao lado de Alexandre Baumgarten, na traineira Mirimi. Foi "transferido" para o Amazonas e afastado do centro das atenções do Caso Baumgarten. Criador de fila brasileiro. Conforme podem ver, tudo gente fina, da melhor qualidade. Não era à toa que o maior centro de tortura ficava situado em Jacarepaguá, na estrada do Pau da Fome, mais precisamente no Sítio do Manoel Português. Local das maiores torturas do regime militar, de onde as pessoas saíam de barriga aberta (para não boiarem) para serem jogadas, de avião, em alto mar, próximo da restinga da Marambaia. Quer dizer: minha opção de vida era ótima. Ou Globo ou cinofilia. E a diferença era muito pouca. De certa forma, eu invejava àquelas pessoas comuns que trabalhavam normalmente, tinham amigos normais e ignoravam a luta do dia a dia do País. Pessoas que só conhecem a história oficial do Jornal Nacional. É bom que se diga que a lista de "notáveis" não parava aí. Ao contrário, é extensa. Só estou citando alguns poucos "cachorreiros" de Jacarepagua cuja proximidade era inevitável, assim como o convívio, e pelo exótico, grotesco, e surrealista da questão: em que ficavam sentados, frente a frente, na mesma sala, na mesma casa, torturador e torturado. A ponto de eu imaginar: só no Brasil. Um dizia, como quem vai à padaria: "Com licença que eu vou telefonar." A uns 5 ou 6 metros conspirava. Outro disfarçava, e recebia visitas estranhíssimas de alcagüetes e entreguistas, e contra-conspirava. Tudo isso a pouquíssimos metros um do outro. Como a coisa ficava muito brasileiramente descarada, eu escrachava: "Bom, você já deu sua conspiradinha, já armou seu cirquinho. Tudo bem. E você, que já telefonou para Brasília, já infor-mou aos órgãos de segurança, e já armou o desmantelamento da panfletagem e o incêndio do jornal e das bancas, agora vamos conversar sobre coisa séria: Vamos falar sobre cachorro." (Aí o papo rolava solto.) Eê, Brasil! De volta ao ambiente de trabalho, a coisa fluía como um colírio para os meus olhos irritados. Era aquele ambiente de descontração, ainda que houvesse pressão e muita marcação. Mas quanto maior fosse a carga, mais doce seria o deboche. (Era uma necessidade compulsiva de escracho.) — Miguel (Duarte) —, que estava fora por vários meses, ouvia o pedido do Francisco — preciso com urgência, desesperadamente, que você me faça mais este outro serviço fora. (Mais um mês fora, sem ver a mulher e a filha.)
— Tudo bem, Francisco. Minha filha, quando eu cheguei em casa da última vez perguntou para a mãe: Mamãe, quem é esse moço? Agora eu chego em casa e digo para a minha mulher que vou passar mais um mês fora.. . ela vai querer se separar de mim. O Danilo, que vinha passando, interrompeu: — Pode deixar, Miguel (Duarte), eu assumo a paternidade e a patroa. Você não está dando assistência à comadre, mesmo. Deixa que eu tomo conta. Antes eu do que o Ricardão. — Tudo bem — retruca o Miguel (Duarte) —, pode tomar conta. . . Guardar mulher com você é como guardar dinheiro em banco suíço. . . Ninguém toca, principalmente você que é totalmente inofensivo. A galera se deliciava com o pingue-pongue rápido. O jogo de cintura era o trivial simples. E isto é um tipo de "cultura" especial, chamada de "hora de esquina" e "tempo de janela'" Apesar do ambiente relaxado, eu estava irritado. Tinha ido à Fundação e não havia arrancado nada do Jair Lento. Ao contrário. Ele, com pouca habilidade, havia tentado me enrolar — o que me irritara profundamente. E, para irritar-me mais ainda, colocou duas outras barreiras: fez com que eu ficasse esperando uma infinidade de tempo (o que deu-me a oportunidade de fazer "auditoria de cafezinho" e bate-papo) e se posicionou como doutor Jair (que para ele era um belo de um cartão de visita), e não como major Jair. — Francisco — falei.—, tem bronca braba no ar. — Lá vem você com suas teorias — retrucou o Francisco. — Mas é claro, cara. Veja bem. — Ele me fez esperar mais de uma hora. Jogou conversa fora por mais outra hora; tentou me impressionar mostrando conhecimento do serviço dele e, principalmente, do meu. E, por fim, veio com tudo pronto. (Baseado no que o Nilo pedia sempre.) Resumindo: gastou 4 a 5 horas do meu tempo, para me dar, de mãos beijadas, um serviço pronto. — E daí, Machadinho? Quer dizer que só porque o cara se apresenta como doutor já é sinal de fraqueza de personalidade? Que o fato de ele ter feito você esperar, te irritou? E só porque ele tinha tudo organizado para atender ao seu pedido isto era suspeito? — Vamos por parte. Se apresentar como doutor já é um grave sintoma de desvio de personalidade. É o primeiro sintoma de ocultação de fragilidades e inseguranças pessoais. Todo sujeito que põe uma barreira e se recusa a conversar de igual para igual com quem quer que seja é um portador de um caráter em desvio. — Você está sendo genérico e radical. Olha o "Doutor-patrão" — retrucou o Francisco. (Lembrando a figura do Doutor Roberto.) — Genérico, porra nenhuma. Quanto ao Dr. Roberto, eu não quero nem comentar para a gente não brigar. Mas é óbvio que isto implica e envolve "trocentas" questões sociais e psicológicas. Envolve reis, príncipes, nobres, parlamentares, juizes, militares, ma-çons, imortais iletrados e todo mundo que se fantasia. — Lá vem você e suas teorias inéditas. Não dá para a gente conversar só sobre auditoria? — Você é quem quis saber o porquê da minha observação. — Vamos lá. Direto ao ponto. Da forma que eu gosto. Sem rodeios! — Questionou-me. — Tudo bem! Você não quer entender, então tá! Eu não estou dizendo que todo doutor é maluco ou tarado. Eu estou dizendo é que todo cara que faz questão de se apresentar como doutor, excelência ou qualquer título honorífico, ou se veste com paramentos, é um anormal. Você acharia normal você se apresentar como Doutor Francisco Eduardo, ao invés de, simplesmente, Francisco Eduardo, sem o doutor? Você se fantasiaria como um membro da academia brasileira de letras, cheio de paramentos? Já pensou você desfilando no chazinho das cinco: 'E agora Doutor Francisco Eduardo, no seu novo modelito fardão-ave-do-paraíso. . .' Existe troço mais escroto do que uma medalha no peito? Existe troço mais ridículo do que um cara de toga e cabeleira postiça? E esta merda de gravata que nós somos obrigados a usar? Tem paramento mais estúpido do que uma gravata? — Isto dá até teses de doutorado: A importância da gravata no desenvolvimento das amebas na América Latina. — Peraí, Francisco. Quem quiser que assuma as suas anormalidades. Mas não me venhas de borzeguim ao leito. Isto que eu estou explicando é bem diferente do que você, de sacanagem, não quer entender. O ponto é: 1) Ele não é o Jair Lento. É o Doutor Jair. (Isto para mim é pior do que ficha suja de delegacia.) 2) Tentou gastar meu tempo, sabendo que nós
trabalhamos com tempo contado. 3) Apresentou tudo certinho. O que, para mim, é gravíssimo. Nada é mais errado do que tudo certo. 4) Aposto minha vida no meu faro. Meu feeling indica fortemente para uma grande falcatrua na Fundação. — Tá legal — disse o Francisco — e dai? O que você sugere? — Indagou, meio descrente. — Vou dar corda para ele se enforcar. — Disse, como quem arma algo cujo resultado já sabe. No dia seguinte fomos à Fundação, eu e minha equipe. Providenciei acomodações para o pessoal, e fingi pouca importância no serviço, indo embora antes do almoço e deixando a equipe instalada. Porém, não sem antes alertar aos auditores que eu não queria auditoria formal, e sim "auditoria de observação". E que, após o expediente da Fundação, eu os estaria esperando no escritório do 266 para reorientação geral sobre o que, como e onde auditar. Como que para corroborar integralmente com o que eu havia esplanado anteriormente, a equipe ratificou ponto por ponto o perfil que eu havia traçado do Jair Lento. E mais, mostrou outros erros mais contundentes. Ou seja: as "acomodações" foram retiradas, e a equipe foi colocada em duas mesas no corredor, com tudo devassado (pasta, papéis de trabalho, documentos, etc.), e foi dada ordem expressa, pelo próprio Jair Lento, para que todo documento só fosse entregue à auditoria em xerox, e não em original. Com isto, ele pretendia constranger a equipe, colocar tudo que era empecilho, mostrar força, e desgastar, pela irritação, a todos. Pois cada vez que um auditor solicitava um documento, administrativo, contábil, ou fiscal, tinha que preencher uma requisição solicitando o documento, requisitar uma xerox, e, finalmente, no dia seguinte, a cópia de tal documento estaria à disposição da auditoria. Quer dizer: o prazo que nós tínhamos iria estourar, e o fim do serviço iria para as "Calendas Gregas". — E agora, Francisco? Tenho ou não razão em ir fundo neste trabalho? Tenho ou não razão em achar que tem bronca braba no ar? — Indaguei, pedindo confirmação de minhas suspeitas. — É... tá certo, Machadinho. Vai fundo e peça o que for preciso. Eu nunca imaginei que ele (Jair Lento) fosse tão burro. Ele praticamente atraiu para si a auditoria. — Francisco.. ., o cara passou muito tempo envolvido com cavalos, ordem unida, autoritarismo, impunidade, etc.. . Não tem nenhum preparo para dirigir uma empresa. Que dirá uma Fundação. (No duro, Jair Lento estava trombando com a única entidade que não se deve trombar dentro da Globo.) — É..., concordo. . . — E agora? O que você pretende fazer, Machado? — Vou instruir e preparar a equipe, para que eles possam trabalhar sem se irritar, e vou a São Paulo assuntar o resto, mas sozinho. — Mas você acha necessário ir a São Paulo sozinho? — Claro. Já que ele colocou este empecilho, vou botar todos os auditores para auditar por bate-papo aqui no Rio. Vou querer todo mundo conversando. Batendo papo com os diretores, com a telefonista, com os boys, com os seguranças, com as secretárias. Quero todo mundo sem lápis e sem papel na mão. Quero conversa de almoço, de cafezinho. Enquanto isto, eu vou a São Paulo, e passo uma semana avaliando os dois maiores departamentos da Fundação: Educação e Televisão. Na volta eu te dou um retorno. As histórias da semana, no Rio, haviam sido hilariantes. O Jair não assimilou bem o golpe e perdeu-se ante a postura da auditoria, a ponto de tontear e enfeixar todas as informações, centralizando tudo nele. Tentando evitar que seus funcionários dessem informações desencontradas. Enquanto isso, a equipe, previamente preparada, dava uma no cravo e outra na ferradura. Levantou quem era quem, traçando o perfil de cada um. Quem fazia o quê. Quem não se topava, e começou a montar a rede de informações, para que eu as negociasse da forma como eles sabiam que eu fazia. Em São Paulo tudo havia corrido às mil maravilhas. Conversei com o Calazans Fernandes, diretor responsável pelo Departamento de Educação, que se prontificou a historiar a Fundação desde os primórdios da Rio Gráfica Educação e Cultura, seus períodos de penúria, suas faltas de verba cíclicas, suas demissões e admissões temporárias, e suas dificuldades generalizadas. Calazans fez questão de deixar bem claro sua condição de fundador e "Provedor de recursos oficiais da Fundação", achando, inclusive, que não era justo que desse um duro danado para arrancar suadas verbas no MEC, para manter a Fundação (São Paulo), enquanto que os
parasitas (diretores) do Rio não faziam nada e também eram sustentados pelas verbas que ele obtinha. Ou seja: ele, arrumava verbas para a Tele-Educação (São Paulo) e para as reuniões de "canapés e biscoitinhos" (Rio). Conversei com outras pessoas, e fiz várias entrevistas com os principais responsáveis pelo Depto. de Educação. Conversei com o Nelson Santonieri (o executor técnico das idéias do Calazans). Fiz uma longa entrevista com a Sylvia Magaldi (a grande orquestradora e cérebro da tele-educação e dos multimeios). Até mesmo tentei uma "ponta-de-lança" com a Sandra, que na época, era a Gerente Administrativa, e embora fosse radicada em São Paulo, funcionária do Rio de Janeiro. (Mais tarde, Sandra foi demitida pelo Jair Lento, por ter deixado vazar informações para mim.) Ainda naquela semana, aproveitando a estada em São Paulo, fui à Santana verificar as condições do estúdio de televisão e fazer uma análise de escopo genérico no Departamento de Televisão. O papo com o Diretor do Depto. de Televisão, Jorge Matsumi, foi bastante esclarecedor. Pude constatar as dificuldades de produção e as inventividades utilizadas para se levar a efeito uma gravação, em principio simples; mas que, segundo Matsumi, toda vez que queria fazer alguma coisa correta e dentro das normas, era incentivado exatamente para o lado oposto. — Veja bem, Machado, nós queremos contratar os funcionários de forma legal, com tudo que é direito; com as garantias sindicais e trabalhistas. Vem o Jair e manda a gente não registrar os caras, para não ter contingência trabalhista e arranjar notas em substituição aos serviços de mão-de-obra. Aqui é tudo ao contrário: o artista trabalha, mas quem recebe é uma loja de material. O material de cenário sai em nome de uma firma de prestação de serviços. E por aí vai. Não tem nada certo. Quer ver um exemplo? Veja as instalações de Santana (Rua Francisca Júlia) e o estúdio de gravação. Se eu pedisse ao Jair, como eu pedi, ele negaria a verba (como negou). Mas tem que gravar, tem que fazer o programa, tem que ter espaço para a produção, tem que ter mil coisas que ele não entende porque não conhece televisão. Aí, o que eu faço? Invento notas e despesas e faço o que eu quero. Está vendo as instalações? Eu construi e/ou reformei quase tudo. Se eu quisesse roubaria para mim como todo mundo faz. Eu não sou mais honesto do que ninguém, mas a burrice da administração empurra a gente para o ilegal. Quer ver um exemplo? Eu sugeri comprar uma câmera de gravação para pagar em quatro vezes. A câmera custava 100 e ia ser pago em quatro parcelas de 25. Sabe o que o Jair fez? Negou. Daí, eu perguntei pro Jair: E alugar pode? Ele respondeu: Pode! Daí, eu aluguei a câmera por 25 mensais, e ao fim de quatro meses a câmera estava paga. E, como o Jair disse que a Fundação não poderia ter ativo fixo, só alugar, eu peguei a câmera para mim, pois estava sem dono, e continuei alugando esta mesma câmera para a Fundação. Só que isto, eu não oculto de ninguém. Não tenho culpa de não haver controle e administração na Fundação. Aqui é uma zona de desorganização, e o cara que deveria entender disto é um militar imposto por um outro militar (Coronel Paiva Chaves. Aliás, apelidado de Paiva Chivas), que não entende nada de administração e finanças, que dirá de televisão. — Concluiu, zangadamente, Jorge Matsumi. Tive oportunidade, ainda, de discutir, com alguma profundidade, com o Gerente de Produção, Hugo Graff, e com dois outros diretores de televisão: Hugo Barreto e Carlos Justino (Carli-nhos). Voltei para o Rio, estupefato com a babel que era a Fundação, e espantado com o altíssimo grau de desorganização. Aquela altura já me indagava se era um caos proposital e conveniente, ou era uma burrice acidental. A sensação era, descrita anteriormente, do vendedor de sapatos diante de uma tribo descalça. Ou seja: os dois maiores departamentos da Fundação, justamente o que providenciava os recursos e o que gastava, estavam virgens em termos de auditoria e na mais completa desorganização. Era inacreditável que isto estivesse ocorrendo, mas era verdade. De volta ao Rio, segunda-feira, era dia de todos estarem no escritório para avaliação do serviço e novas redistribuições de tarefas. Era dia de injeção de ânimo, e uma catarsezinha de uma a duas horas, e de muita expectativa para mim. Quase não dei atenção aos colegas. Observava, de longe, as farras, as brincadeiras e as gozações, e quase não falava, como que para não deixar transparecer o meu pensamento. Sim, pois, o caos da Fundação era muito superior às minhas expectativas, e eu tinha medo de pensar no assunto e alguém ouvir meus pensamentos.
Como de hábito, chamei o Luiz Carlos para um cafezinho na cozinha. Eu não gostava de ser visto segredando com o Luiz Carlos, pois logo os outros iriam achar que estávamos tramando algo, devido à nossa pecha de "politizados"' e pela grande influência de amizade que tínhamos com o Francisco. Era comum a minha confidencia com o Luiz Carlos, eu admirava bastante sua linha e conduta profissional. Ele é um dos mais competentes e equilibrados auditores que conheci. Neste meio, onde a acuidade, sagacidade e inteligência contam ponto, você só se faz respeitar e só respeita outro profissional se ele for um ótimo técnico. E esta era a linha direta e meu canal de ligação imediato com ele. Assim, antecipei ao Luiz o ocorrido, e ansiava pela chegada do Francisco, para desmantelar alguns serviços bobos em andamento e requisitar uma grande equipe para a previsível grande massa de informações que iríamos ter. Procurei saber, por alto, como havia sido o trabalho da equipe no Rio, mas não queria reorientar o serviço, de imediato, pois eu tinha mil planos na cabeça e não queria que vazasse nada. Estava ansioso e não queria antecipar coisa alguma sem antes discutir com o Francisco. Mas, apesar disto, ria das brincadeiras do pessoal, principalmente do Danilo e Miguel (Duarte), que nasceram para gozar um do outro. (Era a baixaria fundamental.) O Miguel inventava mil histórias sobre o Danilo, e ambos rememoravam histórias do Paraná da Foz do Iguaçu, das fazendas do Dr. Roberto no pantanal, e das bravatas de cada um. Pareciam colegiais em férias. Vê-los assim, difícil seria supor que por detrás de toda aquela peraltice estavam escondidos profissionais da maior seriedade. O March, em seu canto de observação, não falava com ninguém. Olhava interrogativamente para tudo aquilo e, numa das passagens de olhos por mim, notou algo errado: — Chips. O Chips. Vem cá. — Não quero papo — respondi. — É sério, preciso da tua ajuda. Venha cá. Não é brincadeira não. Ao aproximar-me, ele se tornou solene: — Acertou na mosca em São Paulo, não é? — Não quero papo, March. — Tudo bem. Tenho certeza que perdi a parada. Já vi pelo movimento da galera que o trabalho da Fundação vai estourar, e pelo teu silêncio, vejo que o negócio em São Paulo foi bom e que a coisa vai longe. Mas não é sobre isto que eu queria falar, não. O papo é outro. Eu quero uma idéia sua. Como você é um cara que vive dando idéias e tem uma cabeça ótima, eu queria uma idéia sua. — Qual é? É sacanagem...? — Perguntei — Não. Não é nada disso — falou —, é sério. Eu e o Pedrinho estamos com um problema com um arquivo de fitas e a gente não sabe o que fazer com ele. Você poderia dar uma idéia do que fazer, ou de como abordar o ponto? — Para você e Pedrinho? — Perguntei. — É. Nós estamos fazendo um serviço juntos — ele completou. — Nem pensar. Eu quero que vocês se danem — respondi, já saindo (irritado). — Peraí, Chips, é para mim. — Ele reforçou. — Tudo bem. Qual é o caso? Mas é para você, heim! — É o seguinte: nós estamos fazendo um. . . — Nós? Você e o Pedro? — Peraí, Chips. É para o Pedro também, mas é principalmente para mim. Larga mão de ser bobo e de implicar com ele. Você e o Luizinho vivem de guerra com ele. Pô. . ., refresca o cara. Esquece que ele está na jogada. Faz de conta que ele não está neste serviço. — Explicou o March. — Tudo bem. Mas o ponto é para você. Eu não vou dar nada de bandeja pro Pedro. — É o seguinte: há um arquivo de fitas. Imagine o CEDOC (Centro de Documentação). O que você faria se fosse o dono e estivesse aquilo tudo parado? Você tem alguma sugestão de como melhorar, aperfeiçoar ou criar algo em cima? — Eu faria um museu." Respondi, no ato,curto,seco e grosso.
— Porra. . . Um museu? Você está de sacanagem, Chips. Eu estava aqui te elogiando dizendo que ia pedir uma ajuda sua pois você é um cara com a cabeça a mil, sempre com idéias incríveis, e você me vem com uma idéia de Museu? Você está de sacanagem comigo. . . — É o seguinte, March. Imagine o primeiro museu da televisão, mostrando como se faz televisão. Mostrando a evolução da televisão no Brasil e no mundo. Mostrando as evoluções dos aparelhos de TV. Enfim, com tudo sobre televisão. E, haveriam vários displays, tipo daqueles que se usam em Shopping Centers, para você se localizar, e que seriam acoplados a vários micros, que dariam a você toda sorte de informações: por ano, por tipo de assunto; enfim, de todas as formas. E você poderia solicitar para assistir qualquer assunto em cabines especiais de vídeo. Por exemplo: Você poderia digitar o ano de 1966 e veria no"menu" do micro tudo aquilo que constasse daquele ano, e você escolheria o assunto. Ou então, você daria o assunto, por exemplo, o "Festival da Canção", e veria no "menu" os vários anos para você escolher qual deles. E, assim por diante. Sendo que você poderia assistir lá no Museu, como numa fonte de consulta permanente, ou poderia comprar uma fita copiada pela Globovídeo, sobre qualquer assunto em arquivo no Museu. Já imaginou? O Dr. Roberto iria ficar super-vaidoso com o Museu. O arquivo passaria a ter uma situação prática. Daria emprego para muita gente. Seria auto-sustentável, e a Globovídeo faturaria uma nota. . . — Pô, Chips, você é realmente incrível. Uma idéia dessas em um minuto. É realmente "du-cacete" esta idéia de Museu. — Tá legal, March, agora o ponto é seu. — Meu é o cacete, eu vou falar com o Francisco. Nisto vem entrando o Pedro, e March o chama à medida em que eu vou saindo. Meia hora depois, March me procura novamente, irritado, dizendo que o Pedro não havia gostado da idéia. Eu ri, e disse: "Não liga não, ele está certo". Esta idéia do Museu da Televisão foi levada por mim, mais tarde, pessoalmente, ao Magaldi e ao Boni, e foi recusada. E todas as recusas tiveram "sólidos" e "bons motivos". Pedro não topou porque a idéia não era dele. Magaldi não topou por estar "fora dos objetivos" da Fundação Roberto Marinho. Boni não topou por ser algo muito lucrativo para a Globo-vídeo, e ele não tinha nenhuma participação na Globovídeo. Pena não ter ninguém defendendo os interesses do dono. Francisco chegou, e a lista de interessados em falar com ele era grande, e todos disputavam a preferência. Cada qual justificando a sua urgência. Uns tinham que viajar, outros tinham reuniões marcadas. Enfim, a disputa estava quase ombro a ombro. De cara entraram dois ao mesmo tempo para falar com o Francisco. E eu, esperava, pacientemente pela minha vez, já sabendo no que ia dar a minha reunião. Por causa disto, deixava que cada qual se achasse com maior prioridade e avidez em ir na frente. Até como uma maneira de ir à forra mais tarde. Quando já havia entrado na sala dele o terceiro da lista, eu fiz, estudadamente, minha interrupção. Entreabri a porta e, rapidamente, joguei a isca: "Preciso falar com você. É urgente." Já sabia, de antemão, que viria uma resposta áspera, mas era a resposta que eu queria, para fazer uma provocação maior e obrigá-lo a entrar no meu clima. Como um relógio, bastante previsível, ele retrucou: — Querer falar comigo não é novidade. Urgente, tem um monte de gente dizendo a mesma coisa. Você sabe: quem se desloca recebe, quem grita primeiro tem prioridade. Você vai ter que esperar. Tem gente aqui com coisa urgente também e que gritou primeiro. — Tudo bem. — Falei. — Eu não tenho nada para fazer até o almoço mesmo, eu posso esperar. Pena que você vai ter que desfazer toda a programação que você está fazendo, pois eu vou requisitar duas equipes grandes. E, se a coisa for como eu suponho, eu vou requisitar metade do escritório. Mas tudo bem. Escute quem você acha que tem que escutar e depois avalie você mesmo. Afinal, todo mundo acha que tem assunto urgente, e você é quem vai dizer o que é urgente ou não. — Disse de forma provocativa e sacana. — Tá legal, Machado. Entre e fale — Aquiesceu ele, com enfado. Nisto há uma revolta, por eu ter "furado fila". E, os que já haviam conversado com ele, se apressavam para sair rapidamente do escritório antes de eu terminar a reunião. Aí, deliberadamente, como numa vingança pelo frisson e corre-corre anterior, preparei outra maldade. — Francisco, vou precisar de duas equipes grandes e gente de apoio no escritório
para fazer o serviço da Fundação. Tem coisa braba no ar, e como nosso papo vai ser longo para orquestrarmos a operação, é melhor não deixar ninguém sair do escritório. Ato contínuo, até porque o Francisco sabe quando eu estou de brincadeira e deboche e quando eu estou falando sério, ele se levantou, foi até a porta e anunciou: — Ninguém sai do escritório. (Grita geral. Inconformismo. Mil justificativas. Alguns até explicavam, quase implorando, que não podiam ficar e que tinham compromissos, reuniões fora, etc. . .) — Não quero saber. Ninguém sai do escritório — e virando-se para o Edson, pediu: — Edson, peça ao Bá para trazer água e café. — A minha eu quero com gás — completei, sem me virar da cadeira e sem voltar-me para o salão, (riso contido) pois eu já sabia da reação do pessoal. 2 De fato, trinta e poucos homens, de terno e pasta, espremidos num salão de uns 40m , era barulhento, desconfortável e irritante. Até porque não tinham acomodações para que metade pudesse sentar-se. E, logo vieram as retaliações e ameaças (mas tudo de brincadeira), uns fingindo me bater, outros desejando que eu fosse pro inferno, e alguns até justificando que se tivessem que comer "pizza" no escritório (algo muito comum nestes casos), iam cuspir nos meus pedaços. E chegavam a disputar: — Deixa que eu levo o pedaço do Machado para ele comer. Ao longe, meus olhos captavam, por entre várias cabeças e duas nesgas de porta, o sorriso do Luiz Carlos, como que a dizer: — Você não tem remédio. Tudo tem que ser da forma que você quer. Logo chegou o Bá ou como ele gostava de se anunciar. (Falando bem rápido, igual a uma metralhadora) "Edmilson Evangelista Calixto de Mesquita Bá." Cada hora, o nome dele mudava, aumentando ou diminuindo, mas em geral começava com Edmilson, e terminava com Bá. (No duro, o Bá não existe no nome dele, mas o incorporou por auto-recreação. A origem da expressão Bá é oriunda do chamamento: O do Bar — O Bar, veja um cafezinho aí. E, como ninguém chamava ele pelo nome, virou "Bar" ou simplesmente Bá.) Eu o chamava de "lôrram", e ele ficava intrigado. Eu dizia que era em homenagem a um parente seu: Johann Sebastian Bach (estou certo que nunca entendeu). De fato, a reunião havia sido bastante longa, e eu pude relatar, para o Francisco, cada detalhe do ocorrido, e consegui expor, minuciosamente, como eu achava que deveria ser deflagrada a operação. E, felizmente, como o Francisco é bastante acessível, desde que você explique com clareza e sem rodeios, direto ao ponto, eu pude vender o meu peixe. Eu queria uma equipe de apoio e seleção de informações no escritório. Uma equipe razoável na Fundação/Rio e uma equipe pequena em São Paulo, com ampla liberdade para transitar, dissimular e confundir os auditados, para que não soubessem como a coisa estava sendo coordenada, quem coordenava, e, principalmente onde começava e onde terminava a auditoria. Ele topou integralmente. E, já estávamos prestes a dar inicio às primeiras providências (quem comporia as equipes, providenciar passagens e hospedagens, etc), quando tocou o telefone. Era o Jair Lento dizendo que sabia da minha volta a São Paulo, e que seria melhor ele acompanhar-me nesta viagem, de maneira a poder me dar uma assistência mais eficiente. O próprio Magaldi (Secretário Geral da Fundação) achava que ele —Jair Lento — deveria colaborar, de perto, com a auditoria. — Você segura essa? — Perguntou-me o Francisco, sem desligar o telefone. Eu ri, imaginando a possível conversa havida entre o Magaldi e o Jair Lento. — Tudo bem. Pode confirmar. Eu vou tocar um rebu tão grande longe de onde ele está, que vai querer ficar longe de mim. — Mas ele vai grudar no seu pé, Machado. — Disse o Francisco, contrariado. — Vai nada. Quando chegarmos em São Paulo, eu solto os "cachorrinhos" aqui no Rio, e faço eles chegarem bem perto do problema, para provocar a volta dele imediata. É só mandar o Kebian, por exemplo, tocar de leve no que a gente já sabe que é problema, e dar uma prensa no contador, que vive escondendo tudo; e em 24 horas, o Jair volta à jato. O Francisco, então, combinou com o Jair a nossa viagem a São Paulo. Como num jogo roubado ou numa cena com script decorado, a coisa se desenrolou exatamente como o previsto. O Jair ficou só dois dias em São Paulo e voltou correndo e apavorado para o Rio deixando-me solto para fazer o serviço, com liberdade, da forma como eu queria fazer. Daí por diante, tudo se desenrolou encenadinho. A equipe do Rio fingia ignorância e evitava chegar perto dos problemas, para me dar tempo de levantar, por São Paulo, tudo com
alguma profundidade, e assim, somente após sabermos do escopo gerai e da amplitude total do serviço, iríamos entrar nos detalhes. Mas, aí, de forma irreversível, pois já saberíamos de tudo, restando tão somente comprovar de forma documental e irrefutável. O Calazans, a esta altura, inundava-me de informações e de certa forma, contagiava-me com o seu ideário. Mostrava-me estatísticas, níveis de aproveitamento, artigos elogiosos à Fundação, premiações ao Dr. Roberto em nome da Fundação, medalhas e troféus (inclusive os dados pelo "Chacrinha", que, de certa forma, para mim denegria, estragava, e desacreditava tudo o que havia sido dito antes. Mas, enfim . . .). Para efeito do que eu queria, não importava que as estatísticas fossem falsas, conforme afirmava o Diretor Cultural José Car los Barbosa, ferrenho adversário do Calazans, e que não escondia sua opinião sobre o telecurso ser o curso mais caro do mundo, pela relação verba/aproveitamento de aluno. Achava, ainda, José Carlos Barbosa que o telecurso era uma grande empulhação estelionatária e que um dia todos os diretores acabariam presos como coniventes com o Calazans. Entretanto, a mim, não importava que os níveis de aproveitamento fossem falsos e que os artigos elogiosos à Fundação fossem escritos sob encomenda (o Calazans já havia sido jornalista, e manejava bem a manipulação da notícia. Sabia "plantar" uma noticia, um boato, ou mesmo trabalhar um jornalista para, assim como quem não quer nada, escrever rasgados elogios sobre coisas que não conhecia bem, e depois ele mesmo mandava cópia do artigo para o Dr. Roberto). Nada disso importava. Tudo isto ficaria registrado para uma análise futura, mais profunda e impiedosa. No momento, eu estava interessado nos meus aspectos macro e nada me afastaria deste objetivo. Mais tarde eu voltaria para outro tipo de enfoque. Trabalhando mais diretamente o lado pessoal de cada um, fui abrindo e explorando Calazans (Educação) e Matsumi (Televisão). Matsumi encurtou demais, e não fez um só rodeio. Foi franco e aberto. Pude ir fundo, cada vez mais, e em momento algum ele reagiu. Em pouquíssimo tempo estava tudo claro: Não havia estrutura normativa, não havia controle administrativo, nem financeiro, e nem orçamentário. 0 meu relatório poderia ser feito em uma só folha (igual ao do Nilo) só com uma pequena diferença, bastaria uma só frase para relatar tudo: Estava tudo errado. A posição e clareza do Matsumi ajudaram muito. Era simples e transparente — Sou diretor de Televisão, e entendo disto. A zona que você está vendo aí e da qual não entendo e faço questão de não entender é de responsabilidade do Diretor Administrativo e Financeiro. Afinal, a Fundação tem um e que ganha muito bem. Vá cobrar dele. Juntando o que eu pude ver e ouvir nos Departamentos de Educação e Televisão, poderia sair um relatório preliminar simples, dizendo quase tudo, pois não havia organograma, nem definição hierárquica, nem atribuição de função, nem delegação de autoridade (para atribuir e imputar responsabilidades), nem formalização de procedimentos (ordens verbais eram regra geral e aceitas tranqüilamente). Ninguém queria assinar nada, e nem se comprometer com documentos. Não havia Normalização (normas, rotinas, procedimentos, formulários, contratos, etc), e nem Sistema de Informações gerenciais (relatórios, demonstrativos, balancetes, orçamentos, prestações de contas, etc). Era difícil de acreditar, mas era verdade. Uma empresa como a Fundação Roberto Marinho não possuía nada, e quando possuia era errado. A bem da verdade havia uma única coisa feita: O relatório do MEC e Deus sabe como. Os exemplos de desorientação eram grotescos. Uma Editora, no relatório do MEC, era contratada como secretária. A secretária era contratada como Assistente. E como elas não podem aparecer como empregadas, para efeitos fiscais na escrituração interna (só existiam fisicamente) recebiam por uma nota de compra de um produto qualquer como material de cenário, ou até mesmo por uma nota de prestação de serviços (comprada ao custo de 10% a 12%). Eu me arrepiava só de pensar o que aconteceria se nós fossemos um país evoluído e civilizado, com Sindicatos fortes. E se o Sindicato dos Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversões agisse contra a Fundação? Mas infelizmente, o artista é um pedin-te, pobre miserável, obrigado a engolir a dignidade em troca da sobrevivência. . . Quanto ás notas fiscais compradas não havia novidade. Estávamos no Brasil e dentro da Globo. E, por estarmos no Brasil, ainda havia o exótico da questão, pois havia uma divisão: Notas fiscais "frias de boa-fé", e Notas fiscais "frias de má-fé". Explique-se: Se, por exemplo, se quisesse
pagar a uma pessoa física (a-tor, por exemplo) e não se quisesse envolvimento (leia-se pagamento) de I. Renda, INPS, ISS, etc, comprava-se uma Nota fiscal (pagando de 10% a 12%). Ou seja: Dava-se o dinheiro ao ator e a per-centagem ao vendedor da Nota. Esta era a Nota fria de "boa-fé". Já a nota fria de "má-fé" era aquela que não se pagava nada a ninguém, a não ser a percentagem do vendedor da nota, e o dinheiro ficava para o Gerente ou o Diretor que fazia o negócio. A grande surpresa é que isto não era exceção e sim a regra. 0 que rolava na Fundação era nota de PJ. (Pessoa Jurídica. E, Graças a Deus nota não fala. E depois de um tempo, até que pareciam honestas. Perguntado ao Matsumi sobre como ele distinguia uma nota de outra, ele respondeu: — Eu não distingo. Se a produção quiser roubar, rouba. Se os diretores quiserem roubar, roubam. Não há controle algum. E, todos, inclusive eu, são suspeitos e passíveis de desvios de toda sorte. E, uma vez que não há controle, tudo é possível. — A que se deve este estágio alarmante de descontrole? — Perguntei ao Matsumi. — A própria Globo, que institucionalizou a sacanagem. Veja bem, vem de lá a criação de pagar uma pessoa física como PJ (Pessoa Jurídica). Isto ocorreu, inicialmente, por uma questão de mercado, depois virou zona. É o seguinte: Por uma questão de concorrência, a Globo consegue pagar mais aos seus artistas e diretores porque não os paga como pessoas físicas (que têm altos impostos na fonte, e cujo valor líquido é baixo e raríssimas deduções são permitidas na declaração final de renda). Ao contrário, pagando a estas pessoas (artistas e diretores) como pessoas Jurídicas (PJ), o valor bruto é alto e você só paga impostos se for burro pois a retenção na fonte não existe ou é insignificante, e você deduz tudo (qualquer despesa) como custo (até papel higiênico). — Mas isto é uma puta sacanagem. Não que isto seja novidade. Até entendo que a Globo o faça, por estar politicamente impune. É compreensível. Mas, a Fundação é a vidraça do Dr. Roberto. . . É o passaporte dele pro céu. — Disse eu. — Machado. Aqui é igual à Globo. Quando você atinge uma faixa salarial alta ou um cargo elevado você deixa de ser pessoa física, para não pagar imposto e passa ser uma pessoa Jurídica. E aí começa a zona. Afinal, você não está na Suíça. Existe alguém neste país que ganhe muito e pague imposto? Quem paga imposto no Brasil não é a classe média? Então? Aqui é igual. É Fundação. É Globo. É Brasil. Pode ver que todos os diretores, todos sem exceção, recebem por PJ (Pessoa Jurídica), inclusive eu, Jorge Matsumi. A frieza e firmeza do Matsumi às vezes me assustava. Era tão franco que parecia cínico. Era frio diante do inevitável e absolutamente calmo e consciente em relação ao seu papel social. O "Japonês" (apelido do Matsumi) partia de uma lógica racional bem simples: "Sou só eu?" E, me desconcertava com sua retinilidade lógica: Ele tinha consciência de que não roubara nada. Não era responsável pela desorganização. O que havia de errado na Fundação era cópia da Globo. E a Globo era o Brasil. Cabeça cheia. Eu tinha que me preparar para abrir o Calazans. Mas antes, tinha que selecionar a massa de informações que estava recebendo, e fazer um grande mergulho interior para buscar forças dentro de mim. Embora não fosse artista, e tivesse horror de pensar nesta possibilidade, valia-me de um recurso artístico: o laboratório. Nestas horas a "pilha" ia gastando (eu trabalhava 12 ou 14 horas, em média, por dia) e costumava ir tornando-me diferente, calado, introspectivo. Era preciso me policiar. Eu tinha que estar alegre, feliz, despreocupado, para poder assimilar tudo sem sentir. Estar apto a ouvir o maior absurdo e não mover um músculo nem demonstrar o golpe. E, para isso tinha que me por em equilíbrio. As providências eram simples: Primeiro trocar de hotel. (Por causa do Jair eu acabei me hospedando num hotel tipo Shopping Center.) Eu detestava hotéis impessoais tipo Shopping Center e como eu vivi minha vida como auditor hospedando-me em hotel, eu era muito intolerante com as más qualidades de um serviço. Queria um hotel fora do tumulto. Por isso escolhi o Eldorado — Higienópolis, pois o local é arborizado, silencioso, relaxante, e eu poderia ir andando até a Fundação (pela manhã), colocando todos os meus pensamentos em ordem. (Era parte da higiene mental e tranqüilidade que eu precisava.)
Segundo, eu precisava parar de almoçar e jantar comidas exóticas com o Calazans e o Matsumi pois meu estômago estava acabando com o meu humor. (E tinha que preparar o meu fígado.) Terceiro, eu precisava rir, ouvir bobagens e tirar o peso da carga de auditor. E, para isto, bastava sair à noite com a equipe e vagabundear sem nenhuma responsabilidade. Fiz um grande laboratório e um bom preparo a nível de estabilidade emocional. Parcialmente recuperado, comecei a preparar-me para o Calazans. Eu sentia que ele queria falar, e eu tinha que fazê-lo falar. Sabia que era alcoólatra, mas não queria convidá-lo abertamente para beber. Tinha que fazê-lo me convidar, de preferência à noite, quando não teria maiores preocupações com o tempo. Como todo bom nordestino, gostava de prosa, e politizado como ele é, não foi difícil esticar o papo do escritório para o bar. Fomos a dois bares diferentes em duas noites diferentes. Numa estávamos eu, Claudinho e Calazans (na Taberna anexa ao Hotel Eldorado). Na outra, estávamos só eu e o Calazans (no David, na Oscar Freire). O papo era genérico. Falávamos de tudo. Principalmente de política. Falávamos da ditadura, do sistema, das injustiças sociais, da falência e descrédito nas instituições. Eu curtia, de certa forma, uma admiração pelo Calazans. Não pelos seus métodos sujos. Não pelos seus propósitos. Mas pela sua inteligência, e pelo seu bom gosto, (dentre outras coisas gostava de Goethe, Nietsche, Hermann Hesse, Monteiro Lobato, Voltaire e Aldous Huxley). Em meio a uma grande salada cultural, e com o Calazans no ponto, parti para a provocação e para a abertura. Já sabendo, de antemão, que, por perfil o Calazans dirigiria suas baterias contra Magaldi e cia., até porque Magaldi ocupava o cargo que ele almejava (Secretário Geral), e, na retaliação valia tudo. Comecei pelo óbvio: Jair Lento. Por Jair Lento ser militar (major) já era motivo mais do que suficiente para Calazans desancá-lo sem piedade. Atirei a "queima-roupa" — É verdade que você é sócio dos erros do Jair? — Doutor (vício nordestino que Calazans não perdia), é duro eu ir a Brasília, disputar palmo a palmo, ombro a ombro as verbas. Arrancando, muitas vezes, estas verbas do esgoto. Tirando de verbas que deveriam ajudar o povo do nordeste, para chegar aqui em São Paulo e sofrer o boicote vindo de ponte-aérea do Rio de Janeiro. — "Mas, Calazans, alguém tem que controlar estas verbas. Você não acha que o Jair faz o que deveria ser feito? — De forma alguma. Ele quer é tomar verba da Educação e Televisão para sobrar mais pro sustento daqueles parasitas do Rio de Janeiro. No duro, eles querem é que eu morra, para sobrar mais verba para eles no chá com biscoito e queijinho. — Você não acha que é muita verba para chá com biscoito? — Ironizei.
— Não. A verba acaba financiando tudo: chá, biscoito, os projetos falidos deles, e a sacanagem da Casa do Bispo (Sede da Fundação). — É muito forte você atribuir tudo só ao Jair Lento. Não tem um exagero aí? — Provoquei. — Não. Aquilo lá é uma máfia. É tudo igual. Tanto faz: Jair, José Carlos, Magaldi. É tudo igual. São todos juntos contra mim. Mas não adianta, doutor. 0 mundo se acaba e o nordeste não se rende. Eu sou um sobrevivente. — Máfia? Você falou em máfia por força de expressão ou você enlouqueceu de vez? Você está com raiva dos caras e vem dizer que eles são mafiosos. . . peraí Calazans. . . Isso aí é muito forte. — Fiz-me de desentendido, embora soubesse o que ele queria dizer. Eu já ouvira o boato, antes. — Olha, eu vou contar uma história para você entender, já que você pensa que eu estou maluco. Sabe porque o cargo do Magaldi é Secretário Geral? É porque ele é comunista, e como comunista ele idealizou uma Fundação capitalista com o cargo máximo do Soviet Supremo. Já que ele não pode ser nada no Partido e ele não se assume como comunista, até porque o regime não deixa, ele vem brincar de ''Secretário Geral" aqui na Fundação. — E daí... que que isto tem de mais? Você vai querer me convencer que ele come criancinha na hora do almoço?
— Nada disso. 0 Magaldi é comunista e italiano. E como italiano é mafioso. — Socorro... Policia... Enlouqueceu Calazans? — Não. Vou te contar a história: Fui chamado ao Rio de Janeiro para uma reunião de diretoria. Eu não gosto de ir, mas fui. Mesmo sabendo que eu ia encontrar o parasita do Galliano — que ninguém sabe o que ele faz na Fundação — puxa-saco oficial do Magaldi. Mesmo sabendo que eu ia encontrar o milico do Jair Lento e o mau caráter do José Carlos Barbosa. De todos os diretores o único que presta é o Nelson (Mello e Souza). — E daí, Calazans? — Daí que eu cheguei e perguntei pela pauta da reunião. Não tinha pauta. Era uma reunião de acerto. Fui chamado para a reunião para fazer um pacto mafioso. Nós todos deveríamos jurar fidelidade ao Magaldi, e ele seria o "Capo", protegendo a nós de tudo que fosse alienígena ou atentasse à sobrevivência do Grupo. Era uma troca. Nós faríamos um Cinturão de Fidelidade em torno do Magaldi e estaríamos protegidos "ad eternum" contra qualquer um que ameaçasse um dos nossos cargos. Tomei um susto, gritei e ameacei sair, e Magaldi me chamou num canto e me pediu desculpas. Disse que ele não sabia de nada daquilo. Não concordava com aquela proposta absurda, e que estava envergonhado pelo que os amigos dele tinham tido a coragem de fazer. — A posição do Magaldi foi correta, ou não? Indaguei. — Correta nada, doutor. Eu não nasci ontem... Eles quiseram me iniciar, e como a coisa "melou", o Magaldi arranjou esta saída. Ele é mafioso sim. E, pior: é perigoso. — Você está delirando, Calazans? — Delirando porra nenhuma. Você quer ver como eles são mafiosos? Faz parte do pacto deles o uso da Fundação para benefício próprio e para especulação. Sabe o que eles estão fazendo? Estão usando chamadas de Televisão para especulação imobiliária. — Como assim, Calazans? — Perguntei curioso. — Eles compram terra em Parati, Angra dos Reis e Porto Seguro, depois lançam campanhas institucionais para "preservar" o patrimônio histórico daqueles lugares. Daí, um tempo depois, eles vendem tudo com um lucro fabuloso. — E você tem prova disto? — Perguntei. — O que você chama de prova? Eu estou te contando o que aconteceu. Você se quiser, deve ir nos cartórios destes locais e verificar. Mas, lembre-se, eles podem estar fazendo a operação em nome de terceiros, amigos, etc. — E como você descobriu isto? — Perguntei. — Tudo aconteceu por acidente. Numa conversa com o Humberto Pereira (Diretor responsável pelo "Globo Rural"). O Humberto me falou que nestas andanças, Brasil afora, uma das equipes do "Globo Rural" ao chegar em Porto Seguro, elogiou a beleza das praias nativas, quase virgens. E ouviu, de moradores locais, que aquelas praias eram particulares. Foram compradas por diretores da Globo e da Fundação Roberto Marinho. Daí, Humberto veio me gozar, achando que eu e o Magaldi havíamos comprado aquelas praias. — E você não comprou nem uma praiazinha? — Perguntei de deboche. Calazans finge que não escuta e continua... — Com cuidado e paciência eu acabei descobrindo que a patota do Magaldi havia comprado aquelas praias. E logo percebi a relação entre os lugares e as campanhas institucionais veiculadas pela Fundação, na Globo. Daí, para descobrir tudo foi um pulo. Afinal, eu não nasci ontem, né doutor. Confirme com o Matsumi, pois uma equipe dele que estava no nordeste soube da mesma coisa. Completou Calazans. — Mas isso aí, Calazans é muito difícil de provar. E, ainda que se prove, não há nada contra se comprar terreno em Parati, Angra dos Reis e Porto Seguro. Não vai ser por isso que você vai derrubar a turma do Magaldi. — Arrisquei a constatação. — Pode até não ser por isso... Mas, afinal, que porra de auditor é você? Fica me fazendo falar. Eu falo. Dou todas as dicas de como você pode pegar aqueles parasitas e você não está interessado? — Disse ele, irritado.— Interessado eu até que estou. Mas eu não quero algo discutível. Entenda, Calazans, quando eu faço um relatório, eu não coloco nada superficial. Nada
que se possa contestar. Quando eu coloco um "ponto" no meu relatório, ele é incontestável e definitivo. Se você quiser pegar o Magaldi e a turma dele você vai ter que me dar algo mais contundente. — Então tá, vou te contar outra história... — Eu não quero história. Quero fatos e provas — Interrompi bruscamente. — É o seguinte: Magaldi arquitetou um plano para envolver e comprometer o Doutor Roberto; para que nunca seja feito nada contra ele, Magaldi, e sua turma. — Como assim? — Perguntei. — O Magaldi age na cabeça do Dr. Roberto, lembrando ou fazendo sempre lembrar, que o Dr. Roberto tem rabo preso na mão dele. E uma das formas que o Magaldi encontrou de subjugar o Dr. Roberto, é insinuando sempre que ele é homossexual, devasso, e que um fato obscuro, envolvendo um dos filhos do Dr. Roberto, que atirou num rapaz, amante do pai, foi resolvido e abafado por ele, Magaldi. O Dr. Roberto, com medo, permite ao Magaldi e à sua turma, todo tipo de bandalheira aqui na Fundação. — Bela história. E o que isso prova? Que o Dr. Roberto é homossexual? O boato de que o velho é homossexual corre no Brasil há anos. Até nos jornais isto sai descarado. O Hélio Fernandes, na "Tribuna" vive botando interrogação na palavra homem quando se refere ao Dr. Roberto. Você acha que o Dr. Roberto vai ficar na mão do Magaldi só porque ele sabe que o Dr.é homossexual? — Concluí, fingindo irritação. — Não. Mas aí é que está. O Magaldi engendrou algo diabólico contra o Dr. Roberto. Sabendo que o "velho" não admite a morte, e que ele tem dois grandes pavores: o primeiro é o medo de morrer, e o segundo é não querer que a igreja o abandone no meio da estrada. Magaldi juntou todas as peças, e criou algo que coloca o velho contra a igreja, explorando exatamente, este lado devasso do Dr. Roberto." — Pô, Calazans. Lá vem você, de novo, com histórias. — Disse irritado. — Não. O caso é real. O Magaldi, na realidade não necessariamente ele, mas a máfia dele, em conjunto com o Pacote, que você deve conhecer da Televisão, usando de uma coleção de quadros de sacanagens e altamente libidinosos de outro homossexual, o Sérgio (Beto Carrero) Murad, montou um livro só de putaria, com a assinatura da Fundação Roberto Marinho, numa edição limitada. Mas, a grande intenção dele, não era editar o tal livro. Era, antes de tudo, que o Dr. Roberto soubesse da edição e entrasse em pânico, com medo que a igreja viesse a saber, ou que este livro fosse a público envolvendo o nome da Fundação." — E esse livro foi editado, realmente? — Perguntei, como quem está com enfado de ouvir besteiras. — Claro. Foram editados 3.500 exemplares numerados. Mas ficou tudo encaixotado. E, daí, quando o Dr. Roberto soube, mandou destruir tudo. O Magaldi, posando de bom moço, disse pro Dr. Roberto: "Claro. Imagine se isso vem a público. Imagine a manchete dos jornais contra a Fundação. Imagine a reação da Igreja sabendo que a Fundação e o senhor, Dr. Roberto, se prestam a este tipo de coisa. É assim que o Magaldi age na cabeça do Dr. Roberto. É a mensagem subliminar. Como publicitário ele sabe fazer isto bem. — Mas do que adianta isto, Calazans? Você vive me contando histórias cujas provas são quase impossíveis. De que me adianta saber disso, se os livros foram destruídos? — Disse, como quem não quer nada, mas tentando "pescar" — Mas nem todos foram destruídos. Todos os diretores amigos do Magaldi possuem um exemplar e eu consegui salvar do incêndio três exemplares para mim. Vou dar dois exemplares a você. Um para si e outro pro Francisco Eduardo. Ainda aturei muita conversa do Calazans naquela noite. Mas, confesso, estava indócil para dormir, acordar no dia seguinte e rezar para que ele não tivesse esquecido a conversa da noite anterior. No dia seguinte deixei o pessoal da equipe, que ainda estava tomando café no hotel e saí sozinho. A pé. Só. Tentando ordenar meus pensamentos. Eu já possuía, na minha cabeça, um relatório técnico todo delineado e com um volume grande de informações. Informações estas, que não poderiam e nem deveriam estar imiscuídas com dados técnicos. Eu começava a temer pelo excesso de informações, e estava preocupado em como fazer um relatório curto, seco e grosso, sem misturar coisas muito importantes, com outras importantes também, mas de efeito relativo ou discutível. (Relatar tudo era impossível. Nem pensar.)
Foi assim, em meio a estes pensamentos, que resolvi fazer vários relatórios, com vários enfoques e com vários níveis de abrangência. Era preciso voltar ao Rio. Era preciso amarrar as informações de São Paulo com os documentos do Rio. Informei ao Calazans que eu iria voltar ao Rio, e que iria fazer um relatório preliminar ao Dr. Roberto. Aproveitando a oportunidade perguntei se ele não tinha mais nenhum documento para me entregar. Para surpresa minha, ele entregou-me vários documentos, e dois exemplares do tal livro, objeto de nossa conversa da noite anterior. E, como que retomando nossa conversa disse: —Faça bom uso, e espero que você e o Francisco saibam como utilizá-los. Era claro e nítido que o Calazans queria uma cartada definitiva com Magaldi e Jair Lento, e estava me usando para isto. De volta ao Rio, o clima era de grande expectativa. Como que sentindo que havia algo no ar, os colegas de escritório olhavam-me com muita interrogação. E, alguns, sentindo que houvera êxito em São Paulo, tentavam alguma antecipação, quer por uma sondagem discreta, quer pela pergunta direta. Era segunda-feira, dia de todos estarem no escritório. Em tese, as brincadeiras eram quase sempre as mesmas, mas a graça se renovava a toda hora. Para variar, naquele dia, com o escritório repleto de homens, entrou uma menina, que trabalhava no CPD e que era muito bonita e bem feita de corpo, para conversar algo rápido com a Norminha. Foi o que bastou. Miguel (Duarte) que fora do serviço é um palhaço em tempo integral, quicou a bola. — Aí. . . (apontando com os olhos) Fazia? Um mais afoito se antecipa. — Frente, verso e autenticado. — Pareciam colegiais primários. A Norminha morria de vergonha, conhecia o pessoal, e sabia cada expressão nossa. Cada código. Miguel, muito amigo da Norminha, sentindo o embaraço dela, tenta constrangê-la mais ainda — 0 Norminha, apresenta a moça pro pessoal. "Garnizé", cumprimenta a moça, seu maleducado. E sucedia-se uma enxurrada de gracinhas anônimas: — Aí, March, já pensou se você não fosse velho? — Quando chegar em casa eu vou matar minha mulher de porrada. — Bota tudo em meu nome. — Fica quieto, Júnior. Norminha, sentindo que não ia conseguir conversar, sai com a moça e excomunga: — Pôxa, até parece que vocês não vêem mulher. . . — Ver até que a gente vê, mas não dessa qualidade. — Tem gente aqui que viaja tanto que nem lembra mais como é. Passado o incidente, o clima continua. Mudado o motivo, procura-se um novo. — Machado, comeu bem em São Paulo? — Não. A última vez que eu comi bem foi quando eu fui na sua casa. Na inocência e na maldade somos todos iguais. — É, depois que ele voltou de Curitiba e experimentou a comida do "Metrô", ele não come noutro lugar. Nisto vem passando a Rosângela, auditora séria, que não gosta de brincadeira e dava esculacho no Miguel todo dia. Para variar, o Miguel perdia o amigo, mas não perdia a piada. — O Rosângela, você já andou de Metrô? (Nota: O 'Metrô' é uma boate em Curitiba. Quando uma equipe ia auditar a TV Paranaense, era inevitável — toda noite o bando garantia a freqüência da boate, pois ninguém pagava a entrada, dava-se carteirada com o crachá da Globo, e a conta vinha sempre com um grande desconto. O dono, ou gerente, ficava feliz da vida com a nossa presença e com as nossas brincadeiras. Como o clima estava solto, até os que não costumavam entrar na brincadeira se atreviam: — Olha lá, Machado, quem está se coleteando... — O Chileno... que porra é essa de se coleteando? Aí o Chileno tinha que explicar o seu idioma para a gente. Coletear, segundo o Chileno, é a expressão usada para designar a alegria que o cachorro demonstra abanando o rabo.
Eu perguntei quem é que estava se coleteando, pois eu não havia entendido a piada. AT respondeu que era o Pedrinho, e falou — Repara só. Ninguém dá atenção pra ele e aí ele vai num, vai noutro, procura atenção, e fica se coleteando para ver se alguém faz festa para ele. Nisto, entra o Francisco e alguém grita — Sujou. Francisco amarra a cara e deixa claro que escutou o sujou. A figura é a da sempre: Óculos escuros para não se entregar pelos olhos, paletó nas costas, e duas pesadas malas de auditor (que parecem de propagandista de remédio). — A festa está boa né Luiz carlos? — Luiz era sempre o mais visado e o escalado pra bronca inicial, tivesse ou não culpa. Aí ele abrandava um pouco — O Nilo, até você? Vira-se para mim — com você eu nem falo, senão vai querer responder e eu não quero brigar. Hoje eu estou calmo, satisfeito, estava brincando com a Vanessa (filha dele) até agora e não vai ser este bando de malucos que vai me tirar o humor. Eu mudava de assunto rápido, para a coisa não render — OIha... tenho mil novidades e um presente incrível. — Eu sabia que depois de provocar a curiosidade, ele até podia fazer tipo, mas não ia atender ninguém antes de saber sobre S. Paulo e sobre o presente. Ainda de pé, antes de entrar na sala, ele perguntava para a Norminha sobre possíveis recados, telefonemas etc. — Vamos lá, Machado — chamava. Era religiosamente sagrado, Pedrinho entrava junto, para ouvir, e arranjava um pretexto qualquer para permanecer na sala. Mas, como eu sou descaradamente mal-educado, calava a boca e esperava ficar aquele silêncio mortal. O Francisco ainda provocava. Perguntava sobre S. Paulo, e sobre a Fundação. Eu falava um monte deabobrinhas, mas não falava nem sobre S. Paulo e nem sobre a Fundação. Percebendo a situação, Francisco procurava não esticar o jogo e gritava "cai fora Pedro". Aí, para deixar bem claro que a coisa era pessoal com o Pedro, eu dizia: "Pode chamar o Nilo, o Chileno, o March, o Luiz Carlos. Chame quem você quiser. Não tem problema, não." — Pôxa, Machado, porque vocês fazem isso com o Pedro? — Nós já falamos para você. Você sabe. Que você não queira fazer nada, a gente até entende. Agora, o que não dá, é você querer que a gente o aceite. — Francisco, aqui só tem técnico. Tudo profissional de altíssimo nível, tirando uma meia dúzia de Assistentes, o Staff é de Senior para cima. Aqui, você só é respeitado se for bom profissional. Ninguém atura esse papo de capinar sentado e administração por time-sheet. Você sabe... se o cara que está em baixo sente que é melhor do que você, profissionalmente, te engole ou te faz comer grama. A nossa profissão é uma das raras que só se aprende fazendo, e só sobe se for bom. Não dá para ter mamãezada e protecionismo. — Vamos lá... E São Paulo? — Pergunta, mudandoe encurtando o assunto. Expus-lhe o que havia sido levantado em S. Paulo, ao mesmo tempo em que entregava o livro que o Calazans havia enviado de presente. Disse que o relatório já estava todo escrito, na minha cabeça, e que iríamos gastar mais uma semana auditando a Fundação no Rio, e mais uma semana seria necessária para limpar alguns pontos e/ou colher um ou outro documento. Francisco estava surpreso e ainda meio desorientado quanto à forma correta de enfocarmos o assunto para o Dr. Roberto, até porque, o que para mim já fora objeto de reflexão, para ele ainda era assunto novo. E o volume de informações era muito grande. Acertamos então a estratégia e linhas gerais. Neste relatório só abordaríamos os Departamentos de Educação e Televisão, deixando para o futuro os demais departamentos. Mas não abriríamos mão de ir fundo no trabalho da Fundação. Afinal, foram anos de normalidade, e tínhamos de dar a volta por cima. Reuni a equipe do Rio. Orientei o pessoal que ia ficar no escritório, e dirigindo-nos para a Fundação/Rio. Todos estavam avisados para não aceitar provocações, e deveriam aceitar a situação, por mais adversa que ela fosse, não importando os tropeços e as pedras. O objetivo era mais importante. E, se alguém tivesse que bater de frente, eu iria usar a minha reputação. (Se o Francisco trombasse, seria abuso de autoridade. Se um subalterno trombasse, seria insubordinação. Se eu trombasse, seria medição de força.) Neste caso, o melhor era eu trombar. Estrategicamente, Jair fez funcionar o seu plano, usando o Contador como "agente provocador". Não dava recados telefônicos para os auditores, mesmo quando o escritório
telefonava. Quando um auditor ia telefonar ele ficava deliberadamente ao lado do telefone. A cada documento solicitado, o Contador mostrava-o antes para o Jair, para saber se podia ou não entregar. Demorava horas entre o pedido de um documento e a entrega do mesmo. Eram entregues pastas erradas, faltavam documentos. E tudo que era sabotagem foi tentado. Transcorrida a semana o pessoal da equipe estava impassível, aceitando tudo, e absorvendo todos os golpes. O Contador ia, paulatinamente, se atrevendo cada vez mais, até que eu resolvi acabar com a brincadeira, pois nós já tínhamos, praticamente, quase tudo o que queríamos. — Zé Carlos! (Este era o nome do Contador) Vá falar pro Jair que eu quero falar com ele agora de manhã. (Era sexta-feira.) Tudo, dentro do que eu disse, era provocativo. Pois o Contador se apresentava como Sr. Cruz, e quando muito, dependendo, aceitava Sr. José Carlos, mas jamais "Zé Carlos". Segundo, porque eu, deliberadamente, falei a coisa em tom de ordem Vá falar. Terceiro, porque eu disse isto na frente de toda a minha equipe e dos funcionários dele. Quarto, eu chamei o Jair de Jair e não de doutor Jair. E, finalmente, porque eu determinei prazo e horário. Ele se empavonou todo, demonstrou haver sentido o golpe e retrucou: "Eu vou ver se o Doutor Jair pode receber você (e, caprichou no Doutor e no você)". Internamente eu ri muito, pois senti que a cintura dele era dura e ele não entendia nada de mind games e de briga de cozinha. E pensei cá com meus botões: "Você não sabe ainda o que te espera de despedida." Ele voltou com a resposta, todo satisfeito: "O doutor Jair só vai poder atendê-lo depois do almoço e da reunião." Eu poderia ir falar com o Jair a qualquer tempo. Não havia problema, eu sabia disto, mas tinha que dar uma ralada no Contador por conta das sacanagens que ele havia aprontado com o pessoal enquanto eu estava em São Paulo. — Volte lá e diga pra ele que eu quero falar agora. Diga também, para interromper tudo porque eu estou encerrando os trabalhos e não volto aqui para discutir relatório se ele não me atender agora. Dessa vez, ele não teve nem tempo de tirar o paletó. Explique-se: nós estávamos num pavilhão auxiliar, que distava uns 50 metros da sala do Jair, e toda vez que o Contador ia falar com o Jair tinha que botar o paletó (para falar com o "Diretor") E, dessa vez, meio assustado e surpreso com o meu tom de voz, ele saiu batido. Após esses sucessivos bota-e-tira paletó, e um infindável ir e vir ele avisa: "Tudo bem. O Doutor Jair pode receber você agora." — OK. vamos lá — concordei. — Mas é melhor você colocar o seu paletó e acertar a manga de sua camisa. Eu estava, como sempre, de manga arregaçada. Ele provocou e procurou apoio, com o olhar, dentre os funcionários dele. — Vá à merda. Eu falo com ele como e quando quiser. Eu sou um profissional e me faço respeitar profissionalmente, independentemente da forma como eu estou vestido. Vá procurar a sua turma, ô capacho! Eu jamais pensei em ter que dizer isto a um profissional. Mas embrulha-me o estômago todo tipo de "puxa-saquismo." Principalmente porque ele lambia quem estava em cima e pisava sem dó em quem estava em baixo. Eu presenciara o seu rebaixamento em várias oportunidades. E o pior, por mais que ele se rebaixasse, mais o Jair exigia. A ponto de gritar com ele em público, espinafrá-lo em tom e com palavras degradantes. Ao que o Contador respondia:"Sim senhor,meu diretor." Eu tinha engulhos. Tinha vontade de interferir e obrigá-lo a reagir. Queria dizer para ele: Reaja, faça alguma coisa! Grite, dê uma porrada nele, mas faça alguma coisa! Seja até demitido, coma merda, mas não coma seu talento e sua dignidade. Afinal, você está vendendo seu trabalho e não a sua honra." Mas, enfim, a gente não pode viver a vida dos outros ou pelos outros. Acabei de falar e, ato contínuo, saí em direção à sala do Jair (com o Contador no meu calcanhar). Entrei na ante-sala, a secretária (outra que vivia debaixo do tacão do terror) disse. — Um momento, que eu vou ver se ele está. Como quem não dá importância ao que ouve, eu respondi.
— Está sim, que o Zé Carlos me disse — e automaticamente bati na porta e entrei sem esperar resposta. Conforme eu previra, Jair não se mostrou surpreso Ao contrário, estava até alegre, como que se estivesse esperando por aquilo. Só que ele não estava esperando pelo meu irracional controlado. Entrei. Sentei-me em frente dele e o José Carlos justificou: — Não tive culpa, doutor Jair, ele veio sem paletó e não quis esperar a secretária anunciá-lo. — Jair, peça pro contador se retirar porque a conversa é com você. — Disse eu, rispidamente. Muito calmamente, e até de forma estudada, como se tivesse apartando a briga de dois colegiais, o Jair falou para o Contador, em tom suave e brando: "Pode deixar Zé Carlos. Eu e o Machado temos muito para conversar. Está tudo bem." Assim que o Contador saiu, Jair perguntou: "E aí Machado? Tudo bem? Falta alguma coisa? Posso servi-lo em algo? Estão tratando vocês bem?" Disse, com fina ironia. — Tudo bem — falei. Eu vim me despedir e agradecer a colaboração. — Como? Já acabou? Acabou a auditoria? Não vai discutir o relatório comigo? — Indagou com espanto e perplexidade, e já sem ironia. — Não Jair. O relatório é reservado e confidencial. Vai direto pro Dr. Roberto e para o Magaldi. É bem possível que mais tarde eles o convoquem para ler e dar seu ponto de vista ou justificativas. Este não é o procedimento correto de auditoria, mas era exatamente o que ele merecia ouvir. Eu tinha consciência disto, tanto que mais tarde, ao redigir o relatório eu encaminhei o "sumário executivo" aos Drs. Roberto e Roberto Irineu, e o relatório, propriamente dito, foi encaminhado ao Magaldi, com cópia ao Miguel Pires Gonçalves, Humberto Palma, Calazans Fernandes, e, por último, Jair Lento. (Mas, até receber a cópia do relatório ele ficou com a minha resposta entalada.)
São Paulo, Aqui Vou Eu Terminada a primeira fase da auditoria, eu esperava por um relativo e merecido descanso. Entretanto, parecia não ser esta a minha sina, pois apesar de eu poder começar a parar em casa, chegando até umas nove ou dez horas da noite, ao invés de uma ou duas da manhã, tendo, conseqüentemente, mais tempo para o meu lazer e hobby, não seria este, necessariamente, o meu descanso merecido. Mas este hobby seria mesmo um descanso? Devido ao meu hobby de criar cães de raça fila brasileiro, acabei sendo Presidente da Associação de Fila Brasileiro do Estado do Rio de Janeiro (AFBERJ). Este cargo compeliu-me a diversas lutas em defesa desta raça nacional, de sua preservação — sem nenhum auxilio oficial —, e de uma melhoria a nível de divulgação, no Brasil e no exterior. (Isto era algo que irritava-me profundamente, pois convivendo com a Fundação, eu via que não eram preservados: o fila brasileiro, o cavalo pantaneiro, o boto cor de rosa, o mico-leão, a ararajuba, etc. Mas, sobrava verba para financiar livro de sacanagem.) Afora os problemas normais desta atividade, e da luta em prol da raça fila brasileiro, vi-me envolvido, por força do cargo, na punição do Presidente da Confederação do Brasil Kennel Club. Um cartola (eles não existem só no futebol) que pretendia viver às custas de clubes e entidades filantrópicas. Quer dizer, nós mantinhamos os clubes, e os clubes sustentavam as federações e a confederação. Ou seja, nós punhamos dinheiro, e ele tirava. Numa primeira análise, havia de tudo: Ele, o presidente da Confederação, se auto remunerava, se dava gratificações, 13? salário, mordomias, além de fazer turismo em nome da Cinofilia. (Numa entidade filantrópica os diretores não podem ser remunerados.) Como
administrador, ele malversou verbas, se auto concedeu empréstimos sem juros nem correção monetária, e fez trocentas remessas de dólares ilegais para o exterior, cujo resultado final foi uma ação fiscal que, praticamente, faliu com a Cinofilia e nos retirou a condição de entidade sem fins lucrativos. O mais interessante, é que enquanto durou nossa apuração dos fatos este sujeito tentou, o tempo todo, ameaçar-me e intimidar-me, dizendo-se amigo do Ministro da Justiça (Abi Ackel) e de um grande e influente empresário: Sr. Machiline (da Sharp). E não foi uma, nem duas vezes que, por vias transversas, chegou, na Globo, a notícia de que eu estaria perseguindo um pobre coitado bem intencionado. E, até mesmo fortes lobbies foram tentados, sentido de afastar-me ou demitirme da Globo. (Mas isto é uma outra história.) Por conta, ainda, deste "hobby" cinófilo, eu acabava vendo, encontrando, conversando e convivendo com algumas das honoráveis "figuras" citadas por mim como eventuais transeuntes do meu círculo de amizades. Muito embora eu fosse visto com muita reserva política por algumas das pessoas que faziam parte deste meio. Pois, para eles, nunca foram muito claras as minhas colocações ideológicas, vez que para a Esquerda radicalíssima eu era parte do sistema ou vendido por trabalhar para a Globo. Já para o pessoal do Direitão fanático, eu era esquerda radical-chiq. Isto porque eu usei, durante muito tempo um bottom de lapela com a estrela do PT - Partido dos Trabalhadores. Mas jamais fui filiado a qualquer partido político. Resumindo: Minha vida particular não se diferenciava, em nada, da minha vida profissional. Ao contrário, era muito semelhante, e, às vezes até mais tensa. Como, por exemplo, quando em uma oportunidade fui procurado por um grupo de justiceiros ou Polícia Mineira, no sentido de emprestar dois de meus cães para um "serviço de justiça". Houvera um estupro (crime detestado até por bandidos) de parentes de uma pessoa conhecida, e queriam uma justiça particular a qualquer custo. Tanto que até já haviam obtido o retrato falado dos marginais e distribuído a diversos amigos em várias delegacias, para que tão logo os marginais caíssem, fossem os primeiros a serem avisados. Eu neguei-me a ceder um par de cães (super agressivos) para este trabalho, e ainda aleguei que, sendo quem eram, nem precisariam de cães para esta finalidade, bastariam os seus próprios métodos, ou seja: Um torno com pressão no cérebro até o esmagamento, ou um estilete para coçar, a frio, os ossos do paciente. Entretanto, a alegação era de que a pressão da mandíbula de um fila, através de sucessivas mordidas e esmagamentos, seria mais dolorido do que os métodos tradicionais utilizados pela repressão. E, no caso, o que eles queriam era uma morte dolorida para os estupradores. Embora "sensibilizado" com os argumentos declinei do convite, e, fiz com que transparecesse como normal a justiça com as próprias mãos. Afinal, o que dizer para um agredido diante da justiça brasileira. Pois, eu sabia que se os estupradores fossem pobres, seriam presos e violentados na prisão. E, no caso contrário, se fossem ricos, ficariam em liberdade, e as moças ainda seriam acusadas de haverem se oferecido aos estupradores, e não lhes faltariam quem lhes viesse bater à porta e acusá-las de "piranhas". (Não é novidade o que eu estou a dizer, mas a lei, no Brasil, só é aplicada contra pobre. E embora eu seja brasileiro, ainda me espanto em ver um juiz apreciar a filigrana, a exegese, a hermenêutica, a loquacidade e firúlas de um advogado influente, ao invés de apreciar o mérito do fato concreto.) Dias após, ao passar por um dos justiceiros ouvi: — Eles caíram. (Era sinal de que os estupradores estavam presos.) Na semana seguinte eu ouvi a simplicidade e a ironia da frieza: Apitaram para subir. Suicidaram-se com va'rias estiletadas pelo corpo e alguns esmagaram as cabeças contra a parede. "Mas, o gozado é como é que eles, todos, conseguiram abrir a própria barriga com uma faca. (E nunca foram ou serão encontrados.) A justiça estava feita. A ditadura havia feito escola, e deixara suas seqüelas. Ar. Eu precisava de ar. E a opção, dentro ou fora da Globo, era nenhuma. Eu precisava de 100 gramas de Suíça e 200 gramas de justiça americana. Afinal, eu me recusava a ser mais um selvagem da republiqueta latino-americana. E a realidade era brasileiríssima. Eu estava mentalmente cansado, queria um refresco. — Francisco. Por favor, deixa eu ficar um pouco no escritório, voltar a fazer a parte fiscal, treinar novos auditores, e fazer recrutamento e seleção.
Eu não agüentava mais as operações de pega-ladrão, apaga-fogo ou especiais. Queria respirar um pouco. Eu estava dando choque. — Tudo bem, Machadinho. Vou te dar uma merecida folga. Você vai para a TV GloboRecife passar duas semanas na maior moleza. Hotel em frente à praia da Boa Viagem. Muita comida típica nordestina, que você gosta, que eu sei. E um servicinho absolutamente normal. — Não tem sacanagem? — Perguntei. — Não. Na TV Globo-Recife não tem sacanagem. O Cléo Nicéas tem tudo controladinho. É uma auditoria normal. Só balanço, relatórios, procedimentos, análise fiscal. Tudo normal. Não sei porque, mas eu não acreditava naquilo. Era bom demais para ser verdade. Nada de roubo, trambique, falsificação, desvios, mutretas, etc. Nem parecia trambique. Preparei meu espírito e meu coração. Enfim, um serviço normal após tanto tempo. Na véspera da viagem (tudo confirmado: passagens, hospedagens, papéis de trabalho, equipe, etc), o Francisco me chamou para um último papo. — Machado, preciso só te avisar de duas coisinhas. Mas, são coisas bobas: deve ter um roubo grande do Diretor Financeiro e um outro roubo menor no Frevança (Festival de Frevo). Mas é tudo muito simples. Você tira isto de letra. — Porra, Francisco! Você me disse que ia ser tudo normal. Sem roubo, sem trambiques, sem nenhuma sacanagem. — Mas eu não menti. Há um tititi de funcionários que querem dedurar os roubos do Armando (Diretor Financeiro), que por sinal é amigo do Miguel (Pires Gonçalves), o que não é nenhuma novidade amigo do Miguel ser ladrão. E o Frevança foi um festival. Você já viu festival ou qualquer outro evento, na Globo, dar lucro ou não ter roubo? — Mas você disse que não ia ter esse troço. . . Choraminguei. — É simples, Machado, E SÓ levantar os depoimentos dos funcionários, o total roubado, os bens dele, uma confissão, e os procedimentos normais. E no Frevança é mais simples ainda, é só ver quem roubou e quanto. — Só? — Perguntei como quem quer esganá-lo. — Pense positivo. (Com ironia.) Veja só: praia, passeio, tudo pago, mordomias, e um grande relax fora da tensão daqui do escritório. — Disse com suavidade, como quem sabe que não vai convencer. Se morrer fosse reversível, eu queria morrer uma semaninha só. Durante o fim de semana que antecedeu a minha viagem ao Recife, passei a maior parte do tempo lendo os documentos que o Calazans havia me enviado naquela semana. Era um malote por dia, com uma média de 3 kgs de papéis diários. Apesar da primeira fase do serviço da Fundação haver terminado, e o relatório ter sido entregue, o Calazans mantinha viva a ligação, diuturnamente atualizando-me, e tentava, a todo custo, convencer-me a falar com o Dr. Roberto (para demitir o Jair Lento e o Magaldi), ao mesmo tempo em que ele batalhava, por todos os meios, no sentido de impor meu nome como um nome de consenso (consenso só dele e do Matsumi) para ocupar um cargo na Fundação, acima da Diretoria, e que seria o elo de ligação desta com o Secretário Geral. Isto porque, dentre as diversas sugestões apresentadas pela auditoria, no relatório constava uma, de caráter geral, que era exatamente esta: entre o Secretário Geral — que é um cargo político — e a diretoria, deveria haver um cargo técnico (controller) para apreciação e avaliação de todos os projetos e suas movimentações financeiras. Além de vir a ser o responsável por toda organização e normatização daí pra frente. Só que a visão da auditoria era técnica, e os cargos existiriam independentemente de pessoas, enquanto que para o Calazans, que acha que até aniversário de criança é fato político, a coisa seria um pouco diferente. Bastaria uma ligeira pressão e ele se transformaria em Secretário Geral, eu então controller, e os demais diretores continuavam como estavam. Entretanto, eu não apoiava esta opinião, pois até determinação em contrário, esta seria uma decisão pessoal do Dr. Roberto, e o Magaldi deveria continuar sendo o Secretário Geral. Fui para o Recife com o firme propósito de não envolver-me emocionalmente com os fatos da auditoria, e, tanto quanto possível, ser irresponsável — quase tanto quanto um empresário brasileiro. Resolvi levar rigorosamente a sério as recomendações iniciais do Francisco: praia, passeio, mordomia e relax. Acordava às 6h30min, às 7 horas já estava correndo na praia, e descansava até
8h 30min. Ia pro hotel, tomava banho, e fazia um farto desjejum (próprio de bons hotéis). Às 9h 30min eu já estava na TV Globo-Recife. Procurava preocupar-me com o que almoçar, aonde jantar e o que fazer após o jantar. Recusava-me a pensar em trabalhar após as 19h. Queria ser um trabalhador comum, com hora para entrar, hora para almoçar e hora para sair. Queria experimentar um pouco desta normalidade. Como quem apronta seu roteiro de viagem, eu me impunha uma antevisão do almoço e do jantar: carne de sol, com cebola doce em cima, manteiga de garrafa e farinha grossa. Refresco de pitanga para acompanhar. E, para sobremesa, queijo frito com mel de engenho. A noite, após o jantar, curtindo a brisa marinha e o calor das noites quentes do Recife, comer sobremesa andando pela calçada da praia: chupando serigüela ou pitomba. Eu adoro curtir a simplicidade das coisas. Felizmente tive a oportunidade de, em função de ser auditor, viajar Brasil afora, podendo curtir cada pedaço de chão desta terra maltratada. Às vezes pensando em como é difícil para o brasileiro comum curtir o Brasil. Seus lugares, seus hábitos. Desde, no norte, subir o rio num "motor", e comer uma "banda" de tambaqui na brasa, ou enrolado em folha de bananeira. Tomar guaraná no Amazonas. Descer pro nordeste e sentar num restaurante de beira de praia e comer patinha de uçá (aquela pata enorme — maior do que o próprio caranguejo) com limão e batida. Comer a lagosta e o camarão do nordeste. As frutas de cada região. A apimentada comida baiana. A "lambreta" com limão e pinga. Ao leste, curtir a tradicional comida mineira, a carioquice da feijoada, do mocotó, da rabada com polenta e agrião, do cozido, da peixada com pirão e molho de camarão. Ir ao Sul e ver: o que é melhor do que um churrasco de costela de ripa em meio ao interior gaúcho? Quem sabe um "pintado" na brasa bem no coração do pantanal, no Centro-Oeste. Gozado, vendo e revendo agora certas coisas, eu comecei a notar que conheci mais lugares pela boca do que de qualquer outra forma. Creio que é por isso que detesto almoço e janta de hotel (qualquer que seja o hotel). Nada é pior do que isso, ou do que comida de restaurante de centro de cidade (exceto São Paulo; São Paulo é o mundo gastronômico dentro do Brasil). Meus pensamentos iam longe, muito além da realidade pernambucana. Levando-me aos meus filhos e aos meus cães. Eu pensava em como é bom abrir todos os canis e soltar todos os cães de uma só vez. Ver as crianças rindo e brincando com os cães, todos em perfeita harmonia e equilíbrio, numa muito positiva troca de energia. Incrível, como um animal tão violento como um fila pode ser tão meigo e dócil. É fantástica a fidelidade de um fila. Eu sempre amei demais os meus cães, e genericamente a raça fila brasileira. A fusão desta paixão à minha paixão maior, que eram os meus filhos, era tudo que eu tinha de mais caro na vida. Sempre me senti um privilegiado: a vida me tratava muito bem, e eu não admitia haver, no mundo, ninguém mais feliz do que eu. E esta era a paz que eu precisava para enfrentar o resto. A partir daí não importavam as circunstâncias de pressão, e nem as possíveis adversidades. Eu tinha a paz interior necessária para o meu tipo de serviço. Voltando para o motivo da minha presença no Recife: já sabíamos como o diretor (Armando) roubava: ele pegava todo o dinheiro em caixa do início do mês e devolvia no final. Neste meio tempo ele aplicava este dinheiro, particularmente, onde o crédito era direto em sua conta. E já tínhamos depoimentos, provas documentais, e uma noção da extensão do golpe. Sabíamos sobre os bens particulares comprados por este diretor, e tínhamos tudo alinhavado em grandes números. A princípio, o golpe era muito simples, mas havia alguns requintes em sua elaboração, pois todos os balancetes estavam perfeitos, fechavam corretamente mês a mês, e, se ninguém o delatasse, ou se não houvesse alguém superior ao diretor financeiro para cobrar dele o que era feito com o dinheiro {Source and applications of funds), muito dificilmente ele seria descoberto, ou pelo menos levaria um longo período praticando sua "operaçãozinha" particular. Já quanto ao Frevança, a coisa era mais complicada. Pois, de concreto, só tínhamos os tapes, onde via-se um grande número de público, num estádio cheio, em contraste com uma venda espelhada no bordereaux de menos de 10% do público real. Como não havíamos sido chamados para tomar as medidas necessárias antes do festival, o nosso papel passava a ser de apenas constatadores de evidências. (Isto porque, como é regra da turma que rouba nos "eventos", tudo era destruído posteriormente: talões, canhotos, tickets, mapas, controles, documentos etc. Sem falar nos acertos verbais: Merchandising acidental, contratos de boca, etc.)
Eu já havia antecipado isto ao Francisco, e não esperava grandes coisas num caso comum de diretor ladrão, e de um roubo generalizado em "eventos". Mas, para ele, Francisco, era sempre bom pegar um dos amigos do Miguel (Pires Gonçalves) roubando, pois demonstrava, para o Dr. Roberto, que se ele (Miguel) não havia ainda sido pego roubando na Globo, a regra pros seus amigos era bem ao contrário. (Havia, no Francisco, um prazer especial em provar que os amigos do Miguel roubavam.) Após a primeira semana retornei ao Rio para passar o fim de semana, pois não queria ficar sábado e domingo no Recife. E, além do mais, eu tinha que fazer um relato verbal ao Francisco sobre como estavam as coisas, e receber toda a minha (vastíssima) correspondência da semana. (Os malotes do Calazans.) Para variar, Calazans havia me mandado quilos e mais quilos de correspondência, via malote. Havia deixado vários recados telefônicos dizendo que precisava falar comigo com urgência. Vim a saber que àquela altura ele já estava quase que impingindo meu nome, usando como pressão: Humberto Palma, Miguel Pires Gonçalves e o próprio Magaldi. O Francisco colocou para mim que era quase que inevitável a minha transferência para São Paulo. E indagou-me se eu queria que ele negociasse a minha transferência. Concordei e tracei as exigências básicas: queria um bom aumento, acima dos 25% de transferência. Queria uma casa de três quartos e muito quintal pros meus cachorros, em um local de bom padrão, na zona sul (Morumbi, Cidade Jardim ou Cidade Universitária) ou zona oeste (Lapa, Perdizes ou Pacaembú). Tinha certeza de que o Francisco seria melhor negociador do que eu pois, ao contrário do que se possa pensar, ele era muito cioso na defesa dos interesses dos auditores que saíam para ocupar cargos em outras empresas do Grupo. E ficava orgulhoso quando a transferência era para uma posição importante, uma vez que era a forma de demonstrar que a melhor opção para o Grupo era um ex-auditor num cargo de direção.(Assim não teriam tantos ladrões dentro da Globo.) Ainda passei mais duas semanas no Recife, encerrando o "caso Armando", quando, no último dia, já no hotel, com as malas arrumadas, faltando umas duas horas para o embarque, toca o telefone. Era uma conhecida voz feminia falando com torte sotaque castelhano. Eu não acreditava em como a Terezita (Assistente/Secretária) do Calazans havia conseguido me localizar no hotel, principalmente porque na auditoria ninguém dava o paradeiro de ninguém. (Mas o Calazans havia telefonado para Deus e o mundo para saber em quais empresas havia trabalho de auditoria. E, por tentativa e erro, chegou na TV Globo Recife, no Cléo Nicéas e, conseqüentemente, no hotel onde eu estava.) Para variar, exaltou as qualidades e importância da Fundação, e da importância da minha aceitação e ida para trabalhar em São Paulo. Foi quase uma hora de conversa, tentanto convencer-me a aceitar o cargo de Controller, alegando inclusive, que já havia um consenso Global em torno do meu nome. E que só dependeria de mim e das exigências que eu estava impondo ou que pudesse impor. Ao chegar no Rio, Francisco confirmou a pressão que o Calazans estivera fazendo (isso ele fazia como ninguém), e que só dependeria de mim a aceitação da transferência, pois tudo o mais havia sido acertado e concordado por todos. — Todos concordaram com a minha indicação para o cargo de controller? — Perguntei. — Bem, todos, todos, não. 0 Jair Lento foi contra. Mas isso não é importante. Ele está com medo e com ciúmes. Está tudo acertado, É SÓ você ir lá conversar com o Magaldi, acertar os detalhes finais e sua mudança que, por sinal, a Globo também vai pagar. — Concluiu o Francisco. Assim as coisas foram se desenrolando. Cada vez mais rápido, no sentido de eu ir de vez para São Paulo. Como já estávamos próximo do fim de ano, o clima era típico daquele que antecede o Natal. Tudo era motivo para comemorar. Havia o almoço de confraternização da auditoria, o meu almoço de despedida, a bagunça de fim de ano no escritório, a festa da Fundação, no Depto. de Educação, a festa da Fundação, no Depto de Televisão, e a festa geral da Globo. Enfim, não faltava motivo para eu comemorar a transferência e o Natal. Eu sentia muita energia positiva na sinceridade dos meus colegas auditores. — Aí, hem... crachá prateado! (Símbolo máximo de vaidade Global.) — Vais pagar um almoço no melhor restaurante do Rio. — Eu brincava e dizia que não havia "o melhor restaurante do Rio"; havia o menos pior.
Foram tantas as manifestações que realmente era doloroso sair da auditoria. Principalmente pelo ambiente de camaradagem, capaz de transformar em máxima uma frase de caminhão: "Nóis sofri, mais nóis ri." Fui dispensado de todo o serviço e autorizado a "voar" com liberdade, tempo exclusivo para dedicar-me a cuidar de meus assuntos pessoais. Pude sentir-me como um perfeito vagabundo, pois não estava acostumado a não justificar, todo o dia, o que, como e onde eu havia gasto o meu tempo. Era uma sensação estranha não ter que preencher time sheet e não justificar dia a dia o meu trabalho. Eu fui a todas as festas, principalmente às da Fundação em São Paulo, e pude ir me entrosando, mesmo antes da transferência oficial. Até porque fui muito bem recebido pelo Calazans e pelo Matsumi, e por todos os componentes de seus departamentos. Sentia-me completamente à vontade, e achava que em razão disto teria todas as condições possíveis para desenvolver um bom trabalho e colocar toda a parte organizacional da Fundação em ordem. As ajudas vieram de toda parte. Desde a assistente do Calazans, Terezita, que ajudou-me a encontrar uma casa no Morumbi e providenciou toda a minha acomodação. Tratando inclusive da mudança. Até o Matsumi, que se prontificou a ser meu fiador no aluguel da casa. (Isto porque a Globo não quis alugar diretamente em seu próprio nome e resolveu conceder-me o pagamento através de uma PJ — Pessoa Jurídica — aberta em meu nome, especificamente para receber aluguéis e gratificações futuras, e fugir do imposto de renda. Casa de ferreiro, espeto de pau.) Seria mesmo? Se, por um lado eu temia por perder o pique das brincadeiras do pessoal do escritório do Rio, por outro, eu sentia que o pessoal de S. Paulo era tão bem humorado quanto. Matsumi era um palhaço. Vivia de brincadeira com outros diretores, dentro e fora do seu departamento, e até mesmo com alguns funcionários. Adorava tirar o Calazans do sério, e inventava mil histórias. Dizia que o Maruilson (afilhado do Calazans e seu auxiliar direto) foi coiteiro do "Coroné Chiquinho". (0 Matsumi chamava o Calazans de "Coro-né Chiquinho", pois o nome completo do Calazans é Francisco Calazans Fernandes. E ainda segundo Matsumi, Calazans era um grande latifundiário no Rio Grande do Norte, sua terra natal.) Inventava um diálogo, possível, entre Maruilson (então um menino de porteira da fazenda do Calazans) e o próprio Calazans: — Maru... (apelido do Maruilson) pega us pau pra disatolá us boi (imitava a voz do Calazans, com forte sotaque nordestino). — Vou não, coroné (imitando o Maruilson). — Vai, minino. Us boi tá tudo atolado. — Vou não, coroné. O coroné é muito rui cumigo. — Ruim como? Minino cabra da peste... — Da úrtima veis, eu tarra disatolanu us boi pela bunda i o coroné ferruou elis, i elis bostejarum tudu mi mim . . . vô nada. . . O Maruilson xingava o Matsumi de tudo que era forma. O Calazans ria e dava o troco. Sabia que não podia ficar competindo com o Matsumi em sacanagem. — É, Japonês... Você é alegre mas é para esconder a tristeza de não saber quem são teus pais. Japonês chega ao Brasil sem pai e nem mãe. O pai, foi o último que saiu do bordel; a mãe, ainda trabalha lá. Matsumi ignorava, solenemente, toda provocação. — Coroné... (imitando nordestino) u sinhô ainda comi raspa de tijolo e ingoli vrido? — Ataca Matsumi como que não ouvindo a provocação. — Japonês... Você sabe por que japonês tem olho puxado? Como o Matsumi sabia a resposta ( que era: porque o médico, ao invés de dar o primeiro tapinha no traseiro do recém-nascido, enfiava o dedo), dizia: — É porque é descendente de nordestino, que tem os olhos apertados de fome e é amarelo de icterícia. E se deixasse, a coisa ia longe. Virava, mexia, e lá estava o Matsumi sacaneando quem quer que fosse. A graça das coisas que ele dizia, é que sempre havia uma seqüência, embora breve e seca. Se, por exemplo, o Maruilson perguntasse pro Calazans: — Onde estão os fotolitos pro jornal assim assado...? — Se o Matsumi ouvisse, atravessava a conversa e sacava: — Lá nu quartu de guardá us páu dus boi. — Aí o Maruilson "subia a serra".
Matsumi virava-se para o Guerra (Gerente Administrativo), que é português, e dizia: — Grande Guerra... Isso é inteligente que dói. Português inteligente (ironizava). Meu sonho era ser português. Se não fosse japonês, eu queria ser português. Era o sonho da minha vida. Desde criança, eu vivia pedindo pro meu pai: Papai, papai... quando eu crescer deixa eu ser português? E o meu pai respondia: Larga mão de ser maluco menino, porque senão você acaba burro que nem português. O Guerra fingia que não ouvia. Às vezes ria, mas não ligava. Não adiantava. Um dia o Jorge Matsumi e o Carlinhos (Carlos Justino) — um diretor geral, outro, diretor executivo — resolveram me contar (a sério) o porquê do cacoete do Jair Lento. Explico: Jair Lento, diretor financeiro e administrativo da Fundação, tem um cacoete bastante visível, que é distorcer a voz, e falar pelo nariz, ao mesmo tempo em que vira a cabeça para o lado, esticando o pescoço e simulando estar ajeitando o colarinho. No tempo em que o Jair era recruta e ordenança do Coronel Paiva Chaves (Diretor da Globo), ele cuidava da égua do coronel. De tanto viver esfregando a água, e a água bater com o rabo espantando as moscas, ele pegou o cacoete de fugir do rabo da égua, esticando o pescoço e virando a cabeça pro lado. Jair foi subindo de posto no exército, foi subindo, até que um dia já podia ter seu próprio ordenança. Pegou a égua, levou na Lopes Quintas (Emissora), enfiou ela no elevador e colocou na sala do Coronel Paiva Chaves. Que, naquela época, era um importante diretor da Globo. O Coronel, quando reviu o soldado Jair, que agora era major, falou pra ele: — Jair. O que você está fazendo atualmente? Jair respondeu: — Nada, Coronel. — O Coronel convidou: — Quer trabalhar na Globo? — Jair, de pronto: — Claro. — Coronel: — E o que você sabe fazer? — Jair: — Nada, Coronel. — Coronel: — Não faz mal... vai pra Fundação que ninguém nota. Calazans se esforçava para não rir. Mas ficava mais engraçado fazendo tipo e dissimulando o riso do que risse abertamente. Numa dessas vezes, justamente na segunda reunião de diretoria a que compareci, quase que vai tudo pro espaço. O Jair, talvez sentindo-se desconfortável com minha presença, ficou atacado do cacoete. Era um tal de segura o colarinho e estica o pescoço, que irritava. Carlinhos, sentado entre Calazans e eu, sussurrou no ouvido do Calazans, mas audível para quem estivesse ao lado: — Tch, tch, tch... ôôô... Calma. — Calazans ficava vermelho, disfarçava, e do outro lado o Matsumi atacava (alto): — A égua hoje está fogo... Calazans perdia o controle, não falava mais nada com nada. Esticava a conversa, tipo conversa de potítico, para dar tempo de raciocinar e pôr os nervos em ordem. O Nelson (Mello e Souza), que não estava entendendo nada, perguntava: — Égua? Que égua? — O Matsumi consertava: — Não é égua não. É a égua. A água está fogo. Está quente, e o calor está brabo. — E tudo ficava no lugar. Era muito difícil uma conversa ser chata com o pessoal da Fundação (São Paulo). Tinha muita gente inteligente, e o pique era bastante elétrico. — Dá-lhe co-piloto. — É a velha. Este insólito diálogo era uma rápida passagem minha diante da porta do Luiz Lobo. O Lobo estava escrevendo o Zero a Seis (um programa da Fundação, voltado para a discussão dos problemas da faixa etária de zero a seis anos) e, como o tempo de televisão tem que ser coordenado com o texto, o Lobo escrevia os textos com um cronômetro ao lado. Daí, toda vez que eu pegava ele distraído, eu soltava um "co-piloto" ou então provocava: "Lupus", "a", "um"; e ele fazia um gesto obsceno, mandando-me para algum lugar, ou mandava mesmo. O Lobo tem um mau humor ótimo. Além desta, tem outras qualidades: é flamengo e não gosta da Mangueira. Como todo carioca, adotivo e adotado, pertencente à intelligentzia é blasé e iconoclasta. (Regra máxima da Intelligentzia de bar.) Não gostava quando eu desancava com a Intelligentzia, e dava a "receita do bolo" do intelectual carioca: "Pegue um carioca qualquer, faça uma imersão cultural de seis meses de leitura de orelha de livro e de leitura de sinopses de bestsellers. Posicione-o contra tudo, principalmente contra o óbvio e os consensos. Ensine-o a ser blasé e a achar absolutamente normal, do quotidiano à aterrisagem de um disco voador no Bairro Leblon. Encha-o de chopp, pois estão intimamente ligadas a inteligência e a metragem cúbica de chopp. Mexa bem, e aí nós teremos um intelectual especializado em generalidades."
Aí eu virava "reacionário", "conservador", "anti-contracultura", "sintetizador de rótulos", ou simplesmente um "fidaputa". Eu não estava sentindo muita diferença entre o clima do pessoal do Rio (auditoria) e de São Paulo (Fundação). O pique do pessoal era muito bom. Eu só não sabia é se em São Paulo o pessoal iria reagir igual, ou tão bem, diante da pressão e adversidade. Em termos de satisfação particular, eu sentia-me melhor e mais bem instalado em São Paulo do que no Rio. A qualidade de vida em São Paulo é ótima, e há uma reação expansionista interessante, pois a miséria é expulsa para a periferia, como numa máxima econômica de que a moeda boa expulsa a moeda má. E com isto, a partir do centro, pode-se morar bem na zona sul, na zona oeste, ou até mesmo na zona norte (exceto zona leste). Bem diferente do Rio, que mesmo quando você mora bem, está a cinco minutos da favela mais próxima. Eu não tenho nada contra a pobreza e a miséria. Muito pelo contrário. O que indigna-me é a pobreza com a falta de dignidade. Pois você vai ao Sul e vê gente paupérrima, morando em casas de madeira, e vê tudo bem cuidado, bem tratado. A maior limpeza. Você não vê sujeira. Não há imundice e nem indignidade. Enquanto que a pobreza no Rio é sempre indigna. 0 sujeito mora e convive com o lixo. Ele vive e mora numa lixeira. Atira lixo pela janela. Joga lixo na rua, e acostuma-se a viver na pocilga. A diferença básica é que a pobreza no Sul é digna e limpa. No Rio, a pobreza é humilhante, indigna e porca. Eu curtia São Paulo, e não tinha o menor receio em dizer isto, no Rio ou em São Paulo. Sabia que as pessoas não acreditavam, pois alguns paulistas achavam que eu gostava de São Paulo de forma circunstancial. Ou seja: só porque agora estava morando lá. Outros, cariocas, achavam que eu gostava de São Paulo por traição ao Rio. Era difícil fazer-me entender diante de uma coisa simples: a qualidade de vida lá era melhor. Podia-se andar horas e horas sem ver ou conviver com sujeira e imundice. Para mim isto era ótimo. Quando eu voltava ao Rio, a passeio, revia amigos e conhecidos, e procurava informar-me com alguns cinófilos como estavam as coisas no clube, na federação e na confederação. E era difícil fugir da sabatina óbvia: — E São Paulo... É bom? — Está estranhando o clima? — O pessoal é legal? — E a adaptação das crianças, escola, e amigos novos? Mas o mais constrangedor, mesmo, era ter que fugir da inevitável sabatina política. Ainda mais quando a indignação esquentava o sangue e a língua coçava. Pois havia um movimento monstro pelas "diretas já", e a Globo anunciava tudo, menos o movimento de povo na rua. Panelas batendo e buzinas na rua? Nem pensar. O país anunciado no Jornal Oficial Nacional da Globo era ótimo. Tudo estava bem. Não havia fome, miséria, insatisfação e nem nada. E, nessas horas, assim como a maioria dos jornalistas dignos e que são proibidos de noticiar o que sabem, eu morria de vergonha de trabalhar num veículo tão indigno. Tudo que eu via era a distorção da verdade, o escamoteamento, e verdades de uma perna só. Ouvir as duas versões? Nem pensar. Meu sangue fervia como num miserável John Doe. Como esperar alguma coisa de um canal concedido, subserviente ao órgão concedente, e dizendo a verdade em função de quem anuncia? Como esperar isenção e decência de uma verdade orwelliana? O próprio país era regido pel'A Revolução dos Bichos. Todos eram iguais perante a lei, só que uns eram mais iguais do que os outros. Kafka era "processado" todos os dias. O banditismo elitizado campeava. Eu tinha nojo de viver numa republiqueta terceiromundista. O Brasil sempre foi um país de cagões, Deixamos de ser Estados Unidos do Brasil para ser Re-publiqueta Federativa do Brasil por imposição dos Estados Unidos da América do Norte. Vi o nosso presidente, humilhado, representante máximo de todo o povo brasileiro, que há muito posava de machão, que prendia, torturava, batia e arrebentava, fazer uma das mais patéticas declarações e confessar: — Não posso mexer na lei de remessa de lucros, senão a Cl.A. me derruba no dia seguinte. — Eu ficava espantado e tinha vergonha de viver num país com gente assim. A antítese do admirável mundo novo, e da velhice shakesperiana: "Oh Wonder. How many beautifull themankind is". — Tudo bem? Esta era a pergunta mais alienada e provocativa que eu podia ouvir. Era duro ter consciência da realidade e viver de fantasia. Duro era ter que dissimular. Não ser um incendiário prum radical, e nem "bombeiro" prum alegro ma non tropo beautifful people.
Provocações? Enfrentava com galhardia. — Como é, guerreiro, foi para São Paulo para agitar no PT? — Vai ficar mais perto do Lula, né...? — A coisa mais séria que surgiu no Brasil nestes vinte anos foi o PT. — Eu respondia irritado, mas dissimulando a irritação. — É... mas a coisa vai mudar. E, logo logo esta "esquerdinha festiva" vai estar toda cantando no pau de arara, de novo. — Dizia, ameaçadoramente. — E o teu patrão (Roberto Marinho)? Vai apoiar quem pra suceder o Figueiredo? Aureliano ou Maluf? — Provocava, novamente. — Sei lá... qualquer um que for presidente. (Com o poder, sempre.) E você, está com Figueiredo e não abre? — Mudei um pouco o lado da vidraça, e dei uma de provocador (O resultado foi imediato). — Eu quero que ele morra: vendido pra Globo, com filho corrupto e envolvido em escândalo. Ele só comendo menininhas em Brasília, e a mulher borboleteando com Deus e o mundo — disse irritadíssimo. — Ué... Mas ele não era o chefe do SNI? Não foi teu chefe? Não era o "modelo" da linha durai — Estoquei mais fundo. — Linha dura porra nenhuma. Nem ele, nem Golbery, nem Nini ou Etchgoyen. Da mesma forma como a esquerda se divide, a direita se reparte. — Disse, com profunda irritação. — Cuidado que o Frota sobe a rampa e toma o poder na porrada — aticei mais ainda. — Pode parar. Você não fala nada da Globo e fica querendo pescar as coisas comigo. Vai procurar a sua turma, Guerreiro. Afinal, você é infiltrado ou não? Tremendo agente capacitado do imperialismo dando uma de esquerda radical chiq, com estrelinha do PT no peito. — Ele tentou devolver-me a bola. — Eu não sou maniqueísta, mas o grosso dos problemas brassileiros passa pelo maniqueísmo: patrão/empregado. E o PT teve a coragem de explorar isto, ainda que debaixo de porrada. Veja bem: Os políticos são patrões, defendendo seus interesses. As notícias são dadas por patrões. A polícia defende os patrões (e dá porrada em empregados). Não há segurança para os cidadãos (empregados), mas para defender o dinheiro dos patrões há até perseguição com helicóptero. A própria lei só é observada contra empregados, pois contra os patrões a lei vira "letra morta", ou lei que "não pegou". Pode? Um país sério com leis sofisticadíssimas para infernizar a vida dos pobres e proteger os ricos? Imagine o cúmulo: Você é obrigado a estar servindo um patrão, caso contrário, você é preso como vadio. Pode: Quando um patrão dá trambique, não deposita o FGTS, não paga salário, sonega e manda seus funcionários irem procurar a "Injustiça do Trabalho", não acontece nada. Ele é patrão e a polícia está do lado dele. Agora, quando um empregado reivindica algo, entra na porrada, dadas pela própria polícia que é mantida com os impostos do povo. É isso aí. Eu tenho é uma puta vergonha de viver num país assim, onde a maior discriminação não é, como se pensa, contra a mulher ou contra o preto, mas contra o pobre. Você não nota, mas a sociedade, a mídia e os meios de comunicação ensinam, deslavadamente, o ódio contra o pobre. Ensinam a desprezar o perdedor, a cultuar o vencedor e o babaca do herói. Esta sociedade que está aí sufoca e não dá meios a todos e, quando você cresce, você aprende a odiar aqueles que não tiveram chance social. Aprende a achar que lugar de pobre é no xadrez. Cara. . . isto é pregação hereditária do ódio entre seres humanos. Estamos esquecendo o básico: nós todos somos seres humanos. — Quer dizer que o Lula é a salvação do país? — Nova estocada de provocação. — Eu não estou dizendo nada disso. Lula não é a panacéia, mas ele é muito maior do que você possa supor. O PT é criação dele, e a partir do PT surgiram Menegheli, Olívio, Genoíno, Greenhalg, Barelli, Pazzianoto e um monte de gente que surgiu e surgirá. Eles estão criando sociedade. Para eles se você puder. — Complementei. — É tudo farinha do mesmo saco. Vão chegar no poder, se chegar, e vão fazer tudo o que os outros fizeram. Vão comprar mansões, remeter dólares pro exterior por baixo do pano, e o povo que se dane. — Retrucou H. — Pode até ser. O perfil histórico brasileiro indica isto, mas um dia a base mata eles. — Ameacei. — Como assim? — Indagou curioso.
— Nós caminhamos para o controle do Legislativo, do Judiciário e para os "pequenos assassinatos". Onde o Legislativo vai ter que pagar imposto igual a todo mundo; não vai poder votar lei em seu próprio benefício; vai ter que trabalhar senão seus integrantes perderão seus cargos, serão demissíveis como qualquer trabalhador; e a composição da Câmara e Senado será paritária (metade representada por patrões e metade representada por empregados). Enquanto que o Judiciário terá que promover a justiça, ou as justiças particulares engolirão os próprios conceitos de lei, direito e justiça. E isto não é algo pra cinco, dez ou quinze anos, mas caminhamos para lá. Pois o povo não crê nas instituições, não crê mais em nada. Há uma puta falência de credibilidade. Por outro lado, tem a turma do osso, que guarda, não divide, não larga e quer o continuísmo. Cedo ou tarde a sociedade irá partir para as "justiças particulares", e aí sim teremos a grande revolução social brasileira. Pois enquanto os donos do poder não se sentirem ameaçados. Enquanto eles puderem rir, cinicamente do semelhante, nada mudará. Mas eles esquecem que a mudança que ocorrerá no Brasil será sangrenta, pois não há mudança sem dor. (E justiças e injustiças serão praticadas, tudo em nome dos excessos revolucionários.) — Que porra é esta de "pequenos assassinatos"? — Perguntou ele, com notada indignação e curiosidade. — Isto é da tua e da minha geração. Eu não digo que a intelectualidade de esquerda do Caderno B só lê e só vê o que for assunto de bar? Mas voltando ao assunto e satisfazendo a sua curiosidade: "pequenos assassinatos" (e que Elliot Gould me perdoe) é quando um parente seu é morto por um PM e a corporação não pune o culpado. Dai', você cai na clandestinidade e mata um PM por dia até eles entenderem que enquanto a lei não for respeitada, vale a lei da selvageria. É contra todos. "Pequenos assassinatos" é quando você vê um empresário sair ileso, e de repente você nota que ele, ou parente dele, foi morto por um grupo de extermínio, acima da lei. Quer dizer, são fiscais do cumprimento da lei usando suas regras próprias. É um movimento lento, que aos poucos irá tomando forma, até que, como agora, onde a impunidade de quem tem dinheiro campeia solta, as pessoas se sentirão com coragem de praticar os "pequenos assassinatos", por se sentirem impunes ou com justos motivos. E no dia em que, por medo, terror, pavor, ou o nome que você queira dar, os donos do poder entenderem que serão justiçados por injustiçados, e que a lei da selvageria é incontrolável e animalesca e será usada contra eles, irão sentar-se e fazer um novo Contrato Social, com leis para valer e serem cumpridas. Antes disso, eu não creio em nada. São só homens, são só nomes. Meros vampiros sociais. Gozado. Eu falando desta forma com o H. Fosse alguns anos antes, e eu sumiria rapidamente só por externar este tipo de pensamento. Mas estávamos em fins de ditadura militar, entrando na ditadura empresarial, e falar e pensar eram quase permitidos. Graças a Deus, eu estava em São Paulo, e na Fundação teria tempo suficiente para pôr minha cabeça em ordem. Ficar um pouco alienado das injustiças sociais, das mentiras da informação do Jornal Oficial Nacional, e longe do "pega-ladrão"da auditoria. Eu precisava desta folga. Estava muito indignado com tudo que se passava com o Brasil e receoso da minha postura. Até porque eu me conhecia bem. Bem o suficiente para saber das minhas reações. Por isso, levar o trabalho sério a sério, e as pessoas na brincadeira, seria, para mim, antes de tudo, sobrevivência.
A Segunda Auditoria Eu estava empenhado em ajudar um amigo, Raul Queiróz, a encontrar uma boa casa, pois, assim como eu, ele havia sido transferido da auditoria para São Paulo, para ser o Diretor Administrativo Financeiro do Sistema Globo de Rádio em São Paulo. Eu queria eliminar todos os problemas que havia encontrado quando da minha transferência, fazendo com que ele tivesse menos problemas do que eu tive em termos de achar um bom local para morar, um bom colégio pros filhos e que sua adaptação fosse menos sentida. A minha preocupação era devido ao fato de o Raul haver tido uma péssima experiência em termos de transferência anteriormente. Ele havia feito um trabalho excelente quando das
negociações e compra da Almec (Pegeaut), tendo sido convidado para um cargo ótimo, a nível de superintendência, e mudou-se com armas e bagagens para Montes Claros. Entretanto, num curtíssimo espaço de tempo, por motivos absolutamente financeiros, a Globo resolveu vender a empresa, e o Raul teve que retornar ao Rio, com toda a família, e morar em hotel. (Os móveis foram para um Guarda-móveis, as crianças ficaram desorientadas em termo de escola, e a própria família nem sabia mais onde morava.) Em razão disto, eu, assim como outros amigos da auditoria, trabalhando em São Paulo, estávamos empenhados nesta tarefa de ajudá-lo. Seria muito bom ter mais um amigo por perto, mas não era só um simples amigo, e sim um de qualidade. Pois o Raul é daqueles que trombam fácil, com o mundo inteiro, em nome de uma amizade sincera. Nosso último trabalho juntos havia sido exatamente no Sistema Globo de Rádio, que, para variar, fora mais um grande "pega-ladrão", e que será objeto de um enfoque mais minucioso no livro Inside Globo, parte desta trilogia. O trabalho do Sistema Globo de Rádio fora iniciado quase que de maneira semelhante ao da Fundação. Deveria ser um serviço normal, igual ao feito todos os anos, até que mudou-se a equipe e o enfoque, abrindo-se feridas e mais feridas. Na realidade, não foi nem bem uma mudança de equipe, mas uma competição de equipe. Pois eu não havia concordado com a ótica que estava sendo dada ao trabalho. Disse e escrevi isto ao Francisco, chegando mesmo a ser deselegante com um colega que coordenava os trabalhos, alegando que de nada adiantavam todas aquelas pastas, todos aqueles papéis, documentos, circulares e etc, e com os números todos "cruzadinhos", tudo batendo. Se ninguém conversava com os números ou não dava um enfoque macro aos tipos de problemas que o Sistema Globo de Rádio tinha. Pois eu não achava normal ver a briga surda de entrega-entrega entre o Superintendente (Lemos) e o Diretor Financeiro (Mourão), ou que fosse desprezível o apelido do Waldyr Amaral, que às escondidas era chamado por grande parte dos funcionários da Rádio Globo, de Waldyr do Jabá. ("Jabá", em meio artístico, significa "bola", "propina". É usado para designar o dinheiro que se dá para que o comunicador faça merchandising sem a empresa saber, ou para promover um cantor, um artista, ou para que toque determinada música.) Fiquei no serviço até que fui convocado (para variar) para outro pega-ladrão, ou apaga-fogo, mas o Raul continuou com o Sistema Globo de Rádio até o fim. Deste trabalho restou, de interessante, dentre as outras coisas que serão enfocadas no Inside Globo, a colocação folclórica do Mourão, Diretor Financeiro; inventor da história do Jaboti, já contada no inicio deste livro. E que foi ocasionada pela descoberta da troca de notas fiscais entre empresas do mesmo Grupo. Vale dizer, as rádios que tinham prejuízo faturavam contra a Rádio Globo (que era lucrativa), para que fechassem o mais próximo do zero a zero, ou seja: com um pequeno prejuízo ou um pequeno lucro. E, com isto, o lucro da rádio Globo seria diluído entre as demais rádios do Sistema. (Um interessante sistema capitalista cooperativado.) Imprensado diante desta realidade provada e documentada; mostrando, inclusive, a irrealidade do faturamento, e a falta de lógica em se anunciar no próximo veiculo que retransmite sua própria programação, Mourão, folcloricamente, cunhou a história do Jaboti, como que a dizer: "Só cumpro ordens. Quem botou o Jaboti na árvore foi o doutor-patrão". Criatividade nunca foi o forte dos que se sentem impunes. De volta à Fundação, sentia-me com toda a motivação do mundo em organizar tudo. Praticamente criando do zero. E foi pensando nisto que convoquei a equipe de O&M da Globo para implantarmos toda a parte normatizável (a que funciona) na (da) Globo. Iríamos fazer um trabalho em conjunto, e eu esperava que em um curto espaço de tempo (um ano) teríamos implantado 80 a 90% de toda normatização necessária. Estava imbuído no mais puro empenho profissional no sentido de fornecer e municiar de dados a Secretaria Geral, para que J.C. Magaldi pudesse administrar, eficientemente, a Fundação. Entretanto, este seria um jogo em que só eu estava com as cartas à mostra. E pude perceber isto muito rapidamente. Pois na primeira reunião de diretoria ocorrida no Rio de Janeiro, Calazans e Matsumi não foram (fui sozinho), demonstrando, claramente, que nada havia mudado. Nesta reunião eu pude perceber o resto: colocaram os meus assuntos para serem conversados em primeiro lugar, e tão logo eu expus a parte que in teressava à Fundação em São Paulo, gentilmente fui liberado para poder voltar a São Paulo e não perder muito tempo com as bobagens que iriam ser discutidas pelos diretores do Rio. Quer dizer, eles saberiam o que estava se passando em São Paulo, e eu (assim como Calazans e Matsumi) não saberia o que se passava no Rio.
Ao chegar em São Paulo, já havia um comitê de recepção à minha espera. Reunidos na sala do Calazans, estavam: o próprio, mas Matsumi e Carlinhos. Convidaram-me para a tal reunião, e Calazans foi curto seco e grosso: — Como foi a reunião no Rio, Machado? - Perguntou com com uma ponta de ironia na voz. — Tudo bem. Por que vocês não foram? — Indaguei, com o intuito de confirmar minhas suspeitas. — Não fomos para não sermos marionetes. Você acha que mudou alguma coisa com a sua vinda pra S. Paulo? — Colocou, Calazans, secamente. — Peraí. Se vocês não forem lá, não lutarem, não mostrarem seus pontos, nada vai mudar. Eu não posso mudar tudo sozinho. — Justifiquei. — É que antes a coisa era ruim e nós sabíamos, mas não contávamos que você fosse ao Rio, e ainda por cima fosse nos trair. - Disse Calazans bastante zangado. (Matsumi e Carlinhos só olhavam.) — Que história é essa Calazans? Que papo é esse de traição? — Perguntei com raiva e já com o sangue prestes a ferver. — O Nelson (Mello e Souza) telefonou para mim, dizendo para abrir o olho com você, pois você é espião do Magaldi, e que vai nos trair e trair a Fundação São Paulo. — Disse Calazans, bem calmo e questionando-me com um olhar. — Olha aqui, Calazans, não sou espião de ninguém. Estou aqui porque você forçou a barra e fez com que eu fosse convidado para este cargo. Mas, nem você, por me haver convidado, nem o Magaldi, por ser Secretário Geral, irão alterar a minha conduta profissional. O que está a venda é o meu trabalho profissional, não a minha dignidade. Vou fazer o meu trabalho como eu sei fazer. Se eu não puder fazer, pego meu chapéu e vou embora. Não preciso desta merda de cargo e não vai ser você nem o Magaldi que vão mudar minha postura. — Disse, em tom bem áspero e já perdendo a compostura, para acabar com insinuações. O Matsumi interferiu, junto com o Carlinhos, e fizeram a turma do deixa-disso. — Calma, Machado. O Nelson (Mello e Souza) envenenou o Calazans contra você dizendo que você era espião do Magaldi. Você sabe como é... O Nelson é do Rio mas entrega tudo o que se passa lá, pro Calazans saber. E como você foi propor uma estrutura organizacional tendo como dirigente máximo o Magaldi, sem mudar nada do que é atualmente, Calazans achou que você era espião do Magaldi, e mais um membro do cinturão da fidelidade. — Explicou Matsumi. — Eu não mudei, nem vou mudar as pessoas e a estrutura. Quem designa quem dirige o quê, é o Dr. Roberto, não eu. Eu estou é implantando normas, padrões, critérios, procedimentos, e mais uma porrada de coisas que a Fundação não tem. Isto aqui é zona, cada um faz o que quer: o orçamento é uma zona, não há delegação de autoridade, plano de componentes (plano de contas departamental), política e prática de investimentos. Vocês querem o quê? Eu não vim aqui para ajudar o Calazans a derrubar o Magaldi. Eu vim aqui para fazer o meu trabalho. Se o Magaldi é o Secretário Geral, o problema é de vocês, pois eu vou respeitar a hierarquia, até quando ela for decente, na minha opinião. - Continuei, sem baixar o tom. Calazans, sentindo que o caminho escolhido — confronto direto comigo — não seria uma boa escolha, mudou de tática. — Desculpas, Machado. Mas a gente tinha que saber se você era firme ou não. Se estava com São Paulo ou não. Não é que a gente quizesse testar você, mas sabe como é: você é carioca, pertence à corte (Globo Rio), e tem muito mais afinidade com o Magaldi, com o Miguel e com o Humberto Palma do que com a gente. — Calazans falou, meio sem graça. — Nada disso, eu posso ser conhecido de quem quer que seja. Mas, se qualquer um fizer merda, eu passo com um trator por cima. Não tenho trato e nem acordo com ninguém. Você é que vive vendo fantasma pra todo lado (amansei um pouco a voz). Eu vou te dar uma vassoura, daquelas tipo bruxa, não é de piaçava não, para você se divertir espantando seus fantasmas aqui na sua sala. — Conclui, já mais afável. A partir daí a coisa voltou a transcorrer aparentemente normal. Digo aparentemente, pois logo depois tudo se tornou bastante claro. Todos definiram suas posições: Calazans — Boicotou todo tipo de controle e organização. Principalmente, quando este controle representava avaliar os seus orçamentos e discuti-los com o MEC. Jair Lento — Boicotou todo tipo de controle e organização, com receio e ciúmes. (Era o que eu achava, na época.) Outrora adversário ferrenho do Calazans, aliou-se a ele para minar e
sabotar toda a implantação. Tanto que o trabalho de O&M morreu no nascedouro, e os orçamentos e projetos do Calazans que foram recusados ou criticados por mim, foram mantidos, por debaixo do pano, com o consentimento do Jair Lento. J. C. Magaldi - Adotou uma postura de Jesus Cristo de prostíbulo. Assistia a tudo, impassível. A ação de Jair e Calazans era bem coordenada e orquestrada. Algo para ter todo o sucesso com qualquer um que ocupasse o meu cargo. Pois, se por um lado Calazans não era simpático ao Magaldi, Jair Lento contava com o seu irrestrito apoio. E, juntos, eles destruíam, à noite, tudo o que eu construía de dia. Só cometeram um erro fundamental: esqueceram que eu era auditor, e que eles iriam jogar o jogo que para mim é como um jogo roubado (sem chances para eles). A partir do momento em que senti como iriam ser as coisas, armei um esquema de efeito futuro, de denúncia sistemática, de modo a deixá-los como irresponsáveis e incompetentes (no mínimo) para todo o sempre. Março/84 — Calazans recusa-se a seguir a regra do jogo e se opõe ao exame dos convênios. (Eu denuncio formalmente o fato ao Magaldi.) Abril/84 — Jair Lento boicota as operações de leasing e todas as proposituras de novas implantações. (Reitero a denúncia a J. C. Magaldi.) Maio/84 — Denúncia minha feita a Magaldi, Miguel Pires e Humberto Palma, de que Calazans havia inchado a estrutura da Fundação, contratando, em massa, um incalculável número de pessoas, sem que houvessem recursos para tanto. (Além das contratações, ele promoveu quase todo mundo do departamento dele.) A política do Calazans era a seguinte: sem funcionários e sem projetos aprovados, ele seria só mais um simples diretor (o que, para ele, era a morte). Mas, se ele inchasse seu departamento, mesmo sem projetos ou recursos, a Globo seria obrigada a cobrir o rombo e manter os funcionários. E, caso eu gritasse, cancelasse as promoções e pusesse os funcionários na rua, ele seria o bonzinho, que contrata e promove; e eu o sacana, que demite. Isto, sem contar que eu sabia que ele iria aos jornais para plantar a notícia de que a Fundação estaria demitindo gente em massa, e obrigaria o Dr. Roberto a recuar da decisão. Esta foi uma das raras vezes em que após uma denúncia minha houve interferência direta do Rio, até porque eu não tinha nem seis meses de Fundação, e seria um desprestígio muito grande não atender a uma denúncia destas (principalmente para quem me indicou para o cargo). Graças a esta denúncia, todos os recém-contratados foram demitidos, e foi alertado ao Calazans como seria a regra do jogo, e que ele teria que respeitá-la. De porre, após a reunião que decidiu pelas demissões e cancelamentos de promoções, Calazans gritava pela janela, quando me via passar em baixo: "DÓl-CODI. . . Sendero Luminoso. . . Eu estou com sangue nas canelas. E uma sangüeira só. Mas o mundo se acaba e o nordeste não se rende. Não vai ser um auditorzinho que vai dar piruada aqui no meu pedaço. Mas, Calazans não é cavalo que se coloca rédea e cabresto. Eu sabia que ele iria continuar. Ele estava entre a cruz e a espada. O MEC estava demorando a liberar os projetos. Eu, internamente, não deixava ele andar sem projeto. Ele teria duas opções: Ou plantava uma notícia contra a Fundação para obrigar a readmissão dos demitidos, ou plantava uma notícia contra o MEC. Foi um mês duro. Eu entrava na Fundação com tudo que era funcionário rosnando pra mim. O que me desejava menos mal queria que eu morresse de lepra. A tal ponto o ódio foi disseminado contra mim, que certa feita eu pedi à minha secretária para procurar um local no mapa do guia de ruas, e ela ao perguntar a um funcionário do departamento de educação: "Você tem um guia?", (obviamente, referindo-se a guia de ruas) o funcionário (Jaime), um dos que havia sido promovido de contínuo a assistente, e depois rebaixado, respondeu irritadíssimo: (supondo Guia, como Guia espiritual) "Tenho Guia sim, e ele me protege contra tudo. E não vai ser um carioca desses que vai me derrubar. Deus é pai". (A neurose do Calazans, agora era coletiva.) O humor do Calazans piorava a cada dia. Os porres eram freqüentes. Estava irritado com Brasília e comigo. Gritava no telefone, com a janela aberta, no andar de cima, e eu escutava da minha sala, no andar de baixo. (Gritando com o pessoal de Brasília.) — Eu vou arrasar com a vida de vocês. Vou denunciar esta corrupção toda do MEC. Esta sapatona (Ministra) filha da puta, que vive alienada igual a Maria Antonieta, e que usa roupa
importada comprada com dinheiro da corrupção, vai ter que cumprir com o combinado. Está todo mundo levando. Se não aprovarem meus projetos eu denuncio a Ecilda, a Ana e o Veronese. (Ecilda Ramos é quem aprova as prestações de contas da Fundação, Ana Bernardes é quem assina os convênios da Fundação, e Marco Antônio Veronese é quem aprova os convênios.) Alguns dias após, a notícia estava plantada na Folha de São Paulo (17.05.84) sob o título: "Deputado faz acusações a pessoal do MEC." Num passe de mágica os nós foram se desatando, e os recursos foram liberados. Fundo musical: "Brasil... meu Brasil brasileiro... vou contar-te nos meus velsos..." Junho/84 — Alertado ao Magaldi que os recursos do telecurso 29 Grau seriam insuficientes, pois estava havendo utilização de verba para cobrir rombos de outros projetos. Calazans começa a entrar em grande depressão. Os porres agora eram mais freqüentes, pois ele gastava por-conta, e os recursos do MEC iriam ser desviados para cobrir o rombo do Telecurso do Bradesco e usados como se fossem a fundo-perdido. Posteriormente seriam cobertos com notas fiscais, compradas ou excedentes de outros projetos, para efeito de prestação de contas com o MEC... "DOI-CODI filho da puta! Sendero Luminoso! Auditor desgraçado! Eu quero que você morra!" Berrava Calazans quando eu passava em baixo da sua janela, para que eu pudesse ouvir. (Eu fingia que não ouvia, e isso irritava-o mais ainda.) Julho/84 — Reiterado ao Magaldi (várias vezes dentro do próprio mês) que Calazans estava negociando projetos do MEC, sem que soubéssemos a que valores, e quais projetos. E mais, nenhuma diretriz orçamentária estava sendo respeitada por ele. Paralelamente, começa a aliança Jair Lento-Calazans, e inicia-se o grande boicote quando Jair instrui aos seus funcionários, principalmente ao seu Gerente Administrativo, José Alves Guerra, para ocultar documentos e informações. E, como se fosse um deboche, pede-me informações que ele deveria dar a mim. Agosto/84 — É feito um pedido ao Secretário (Magaldi) para admissão de um funcionário para executar uma determinada tarefa auxiliar, de competência da Controladoria. Ao que o diretor administrativo e financeiro (Jair Lento) reage, admitindo este mesmo funcionário, para executar esta mesma tarefa, só que no seu departamento, usurpando, assim, atribuições da Controladoria, com a complacência do Secretário Geral. Setembro/84 — Amparado pela não-mediação do problema pelo Secretário Geral (Magaldi), o Diretor Financeiro (Jair Lento) ousa, cada vez mais; assumindo, paulativamente, em aliança com o seu outrora inimigo Calazans, o controle orçamentário dos projetos. A tal ponto estava a interação dos dois, que todos os orçamentos do ano seguinte (1985), foram aprovados, às escondidas, pelo diretor financeiro (Jair Lento), ainda que tal atribuição fosse de minha responsabilidade. Mas, como eles sabiam que eu jamais aprovaria uma seqüência de projetos irreais, cujo dinheiro teria aplicação diversa da pleiteada (tapar rombos de outros projetos), eles optaram por tentar neutralizar as minhas atribuições. Outubro/84 — Calazans muda de tática e tenta ser simpático comigo, ao mesmo tempo em que inicia uma catequese, tentanto reativar todo o processo anterior que motivou a minha transferência para S. Paulo, mostrando os ideais da Fundação, a (pseudo) erradicação do analfabetismo, os propósitos altaneiros de filantropia (com o dinheiro dos outros), e tenta uma aproximação direta. Pois sente que o recrudescimento iria deixar marcas profundas e àquela altura o próprio Departamento de Televisão já estava escusando-se a comungar com as atitudes antiéticas e anti-profissionais, mantendo-se alheio e distante dos diretores dos departamentos de educação e financeiro. Como num passe de mágica, passo a ser convidado para almoços, representações e a várias conversas na sala do Calazans, que antes era restrita aos seus convidados de Brasília. Entretanto, eu sabia que ele não fazia nada sem segundas intenções, e não tardou a mostrar o que ele queria: meu apoio para obtenção dos recursos do BID. Isto determinou o rompimento da recente aliança, pois tão logo percebeu que eu não iria fazer o que ele queria, mas sim o que eu achasse melhor para a Fundação, e que ao analisar o projeto eu consideraria os pontos que ele delíberadamente omitiu do Magaldie do Miguel Pires — e tão logo ficaram sabendo que o dinheiro que o Calazans dizia ser de graça, desviado do esgoto e das prioridades do nordeste, deveria ser posto em igualdade de condições pela Rede Globo (meio a meio: o mesmo valor posto pelo BID deveria ser posto pela Rede Globo), e que em razão disto
(segundo Miguel Pires) não haveria interesse por parte da Rede Globo no projeto — ele (Calazans) reassumiu sua postura de guerra aberta comigo. Se antes ele convidava-me para conversar com Didonet (MEC), Veronese (MEC), e José Carlos de Azevedo (Reitor da Universidade de Brasília), agora ele partia para o desafio aberto. Antes, discutíamos desde a sucessão post-mortem do Dr. Roberto até a sucessão presidencial no Brasil: — E você, Machado, que conhece bem a corte (Rede Globo-Rio) e que antecipa bem os passos do Dr. Roberto, quem você acha que ele vai indicar para Ministro da Fazenda e da Educação? — Perguntava Calazans, sob a observação do reitor. — Ninguém. Ele vai indicar o Ministro das Comunicações, o Ministro do Exército e o das Minas e Energia. — Respondi, no ato. — Mas não tem lógica. Ministro forte é o da Fazenda. E o maná de recursos está no MEC. Retrucou Calazans, com a firmeza dos que sabem onde os dinheiros dormem (como ele mesmo dizia). — A lógica é a seguinte: Ministro do Exército (Nós somos uma republiqueta sujeita a golpes. Vivemos a maior parte de nossas vidas debaixo de ditadura. Quem controla o Ministro do Exército governa o país e adquire impunidade.); Ministro das Comunicações (O ramo do Dr. Roberto é comunicações. Ele quer um satélite exclusivo, e quer engolir a Embratel. Além do mais, ele precisa controlar as concessões que forem dadas daqui pra frente — para evitar concorrente forte.); Ministro das Minas e Energia (A auditoria está sendo convocada para se especializar neste assunto. Quer dizer, o Dr. Roberto vai investir firme em minério, e vai precisar de mais um Ministro na algibeira. Isto, sem contar que o grupo todo centraliza suas aplicações (na maior parte) em ações da Petrobrás e Banco do Brasil. E toda vez que ele (Grupo) quiser manipular a bolsa, basta anunciar no Jornal Oficial Nacional: "record na produção de petróleo", "descoberto novo poço monstruoso de produção de petróleo"; e ainda vai contar com o apoio das Minas e Energias e do Presidente da Petrobrás. O ganho é fabuloso. Basta comprar antes da descoberta e vender depois — nos Estados Unidos isto é um crime inominável, mas no Brasil não. Pois o conceito de crime no Brasil é de ilícito, praticado em violação à lei penal por um sujeito de classe economicamente pobre — Axioma jurídico penal brasileiro: É vedada a prisão, reclusão ou detenção de qualquer indivíduo com mais de cem mil dólares de renda ou patrimônio. Pois, por princípio, todo pobre é culpado até prova em com trário, devendo sua inocência ser sobejamente demonstrada. Enquanto que aos ricos cabe a presunção da inocência, mesmo diante de incontestáveis e irrefutáveis provas). — E quem serão estes ministros? — Indagou-me o reitor, curioso. — Sebastião ou Leônidas, Aureliano e um outro qualquer. Não sei... — Respondi. — Não tem sentido. Aureliano é candidato à presidência; e os dois, Sebastião ou Leônidas, dependem do Almanaque do Exército. — Reafirmou o reitor. — Eu não sei o quê, nem como o Dr. Roberto fará, mas ele não iria colocar o Miguel Pires como Superintendente Geral de todas as empresas se ele não pudesse controlar o tio (Sebastião) ou o pai (Leônidas). E, quanto ao Almanaque, é ver para crer. Quem viver verá. — Encerrei o assunto. — É Machado, você vive vendo sacanagem em alta escala, daí você acaba delirando. O que você diz não tem lógica. O exército não vai mudar o Almanaque e o Aureliano não vai abrir mão de ser presidente para ser ministro. — Arrematou Calazans. Nota do Autor: Das previsões feitas ao Calazans e ao reitor, só houve um erro, ou melhor, uma falta de previsão: O Ministro das Comunicações, indicado pelo Dr. Roberto acabou sendo Antônio Carlos Magalhães. E, acidentalmente, a Globo cancelou, sem nenhum motivo, a retransmissão da programação da Globo pela TV Aratu, na Bahia, ao mesmo tempo em que autorizava esta retransmissão por uma televisão de um parente do Ministro Antônio Carlos Magalhães. Fundo musical: "Brasil... meu Brasil brasileiro... vou cantar-te nos meus velsos..." Novembro/84 — Alertado a J. C. Magaldi sobre a omissão de documentos e pagamentos de Lobby — anglicismo designativo dos jargões:propina, bola, jabá, para obtenção ilícita e apressada de algo. No caso, liberação de verbas. Este mesmo termo pode designar, também, fina e socialmente: pressão.
Dezembro/84 — É recomendado ao Controller (no caso, eu): parar de escrever (Magaldi/Humberto Palma). Calazans assume a briga francamente aberta e parte para um desafio: — Nós vamos engolir você. Não adianta você ser da auditoria, que já foi o segundo poder na Globo, pois a auditoria agora está decadente. Se você não aceitou ficar do nosso lado, se prepare pois eu vou passar com um trator por cima e esmagar você, e o Jair vai passar com outro trator tambe'm. Eu me associo com o diabo, mas arraso com a sua posição na Fundação. São Paulo vai ficar pequeno pra você. Janeiro/85 — Como eu não prometo pancada sem dar, eu não costumo subestimar as ameaças dos outros. Preparei as formalidades de implantação. Entreguei os manuais de O&M à Secretaria Geral (que o Magaldi jamais se dignou a implantar), eu fui fazer o que eu sei fazer de melhor: auditar (a Fundação, por dentro). Indo no osso, expondo as vísceras. Transformei meu escritório em uma base de auditoria e preparei a maior rede de operações que qualquer empresa da Rede Globo já viu. Nesta altura, os telefones da Rede Globo, que sempre foram grampeados, passaram a ficar com grampo, sobre-grampo e sobre-grampo. A tal ponto, que era comum ligar pro Rio ou do Rio para São Paulo, e deixar recado no ar, pro outro interlocutor, via agente-de-escuta. (O assessor da Vice-Presidência de Operações da Globo é especialista em telefonia. Função meio estranha para um assessor.). — O do Grampo. Eu tenho que falar com o fulano, dá para você interromper a ligação dele e conectar a minha que é mais importante? (Silêncio como resposta). — O da escuta, eu estou precisando de um funcionário de confiança. Você tem alguém para indicar? (Silêncio como resposta). — Francisco — aí falando (mesmo) com ele —, sabe que a miséria está acabando? — Perguntei ao Francisco, levantando a bola. — Sei não, por que Machado? — Respondia ele, já quase prendendo o riso, pois ele sabia que quando eu levanto uma bola é pra chutar. É porque aqueles meninos, pobrezinhos, filhos das prostitutas do mangue, que viviam vendendo bala no trem, agora cresceram e estão bem amparados e com um ótimo futuro em vista. — Eu ironizava. É mesmo? Estão fazendo o quê, agora? — Perguntava o Francisco, já armando pra eu chutar. Estão todos trabalhando na Globo, escutando conversa dos outros. (Silêncio. Clic. Minha risada. Risada do Francisco. E o papo seguia, sem "escuta".) a coisa tinha mil variações. Qualquer conversa era pretexto para envolver o cara da "escuta" na conversa. Bastava haver uma discussão, e logo estávamos chamando o "escuta" para ser mediador ou juiz da conversa. Combinávamos almoço ou jantar, e convidávamos os caras da "escuta". E foram tantas e tantas vezes, que os caras já haviam se transformado em amigos íntimos. Já não derrubavam nossas ligações, e nem se ouvia mais o clic quando falávamos da vida das irmãs e mães dos caras da "escuta". (Abrasileiraram-se). omo tudo nem sempre é totalmente ruim, ou nem sempre é totalmente bom, eles eram os melhores meios para disseminarmos as informações falsas. E não foi uma nem duas vezes que inventávamos notícias (as mais loucas), e logo estas mesmas notícias estavam circulando na "Central Globo de Boatos". Mas, quando queríamos conversar, realmente, parecia código de guerra. Era um verdadeiro papo de maluco. Era tanto código, tanto contra-códi-go, que às vezes tínhamos que nos encontrar pessoalmente para podermos nos fazer entender. Tamanha era a complicação. Certa feita eu quase tive cólicas de tanto rir, imaginando a cara dos "Censores" e do pessoal da "escuta" ao ouvir uma conversa minha com o Pastori, por telefone: — Machado! — Começou a conversa o Pastori. — Hã? — Respondi, seco. — Vou para Petrópolis (lugar onde ele mora, realmente). — Is to queria dizer que ele ia para São Paulo encontrar-se comigo. — Vou passar o fim de semana colocando figurinhas e lendo gibi. — Isto queria dizer que a Rio Gráfica fora autuada em São Paulo num processo fiscal (livros e figurinhas) e que tinham outras encrencas com a Rio Gráfica. E o assunto era sério.
— Deixa que eu levo "Mineirinho" e "Bohêmia". Isto quer dizer nada, ou melhor, quer dizer que ele iria comprar "Mineirinho" (bebida que eu adoro e não tem em São Paulo) e "Bohêmia" (a melhor cerveja do Brasil, feita só em Petrópolis, pela Antarctica, com água mineral). Eu dava cambalhota de rir — instinto de auto-recreação — imaginando a cara do sujeito da "escuta" falando pro chefe dele: "Olha chefe. Esse negócio de figurinha e gibi deve ter algo a ver com a Rio Gráfica, mas esse troço de mineirinho e boêmia, eu não sei o que é não..." Fevereiro/85 — A "base" de auditoria já estava toda montada por mim na Fundação em São Paulo. Paralelamente, havia uma grande operação de "pega-ladrão", para "variar" na Rio Gráfica. Eu fiz de tudo para ficar de fora. Somente cedi parte das minhas salas para alojar alguns auditores a trabalho. Entretanto, vários outros fatos mexeram muito com a auditoria. Um deles foi durante o meu descanso do carnaval. Eu estava em casa, deitado no chão e assistindo televisão sozinho, pois é intolerável assistir televisão comigo. Eu mudo de canal inúmeras vezes, vejo vários programas simultaneamente. E não precisa dar intervalo para mudar de canal. Basta ser de desinteresse momentâneo para eu mudar, procurar outro (s) canal (is) ou até mesmo voltar ao canal inicial após rápido manuseio do controle remoto. Isto sem contar com a minha rabujice habitual de resmungar e falar sozinho: "Tem muita luz... Não tem teto... Está com excesso de maquiagem... Que merda de interpretação... é parente de quem?... Que comercial mal feito... Erro de continuismo... Que pobreza de recurso... Etc." Quando, de repente, surge uma tomada, ao vivo, do carnaval da Av. Tiradentes, em São Paulo. A tomada termina com uma abertura de panorâmica da avenida, com um baita merchandising, ao fundo, da Vasp. — Alguém levou - pensei. - Pior, que agora vou ter que ficar assistindo só a Globo, pois se alguém "levou", não deve ter sido para uma só chamada, e eu quero ver quantas serão. Não demorou muito para repetir a cena, e novamente saiu a quele merchandising. Liguei direto para a casa do Francisco, no Rio, e antecipei: — Mande alguém rápido aqui em São Paulo para requisitar as fitas, antes que passe o prazo do Dentei e o pessoal destrua as fitas "acidentalmente", ou mande cópia "editada" pro Rio. — Qual o tamanho da coisa? - Perguntou o Francisco. — Por baixo, estão envolvidos o Diretor Regional de São Paulo (Leopoldo Collor de Melo) e o Diretor do Jornalismo (Dante Matiussi). Respondi. — Por que você acha isto? — Replicou, perguntando. — Se alguém levou, no jornalismo, não levou sem o diretor saber. Senão, nem ia pro ar; e o pior, não haveria "repeteco", e a equipe toda de rua estaria demitida: Daí, como o anúncio era da "Vasp", só há um meio de ser feito: por cima. A Vasp é do governo, e o homem da Globo junto ao Governo é o Leopoldo (Diretor Regional). — Conclui. A minha intenção não era de pré-julgamento, mas alertar para que o auditor que viesse a São Paulo não se dirigisse inocentemente ao Diretor Regional, nem ao Diretor de Jornalismo. Pois eles eram os principais suspeitos. A partir daí, foi desencadeado novo pega -ladrão, do qual fiz questão de ficar fora. Mais tarde, após a conclusão da auditoria, ambos os diretores foram gentilmente demitidos. (Leopoldo Collor e Dante Matiussi.) Muito embora a coisa fervilhasse ao meu lado, pois tinha pega-ladrão no Sistema Globo de Rádio, na TV Globo - São Paulo, na Rio Gráfica, e eu decretara o meu pega-ladrão particular na Fundação, as minhas atenções estavam voltadas para Brasília, mais especificamente para o Calazans. Pois eu sabia que era fim do governo Figueiredo, haveria o apaga a luz, e o MEC seria o botim. Com efeito, o Calazans armou uma concorrência e obteve a aprovação (chegou a ser aprovado) do projeto "Vivendo e aprendendo", que era o maior embuste já tentado de uma só vez: 60 (sessenta bilhões de cruzeiros ou 2 (dois) milhões de dólares, para um projeto inexistente. Um verdadeiro estelionato intelectual, destinado a tapar todos os furos dos projetos deficitários da Fundação.
Comuniquei, de imediato, ao Magaldi, ao Francisco e ao Humberto Palma, que este seria o trem da alegria mais vergonhoso da Fundação, e que se não fosse cancelado este trem, a Fundação iria se transformar na maior vidraça do Dr. Roberto. Ao tomar conhecimento da gravidade da situação a diretoria da Rede Globo interferiu junto ao MEC, cancelando e pedindo a retirada do projeto da concorrência, mesmo após havê-la ganho. Quando Calazans soube do acontecido, a coisa foi ao seu limite máximo de resistência: — DÓl-CODI Filho da puta... Sendero Luminoso carioca. Você tem que morrer. Quer dizer que o Amaral Neto pode ter verba cativa a fundo perdido. Eu, se pegar dinheiro no MEC, sou ladrão. Fique sabendo que seu sou "garimpeiro de verbas públicas" e se a Fundação existe, agradeça a mim. — Berrava Calazans pela janela, ao me ver passar. Março/85 — O clima era péssimo. Jogavam água fervente nas plantas todas, que ornamentavam o meu departamento (Violetas, Árvores da Felicidade, Dólares, Pencas de Tostão, Samambaias, Chefréias). Foram mais de cinqüenta plantas destruídas. O meu carro e o de minha secretária foram riscados com pregos e clips, na porta da Fundação, e na frente do guarda de segurança da Rangers. (Que, com medo de ser demitido, coitado, disse nada ter visto. Mesmo que os carros estivessem, como estavam, a dois metros de sua cadeira.) Foi reiterada a J. C. Magaldi a denúncia sobre a omissão de informações, fornecimento de informações falsas, e ausência de documentos. Agora, de forma acintosa, eram omitidos dados de todas as origens. E, pela permissidade do Secretário Geral em não punir e nem impedir as novas tentativas do diretor financeiro, até a gerência adm./financeira, por determinação do seu diretor, alegava ter ordens de impedir o meu acesso a dados e documentos de qualquer origem. Abril/85 — Emiti um penúltimo documento a João Carlos Magaldi, explicando que, face à limitação das condições de trabalho e da impossibilidade de cumprir com o Job discription, eu não teria mais como auxiliá-lo na minha função. Função para a qual fui convocado pelo próprio Magaldi e Calazans, dentre outros. Passei a não mais incomodar-me com o dia a dia da Fundação, e resolvi auditar tudo, particularmente. Pois, já que eu estava ali, por que não trabalhar e produzir? Decidi que não iria me aposentar na cômoda posição de controller — conivente (e nem viver até morrer de velho nesta posição). Não lutar não estava nos meus planos e eu iria terminar, a qualquer custo, a auditoria que havia interrompido antes de entrar para a Fundação. Comecei a juntar minhas anotações da auditoria anterior e a armar toda a operação. Pois tudo que havia sido feito de ilegal, antes, estava sendo feito pior, agora. E, com um agravante: com a ciência de um ex-auditor da própria Rede Globo. Listei os principais casos, a começar por aqueles que implicavam em intervenção pelos órgãos públicos — caso fossem descobertos — até descer, em grau, para os casos de sonegação, contingências trabalhistas, efeitos políticos adversos, roubos e falcatruas etc. A lista inicial era boa e prometia: uso de verba pública para cobrir projetos deficitários; verbas da Petrobrás obtidas ilegalmente, com pagamento de comissão (escândalo abafado pelo Presidente da Petrobrás, Hélio Beltrão, que, por coincidência era vice-presidente da Fundação Roberto Marinho); pagamento de "comissão" à agência de publicidade para a obtenção de "doações" de empresas privadas; sobras de verbas e aplicações financeiras não tributadas como lucro pelo imposto de renda; importação ilegal de equipamento, ou como é chamado na Globo B2; convênio em dólares, sem registro contábil, estando estes dólares na conta da BEC (empresa da Rede Globo, situada no exterior); pagamento de "gratificações" a diretoria e funcionários; desvio dos objetivos sociais da Fundação, por utilização da Fundação para venda de "comerciais" para a TV Globo; compra de notas fiscais frias para prestar contas com o MEC; pagamento a diretores e funcionários através de notas fiscais de PJ ( Pessoa Jurídica) para fugir a impostos; caixa dois — em cruzeiros (na época) e dólares; falsificação de concorrência para algumas compras, e ausência de concorrência (obrigatória para as Fundações) para as demais compras; concorrência ganha pelo perdedor da concorrência para beneficiar o diretor da TV Globo; recibos de doação não registrados contabilmente na Fundação (e sem numeração), "negociados" com terceiros e com empresas das Organizações Globo; e pagamentos à Globotec para uso de facilidades. Sem me esforçar muito, eu teria um relatório preliminar bom. E, já que não interessava ao Magaldi sanar estes problemas, só me restava uma opção: sair da Fundação e voltar para a auditoria.
Redigi um último documento, intitulado: Cerceamento ao desempenho de função, com os anexos: Carta de apresentação do Controller, Job discription e Porque a Controladoria não funciona, historiando, mês a mês, correspondência a correspondência, tudo que foi denunciado e cujas providências não foram tomadas pelo Secretário Geral (J. C. Magaldi). Este documento foi enviado a Miguel Pires Gonçalves (Superintendente da Rede Globo), Humberto Palma (Assessor da Superintendência), Francisco Eduardo Ribeiro (Responsável pela auditoria das empresas das Organizações Globo), e João Carlos Magaldi (Secretário Geral da Fundação Roberto Marinho e Diretor da Divisão de Comunicação da Rede Globo). O primeiro a procurar-me foi o Francisco Eduardo, colocando a auditoria a meu inteiro dispor para ocupar o cargo que eu quisesse (desde que não fosse o dele, obviamente). Chegando, mesmo, a reunir a elite e, na frente de todos os colegas, fazer o oferecimento. Eu aceitei, de imediato, antes mesmo de sair da Fundação ou de mudar-me de volta para o Rio. Só fiz uma exigência: queria de volta o que antes era meu: a minha equipe especial e o "tax" (Departamento de impostos). Era estranho, mas a comemoração pelo meu retorno era quase tão efusiva como quando eu fui para a Fundação em São Paulo. Os colegas fizeram festa, e nós comemoramos com almoço e com muita brincadeira o meu retorno. Creio, até, que este retorno representava um alento para o Francisco, pois ele acabara de perder cinco auditores bons: O Faria foi para a Roma DTVM (empresa do grupo que faz as operações com títulos e aplicações); o Miguel (Duarte) foi para a Globovídeo, e March, Nilo e Danilo foram para a Rio Gráfica (Editora Globo) para serem Diretores de, respectivamente, Comercialização, Finanças, e Administração. O segundo a procurar-me foi o Humberto Palma: — Machado... você não acha que este problema da Fundação pode ser contornado? — Pode. Eu saio. Lava-se a roupa suja dentro da casa. E o Dr. Roberto toma as providências que deve tomar. — Respondi meio seco. — Não é isso. Eu falo com relação às encrencas que estão no ar e que dá pra gente sentir. Não dá para segurar e a gente administrar isto politicamente? — Disse ele, como quem sonda e arrisca. — Nem pensar... Vai acontecer o que tiver que acontecer. — Continuei seco. — Sabe o que é... você sabe... o Jair Lento é meu melhor amigo, aqui na Globo. Minha mulher é amiga da mulher dele. Nós temos muita afinidade. E eu sei que ele te sacaneou, te boicotou, e fez de tudo para você desistir da Fundação. Mas ele não esperava que você fosse ir tão fundo. Agora, ele está desesperado, e tem certeza de que você só sossegará com a cabeça dele nas mãos. — Completou Humberto, cheio de rodeios. E continuou: — Eu falei para ele não trombar com você. Avisei até ao Magaldi para interceder nesta briga. Avisei que era burrice querer bater de frente com você. Tentei abrir os olhos dele de todas as maneiras, mas ele achava que estava seguro por ser da "patota do Magaldi" e porque era procurador do Dr. Roberto. — É... ele foi muito burro, mesmo. As pessoas aqui na Globo costumam perder o senso da realidade e avaliam mal a maioria dos problemas. — Concordei. — Eu só quero saber uma coisa. Responda-me, se puder: tem roubo e trambique brabo na Fundação? — Tem — respondi. — O Jair está no rolo? — Perguntou. — Está. — Você quer a cabeça dele? — Perguntou. — Quero. — Ele tem chances? — Não — respondi seco. — Obrigado — disse Humberto, e abaixou a cabeça, sabendo o que viria pela frente. — Olha, Humberto, eu não tinha nada contra ele. Ele é quem me torrou desde a primeira auditoria, e piorou quando eu entrei na Fundação. Eu parti para caçar a cabeça dele porque ele me provocou, burramente, e ainda obrigou ao Magaldi a ficar impassível. Agora, ele vai sambar porque fez merda, e como ele, vão todos os outros diretores. Não vai ficar ninguém em pé. O próprio Dr. Roberto se coloca em risco se não tomar nenhuma providência.
O terceiro a procurar-me foi o Magaldi. Antes disso, porém, na nossa conversa anterior, ainda na sala do Humberto Palma, este preparou meu espírito: — O Magaldi quer falar com você. Ele está envergonhado porque não teve pulso para administrar as brigas da Fundação. Afinal, você entrou lá fundamentalmente, para ajudar ao Magaldi, que era o Secretário Geral, e justamente ele deixou você sozinho contra Calazans e Jair Lento juntos. Você se incomoda de conversar com ele aqui na minha sala? — Tudo bem, Humberto. Eu não tenho nada contra o Magaldi. Ele não tinha obrigação de ser meu tutor ou protetor. Já sou meio grandinho para me cuidar sozinho, e trombar com diretor pra mim sempre foi festa. — Aquiesci. O Magaldi entra, meio acabrunhado e, apesar de tudo, há um sentimento recíproco de admiração. Eu considerava o Magaldi um monstro da mídia eletrônica (algo desconhecido por todos os donos de televisão do país, que se acham competentes só porque tiveram sucessos pessoais, mas que não sabem o que, como e porque a coisa mágica do vídeo funciona psicológica e socialmente nos indivíduos). Ele costumava brincar abertamente e chamar-me pelo primeiro nome (Roméro) e de "auditor inteligente". (Um deboche e alfinetada no Francisco Eduardo, que ele costumava chamar de "Xerife" ou "Xerife Lobo" — alusão ao seriado da televisão.) — Grande Roméro... como vão os filas? — Perguntava tentando descontrair. — Tudo bem, Magaldi. Os cães vão bem, e eu também. — Respondi meio tenso. — Você sabia — falou, virando-se para o Humberto — que nosso amigo Roméro é um dos melhores criadores de fila do país? Os cães dele são capas de várias revistas, e ele é louco por filas. Magaldi tentava entrar de leve, e continuou: — O único problema é que ele acaba assumindo a personalidade dos cães, e quando ele fica agressivo é pior do que um fila brasileiro raivoso. — Concluiu, tentando tornar o assunto engraçado... mas o ar era pesado. — Magaldi, é até bom você puxar esse assunto de cachorro, pois eu tenho algo para falar com vocês dois. É o seguinte: fizeram duas fofocas e dois pedidos diferentes por pessoas diferentes, pedindo a minha cabeça, aqui na Globo, por conta de briga na Cinofilia. O primeiro foi feito via Miguel Pires, e o segundo foi feito via você mesmo, Magaldi. É obvio que não deu em nada, até por eu ser quem sou. Mas se eu fosse um funcionariozinho, que trabalha dia a dia pelo seu sustento, com todas as fragilidades da relação de emprego patrão-empregado, eu estaria frito, demitido, e no olho da rua. Isto é só para lembrar que eu não estou frito, mas que poderia estar. Assim, devolvam a bola e avisem pros dois caras que fizeram a intriga, que assim que eu tiver tempo eu vou prum ajustes de contas, do jeito que eu sei fazer. — Arrematei, esclarecendo algo que já durava algum tempo. — Não esquenta com estes caras não, Roméro — contemporizou Magaldi. — Eu não estou esquentando agora, que eu estou sem tempo pra isso. Mas tão logo eu tenha tempo, vou acertar umas contas com esse babaca rastejante aprendiz de beautifull people, que quer emprego pra mulher dele aqui na Globo, e com o outro, uma bichona gorda oligofrênica e atacada. — Disse com raiva. — Mas voltando à vaca fria — retoma o assunto Magaldi —, eu queria conversar com você para a gente passar a limpo um monte de coisas. Queria pedir desculpas por não ter conseguido administrar a sua briga com o Jair, e dizer que eu não sabia como conciliar a coisa. O Jair tomou bronca de você, e por mais que eu o pressionasse, ele estava sempre tentando sacanear você. Você me conhece... Eu jamais demitiria um ou outro. Deixei o problema se agravar, para sair uma solução natural ou para o Dr. Roberto decidir. Se você fosse sair da Fundação, a gente colocaria você noutro lugar. Se quem saísse fosse o Jair, a gente faria a mesma coisa com ele. Eu estou preocupado é com a pessoa, com o ser humano. E, como eu sei que você ira' voltar para a auditoria por vontade própria, eu fico mais aliviado. Eu só quero que você saiba que continuo seu amigo. Gosto muito de você, e não queria que você curtisse bronca da Fundação e nem perseguisse o M (símbolo da Fundação). — Concluiu. — Eu não vou perseguir ninguém (imagina!). Só vou fazer o meu trabalho. Tanto, que a auditoria que está sendo feita na Fundação, agora, é coordenada por outras pessoas. Eu estou fora. Estou ocupado com Grande Sertão: Veredas, e com o Festival dos Festivais. Você vai ver que eu estarei totalmente fora desta auditoria da Fundação — Falei sem convicção, na certeza de que ele saberia que não era verdade. De fato, parte do que eu dissera era verdade, pois tão logo cheguei na auditoria foi traçado um programa de ação, cuja linha mestra era: eu não deveria, em hipótese alguma, ir para o
"campo" fazer auditoria. Eu deveria ficar no escritório coordenando os trabalhos em andamento e as equipes de São Paulo (Departamentos de Educação e Televisão) e serviço de rua; além das equipes do Rio de Janeiro (Departamentos Cultural, Adm. Financeiro, Comunicação e Comunitário), serviços de rua e pessoal de escirtório. Eu sabia que seria mais útil na coordenação de retaguarda do que no serviço de frente. Até porque eu era o único com visão macro de todos os problemas da Fundação. E, em razão disto, cada departamento da Fundação teria uma equipe própria, fixa, auditando aquela área, porque a massa de informações seria muito grande. O único ponto de planejamento que eu discordava do Francisco era que eu achava que o Mendes (Chico Mendes) deveria coordenar São Paulo, e o Luiz Carlos deveria coordenar o Rio. Isto porque eu sabia que quando a coisa esquentasse, o Francisco iria crucificar o Mendes e condená-lo a pagar o pato pelo que não fez, e que o Luiz Carlos iria "bater de frente" com o Francisco pela forma como ele iria tentar coordenar os trabalhos. (Ou seja: o Francisco ficaria à distância, no início, mas sabíamos que à medida que a temperatura subisse ele ia querer dirigir tudo pessoalmente. E aí seria trombada interna geral.) Por conta de previsíveis brigas futuras, eu ouvia as lamúrias das partes, embora fossem profissionais que se admiravam e amigos que se gostavam muito. — Machado... põe juízo na cabeça do Luizinho. Eu não agüento mais ele. Ele está ranzinza e ranheta. Está preguiçoso. Não tem mais motivação. Não tem mais saco nem para revisar pasta de trabalho. Acho que ele enjoou de auditoria. — Lamentava o Francisco a respeito do Luiz Carlos. — Machado... o Francisco está maluco. Está ficando esclerosado. Eu não agüento mais ele. Está um ditador insuportável. Antes de você ir para São Paulo, a gente até que tirava ele do sério. Agora, com a saída deChileno, Faria, March, Nilo, Daniloe Miguel e este monte de auditores novos entrando, ele endoidou de vez. Eu acho que vou sair da auditoria. Não dá mais para aguentar. Não vou aturar ser chamado à atenção feito criança. — Lamentava o Luiz Carlos a respeito do Francisco. — Machadinho... tá ruim de segurar com a mão. Isto não vai dar certo. Tem tudo pra dar errado. O chefe está atacadíssimo. Não larga do meu pé. Isso só pode ser menopausa. — Reclamava o Mendes sobre as constantes implicâncias do Francisco, que criticava a fala alta do Mendes, a risada alta do Mendes, a falta de coragem do Mendes em ter carro e telefone. E por aí a fora. Bobagens do retalho, mas que acabam influindo no atacado. Embora houvesse um clima interior de euforia pela antevisão do sucesso do trabalho, havia, também, um estranho clima, mistura desta euforia com nostalgia, ocasionado por saudade recente das pessoas que foram trabalhar em outras empresas. Era como se nunca mais fôssemos nos ver. Algo como se as pessoas já estivessem cheias de fazer o que estavam fazendo. Ou como dizia o próprio Mendes: — Nem a Globo, nem a Fundação, nem a auditoria serão mais os mesmos após esta auditoria. Nada mais será igual. Embora o Francisco fosse o responsável máximo pela auditoria, ele era superdemocrático. Pois ele só era ditador para pequenas decisões, e só tomava grandes decisões ouvindo antes a decisão do Conselho. Foi este mesmo Conselho (Eu, Luiz Carlos, Mendes, Wanderley e Pedro) que decidiu que a auditoria na Fundação teria que ser de força, com todo o poder. E foi com base nisto que o Francisco foi ao Dr. Roberto, com os dados do meu relatório preliminar, e com as pastas de documentos que amparavam aquele relatório, para pedir o afastamento, temporário, do Jair e do Magaldi, do centro das decisões, para que pudéssemos fazer uma auditoria irrestrita. O Dr. Roberto fez o correto: manteve o Magaldi e o Jair fora do centro das decisões, nomeando o Francisco como procurador, com plenos poderes, e determinou que nenhum documento (cheques, convênios, contratos, demissões, admissões etc.) poderia ser assinado sem a "segunda assinatura" da auditoria. Amparados por este respaldo, demos início à mais profunda das auditorias já efetuadas na Globo. Paralelamente, como eu acabava tendo um pouco de tempo por ter que ficar radicado no escritório, acabei assumindo outros serviços que estavam em andamento, que eram: Grande Sertão: Veredas, e Festival dos Festivais. Grande Sertão deveria ser uma mera experiência laboratorial para acompanharmos outras produções de Minisséries brasileiras. Tanto, que os auditores designados para este trabalho eram todos novos em termos de Globo. Entretanto, apesar disto, as informações off eram muito
interessantes. Davam conta de roubos, desvios, abusos e uma infinidade de irregularidades numa única produção. A auditoria fora designada para acompanhar, e somente acompanhar, toda a produção da minissérie, do inicio ao fim, para que a experiência servisse para avaliar a melhor forma de se auditar uma produção de grande porte. No entanto, era incontestável o manancial de informações disponíveis. Já havia sido encerrada a fase de gravação, estávamos na fase de edição e logo logo o programa iria ao ar. Em razão disto apressei os trabalhos de conclusão e fui à TV Globo-Tijuca conversar com o Ary Grandinetti, responsável final pelo programa, para debater alguns pontos que considerávamos estranhos. Para surpresa minha, nada era surpresa para o Ary Grandinetti. Todos os fatos ocorridos na gravação eram "normais", bastante comuns. E, como que era demonstrar com maior precisão o que falava, ele recomendou: — Vou mandar a Stella (de Carli) falar com você, para ela contar em detalhes, e com documentos, tudo que ela sabe e constatou de Grande Sertão. No dia seguinte entra porta adentro pela auditoria uma figura espevitada, falando muito, conversando com todo mundo como se fosse amiga de infância de todos. Cabelo cortado rente à cabeça, sardenta e com os olhos claros, grandes e vivos. Era a Stella, que cumprimentava os auditores que conheceu há alguns dias atrás, mas já os tratando como velhos conhecidos. — Mas você é que é o Machado? — Perguntou espantada. — Sim, sou eu. Por quê? — É que a imagem que você tem na empresa é a de um sujeito frio, calculista e implacável. E você não me parece nada disso. Você parece normal. Tem até uma cara boa. — Disse, ainda estupefata. — Eu sou normal. O inferno são os outros. Eu só como criancinhas às sextas-feiras, após o expediente. — Respondi brincando. Trancamo-nos numa sala, e começamos a conversar sobre os principais problemas da minissérie. Stella, como controladora de produção, era muito eficiente, e tinha todos os atributos para NÃO SER uma produtora. Demonstrou as duplicidades de saques pela mesma pessoa, prestações de contas absurdas, omissões de informações, abusos de toda ordem, e disparates diversos que, somados ao já relatado pelos auditores, formavam um farto manancial. Além do reforço das manchetes dos jornais locais que acusavam os abusos da Globo. (Na maioria das vezes, os funcionários de apoio contratavam tudo como sendo particular — por preço bem baixo; depois que contratavam, falavam, empoladamente, que eram "da Globo". Finalmente, deixavam a conta sem pagar e embolsavam o dinheiro na certeza da impunidade, por serem "da Globo" e por lidarem com gente humilde do interior.) São casos e mais casos, numa incontável ciranda de abusos, desde o aproveitamento pelos funcionários de baixa remuneração (doisa três salários mínimos) que compravam roupas novas e até motos após a produção, até alguns, mais graduados, que ficaram com quantias elevadíssimas em suas contas bancárias. A regra geral era: tudo que era comprado para a produção acabava sumindo ou desgastando-se: armas, roupas, equipamentos, materiais etc. A certeza de impunidade era tamanha, que algumas prestações de contas demonstravam algo curioso: o número de refeições era suficiente para alimentar o pessoal todo da minissérie cinco a seis vezes ao dia (possivelmente o clima deveria ser responsável pelo apetite). Sem contar os abusos eliti-zados: aluguel de avião (proibido sem autorização da vice-presidência de Operações) para passeios sob a alegação de que seria para escolher locais para tomadas; brincadeiras de "duro-na-queda" com carros alugados como se fossem para a gravação (vários foram literalmente destruídos, no "enduro da produção"); e o mais triste, os atentados aos animais: mataram, para dar "realidade", a jaguatirica que na tela aparece como morta pelo Riobaldo (Tatarana) Toni Ramos; mataram, de sacanagem, um tamanduá e vários animais silvestres; fizeram churrasco com um jacaré emprestado pelo IBDF local; mataram dezenas de passarinhos que ficavam amontoados em caixotes, e que seriam-liberados e jogados para o alto, para que a imagem dos pássaros libertos fosse sobreposta à do véu da noiva Diadorim Bruna Lombardi no sonho de Riobaldo; os cavalos que deveriam ser "mortos" em cena, eram violentamente drogados para darem alguns passos e logo caírem com seus cavaleiros, simulando morte por tiro. (Alguns destes cavalos morreram com problemas cardíacos.) Não era intenção da auditoria fazer um relatório sob este enfoque, mas a renitência da Stella empurrava-me para um inevitável relatório ao Dr. Roberto, para que ele soubesse como são
produzidas as "belezas" que vão ao ar, e como são os abusos dos funcionários durante uma locação. — Você até parece um padre. Eu estou falando, demonstrando, provando, e você vem com este papo de: "Calma, vamos apurar melhor, vamos seguir os trâmites normais". Afinal, você é ou não auditor? Você é ou não os olhos e ouvidos do Velho? — Dizia a Stella, irritada. — Calma. Eu vou fazer um draft para discutir com o Ary Grandinetti. Se ele, como responsável final pela minissérie, achar que deve levar ao Boni, ele leva. Caso contrário, assunto encerrado. E não se fala mais nisso. — Eu disse, tentando encerrar o assunto. — Quer dizer que não vai dar nada para ninguém? Todo mundo rouba, embolsa dinheiro, saqueia a produção, comete abusos, e você me vem com este papo de "calma"? — Replica Stella, irritadíssima. — Stella, veja por este ângulo. O Laborda, seu principal alvo de acusação, é o produtor exclusivo do Avancini. Dizem que não se sabe se o Avancini atura o Laborda porque ele faz o que o Avancini quer, não importando o que e como ele tenha que fazer, ou se é o Laborda o único produtor que atura as loucuras e excentricidades do Avancini. Portanto, é fora de cogitação o rompimento Laborda/Avancini. Por outro lado, o Avancini é o maior gênio no gênero televisão, e o Boni sabe disso. Vai daí, que a permissividade vem de cima. O Boni aceita o Avancini, o Avancini aceita o Laborda, e o Laborda aceita o que é feito pela equipe. E isto tem um custo. Qual é esse custo? 20, 30, 50 ou 100% a mais do normal? Pro Boni isto não importa, ele vai ganhar 500% acima do custo da produção. Daí, não interessa esse tipo de controle. E não adianta você espernear. — Expus meu raciocínio. — Mas isto é sacanagem. Serve de péssimo exemplo pro resto. É por isso que tem esse rouba-rouba na Globo. Por isso é que passou a ser normal ser desonesto. — Stella continuava irritada e, agora, decepcionada. — Você tem dúvidas de que o Grande Sertão será sucesso? E quando o programa for ao ar e encantar o público, o Avancini será condecorado como gênio, mais uma vez. O Boni estará supersatisfeito! As coisas que o Laborda fez ou permitiu que se fizesse serão perdoadas! E você, Stella, será guindada à posição de ridícula! — Eu disse com frieza. — Padre, você é ruim. Agora eu sei porque você é considerado frio — Disse Stella, com profunda decepção. — Mas não será bem assim. Eu vou te dar uma colher de chá. É o seguinte: eu vou entregar o draft ao Ary Grandinelli, pois esta é a minha obrigação. E ele pode matar o relatório aí e nem levar o assunto ao Boni. Entretanto, há um Sumário Executivo que é uma síntese de tudo isto que nós estamos discutindo, que é um relatório supersintético para o Dr. Roberto. E isto, nem o Superintendente e nem o Vice-presidente podem parar. É a comunicação direta dos olhos e ouvidos com o dono. E esta é a função maior da auditoria interna. Quer dizer, o Boni saberá das coisas que foram feitas na produção, ou de baixo para cima, ou de cima para baixo; sendo que esta última é uma forma bastante desconfortável. — Expliquei para Stella. — É, mas quem vai se ferrar, sou eu; que cometi o crime e a imprudência de querer ser honesta na Globo. Agora, ninguém mais vai querer trabalhar comigo. — Lamentou ela. — Liga não. Dentro ou fora da Globo, mesmo sozinha você estará em boa companhia. Só em ficar longe do que você abomina, você já estará bem acompanhada. — Tentei consolá-la. — Com a minissérie eu não trabalho mais. Pra Globo-Tijuca eu não volto. Vou procurar um lugar aqui na Globo para trabalhar. E, se não tiver lugar, eu saio da empresa. — Setenciou, com violência. Eu ainda recebi várias e várias vezes a Stella no escritório da auditoria, para complementar informações, trazer documentos e relatar fatos novos. E, mais tarde, eu a vi trabalhando com Ítalo Granato/Marcelo Rosa. Até que, cheia da produção e da repetição destes acontecimentos, mudando somente os personagens, ela saiu da empresa em busca de algo oxigenado e mais puro. E, por falar em Stella, Ítalo Granato e Marcelo Rosa, o outro trabalho que estávamos desenvolvendo era exatamente Festival dos Festivais, com produção de Ítalo Granato/Marcelo Rosa. Para mim, era mais uma diversão e relaxamento do que propriamente um trabalho. Pois foi um trabalho feito para provar que a Globo poderia produzir um evento sem que este evento fosse deficitário. (Nota: Todos os eventos produzidos pela Globo, até então, eram deficitários. Ainda que o evento fosse Roberto Carlos, Simone, Gal ou qualquer outro.) É que o número de safadezas e falcatruas era tão grande, que tornava-se impossível produzir um evento lucrativo. Daí, alguém
teve a feliz idéia — por falta de assunto, por ter tomado um drink a mais, porque a picanha estava no ponto — e resolveu lançar um desafio: "Se a auditoria entrar em eventos, eles se tornam lucrativos." (A bem da verdade, a auditoria já havia sido responsável pela extinção de eventos especiais, pela mediocrização da Showmar e pela separação da dupla Legey/Lacet e seu fiel iluminador.) E, com base neste altruísta mote etílico-pedagógico, "convidaram" a auditoria para a tarefa de acompanhar e fazer os ajustes necessários, in loco, para que o evento pudesse se tornar lucrativo. Não havia nada demais. Era tudo simples e imediato. Não havia truque. E todos os procedimentos recomendados foram seguidos. Tornando-se lucrativos os eventos de Recife, Porto Alegre e São Paulo. Eu só tinha medo do Rio, pois haveria a 49 eliminatória, Semifinal e Final, com vários agravantes: o roubo institucionalizado do Maracanã (zinho), o câmbio negro oficial, a segurança da casa, as carteiradas habituais (policia, juizado, bombeiro, ex-combatente, sócio proprietário, permanente, autoridades empavonadas, dignatários de capitanias, escoteiros, lobinhos, balus e ativistas da Sociedade Amigos das Lésbicas dos Últimos Dias). Sem contar com a indefectível casta dos artistas, diretores e amigos dos mesmos. (Nada é pior para esse pessoal do que não ser reconhecido ou ser barrado num evento da empresa. Pois, apesar do preço do ingresso ser insignificante, e de, internamente, nós distribuirmos aproximadamente 10% do total da lotação do estádio para funcionários — diretores e artistas, inclusive e principalmente —, eles davam seus ingressos de presente, entravam na marra ("Você sabe com quem está falando"), e ainda exigiam crachá para transitar livremente. E, são estas as mesmas pessoas, liberais e democratas, que criticam a empáfia do autoritarismo. Lógico, havia exceções, mas a regra geral era terrível. Pois, para cada Toni Ramos e esposa, bem comportados, que precisavam ser retirados, por nós, de junto do público para serem acomodados em locais reservados e destinados a convidados, haviam centenas de "Cigarras" e "Galinhas Carimbadas" alojadas em locais que não lhes diziam respeito. É engraçado você estar num local assim, abrir uma panorâmica, distanciar-se de todos e olhá-los como espécimes sob análise. Um dos tipos mais comum, a "Galinha Carimbada" (alusão ao tempo em que as galinhas abatidas levavam um carimbo irremovível da inspeção federal), é aquela risonha figura que abre-se diante de uma máquina fotográfica, sacrifica-se para se fazer convidada para todas as festas, freqüenta locais onde possa ser vista e convidada para qualquer trabalho. Algumas freqüentam todos os bailes de carnaval, saem em escolas de samba, se convidam para ser júri do Chacrinha, aparecem em todas as fotos, todos os anos, nas revistas póscarnaval e raramente trabalham em sua profissão. E, quando o fazem, é em papéis menores (manicures, empregadas domésticas, fofoqueiras, intriguentas etc). Há até as que conseguem casar-se com jogador ou ex-jogador de futebol. É dura a vida de "artista". Outro tipo folclórico é a "Cigarra", que zumbe, roda, bate asa e adora conversar, desde que seja aos berros e à distância, e que entre ela e seu interlocutor haja pelo menos dez metros, e uma dezena de pessoas ao redor. Tipo é o que não falta em televisão. Principalmente para o pessoal que quer uma chance, quer entrar e subir a qualquer custo, ou quer ser convidado para qualquer coisa. E este, dentre outros, é o que me causa maior repulsa no meio artístico. Onde a regra é a da miserabilidade de condições e eterna mendicância. Hoje no vídeo, amanhã esmolando. É tão dura esta condição do meio artístico, que eu ouvi, certa vez, de um contratador e descobridor de talentos: "Tem certas artistas que ao invés de cachê deveriam receber é michê" (nos dois sentidos). Mas voltando ao Festiva/, e tirando-se os inconvenientes, tudo estava a salvo. A quarta eliminatória ainda deu lucro, mas as condições da semifinal e da final eram péssimas. Dirigi-me ao Ítalo: — Não vai dar para controlarmos. Vocês estão liberando tudo. Não querem bater de frente com os penetras. Estão distribuindo convites, ingressos e crachás muito acima do permitido, e para pessoas que não têm nada com o espetáculo. Além do mais, o Marcos Lázaro não quer me entregar os fotolitos dos ingressos feitos na Gráfica Laga e disse que você havia concordado com isso. Eu não vou me responsabilizar pelos ingressos falsos-verdadeiros, falsos-falsos e pelos cambistas. Vai ter muito mais gente do que a lotação oficial. — Disse a ele. — Tudo bem, Machado. Não esquenta não. Liberou geral. 0 Bonifácio (Boni) está feliz. O Festiva/ é um sucesso. Está com todos os comerciais bem vendidos e deu um puta lucro pra Globo. Nós estamos é de parabéns, cara. Respondeu-me.
Uma vez ouvindo isto, passei a colocar-me em posição de mero espectador, liberando o pessoal da equipe para um relaxamento. Pois, àquela altura, alguns já estavam quase chegando às vias de fato com os "roleteiros" (Roleta de quina) do Maracanã(zinho) — com os auxiliares"do Marcos Lázaro, com os seguranças e com os cambistas. Disse ao pessoal que não controlassem mais nada. Que simplesmente pegassem alguns ingressos falsos para darmos de presente ao Marcos Lázaro e para o Ítalo Granato, junto com o relatório, e que eles (auditores) não precisavam trombar com mais ninguém. Cancelei a venda homeopática de ingressos e liberei a venda maciça pros cambistas deitarem e rolarem. Da forma como eles queriam: casa cheia (não importando como). Acabei assistindo o final do festival em uma posição privilegiada. Vendo, ao vivo, ao pé do palco, e ao mesmo tempo com um monitor de TV, localizado na minha frente, que era assistido por Daniel Filho e Boni, entre outras pessoas. O que proporcionou-me um flagrante inédito: na finalíssima, antes de serem anunciadas as vencedoras, veio o Marcelo Rosa, e logo atrás o Solano, da VPI, com os resultados do júri, para conferirmos com o nosso bolo (havíamos apostado em quem seria a grande vencedora do Festival). Quando o Boni viu Mira Ira como vencedora, pegou o papel e esbravejou: — Estes merdas não entendem nada disso. Votaram tudo errado. — Virando-se para o Ítalo, emendou: — Onde é a sala do júri? Ítalo vira-se, apavorado, para mim e pergunta, como se não soubesse: — Onde é, Machado? — Eu ri. Fingi que não escutei, e o Marcelo Rosa intercedeu apontando o local. Como que para fugir do meu olhar de acusação, o Ítalo se justificou: "O voto dele vale mais do que de todo o júri junto." O Boni dirigiu-se para lá, célere e impulsivamente. E, dentro de alguns poucos minutos, voltou sorrindo, como um chefe que colocou tudo no lugar. Em seguida, foram sendo anunciadas as vencedoras, até que Tetê Espíndola, com Escrito nas Estrelas, foi aclamada, em delírio, como a grande vencedora do Festival. O público gostou, e a troupe de "baba-ovo" (como o próprio Boni costuma chamá-los, sem esconder o desprezo por eles mas sem afastá-los de perto) desfez-se em elogios: — Ele é gênio. — Dizia um. — Entende tudo de gosto popular. — Dizia outro.
— Esse é que é o verdadeiro resultado — arrisca, um outro "baba-ovo" mais fervoroso. Eu olhava, ria, afastava-me em panorâmica. Olhava o público e pensava: "Pobre do Martinho da Vila — que sacanagem de vingança covarde fizeram com ele (anteriormente). Pobre desse grupo, Tarancón, Placa-Luminosa e Lula Barbosa. Garfados pelo "dono da festa". Salve Albino Forjas de Sampaio: 'A vida é dos de coração gelado e hirto. Amanhã é tarde, depois é impossível. Tudo na vida é transitório. Tudo passa, tudo esquece. A criança será homem, o lacaio será senhor, o arbusto será árvore, o ontem será hoje, e o bom será meu. Ai dos que param. Ai dos vencidos.'" Tudo acontecia quase que simultaneamente. Eram vários trabalhos ao mesmo tempo. Era Fundação, era Grande Sertão, era Festival, e ainda queriam que eu fosse controlar o Show do Roberto Carlos no Maracanãzinho, que serviria de base para a gravação do especial de fim de ano. Eu conseguia almoçar decentemente, pois a temperatura elevada estava na Fundação (Rio e São Paulo), e eu podia pegar a galera e ir almoçar como um ser humano normal. Nada de sanduba, pizza ou salgadinhos. Valia comer qualquer coisa, desde que não fosse no Plataforma. Eu não agüentava tanta "Galinha Carimbada", "Cigarra" e tipos diversos fazendo o papel de tipos diversos. Tudo que eu queria era entrar num restaurante sem ver a cara de um só artista, um só funcionário ou diretor da Globo. Queria algo asséptico e respirável. Esta era a única compensação a que eu me permitia para agüentar o bando de loucos, que após as 20:00 hs entrava auditoria adentro e me fazia trabalhar até de madrugada. Não raras foram as vezes que dormimos direto no escritório, ou que entrávamos em briga profunda em plena madrugada.
— Eu não agüento mais você, Luiz. Ao invés de auditar o Depto. Cultural, você quer ajudar o José Carlos Barbosa a dirigir o departamento dele (Cultural) — esbravejava o Francisco. — Porra, tudo é nas minhas costas. Não sou eu que quero pegar o lugar do Magaldi e botar o Pedro de Diretor Administrativo. — Contra-atacava mordazmente o Luiz Carlos, fazendo insinuações quase que diretas ao Francisco. — Francisco, larga do pé do Luiz — dizia eu ao pé do ouvido dele. — Deixa ele é o cacete. Eu estou cercado por um bando. Eu não agüento mais. O Wanderlei não faz o que eu mando. O Mendes a gente não acha ele. Não tem carro e nem telefone (psicose braba do Francisco em relação ao Mendes). E, você fica aí no bem-bom só cuidando de Festival e Grande Sertão e ainda vem defender o Luiz Carlos e o Magaldi. — Atacava o Francisco. — Não faz nada é uma ova. Eu estou trabalhando quase vinte horas por dia, minha família está em São Paulo. Eu trabalho a semana inteira aqui no Rio, num ritmo louco e ainda tenho que ouvir abobrinha de você. Vai se catar. Respondi agressivamente. — Calma, calma, pessoal... Nós todos somos amigos. Todos nós trabalhamos demais, e somos testemunhas uns dos outros. Não adianta a gente sair na porrada. Nós estamos dando uma de babaca: o cara que roubou está dormindo. O dono do dinheiro, que foi roubado, está dormindo. São quatro horas da manhã e nós aqui saindo na porrada. Vamos parar. — Profetizou Mendes. Foi um jato d'água tão forte que ninguém contestou. Fomos para casa. Dia seguinte, por uma dessas coisas raras do destino, o Francisco chegou cedo e, para variar, quem chega tarde? Luiz Carlos. — Luiz, isto são horas de chegar? Já são dez horas. Está todo mundo aqui e você chega agora? Tá vendo Machado? Tá vendo? Defende ele agora. Defende. — Dizia o Francisco, revivendo a raiva anterior. O Luiz Carlos olhava para mim com cara de quem diz "eu mato esse cara. Trabalhei ontem até as quatro da manhã e quando chego às dez horas da manhã ele diz que eu cheguei tarde..." Eu olhava para o Luiz e dizia: "Não esquenta. Fica quieto que ele está debaixo de pressão e o escalado pro desabafo foi você. Não responde pra não piorar." — Machado, vamos tomar café? — Era o sinal de que o Luiz queria conversar comigo algo em particular. — O que é? — Perguntei. — Vou-me embora da auditoria. Não agüento mais o Francisco. Depois que você saiu (para São Paulo), ele piorou demais. Quando os outros auditores foram embora (para outras empresas) tudo sobrou nas minhas costas. Eu não agüento mais, cara. Eu não tenho que aturar mais ele. Eu vou-me embora porque eu gosto dele e quero preservar esta amizade. E, se eu ficar aqui, a gente vai se destruir. — Lamentava o Luiz. — E você já tem para onde ir? Perguntei. — Vou para TV Globo-Juiz de Fora. — Balbuciou, como que querendo minha opinião. — Você vai ser gerente? Um simples gerente de uma regional medíocre? Eu não acredito. Você enlouqueceu, Luiz? — Falei abismado. — É o seguinte: em primeiro lugar é uma cidade pequena e sem a zona da TV Globo-Rio. É a terra da minha mulher; eu quero paz e sossêgo, e pago qualquer preço por isto. Vou ter hora para entrar, hora para sair, vou almoçar todo dia,e jantar em casa com a minha mulher. Vou ser um cara normal. E essa paz vale o dobro do meu salário. Em segundo lugar, há planos de expansão em Minas. A TV Globo-Juiz de Fora vai acabar controlando Varginha, que será inaugurada em breve, e logo irá controlar o sul de Minas, e mais tarde o estado todo. — Explicou Luiz Carlos. — Bom, neste caso, eu te desejo felicidades, e muito sucesso. Acho que eu consigo te entender. O estômago virou de vez, não é? — E emendei: — O Francisco já sabe? — Não, e não quero que saiba. Deixa eu fechar as negociações com o Aleixo e com o Humberto, e aí então eu falo com ele, sem chances de argumentos ou dele melar a minha saída. — Justificou. — É irreversível a decisão? — Arrisquei a pergunta. — É — disse ele, mordendo os lábios e com pena de largar tantos anos de auditoria, tantos amigos, e sentido por ter que decidir. Enquanto isso, o clima na Fundação esquentava, pois além do que se sabia e do que se apurou posteriormente, dois casos explodiram além dos normais e mereciam contornos políticos
imediatos: um o da Varese, que ao responder a uma circularização (carta de confirmação) nossa, ameaçou processar a Fundação, por jamais ter sido convidada para qualquer concorrência (apesar de perder todas) e que eram falsos os impressos, os preços e as assinaturas da empresa. (Era tudo feito a partir de xerox de cartões de visita disponíveis na loja.) E o outro caso era o da obtenção ilícita de verba da Petrobrás, envolvendo comissão paga a dois conhecidos membros do mundo dos escândalos (ambos com outros escândalos recentes em jornais): Romeu Onaga e Atan Barbosa. No primeiro dos casos fomos, eu e Francisco, para tentar resolver com o Presidente da Varese, que disse cobras e lagartos da Fundação e da Globo, principalmente porque as evidências demonstravam que, no mínimo, o gerente de confiança da diretoria estava envolvido no escândalo e que tudo indicava que o próprio diretor daquele departamento era o próprio beneficiário do ato ilícito. Não dissemos nada que concordasse ou negasse o fato, mas empenhamos nossas palavras no sentido de que iríamos responsabilizar o autor e que daríamos ciência da decisão do Dr. Roberto à Varese. No segundo dos casos fui sozinho á Petrobrás, usando todos os meios de que dispunha e de diversos conhecimentos, chegando até o Sr. Duque Estrada e o "adjunto". E, dentro do sigilo que se fazia necessário para o momento, foi-me garantido que o próprio Presidente da Petrobrás (e Vice-Presidente da Fundação Roberto Marinho), Sr. Hélio Beltrão, iria abafar o caso, evitando que o nome da Fundação viesse a público no escândalo. E mais, que o Diretor da Petrobrás, Atan Barbosa, já estava afastado e o caso encaminhado a inquérito administrativo. A temperatura volta a subir em São Paulo, e o Matsumi vem ao Rio para conversar com o Magaldi, mas, antes, passa na auditoria e convida-me para almoçar e assuntar para saber se eu queria dar algum recado para o Magaldi. Isto porque circulava na Central Globo de Boatos a notícia de que eu havia traído a Fundação e agora queria destruí-la, movido por um sentimento pessoal contra o Magaldi, e que ele estava de bronca comigo. Esclareci ao Matsumi que o Magaldi estava mal orientado e muito mal assessorado, pois eu, reiteradas vezes, tentei fazer com que ele assumisse, junto ao Dr. Roberto, em conjunto com o Francisco, todo o processo de higienização da Fundação, e que se ele perdesse esta oportunidade, iria perder o bonde da história. Como é de hábito, algumas pessoas ficam ou se sentem enebriadas com sua própria capacidade e poder. E, cercado pela turma yes man ou vulgarmente puxa-saco, sentem-se mais poderosos ainda. E minimizam os efeitos do que lhes possa ser adverso. Sentindo-se, mesmo, com coragem para enfrentar aquilo que eles substimam. Infelizmente, e de forma lastimável, isto aconteceu com o Magaldi. (E acontece freqüentemente com os poderosos da Globo. O que lhes falta é adversário à altura.) — Matsumi, diz pra ele que não tem mais jeito. Vai tudo pro espaço. Não vai sobrar ninguém. Ele tem que ter habilidade política para se engajar no processo e não tentar medir força. O papo é outro. Não cabe medição de força. — Pedi ao Matsumi. — Ele não vai aceitar, porque o Calazans telefonou para ele, de sacanagem, para "prestar solidariedade" neste momento difícil em que ele estava tão fraco. Daí, o Magaldi, infantilmente se sentiu melindrado, ficou puto da vida e resolveu mostrar que ele podia mais sozinho do que toda a auditoria junta. E era isto que o Calazans queria. — Explicou Matsumi. — Tudo bem, Japonês. Encurtando a história, o recado é: eles estão fudidos do primeiro ao quinto. Cabe ao Magaldi mostrar cintura ou cabeça dura. — Concluí. Matsumi vai á emissora, e na volta vem decepcionado, dando-me integral razão: — Machado, ele enlouqueceu. Eu não conheço mais o Magaldi, Ele acha que não está acontecendo nada na Fundação, e que a auditoria vai discutir um roubo de bolas, materiais esportivos, e só. Ele vai bancar o jogo, no escuro. — Disse Matsumi assustado. — Eu te falei. Não foi por falta de aviso. Tem gente que acha que é só botar meu nome na boca do sapo e soltar uma fofoca qualquer na Central Globos de Boatos que resolve o problema. Ledo engano. Foi o pior e mais lastimável erro de avaliação de um cara que eu reputo inteligente. Mas, afinal, ningue'm tem obrigação de ser inteligente 24 horas por dia... — Finalizei. Ainda estiquei a conversa com o Jorge Matsumi, basicamente em função do que estava sendo apurado no departamento dele. E, como ele estava aberto, nada mais lógico do que saber dele as justificativas para as principais irregularidades na televisão:
— Compra de notas fiscais - "Fui orientado pelo Jair Lento, e segui a prática da Globo." — Caixa dois — "Todo o funcionamento foi instruído pelo diretor financeiro (Jair Lento)." — Frota de veículos locados à Fundação de propriedade de um "motorista" da Globo — "Tenho um cartão do Boni mandando eu atender o Brás" (motorista da Globo que atende ao Boni em S. Paulo). E mostrou o cartão. — Fitas sumidas (500 mil dólares) — "Controle estabelecido pelo diretor adm.-financeiro, e tráfego de fitas controlado pela TV Globo- São Paulo." ("É só procurar nas produtoras independentes e na TVS, que você acha tudo.") Notas fiscais de diferentes empresas, manuscritas pela mesma pessoa — "São as PJ (Pessoas Jurídicas) que recebem o "por fora" conforme instruções da Globo." — Compra de equipamentos com notas de serviço — "Instruções do Diretor Financeiro." — Despesas de viagens falsificadas — "As notas vem em branco para o Guerra (Gerente Administrativo e Financeiro) e o Jair Lento (Diretor Adm.-Financeiro) Poderem matar as prestações de contas com o MEC." — Globotec cobrando serviço de "facilidades" à Fundação — "Instruções superiores." — Funcionários da Globo que recebem por notas frias — "Eles trabalham na Globo e na Fundação ao mesmo tempo. Na Globo recebem em carteira. Na Fundação recebem por notas compradas, conforme instrução do diretor adm.-financeiro (Jair Lento). — Contingências trabalhistas e direitos autorais — "Todo mundo que trabalha em qualquer empresa da Rede Globo tem uma grande questão trabalhista para reclamar. Pois a partir de determinado salário o sujeito abre uma firma e fatura contra a Globo para fugir dos impostos e para que a Globo possa pagar melhor do que os concorrentes. Isto é um caso genérico e comum a todas as empresas da Rede Globo, e não um erro só da Fundação. — Contratação de Parentes — "Se isto fosse problema, a Globo não teria funcionários. Não vejo porque abordar isto no meu departamento, se o próprio Secretário Geral (Magaldi) tem irmã (Sylvia Magaldi) e filhos (Álvaro B. Magaldi e Sérgio B. Magaldi) trabalhando na Fundação. Isto tem em tudo que é departamento e em tudo que é empresa da Rede Globo." — Aluguei de câmera e equipamentos de TV de sua propriedade — "Eu já te contei esta história. O Jair não aceitava comprar equipamento, alegando que a Fundação não podia ter ativo fixo. Daí, eu continuei alugando, só que eu disse pro cara que me alugava que eu estava comprando. E no final de quatro a cinco meses a câmera estava comprada e eu continuava alugando para a Fundação. Não tenho culpa de botarem um "milico" para dirigir uma empresa como a Fundação." A posição do Matsumi era de calma e de absoluta segurança. Sabendo que até poderia ser demitido, e que, fazendo ou não o "jogo do poder", isto aconteceria ou não, independentemente de sua vontade. E não seria sendo "bonzinho" ou "mauzinho" que ele iria preservar seu emprego. ("Se sair daqui, tenho uma grande reclamação trabalhista ou uma grande indenização. Vou trabalhar em qualquer concorrente ou ser produtor independente.") Aproveitando o fato de eu ainda estar morando em São Paulo (eu passava os fins de semana lá e trabalhava durante a semana no Rio), resolvi esticar a semana em São Paulo para fechar o assunto Calazans, pois o serviço de rua dava conta de que a ficha do Calazans era péssima, e que duas pessoas importantes na vida dele, dentre outras, estavam dispostas a dar depoimentos sobre ele. Em duas oportunidades distintas colhi estes depoimentos. Foram: Terezita Yolanda, sua ex-secretária particular e assistente por quase dez anos, demitida numa das crises alcoólicas do Calazans, que espantando os seus fantasmas, supôs, e não era verdade, que Terezita passava-me informações; e José Alcione, Diretor da Abril seu ex-amigo, quase falido por ter sido avalista oficial do Calazans. Papel timbrado da Rede Globo — Título: Relatório — Impresso nº 14.826-1 GLOBOGRAFICA FRANCISCO CALAZANS FERNANDES Breve relato, a partir de uma entrevista feita com sua secretária profissional e particular Terezita Yolanda, em 17 e 18/07/85.
"Calazans iniciou-se em escândalos e corrupções no Rio Grande do Norte, quando ainda era secretário da educação. Foi acusado, e vários jornais da época publicaram parte da história, sobre desvio de material escolar, alimentos de merenda escolar e donativos para pobres e necessitados do nordeste, doados por órgãos de cooperação latino-americana (Aliança para o Progresso, MEC/USAID,etc). Ainda como secretário de educação, aprendeu como retirar dos orçamentos dos órgãos públicos os recursos necessários para a execução de programas que seriam ou não controlados a posteriori. Daí veio o seu grande sonho em estabelecer contacto com um grande empresário de maneira a permitir vôos mais altos. Foi buscar tal empresário em São Paulo (como todo nordestino), e os esforços foram vãos. Teve que trabalhar como jornalista (free-lancer) e os outrora bem-estar e bem-viver aparentes começam a comprometer sua vida particular. Os sonhos megalômanos começam a ir água abaixo, e seu futuro como jornalista fica comprometido, pois passa a viver de pequenos expedientes e trambiques em colegas. Sua maior vítima, na Abril, é o ex-colega Alcione, na época "amigo da fé" e "avalista de plantão". Calazans começa a ter graves problemas em casa. Primeiro são as execução judiciais; depois, a toma de bens; e mais tarde, a perda dos amigos, principalmente do Alcione, executado junto com o Calazans e indo ao fundo do poço. (Daí em diante, Alcione iria devotar a Calazans um ódio mortal. Tanto que anos mais tarde, Calazans já empregado e com a vida semi-estabilizada, tentou pagar algumas dívidas com o Alcione, que nunca reatou com aquele e nem o perdoou. No interregno do grande débâcle, Calazans vira alcoólatra contumaz, e nos momentos de lucidez procura um advogado para segurar o grosso das execuções. (Dr. Gilberto.) A secretária deste advogado era Terezita Yolanda, que mais tarde viria a ser sua secretária profissional, e particular. Penalizada com o drama da família, o advogado e a secretária tentam ajudar jurídica e pessoalmente o "agora humilde" Calazans. Terezita passa a dedicar-se à recomposição de uma família, e tenta (extra-oficialmente) elaborar os planos do grande sonho do Calazans (Telecurso). Terezita compilou dados, datilografou, deu forma final, e comprou uma passagem para Calazans vir ao Rio falar com o Dr. Roberto. Após algumas negociações, Dr. Roberto compra a idéia, e é criada a precursora da Fundação Roberto Marinho ou seja, a Rio Gráfica Educação e Cultura. A Rio Gráfica vivia patronada por um megalômano que orçava qualquer valor para fazer qualquer projeto, quando o único objetivo era arrancar dos órgãos governamentais aqueles recursos. Obvio que os orçamentos, historicamente, sempre foram deficitários, e como num endividamento sem fim (agora usando o nome de um grande empresário) os limites de crédito foram sendo potencializados até os vultosos números de hoje. Nos intervalos entre as liberações de verbas, as crises eram inevitáveis. Pois se um projeto custasse 1.000 e o orçado fosse 800, ele aceitava qualquer valor liberado pelo MEC, por menor que fosse. No caso de um projeto de 1.000 com liberação de 400, era executado usando-se todos os tipos de artifícios, pois o vermelho seria empurrado para frente. As pressões psicológicas desta roda-viva, mais a condição de alcoólatra, agravaram as crises voltadas para o alcoolismo. Calazans passa a comparecer contumazmente embriagado ao trabalho, tendo como "santos protetores" e ocultadores desta situação duas pessoas: Terezita Yolanda (sua secretária) e Luís Eugênio Barbosa (Controller). Ocorrem situações absolutamente grotescas, como escândalos na porta da Rio Gráfica, caída em sarjeta na presença de funcionários da TV Globo-SP, ofensa a funcionários do governo que recusavam seus projetos ( tudo em nome de Dr. Roberto), obrigação de completa submissão dos funcionários públicos aos quais ele havia corrompido. E, a esta altura, com um poder de fogo cada vez maior, ele participa, em Brasília, de indicações, nomeações, e montagem de um esquema de corrupção que envolvia funcionários menos graduados, até altos funcionários como Reitor da Universidade de Brasília (José Carlos Azevedo) e os Secretários de Educação (Ana Bernardes e Marco Antônio Veronese). Suas maiores armas são: o suborno, a corrupção, o favor e a intimidação. Tanto que, quando alguns tentam fugir do esquema, ele intimida. Como foi o caso da recusa de seus projetos pelo MEC (1984), quando ele acabou conseguindo a liberação por haver "plantado" na imprensa paulista parte do que seria uma grande denúncia, abrigando Veronese e Ana Bernardes a recuarem e aprovarem seus projetos. Ou seja, quando alguém lhe diz não, ele
usa de todos os meios disponíveis para pressionar e conseguir seus objetivos. E, no caso específico, Veronese e Ana Bernardes sentiram a ponta do arpão do que seria a grande denúncia (firmas de computadores, firmas de assessoria, etc, tipo Madeira Inteligente). A sua classe de sustentação é Carlos Alberto Felizola (um Calazans em menor escala, de âmbito estadual) e José Maruílson Costa (seu "afilhado"), sendo este último suspeito de vender fitas e fascículos que seriam doados a comunidades pobres, mas que são, na realidade, vendidos por ele em proveito próprio. Na realidade, Calazans age com uma procuração implícita, ou seja, com a gazua que abre as portas fechadas a ele em Brasília: o Dr. Roberto Marinho." Papel timbrado da Rede Globo — Título: Relatório — Impresso nº 14.826.1 GLOBOGRAFICA Entrevista feita com o Sr. José Alcione, Diretor da Abril, feita no dia 23/09/85, segunda-feira, na rua Jaguaretê, 213/5º andar, Casa Verde, São Paulo. "Alcione se confessa um ex-velho amigo de 20 anos, cujos filhos, dele e de Calazans, cresceram juntos e se fizeram amigos, amizade que terminou por problemas financeiros graves. (Nota: Ambos são do Rio Grande do Norte e moraram juntos no Rio e em São Paulo.) Segundo Alcione, Calazans sempre foi um perdulário e megalômano. Vive assombrado por sonhos magistrais. Tudo a que ele se propõe tem que ser faraônico. Ele não pede uma passagem, a pede blocos de passagens. Em hotel fica como hóspede VIP, assim como só viaja de 1 classe e briga por ser recebido como VIP nos aeroportos e hotéis. E nas empresas e nos contatos age sempre em nome do dono. Externamente, na Abril, se dizia representante dos Civita. Internamente, amedrontava funcionários informando sempre as conversas teóricas com o dono. (Ele transformava um encontro em vários, e de dois pontos montava uma história.) Com isso, ele conseguiu adiantamentos, passagens e hospedagens, gastos de aluguéis e verbas de representação, onde requisitava, aprovava e escondia. Dizendo sempre que esteve com o patrão, que agia por ordens do patrão. Os funcionários morriam de medo. Até ser descoberto. Quando foi descoberto e todo o seu débito levantado, foi demitido por "justa causa" como estelionatário, por um desfalque de mais ou menos 700 mil em 1968 (hoje cerca de 1 bilhão). Diante de tal fato, Calazans utilizou o seu recurso mais comum: chantagem. Chantageou os Civita com a história do terreno e da construção do Hotel 4 Rodas. Ao que tudo indica, com grandes irregularidades envolvendo doações ilegais, desvio de mão-de-obra, material público etc. Ante a ameaça de escândalo público, sua saída foi negociada. Saída que passou a ser uma demissão pura e simples (sem o estelionato caracterizado). Porém, ele assinou várias promissórias para cobrir as dívidas. (Mais tarde, ele deixaria de pagar algumas das promissórias e a Abril entraria com ação de execução contra imóvel de Calazans.) Passa então a atuar como free-lancer e consegue ir para a Bloch. Mas rapidamente descobrem quem era, logo é demitido em meio a uma viagem-safari para a África para uma reportagem com Bokassa. Fica uns tempos na África com o "imperador" e vive dias de glória. Enquanto, no Brasil, Alcione provia as necessidades da família de Calazans. Como de hábito, Calazans pretende viabilizar seus sonhos faraônicos. Ao ver o sítio do amigo Alcione, em Itapecerica da Serra, propõe sociedade. Constrangido, Alcione, sob pressão — uma vez que Calazans já transformara em hábito a presença no sítio — aceita e propõe-se a pagar a metade do valor do sítio. (Este custara 42 mil, e Calazans assina várias promissórias até o montante de 21 mil.) Propõe, então, transformar o sítio, numa mansão nunca vista. Mandou fazer terraplanagem, calçamento, meio fio, pavimentação, jardinagem, construiu uma mansão com anfiteatro, com piscina suspensa e jardim idem. Só que a conta, não paga, era mais do dobro do valor do sítio. Daí começam as cobranças, e as execuções. Alcione, então, entre perder o sítio para os credores e pagar as dívidas, opta por dar o sítio ao Calazans (que garante pagar tudo). Ou seja, Calazans tomou o que nunca fora seu. Puro golpe. Para salvar o "amigo Calazans", Alcione passa a ser o seu avalista oficial. Só que, como os bancos mandavam os títulos em branco, Calazans dizia que ia pedir um empréstimo num valor e tomava muito mais. (Provocando um endividamento sem fim.)
A síntese deste desastre foram 52 ações de execução, onde Alcione perdeu tudo o que tinha, salvando tão somente a residência, pois, segundo instruções do advogado, entrou com embargo de terceiros (filhos herdeiros e mulher meeira e herdeira), provando que o imóvel era mais de terceiros do que do próprio Alcione. Calazans, por seu turno, para se livrar dos credores, aplica o golpe de vender o sítio va'rias vezes a diversas pessoas, para ficar com o sinal e a entrada. Uma vez que uma ação a mais ou uma a menos não faria diferença. Entretanto, se dá mal, pois um dos compradores, seu primo, promove uma ação — não de execução, mas de estelionato — e consegue, com isso, resolver vários problemas. Ao invés de pagar ao Calazans, ele começou a pagar a todos que haviam entrado com ação de execução do sítio, para, só depois, pagar ao Calazans. Com isto, Alcione viu grande parte das dividas serem pagas. Para ajudar, vai até Calazans e propõe receber bens de família no Nordeste, vendê-los e pagar as dívidas de Calazans, para que ele possa ter tranqüilidade e estabilidade. E, tão logo as coisas se normalisassem, Calazans lhe devolveria o dinheiro. Calazans, como de hábito, não admite o insucesso, e assumindo ares de importância diz que iria pagar todo o débito — porque estava trabalhando com o maior empresa'rio do país (Dr. Roberto Marinho) — e que iria mandar para o Alcione uma carta com toda a quitação das dividas, aproveitando para romper a amizade com ele, que não confiava no amigo. Alcione então, ofendido, retruca que aceitava a quitação do débito, mas que não ia aguardar a tal carta para romper a amizade. Pois, para ele, a partir daquele momento considerava a amizade rompida. Calazans, dentro da própria casa, ofende, ameaça e humilha ó ex-amigo, pondo-o para fora como um cão vadio. (Detalhe: Calazans é alto e corpulento, e Alcione, baixo e franzino.) Alcione rompe com Calazans, após 20 anos de amizade e abstém-se de qualquer outro contato. Limitando-se a receber as quitações das dívidas que eram enviadas. Calazans e esposa tentam, por inúmeras formas, reatar com Alcione. Este se limita a receber cheques e documentos, mas não a pessoa do Calazans. Alcione termina o relato demonstrando uma grande admiração por Calazans, dizendo que a garra do Calazans, é algo de fantástico, e que ele tem um faro incrível para dinheiro: "Ele sabe onde estão os dinheiros". Mas, ao mesmo tempo, demonstra uma profunda e irrecuperável mágoa. Dizendo que o Calazans é o maior mau caráter, o maior perdulário e o indivíduo mais irresponsável que existe sobre a face da terra. Capaz de devastar a fortuna de um Roberto Marinho ou de um Onássis em pouquíssimo tempo. Sua capacidade de endividar-se e gastar dinheiro alheio é ilimitada. E arremata: "Pobre do Dr. Roberto..." Nota: Igual ao acontecido na Abril, Calazans deve á Rede Globo uma grande soma de dinheiro, várias vezes superior aos seus ganhos. Ao tempo da auditoria (1985) Calazans devia 112 milhões à Rede Globo (cerca de vinte mil dólares)." Com a aproximação do fim dos trabalhos de auditoria, começam a ficar evidenciados os desesperos. Vazam notícias, e chega até nossos ouvidos que o cinturão de fidelidade do Magaldi aceitaria entregar a cabeça do Diretor Administrativo Financeiro, Doutor Jair Lento, em troca de uma não retaliação profunda. Esta notícia, proveniente da Central Globo de Boatos, teve alguns efeitos interessantes, pois se para mim era totalmente indiferente — eu não quis entrar na briga e agora não aceitava sair —, para o Francisco a coisa tomou ares de fragilidade e de desespero por parte dos boateiros. Fazendo com que ele ordenasse que se cortasse mais fundo, e que os auditores deveriam intensificar mais e mais seus trabalhos, não importando que já existisse material suficiente para demitir toda a diretoria. Estava ocorrendo o que prevíramos no início. O Francisco iria atropelar e querer dirigir tudo sozinho, tão logo percebesse que poderia manejar com todos os botões ao mesmo tempo. Entretanto, esta intensificação final e atabalhoada, em clima de "vamos arrasar", acabou trazendo algum transtorno para mim. Acuados e com medo, algumas pessoas passaram para uma posição de desespero. Sabendo que eu deixava, habitualmente, a minha família sozinha em São Paulo durante a semana, passaram a recortar noticias terríveis de jornais sangrentos como Notícias Populares, e punham alguns recortes destas noticias na caixa do correio para atemorizar minha
mulher e meus filhos: Seqüestro, Estupro, Morte, Assassinato, Estragulamento, Chacina, etc. Eram as "noticias" encontradas na caixa do correio. Óbvio que o efeito foi imediato. Minha mulher entrou em pânico. Passou a andar armada. Levava as crianças para o colégio (em frente da casa — Colégio Miguel de Cervantes) escoltada por um par de cães fila. Era claro e evidente o medo que ela demonstrava. Foi preciso muita doutrina e explicação para convencê-la de que estávamos diante de um fato irremediável. E que eu teria que fazer as coisas à minha maneira. — O trabalho de auditoria já está praticamente todo feito. O Dr. Roberto já sabe de 80% do que nós encontramos, pois ele vem sendo informado gradativamente, à medida que nós encerramos cada assunto. Não há mais como parar a auditoria. Tudo virou irreversível. Ele irá tomar, ou não, as medidas que julgar convenientes, e eu sofrerei, ou não, as conseqüências de haver iniciado tudo isto. É inevitável a possibilidade de represálias que eu possa sofrer. Não dá para fugir; não dá para correr. É parar e encarar. Eu não vou conseguir esconder vocês para sempre. Portanto, só há um meio possível de encarar isto. É assumir a possibilidade de eu morrer, ou de vocês morrerem, ou de morrermos todos, e tomar a estratégia de sobrevivência à partir daí. — Dizia eu, de forma, fria, realista e bastante consciente. (Até mesmo para conscientizá-la.) — Eu quero que o Roberto Marinho morra. Eu quero que você pare com essa auditoria e saia da Globo. Não há motivo ou justificativa para você se envolver e envolver a vida de seus filhos nesta loucura. Pare com isto tudo. — Pedia ela. — Você acha que agora dá para parar? Depois que todos forem demitidos; você acha que dá para você se esconder?— Eu perguntava. Óbvio que a princípio ela não aceitava, nem entendia qualquer justificativa minha. Acreditava, ainda, na possibilidade de viajarmos, de fugirmos, ou mesmo de sermos guardados e protegidos 24 horas por dia. — Imagine seus filhos sendo brutalmente assassinados. O que você faria? — Questionava eu de forma ensaísta. — Não sei. Não sei se há uma outra chance... — Duvidava ela. — Você morreu. Seus filhos morreram... Este é o real com que você tem que lidar. Qual seria sua nova chance, se você pudesse, reviver? — Eu insistia, sobre o imutável. E foram tantas e tantas as vezes as insistências, que ela acabou, por medo e falta de opção, concordando: — Ok. Faça o que você acha que tem que ser feito, e o que garanta a você e a nós a tranqüilidade ou a sobrevivência. — Aquiesceu ela. — Nada garante nada. Nada pára nada. Há uma chance de parar, mas eu não vou contar com isto. Você tem que se imaginar morrendo. Você tem que imaginar seus filhos morrendo, e tomar suas decisões a partir daí, não importando qualquer outra possibilidade. — Tentava doutriná-la para o inevitável. — Eu não quero morrer e nem que meus filhos morram e não sei ser fria como você. Faça alguma coisa que pare isto tudo. Faça o que você achar melhor e, se possível, nem me conte, pois eu imagino o que você fará. — Encerrou, lamentando pela sua possibilidade de envolvimento e pelo envolvimento involuntário das crianças. Foi preciso muita doutrina, principalmente espiritual, para que ela admitisse a possibilidade de morte dos próprios filhos. Estávamos lidando com o imponderável, incontrolável e imutável, e não poderíamos agir como pessoas que costumam se fragilizar a partir dos outros, antes do que a si próprias. Foi com base nisto que pedi para que ela ficasse sempre junto das crianças. Morrendo junto, se possível. Pois, mesmo no caso eventual de minha morte isolada, ela não deveria, sequer, esboçar qualquer reação, pois o efeito retardado faria a sua parte. E a "justiça particular" se cumpriria, mesmo depois da minha morte. Com base nisto fui consultar "meus caros amigos" de Jacaré-paguá, pois, afinal de contas, nada nem ninguém melhor do que eles para lidar profissionalmente com profissionais. Isto, eles sabiam fazer melhor do que ninguém, (É certo que às vezes eles se enganam e erram no varejo, explodindo bombas antes do tempo, aleijando quem não deviam, ou falhando no efeito retardado na destruição de uma oficina de jornal. Mas, no atacado, eles acertam em 99% dos casos. E jamais deixam de cumprir um contrato.) Encomendado o serviço, veio a orientação técnica: eram três as pessoas que estavam envolvidas nas gracinhas e ameaças. A sugestão era para que o serviço fosse feito por Justiceiros de São Paulo mesmo, ou pela Mineira de Iá. Fui contra a sugestão por vários motivos,
principalmente porque haveria mais gente envolvida do que eu desejava e por ter que ser executado por pessoas que eu não conhecia e não confiava na qualidade do serviço. Exigi e paguei, mais uma vez, a ida de dois profissionais a S.Paulo, para dar um primeiro e único recado aos autores das gracinhas e de maneira a deixar bem claro como seria o processo de troca: para um o processo iniciar-se-ia pela mãe. Para outro a troca seria por ele mesmo. E, finalmente, para o último seria começando a troca pelos netos, indo depois aos filhos, até chegar nele próprio. E tudo seria irreversível e incontrolável. Tive que manter à distância, inicialmente, um terceiro dos especiais caros amigos, pois este queria dar, imediatamente, uma demonstração do aviso, um exemplo de como seriam as coisas caso meus filhos, minha mulher ou eu sofrêssemos qualquer atentado ou "acidente". Não que este amigo especial fosse afoito ou não fosse profissional, mas é que sua compulsiva tara por matar precisava ser nivelada ou compensada. E eu não queria ser o motivo para esta sede e compulsão. Sabia que uma precipitação poderia pôr tudo a perder. Exigia uma certa habilidade em ter que lidar com isto, e com as multifacetas de cada um. Com os gostos, taras e vaidades pessoais de cada caro amigo. Pois tudo tinha que funcionar mesmo após uma possível morte minha. E nada deveria justificar a sua não execução. Ainda que eu morresse num acidente de ponte aérea, ou mesmo num simples acidente de carro, nada deveria ser questionado. Os motivos, os fatores e a possível acidental idade da minha morte não deveria ser o obstáculo para não se executar, ou não se concluir o serviço. Eu queria a garantia de que sob qualquer hipótese, por mais acidental que fosse, que tudo se desencadeasse normalmente. Seria um banho de sangue por qualquer morte na minha família. Tentei esboçar uma conversa inicial com o Francisco sobre o que estava acontecendo comigo em São Paulo. Mas ele, obstinadamente, teimava com as baboseiras de lei, ordem, justiça etc. Quando eu questionava sobre qual tribunal devolveria a vida dos meus filhos, ele fugia do assunto e transformava-se: — Não me conte o que você vai fazer, pois se eu não souber eu não me sinto seu cúmplice. — Obrigado - dizia eu. — Muito obrigado. Eu fico de frente com os caras, sou ameaçado, exponho minha família, e quando contrato profissionais para um serviço sou um animal selvagem e insensível? Cara, isto aqui não é brinquedo, não. Não dá pra ter estômago fraco. E é de mortes, violências e assassinatos que nós estamos falando. Francisco levantava, saía da sala, fugia do prédio e ia para outro local. Ele não me tirava a razão, mas não queria participar, sequer como ouvinte. Há muito que a auditoria deixara de ser um procedimento técnico ou um meio profissional de investigação. Por vício do próprio vício do sistema corrupto e corruptível da Rede Globo, transformava-se a técnica rebuscada de administração, finanças, negócios, economia, estatística e legislação tributária em algo policialesco. Foram tantos e tantos os pega-ladrão, que eu me indagava sobre a prostituição das funções de auditor, que antes de mais nada é o meio de extensão dos olhos e ouvidos do acionista ou dono do empreendimento e uma das principais fontes de consulta e orientação sobre a probidade do sistema de negócios utilizada na empresa. A escolha era terrível. Antes eram FASBs, APBs, Procedures, e um milhão de conhecimentos técnicos. A realidade da Globo era de roubos, falcatruas, desvios, sacanagens e putaria generalizada. Eu me sentia como um computador utilizado para cálculos primários, ou como um profissional respeitado contratado para executar uma tarefa rastaqüera. Era, para mim, a prostituição de todos os meios técnicos. Como contratar um médico para um aborto criminoso ou uma eutanásia injustificável. Como contratar um químico para inventar uma praga bactereológica. Um financista para falir com a própria empresa. E eu me sentia parte daquilo tudo. Ajudava, orientava e instruía; e tudo que eu fazia era para amparar e ajudar a legitimar tudo que eu era visceralmente contra, e que arrasava e empobrecia, cada vez mais, a população, institucionalizando a corrupção. Eu me sentia pior do que consciência de advogado de traficante de tóxico. Me sentia pior desempenhando minhas funções como auditor na Globo do que contratando o extermínio coletivo de famílias e pessoas que atentavam contra a minha família. E sentia, na pele, como é duro ter que desempenhar um papel socialmente hipócrita numa sociedade brasileira idem. O tempo foi passando, e ficou bem claro que as pessoas que lançaram aquelas ameaças haviam entendido o recado dos meus caros amigos, pois não apareceu mais nenhum recorte de jornal ameaçando a minha família. Entendi que eles não aceitaram a troca proposta. Mas nem por isso relaxei com a segurança. Ao contrário, passei a mudar de alvo, pois sabia que outros e outros
casos iriam aparecer e outras e novas ameaças iriam pairar sobre minha família. Assim, transferi simultaneamente várias vezes o alvo do serviço pago e contratado, mantendo vivo o "contrato de execução", face ao tipo de serviço desenvolvido na Rede Globo. Não havia outro meio de lidar com o banditismo que não fosse com o próprio banditismo. Este era o raciocínio equacionai a que eu era conduzido por esta merda de país sem lei em que eu vivia. Era a selvageria do princípio dos "pequenos assassinatos". O trabalho em auditoria continuava solto, mas o clima de briga e rompimento era evidente. Todo mundo dava choque, e a tensão era muito grande. Até porque, conforme prevíramos ao início, o Francisco assumiu, de vez, a direção geral do trabalho, tentando fazer com que chovesse antes do tempo, e cobrando das pessoas, colegas de trabalho, mais do que a capacidade física e mental individual de cada um. Isto levou ao rompimento generalizado, pois passei a ser o defensor do Magaldi (na opinião do Francisco), tinha me insurgido contra o "gelo" a um colega (Wagner, que era auditor, e ao mesmo tempo, por acidente, futuro genro do Jair Lento), e apoiava a posição do Luiz Carlos em deixar a auditoria. O Mendes passou a ser acusado de não "dar pressão" nos funcionários em baixo, e de não ter carro, telefone, rir alto, falar alto e todas as outras neuras que o Francisco tinha em relação a ele. O Wanderley era acusado de não falar e de ter uma postura introspectiva, e o Claudinho era afoito e destemperado. Em suma: éramos um bando em choque permanente com o poço de virtudes do Francisco. Ele insistia comigo: — Machado, porque você defende tanto o Magaldi? Ele te sacaneou até não poder mais. É um administrador relapso. Joga no time dos bandidos. E você vive defendendo ele. Você é mulher de malandro, cara? — Não é nada disso. Você não entende ou finge não entender. O fato que aconteceu comigo na Fundação não tem nada a ver. Considero o Magaldi um péssimo administrador. Faz vista grossa pros amigos dele. E não tem a menor condição de dirigir, empresarialmente, qualquer empresa. Mas, por outro lado, eu não acho que ele seja ladrão ou bandido, como você apregoa, pois nada foi provado contra ele, a não ser a péssima administração. Diferente da maioria dos outros diretores, que roubaram mesmo. Daí, eu faço uma grande distinção: ele não serve para ser o Secretário Geral da Fundação, pois é um desastre como administrador, mas acho que é um dos caras mais inteligentes da televisão e o melhor profissional para dirigir o Departamento (posteriormente Central) de comunicação. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. É só deixar ele criar, produzir e fazer aquela coisa mágica do vídeo, do subconsciente, do subliminar, que ele vai estar no campo dele. O negócio dele é vinheta, criação, Agência da Casa, Cedoc, plim-plim etc. — É, mas ele é mau caráter assumido. Pois quem finge que não vê os amigos roubando é o quê? E o caso do Simonal, lembra? — Insistia o Francisco. — O fato de ele deixar os amigos roubarem é uma coisa que depõe contra ele como administrador, e isto eu já disse que concordo com você, mas quanto ao fato de generalizar eu não aceito. Não aceito, por exemplo, esta citação do Simonal, pois o que o Magaldi fez foi tomar as dores do contador, por ter o rabo preso com ele em declarações de imposto de renda e outrascoisitas; daí, inventou que o Simonal era cagüete do DOPS e dedo-duro oficial. Mas ele só fez isso porque era uma "briga de cachorro grande"; era ele contra o Simonal. E, como o Magaldi sabe que a sociedade engole tudo, menos dedo-duro, inventou que o Simonal era dedo-duro; lançou o boato na Central Globo de Boatos; fez circular a boataria pelos meios de comunicação, e pela inteligenzia de chopp com batata frita de Ipanema e Leblon. Aí, ficou fácil. Boato vai, boato vem, apareceu até quem viu o Simonal dedurar. Outros juravam que tinham amigos influentes e que viram até a "carteirinha" do Simonal como Agente do DOPS. Teve gente, mais fervorosa, que até jurou, confessou e se penitenciou por ter sido dedo-duro junto com o Simonal, e se curou no psicanalista do Dr. Lobo. É dose. O que esta inteligenzia de merda é capaz para ser assunto, e "naturalmente deslumbrado", você não acredita. E, com isto, o Simonal sofreu o maior boicote que pode existir, que é o boicote intelectual. Neguinho fugia dele como quem foge de leproso, e a brilhante carreira de um cara que era tudo na MPB de repente sumiu e acabou igual fumaça ao vento. — Conclui.
— É, então... Daí você concorda que ele é um cara safado e crocodilo... — Pedia a confirmação o Francisco. — Concordo porra nenhuma. O que ele fez foi o que qualquer um faria, se fosse medianamente inteligente, se fosse vingativo e se dispusesse do poder de fogo que ele dispõe. Ponha-se no lugar dele e veja se você não faria o mesmo contra um inimigo seu. Veja o que você faz com os amigos do Miguel. Veja o que você faz com os amigos do Magaldi. Veja o que eu estou fazendo com o Jair Lento. Não tem diferença, cara. Amigo é amigo. Inimigo a gente pega, mata e come. Não se faz amigo na guerra. — Repliquei. — É, mas nós não inventamos nada para destruir ninguém. Nós estamos pegando os caras pelo que eles fizeram de errado. Não há invenção para perseguir. O Magaldi não. Ele destrói as pessoas só pelo fato de serem inimigas dele, e não pelas coisas erradas que os outros fizeram. — Insistiu o Francisco. — Quer dizer que o ditado "amigo não tem defeito; inimigo, quando não tem, a gente coloca" é só para os outros... Não vale para você? Vou acreditar... — Coloquei provocativamente. — Não adianta. Você, quando gosta de alguém, não tem jeito. Tudo isto só porque você acha que ele é inteligente. — Insistia o Francisco. — Francisco, tem duas coisas especiais que devem ser cultuadas: os amigos reais e as inteligências brilhantes. Pois é tão raro existir um amigo e um inteligente que quando encontrados devem ser preservados. Eu não estou dizendo que o Magaldi seja meu amigo, mas é uma inteligência brilhante da qual eu admiro, e deve ser preservado, ainda que ele tenha defeitos. Existem tantos medíocres travestidos de gênios, tantos onagros guindados ao posto de gênio pelo simples sucesso pessoal, que é preciso dismistificar estes gurus da genialidade imediatista e preservar as verdadeiras inteligências isoladas e solitárias. E, neste caso, eu relevo as cagadas que ele fez enquanto administrador, até porque ele não é ladrão. E em nome da falta de provas e da inteligência dele, eu o defendo, parcialmente. — Conclui. — Quer dizer que a inteligência justifica tudo? — Questionou ele. — Não. A inteligência até que deveria ser algo bem normal e natural. O cara inteligente é acometido de todas as idiossincrasias, os mesmos erros e acertos, do restante da humanidade, com direito a ter dor de barriga como todo mundo. A diferença é que ele vive a vida com o útero. É mais sensitivo, É mais perceptivo. E sofre mais do que os outros, pois tem mais consciência da realidade. Não adianta eu ficar aqui me esgoelando. Ou você entende sem eu ter que dizer, ou eu não terei palavras para me fazer explicar, É uma coisa muito difícil de explicar com palavras. O que ele fez foi uma grande cagada, e agora ele está ciente disto, e está arrasado. Ele desconhecia o tamanho do monstro que ele havia criado. Os outros não. São safados, e vão fazer novas safadezas na primeira oportunidade que tiverem. — Tudo bem. Não adianta discutir com você em relação às pessoas que você gosta. — Encerrou o assunto o Francisco. Logo após esta nossa conversa, como que a desmentir toda a sua teoria, o Francisco adotou uma postura absolutamente vingativa. Decretou uma invasão no território do Magaldi, colocando auditores na Globotec, na Agência da Casa, no Cedoc, no Videographic, no Aldeão e por todo o Departamento de Comunicação. Fez um memorando comunicando a invasão ao Magaldi, e deu-me para assinar, bem como a todas as cartas de circularização endereçadas ao Diretor do Depto. de Comunicação. Para ficar bem evidente aos olhos do Magaldi que era eu, Roméro da Costa Machado, que o estava invadindo e perseguindo de todas as formas. Eu tinha razão: na inocência e na maldade somos todos iguais. Paralelamente, eu insistia, de todas as formas, via Matsumi, no sentido de fazer Magaldi assumir o controle do descontrole e posicionar-se ao lado do Francisco na função higienizadora da Fundação. Junto ao Francisco eu pedia que este se unisse ao Magaldi para que ambos, numa ação conjunta e coordenada com o Dr. Roberto, pudessem levar a termo a apuração de todas as responsabilidades. Mas a realidade era bem outra. A Fundação estava sendo loteada, e rifada, onde cada departamento com cada diretor com cabeça a prêmio transformava-se num apetitoso cargo a preencher. E isto, revoltava-me demais, pois era contra tudo que eu pregara, e contra a minha própria saída da Fundação. Eu não admitia haver saído da Fundação para limpá-la e ver colegas disputando a tapas cada possível cargo vacante. Este passou a ser o nosso principal ponto de discordância interna, tanto que não tardou a motivar a explosão de atos isolados contrários a esta postura.
— Machado... Machado... Chegue aqui. — Chamava o Francisco, quase desfalecido. — O que é? Que que aconteceu? — Perguntei assustado. — É o Luiz Carlos. Ele está pedindo demissão. Ele ficou maluco. — Disse o Francisco, espantadíssimo. — E daí? Se ele quer sair, deixe ele sair... - Disse eu, calmamente. — Deixa sair é o cacete. Sabe para onde ele vai e fazer o quê? — Sei. — Disse, monossilabicamente. — O quê!? — É... eu sei, e já sabia há muito tempo. — Continuei calmo. — Quer dizer que é traição conjunta? — Perguntou espantado. — Traição nada. Ele me contou e eu não tenho o direito de trair o que ele me confiou. — Insistia na calma. — Então você acha normal ele sair daqui para ser um gerentinho regional em Juiz de Fora, ganhando menos do que ganha aqui? — Acho normal e lógico. Não dentro da minha lógica, mas dentro da lógica dele. Ele vai poder se livrar de tudo isto daqui. Vai poder ficar perto da família, não terá que viajar igual a um louco celerado. Vai tomar café, almoçar, jantar e dormir igual um ser humano normal. Isto é a loteria da vida dele. Vai pro mato criar galinha, ganhando o suficiente para viver. — Expliquei. — Ele vai ganhando menos. Imagine a repercussão disto dentro da Globo. Vão me questionar o porquê desta saída, e porque um cara como ele, que poderia ser, no mínimo, diretor em qualquer empresa do Grupo, vai sair da auditoria para ser gerente em Juiz de Fora. — Indagava assustado. — Entendi sua preocupação. Você está preocupado com você. Com o que os outros vão pensar de você. E você não terá uma só justificativa para explicar a saída dele. Não é isso? — Questionava maldosamente. — Bela hora para me criticar. Porra. Eu não posso perder um cara como o Luiz Carlos. Fale com ele. Coloque seu empenho nisto. Vocês são amigos. Faça ver a ele o que ele ira' perder. Negocie com ele. Diga que eu tenho verba sobrando no departamento, e posso remanejar essa verba e dar um bom aumento e promoção para ele. Tente tudo. Não aceito a saída dele. E avise que se ele duvidar eu melo a transferência dele. — Pedia e ameaçava ao mesmo tempo. — Eu não vou falar nada. Respeito a opinião dele e sei que não há dinheiro no mundo que faça ele continuar aqui. E não adianta ameaçar melar a transferência dele, pois ele já acertou tudo com o Aleixo e com o Miguel. É irreversível. — Assegurei a ele. — Porra. Ainda por cima fui traído descaradamente. Tudo foi feito nas minhas costas: você, ele, Aleixo e Miguel Pires — constatou, espantado, o Francisco. — É isso aí. Você permitiu e até estimulou a cobiça dos cargos da Fundação. Você tem que parar de se auto-analisar. Ver como é perniciosa esta ambição estimulada. Ver que existem pessoas aqui, que acreditam no que fazem. Ver que você está sendo um ditador. Está atropelando todo mundo. Está perdendo o senso de controle e poder. Você está jogando fora seus amigos. Você está pisando em quem te ajuda. E deixando que a possibilidade de poder, na Fundação, tome conta de você. Pare e reflita, antes que você acabe sozinho. — Do que você está falando? Agora eu sou o culpado de tudo? — Não é isso. Você não está percebendo que você está me pressionando ao máximo. Está pegando no pé do Wanderley. Está massacrando o Mendes. Está saindo na porrada com o Luiz Carlos todo o dia, e protegendo o Pedro contra tudo e contra todos. E, ao mesmo tempo, ambiciona cargos na Fundação, como uma extensão e prolongamento do poder. Você vai acabar sozinho na auditoria, ou só você e o Pedro. — Tudo bem. Eu topo... Começo tudo do zero com o Pedro. Se vocês quiserem sair em bando, podem sair... — Disse, desafiadoramente. — Tá legal. A escolha é sua. — Aceitei o desafio. A partir daí, as coisas, internamente, pioraram muito, pois o Francisco mudou, mas de uma forma bem sacana. Passou a tratar a todos muito bem (mas eu sabia que era forçado) e tentou isolara galera e o senadinho de mim, mantendo-me longe da possibilidade de influir no restante do staff. E, ao mesmo tempo, colocou o Pedro para fazer public relations junto ao staff e mostrar-se bastante agradável e camarada. Era o Pedro newlook. Era tão "natural" como um hipopótamo dançando balé.
A reação da galera e do senadinho foi imediata. Recusavam-se aos apelos de "canto de sereia", e passaram a encontrar-se comigo às escondidas. Mas eu sabia que a longo prazo isto teria um fim ruim, principalmente para a indefesa "turma de baixo". E, por esta razão, passei a precipitar as coisas e partir para um prematuro confronto com o Francisco, não perdoando e não relevando nele o que antes eu aceitava como natural e digerível. Quando já tínhamos quase tudo concluído em termos de trabalho na Fundação, faltando algumas pequenas arestas, e estávamos discutindo a forma de enxugarmos o relatório, principalmente como fazer um Sumário Executivo com tantos pontos envolvendo tanta gente, o nível de discussão passou a ser mais franco e aberto, pois as acusações passaram a ser frontais e quase ameaçadoras. Ficou bem claro que haviam duas correntes: a minha e a do Francisco. Certa feita, no pique da "guerra-fria", o Francisco chegou a reunir seus auxiliares mais diretos para dizer que vários pontos do relatório tinham vazado, e que ele tinha ficado em maus lençóis diante do Dr. Roberto, num confronto com o Magaldi, sugerindo que alguém teria municiado o Magaldi de informações, assessorando estrategicamente sua conduta, e que esta pessoa que havia feito isto era alguém de confiança dele (Francisco) e com visão total do relatório e dos problemas da Fundação. Em suma: havia um traidor na auditoria, e este traidor era eu. (Ele não disse, mas deixou isto bem claro.) A raiva subiu-me ao rosto e eu principiei perdendo o controle. Queria voar no pescoço dele e do Pedro, que a esta altura ria e ironizava, insinuando que alguém logo logo seria convidado para ser diretor na Comunicação ou na Produção. Chegando mesmo a sugerir chamar o Hélio Vigio (funcionário para-oficial da Globo), mais uma vez, para apurar "assuntos internos". Eu já estava prestes a agredir um ou outro, quando os colegas Luiz Carlos, Mendes e Wanderley, que não podiam crer no que ouviam, compondo a turma do deixa-disso, pediam-me calma, pois de uma forma ou de outra, cedo ou tarde, tudo se esclareceria. Foi preciso muito pano quente para acalmar os ânimos, já que muita coisa desagradável foi dita de parte a parte. Naquele dia não almocei. Voei para a sala do Magaldi para apurar os fatos e tirar a limpo tudo que havia acontecido entre o Dr. Roberto, o Francisco e o Magaldi. — Não foi nada disto. — Explicou-me calmamente o Magaldi. — Avise pro Xerife que foi ele mesmo quem entregou uma minuta de relatório para o Dr. Roberto e o Dr. Roberto entregou a mim para responder e justificar os pontos levantados pela auditoria. E, como eu tive tempo para ler, analisar e responder, me posicionei em cima do que a auditoria estava enfocando. Não houve vazamento nenhum. Está aqui a minuta dele. Leve e dê de presente para o Xerife Lobo — ironizou o Magaldi. Voltei a mil por hora, voando, para o 266, e sai' catando o Francisco. Mendes e Wanderley, vendo-me transtornado, trancaram-me numa sala. Aos berros, eu explicava aos dois o que havia acontecido e como tinha acontecido. Transtornado, eu queria a-char o Francisco e o Pedro. — Eu quero achar eles e jogar tudo na cara daqueles filhos da puta. Vão insinuar traição pra mãe. Não quero mais papo com o Francisco de forma alguma. Hoje mesmo eu saio desta merda. Não fico aqui de jeito nenhum. Saio da auditoria, saio da Globo, como merda mas não vou aturar isso de ninguém. Com muito esforço, paciência e doutrina, Mendes e Wander ley foram colocando meus nervos no lugar, e ficaram o resto do dia trancados comigo para evitar que eu cometesse um desatino com o Francisco na frente de todo o staff. (Eu queria ridicularizá-lo na frente de todos. Seria uma ida sem volta.) Daí para frente, todo diálogo meu com o Francisco tinha que ser assistido por assessores e pela turma do deixa-disso. E eu vi que a minha saída da auditoria seria uma questão de tempo. Voltamos a discutir a forma final do relatório, só que debaixo de muita tensão e ironia de parte a parte. — Reze para que o Dr. Roberto aja contra todos, porque senão eu vou fazer com a Globo o que fiz com a Fundação. Não vai ter meias medidas. Ou dançam todos, ou boto tudo no ventilador. — Passei a ameaçar. — O problema é dele. Eu acho que ele não fará nada com o Calazans e nem com o Magaldi. — Retrucava o Francisco. — Eu não quero nem saber. Ou dançam todos, ou não tem acordo. Não tem essa de demitir só gerente ou diretor fraco. Todos têm que dançar. — Insistia.
— Ele não fará nada com o Calazans porque o Calazans é bandido e vai chantagear o Dr. Roberto, como fez com os Civita e com os Bloch. Ainda mais que no curriculum dele constam pessoas como o presidente do PDS — José Sarney — e correligionários como Aluísio Alves. Se o Calazans jogar merda no ventilador do Dr. Roberto e contar tudo sobre o MEC, o Dr. Roberto se suicida. Por outro lado, Magaldi tem o controle moral sobre o velho, da vida paralela dele, e controla o Roberto Irineu — complementou o Francisco. Nota: A figura do Presidente, no Brasil, ao contrário do existente no resto do mundo, é de inatingibilidade. Pois, ainda que este Presidente se confesse como réu, não há instituição capaz de julgá-lo. E, ainda que o Presidente da República mate, roube, assalte, corrompa, ou pratique um incalculável número de delitos e crimes, ele estará fora do alcance das leis brasileiras. (São exceções de incompetência não ensinadas nas faculdades, e não constam em direito comparado ou fazem parte da história do direito. Exceção de incompetência: Ratione Status, Ratione Pecuniae, Ratione annus non libertus — o que vulgarmente pode ser traduzido como: não alcançável pela lei em razão de sua posição social, em razão de sua condição financeira ou em razão do rabo preso do réu e de seu julgador.) O mais interessante é que este poder corrupto alcança também aos parentes, amigos do presidente e ministros de sua confiança; como nos casos Capemi (filho do ex-presidente Figueiredo) e da compra de votos constitucionais em troca de concessões de rádio e TV (Ministro das Comunicações Antônio Carlos Magalhães). O único denominador comum a todos estes crimes e fator de interligação entre corruptos e corruptores chama-se Roberto Marinho (Vide volume 2 da Trilogia Global, Inside Globo). — Vai ter que entrar todo mundo. — Eu insistia, feito criança contrariada. — O Magaldi não pode ser mais o Secretário Geral e o Calazans não pode ser Diretor do Depto. de Educação. Não adianta só demitir diretor fraco. Ou higieniza tudo, ou não se faz nada.— Insistia, renitentemente. — Porra, eu vou entregar o relatório. Se o Dr. Roberto não tomar providências o problema é dele. Não é meu problema, nem teu problema. Nós não temos nada com isso. — Disse o Francisco, deforma irada. — Não tem o cacete, isto é uma Fundação, não é uma empresa privada. Se não tomarem as providências corretas, eu jogo no ventilador publicamente, É esperar para ver. — Ameacei. Nota: Uma Fundação não é como uma empresa comercial comum. Ela não tem dono, sócio ou outra forma de controle individual. Uma Fundação é criada à partir da doação de bens por parte do fundador, e aí ela passa a ter vida própria e independente de seu fundador, sendo controlada pelo poder público (Curadoria de Fundações); não podendo e nem devendo seu fundador geri-la à sua conveniência. — Você não é louco, você some antes disto virar escândalo. — Disse, Francisco, mas já sem muita certeza. — Sumir é o de menos. Pior é quem some logo atrás de mim. Eu estou preparado para morrer desde que nasci. Os filhos e netos deles estão? — Retruquei, calmamente. — Machado, vamos encerrar o papo. Eu só quero ficar fora desta sua briga futura. Não me envolva nisto. — Encerrou, curtame nte. Mais do que obstinação, aquilo era um ponto de desafio. Algo que eu sabia, tanto quanto o Francisco, que não seria cumprido. Era óbvio que o Dr. Roberto não se atreveria a demitir o Calazans, pois o poder de fogo e envolvimento dele era muito grande. Envolvia toda a cúpula do MEC, com trânsito por diversos outros ministérios, órgãos públicos (Seplan, Subin, Universidade de Brasília, etc.) e diversos políticos de expressão no cenário nacional, como o presidente do PDS, José Sarney (mais tarde, Presidente da República), dentre vários outros (principalmente os políticos da ala nordestina liderada por Aluísio Alves). Demitir o Magaldi, da Fundação, era outra impossibilidade, pois sempre foi evidente a ascendência do Magaldi sobre o Dr. Roberto e sobre o Roberto Irineu. E, no fundo, no fundo isto dava um certo desalento, pois eu iria assistir às demissões de vários diretores (quase todos), vários gerentes, e outros funcionários menos graduados; e os dois maiores envolvidos em toda a briga de poder dentro da Fundação iriam recolher suas armas para num futuro próximo começar tudo de novo. Eu me sentia como um zumbi. Olhava e não via. Escutava e não ouvia. E nada, nada mais me restituía o interesse pela continuidade da auditoria. Todos os fatos que se seguiram após este torpor foram como se me atravessassem e não mais me interessassem.
Passou a ser indiferente, para mim, a briga nova, agora entre Francisco e Jair Lento, pois, em estado de profundo desespero, Jair Lento juntou vários documentos de irregularidades graves que provocariam uma intervenção na Fundação, com perda do controle da Família Marinho para o poder público, e os encaminhou ao auditor externo, numa tentativa de jogar tudo no ventilador e propor uma saída negociada. Mas, mais uma vez o poder do Dr. Roberto se fez presente, e tudo foi abafado na Curadoria de fundações. Não satisfeito, Jair Lento denuncia que a auditoria da Rede Globo não teria autonomia para auditar a Fundação Roberto Marinho (e isto é real), tentando, desesperadamente, colocar a auditoria para fora da Fundação, numa atitude correta, mas desesperada. Mas, uma vez mais. por vias transversas as coisas acabaram se resolvendo, pois foi colocado para a Curadoria de fundações que o auditor externo era inepto e jamais vira qualquer das irregularidades detectadas pela auditoria interna da Rede Globo. Em razão disto, nomeou-se como auditor interno (só para legitimar a presença de cerca de trinta auditores internos da Rede Globo, dentro da Fundação) um funcionário da Sigla (Som Livre), lotado na auditoria, mas que, de fato, jamais pisou na Fundação para fazer qualquer trabalho - embora recebesse, também, salário pela Fundação — era o Sr. Orlando José de Barros. Era uma briga que antes até mexia comigo, mas agora, diante do que eu vislumbrava como desfecho, uma sacanagem a mais ou a menos não fazia diferença. Pois eu sabia que a lei só seria rigorosa para os que não tivessem interesse político para o Dr. Roberto, e que a justiça seria feita em quase toda a sua extensão. Tudo isto, junto, acabava me anestesiando. Meu estado de torpor e decepção era tão evidente, que até Francisco, antes disposto a uma briga aberta comigo, resolveu propor uma trégua, tentar um cessar-fogo. — Machado, Dr. Roberto já decidiu sobre as demissões. —Antecipava, Francisco, alegremente. — E daí? — Respondi, mal-humorado. — Como e daí? O Jair vai ser demitido, cara! - Dizia, como que querendo me alegrar. — Sacanagem, estou com pena dele. — Disse, de forma sentida. — Que foi, ficou maluco? Porra, você não fez tudo para caçar a cabeça dele. Agora vem me sacanear dizendo que está com pena dele. — Dizia ele, ante estupefato e indignado. — Cara, eu lamento que ele tenha trombado comigo. Lamen to por tudo que passei, e por tudo que acabei fazendo ele passar. Eu até já esqueci e perdoei as sacanagens que ele fez comigo. Só as noites de insônia que ele passou; só perder o poder e a empáfia, já foi um castigo grande para ele. Eu lamento que seja demitido. No duro, estou com pena. Ele foi só um executor. Eu estou é puto da vida porque os verdadeiros poderosos não foram alcançados. — Mas vai todo mundo ser demitido, Machado. Não vai sobrar ninguém. — Vai, Francisco. Cedo ou tarde Magaldi volta a dirigir a Fundação, é só dar tempo ao tempo. E Calazans jamais será punido pelo Dr. Roberto. — Disse, com profunda decepção. — E daí, batemos o recorde de demissões de diretores numa empresa. Vão todos pra rua: José Carlos Barbosa, Mário de Almeida, Nelson Mello e Souza, Jair Lento, Jorge Matsumi... — Coitado do Japonês, não fez nada diferente do que qualquer outro diretor de televisão da TV Globo faz, e vai para a rua por ter tido peito de assumir tudo, desassombradamente. — Lamentei, interrompendo o Francisco. — É, também, quem mandou ele querer acabar com a mamata do Brás (motorista do Boni). No final, o Brás continua na Globo. É motorista e dono de duas transportadoras com uma frota enorme. Quem tem padrinho não morre pagão. — É a justiça mais filha-da-puta que já vi. Nego não pega quem tem que pegar, pega quem eles querem pegar. É igual ao cara que perde o dinheiro no escuro, mas vai procurar debaixo do poste porque é mais iluminado. Eu custo a acreditar. — Pô, até parece que você perdeu a família inteira. Que cara de enterro é esta? — Tentava me animar. — É fim de festa, Francisco! Como disse o Mendes, nada mais será igual. A auditoria não será mais a mesma. A Fundação não será mais a mesma. Nós não seremos mais os mesmos. Acho que é hora de eu pensar em algo para fazer. — Lamentava, com decepção . — Por falar em fim de festa, Luiz Carlos está indo embora. — Lamentou Francisco.
— É, vou me despedir dele. Ele é que é feliz. Vai para a tranqüilidade. Vai viver em paz e calma. Eu vou dar os parabéns e felicidades a ele, e um pacote de pregos. — Pacote de pregos? — Indagou ele. — É, para pregar o tapete bem pregado, para filho-da-puta nenhum puxar. — Você ainda está na bronca comigo? — Perguntou, quase se penitenciando. — Não, cara! Eu fiquei com raiva. Quis briga. Esbravejei. Queria que você fosse pro inferno, mas já passou. No fundo, no fundo, somos todos vítimas dessa merda de vida que a gente leva. A gente esquece que o inferno são os outros, e o pau acaba comendo dentro de casa. Novamente, Mendes tem razão: o ladrão está dormindo, o dono do dinheiro está dormindo, e só o babaca do auditor está acordado de madrugada, saindo na porrada com seu amigo mais próximo. — Que que você está afim de fazer? Algum serviço especial? — Questionou-me. — É, quero seguir o meu faro. Estou puto com esse negócio de notas compradas, notas fiscais frias-frias, frias-quentes. Principalmente pelo fato de algumas das notas serem de diretores da Globo. Não me desce esse negócio de ter encontrado nota fria da JOB (Empresa do Boni). O que será que o Boni tem com isso? — Não! Lá vem você de novo! — Não, não é nada disso! De repente, ele nem sabe do caso. Eu só quero assuntar a coisa por fora. Nada oficial. — Expliquei. — Como assim? — Indagou, curioso. — É o seguinte, a gente levanta pelo DECAE (Departamento de Contratação de Artistas e Elenco) e pela contabilidade, quais são as empresas que são empresas, e quais são as pessoas físicas que burlam através de PJ (Pessoas Jurídica). — E daí? — E daí... a gente faz um grande mapa com todas as empresas de notas frias da Globo. Mandamos a treinizada checar os endereços. Mandamos o serviço-de-rua levantar os documentos nos cartórios, e finalmente a gente mata tudo centralizando nos contadores destas empresas. Se estou certo, 80% deve estar distribuído em dois ou três contadores só, e os outros 20% são feitos por vários contadores. Daí, que a gente mata tudo numa porrada só, e termina a charada de todas as notas frias, e quais contadores estão vendendo notas ou arrumando os faturamentos de umas com outras. Isso deve estar uma suruba só. — Expliquei. — E o que isso tem a ver com o Boni? — Perguntou ele. — Tudo. Você acha que o Boni, ele, pessoa física, vendeu notas frias para a Fundação? Eu não creio. Deve ter merda na assessoria dele ou com o contador dele. É só descobrir quem é o contador dele, que a gente soluciona tudo. E, se o contador dele está vendendo nota, a gente pega metade da Globo nesta canoa furada. — Estás afim de levantar isso? — Perguntou o Francisco já meio eufórico. — Claro, e por que não? — Respondi. — E se o Boni estiver neste rolo? — Questionou ele. — Aí a gente muda. Ao invés de pólo-diretor, a gente joga pólo-vice-presidente. — Respondi, brincando.
O Primeiro Confronto O levantamento feito pelo DECAE (Departamento de Contratação de Artistas e Elenco) e pela contabilidade foi de uma serventia incalculável. Pois, mais do que o imaginado anteriormente, apuramos cerca de 240 empresas de porte razoável a grande, com operações ilícitas (Diretores, funcionários, artistas, etc). Desprezamos a arraia miúda, e separamos estas PJs por diversos grupos, após identificarmos o grosso de suas localizações e seus respectivos contadores. (A
maioria estava, conforme previsto, em três grandes contadores, e o restante em contadores isolados.) Estávamos já muito próximos de um grande "estouro" quando uma incrível "coincidência" aconteceu: — Machado, sabe quem acabou de me telefonar querendo uma reunião urgenteurgentíssima? — Questionou o Francisco, de forma alegre e debochada. — Não, quem? — Perguntei, com real curiosidade. — Marcos Bordini. Assistente e Secretário Particular do Boni. — Ah, é? — Disse eu, quase rindo. — Neste caso, o Boni já está sabendo pelo serviço de escuta do Maurício Antunes (assessor do Boni, especializado em "telefonia") que tem várias notas frias da firma dele (JOB) na Fundação. (Os diretores que usaram estas notas, já não escondiam o assunto nem por telefone.) Vamos ouvir o que o Marcos quer nessa reunião. — Conclui, com ironia. Coincidência ou não, o assunto era o mesmo: Boni estaria preocupado com o que pudesse estar acontecendo com a (PJ) empresa dele, já que o controle sobre o contador estava, de certa forma, "fugindo ao controle". Fomos para a reunião, e ficamos sabendo, pelo Marcos Bordini, que o contador do Boni, Afrânio — que por sinal fazia o grosso das escriturações das PJs de artistas e diretores da Globo — deveria estar fazendo algo de bem irregular, pois havia chegado um documento grave de fiscalização, num antigo endereço de uma antiga firma do Boni. E, partindo da premissa de que se havia fumaça havia fogo, ele (Boni) queria que fizéssemos uma auditoria no escritório do Afrânio, envolvendo todas as ex-PJs do Boni, bem como a sua PJ atual. Coincidência ou não, ficou claro para nós que o Boni teria tido, no passado, várias PJs e que elas haviam sido entregues ao Afrânio para serem baixadas. Entretanto, as evidências demonstravam que as empresas estavam funcionando, e com vários processos na área de execução do Ministério da Fazenda. Antes de aceitarmos o trabalho, eu expus ao Francisco que eu não iria fazer nada de graça. Pelo contrário, iria cobrar e fazer o serviço não como funcionário da Rede Globo, mas como uma pessoa independente. Utilizando, para tanto, o meu horário de almoço, e o horário após as 19:00hs. (Aí eu passei a exigir sair no horário, para poder atender ao Boni e porque o trabalho Fundação estava encerrado.) O Francisco concordou, pelas vantagens óbvias que ele teria, e até ajudou na intermediação da apresentação de uma proposta formal de trabalho, aceita, de pronto, pelo Boni. A excitação tomava conta do Francisco, de forma quase que descontrolada. Pois a oportunidade de montarmos uma base no escritório do Afrânio era tudo que ele sonhara. Ele não estava nem um pouco preocupado com o serviço do Boni, mas com a possibilidade, ainda que por vias transversas, de tentar chegar às declarações dos principais diretores da Fundação. Porque Jair Lento, Mário de Almeida e até o próprio Magaldi tinham escrituração centralizada no escritório do Afrânio. — Agora a gente pega eles de vez. Você vai ter que me mostrar se os tais terrenos de Angra, Parati e Porto Seguro estão nas declarações de impostos de renda de pessoa física desses caras. — Tentava intimidar-me o Francisco. — Porra nenhuma, vou fazer o meu trabalho. Se cair na rede é peixe. Mas não vou ficar correndo atrás disto. Você parece maluco. Encasquetou esta neurose, e agora quer provar a todo custo que o Magaldi fez estas transações com terrenos. O que isto prova? Aonde isto vai levar? Esquece! — Tentava eu afastá-lo de sua obstinada renitência. — Nada disso. Agora que nós entramos na casa dos bandidos, vamos pegar todos eles juntos. — Dizia com satisfação o Francisco. — Pode esquecer. Eu não vou ajudar você nisso. O que você quer é a cabeça do Magaldi e quer me usar para isso. Veja bem: se você tivesse que derrubá-lo, já teria feito com o que está exposto no relatório, demonstrando que ele é um administrador daninho e relapso... E, se o Dr. Roberto não o demitiu até agora da posição de Secretário Geral, não será mais uma ou menos uma sacanagem que irá mudar a posição do velho. Esqueça o Magaldi e parte para outra. — Eu teimava em meu ponto de vista. — Qual o problema em você me ajudar? Se você tiver acesso à declaração dele, por que não tirar uma cópia para mim? Só mais um empurrãozinho e ele cai. Deixa só eu mostrar pro Dr.
Roberto o tipo de sacanagem que o Magaldi está aprontando... — Pedia-me quase de forma infantil. — Francisco, eu estou fora. Até parece que você não me conhece. Não vou insistir neste assunto. Se aparecer fato novo, eu até topo explorar, mas insistir nisto é ridículo. Para mim o assunto Magaldi e Fundação são casos encerrados. — Não acredito. Você com a declaração dele na mão e não vai me dar nem uma cópia? — Perguntava ele, brincando. — Pode apostar. Você vai se decepcionar. — Insistia eu, posição firmada. Aguardamos muito pouco tempo por uma resposta, e uma vez aceito o serviço, sem restrições, por parte do Boni, parti para uma auditoria tranqüila, com a calma de quem já tem o peixe fisgado. (Isto porque, nos exames prévios e paralelos,eu já possuía a comprovação de quase todas as graves irregularidades. Bastaria tão somente saber a extensão da coisa.) O Afrânio tentou tudo que é truque e artifício para fugir ou postergar o exame. Eu ia para o escritório da Rua Jardim Botânico, e ele ia para o escritório dele na Rua Evaristo da Veiga (no Centro). Eu punha um auditor em cada escritório, e ele ficava em casa ou não era encontrado. Tanto pior. Dava-me a oportunidade de viver o movimento dos escritórios dele, e de observar um número cada vez maior de diretores e artistas envolvidos com suas irregularidades. Quando eu pus a mão nos documentos que eu já supunha serem irregulares, veio o pânico e a tremedeira generalizada. Afrânio perdeu o controle, tremia feito vara verde. Deixava montes e montes de dinheiro vivo em cima da mesa, mas tinha medo de me abordar e piorar as coisas. Tentou uma aproximação por intermédio de dois funcionários seus (que tiveram respostas atravessadas e foram recebidos quase que a ponta-pés). Dentro de muito pouco tempo eu já sabia tudo que queria saber, e tinha constatações horríveis. Quer pela Fundação, quer pelo Boni, quer por toda a estrutura da Rede Globo. Para efeitos legais, no período até 1982 (inclusive) a JOB era de propriedade do Boni e do Marcos Bordini. Conseqüentemente, todas as notas vendidas à Fundação eram de responsabilidade deles. E, após 1982, quando o Boni teoricamente vendeu a JOB para o Afrânio continuar a vender notas dentro da Globo, e abriu uma nova PJ chamada VPO (símbolo da VicePresidência de Operações — cargo do Boni) a situação não mudou, pois houve um processo de continuidade, uma vez que quase todas as despesas da VPO eram suportadas por notas frias da própria JOB (agora em nome do Afrânio). Ou seja: JOB e VPO eram extensão uma da outra, e continuava tudo igual: O Boni recebia todos os seus honorários (entre um milhão e meio a dois milhões de dólares) por notas contra a Rede Globo (com isto burlava o Imposto de renda na fonte e na declaração final da quase totalidade de seus rendimentos, se recebidos como pessoa física). Deduzida irregularmente 100% de suas receitas com 20% em notas inadequadas (xerox de notas; vinhos; bebidas; comidas; manutenção de casa; mercado; etc.) e 80% por notas frias da própria JOB. Ou seja, um dos maiores salários do Brasil não pagava nada de imposto de renda. (Enquanto a classe média. . .) Olhar para os extratos bancários era um horror. Estava tudo lá. Não havia um só cheque que correspondesse a uma despesa legítima. Além do mais, aplicações elevadíssimas no Open, sem o menor reconhecimento fiscal. A esta altura, eu já considerava quase que dispensável falar em erros menores como a não escrituração de alguns livros legais; excessos tributários não oferecidos à tributação; valores das declarações em desacordo com a contabilidade; falta de correção monetária; falta de documentação de imobilizações; falta de documentos de aplicações fiscais; falta de certificados de investimentos; rasuras em livros e documentos; etc. Mas, logo aconteceu o pior. Justo quando o Afrânio já estava prestes a aceitar, pacificamente, todas as irregularidades, de bom grado. Apareceram as autenticações frias em vários e vários documentos fiscais, envolvendo três bancos: o Banerj , com autenticações seqüenciais em meses distintos. Exemplos: 06 de agosto — autenticação número 094, funcionária Ana; 08 de outubro - autenticação 096, funcionário Jorge; 09 de novembro - autenticação número 098, funcionária Ana; 09 de fevereiro — autenticação número 00, funcionário Jorge. O Banco Nacional, com autenticações de meses distintos feitas na mesma máquina, com o mesmo número de autenticação, e com algumas autenticações, em off-set. Por último, o Banco Econômico, com autenticações desconhecidas por funcionários da própria agência daquele banco.
Os valores eram absolutamente significativos, pois, só para efeito de comparação de algumas guias destas, tomemos como exemplo os anos de 1984 e 1985, em seus meses de maior incidência. Fev/84 — Valor mensal envolvido: 46 milhões de cruzeiros (autenticação fria de guia). Só para efeito de comparação, nesta época eu era auditor da Rede Globo e ganhava um milhão por mês. O valor daquele mês era 46 vezes o valor do meu salário. Fev/85 — Valor mensal envolvido: 120 milhões de cruzeiros (autenticação fria de guia). Para efeito de comparação, nesta época eu era controller da Fundação Roberto Marinho e ganhava seis milhões por mês. O valor daquele mês era 20 vezes o valor do meu salário. Diante de tamanhos descalabros, mostrei ao Francisco o que estava acontecendo e discutimos sobre a participação conveniente ou não, e o nível de envolvimento do próprio Boni nisto tudo. Sim, pois a tendência seria o Boni imputar a culpa ao Afrânio. O Afrânio imputar a culpa a um funcionário menor seu. E um pobre diabo qualquer acabar recebendo uma grana preta para bancar de autor da façanha. (Bode espiatório pago.) — Mas é isso que vai acontecer, Machado! — Dizia o Francisco, de forma bem simples e equilibrada. — É isso o cacete! Só de contingência fiscal o Boni deve, pelos cinco últimos anos, por baixo, ao imposto de renda, a bagatela de cerca de dez milhões de dólares. Isto, sem contar que não é de cinco anos o período prescricional nos casos em que há dolo, fraude ou simulação. O que leva a contingência prum valor incalculável. Ou seja, não sendo prescritível nunca, a coisa fica acima de qualquer valor estimado otimistamente. E é fácil provar pois, no caso, tanto o Boni quanto o Afrânio enriqueceram às custas de falcatruas grossas, facilmente identificáveis. Não dá para pôr a culpa num Zé Mané qualquer por uma sonegação de mais de dez milhões de dólares, quando só o patrimônio do Boni (incluindo doações a filhos e ex-esposas) é superior a isto. E o próprio Afrânio tem um patrimônio de alguns milhões de dólares. (Só o apartamento da Praia Guinle — Praia do Pepino — vale um milhão de dólares.) — Disse eu, de forma cética. — É, Machadinho, eu não queria estar na tua pele não. Lidando com trambique alto no imposto de renda, falsificações que emvolvem até a policia federal. Sei não, a coisa está feia. Veja só a merda em que você se meteu. — Brincou, mas de forma preocupada, o Francisco. — Eu me meti nada. Eu tenho culpa de enfiar a mão e só sair isso aqui dentro da Globo? — Respondi, questionando. — E agora, o que você vai dizer pro Boni? — Questionou-me. — A verdade curta, seca e grossa! — Respondi. E não foi de outra forma. Fiz um relatório sucinto. Tirei as cópias dos documentos e fui para a reunião com o Boni. — E aí, Machado, tudo negro? — Indagou-me Boni, jocosamente, como quem está acostumado a decidir sobre grandes e incalculáveis problemas. — É negra mesmo, bem preta a situação! — Respondi. — Qual o tamanho da coisa? — Indagou, mas já com certa preocupação, ao ver o meu semblante carregado. — Por baixo, você está envolvido em venda de notas frias para a Fundação Roberto Marinho e para diversos outros diretores e organizações da casa. Tem uma contingência fiscal superior a dez milhões de dólares; ocasionado por 80% das despesas serem constituídas de despesas com notas frias da JOB, e 20% por despesas inaceitáveis. E está envolvido com falsificação e autenticação de guias frias. — Disse, de forma seca, até meio áspero. — Eu estou merda nenhuma. Quem está é o Afrânio. Eu não tenho nada com isso! — Respondeu, grosseiramente, tentando intimidar-me. — Quanto a ser parceiro ou não do Afrânio é discutível, mas é inquestionável que o legítimo dono da JOB até 1982 seja você. Assim como não é questionável o seu benefício próprio alcançado com a sonegação de imposto de renda. E, neste caso, só você se beneficiou disso. O máximo que você pode discutir é se você é ou não cúmplice do Afrânio na falsificação de guias frias. Pois o resto não há nem o que discutir. — Disse, de forma firme, sem titubear. Ele parou. Pensou. Olhou para mim. Olhou para o relatório. — Quais são os riscos que eu corro? — Indagou-me.
— São dois: imposto de renda e polícia federal. A rigor você pode ter todos os seus bens seqüestrados, mas os dólares que estão no exterior estão à salvo. E quanto aos federais, você pode ter sua prisão decretada de imediato. — Esclareci, de forma bem simples. — Há como a gente resolver isto por baixo? — Questionou-me. — Não! — Respondi. — É que por cima a coisa complica. Vamos ter que fazer um novo delegado da receita para aceitar isto. E isto vai dar trabalho e deixar rabo de fora. Já quanto à policia federal é tranqüilo: entra tudo no pacote da Globo. A turma de cima já está feita. — Raciocinou em voz alta. — Tudo bem. O assunto agora é com você. — Disse eu. A esta altura, Marcos Bordini estava transparente de medo. Não havia uma só gota de sangue visível em seu rosto. Seus olhos estavam esbugalhados e suas mãos tremiam que ele mal conseguia segurar as pastas com papéis. E até hoje eu não sei como ele conseguiu descer as escadas da Emissora, do 99 ao 59 andar, atrás de mim. Ele tomou remédio, bebeu água com açúcar, tomou maracujina, remédio para pressão e tudo mais que tinha direito. Enquanto isto, o Jomar (advogado e amigo do Marcos) tentava tranqüilizá-lo, sem sucesso. O dia seguinte foi pior ainda, pois a notícia de que alguma coisa de muito errado estava acontecendo no escritório do Afrânio, era o prato do dia da Central Globo de Boatos — AN (Alto Nível: diretores de primeira linha). E não tardou que viesse uma avalanche de pessoas (diretores importantes) querendo sair do escritório do Afrânio a todo custo. Eu não atendi e nem dei trela para ninguém. Salvo duas exceções, a pedido do próprio Boni: Paulo Ubiratan, que estava prestes a ser operado de safena, e Magaldi. Quanto ao resto, segundo orientações do Boni, foi cada um pra si, e Deus contra. Mesmo quanto às PJs do Paulo Ubiratan e do Magaldi, eu fui cético. Aconselhei ao Paulo Ubiratan encerrar a empresa e abrir uma nova chamada Safena, em homenagem ao seu coração, começando tudo do zero. E em caso de uma eventual fiscalização era melhor ele não ter nada escriturado do que ter o que estava confessado lá na PJ anterior. Ele, pelo menos, estava consciente de que tudo que tinha era ilegal, e que se a fiscalização do imposto de renda exigisse o devido, ele estava propenso a entregar tudo sem luta. Era uma condição consciente e cínica. Mas era real. — Machado, assim como todo mundo aqui na Globo que entrega a declaração pro Afrânio, para não pagar imposto, eu tenho consciência que nunca paguei porra nenhuma. E se o imposto de renda me exigir o devido, o mínimo que posso fazer, é entregar o que nunca paguei. E lógico! — Paulo Ubiratan colocou seu raciocínio de forma bem retilínea e justa. Complementando, arrematou: — Eu não vejo porque ter que pagar, voluntariamente, se os caras que administram este dinheiro usam-no mal. Empregam parentes; usam em gastos particulares; se dão mordomias, e um monte de sacanagem que a gente sabe. Então, eu pergunto, se não há redistribuição de renda, por que colocar o meu no fogo para não ser redistribuído? Assim como é direito do preso tentar fugir, é direito do contribuinte sonegar. Isto é um problema institucional do Brasil, e não meu. — É, mas um dia a gente tem que começar. E começar por alguém. — Complementei, esclarecendo. — Um dia esta merda toda muda. E se você perder, no peito e na marra, tudo o que conquistou, não vá reclamar da sorte. — Respondi, ameaçando. Com o Magaldi não foi diferente. Assim como eu sabia que não seria diferente com toda a alta cúpula da Rede Globo. — Magaldi, desculpas por não poder ajudar mais, mas a coisa é tão grave que se torna simples: abra uma nova empresa. Acenda uma vela, e reze. Isto tudo pode não dar em nada. Afinal, estamos nesta merda de país chamado Brasil. — E, brincando, arrematei cinicamente: — Veja se seus bens são superiores a cem mil dólares. Pois neste caso você passa para a classe social dos impunes. (No Brasil, todo sujeito com menos de cem mil dólares de renda ou patrimônio, é suspeito, perigoso e deve ser encarcerado para não pôr em risco a sociedade.) A esta altura, Francisco estava em cólicas. Tinha delírios mirabolantes. Queria consertar o país, sozinho: — Machado, vamos chamar o Nilton Claro (Tio do Francisco e um dos sócios de uma das maiores empresas de auditoria do país: Boucinhas, Campos, Claro, Auditores Independentes) e propor a ele pegar todos estes caras em situação irregular aqui na Globo, e levar para um
escritório que a gente abriria só para isto. Veja bem, são mais de 300 clientes de uma só vez. Podemos padronizar tudo. Colocar tudo em micro com impressora. Teríamos o maior e mais bem montado escritório do Rio. Iríamos atender a todos estes caras, de forma super decente. Eles teriam uma escrituração limpa, correta, com informações gerenciais, aplicações e orientações fiscais. Seria um dos melhores escritórios técnicos do país, e seria auto-sustentável, já de cara, no primeiro mês. Você topa? — Francisco estava eufórico. Apesar de todas as nossas brigas, apesar do dia a dia que esmaga e violenta a gente, era por situações assim que eu via como o Francisco era ingênuo e crédulo para certas coisas. — Francisco, você está maluco! Você sabe com quem você quer se meter? Com artistas e diretores da Globo, cara! Pirou de vez? O mais bobo toma esmola de cego, empurra paraplégico em ladeira e interna a mãe em sanatório. Você acha que algum deles irá querer tudo certinhocertinho? Eles até podem querer sair do escritório do Afrânio. Mas na hora em que você disser que os caras têm que pagar pelo menos um pouco de imposto de renda, ISS, PIS, etc, você passará a ser um contador burro e o Afrânio inteligente. Pois na mente destes caras o contador bom é aquele que faz você pagar nada. Acorde. Você está no Brasil. Pagar imposto é um problema de cultura. E não se exige isto, justo dentro da Globo. —Concluí de forma cruel. — Tudo bem, mas a gente pode tentar! Você topa uma reunião com o Nilton Claro aqui na Globo, e alguns diretores da casa? — Indagou-me, insistentemente. — Tá legal! Mas depois não diga que eu não avisei. E outra coisa, veja lá quem são esses diretores. Pois se você convidar gente de peso, o resto vem todo atrás. Mas se você convidar diretor Zé Mané, danou-se. Encontro marcado. Reunião acertada. Tudo certo. Encontramo-nos: Francisco Eduardo, Nilton Claro e eu. Apesar de tudo, Francisco ainda continuava eufórico. Mas tomou uma ducha fria quando perguntei quem seria convidado para a reunião. Pois tão logo ele começou a declinar os nomes, eu fui ficando sério, sério, até que expus meu desacordo. — Não vai dar certo. Com estes caras, nem pensar. — Mas, por que, qual o problema? Cliente é cliente. — Ponderou. — Não pode dar certo um troço que comece com o ítalo Gra-nato, com o Élio de Nardi, ou com o Marcelo, entre outros. Enlouqueceu? — Qual é o problema? — Perguntou-me, incrédulo. — Qual é o problema? O Marcelinho é genro do Afrânio. A dupla de vôlei de praia, ÍtaloÉlio, travestida de diretor-global, é unha e carne com o Afrânio. Realmente, não tem nada de mais. — Completei, cinicamente. — Você tem bronca do Ítalo e aí mete todo mundo no rolo. — Justifica ele. — Não tem nada uma coisa com a outra. Eu não gosto dele como pessoa. Acho ele um babaca. Tenho bronca pela arrogância e prepotência dele. Desde que eu soube da sacanagem que ele fez com um ascensorista. (O Elevador só parava após o sétimo andar, Ítalo ordenou que parasse no quarto andar. Como o cabineiro disse que não podia parar, Ítalo esfregou o crachá prateado na cara do cabineiro e obrigou-o a parar no quarto andar, e ainda humilhou o pobre do homem na frente de todo mundo.) Mas, não é esse o ponto e não é por isso, não. É pelo time inicial que você formou. Não pode dar certo com este pessoal. Mas se você acha que vale a pena reunir todo mundo, vamos à tal reunião. — Concordei. Fomos para a reunião e, por sensibilidade ou espiritismo, Nilton Claro (a esta altura, já desconfiado) concordou comigo. E, após a reunião, deixou bem claro para o Francisco que seria inviável, se não impossível, trabalharmos corretamente com o pessoal da televisão, tendo eles a mentalidade que tinham. Foi um jato de água fria definitivo no ânimo do Francisco, na medida em que eu já estava fora de questão na possível união de forças para um trabalho em conjunto. E agora Nilton Claro também mostrou-se sem interesse neste tipo de empreendimento. Motivado por uma série de fatores, e por um vazamento de informações boca a boca, já corria solta nos corredores da Globo e na Central Globo de Boatos a notícia de que havia algo de podre no escritório do Afrânio. Não demorou muito para a Cidinha Campos noticiar em seu programa matinal de rádio, por alto e de leve, que havia um grande rebu no escritório do Afrânio, envolvendo uma auditoria e grande quantidade de diretores e artistas da Globo. E aos círculos mais altos já começava a vazar a notícia sobre a Beth Faria, que, inocentemente, ao ser indagada formalmente sobre pagamentos de imposto de renda, apresentou como comprovantes guias frias
quitadas. De pronto, envolvida em inquérito na polícia federal, livrou-se por ser filha de general e por trabalhar na Globo. A coisa começava a esquentar. Boni chamou-me urgente, para apresentar a solução por ele imaginada: — Machado, está tudo resolvido. A polícia federal é da casa e não vai ter problema. Mas nós temos que dar um jeito na documentação falsa e no imposto de renda, senão fica o rabo de fora. Eu decidi o seguinte, como o Bráulio (Café) é sócio do Afrânio nas transações de imposto de renda, vamos comprar os dois, por um preço até que bem barato, porque a cagada foi deles. O Bráulio revisa os livros e dá um OK em tudo. Daí, a gente banca a promoção dele para delegado da receita e mais tarde para secretário da receita, e fica tudo em casa, e na mão da gente. Eu já acertei tudo com eles, e está OK. Já mandei o Marquinhos preparar os cheques. Eu só queria que você fosse como testemunha com o Marquinhos, para não ter problemas. — Disse ele, à queimaroupa. Eu só não caí porque estava sentado. — Mas... cheque? — Perguntei assombrado, Tentando falar qualquer coisa (e isto foi a primeira bobagem que me ocorreu balbuciar). — É, não tem problema não. Eles aceitam. É ao portador, cruzado. Assim fica tudo selado e recebido. — Afiançou Boni. Eu não acreditava. Era muita loucura. Tudo ali, reduzidoà expressão mais simples, sem nenhum receio. Eu estava assombrado com a frieza da impunidade, com a falta de cuidado em sequer tomar a mínima precaução em legitimar qualquer coisa. — Boni, você sabe que isso é imprescritível, se a coisa mudar você pode se complicar! — Observei, espantado. — Não tem problema não. A gente contorna isso. É por isso que o Bráulio tem que ser promovido. — Respondeu-me com tranqüilidade. — Mas o negócio já vazou muito. Está até no programa de rádio da Cidinha. — Argumentei. — Não tem problema não. Ela é escrota e despeitada. O humor dela varia em função do garotinho que ela leva para cama. Logo, logo, ela fica quieta. — Argumentou Boni. Aí, foi a minha vez de descer do nono andar ao quinto, meio trôpego. E, incrédulo, continuei a conversa com o Marquinhos (Marco Bordini). — Vocês enlouqueceram? Isso vai dar cagada geral. — Disse assombrado. — Que nada, seu Boni sabe o que faz. Não tem problema não. Os cheques já estão até prontos e assinados. Vamos até a cidade para entregar o cheque para eles. — Disse-me com tranqüilidade o Marquinhos. Mais espantado fiquei ao testemunhar a transação. Afrânio recebeu o cheque e assinou uma promissória, para parecer, em última análise, um empréstimo pessoal. O Bráulio recebeu a parte dele, simples e tranqüilamente, com um cheque ao portador, cruzado. Detalhe: as salas dos dois são no mesmo andar, no mesmo prédio, na Rua Evaristo da Veiga. Na saída, questionei o Marquinhos: — Vocês não têm medo de tudo isso ser descoberto? Existe a cópia dos cheques. Os Cheques na conta de um e depósito na conta de outro. As notas frias. As guias frias autenticadas. Os livros sacramentados com todas estas ilegalidades, e abonados pelo Bráulio. — Que nada... Vão pegar como? — Questionou-me ele com tranqüilidade. — É só o imposto de renda fazer uma triagem de quantias acima de um determinado valor em contas bancárias que pega tudo. — Respondi. — É, mas pega todo mundo também. Inclusive eles. E aí fica difícil, É um sistema de mão dupla. — Ironizou o Marquinhos. E contra a força não há resistência. — concordei, ressabiado*. Diante do ocorrido, da realidade dos fatos e em face do que se delineava no horizonte, abri mão, também, de ajudar os Trapalhões, que estavam, àquela altura, mais atrapalhados do que tudo no mundo. Pois, ao saber que eles, porém coitados, haviam sido iludidos (realmente) por um outro contador e pelo gerente deles, fiquei com pena, e comecei a ajudá-los (a pedido do Boni). Mas, na medida em que vi que a coisa era irreversível, que já estava sob a forma de processo constituído e dívida ativa, e que a solução proposta era, novamente, via Bráulio Café, pedi sinceras desculpas, e deixei-os transarem diretamente com o Bráulio — sem minha interferência. (Minha
última participação foi um almoço de aproximação e apresentação, em Copacabana, com os Trapalhões e o Bráulio. A partir daí, eu sumi.) Contei ao Francisco tudo o que tinha acontecido, como tinham sido as transações, e deixei antever o que estava para acontecer. Ao que ele se posicionou de forma assustada: — Eu estou fora disto. Já chega o que sei da Globo. — É... Mas para mim, só está começando. Vou rever tudo dentro da Globo, ponto por ponto. E não vai escapar nada. Vou mergulhar fundo, e vou no osso. — Complementei. — Cuidado. Você vai lidar com bandido de verdade. É jogo de vida e morte. Saia fora disso... — Aconselhou-me. — Nada disso. Recebi um convite formal do Boni para ser assessor dele, e vou aceitar. Vou mergulhar fundo, levantar tudo por dentro, igual na Fundação, só que com um panorama infinitamente maior. — Esclareci. — Machado, você analisou bem os prós e os contras de tudo que você levantou? Você já fez o "advogado do diabo"? Você sabe que eles vão arranjar desculpas para tudo, não sabe? — Não tem saída. O máximo que pode ser usado em defesa de uma PJ é que não se pode estabelecer limitações às condições de trabalho. Ê que cada um pode ser contratado da forma que mais convir, fugindo do imposto das formas e maneiras que forem julgadas convenientes às partes. Entretanto, existem coisas, flagrantes, que não se pode ir contra: subordinação hierárquica, limitação de horário, local de trabalho, perenidade na prestação de serviços, em alguns casos, concomitância de serviço — ora como empregado com carteira assinada, ora como prestador de serviços para disfarçar rendimentos que não se quer tributar como assalariado (quer por ser em volume elevado dos ganhos mensais, quer por ser uma gratificação anual que não se queira tributar como fruto tributável do rendimento assalariado). É óbvio que com essa justiça filha da puta* só na justiça do trabalho é que haveria ganho de causa, caso o trabalhador viesse a reclamar. Isto porque nem o imposto de Renda e nem o INPS iriam, de modo próprio, agir contra uma Rede Globo, e buscar o que lhes é devido, pelo próprio sistema corrupto instaurado dentro daqueles órgãos. Mas, no caso específico dos donos das PJs, nem se fossem honestas e regulares estas PJs, eles estariam em situação excusa'vel, pois nada se coaduna com nada, e elas (as PJs) não resistem ao menor exame. Haja visto o caso das PJs do Boni, onde suas despesas eram embasadas por notas frias de ex-empresas suas, cedidas ao Afrânio para vender nota para ele mesmo, e mais tarde falir com estas PJs. (Nada justifica isto, ou a falsificação de guias.) Não há dúvida. Estas empresas não resistem à menor analise séria. Ou seja: o problema não é se elas são corretas ou não, se são legais ou não, mas se os corruptos órgãos públicos querem puni-las ou não. É por isso, essas e outras, que eu desanco com as instituições brasileiras, dizendo que o Brasil é um país de cagões, dirigido por um bando de filhos da puta, e que só na porrada as coisas irão mudar. — Você vai se meter num caminho sem volta. Vai ter que se envolver até os cabelos no jogo deles... — Aconselhou-me, novamente. — Tudo bem. Eu sei com quem estou lidando. Para evitar algum "acidente", neste meio tempo, vou transferir aquele contrato dos "meus caros amigos", que acabou não sendo cumprido na Fundação, para o Boni. — Você enlouqueceu... Aonde quer chegar? Aonde isto vai te levar? Você pode morrer por nada. — Alertou-me, assustado. — Francisco... contra bandido, só o banditismo. É a única linguagem que eles entendem. O jogo deles não me assusta. Aliás, a gente só se assusta com aquilo que não espera. E nada, ou quase nada, me assusta na vida ou na morte. Encostar uma arma em mim? Não será a primeira vez . . . Levar tiros? Não será a primeira vez. (Tenho um tiro no calcanhar esquerdo e um outro na canela direita.) Morrer? Nem isto será a primeira vez... (Eu sofro de catalepsia, e nasci morto. Morri a primeira vez em 11.09.48, no dia em que nasci, na Maternidade Clara Basbaum, na Rua da Passagem, 90, em Botafogo. E graças a um médico, que eu não sei nem que é — só que se chamava Roméro —, acabei "ressuscitando" de uma morte clinica. Posteriormente, morri mais duas outras vezes, na infância e na juventude. Conseqüentemente, minha próxima morte será a quarta.) — Coloquei de forma tranqüila. — E o que você espera com isso? — Questionou-me. — Nada... É só um desafio pessoal. — Respondi.
— Você acha que vai mudar alguma coisa se jogar tudo no ventilador? — Perguntou-me de forma cética. — Não. Eu não estou preocupado com os outros. Eu só quero fazer a minha parte. Nada muda, e nada mudará, ainda que eu conte tudo. Pois, no fundo, no fundo, tudo que possa ser revelado é a cara do Brasil. Os homens e as instituições que aí estão são coniventes e têm consciência de cada coisa errada que existe. Não há é a mínima vontade de mudar nada. Não fosse assim, e não teríamos em liberdade os Ronald Levinghson, os Garnero, os Delfim, e uma lista interminável de impunes (de ex-presidentes e ministros, até capitães de indústria). Gente que se arvora a ares superiores e inatingíveis. Mas, um dia, e não vai demorar, esta guerra surda de submundo entre pobres massacrados e obrigados a seguir as leis e os ricos impunes acabará tomando forma definitiva, franca e aberta; e o miserável irá exigir seus direitos de uma forma anímalesca e incontrolável. É esta selvageria que temos que impedir antes que chegue. Após uma nova invasão ao Palácio de Versailles, não vai ter lobby que pare a caçada e os abusos. E em nome da justiça a estas injustiças, várias atrocidades serão cometidas e justificadas. E nós (ou pelo menos a sociedade remanescente da época) iremos reviver todo o animalismo e selvageria de uma verdadeira revolução de justiça pelas próprias mãos. Só aí um juiz terá vergonha na cara, quando ele puder prender gente rica, sem constrangimento. No dia em que um novo Contrato Social for decidido, a partir do medo da selvageria. Francisco... Só o medo da selvageria pode mudar isto tudo. Só quando os impunes se sentirem caçados por injustiçados, é que eles irão propor um cessar fogo social. E estamos muito perto disto acontecer. Os impunes têm endereço público. Estão nas manchetes de jornais, nas colunas sociais, nas saudações do Chacrinha e nos elogios da Globo. — Belo discurso, mas de aplicação prática pouco provável. — Disse enfaticamente. — Tudo bem. — Respondi. — Até lá vamos ter que comer muita grama. Vamos assistir, no Jornal Oficial Nacional, patrocinado, descaradamente, por anúncios com verbas públicas não controladas, via Embratel, o balé dos colunáveis terceiromundistas e contraventores sociais. O baile de novos ricos (trambiqueirus vulgaris) com traficantes e contrabandistas. (Esta "sociedade" se merece.) E, no bloco econômico, as últimas notícias: Bolsa — Em alta. A Petrobrás descobre novo poço de petróleo (Logo após Roberto Marinho comprar um pacote de ações); ORTN (hoje OTN) — Cotação tal; Dólar — No câmbio oficial, tanto; no câmbio negro (Globo), tanto; Marcos Bordini, tanto; Casa Piano, tanto; Menezes, tanto (A cotação será desmembrada em papel 1ª, papel 2ª, e "colocada" no exterior. Tóxico - Na Globo (4º e 8º andares), tanto por "papelote" (com flash ao vivo); na "boca'', tanto pro consumo e tanto pro distribuidor (dependendo da safra, haverá cotação por variedade: coca, fumo, haxixe etc); Muamba — Na Globo (cotação direta da sala do Walter Sampaio), tantos dólares por Kg. No aeroporto tantos dólares por Kg. E aí a câmera e equipamentos, importados ilegalmente, fecha (com direção do Roberto Tal ma e Daniel Filho, totalmente down), lentamente, sobre o Cid Moreira, com fundo musical do Tim Maia (idem), e ele diz: "Boa noite". É a cara do Brasil.— Dizia eu, cinicamente. — Rapaz, rapaz. Veja lá o que você vai aprontar... — Duvidava o Francisco. — Que nada. Eu estou ótimo. Vou assumir esta assessoria numa boa e fazer o meu trabalho. — Disse eu, debochadamente. — Em compensação, você vai ouvir grito e esporro do Boni o dia inteiro. — Disse ele quase às gargalhadas. — Ele não é besta. Sabe que educação é bom e ajuda a conservar os dentes. Você está me achando com cara de baba ovo? Afundo os dentes dele no primeiro grito que der. — Respondi rispidamente. — É. Aí você vai estar feliz da vida, trabalhando com gente "inteligente"... — Provocou-me com ironia. — Lá vem você de novo... Desde quando sucesso pessoal é avalista de inteligência? — Questionei. — Quer dizer que o homem que mais entende de televisão no Brasil e talvez um dos que mais entende de TV no mundo, não é inteligente o suficiente para você? — Ironiza ele. — Não é isso. Há uma inteligência localizada... e só. É como algo que ressaltou nele. Mas, na média das outras coisas, o Boni é um cara bastante comum: é medroso prum monte de coisas, supersticioso, inseguro, apavora-se diante do místico. É manipulável em seus pontos fracos evidentes. Ou seja: é um cara altamente inteligente para televisão (de uma forma bem localizada),
medianamente inteligente para negócios, e burro para um monte de coisas do dia a dia. Na média, eu diria que ele é razoavelmente inteligente, não chegando a ser um sujeito especial ou muito acima do normal. — Concluí, de forma bem sacana e irreverente. — Quem pra você é gênio, então? — Interrogou-me irritado o Francisco. — Tem uma carrada de gente. Não é o caso de fazer uma lista ou concurso, mas eu tenho conhecido gente altamente inteligente, em absoluto anonimato. E volto a dizer: sucesso pessoal não é avalista de inteligência de ninguém, e nem é atributo hierárquico. Fose assim, e o Walter Clark seria mais inteligente que o Boni*; o Dr. Roberto seria mais inteligente do que o Walter Clark; o presidente de plantão no País seria mais inteligente que o Dr. Roberto. E até mesmo um débil mental que acerte na loteria passa neste caso, automaticamente, a ser mais inteligente do que você. — Devolvi-lhe a ironia. — Tudo bem. Deixando esta discussão boba de lado, diga-me: qual é a sua idéia e quais são os seus planos para esta assessoria? — Bem... o negócio é o seguinte: eu vou entrar.
* (pág 70) Ao tempo da primeira edição deste livro - (2º semestre de 1988) - o Sr. Bráulio Café já havia sido guindado ("feito") à posição de Delegado da Receita no Estado do Rio de Janeiro, com a inexorável perspectiva de vir a ser o próximo Secretário da Receita Federal, e futuro Ministro da Fazenda (mais um) da Rede Globo (Roberto Marinho). * (pág 71) Não se assaca aqui contra instituições In abstrato, mas especificamente contra maus representantes dessas instituições. Denigrem a figura do juiz a liberdade e o convívio social do meliante Castor "Cordeiro de Deus" de Andrade, ou a condenação dos assaltantes da residência do Boni (trambiqueirus vulgaris) — não pelo crime de roubo, mas por terem suas penas agravadas e multiplicadas pelo número de assaltados ricos (os pobres foram excluídos) presentes na cada no dia do roubo. E não é diferente para os casos de juiz que dá parecer, concede mandatos ou prolata sentenças em casa aos sábados, domingos e feriados. Isto é a corrupção de todos os costumes, praticada por figuras que deveriam ser o último baluarte de dignidade de uma nação, mas que, no entanto, matam de vergonha colegas seus, dignos, como a figura do Presidente do Tribunal Superior do Trabalho, que mandou às favas um Ministro da Fazenda (Bresser Pereira-Jumbo-Pão de Açúcar), por tentar intimidá-lo ou constrangêlo a decidir "contra legem" ou contra suas convicções pessoais. Enquanto persistir esta indignidade, "juiz honesto" deixará de ser pleonasmo para ser mero adjetivo raro. E que me perdoem meus professores, os juízes (honestos) José Carlos Moreira, Sérgio Cavallieri e Laerson Mauro, entre outros. * (pág 73) Em vez de inteligente, a palavra correta é esperto. Maior salário do Brasil, Boni recebe restituição do Imposto de Renda, e seu filho, Boninho, declara á Receita Federal um salário mínimo por mês e mora num apartamento próprio na Praia do Pepino no valor de um milhão de dólares.