A sociologia de Guerreiro Ramos [Texto apresentado no Seminário O Projeto UNESCO: 50 anos depois, organizado pelo Centro de Estudos Afro-Orientais da UFBA, de 12 a 14 de janeiro de 2004.] Lúcia Lippi Oliveira∗ ∗ Para falar de Guerreiro Ramos, costumo dizer: inteligência brilhante, capaz de insights memoráveis, que se mostram cada dia mais atuais. Ao mesmo tempo temos que lembrar que ele produziu fora dos cânones acadêmicos de sua época. Além de Weber e Mannhim, gostava de citar autores que hoje estão esquecidos, como Gurvitch. Brigou com quase todos os seus pares e principalmente se desentendeu com Florestan Fernandes, figura central na constituição do campo da sociologia acadêmica na Universidade de São Paulo. Talvez isto nos ajude a entender seu próprio ostracismo na sociologia brasileira. Como intelectual de seu tempo, Guerreiro era portador de uma visão messiânica, comprometida com o Brasil e com as lutas da época. Fazer ou não parte do mundo civilizado, conseguir alcançar os padrões do Primeiro Mundo, eram questões que vinham atormentando os intelectuais brasileiros desde, pelo menos, a segunda metade do século XIX. A comparação com outras situações históricas revelava uma diferença que foi lida como sensação de ausência, de falta, de estarmos sempre diante de uma identidade incompleta. Os intelectuais vivenciaram essa marca da cultura assumindo uma postura salvacionista, uma perspectiva missionária em relação ao Brasil. Se a consciência nacional e o messianismo podem ser tomados como características marcantes da autodefinição do intelectual, as formas particulares de realização desses traços variaram no tempo e se alteraram dependendo das conjunturas. Quais eram os desafios do tempo de Guerreiro Ramos, e como podemos situar sua produção dentro do contexto dos anos 1950 e 1960? Os anos que se seguiram ao fim da Segunda Guerra Mundial recolocaram na ordem do dia a questão de como modernizar as sociedades periféricas. Nos anos 1950 o estudo das sociedades chamadas subdesenvolvidas integrava a questão da reorganização do “mundo livre”. “Como a sociedade se desenvolve” passou a ser questão central das ciências sociais da época - como definir claramente a oposição entre tradição e modernidade; como encontrar os substitutos funcionais da ética protestante para localizar as modernizações que teriam condições de dar certo; como entender as diferentes etapas desse processo. As mazelas sociais - personalismo, familismo, patrimonialismo- explicariam por sua pré-modernidade as dificuldades e diferenças nas etapas do desenvolvimento. Tudo isso valeu para a América Latina e para o Brasil e conformou o pensamento e as propostas dos intelectuais e cientistas sociais. As transformações em curso na sociedade brasileira durante o governo de Vargas, principalmente no Estado Novo, e o impacto da Segunda Guerra Mundial foram importantes para alterar a idéia de nação desejada. Nos anos 1930 houve um profundo debate sobre os valores e as origens da sociedade brasileira. Podemos citar entre os trabalhos mais relevantes Casa Grande & Senzala, de Gilberto Freyre, publicado em 1933, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, de 1936. É preciso lembrar que a discussão sobre os modelos fundadores da sociedade brasileira acontecida nos anos 30 e 40 teve lugar no mesmo momento em que se assistia à penetração cultural norte-americana na América Latina e no Brasil, como resultado de uma ação política governamental dos Estados Unidos, desenvolvida durante a Segunda Guerra. A presença norte-americana vai ser então intensificada, visando a enfrentar as políticas culturais da Itália, da Alemanha e do Japão – vale lembrar as colônias alemã e italiana no Sul do país e o grande número de imigrantes japoneses e italianos em São Paulo. A criação de uma agência oficial, o Office for the Coordination of Inter American Affairs (OCIAA), em 1940, marca esse momento de ação cultural do governo americano no hemisfério sul. Sob a direção de Nelson Rockefeller, a agência realizou a preparação do esforço de guerra, coordenando agências estatais e privadas, mobilizando a comunidade norte-americana de negócios no reforço da solidariedade hemisférica. O OCIAA cuidou da transmissão de notícias de guerra, da divulgação do sacrifício dos americanos nos campos de batalha, assim como da divulgação do Brasil nos Estados Unidos. Coube a ela, entre outras atividades,