3.5 Life After Legend (PARTE I)

Page 1


MARIE LU

Livro 3.5 (parte i)

Traduzido e produzido sem qualquer fim lucrativo. Dedicado carinhosamente aos fĂŁs brasileiro da escritora Marie Lu e de sua sĂŠrie de livros LEGEND.


ROSS CITY ANTÁRTICA

DEZ ANOS DEPOIS

AS VEZES EU VEJO COISAS. Vislumbres. Flashes. Fui ao médico diversas vezes por causa disso e sempre fui liberado com o mesmo diagnóstico: Você passou uma experiência traumática, Daniel, eles me disseram. Vá para casa. Descanse. Isso, até onde eu seu, não faz bem a ninguém. Eu vou para casa. Eu me deito na cama. Eu tento descansar. Isso não me impede de ver coisas. Não é que eu não goste da vida em Ross City. Meu irmão caçula, Éden, decidiu vir para cá a convite de uma da prestigiosa universidade de tecnologia. E se isso o faz feliz, eu estou feliz. Após viver na República, a sociedade de Antártida parece liberal de mais, e, às vezes, eu não suporto. As pessoas aqui não se preocupam com a praga. Eles não se preocupam se os soldados vão ou não bater em suas portas e apontar armas para suas famílias. Eles não precisam se perguntar de onde a próxima refeição vai vir ou se precisaram fugir quando a nação inimiga atacar.


Viver em Ross City é como um passeio no parque. Eu definitivamente conheci lugares piores. E ainda assim, eu vejo coisas. Durante nosso primeiro ano aqui, eu vi vislumbres enquanto eu dormia de uma mulher com os olhos frios e um sorriso nos lábios. E quando ela falou comigo não pude ouvir nada além dos meus próprios gritos; durante nosso segundo ano, eu vi pedações de uma vida que eu tive com Tess nas ruas de Lake, No nosso terceiro ano, eu vi lampejos de candelabros e luvas. Câmeras e taças de Champagne. Momentos estes que não cabiam no estilo de vida que conheci em Lake. No nosso quarto ano e em cada ano desde então, eu vejo flashes de uma garota com um longo cabelo escuro. Eu nunca consegui ver o seu rosto, mas eu me pego correndo atrás dela em meus sonhos, sempre acordando antes de conseguir alcança-la. Eu nunca a mencionei em voz alta, nem mesmo para o Éden. Existe algo sobre ela que me faz querer mantê-la só para mim.

— Você está calado essa noite. A voz de Leanna me tira dos meus pensamentos. Eu me ajeito na cadeira e a vejo franzindo a testa para mim. O entardecer se encaminhou para a noite e daqui de cima, em um café em uma das movimentadas passarelas que ligam dois edifícios, eu posso ver o horário correndo em um painel colocado em um arranha-céu distante. Minha atenção retorna para minha namorada que está me observando enquanto ela enrola uma mecha de cabelo ruivo nos dedos. Quando não respondo imediatamente, ela se aproxima e me beija. — Em que você está pensando? – ela pergunta. — Desculpe — Eu respondo com um suspiro. — Éden tem exames amanhã. Ele passou essa semana inteira escondido em seu quarto


estudando. — isso é verdade, mas não a razão pela qual estou quieto essa noite. Eu estou quieto porque estou pensando na menina de cabelos escuros, ela apareceu novamente para mim, em meus sonhos, na noite passada. Estou quieto porque estou pensando em terminar com Leanna, e não estou ansioso por esse momento. Leanna não parece convencida. — Fazem, seis meses, Daniel. Já consigo saber quando algo o está incomodando. Seis meses. Esse foi o relacionamento mais longo que tive desde que cheguei em Ross City — mas enquanto olho para Leanna, não posso deixar de sentir meu coração afundar. Nós duramos muito tempo, mas sei que está chegando ao fim. Eu me endireito na cadeira e então nossas mãos deixam de se tocar. Os olhos dela buscam os meus, o rosto dela se contrai como se ela tentasse adivinhar o que eu estou pensando. — Nós Podemos ir para meu apartamento – ela sugere com suavidade. — Se você quiser dar privacidade para o seu irmão. Eu dou um sorriso triste em resposta. — Não é isso — eu digo. Então me levanto do meu banco, puxo o meu casaco, e ofereço a ela minha mão. Eu começo a caminhada em direção ao meu apartamento. — Nós precisamos conversar. Quando chegamos no meu apartamento, eu a coloco perto de mim e falo com ela em voz baixa. Enquanto escuta, ela estuda meus olhos e tenta descobrir o que fez de errado para que nosso relacionamento chegasse ao fim. Eu digo que sinto muito. Eu sinto muito. Ela fica indignada no começo, e eu a escuto em silêncio. Há algumas semanas ela havia dito que me amava e eu fui incapaz de dizer o mesmo de volta. Ela diz que quer que eu diga algo agora. Ela diz que deseja nunca ter me conhecido. Então ela fica em silêncio também. Ela não está brava comigo, mas eu queria que estivesse. Quando ela começa a chorar, eu a abraço e enterro meu rosto em seu cabelo.


Nenhum de nós diz qualquer coisa. A única coisa que posso fazer é ficar aqui, me sentindo sozinho e me perguntando porque diabos eu não posso deixar uma coisa boa durar pelo menos uma vez; me perguntando porque não posso tirar a garota de cabelos escuros dos meus pensamentos. Nós ficamos sentados por horas, até que finalmente Leanna se levanta. Ela busca pelas coisas que deixou no meu apartamento no decorrer dos últimos meses — escova de cabelo, camisolas, escova de dentes. Ela diz que ficará bem. Nos despedimos gentilmente na porta. Então eu a abraço pela última vez. Ela caminha para fora do apartamento e atravessa o hall enquanto eu permaneço na porta. Eu encaro o nada por um momento, perdido dentro de pensamentos. Minha mão distraída e inquieta e toca o antigo anel que uso. É meu favorito, leve e resistente, feito de clipes de papel, não posso me lembrar onde o consegui, mas ele me lembra de costumes do antigo Lake. Além disso, alguém me disse uma vez que ele é feito de um material que não enferruja. Ele pode ser útil um dia. Volto para dentro e fecho a porta, Éden saiu do seu quarto e está encostado no balcão da cozinha comendo uma maça. Ele me encara através dos seus óculos. Seus olhos uma vez estiveram pálidos após o duro tempo que passou nas mãos da República, mas gradualmente, ao longo dos anos, eles voltaram a ser azuis brilhantes, assim como os meus. Sua cabeça cheia de cachos loiros está uma confusão de emaranhados agora, e ele ainda parece um pouco adormecido. — Pensei que estivesse estudando — murmuro para meu irmão, quando me junto a ele na cozinha. Éden dá de ombros. — Eu já recebi meia dúzia de ofertas de estágio. E eu vou fazer esse exame amanhã de qualquer forma, por isso, percebi que uma soneca era a melhor forma de usar o meu tempo. Não posso deixar de sorrir. Nem imagino da onde ele tirou esse tipo de atitude. Ele morde uma maça.


— Então, você fez? — Aham. Éden faz um som de desapontamento com a garganta. Ele realmente gosta de Leanna, porém, para meu alívio, ele não usa isso contra mim. — O que você disse para ela? — Que nós não estamos no mesmo lugar. — eu passo a mão pelo cabelo. Eu o mantenho curto agora, outro lembrete de como minha vida agora é diferente daquela que eu tive na República. Quando eu era Day. Éden revira os olhos. — Melhor do que você disse para Rose — ele diz. — “Top secret project para o serviço de inteligência da Antártida” Eu lanço um olhar fulminante para ele. — Tem dezenas de projeto sobre os quais eu não te falo. — Bom, você teve algum que o fez terminar com a Rose? — Não. Éden balança a cabeça. — Exatamente. — Eu deveria ter ficado com a Leanna, então? — Não. Como eu disse, foi melhor do que foi com a Rose. Pelo menos você disse a verdade para Leanna. Éden joga o caroço da maça no lixo — Eu sabia que esse relacionamento estava condenado há meses. — Obrigado pelos avisos. — Não teria feito diferença, você precisava descobrir por conta própria. — Éden senta no balcão e ergue uma sobrancelha. — Então, por que você não gostou dela? Eu olho para longe e alcanço uma maça. Éden me pergunta isso toda vez que termino com uma namorada, e em todas vezes eu invento uma desculpa — mas esta noite estou muito cansado para inventar algo. Então, em vez disso, apenas digo para Éden o que exatamente passa pela minha cabeça. — Ela apenas . . . não era a garota certa — dou uma mordida na maça. Nas ruas de Lake, essa maça seria algo impossível de conseguir — Eu


esperei alguns meses para ver se meus sentimentos mudariam, mas isso não aconteceu. Éden me olha em silêncio. — O que você está procurando? — Ele me pergunta após um momento. Em minha mente, a garota com o longo cabelo preto aparece, e eu me pego ansioso para ir atrás dela, para poder admirar seu rosto. — Nada — eu digo, contornando a pergunta de Éden — eu vou ficar bem. Éden não parece convencido. Ele não insiste e um silêncio confortável cai entre nós dois. — Você pensa em retornar para a República? — ele pergunta do nada. Eu olho para ele cheio de surpresa. — Não. Por que? A expressão de Éden muda, como se ele soubesse de algo que eu não sei, e nesse momento eu percebo que não posso adivinhar o que se passa na cabeça do meu irmãozinho. Ele está se graduando. Meu pequeno irmão já não é tão pequeno assim. Eu sorrio e decido arriscar uma pergunta. — Isso é sobre a Tess? Em resposta, o rosto de Éden fica roxo. — Não. — Oh, qual é. Você falou com ela, não foi? — Não. Eu gargalho, ansioso para não falar mais sobre o meu término. — Você é o pior mentiroso que eu já conheci. O que Tess disse? Éden faz uma carranca e eu continuo. — Você diz que passa uma hora arrumando seu cabeço antes de cada uma das chamadas de vídeo que faz com ela? — Não é bem assim! Éden protesta, o que me faz gargalhar outra vez. Tess. Como a garotinha que eu conheci nas ruas se tornou uma médica? Todo ano, eu tenho um vislumbre dela durante nosso chat no inverno e não posso


acreditar que estou olhando a mesma pessoa. Mas ela continua terna como sempre. Especialmente com Éden. Éden continua corado e eu finalmente decido mostrar um pouco de simpatia. — Olha garoto, se você quiser retornar para ver ela em pessoa. Eu vou com você Ele me encara. — Na realidade. . . — ele diz, com alguma hesitação — Eu estava falando com Tess sobre a República. — Mesmo? — Sim. Porque uma das minhas ofertas de bolsa é da Republica. Diante do meu silêncio repentino, ele adiciona. — Uma posição de engenheiro no Setor Batalla, na verdade. Em Los Angeles. Batalla, Los Angeles. Uma posição de engenheiro. Eu não sei o que responder. Faz tanto tempo desde que eu ia a Batalla para roubar equipamentos e comida dos soldados da República. Agora meu irmão pode acabar trabalhando lá. — O que você iria fazer? — Eu finalmente pergunto. — Reestruturar o antigo estádio e barracas as quais eles usavam para aplicar os testes. — Ele hesita. — Minha proposta era para transformá-lo em um hospital, uma universidade, e em um museu. O antigo estádio dos testes. As memórias correm de volta para mim, implacáveis, e eu estremeço apesar dessas lembranças, assim como muitas outras do meu passados, há muito tempo terem se cicatrizado. Um hospital. Uma universidade. Um museu Essa foi a proposta que Éden encaminhou para eles. No que provavelmente ele estava trabalhando quando deveria estar estudando para os seus exames. Sinto uma onda de orgulho tão forte que tira meu folego. Me lembro do voto que ele fez para ajudar a República encontrar a cura para a Praga, quando ele ainda era criança. Apesar de tudo, a República nunca quebrou o Éden. Apesar de tudo, ele continua a fazer o bem. A ser o melhor de nós. — Você está bem? — ele pergunta, respirando em silêncio.


Eu sorrio para ele. — Sim. Estou apenas orgulhoso de você. Ele se endireita e sorri. Seus olhos podem se parecer com os meus e os da nossa mãe, mas quando ele sorri, tudo que vejo é John. — Você vai dizer sim? — Eu pergunto. Ele me dá um olhar tímido e, instantaneamente, eu sei. — Você já aceitou, não foi? Ele acena. — Aham. Há poucas horas. Ele deveria estar com medo de me dizer. A República. Eu sinto uma tempestade de emoções se formando ao imaginar meu irmão voltando para lá, mas eu não falo nada. Ele está indo. Ele concordou. Deve ser uma oferta melhor do que qualquer outra que ele conseguiu — e, além disso, Tess está lá Eu respire fundo. Meus dedos estão brincando com o meu anel de clipes mais uma vez. — Como eu disse, se você vai, eu também vou. Alguém precisa te vigiar. Éden sorri novamente, e o alívio em seu rosto me faz relaxar. — Bom, porque Tess já está arranjando um jantar para nossa chegada. Ele me olha com uma expressão curiosa, como se soubesse mais do que estava falando. — Eu pensei que talvez…. Bem, que talvez você esteja pronto para fazer as pazes com sua terra natal. Como sempre, o instinto de Éden sobre mim está correto. A República da América, cinza e escura e repleta das minhas piores lembranças. No entanto, ainda me atrai. Eu sinto o puxão agora mesmo, enquanto as palavras de Éden ecoam em minha mente. Não é perfeita. Mas ainda é minha casa


Quando Éden retorna para seu quarto, eu vou para o meu e tento dormir. Mas de nada adianta. Meus pensamentos estão muito confusos. Depois de uma hora, me levanto, coloco um casaco, minhas luvas, minhas botas e subo para o telhado. Como de costume, está silencioso esta noite. Eu vim para o telhado do nosso complexo de cem andares praticamente toda noite desde que nos mudamos, mas eu nunca vi outra pessoa aqui em cima. O prédio está iluminado com cores, a maior parte de seus andares conectados aos dos prédios adjacentes por pontes de conexão, nas quais agora as pessoas passam apressadamente de um lado para o outro. Eu fico parado nas sombras por um tempo, inspirando o ar frio da noite e, então ando para mais perto da beirada. É estranho que, depois de tanto tempo, eu ainda me sinto mais confortável me equilibrando em um parapeito? Eu passei a maior parte do meu primeiro ano em Ross City agachado nesse mesmo lugar, assistindo o céu se modificar a cada estação. Verões na Antártida duram aproximadamente seis meses e, supostamente, significam dias longos, sem nenhum cair da noite, enquanto os invernos deveriam trazer noites eternas pelos outros seis meses. Mas o governo usa algo como um escudo tipo cúpula para simular um ciclo mais normal de dia e noite e para gerar um clima mais quente. Daqui eu posso ver quase toda Glittering City, junto com uma vista dupla do que o escudo gera e do céu real que existe além dele. Às vezes, grandes quantidades de cor cascateiam através do verdadeiro céu noturno enquanto o escudo produz um dia ensolarado logo abaixo dele. Outras vezes, o céu de verdade está brilhante e azul enquanto o que vemos por baixo é uma camada brilhante de estrelas. Essa noite tem tiras azuis e verdes flutuando através do céu em ondas gentis. Eu as observo por um piscar de olhos. Então eu ando todo o caminho até a borda e salto em cima do parapeito em um movimento rápido. Minha perna de metal faz um leve rangido ao se esfregar contra a pedra. Eu me agacho ali, observando as pessoas andando lá embaixo. Eu penso na primeira coisa que Éden me disse assim que chegamos a Ross City. Como a República da América pode ser tão cinza, enquanto um lugar como esse transborda cor e vida? Talvez a república costumasse ser colorida assim também, eu respondi.


Éden está voltando para a República para trabalhar em suas forças armadas – para os mesmos militares que causaram tanto sofrimento à nossa família. Os mesmos militares que, ainda assim, afastaram o inimigo. Minha mandíbula cerra. Nós estamos voltando para o país que, um dia, chamamos de casa. E, apesar de tudo, é o país que eu ainda chamo de casa. Eu cresci lá, joguei hockey de rua com John e Éden lá, perambulei pelos becos de lá, conheci Tess lá. Eu fui preso lá e depois homenageado. Todo meu passado traça de volta até a República. Fragmentos de memória se agitam em minha mente com o pensamento. Tem dez anos desde a última vez que coloquei os pés em solo Republicano. Como será quando nós voltarmos? Eu me lembrarei de mais? Algo me chama a atenção e, de repente, eu me endireito. Andando através de uma das pontes abaixo está a garota. Ela é alta e esguia, com um longo rabo de cavalo de cabelos escuros que balançam atrás dela enquanto ela se move. É ela. A garota dos meus sonhos. Eu não penso. Eu apenas reajo. Antes que eu perceba, comecei a correr pelo parapeito, meus olhos fixos em sua figura cortando por entre as multidões. Quando alcanço a beirada do edifício, me penduro pela lateral, pendendo sobre cem andares apenas com minhas mãos enluvadas. Minhas botas empurram contra o prédio quando encontro uma quina para segurar, depois outra e, então, rapidamente, faço meu caminho para o lado. Eu alcanço a primeira ponte de conexão e subo em sua grade mais alta para me agachar novamente. Minha pisada, como sempre, é certa. Eu procuro por ela. Ela ainda está lá, andando sozinha pela ponte. Meu coração bate furiosamente. É ela, tem que ser, ela está aqui. E eu não sei por que me importo tanto, mas eu sinto uma necessidade indescritível de segui-la. Algumas pessoas na ponte, logo abaixo de mim, agora olham para cima, para o som das minhas botas nas barras. Uma delas aponta para mim. – Olha! – Ele exclama para a pessoa ao lado. – É aquele garoto da República – aquele é Daniel Altan Wing.


Há um murmúrio de reconhecimento, mas eu os deixo para trás antes que eles possam fazer mais comentários. Eu alcanço o outro prédio, viro de lado e desço na passarela da ponte. Alguns suspiros de surpresa. Eu os ignoro e olho pra baixo para ver se a garota ainda está lá. Ela está entrando no edifício agora, em um dos andares abaixo. Eu calculo qual andar é, corro para dentro e empurro pela multidão até achar os elevadores. Entro correndo no primeiro que indo para baixo. Saio no andar dela. Tem poucas pessoas ao redor, mas ainda me encontro girando no lugar, tentando identificar onde ela está. Lá. Eu vejo seu cabelo na multidão e corro em sua direção. Pessoas me lançam olhares assustados quando passo correndo. Pelo canto do olho eu percebo que estão todos usando uniformes da República. Por que estão todos vestidos como soldados da República? Eu a alcanço e estendo a mão para tocar seu ombro. Ela se vira. Ela está irreconhecível. Eu acordo sobressaltado na minha cama, tremendo. Meu coração bate mais rápido, enquanto minha cabeça pulsa com uma dor familiar, a sensação que eu tenho quando estou lutando para lembrar de algo, mas não consigo exatamente alcançar. Meus olhos miram a janela, onde as luzes de Ross City estão brilhando durante a noite. Tudo está quieto. Ela está de volta na República. Eu sei disso com certeza absoluta.

– Senhor Wing. Eu deixo de olhar pela janela do avião para as nuvens, minhas mãos brincando com o anel de clipes de papel. O comissário veio até Éden e eu para nos entregar alguns formulários. – Logo estaremos aterrissando – ele disse, acenando brevemente para mim. Éden ajusta seus óculos e sorri. – Está pronto?


Eu sorrio de volta, minha própria alegria cautelosa e contida, e volto a olhar para fora. – Pronto o suficiente – eu respondo. Através da janela eu posso ver o vasto quadriculado de Los Angeles se materializando abaixo das nuvens, os arranha-céus do centro da cidade dispostos ao longo da margem daquele lago familiar, a costa pontilhada com navios de guerra da República. É igualzinho ao que eu me lembrava: mais escuro que a Antártida, mais cinza, mais arenosa. Tess vai estar aqui. Nós pousamos, somos inspecionados por oficiais da República. Em seguida, somos escoltados até um carro que nos leva ao apartamento onde ficaremos enquanto Éden participa das entrevistas para seu estágio. Uma posição de engenheiro no setor de Batalla. As palavras se repetem em minha cabeça, estranhas e surreais. Enquanto percorremos a cidade, noto uma manchete rodando no JumboTrons. ÉDEN BATAAR WING ESTÁ EM LOS ANGELES PARA UMA ENTREVISTA PARA UMA POSIÇÃO DE ENGENHARIA EM BATALLA Eu acho que a República ainda se lembra de nós. O sol está se pondo sobre a cidade no momento que eu e Éden finalmente nos instalamos em nosso apartamento. Enquanto saímos do complexo e nos dirigimos até o estacionamento onde nosso carro espera, eu olho para meu irmão. – Animado para o jantar? – eu pergunto a ele. Ele empurra seus óculos um pouco para cima e praticamente brilha de alegria. – Animado? – ele responde. – Nós não temos visto Tess desde.... Eu nem sei. Ela era uma criança da última vez que estivemos juntos. Eu rio. – Você era uma criança a última vez que estivemos juntos. – eu sorrio ao ver o leve rosa em suas bochechas. – Não ache que eu não notei você preparando esse jantar com ela.


– Só feliz por ver uma velha amiga. –Éden disse enquanto o rosa em suas bochechas ficava mais forte. Dou de ombros e deixo para lá, apesar de um sorriso brincar no canto dos meus lábios. – Oh! – Éden exclama de repente. Ele estala seus dedos. – Esqueci o presente dela. Eu reviro meus olhos quando ele nos vira de volta para nosso apartamento. Enquanto caminhamos, Éden conversa energicamente sobre os detalhes de sua proposta, constantemente puxando as mangas de sua camisa social até os cotovelos e gesticulando no ar. Eu escuto silenciosamente. Mamãe e John estariam orgulhosos de você. Eu procuro indícios deles em seus maneirismos, em sua longa passada e em seu sorriso rápido. — E quando eu vir a Tess, eu direi a ela sobre a ala hospitalar adicional que estou planejando para — Éden se interrompe para me lançar um olhar inquisidor. — Por que você está olhando assim para mim? Eu rio. — Porque você está falando como um homenzinho — respondo. — Tudo isso vindo do garoto que costumava lançar dardos caseiros nas traseiras das patrulhas de rua. — Ei, eu ainda posso fazer isso, você sabe? — Éden replica com um sorriso. Eu levanto uma sobrancelha de forma provocativa para ele. — E agora olhe para você — respondo empurrando-o. — Tenho certeza que a Tess ficará bem impressionada. O rubor se espalha pelas bochechas de Éden. — Eu não estou tentando impressionar Tess. Eu—bem—ei, ria o quanto quiser, porque você vai ficar vermelho como um tomate durante o jantar de hoje também, e estou ansioso por isso. Balanço minha cabeça para ele, ainda sorrindo. — Do que você está falando? Éden muda de assunto, aguçando minha curiosidade. Ele volta a discursar sobre seus planos de engenharia e eu me atento às suas


divagações animadas novamente. Mas então, quando nos aproximamos do complexo de apartamentos, vejo uma jovem andando em nossa direção. Minha atenção oscila de Éden para ela. Ela parece muito jovem para usar um uniforme da República de um escalão tão alto, e seu cabelo é longo e escuro, caindo solto por seus ombros. Seus movimentos são graciosos, como se ela tivesse nascido em meio à riqueza, mas existe algo de humilde na inclinação de sua cabeça, na sua feição pensativa. Meu olhar paira em seu rosto. Droga. Ela é maravilhosa. E esse pensamento parece tão estranhamente familiar, a onda de déjà vu tão intensa, que de repente parece que caminhando para o passado, olhando para alguém que talvez eu deva ter conhecido. Ela parece nos notar, mas continua de cabeça baixa enquanto nos aproximamos. Ao meu lado, Éden pausa no meio de uma frase para lançar um olhar surpreso. Não, não surpreso. Algo mais. Reconhecimento? Ela era uma das amigas de Éden? Meu irmão me espia como se procurando minha reação. A mulher encontra meu olhar brevemente. Sou atingido com uma sensação avassaladora, um sentimento tão forte, que por um instante, mal posso respirar. Há algo oscilando no limite da minha memória, mas está fora de alcance. Silenciosamente, passamos um do outro. Meu coração está fora de controle e meus pulmões parecem que estão queimando. Meu pulso está ecoando em meus ouvidos enquanto respiro profundamente para me acalmar. Éden está olhando para minha com uma expressão estranha agora. Como se ele soubesse o que acabou de acontecer. Sem uma palavra, ele desacelera, olha por cima do ombro em direção à garota e me lança um olhar aguçado. — Vá falar com ela — ele fala para mim. Minhas botas também param. Eu me viro para olhar de volta para ela. E é quando, rapidamente, eu percebo que sua figura se afastando é o que vejo nos meus sonhos. A garota com o longo e escuro rabo de cavalo, a quem eu sempre corro atrás e, ainda assim, não consigo alcançar.


É ela. Eu começo a me mover. Meus passos apressados batem contra a calçada. Eu me pergunto se talvez eu esteja sonhando de novo e se vou acordar assustado na minha cama na Antártida. Eu acho que ela vai continuar caminhando, e eu vou continuar perseguindo, e nunca vou chegar mais perto dela. Exceto que dessa vez, ela para. Ela olha sobre o ombro para mim. Dessa vez eu a alcanço. Eu nem mesmo sei o que dizer. Tudo que faço é olhar para ela, procurando em vão por palavras. Ela olha de volta para mim com seus grandes olhos escuros e dourados. Deslumbrante. Eu conheço esse rosto. Minha mente luta freneticamente para encaixá-la. — Com licença — eu digo finalmente. — Nós nos conhecemos? Eu não sei o que eu esperava que ela dissesse em resposta. Um flash de emoção cruza seus olhos, mas está lá e se vai tão rápido que não posso ter certeza disso. Quando ela fala, sua voz é calma e firme. — Não — ela murmura. — Lamento. Essa voz. Mas eu conheço essa voz. Eu franzo a testa, confuso, e passo a mão por meu cabelo. Por alguma razão o anel de clipes de papel parece pesado em meu dedo. — Ah — respondo, tentando transformar meus pensamentos em algo coerente. Como posso dizer a ela o que está passando pela minha cabeça? Eu vi você em meus sonhos. Em vislumbres. Fragmentos. Eu conheço a visão de você indo embora. —Então, me desculpe incomoda-la. Eu achei... — eu franzo a testa novamente. Talvez eu só esteja louco. — É que você me parece familiar. Tem certeza de que não nos conhecemos de algum lugar? Ela estuda meu olhar em silêncio, como se ela também estivesse tentando se lembrar de algo. Ou, talvez, ela esteja procurando algo em mim. Minha mente procura, tentando desesperadamente colocá-la onde ela pertence. Eu já vi você antes.


Meus olhos miram seus lábios. Eu conheço esses lábios. Uma lembrança de mim a beijando profundamente, dela me beijando de volta. Meus olhos se dirigem para suas mãos descansando em seus lados. Eu conheço essas mãos. Uma lembrança de mim puxando-a de pé enquanto uma nuvem de poeira nos cerca. Eu olho para seus cabelos escuros, seu rosto em formato de coração, seu queixo pequeno. Eu conheço esse rosto. Uma lembrança daquele queixo descansando no meu ombro, dela encolhida ao meu lado em um tremulante vagão de trem. Eu posso ver seu rosto em meus sonhos, finalmente combinando com a figura dela indo embora. Eu balanço minha cabeça. — Eu sei que já te conheci — eu murmuro. — Há muito tempo. Não sei onde, mas acho que sei por quê. Eu acho que ela vai se afastar de mim, assumir que sou louco, e esse pensamento me enche de terror. Mas ao invés disso, ela só olha para mim. Seus olhos estão úmidos. — Por quê? — ela me pergunta gentilmente. Porque eu te amei um dia. Porque você me amou. Eu me aproximo, para que eu possa ver o dourado brilhando em seus olhos. — Desculpe. O que vou dizer é muito estranho. Eu... — eu tento alcançar as palavras certas. — Eu tenho procurado por muito tempo por algo que achei que perdi. Uma lembrança dela curvada sobre mim, chorando, implorando para que eu não vá. — Não é nada estranho — ela diz. Não consigo deixar de sorrir para ela, desesperado para ouvi-la falar de novo. — Eu senti que encontrei algo quando vi você ali atrás. Você tem certeza... — eu respiro profundamente. — Você me conhece? Eu conheço você? Nós nos amamos uma vez?


Meu corpo se acalma enquanto espero por sua resposta. Quando ela finalmente fala, ela diz: — Eu tenho que ir me encontrar com alguns amigos. — Oh. — Meu coração afunda; minha maré de emoções diminui, me deixando com frio. Eu me sinto como um idiota, parado aqui despejando os pensamentos selvagens na minha cabeça para uma pessoa aleatória. — Me desculpe — eu respondo, inseguro de mim mesmo agora. — Eu também tenho, na verdade. — Eu olho de volta para Éden, que está vindo em nossa direção com um sorriso malicioso em seus lábios. — Uma velha amiga em Ruby. Isso. Isso é o que fisga ela. Seus olhos se arregalam em compreensão. — O nome da sua amiga é Tess? — ela pergunta hesitante. Tess. Eu pisco. — Você conhece ela — eu digo, sorrindo. — Sim — ela responde, o olhar em seus olhos um misto de medo e esperança. — Eu vou jantar com ela hoje à noite. Eu pisco de novo. Meus olhos se voltam para Éden. Num piscar de olhos eu entendo que isso é o que ele queria dizer antes, a razão misteriosa pela qual ele está ansioso pela minha reação no jantar. Eu olho de volta para a garota. June. O nome dela é June. — Eu me lembro — digo. — É você. — Sou? — ela sussurra, sua voz tremendo. O nome dela é June. E mesmo em meio às minhas memórias quebradas, eu sei disso com perfeita clareza. O nome dela é June, e uma vez, eu dei meu coração inteiro a ela. — Eu espero — respondo baixinho — poder conhecer você de novo. Se você estiver aberta a isso. Há uma névoa ao seu redor que eu gostaria de dissipar. Ela não diz nada. Talvez ela não se lembre de mim. Mas eu estudo seu rosto, aqueles olhos familiares e lindos, e sei que ela se lembra sim. Posso ver as lembranças aparecendo diante dela também, de um tempo em que


éramos ambos jovens e inocentes. Me recordo de um antigo desejo, voltando para mim. Eu sempre quis conhecê-la assim. E eu me vejo vendo as coisas novamente. Faíscas. Flashes. Eles não são memórias agora, mas, possibilidades. Eu me vejo no jantar com ela, consertando as partes quebradas em minha mente. Eu nos vejo depois na frente de sua porta, nervosos, sorridentes, desajeitados. Nos vejo sentados em um parque juntos durante o verão, com vista para a cidade, rindo das piadas um do outro, depois passeando no ar de inverno durante um festival, seu braço enlaçado no meu, escovando novos flocos de neve de seus cabelos. Nos vejo dançando juntos, a inclinação provocante de sua cabeça, o jeito que a pego pela mão e a giro de volta para os meus braços, o jeito que minha mão descansa na parte baixa de suas costas. Eu me vejo sussurrando em seu ouvido à noite, ela sussurrando de volta para mim, seus dedos correndo pelos meus cabelos. Me vejo trabalhando à luz do abajur, criando para ela um perfeito anel de clipes de papel. Eu me vejo ansioso e andando de um lado para o outro, recitando palavras em frente a um espelho, me ajoelhando diante dela. Eu a vejo em um vestido, sorrindo, meus braços firmemente envoltos em sua cintura. Eu vejo uma vida inteira à minha frente, entrelaçada à dela. Ela não se mexe. Ela está esperando por mim, seus olhos implorando silenciosamente para que eu aja primeiro. Então eu faço. Eu estendo minha mão e pego a dela na minha, um abraço que rapidamente se torna um aperto de mão. E simples assim, estamos conectados de novo, ela está aqui comigo, eu estou com ela, e um pedaço do meu coração é colocado de volta. As lágrimas vêm correndo, e eu as afasto. Eu amei você. Eu ainda amo você. Eu quero estar com você. — Oi — eu digo. — Eu sou o Daniel. — Oi — ela responde. — Eu sou a June.


Marie Lu nasceu em 1984, na cidade de Pequin, China. Em 1989, quando tinha cinco anos, ela e sua família se mudaram para o Texas, nos Estados Unidos. Formou-se na University of Southern California e logo começou a trabalhar na Disney Interactive Studios, como programadora de flash/designer de arte. Atualmente, Lu mora na cidade de Pasadena, Califórnia (Condado de Los Angeles), com seu namorado, um Chihuahua vira-lata e dois cachorros da raça Welsh Corgi Pembroke. Ela se inspirou para escrever Legend enquanto assistia na TV a uma adaptação de Les Misérables e começou a se perguntar de que modo a relação de um famoso criminoso e um prodigioso detetive poderia ser representado em uma história mais contemporânea.


Turn static files into dynamic content formats.

Create a flipbook
Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.