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“N
ós não passamos de poeira de estrelas”, poetizou certa vez o imprescindível cientista e astrofísico Carl Sagan (19341996) durante um episódio televisivo da versão original de Cosmos. Isso significa que sua mão direita pode ter vindo da galáxia Andrômeda e a esquerda de Centaurus, mas, sem dúvida, ambas surgiram da explosão de uma estrela, como tudo o que conhecemos. Seu fígado, sua mãe, a tinta e o papel desta matéria, a pizza da meia-noite, a noite, o entregador e a moto, tudo é feito da mesma coisa: átomos. Mas você, por acaso, já parou para pensar que a quantidade de átomos em nosso planeta é praticamente imutável? Ela pode aumentar quando um meteoro, meteorito, ou qualquer objeto cósmico que logre vencer nossa encouraçada atmosfera, atinja a superfície da Terra. Pode diminuir por meio de uma fissão nuclear, que em um reator transforma matéria em energia. “Ainda assim, a Terra não está engordando nem emagrecendo. Esse número é razoavelmente constante, porque é muito grande”, explica Fabio Gandour, cientista-chefe da IBM Research, colunista da Revista da Cultura, e o homem que parou para pensar sobre tudo isso.
O quântico cálculo da sobrevivência do planeta. Aliás, já parou para pensar em quantos átomos você consome diariamente?
TUDO COMEÇA COM OS PATOS
“A palavra sustentabilidade entrou na minha vida muito cedo, em 1972”, ano em que Fabio avançava para o segundo ano de Medicina na Universidade de Brasília. Pouco depois, começou a estudar alemão. Na época, um professor recomendou a ele a leitura do livro Os oito pecados mortais do homem civilizado, do austríaco Konrad Lorenz (1903-1989), dizendo que era uma obra essencial. “Pensei que era um livro de sacanagem, quentíssimo, hardcore.” Afoito pela malandragem literária, Fabio pesquisou na biblioteca da universidade e encontrou uma versão justamente em alemão. Então, resolveu unir o útil ao agradável. Mal sabia ele que não se tratava da nata da literatura erótica europeia, e sim da obra de um talentoso etnologista dedicado a estudar o comportamento animal – no caso de Lorenz, os patos. “Foi esse cara quem descobriu que o primeiro ser vivo que o pato vê quando nasce se transforma no seu genitor. Não importa se esse ser vivo é um rato, um gato ou um humano. Ele se torna o elemento de ligação com a biologia protetora, se torna uma impressão genética. Por isso, o Lorenz tem fotos belíssimas dele e uma fileira de patos atrás.” Lendo esse livro, Fabio tomou contato pela primeira vez com palavras como ecologia, meio ambiente, bioenergia. Adotou, desde então, uma precoce atitude sustentável, reciclando o lixo, morando perto do trabalho e, “para desespero da minha terceira mulher”, jamais tendo mais de um carro na garagem. Aliás, se
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J u n i o r
B e l l é
possível mantê-lo ali, desligado, tanto melhor. Só que ele leu essas palavras em alemão, o que dificultou a conexão com os termos em português quando a febre da sustentabilidade emergiu e se tornou familiar a boa parte das pessoas, especialmente após a Convenção da Diversidade Biológica Rio 92. “Aliás, na Eco 92, eu lembro de ter escutado tudo aquilo e pensado ‘what porra is that?’”. Demorou alguns anos para que Fabio ligasse aquela onda ecológica a tudo o que lera décadas antes. O fato é que o pesquisador via com olhos pessimistas os empenhos pela sustentabilidade. Todos pareciam desconectados de uma realidade matemática, mesmo diante de necessidades tão objetivas: diminuir a poluição, limpar o planeta e criar modelos que sustentem a vida. Ele tinha para si que era necessária uma nova abordagem sobre o tema, e estava ciente de que muitas vezes é preciso revisitar os clássicos para chegar a algo novo. Fabio tirou a poeira do velho Konrad Lorenz e se pôs a calcular. “Todo cientista é louco por medições; eu não sou diferente. Essa característica pode transformar qualquer um num chato insuportável, ao menos era o que dizia minha quarta mulher”, diz Fabio, antes de gargalhar sobre o complemento, esclarece: “Mas agora parei, estou com a quinta”. Foi a paixão pelas medições, e não pela esposa, que o levou a questionar como o consumo pode relacionar-se com a saúde do planeta. Esta, obviamente, não é uma questão inédita; afinal, o consumo é fator central do adoecimento planetário. É mesmo considerado o motor do sistema causador dos mais perigosos males. A diferença no raciocínio de Fabio é que ele não aferiu o consumo de dinheiro ou de recursos naturais, mas, sim, do consumo de átomos. Para ter uma primeira ideia se sua maquinação tinha fundamento, ele colocou em um gráfico duas variáveis. No eixo horizontal, listou o tempo a partir do ano 1750 até 2050, já no eixo vertical estão os dados populacionais do planeta. “Por que 1750?”, pergunta, antecipando a resposta antes de qualquer meneio, “porque é quando começamos a medir o número de habitantes no planeta, e é claro que, a partir de 2015, trata-se de uma projeção”. O resultado é uma curva ascendente e constante, que cruza o ângulo entre os dois eixos em uma diagonal perigosa. Fabio calculou então o número de átomos existentes na Terra e chegou à estratosférica quantia de 10 elevado à potência de 50. “O passo seguinte foi dividir o número de átomos pelo número de habitantes e, bem, a conclusão é assustadora”, conta, apontando para a tela onde se vê uma segunda curva, da mesma forma constante, mas, desta vez, em uma descendente cuja porção final dá um rasante temerário próximo ao eixo horizontal. “O que temos aqui é simples: se o número de átomos é constante e o número de habitantes só faz aumentar, o que teremos é uma quantidade cada vez menor de átomos por habitante.” A pergunta que deriva desta conjectura é mais filosófica do que técnica: como estes átomos estão sendo consumidos? Como nós, humanos, estamos utilizando a parte que nos cabe dessas par-
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ilustração: carol grespan
QUANTOS VOCÊ CONSOME POR DIA?
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| ciência | tículas fundamentais? Fabio dá algumas pistas: “Os átomos podem ser consumidos na forma de macarrão a bolonhesa, ou na forma de uma Ferrari, não importa, são átomos do mesmo jeito”. Tudo se resume à questão de você poder comer a massa ao molho ou comprar um possante de luxo, ainda que, de qualquer forma, o dinheiro com que pagará o restaurante ou a concessionária também é feito de átomo. Temos, portanto, um problema que se multiplicou por brotamento: a população cresce, assim como o consumo de átomos; consequentemente, a quantidade disponível por pessoa diminui em uma descendente preocupante. Em outras palavras: o problema não é simplesmente haver cada vez mais gente, mas também que toda essa gente consuma cada vez mais macarrão a bolonhesa e automóveis. O problema é o consumo ser um motor de desenvolvimento, pois esse motor superaquece todo o sistema e pode terminar por fundir a máquina toda. “Ou seja, já não bastasse a encrenca em que estamos, temos aí uma terceira variável nessa história: o aumento do consumo de átomos por pessoa ao longo do tempo.” Partindo destas hipóteses alicerçadas na matemática, Fabio buscou avançar para uma análise mais imaginativa, porque ele apenas tateia as intrigantes possibilidades de sua pesquisa. “Você sabe qual molécula vai acabar antes? É irônico, mas é a substância mais abundante, aquela que surge da junção do hidrogênio e do oxigênio: a água.” Certo dia, Fabio discorria sobre suas teses atômicas em um encontro aberto ao público quando um ouvinte, no canto da plateia, ergueu a mão e o contestou. Segundo ele, suas ideias eram uma adaptação de outras mais catastróficas teorizadas pelo economista britânico Thomas Malthus (1766-1834). “Ele escreveu que a espécie humana é inviável. De acordo com a visão dele, o melhoramento das técnicas de produção de alimento não acompanharia o crescimento populacional; então, não teria comida para todos.” O homem que contestava Fabio era funcionário da Embrapa, e argumentava que a produção de alimentos só fazia aumentar, o que decretaria, portanto, a extinção da tese. “Mas essa história de faltar átomos não tem nada a ver com malthusianismo. É outra coisa.” Para começar, o modelo que o cientista-chefe da IBM adotou não é econômico, mas aritmético, e, de qualquer forma, ele e seu contestador concordam: não faltará comida. O que vai ficar cada vez mais raro são os átomos, que podem ou não ser consumidos em forma de comida. Podem ser consumidos em forma de revista, como esta. Em forma de celulose, como esta. Em forma de olhos, como esses dois que leem estas palavras, que também são feitas de átomos. Além do mais, Malthus matutou sobre tudo isso em outra época e durante décadas e décadas. Ele já era um homem de 37 anos quando o químico e físico John Dalton (1766-1844) conseguiu provar cientificamente a ideia do átomo, em 1803. Fabio é um contemporâneo, vive em uma era em que a ciência busca empirismos para chegar até o centro desse átomo; tempos em que se chocam hádrons, se encontra o Bóson de Higgs e se fala na antimatéria. Agora, Fabio aponta a escassez atômica, uma ideia nova que ainda busca horizontes, estudiosos, teses e antíteses. Mas que, ao menos aritmeticamente, já faz sentido. c
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ilustração: carol grespan
NADA DE MALTHUSIANISMO