Os caraminguás suficientes para comprar um tempo para si

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OS CARAMINGUÁS SUFICIENTES PARA COMPRAR UM TEMPO PARA SI P O R

J U N I O R

B E L L É

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O celular de Fabiola faz seu estardalhaço matinal. Um submisso a chama, como é seu dever, para despertá-la todas as manhãs, em horários variados. Como é terça-feira, a ligação soa às 7h30. Em ponto. Fabiola recusa desdenhosamente a chamada, espreguiça-se e corre tomar um banho rápido. Já o café, toma enquanto veste a roupa que deixou separada na noite anterior, pois não confia, de forma alguma, em sua celeridade matinal. Ela vive na enorme Santiago do Chile, e ainda que o metrô fique a poucas quadras, uma vez dentro dele, quase duas dezenas de estações a esperam com seus vagões e corredores abarrotados, assim como ela as espera com um bom romance nas mãos, “para fazer desse momento do dia algo um pouco mais ameno”. Quando alcança a 18ª parada, Fabiola encontra a monitora da Fundação para a Promoção e Desenvolvimento da Mulher (Promedu), de quem é assistente e com quem viaja mais 20 estações até a comuna de “Granja”, onde, por meio da fundação, elas desenvolvem oficinas de capacitação para mulheres assentadas. Perto das 14h, ela está de volta. Confere a agenda e percebe que há uma sessão sadomasoquista para aquela tarde. E assim Fabiola assume então sua segunda profissão: a de dominatrix. Ela faz um leve esforço mental para se lembrar das conversas telefônicas com o cliente e transforma essas informações em um lampejo breve, a fim de repassar rapidamente o esquema mental do que fará. “Costumo encontrar o personagem – como chamo – em um bar próximo, onde faço uma pequena entrevista, para saber da experiência dele, seu nível de dor e as práticas favoritas dele para mesclá-las com as minhas.” Posteriormente, dirigem-se para o apartamento de Fabiola, “a sessão dura cerca de uma hora”, e tão logo o cliente põe os pés na rua, ela se despe das roupas negras, chibatas, ceras quentes e máscaras, para se devolver aos estudos. Suas aulas no curso de Orientação Humana e Familiar no Instituto Carlos Casanueva começam às 18h30 e terminam apenas quatro horas depois. “À noite, costumo ler as notícias ou navegar pela internet. Nos fins de semana, desconecto de tudo isso. Sexta e sábado vou a shows, em geral punks, e relaxo ao lado dos meus amigos.” Avaliando sua agenda conturbada, Fabiola alegra-se ao poder viver sem a presença sempre incômoda de um chefe respirando em seu cangote, “sem precisar ir para um mesmo lugar de segunda a sexta e cumprir oito horas. Tenho esse privilégio, mas preciso aprender a aproveitá-lo melhor”. Afinal, para ela, qualidade de vida é mais do que simplesmente ter sob controle as necessidades básicas, “acesso a uma casa, saúde e educação dignas, um tempo para recreação é importante. Mas qualidade de vida é poder passear pela praça só por passear, cultivar uma intensa tranquilidade mental, estudar algo de que goste e então trabalhar no que te apaixone, ter uma vida sexual plena, festejar seu corpo e sentir-se bem com ele”. Simples assim. FABIOLA MIRANDA, 32 ANOS, MONITORA ASSISTENTE E DOMINATRIX

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FOTO: JOSÉ DE HOLANDA FOTO: ARQUIVO PESSOAL

Ziguezagueando entre as mesas de madeira do pequeno restaurante, ora com a bandeja na mão, ora com histórias na ponta da língua, está Luis Borges da Silva: homem de baixa estatura, pele parda, memória instantânea e movimentos ágeis. Para chegar até o trabalho, Luis acorda às 5h, corre para o banheiro, resolve as higienes o mais rápido que pode e se despede da esposa, com quem é casado há nove anos. Precisa estar no ponto de ônibus próximo a Interlagos a tempo de pegar a primeira das quatro conduções que o levarão até Perdizes, Zona Oeste de São Paulo. “Trabalho das 7h às 16h em dia de semana, sirvo um monte de mesas, converso com um monte de gente. Tem domingo que trabalho também, até umas 15h; quando é correria pesada, atendo mais de 200 clientes.” Luis chegou a São Paulo há três anos, a princípio apenas para fazer uma operação de apendicite, mas, como a recuperação se deu antes do que o previsto, aproveitou o tempo de sobra e procurou um bico com a ajuda dos oito irmãos que havia décadas já moravam na capital paulista. “A gente tem que trabalhar pra pagar as contas. Vivo de aluguel e acho que uma boa qualidade de vida passa por ter uma casa própria. O trabalhador deixa boa parte da renda nisso, não sobra muito para outras coisas.” Qualquer uma dessas “outras coisas”, segundo Luis, seria um bom começo, “mesmo um carrinho, pra fugir desse tanto de condução, já melhoraria muito a vida”. Quando ele olha para seu dia a dia e lembra das andanças pelo Brasil – já morou em 12 diferentes cidades –, não titubeia em pontuar o que, hoje, seria essencial para uma alta qualidade no que diz respeito a sua existência: “Preciso dar uma desacelerada. A gente está sempre correndo pra não perder o ônibus, pra não chegar atrasado no emprego, pra pagar a conta no dia. Queria descansar um pouco, e queria, também, poder voltar pra Campina Grande (PB) e ver minha mãe com mais frequência. Mas pra isso preciso de mais dinheiro. Se fosse só trabalhar mais, tudo bem, só que não sobra tempo pra um segundo emprego”. LUIS BORGES DA SILVA, 40 ANOS, GARÇOM

Vanderlei costuma dormir depois das duas da madrugada e acordar perto das sete, “mas não sinto, absolutamente, falta de sono. Minha carga é de cinco horas e sempre fui assim desde a época de estudante”. De qualquer forma, ele define seu dia a dia como “uma estressante rotina de 14 horas de trabalho”, e conclui haver “uma dificuldade muito grande de harmonizar as questões de natureza particular, familiar e profissional”. Essa dificuldade, “que pode ser resumida como uma busca incessante” para equacionar as demandas pessoais às impostas pela sociedade, segundo Vanderlei, é a pedra angular de uma boa qualidade de vida: “As pessoas costumam achar que somos senhores de nós mesmos, mas isso não é verdade”. Estamos reféns de uma “agenda tirana”, obcecada por respostas e horários, responsabilidades e soluções que nem sempre estamos prontos, ou dispostos, a dar. Ele, entretanto, admite sua incapacidade de harmonizar suas agendas, considera-se muito pragmático e perfeccionista com os negócios, o que o leva a relegar a própria vida pessoal às brechas de seu tempo. E assim é há décadas, desde os idos em que trabalhava na Fundação Oswaldo Cruz, ou mesmo no Ministério da Saúde, ao lado dos ministros Borges da Silveira e Dr. Jatene nos governos de Figueiredo e Sarney. Atualmente, é sócio-diretor da Ultra Indústria de Escovas Dentais, ao lado do filho, Rodrigo, “que é, aliás, minha esperança de salvação nesse tema de qualidade de vida; ele já se responsabiliza pelas tarefas internas da empresa, logo poderá fazer esse voo solo e, aí então, terei mais liberdade para as minhas demandas pessoais”. É a crença de Vanderlei, que sonha viajar para Madri e empenhar-se em um doutorado em economia. VANDERLEI GARCIA DONINI, 61 ANOS, EMPRESÁRIO

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Já faz alguns anos que Jackeline não sabe o que é rotina. Mas isso não significa que sua agenda lhe dê alguma trégua. Modelo, recepcionista de eventos e editora de vídeos em sua produtora, ela está sempre entre salões pomposos, sessões de foto e horas diante da tela de um computador. Um bom exemplo de sua escala atribulada de trabalho foi a semana em que concedeu esta entrevista, a qual teve de ser remarcada quatro vezes: Jackie passou três dias inteiros na feira de gestão HSM, um dia em um evento da Universidade Mackenzie e ainda via o prazo de entrega da edição de um vídeo se esgotar rapidamente. “Esta semana está sendo o que chamo de qualidade de vida zero”, brinca. Ela explica que nem sempre é assim, há semanas menos intensas e há, também, aquelas em que ela decide não trabalhar, “mas isso só acontece quando estou com uma grana guardada, claro”. Com o sorriso largo e gargalhadas incansáveis, ela admite que se diverte em muitos dos eventos, “especialmente quando faço a recepção de bons shows”, e ainda que sua natureza otimista a faça recusar-se a reclamar da vida, existem alguns ajustes que ela adoraria fazer. “Hoje não trabalho para minha felicidade, para daqui a algum tempo poder viajar, dar um tempo em algum lugar, comprar coisas ou mesmo farrear com os amigos. Trabalho para pagar contas. Isso é algo que me dá uma qualidade de vida apenas relativa.” Para Jackeline, apesar de qualidade de vida ter uma relação íntima com estabilidade econômica, acima de tudo, é com a felicidade relativa à rotina escolhida por cada um que se encontra seu segredo, ao menos a longo prazo: “É necessário construir um dia a dia agradável, mesmo que corrido, e ver beleza nas coisas. Amo o que faço, só gostaria de ter mais tempo para tratar dos meus próprios negócios, meus projetos. Isso só o tempo, ou a loteria, podem me dar”.

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JACKELINE PEREIRA SILVA, 28 ANOS, MODELO E EDITORA DE VÍDEOS

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A vida que Loki escolheu e cultivou é de fazer inveja. Ele calcula que passa 40% do ano viajando, seja para discotecar, seja simplesmente para conhecer novos lugares, outros compadres e comadres. A porcentagem restante, ele gasta em sua cidade natal, Nova York, trabalhando durante o dia como técnico de vídeo em uma estação de TV, e à noite colocando os locais para sacudir. “Mas esse trabalho em NYC depende da demanda. Muitas vezes, fico em casa apenas compondo. Na estrada, a rotina também é bem variada. Mas, em geral, estou dividido entre as burocracias de aeroportos e meios de transporte, as agendas de DJ e os rolês de turista, ou as festas com amigos que vou fazendo e deixando, para uma hora voltar.” Loki conhece boa parte do mundo, não consegue imaginar uma vida em que não esteja em trânsito, mas uma espécie específica e rara de trânsito: “O movimento de novas descobertas”. No momento, ele está em Santiago do Chile, fazendo alguns shows e gravando músicas ao lado do amigo e músico chileno DF Raff e da banda Tunacola. “As pessoas me dizem ‘poxa, que legal essas suas férias’, mas eu não estou de férias. Alguns dias até saio para fazer caminhadas ou ir para montanhas, mas a maioria do tempo em que estou no Chile, passo ou trabalhando ou tentando trabalhar: gravando, compondo ou tocando.” Essa rotina de viajante e DJ oferece a Loki boa parte do que ele considera essencial para uma alta qualidade de vida. “Sou um cara de muita sorte e acredito em Deus, por isso, estou muito agradecido a todas as oportunidades que Ele tem me dado. Uma vida incrível e única.” Mas é claro que, como é da natureza humana, sempre há algo a ser conquistado. Loki viveu a maior parte de seus 34 anos solteiro, e, apesar de sentir-se muito feliz consigo mesmo neste momento, diz que “eventualmente,” terá uma família, “então as coisas tendem a mudar e, sinceramente, acho que elas têm tudo para ficar ainda melhores”. LOKI DA TRIXTA, 34 ANOS, DJ E VIAJANTE

FOTO: JOSÉ DE HOLANDA

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FOTO: ARQUIVO PESSOAL

FOTO: DENISE SOARES

Durante cinco anos, Jeferson foi editor de esportes do maior periódico da região dos Campos Gerais, interior do Paraná. Ele vivera sua vida toda na cidade de Ponta Grossa, graduou-se na universidade estadual sediada na cidade e sentia borbulhar dentro de si a necessidade da ruptura. Em uma manhã, em meados de 2012, ele inflou o peito e pediu demissão, colocou a mochila nas costas, e, com a grana da rescisão, decidiu viajar. Destino: África. “Tomei essa atitude justamente por entender que qualidade de vida é fazer coisas nas quais se tenha o mínimo de prazer e um pouco de alegria, algo que não estava acontecendo e que achava que poderia encontrar dando um tempo para mim.” O jornalista passou, então, quatro meses viajando pela África do Sul, Namíbia, Botswana, Zimbábue, Zâmbia, Tanzânia, Suazilândia e Moçambique. “Acho que qualidade de vida passa – também – por estar bem e em paz com você mesmo, dar prioridade às suas necessidades.” Quando retornou, ele aguardava tempos financeiros turbulentos. Mas parece que o estágio desanuviador que passou nas terras de Craveirinha e Miriam Makeba o ajudou também a assoprar para longe as névoas de incertezas do mercado: foi convidado a assumir a direção do jornal onde antes era editor. “Voltei com uma bagagem pessoal muito grande. Agora, tenho um trabalho que me exige uma rotina mais puxada, e acho que tudo o que aprendi viajando serviu para me ajudar a encarar um novo posto que pede muito mais dedicação, e, consequentemente, mais pressão.” Ele trabalha cerca de sete horas por dia, mas seu turno começa apenas no período vespertino. Assim, pela manhã, faz sua meditação, alguns exercícios, especialmente corridas e pedaladas, e cozinha seu próprio almoço vegetariano sempre que possível.

“Minha rotina é, basicamente, de 12 horas de trabalho, muitas vezes sequer almoço: como algo em torno das 15h30 e continuo trabalhando.” Lucas mora em Curitiba, é dentista especialista em Cirurgia e Traumatologia Buco-maxilo-faciais e casado com uma colega de profissão. Tem dois filhos, o maior com 8 anos e o caçula com apenas 11 meses. Para pagar as contas, ele percebeu que precisava trabalhar dobrado: divide suas manhãs entre cinco consultórios particulares, e toda tarde cumpre as duras parcelas de suas 20 horas semanais no sindicato da construção civil, Sinduscon/Seconci – PR. Felizmente, Lucas acredita que o trabalho ajuda a manter a mente saudável e o ego satisfeito, “porque, no fundo, é também na profissão que a gente se realiza, faz planos e almeja melhorar”. Mas, ainda que tenha gosto pelo que faz, toda essa correria afeta algo em especial, que o leva a questionar sua qualidade de vida: “Não tenho o tempo que gostaria de ter para estar com meus filhos, com minha família, ou mesmo sair com os amigos, voltar a fazer os esportes que parei de praticar”. Qualidade de vida, portanto, passa por trabalhar menos, mas sem diminuir a renda. “Ou seja, para chegar a isso, precisamos de um respaldo financeiro. Ninguém está imune a tragédias, infelizmente.” Mas uma dessas tragédias, impreterivelmente, vem se repetindo, e desconhece, até o momento, qualquer sinal de fim: “Há mais de dois anos que não tenho tempo de buscar meu filho mais velho na escola. Até o levo vez ou outra, mas não sei mais o que é encontrá-lo com o uniforme do futebol, feliz da vida por ter feito um gol. Sei que é uma coisa pequena, mas exemplifica bem essa matemática, pois, para mim, é algo muito importante e me parte o coração perder essa fase”. LUCAS CAETANO UETANABARO, 31 ANOS, DENTISTA

JEFERSON AUGUSTO, 30 ANOS, JORNALISTA r evis t a dacultura.com.br

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