O inverno das escolas de samba

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O INVERNO DAS ESCOLAS DE SAMBA OS ESFORÇOS, AS AÇÕES, OS PROJETOS ASSISTENCIAIS E A UNIÃO COMUNITÁRIA PARA SUSTENTAR DURANTE TODO O ANO A POSSIBILIDADE DA FOLIA DE UM SÓ MÊS POR JUNIOR BELLÉ ILUSTRAÇÕES MAURICIO PLANEL

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ão apenas de ziriguidum é feita uma escola de samba. Há mais entre a comissão de frente e a velha guarda do que supõe nossa vã folia. O verão morre quando março avança sobre o samba enredo, triste como a cuíca de Cartola chorando baixinho no fim de Preciso me encontrar. Trata-se do outono que se anuncia no Carnaval de todos, trata-se da fantasia vestindo seu traje de realidade. Nada mais do que a simples alegoria da vida: um mês de alegria para cada ano de luta. Mas, se você acha que nos galpões do samba tudo ao redor de fevereiro é uma grande quarta-feira de cinzas, não poderia estar mais enganado. “As agremiações representam muito mais do que um espetáculo carnavalesco”, afirma Renato Cipriano, membro da direção de Carnaval da Acadêmicos do

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Tucuruvi. “Muitas são espaços comunitários, onde seus integrantes exercem a cidadania. São organizações que, por meio do ensino de tradições culturais, da música, do canto e da dança, proporcionam educação e inclusão social a sucessivas gerações.” Ele garante que sua escola, que compõe o grupo especial de São Paulo, “tem realizado vários projetos que beneficiam integrantes da escola e moradores da região durante os 365 dias do ano”. Um deles é o Viva o Leite, encabeçado pelo governo do Estado. O galpão da escola é o ponto de entrega e o centro de operações do projeto, que beneficia 150 famílias do Tucuruvi. Pode parecer puro assistencialismo, mas o fato é que as escolas de samba foram – e ainda são – enclaves de afirmação cultural no coração de regiões castigadas pela luta de classe. Não é fácil fazer do desfile um arremedo, tampouco formar boas baterias quando a prioridade não é a música, mas a sobrevivência. “É por isso que temos a Escolinha de Bateria”, explica Cipriano. Todo sábado, as crianças se reúnem para aprender a tocar as percussões,


“posteriormente elas poderão integrar a bateria principal e, inclusive, desfilar com os demais integrantes”. As aulas são gratuitas, os objetivos não: há tantos Carnavais quanto abismos sociais pela frente. O próximo está logo ali, espreitando o pôr do sol de 2014 e só esperando a Acadêmicos do Tucuruvi entrar na avenida e cantar seu próximo refrão, que narrará a história do próprio Carnaval.

como, onde e quando?

Segundo o pesquisador Sergio Cabral em As escolas de samba: o que, quem, como, quando e por que, a palavra “samba” foi encontrada pela primeira vez no jornal pernambucano Carapuceiro, de 3 de fevereiro de 1838. Nele, um frei chamado Miguel do Sacramento Lopes Gama vocifera contra algo que denominou de “samba d’almocreve”. Infelizmente, nem o frei tampouco os demais artigos da época dão maiores informações sobre o que seria isso. Ao longo do século 19, a palavra “samba” foi pipocando mais e mais nos jornais. Em geral, denominavam diferentes ritmos e danças introduzidos e praticados pelos escravos africanos. O pesquisador Nelson da Nóbrega Fernandes – falecido em junho último – registra, em seu livro Escolas de Samba: Sujeitos celebrantes e objetos celebrados, que essas manifestações podiam ser encontradas em um amplo espaço geográfico: “Desde o Maranhão até São Paulo, formando uma espécie de região do samba”. De acordo com estudos de Nóbrega e Cabral, “samba” é uma corruptela de “semba”, cuja definição no dicionário dos termos afros dita: semba designa a música urbana herdeira do lundu e da modinha, impregnada de ritmos fundamentais africanos, surgida entre as décadas de 1910 e 1920 na Cidade Maravilhosa. Para Nóbrega, há um “consenso” entre os estudiosos: o samba, ao menos como gênero musical, não nasceu simplesmente no Rio, mas é carioca de tudo, como um malandro festeiro dos bairros populares: “Principalmente na Cidade Nova e no Estácio. Foi nos pagodes da casa de Tia Ciata que surgiu, em 1917, Pelo telefone, música do gênero reconhecida como a primeira a ser gravado em disco”, escreve Nóbrega. Ele lembra ainda que antes de Pelo telefone foram gravados ao menos outros dois sambas – Em casa de baiana e A vila está magoada. Nenhum alcançou a glória das rádios e o coração dos amantes como os versos: “O chefe da folia / Pelo telefone manda me avisar / Que com alegria / Não se questione para se brincar / Ai, ai, ai / É deixar mágoas pra trás, ó rapaz /Ai, ai, ai / Fica triste se és capaz e verás”. r evis t a dacultura.com.br

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Não foi apenas o fato de o Rio de Janeiro ser a capital federal que contribuiu para a explosão do samba em seus subúrbios. A cidade estava à mercê de um momento histórico ímpar, algo que a alçava à categoria de metrópole e que trazia consigo uma conturbação de angústias naquele começo de século. Outro pesquisador das origens do samba, este chamado Roberto Moura, aproxima o Rio daqueles idos à belle époque europeia, particularmente na produção e avidez de cultura. Tratava-se de um público novo e modernizado, composto de jovens com ideários em perigosa expansão para o status quo aristocrático. Essa gente não se satisfazia mais com pueris entrudos, sequer com os folguedos e as festas religiosas. Por isso, aboletavam-se nos teatros de revista, nos cafés e nos inéditos cinemas. Apesar de extremo, Nóbrega elucida que esse assanhamento cultural não era exclusividade carioca, pelo contrário, os cariocas serviam-se dessa efervescência para elevá-la a patamares jamais vistos no hemisfério sul. “Para lá se dirigiam excursões sul-americanas de companhias francesas, portuguesas e espanholas que difundiam diferentes gêneros musicais como polcas, xotes, mazurcas, valsas e cançonetas que muito frequentemente caíam de forma intensa no gosto popular.” Foi dessa forma que vários ritmos entraram no radar dos auês fluminenses e pouco a pouco ganharam espaço nos festejos. Os mais impactantes foram a modinha, o lundu e o maxixe. Estes três formam a linha evolutiva que desembocou no samba. O que os une é o aprofundamento da negritude em seus ritmos e coreografias. Não à toa, os primeiros sambas são considerados “amaxixados”. Muita gente passou desde os sambas amaxixados até os modernos, entre eles os inesquecíveis Sinhô, Donga e Pixinguinha. Ritmicamente, a evolução do samba exigiu não apenas que a percussão fosse repensada, mas também que instrumentos novos fossem construídos, como a cuíca e o surdo, cujo impacto rítmico favorecia a evolução dos blocos pelas ruas, os cordões e seus desfiles cada vez mais populares. Tudo isso desembocou em um modelo de festa em cuja base estavam as escolas de samba.

O MISTÉRIO

A modernização do samba, de certa forma, o domesticou. Nas primeiras décadas do século 20, o Carnaval carioca era a maior festa do gênero e

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a Avenida Rio Branco, sambódromo do “Carnaval chic” dominado pelas elites, continuava ostentando-se como palco principal da cena carnavalesca. Nas ideias da aristocracia, tudo estava em seu lugar: a festa popular tinha seu espaço, mas a legitimidade dela sambava sobre suas mãos brancas, alvas, sem calos nem criatividades. Mas é claro que algo singular e enigmático estava por acontecer. “Literalmente falando, vemos que os anos iniciais das escolas de samba se constituem no momento mais espetacular daquilo que estudiosos da cultura brasileira chamam de ‘mistério do samba’”, escreve Nobrega. A incógnita, neste caso, era entender como um gênero emergente das classes mais baixas, produzido por negros e mestiços, então um estrato extremamente estigmatizado, logrou alcançar a hegemonia cultural tão rapidamente. Pois o fato é que os cordões e ranchos – os embriões das escolas de samba – nasciam no subúrbio e inundavam a orla quando desciam como enxurrada. Não havia chiquê que lograsse manter a hegemonia diante de uma comoção percussiva – e lasciva – que só fazia desrespeitar a estratificação social da época. Mais do que preâmbulos dos grandes desfiles e tradicionais agremiações, as escolas começam a ganhar contornos de pertencimento social, de construção de identidade e de resistência. Tais contornos, com o tempo, tornaram-se marcas, rugas, histórias. Viajando décadas adiante e descolando-se no espaço, encontramos Tiarajú Pablo D’Andrea, sociólogo dedicado a entender a construção dos sujeitos periféricos. Neste processo, ele explica que a escola de samba teve – e ainda tem – um papel imprescindível: “É um local de defesa das tradições e do orgulho negro. A escola de samba Nenê de Vila Matilde é uma das mais zelosas nesse sentido. Ela foi fundada em 1949, por negros expulsos de São Paulo pelos processos de higienização que ocorreram no centro da cidade em princípios do século 20”. Ele acredita que as escolas ainda cumprem sua função de coesão da comunidade, de organização popular e de criação de identidade. Entretanto, ressalta que há uma sombra se esgueirando da ousadia do carnavalesco: “Houve uma mudança de temática nos sambas-enredo. Diminuiu muito a quantidade de sambas críticos; atualmente, essa relação de resis-


tência quase não passa pela música”. Ele toma como exemplo a Unidos de Vila Isabel e a Mangueira, que entoaram “verdadeiros hinos de justiça social e defesa da causa negra no Carnaval de 1988”. Um ano depois, Joãosinho Trinta, por sua eterna Beija-Flor, levava os mendigos da cidade para desfilar diante de um Cristo Redentor trajado de farrapos. Note a diferença: “Dificilmente uma escola de samba hoje em dia faria uma crítica tão direta à classe política. Sinal dos tempos, no Carnaval 2012, o tema dos Gaviões da Fiel foi uma homenagem a Luíz Inácio Lula da Silva. Por sua vez, no mesmo 2012, a Vai-Vai homenageou as mulheres e seus componentes exibiam camisetas com o símbolo da escola e a foto da presidente Dilma Rousseff ”.

LÁ SE FOI A PRIMAVERA

No Carnaval de 1981, a X-9 Paulistana cantou Herança de uma raça, composição de Rifai, Criole e Serginho. Talvez este tenha sido seu canto mais rebelde. Como as escolas do Rio, adaptou-se às imposições de financiamento, relegando a rebeldia ao assistencialismo e às brechas do Carnaval popular. Diante da contemporaneidade, a X9 destaca-se na organização comunal no Jardim São Paulo. Durante a entressafra, em parceria com a subprefeitura, ela realiza diversos projetos de cunho social e cultural. O mais conhecido é o show quinzenal, cujo line-up costuma sublinhar nomes de peso. “O último foi com o Fundo de Quintal. Esses eventos buscam arrecadar dinheiro e alimentos, que depois serão distribuídos na comunidade”, explica Ramon Lima, diretor de harmonia da escola. Ele conta que cada departamento tem independência para agremiar e levar adiante seus projetos. Há desde escolinhas de percussão e aulas de dança até cursos esporádicos cujos temas em nada se relacionam ao Carnaval. “Estas atividades de desenrolam ao logo do ano todo; é o que mantém a escola aberta para todos. Nosso intuito é ajudar a comunidade, devolver algo para ela.” Ainda que algumas dessas ações sejam imediatistas, uma delas acontece sempre, sem falta, faça chuva, faça sol, granizo, neve ou tempestade de grilos: “Todo domingo tem ensaio, sem choro. A escola não cobra nada de quem quiser desfilar, mas exige que participe dos ensaios”, reforça Ramon, lemc brando que a festa não pode parar. r evis t a dacultura.com.br

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