As rugas e os sulcos do instante decisivo

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AS RUGAS E OS SULCOS DO INSTANTE DECISIVO

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NAMORADOR DE CENAS E PAISAGENS, HENRI CARTIER-BRESSON, UM DOS GENITORES DO FOTOJORNALISMO, ESTABELECEU A HERANÇA DE GARIMPAR NOVOS ÂNGULOS ÚNICOS E REGISTRAR CENAS COM OLHOS QUE FUJAM DO LUGAR-COMUM 66

POR JUNIOR BELLÉ

oram raras as ocasiões em que Jean-Pierre Montier participou das fotografias. O autor de Henri Cartier-Bresson and the Artless Art e professor do Cellam (Centro de Estudos das Literaturas e Línguas Antigas e Modernas) na Universidade de Rennes, Alta Bretanha, consegue lembrar de duas ocasiões: “Uma vez, foi na Biblioteca teca Nacional da França [em Paris], no momento da entrega do Prêmio Nadar [Prix Nadar]. Eu estava no palanque para receber a premiação e fazer um breve discurso. Antes disso, ele me perguntou se eu poderia lhe emprestar minha [câmera] Leica. Certamente emprestei, e Henri fotografou não eu, mas minha mulher e minha filha, que assistiam à cerimônia. Ele as fotografou tendo ao fundo o busto de Voltaire, que estava na sala de recepção, sem que nem elas, nem ninguém mais tivesse dado conta que ele havia tirado essas fotografias!”. A segunda vez, em Aix-en-Provence, foi ainda mais elucidativa. Jean recém-terminara de apresentar sua dissertação, à qual Bresson havia dado assistência, e ambos passeavam juntos pelo campus. “Ele estava sem a sua máquina, não sei por que, mas me disse: ‘Olha!’. E apontou para um grupo de jovens garotas que estavam deitadas sobre os gramados da universidade. Ele simulou uma objetiva, colocando as mãos em frente aos olhos para formar um quadro e me disse ‘Pronto! As fotografias mentais são tão importantes quanto as outras! Essa aqui está na minha cabeça!’”


FOTO: DMITRI KESSEL//TIME LIFE PICTURES/GETTY IMAGES

Montier acredita que estas duas cenas ajudam a explicar que não existe um “método Bresson”, o que ele fazia era fluido, inseparável de sua pessoa e ao mesmo tempo quase imperceptível. “[o poeta francês] Yves Bonnefoy me contou que algo parecido aconteceu quando ele estava com Henri no dia em que ele produziu uma famosa fotografia em Simiane la Rotonde, perto de Ceirèsta, onde Henri tinha sua casa provençal.” Eles caminhavam pela vila e, durante o trajeto, Bresson sacou inúmeras imagens, de forma precisa e rápida, e foi de tal modo furtivo que Yves jura não ter visto nada. “Ele viu as fotografias de Henri depois de reveladas, e então ficou se perguntando como ele pôde não ter visto nada.” Se Bresson – que nasceu em 22 de agosto de 1908 em Chanteloup-en-Brie, na França, e morreu há quase 10 anos, em 3 de agosto de 2004, em Montjustin, no mesmo país – pudesse ser resumido em uma palavra, ela provavelmente seria uma onomatopeia, talvez uma onomatopeia à la Joyce, construindo neologismos com imagens, transformando-as em legados: “Gosto de fotografar, de estar presente, de dizer ‘sim, sim, sim’, como as três últimas palavras em Ulysses, ‘sim, sim sim’. Fotografia é isso ‘sim, sim, sim’, não há um ‘talvez’, todos os ‘talvez’ vão para o lixo, porque é um instante, uma presença, um momento. Por isso, essa profissão nos faz desenvolver uma grande ansiedade, porque estamos sempre esperando pelo que vai acontecer: ‘O quê? Han? Sim!’. Você está clicando e ‘sim, sim’. Se você está fotografando é ‘click, click, click’, como um animal sobre a presa, ‘vruuum’, e você a alcança. É uma questão de quando. Você sente tudo no seu corpo e, então, ‘vruaaa’. (…) Eu sou extremamente impulsivo, é um problema para meus amigos e família. Sou um poço de nervos. Mas tiro vantagem disso na fotografia: eu nunca penso, eu ajo”, explica o próprio Bresson em uma série de palestras organizadas por Cornell Capa em 1976 e lançada em DVD, em 2007, pelo International Center of Photography, expondo uma perspectiva nova sobre seu olhar fotográfico, dando relevo à impulsividade. Há um notório contraste, como explica Paulo Boni, professor do mestrado em Comunicação Visual da Universidade Estadual de Londrina: “Bresson era um ‘namorador’ de cenas e paisagens. Ele podia ficar minutos, horas observando, prestando atenção, analisando a luz, prevendo o instante da melhor composição”. Boni ressalta uma necessidade nova, uma herança de Bresson, aquela que impõe ao fotógrafo o desafio da garimpagem por um ângulo único, “de registrar a cena com outros olhos, que fujam do lugar-comum. Provavelmente ele estivesse antecipan-

do, em meados do século 20, aquilo que convencionamos chamar de ‘linguagem fotográfica’”. Foi Bresson quem mediu a distância entre a obra de arte e a fotografia medíocre: milímetros, os quais nomeou de “instante decisivo”. Este, a princípio, era apenas o título de um artigo dentro de sua mais conhecida obra teórica, datada de 1952, cuja capa leva ilustração de Henri Matisse (1869-1954), o Images à la Sauvette. Foi o editor Dick Simon quem emprestou o termo do artigo e rebatizou a edição em inglês. O fato de ganhar a capa certamente contribuiu para que o conceito do “instante decisivo” impactasse irremediavelmente a fotografia mundial. Entretanto, para Jean-Pierre Montier, há um fator muito mais importante: “A maneira como Cartier-Bresson concebeu a fotografia é, com certeza, diretamente associada à escassez de película. Como todos os repórteres de sua época, ele tinha perfeita consciência de que havia apenas um número muito limitado de fotos antes de precisar recarregar a máquina. Seu golpe de gênio foi ter feito dessa obrigação material uma restrição poética, no sentido usado por Paul Valéry quando disse que a poesia não é nada mais que restrições, e que

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a restrição é a base de toda a criação, desde que formalizada como uma norma de comunicação e de prazer estético. O caso do instante decisivo não é nada mais que isso”. Mas Montier admite que os avanços técnicos deram forma a uma relação diferente entre fotógrafo, objeto e receptor, o que fez avançar o fazer fotográfico até paradigmas estéticos já um pouco distantes da realidade de Bresson. “Na minha opinião, o fotógrafo percebeu isso, porque desde que chegaram as máquinas que tiravam várias fotos por segundo, a partir dos anos 1970, ele passou a desenhar.” A exponenciação da quantidade de imagens que podem ser capturadas é um ponto crucial para Vincent Moon, jovem e proeminente fotógrafo e cineasta parisiense, vencedor do Sound & Vision Award no Festival Internacional de Documentários de Copenhague de 2009. Em meados do século 20, a imagem era algo raro e, segundo ele, era justamente a raridade o que lhe dava um grande potencial de comoção. Mas, hoje em dia, as coisas mudaram: “Todo o consumo de imagem teve e tem um impacto imenso no nosso entendimento do que é um quadro, e está claro que as pessoas não estão bem preparadas para viver em um mundo dominado por imagens, estáticas ou em movimento”. O contexto histórico é compulsório com fotógrafos de todas as épocas, por isso, Moon afirma já não estar interessado no instante decisivo: “Acho que ele não foi bem compreendido, ou deram a isso muita importância. Nesse sentido, a citação de Robert Capa – ‘Se a foto não está suficientemente boa é porque você não está perto o suficiente’ – é muito mais profunda. Eu definitivamente trabalho com meu instinto e não penso muito enquanto fotografo. Mas toda a ideia do ‘instante decisivo’, o milissegundo que faria a diferença, humm, eu não acredito nisso, desculpe. Har-

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mônicas no espaço são meu interesse, seja quando estou trabalhando com tomadas longas e fluidas, e consigo ver as evoluções alongadas caminhando no cenário, seja como uma evolução do próprio instante decisivo”. Diferentes paradigmas de fluidez e beleza tem, pelo imperativo profissional, Pablo de Sousa, já que o fotojornalismo carrega nos pixels uma obrigação, uma função social: a de informar. “E a informação deve ser soberana, não posso, em detrimento daquilo que reporto, buscar somente o belo, o estético.” O fotógrafo convive com a tenuidade entre o informativo e o artístico diariamente, enquanto fotografa para revistas diversas. O balanço adequado entre ambas é o segredo, e Bresson sabia muito bem disso. Pablo lembra que ele praticou duas vertentes fotográficas que confluem, mas também se chocam: “O fotojornalismo e o autoral, que é um diário do mundo. Na linha de trabalho do Cartier, pela construção da imagem em si, esteticamente é fundamental ter essa exatidão que ele mesmo descreveu: ‘Fotografar é colocar na mesma linha de mira a cabeça, o olho e o coração’. Disso carrego comigo, quando no fotojornalismo, a busca de um caminho do meio: informar com beleza, com harmonia ‘formal’ dentro do quadro”. Afinal, como lembra Pablo de Sousa, para além da objetividade, “Bresson praticava a junção com a poesia visual, com as artes plásticas. Não há quem se pretenda fotojornalista sem ter uma ou várias c imagens dele gravadas no córtex”.

FOTO: FRANCOIS LOCHON/ GETTY IMAGES

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