Onde estão guardadas as memórias?

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Onde estão guardadas as memórias? Numa caixa? Numa estrela? Numa cabeça? Numa palavra? No carbono? No fundo do mar? Po r Jr . Bellé il u s tra ções CAROL G RESPA N

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isicamente, habitamos um espaço, mas, sentimentalmente, somos habitados por uma memória”, escreveu José Saramago, nos doando a pista inicial nesta busca, feita de letras, atrás das guaridas da lembrança. Pois, de fato, ela existe, mas existe no plural, mesmo cada uma delas sendo, essencialmente, singular. Aquelas que nos pertencem são passíveis de ser acessadas; a maioria de nós pode fazê-lo por meio de um esforço recordativo, de um exercício de lembrança. Elas, as memórias, parecem estar dentro de nossas ideias, parecem ser intracranianas e estar apenas esperando uma oportunidade para recordar. Dessa forma, nosso cérebro se converte no reminiscente supremo. Mas, e se ele não for tudo isso? E se elas não puderem ser monopolizadas sequer por nossas ideias, por nossa massa encefálica? Não estão também nas fotografias, nos filmes, nos livros? Não são eles, da mesma forma, seus repositórios e talvez até mesmo seus depositários? Não pulsa nas veias a memória genérica? Onde, afinal, elas estão guardadas? “Apesar de as transações neuronais serem realizadas em nosso cérebro, nossa memória é muito mais do que um circuito eletrônico. Ela se faz presente em todo o corpo, como é comprolado pelo testemunho dos bailarinos e atores, cujo ofício demanda uma memória que envolve o corpo e os sentidos, escapando da localização cerebral. Além disso, também podemos pensar numa memória social, ou seja, que se faz presente nas relações que estabelecemos e pode ser encontrada, por exemplo, por meio de tradições, comemorações, feriados e narrativas”, explica o psicanalista Luis Vinicius do Nascimento. De acordo com Nascimento, doutorando em Memória Social pela Unirio, nosso aparelho psíquico sequer pode ser considerado um bom repositório de relembranças, um lugar adequado em que elas possam ser guardadas. Muitas vezes, ele atua como “um verdadeiro censor de memórias” que não apenas as edita, mas também as inventa: “Na verdade, isso é muito mais comum do que imaginamos. Não é como um computador, no qual as informações estáticas são acessadas quando desejamos. Elas são vivas e estão em eterna mudança. É claro que algo permanece a cada vez que nos lembramos, ou que nos esquecemos, mas, aos poucos, nossas marcas também se alteram e as recordações são reinventadas”. Não há como dissociar nossos cérebros de nós mesmos; assim, nos tornamos natural e instintivamente produtores, inventores e reinventores de memórias. Alçados a esse patamar, nós, humanos, deparamos com um problema intrínseco a elas: sua inexpugnável brevidade, sua fragilidade fatalmente finita, aguardando a extinção pela simples imposição da morte. A fim de tentar tangenciar essas características, malandros que somos, inventamos algo capaz de alongar a existência de nossas lembranças e, assim, prolongar nossa própria existência: a linguagem. “A própria linguagem é portadora de uma memória. Todos nós já nascemos em um mundo que transpira linguagem por todos os poros, e é somente por meio dela que podemos lidar com o mundo que nos envolve. Além disso, a linguagem implica instrumentos que vêm modificando a forma como a expressamos através dos tempos. A invenção da escrita, por exemplo, é uma revolucionária forma de tentar enganar a morte ao perpetuar a marca de nossa presença através do tempo – um processo que teve seu início nas cavernas e que hoje encontramos refletido na computação nas nuvens, o cloud computing, e estou certo de que não vai parar por aí”, conclui Nascimento.

O CORPO FANTASMAL

Sabemos, portanto, que a memória está em nossas ideias, e também na linguagem, guardada binária e fisicamente. Podemos imaginar, então, que ela está nos museus e acervos, nas bibliotecas e em seus arquivos, e os arquivos estão em estantes. Isso significa que as estantes também guardam memória? Ela parece estar nos livros que abarrotam essas estantes, e os acervos e os arquivos. E mais, parece estar dentro deles, nas folhas, e dentro delas talvez haja uma memória que ora é feita de traças, ora de tinta. As tintas, quando com determinado contorno, guardam memórias em alfabetos. E podemos ir ainda mais longe. Essas reminiscências estão nas linhas, que são, do alfabeto, as estantes, cheias de vogais e consoantes, e essas, quando ordenadas em uma linha/estante, tornam-se palavra. r evis t a dacultura.com.br

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| reportagem | De acordo com Miguel Sanches Neto, escritor e professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa (PR), essa concatenação não é assim tão simples. Afinal, para que qualquer memória escrita faça sentido, é necessário um pressuposto capaz de lidar com ela: “As palavras precisam do ser humano, instrumentalizado historicamente, para despertar as recordações. Assim, as palavras só existem neste contato com experiências vividas ou imaginadas. Para habitá-las memorialisticamente, precisamos projetar nelas nossas vivências. É um processo de construção de sentidos”. No entendimento do escritor paranaense, há pelo menos dois tipos distintos de memória inscritos na linguagem: aquela fria, dos sentidos armazenados em livros, em dicionários; e outra quente, das experiências pessoais. “Uma palavra em estado de dicionário pode remeter a alguns sentidos, a alguns elementos históricos. Mas é a palavra em estado biográfico que nos representa. A palavra porco, num dicionário, dá a descrição de um animal. A palavra porco, para quem conviveu com eles na infância, remete a um mecanismo histórico e sensitivo que abre uma realidade revivida. Traz com ela uma reminiscência sensorial.” Ao escolher uma palavra específica, como “porco”, o escritor está respaldando uma lembrança, despertando-a em símbolos compreensíveis, inteligíveis, e, ao fazê-lo, revela sua própria memória. Ela está nas entrelinhas, e estas são a matéria-prima mais preciosa para os biógrafos, cujo ofício é justamente o de despertar e reescrever o que existiu e foi vivido. De acordo com Sanches Neto, isso ocorre pois a linguagem é o “corpo fantasmal” do escritor, e nele se pode existir “como uma réplica impalpável, que, entretanto, tem uma identidade. A linguagem é meu ser sem meu corpo. É meu ser como virtualidade. Um ser que só existirá ao encontrar outro que o vista, que o leia”. Percebemos, dessa forma, que a memória está nas palavras, ativadas por nossas lembranças, e que estas desempenham um papel duplo, pois não apenas a ativam, como também a guardam. Aí reside o “pressuposto humano” apontado por Sanches Neto, e é sua imprescindibilidade que nos leva diretamente a uma questão ainda mais intrigante: existem memórias que independem de nós, que existem sem esse “pressuposto humano”? Se sim, onde elas estão guardadas?

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A histÓRIA DA VIDA

A vida estava aqui antes de nós e provavelmente estará depois, quando já não estivermos. Havia vida na Terra antes do homo sapiens, antes de nosso cérebro incrivelmente desenvolvido e de nossa linguagem cheia de palavras e seus diversos sentidos. Qual a memória dessa vida e onde ela está? Apesar de distante, de difícil acesso e entendimento, ela conta sobre o que éramos até nos tornarmos, exatamente, o que somos. É nisso que acredita o Dr. Rubens Tadeu Delgado Duarte, coordenador de Biologia do Laboratório de Astrobiologia da USP, pesquisador da evolução microbiana e dos extremófilos. Por todos esses predicados, ele tem uma boa ideia de onde podemos procurá-la: “Muito do que conhecemos sobre a história da Terra vem de registros no fundo do oceano. Isso também inclui a história dos seres vivos, desde a primeira célula até o homem”. A água é a parideira da vida neste planeta, foi em suas vísceras que algumas proteínas, carboidratos e DNA surgiram a partir de reações espontâneas e se acumularam dentro de minúsculas bolhas de gordura chamadas micelas, o útero primitivo de todos nós, ratos, macacos, jacarandás, enfim, terráqueos. Toda a sorte de vida, e suas marcas, está debaixo d'água salgada se acumulando no leito oceânico, também chamado de sedimento marinho, dia após dia, ano após ano, desde o começo dos tempos. À medida que ele, o tempo, passa, os materiais ali depositados vão recobrindo-se, estratificando-se. “Dessa forma, a profundidade e a composição desse sedimento indica quais eventos aconteceram no oceano em épocas passadas, representando um grande registro da memória marinha. Se o oceano fosse um museu, acredito que haveria uma grande sala com a placa Sedimento Marinho escrito na porta e lá dentro uma infinidade de peças em exposição, com toda a diversidade de plantas, animais e micro-organismos habitantes das profundezas do oceano, que também contém registros únicos de sua história.” Duarte explica que a natureza conservou muitos registros do passado, e eles nos servem como base para entender de onde viemos. O desafio primordial é mapeá-los para então construir as ferramentas necessárias que os decifrarão. “A memória da natureza pode ser verificada, por exemplo, nos fósseis de dinossauros, nas rochas, nos elementos químicos e em muitos lugares. Um dos lugares que registram grandes lembranças, e também um dos menos explorados, é sem dúvida o oceano. Por exemplo, micro-organismos que habitam o sedimento marinho perto das fumarolas, a temperaturas de quase 400°C, contém enzimas e proteínas termoestáveis, isto é, resistentes a altas temperaturas. Considerando que a vida provavelmente teve origem no mar, essas moléculas adaptadas ao calor extremo podem indicar como eram as primeiras células.”

nosso tempo

Nossa espécie está neste planeta há 200 mil anos, já a vida, há 3,5 bilhões de anos. A Terra está no universo há aproximadamente 4,54 bilhões de anos, e o universo simplesmente existe há 13,81 bilhões de anos. Apesar de o tempo ser uma invenção humana, é nele que reside o registro de todas as espécies, de toda a vida, de todos os planetas e universos, caso tenhamos vizinhos. Dr. Dimas Augusto Morozin Zaia, professor associado da Universidade Estadual de Londrina (PR), trabalha com a interação entre minerais e biomoléculas, ou seja, aminoácidos e bases nitrogenadas do DNA/RNA, especificamente os minerais que existiam na Terra primitiva, quando ainda não havia qualquer vida por aqui. “Podemos dizer que os minerais, em certo sentido, guardam 'memórias' de eventos que ocorreram. Por exemplo: muito provavelmente Marte teve água líquida em sua superfície, e em apreciável quantidade. Como sabemos disso? Como chegamos a essa sugestão? Análises espectroscópicas mostraram a existência de argilas e zeólitas na superfície marciana e sabemos que, em nosso planeta, só podem ser sintetizados na presença de água. Portanto, os diferentes minerais dão uma indicação da condição existente na sua formação, e poderíamos dizer que isso seria uma evidência do que foi, ou do que aconteceu antes.” Mas o pesquisador sublinha que é preciso cautela, para que não haja uma interpretação errônea de que o universo é um ser vivo consciente da sua criação. Os seres vivos, inclusive nós, são os únicos conscientes que conhecemos, originaram-se dele. Como poetizou o astrônomo Carl Sagan, sintetizando essa ideia: “Somos todos feitos da mesma poeira de estrelas”. r evis t a dacultura.com.br

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| reportagem | Para Zaia, “quando Carl Sagan colocou essa frase, muito provavelmente quis dizer, entre outras coisas, que viemos das estrelas, pois os átomos dos quais somos feitos são sintetizados em estrelas ou explosões de supernovas”. Isso quer dizer que há uma possibilidade de sua mão direita ter vindo de uma constelação, e sua mão esquerda de outra. A memória de nossa constituição física brilha, reluz e explode. Mas o fato é que uma dessas “outras coisas” citadas por Zaia diz respeito ao potencial da ciência em investigar temas complexos, como a nossa própria origem. Ou seja, podemos explicar a origem do universo, dos astros, da Terra e da própria vida utilizando o método científico, por meio de experimentos, hipóteses e observações. De acordo com Zaia, existem substâncias específicas, como é o caso de aminoácidos, que podem ser sintetizadas em diversas condições, simulando assim não apenas as condições da Terra pré-biótica – uma mistura de gases, hidrotermais e outros elementos –, mas mesmo as do espaço interestelar. “Conhecemos até o momento uma única forma de vida: a terrestre. Não tivemos ainda contato com nenhuma outra forma de vida extraterrestre; portanto, não sabemos se seria ou não possível uma vida diferente da que conhecemos. Seria possível uma forma de vida em solvente para as reações bioquímicas que não fosse a água, ou que não fosse feita de carbono e assim por diante? Tudo isso é altamente especulativo e não temos respostas no momento.” Essa memória mais antiga, aquela que conta do nascimento do cosmos, é um sonho antigo perseguido por cientistas, por otimistas e filósofos. Para conhecê-la, é necessário recriá-la nas condições adequadas, com métodos estritos. Mesmo para imaginá-la é preciso vasto conhecimento. Mas como as demais memórias, em nossas fotografias, na literatura, no fundo do mar, ela pode ser por nós apreendida e, da mesma forma como essas derradeiras sílabas serão sua última lembrança, ela pode escapar por suas próprias frestas, editada, e refazer-se nela, por fim reinventada. Afinal, como escreveu Eduardo Galeano, “a memória guardará o que valer a pena. A memória sabe de mim mais que eu; e ela c não perde o que merece ser salvo”.

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