Só poetas

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uando Clinton Heylin lançou o livro reportagem From the Velvets to the Voidoids – A Pre-Punk History for a Post-Punk World, em 1993, uma declaração de Patti Smith – a mais bonita encruzilhada no caminho das pedras entre a poesia e o punk – reverberou pelo mundo como uma revoada de aspas libertárias pelas cinzas magazines culturais: “Eu não considero que escrever seja um ato quieto e solitário. Eu o considero um ato realmente físico. Quando estou em casa escrevendo na minha máquina, vou à loucura. Me mexo como um macaco, me molho inteira. Já molhei as calças escrevendo... Em vez de dar uns tecos, eu me masturbo – 14 vezes seguidas”. É possível que o vigor tenha ajudado, mas foi a ácida e doce verve da poesia de Patti, dos rifes de Smith, que a fizeram sobreviver ao apogeu, à morte e à ressurreição do punk. E ainda permanecer viva para contar toda essa história no livro de memórias Só garotos (tradução para o título original Just Kids), lançado em 2010 e vencedor do National Book Award na categoria não ficção, um dos mais importantes prêmios literários dos Estados Unidos. Só garotos não foi apenas um sucesso de crítica: permaneceu 37 semanas na lista dos mais vendidos do The New York Times. A história se passa em uma efervescente Nova York do fim dos anos 1960, onde o punk crescia como erva daninha no coração do Central Park. Na época, Patti e Robert Mapplethorpe eram apenas dois adolescentes que migraram para a metrópole perseguindo o sonho de se tornar artistas: ela queria ser poeta, ele queria ser fotógrafo. Não compartilhavam somente o mesmo sonho, por vezes também o mesmo quarto, a mesma cama, o mesmo prato, o mesmo tesão de carne, amor de impulso e devoção de amigo. Só garotos é o cumprimento de uma promessa que Patti fez a Robert de contar ao mundo a história que traçaram juntos. Entre os figurantes da trama constam lendas como Jimi Hendrix, Janis Joplin, William Burroughs e Allen Ginsberg, cujos encontros com Patti foram arquivados em detalhes na cachola das fortes lembranças da poeta. Mary Austin Speaker trabalhava como diretora de arte na Ecco, editora que publicou a versão original da obra, e por isso foi uma das primeiras pessoas a botar as mãos no original. “Não conhecia a Patti antes de começarmos a trabalhar no Só garotos. Minha função era encontrar um designer para o livro, mas decidi fazê-lo eu mesma, já que

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também sou poeta e admiradora do trabalho dela. Gostaria de registrar que desenhei apenas o interior da publicação, a capa foi feita pela Allison Saltzman.” Mary lembra do dia em que Patti entrou na editora e explicou, em linhas gerais, suas expectativas com relação ao desenho da publicação: “Nós temos sensibilidades semelhantes e compartilhamos uma inquietação com a iconografia católica e com os livros antigos, por isso não foi difícil encontrar uma estética que agradasse a nós duas”. A partir de então, o trabalho duro começou. Mary conta que Patti aparecia frequentemente no escritório da Ecco. Ela gostava de puxar uma cadeira e sentar-se ao seu lado para dar pitacos. A autora estava particularmente preocupada em aprimorar as quebras de linhas e os parágrafos originais. “Ela brincou e mexeu com o texto e a ordenação da arte até o último minuto. Ficou muito claro desde o princípio que o livro era extremamente importante para ela em um nível pessoal, por conta da promessa feita a Robert. Ela foi extremamente exigente, mas também sabia recompensar e ser generosa quando precisava ser.” Uma lembrança que não sai da cabeça de Mary é a do dia em que ela levou os layouts de Só garotos até a casa de Patti. A autora estava ensolarada, distribuindo sorrisos e comentários brilhantes. Mas ela tinha uma observação a fazer: queria incluir, em algum lugar ainda misterioso no meio do livro, a última foto tirada por Robert em vida: uma polaroide de Patti e sua filha. “Ela me pediu para levar a fotografia original comigo, só que eu estava apenas de passagem, indo para outro compromisso, e estava aterrorizada com a possibilidade de perder aquela foto. Ela foi enviada depois, por um mensageiro. Mas a confiança que ela depositou em mim teve um grande impacto em minha vida.” No Brasil, o livro saiu pela Companhia das Letras, com tradução de outro poeta, Alexandre Barbosa de Souza. “Nunca tinha traduzido uma autobiografia, adorei. Por ser poeta, a pessoa em geral escolhe palavras mais densas de significado, ou mais precisas, ou mais bonitas simplesmente, mas há sempre uma emoção transformada no texto. O tradutor não pode deixar por menos.” Como um tabloide nova-iorquino da mais crua cena artística do final dos 1960, Só garotos desperta prazeres bastante primitivos, como conhecer detalhes da vida privada. Por isso, fã confesso do mais clássico dos


foto: Michael Ochs Archive/Getty Images

SÓ POETAS

‘Só garotos’, livro de memórias de Patti Smith, VAI VIRAR série de TV e GANHARÁ continuação, chamada ‘M Train’, que sai neste mês nos Estados Unidos p o r

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álbuns de Patti, o Horses, de 1975, Alexandre revela ter ficado surpreso ao saber que a poeta namorou o ator, diretor e músico Sam Shepard durante os tempos em que ele acompanhou a banda The Holy Modal Rounders. “Acho que esta é uma das melhores autobiografias que já li. Quando terminei, escrevi para o fotógrafo Bob Gruen, amigo do Lenny Kaye, membro da banda dela, contando que um amigo brasileiro dele tinha traduzido o livro e pedi que ele mandasse um beijo para a Patti.” Para desespero de Alexandre, há poucas semanas, o canal Showtime anunciou que levará a trama do livro para uma série de televisão. “Espero que isso não aconteça, mas infelizmente parece que é verdade. Não queria ver a Patti interpretada por outra pessoa.” O conforto é que a poeta será coprodutora e corroteirista ao lado de John Logan, premiado por Red e conhecido por Gladiador, O aviador, Rango e Sweeney Todd – O barbeiro demoníaco da Rua Fleet. Em declaração à imprensa, a poeta disse algumas palavras sobre a nova aventura: “Uma série nos permite explorar características mais profundas e ir além das histórias do livro, além de possibilitar uma apresentação menos ortodoxa. É um modelo que oferece liberdade narrativa e uma chance de expandir os temas”. Apesar da dupla função na série, este não é o único grande projeto em que Patti está metida neste ano. Ela está às voltas com uma novela de mistério, ao mesmo tempo em que escreve esparsamente seus futuros livros de poesia, grava seu próximo disco – que deve sair em 2016 – e publica o livro que dá sequência às suas memórias. De acordo com a editora Knopf, responsável pela publicação, M Train passará por 18 estações da vida de Patti. O livro, continuação de Só garotos, começa no pequeno Greenwich Village, uma cafeteria onde a poeta do punk costumava ir toda manhã para beber uma xícara de café preto, matutar umas ideias e escrevê-las em seu notebook. A prosa traça sinuosos caminhos entre realidade e sonho, entre passado e presente, e se desenrola nas diferentes paisagens de cada uma destas estações. Viajamos com Patti até a Casa Azul de Frida Kahlo, no México; passamos por um encontro da sociedade dos exploradores do Ártico, em Berlim; visitamos a cova de Genet, Sylvia Plath, Rimbaud e Mishima. Como em Só garotos, há polaroides acompanhando o texto, ampliando seu significado e contando uma história própria. Há também reflexões sobre a criação artística e passagens dolorosamente pessoais de sua vida no Michigan, como a morte de seu marido, Fred Sonic Smith, com quem

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foto: Richard McCaffrey/Michael Ochs Archives/Getty Images

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teve um filho – Jackson – e uma filha – Jesse. O livro estará disponível nos Estados Unidos a partir do dia 6 deste mês. A Companhia das Letras anunciou que já está trabalhando na tradução, que deve sair apenas em 2016. O impacto da poesia de Patti, no entanto, desconhece anos, décadas e calendários, sejam maias, sejam astecas ou romanos. Ela reverbera através da poesia de inúmeros poetas, escritores e compositores contemporâneos, entre eles Fernanda Pacheco, autora do livro A culpa é do Chet Baker. “A primeira coisa que me chamou a atenção foi o fato de ser uma mulher encabeçando o movimento punk norte-americano – nunca tinha parado para pensar na força que isso tem.” A música foi o elo primordial entre as duas poetas e, segundo Fernanda, este é o grande diferencial de Patti Smith: “As músicas são muito carregadas de versos poéticos, inclusive estruturalmente, e é perceptível que ela não é somente uma cantora quando sobe no palco. Ela declama suas músicas, intercala com versos de outros poetas, reinventa outras canções”. c

Bandas influenciadas pelo som e pelas letras de Patti Smith The Smiths Marina and the Diamonds Bikini Kill Cat Power R.E.M. Hole


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