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TÃO ÍNTIMO E ESTRANHO Através de reminiscências, o mais recente livro do escritor francês Daniel Pennac, ‘Diário de um corpo’, explora a fisiologia de um burguês do século 20
foto: MIGUEL MEDINA/AFP/GettyImages
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U
m pouco diário, outro pouco (auto)biografia. Um tanto de prosa e outro tanto de biologia. Quem sabe a autoficção de um corpo irreal encarnado no próprio narrador e encerrado em Pennac? Em Diário de um corpo (Rocco), a vida do protagonista – seu contexto familiar e social – é escanteada em prol da carne, das enzimas, da excreção, das doenças dos órgãos e dos prazeres da pele – em suma, dos fatos que marcam a experiência de um organismo, neste caso, o de um francês burguês que viveu entre 1936 e 2010. Esta é a história que o celebrado escritor Daniel Pennac narra em detalhes (alguns nauseantes, outros divertidos) no seu mais recente livro: a história desse invólucro da alma, dessa máquina química que definha ao
J r.
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longo das décadas, que sofre panes, que fede, que libera grandes cargas de líquidos e sólidos diariamente, que é capaz de sentir os mais lancinantes prazeres e tremer frente às menores dores. Desde sua publicação original, em 2012, a crítica especializada vem se debatendo, em um esforço categorizante, para entender e enquadrar esta obra a partir de seu hibridismo de gêneros e de seu foco na fisiologia do corpo, e não nas sutilezas da alma de um ser ou de seu entorno – o que, no caso de Diário de um corpo, seria natural, posto que a história percorre as duas Grandes Guerras. Mas o francês Pennac faz questão de passar quase incógnito por esses “pormenores” ao focar seu empenho narrativo na matéria-substância-carcaça de seu protagonista. O escritor Bernardo Ajzenberg foi o homem que enfrentou o desafio de traduzir a obra para o português: “A proposta é radical: registrar as sensações corporais, as dores, os prazeres etc. Com isso, o mais complicado, na tradução, foi encontrar o tom do personagem, que é extremamente detalhista, e os termos anatômicos, fisiológicos, enfim, médicos
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corretos, além das expressões compatíveis com as diferentes épocas, já que o diário percorre mais de 70 anos do século 20”. Para Bernardo, com exceção da série Malaussène, os livros de Pennac são sempre diferentes entre si, cada qual com seu desafio de leitura e tradução. No caso de Diário de um corpo, não há um enredo, por isso o leitor tem como incumbência a construção da história em sua mente, a partir das anotações do dia a dia corporal do personagem. E essa estrutura matutada e engendrada por Pennac é, na opinião do tradutor, um grande achado: “Ele faz tão bem que fica até difícil acreditar que tenha podido inventar ou imaginar tudo aquilo. Esse recurso em primeira pessoa e sob a forma de diário permite ao autor ir fundo em questões físicas muito íntimas que tocam todas as pessoas. Mas só deu certo, no caso, porque ele também foi muito corajoso, expondo aspectos sobre os quais ninguém gosta de falar em público”. Intercalando capítulos curtos entre outros um pouco mais longos, o autor logra criar uma identificação imediata do personagem com o leitor, afinal, de acordo com Bernardo, ele fala de coisas que todos nós vivemos e viveremos – suores, desejos, medo físico e toda a escatologia que cerca nossas funções vitais. “Podemos ler em ordens diversas. Além disso, ele introduz algumas narrativas intercaladas. Enfim, são vários ingredientes que combinam muito bem com a tese dele, de uma leitura saborosa e livre.” Nessa história, é difícil separar o que há de autobiográfico e de autoficcional da pura ficção. Pennac escreve sobre sensações e funções fisiológicas que experimentamos – nós, leitores, e ele, escritor – ao longo de nossa existência, grande parte delas diariamente, ainda que haja particularidades que cerquem o protagonista. “O fato é que tem muita pesquisa ali, envolvendo costumes, brincadeiras e publicações de época. Ao final do livro, você tem realmente a sensação de que tudo foi escrito por um senhor muito atento, meticuloso e de excelente memória, nascido no começo do século e morto já com quase 90 anos. Não é fácil.”
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foto: MIGUEL MEDINA/AFP/GettyImages
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DIÁRIO ÍNTIMO
O livro começa com um longo diário que é entregue pela filha do protagonista diretamente a Pennac, que se debruça a organizá-lo. A narrativa percorre o século 20 sem deter-se muito em seus eventos históricos, tampouco familiares, mas sim nos detalhes muitas vezes esquecidos da vida corpórea desse senhor, falecido aos 87 anos. O narrador opta por iniciar a história a partir de um evento traumático ocorrido na adolescência, quando um grupo de meninos o amarra em uma árvore e várias formigas começam a escalar suas pernas e desbravar seu corpo: horrorizado com a invasão, ele perde o controle do esfíncter. O evento o leva a iniciar um diário em que conta as reações de seu corpo, que, ao longo da trama, vão se ampliando e ganhando novos momentos: a ereção, o ato de urinar, a flacidez, as lágrimas, o arrepio. Para o doutor em literatura, escritor e admirador de Pennac Tony Shaw, trata-se de uma biografia incompleta, um livro muito diferente do que estamos acostumados, pois é formado por trechos de diários e centrado na experiência do corpo masculino. Por outro lado, o traço autoral do francês está ali, perceptível: “Este é um romance sobre o corpo em que há obviamente uma preocupação com o cloacal, mas acho que ele é, no entanto, reconhecível como um livro do Pennac por conta de sua preocupação com o absurdo, os jogos de palavras e as referências a várias obras literárias e cinematográficas”. Shaw acredita que Diário de um corpo está entre as melhores obras do escritor, isso porque o livro é “previsível”, todos sabemos que no final o corpo para de funcionar e apodrece, mas é justamente esse aspecto que torna seu desenrolar uma sequência de surpresas. “Há uma grande dose de inventividade e humor, embora não possa deixar de pensar que algo está faltando – o suspense talvez. Realmente gostei, mas há uma estranha frieza e inevitabilidade que até mesmo as piadas mais absurdas, até mesmo as mais engraçadas, que se espalham pelo livro, não conseguem erradicar completamente.”
MANIFESTO CONTRA O PUDOR
Todo mundo caga e mija, suamos quando corremos, nos arrepiamos com uma música, sentimos a vermelhidão tomando a pele após um tapa, a roxidão após um soco, peidamos fedido, maltratamos as vias nasais de quem está perto quando aquele chulé se apossa de nossos pés, ou o cecê forma aquela pizza asquerosa debaixo do sovaco, chovemos quando não conseguimos domar as lágrimas e seríamos capazes de produzir um museu de cera se coletássemos o amarelo de nossos ouvidos. É o azeite de nossas máquinas e sua oxidação. E é justamente ao se apegar a isso – e muito mais, afinal nossa máquina é também uma incrível criadora de sensações orgásticas e receptora de doenças terríveis – que Pennac dá um pulo literário do gato. É desta forma que, segundo o professor de língua portuguesa Wagner Torlezi, o autor francês cria um manifesto contra o pudor físico: “O ser humano acha nojentos seus próprios excrementos corporais, que são da natureza humana, mas acha absolutamente naturais seus desvios de caráter e não tem o menor pudor em esconder isso. As características psicológicas predominam sobre as características físicas. No entanto, Pennac lança mão da subjetividade psíquica em favor da objetividade corporal”. Na contramão do que seria natural em um romance ou em uma novela, o autor estabelece um diálogo oposto ao emocional, ao subjetivo, ao psicológico – ele centra suas atenções no que antes ninguém atentava. “Ele se interessa em descrever dores e sentidos, como o peso que a cabeça faz durante a leitura, o toque sensual do vento na pele, o prazer de manipular uma meleca de nariz, o medo da doença, da velhice e da morte. A princípio, essa introspecção anatômica parece incomum.” Aí se encontra o elemento da estranheza, do espanto, o imprevisto do susto, a repentina perturbação que atravanca os olhos e embarga os sentidos, o fascínio que acompanha uma narrativa original, desbravadora de novas veredas na prosa tradicional. Que Daniel Pennac continue golfando essa literatura essencial! c
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