Sidney Rocha, o Gerônimo

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SIDNEY ROCHA, O GERテ年IMO 76


AO LANÇAR ‘FERNANFLOR’, O PRIMEIRO VOLUME DE UMA TRILOGIA, O ESCRITOR SE LANÇA A FAZER DA LINGUAGEM S U A P R O TA G O N I S TA PA R A E S M I U Ç A R O E S PA Ç O D A S PESSOAS, SUAS EXPRESSÕES, ILUSÕES E MÁSCARAS P O R

J R .

B E L L É

F O T O S

D A N I L O

G A L V Ã O

O

escritor Sidney Rocha começou a prosear com os dedos e as ideias em 1994, ano da graça de Sofia, uma ventania para dentro, seu primeiro romance. Logo afiou a língua e afirmou sotaque próprio na vozearia conhecida como literatura contemporânea com o livro de contos Matriuska, publicado em 2009. Então, saltou aos olhos da crítica com O destino das metáforas, prêmio Jabuti em 2012, e poucos meses atrás, em outubro de 2015, deu à luz Fernanflor, o primeiro livro da trilogia Gerônimo, seu projeto mais ambicioso. “Todos esses livros se comunicam na investigação de certos pequenos nadas que busco encontrar nas brechas dos acontecimentos, na reflexão sobre eles, e na linguagem”, conta Sidney, que considera cada uma de suas obras como um recomeço: “Fernanflor, sobretudo”, garante. Talvez seja porque as andanças de Jeroni Fernanflor, o pintor protagonista, não se limitem a lugares e espaços, com suas planícies e montanhas, tampouco a mulheres, paixões, quadros e tintas. Elas percorrem sua excessiva solidão, aquela que, por vezes, busca na vaga eternidade da arte o sentido vital que liquefaz tudo, inclusive a própria história, até que escorra pelo ralo do esquecimento, até que fermente, entorpeça os miolos e faça vomitar. Para Sidney, Fernanflor narra o princípio da vida de todos os que apostam suas fichas nos sonhos antes de apostá-las na realidade. Ainda assim, o autor adverte: “Como Fernanflor, que não busca trazer nenhuma mensagem com sua pintura, eu não busco trazer nenhuma mensagem com minha literatura; não tenho sonhos tão elevados”.

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| perfil | sidney rocha Elevados ou não, Sidney tem sonhos. Não fosse assim, teria desistido da literatura muito antes de começar, quem sabe nem tivesse embarcado naquele expresso Princesa do Agreste, lá em 1983, quando decidiu deixar sua Juazeiro do Norte e tentar a sorte no Recife. Quem sabe tivesse se acomodado como vendedor de panelas, de apostilas de inglês, de aço para aviões. Quem sabe tivesse se enraizado em uma das assessorias pedagógicas ou parlamentares em que trabalhou. Quem sabe até gostasse da vida de obscuro repórter frila de jornal, redator, professor de sociologia, roteirista, consultor ou qualquer um dos inúmeros trabalhos e bicos que a vida o obrigou a desempenhar. “Um escritor, principalmente no começo da vida, e não no meio, tem de viver seus infernos e seus purgatórios, sem nenhuma ilusão de paraíso, e os que não são filhos de algo, têm que inventar-se todos os dias, ou comprar a vida de cada dia, porque, como o Severino, de Cabral, não lhe vendem fiado. Assim é que me meti em muitos ofícios, desprezando cada um deles, porque todos se equivalem, e representam todas as derrotas para o capitalismo”, significa. Uma de suas melhores brigas com o capitalismo durou 15 anos, o longo hiato entre Sofia e Matriuska, quando ele tratou de envolver-se intimamente com os dramas e alentos do dia a dia, e não particularmente com a literatura: “Esses são os melhores tempos de um escritor. Ele não sabe, mas em momentos assim está se forjando. Eles lhe dão a certeza de que é um escritor, se ele pode aproveitar a vida incrementando ali o sonho, a imaginação e a memória em favor de algo que nem ele mesmo sabe do que se trata”, garante.

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O QUE COMEÇA COM FERNANFLOR

Há muito pouco na superfície de Fernanflor que insinue os próximos passos da trilogia. Para isso, é preciso ir mais fundo. Como uma pedra atirada no lago, as personagens mergulham nas águas do enredo, deixando pistas circulares, expansivas e fugazes de seu trajeto, sem, no entanto, revelar seu real paradeiro. A trilogia, de acordo com Sidney, é um estudo sobre o espaço das pessoas, de suas expressões, ilusões e máscaras. “Não por acaso é que ela começa com a história de um pintor. Não me interesso muito por literatura que seja uma imitação do mundo, de um mundo idealizado. Em Fernanflor, e em toda a trilogia, escrevo sobre a vida interior de personagens, e nisso quis ser especialmente sincero. Talvez por isso os leitores tenham visto lá a importância da luz, das cores e dos silêncios.” Mas os personagens não são apenas Jeroni, Lutécia (“habitada por destino perdidos”), Judite (aquela que sorriu malícias), o amigo Valentino ou a memória da mãe de Fernanflor; Sidney escreve especialmente sobre a vida interior de outro tipo de protagonista: a linguagem. “Ela é o personagem mais atuante em qualquer bom romance. Um bom romance não se desvela senão pela linguagem, e isso depende de cada leitor”, explica o escritor. Existe, portanto, um segundo enredo por debaixo das águas existencialistas de Fernanflor, uma camada velada e latente cujo desfecho é sempre diferente para quem ousa decodificar a mensagem das entrelinhas. Afinal, o que Sidney mais quer é que o leitor se sinta “num terrível jogo de espelhos”. É difícil precisar o instante em que Fernanflor captura sua vítima, mas certamente acontece com uma rapidez nocauteadora já nas primeiras de suas 108 páginas. Isso porque a biografia de Jeroni é narrada em um tempo díspar daquele que aprendemos a contar no relógio. Ao menos, essa foi a sensação que arrebatou o escritor Lourenço Mutarelli, que assina a orelha do livro. “O enredo fica num outro lugar, outro tempo e outro espaço porque o Sidney usa palavras que não ficariam boas em qualquer romance, mas ele as usa de maneira muito leve, meio mágica”, conta.

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Os dois se conheceram durante uma mesa da Fliporto de 2014, em que também estava presente o escritor Ondjaki. “Então, comecei a ler a obra do Sidney e fiquei apaixonado, falei um monte de coisas para ele”, lembra Mutarelli. Pouco depois, quando Fernanflor estava quase pronto, veio o convite para escrever a orelha. “O Sidney não cuida só da narrativa, ele cuida de tudo, edita o livro, se empenha em toda a formatação, em toda a materialização da obra, isso é muito impressionante”, explica. Mas impressionante mesmo foi a experiência de déjà vu que Mutarelli sentiu ao ler Fernanflor, uma sensação que ele acredita estar relacionada diretamente com seu próprio eu, ainda que de uma maneira mais obscura, até mesmo inacessível pelas veredas já mapeadas de sua consciência. “Acho que essa sensação tem a ver com essa lapidação, com essa construção do texto. Quando li pela primeira vez, tive a impressão de estar lendo um clássico, de ter em mãos algo muito denso. Gosto muito de como ele convida o leitor a entrar no livro e também como ele se despede.” As imagens, os personagens, os espaços por onde Jeroni Fernanflor passa ainda estão na memória de Mutarelli, “como se fosse um sonho, um filme que vi há muito tempo e não tenho como acessar no YouTube, como uma memória mais profunda”. Para o escritor, crítico literário e professor Cristhiano Aguiar, responsável pelo posfácio de O destino das metáforas, estas experiências relatadas por Mutarelli estão intimamente ligadas ao domínio minucioso do instrumental narrativo que Sidney cunhou para uso próprio: “É preciso poucas palavras para que Fernanflor envolva o leitor. Mas não é através de mecanismos típicos de um enredo – como o de encerrar um capítulo, por exemplo, com um gancho –, mas, sim, mediante a engenhosidade da sua linguagem romanesca. É também um livro bem-humorado, embora não se dê gargalhadas com ele”. Foi com esse primeiro volume da trilogia, na opinião de Aguiar, que Sidney conseguiu desdobrar o refinamento de sua literatura, pois existe nela uma complexidade que não abre mão da liquidez e que não pode ser efetivamente chamada de entretenimento, mas se confunde com uma espécie de prazer reflexivo: “Nunca como em Fernanflor a frase de Sidney esteve tão fluida. Também acho que ele foi abandonando certo realismo mais agressivo, ainda forte no seu livro de contos Matriuska, em favor de representações mais sutis. Também tenho percebido que a experimentação em Fernanflor é mais ligada às categorias de tempo e espaço ficcional, assim como na arquitetura do próprio livro”. c

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