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J u n i o r
B e l l é
NA DIANTEIRA DE TODOS OS PAÍSES DA AMÉRICA DO SUL, O URUGUAI DISPARA NA CORRIDA DA APROVAÇÃO DE REGULAMENTAÇÕES QUE CULMINARAM EM DIVERSAS MUDANÇAS NA NAÇÃO – COMO AS REFERENTES AO CONSUMO DA MACONHA, AO CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO E À DESPENALIZAÇÃO DO ABORTO –, DEIXANDO PARA TRÁS UM RASTRO DE PROFUNDAS LUTAS EM SUA HISTÓRIA
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m menos de um ano, o Uruguai aprovou três polêmicas leis que levaram o país ao protagonismo entre os governos progressistas em todo o mundo: casamento entre pessoas do mesmo sexo, despenalização do aborto e regulação da maconha. Estas são as responsáveis pelas extensas matérias e suas respectivas manchetes gritantes em jornais como The New York Times, The Guardian, Le Monde, El País, Corriere della Sera, O Globo e Folha de S.Paulo. Aquele pequeno país da América do Sul estava colocando as manguinhas de fora mais uma vez. Em agosto de 2013, o primeiro casamento entre homoafetivos foi realizado no Uruguai, utilizando o artigo primeiro da nova lei de casamento igualitário, que diz: “O matrimônio civil é a união permanente, com arranjo legal, de duas pessoas de sexo diferente ou igual”. Além de Brasil e Argentina, poucos países no mundo possuem legislação semelhante: Suécia, Noruega, França, Espanha, Is-
lândia, Inglaterra, País de Gales, Bélgica, Luxemburgo, Holanda, Dinamarca, Portugal, Canadá e África do Sul. Três meses depois da aprovação da lei, na capital Montevidéu, que abriga metade da população do país, passaram pelo registro civil 62 casais de homens e 19 de mulheres. No final de 2012, nosso vizinho aprovou outra lei, desta vez permitindo a interrupção voluntária da gravidez, cujo artigo segundo pontua: “A interrupção voluntária não será penalizada (…) durante as primeiras 12 semanas de gravidez”. Essa lei já havia sido aprovada cinco anos atrás, mas foi vetada integralmente pelo então presidente, e médico oncologista, Tabaré Vázquez, do Frente Amplio, coalizão política de centro-esquerda. Os dados extraídos um ano após a promulgação da lei são de tal forma surpreendentes que ainda se estuda como trabalhar com eles. Foram realizados 5 mil procedimentos abortivos, quase todos farmacológicos, sem nenhuma morte reportada. Só durante a crise de 2002, por exemplo, houve uma estimativa de 33 mil abortos clandestinos. Ainda não se sabe se a notícia é boa demais, se há algum erro de cálculo ou se o sistema ainda não está funcionando como deveria, o que significaria que as clínicas clandestinas
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| política | nar os legisladores. “Isso foi em setembro”, contam Arocena e Aguiar, “em outubro, foi convocada a Marcha pelos Valores, em oposição ao tema, e, ainda que pese aqui certa repercussão midiática, não conseguiu convocar nem cem pessoas”. O corolário é que, em 11 de dezembro daquele ano, com 81 dos 87 votos a favor, a nova lei foi aprovada na Câmara de Deputados. Em 2 de abril do ano seguinte, com 23 dos 31 votantes, o projeto passa no Senado.
Interrupção voluntária da gravidez:
seguem fazendo um alto número de procedimentos irregulares. Já o projeto de lei de regulação da maconha foi aprovado no dia 10 de dezembro passado e dita: “O Estado assumirá o controle e a regulação das atividades de importação, exportação, plantação, cultivo, colheita, produção, aquisição, armazenamento, comercialização e distribuição da cannabis e seus derivados”. Há, evidentemente, um espaço legal de seis plantas para quem deseja cultivar a erva em casa, e também para clubes de cultivadores. O Uruguai é o primeiro país no mundo a legalizar e praticamente estatizar a maconha e toda sua cadeia produtiva.
TRÊS HISTÓRIAS DE LUTA
De acordo com a pesquisa de Felipe Arocena e Sebastián Aguiar intitulada Abriendo camino. Tres leyes de vanguardia, de onde procedem os dados acima, há, no Uruguai, uma conjuntura econômica favorável para a aprovação de leis tão substanciais. Mas, acima de tudo, há um histórico de lutas que envolve cada uma delas.
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O matrimônio igualitário: como em grande parte da América do Sul, a luta pelo direito à igualdade e ao respeito aos homossexuais data dos anos 1980. Mas é apenas em 2007 que a união concubinária entre pessoas do mesmo sexo é aprovada, assim como a adoção de crianças, mudança de nomes e permissão de ingresso nas Forças Armadas. Em 2009, nas prévias eleitorais, a pauta do casamento igualitário entra em discussão e já no ano seguinte a mais importante ONG da causa, chamada Ovejas Negras, abraça a campanha. Nesse mesmo 2010, de acordo com pesquisa da Sempol, 50,4% da população apoiava a iniciativa. Assim, em 2011, começam os nove spots publicitários em prol da causa gay, que desencadeou o posicionamento unânime do Frente Amplio em torno da aprovação da lei e um racha impressionante na oposição, que trazia consigo setores da Igreja. Em Montevidéu, no ano de 2012, durante a Marcha da Diversidade – equivalente à Marcha do Orgulho Gay – mais de 30 mil pessoas se aglomeram para pressio-
este é, possivelmente, o tema mais discutido entre as três leis aprovadas. Desde a década de 1970, quando o Uruguai vivia sob um regime ditatorial, já começavam a militar pela causa grupos feministas como o Mujeres de Uruguay e o Cotidiano Mujer. Mas apenas em 1998 começa-se a discutir verdadeiramente o tema, que entra em pauta na eleição de 1999: “As pesquisas de opinião mostravam um apoio majoritário pela despenalização do aborto, que se mantém entre 50% e 60% entre 2000 e 2012”, escrevem Arocena e Aguiar. Em 2002, acontece a primeira grande derrota. Aprovado por 47 a 40 na Câmara, o projeto é rechaçado no Senado. Mas, quando o Frente Amplio vence novamente, o sucessor de Vázquez e atual presidente, José Mujica, dá uma declaração comprometendo-se a não vetar a lei, caso ela passe novamente pelas instâncias democráticas. Mesmo após a aprovação, opositores seguiram na militância para derrubá-la. Foi assim que, em 2013, a oposição, somada a setores conservadores e apoiada pelo clero, conseguiu levar o tema até um plebiscito. À época, as pesquisas de opinião mostravam um país dividido. Mas, em um contexto de voto não obrigatório, apenas 8% dos uruguaios saíram de casa para votar pela revogação da nova lei. De acordo com Arocena e Aguiar, há dois argumentos centrais nesta aprovação: “Em primeiro lugar, está o direito de a mulher decidir sobre sua gravidez e, em segundo, está a necessidade de acabar com a rede de clínicas clandestinas que vendiam abortos e colocavam em risco a vida das que possuíam menos recursos para pagar procedimentos de melhor qualidade”.
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DON PEPE Y EL PEPE: A IMPORTÂNCIA DA HISTÓRIA Regulação da maconha: já faz tempo que fumar maconha não é delito no Uruguai, mas note aqui uma distorção flagrante, pois produção, plantio e comercialização, sim, eram crimes. E graves. Em 2000, o então presidente Jorge Batlle deixou clara sua posição a favor de “legalizar todas as drogas”, mas Tabaré Vázquez, que o sucedeu, não tinha a mesma ideia e amplificou o combate ao comércio ilegal de entorpecentes. Só em 2010, após a consolidação de um movimento social específico para o tema é que se passa a considerar seriamente a legalização através do Debate Nacional de Drogas, com participação de diversos órgãos estatais. Mas, antes mesmo que a discussão se prolongasse, um novo projeto entra em pauta. Ele propõe a estatização da produção, distribuição e venda da maconha. A ideia foi metralhada de todos os lados por conta de sua flagrante inviabilidade técnica. Mas o fato é que, no começo de 2013, forma-se uma comissão parlamentar para afinar o texto e torná-lo factível. “Paralelamente, um grupo de organizações sociais conformam uma plataforma de campanha para operar no desfavorável terreno da opinião pública, com apoio econômico internacional. Neste marco, se agregarmos as numerosas repercussões internacionais, a tônica do primeiro semestre de 2013 deriva em um concerto polifônico de grande incerteza, contradições e lacunas. No fim do mês de julho, o projeto de lei é aprovado pelos deputados, com 45 votos oficialistas e o apoio de legisladores da oposição a alguns artigos, e em 11 de dezembro, por 16 votos a 13, é sancionado no Senado”, registram Arocena e Aguiar. Para eles, o governo apostou alto com uma regulação profundamente estatizante, mesmo sabendo que as consequências podem ser devastadoras, “neste caso, o governo assegurou que voltaria atrás. Mas pode ser também que o narcotráfico acuse o golpe e então será o momento de pensar na expansão desta lei”. Guillermo Garat, autor do livro Marihuana y otras yerbas – Prohibición, regulación y uso de drogas en Uruguay, viu com bons olhos a dedicação dos gover-
No começo do século 20, o Uruguai passava por um período de bonança que o aproximou maravilhosamente de um estado de bem-estar social. A economia da época ia muito bem. Note a semelhança: em 1907, o Uruguai proibiu a pena de morte; em 1913, aceitou o divórcio pela vontade da mulher; em 1915, formalizou as oito horas de trabalho; e, finalmente, em 1927, aprovou o sufrágio feminino. Revolucionárias para a época, a aprovação dessas quatro leis tinha como protagonista o então presidente José Batlle y Ordóñez (1856-1929), ou Don Pepe, um sujeito de caminhar rápido e ideias explosivas, cuja proximidade com o socialismo trazia friagens às espinhas de seus correligionários, que se uniram para freá-lo. Mujica, assim como Batlle, personifica uma revolução em tom legalista e melodia democrática. Ao mesmo tempo, El Pepe recorre à história de Don Pepe para evocar as tradições vanguardistas de seu país, de seu povo e de seus legisladores. Conformando-se às necessidades de seu tempo, Mujica construiu uma imagem carismática. Afinal de contas, nem todo presidente é ex-guerrilheiro, proprietário de um fusca, morador convicto de um sítio, floricultor e “mais filósofo que estadista”, como o descrevem Arocena e Aguiar. Ambos se valeram de um momento econômico favorável para botar em pauta o avanço de direitos. Mesmo as críticas que ambos os Pepes receberam são parecidas. O senador Alfredo Solari discursou sobre a regulação da maconha, em 10 de dezembro de 2013, afirmando que “nem este governo nem o resto do mundo deveria fazer experiências com os uruguaios, com as crianças e adolescentes, sem garantias apropriadas”. No começo do século 20, o senador Alejandro Gallynal atacou a nova lei laboral de Batlle com argumentos cuja semelhança guarda uma importância história: “Promulgar uma jornada de trabalho de oito horas igual para todos ‘é querer converter o país em um grande laboratório social, onde periodicamente, e por vias de ensaio, vão se incorporando ao corpo de suas leis disposições que nem os países mais adiantados haviam se atrevido a incorporar’”.
nantes. “É um processo que ainda tem muito para melhorar, mas jamais o debate em torno de uma lei foi tão grande e inclusivo, jamais teve tamanha participação dos órgãos democráticos.” Apesar de boa, a tentativa de regulação, na opinião de Garat, fracassará: “É o mais provável e, então será preciso ajustar a lei. A princípio, temos que ver como funcionam os clubes de cultivadores e as farmácias para então ter mais claro o quê ajustar”. Para ele, o consumo
de drogas está diretamente relacionado à pobreza, o que significa que medidas de distribuição de renda são mais efetivas no combate ao narcotráfico. “A pasta base, por exemplo, é bastante consumida na periferia montevideana. Há diferentes drogas para diferentes regiões do país e da capital”, discorre o autor. Mas a mudança de posicionamento do governo e a mera tentativa de legislar sobre o que até então era um terreno ilegal, começa a dar resultado entre a opinião r evis t a dacultura.com.br
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| política | pública: “Antes, cerca de 65% da população se dizia contra a regulação do mercado de maconha; agora, 51% já estão dispostos a esperar e ver que frutos dará a nova lei. Essa é uma mudança das mais importantes”. “As novas leis são um grande avanço, mas elas também têm aspectos conservadores, elas exacerbam os fortes traços conservadores da nossa sociedade”, opina Martín Collazo, 27 anos, membro do grupo Pro-derechos, que esteve no fronte pela aprovação das leis principais mencionadas nesta reportagem. Não é apenas a visão de um estado extremamente paternalista que é sintomática. A burocracia que envolve a aplicação das novas regulamentações também evidencia o quão desgastante foram as negociações nos campos social e político. “Há muita coisa para mudar. Na lei do aborto, por exemplo, assim que a mulher dá entrada no processo hospitalar, ela precisa esperar cinco dias até ver o médico, é um tempo para pensar, e só então tem uma entrevista com psicólogos, assistentes sociais, uma equipe ampla. É bom que haja essa equipe multidisciplinar, é bom que haja um amparo para um momento difícil como este, o ruim é obrigar as mulheres a passar por ela. Não deveria ser uma obrigação.”
Na lei que regulamenta a maconha, há ainda muitos pontos a repensar, “somente o Pro-derechos listou mais de 20”, conta Martín. O mais problemático é o tópico do registro. O governo uruguaio exige que todos os consumidores e cultivadores estejam registrados, ou seja, fichados em uma lista que, ao menos teoricamente, é confidencial. Pesa que hoje o governo uruguaio é progressista, mas ninguém sabe como será amanhã.
LEI DE SERVIÇOS DE COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL Uma quarta lei ainda pode ser incluída nesta breve revolução celeste antes do fim do ano: a LSCA, ou simplesmente Lei dos Meios. Inspirada no modelo argentino, a nova legislação busca conter e desatar os monopólios da mídia, decretando este como um setor de interesse público. Dessa maneira, ele poderá ser regulamentado pelo Executivo. A medida, encaminhada diretamente pelo presidente Mujica, já foi aprovada na Câmara e está em negociação entre os senadores. O texto que defende a lei classifica os Serviços de Comunicação Audiovisual como “econômicos, culturais e estratégicos para o desenvolvimento nacional”, e assegura que a regulamentação busca “construir um sistema audiovisual harmonioso com uma competição equilibrada e justa entre os operadores”. A princípio, o presidente Mujica acelerou a entrada do tema nos tópicos em debate, a fim de aprovar a nova lei antes da eleição. Mas as negociações no Senado estão difíceis, o que levou o senador artiguista Enrique Rubio, falando em nome da bancada do Frente Amplio, a anunciar, em 14 de julho, a postergação das tratativas para depois do pleito presidencial. De acordo com o anúncio, havia oito votos a favor e sete contra, o que significa que o governo ainda terá muito para barganhar.
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Por outro lado, no Uruguai, se vivem ideias e ideais diferentes, por vezes divergentes, e os avanços sociais são fruto de uma negociação entre os diversos setores da sociedade, cada qual com seus sonhos e preconceitos. “Houve muitas outras leis e avanços no Uruguai, mas essas três leis, especificamente, foram debatidas publicamente, seja nas sessões da Câmara, seja na rua, nas manifestações pró e contra”, explica Martín. Há um motivo central para tanto: as mudanças no Uruguai não se dão apenas no plano da distribuição material das riquezas, mas também da transformação cultural. Para ele, as transformações da última década, acentuadas no governo Mujica, se intensificarão ainda mais, “e farão com que a próxima geração de uruguaios seja muito mais tolerante. As crianças vão crescer vendo dois homens ou duas mulheres com as mãos dadas, trocando carinhos. Os pais conversarão mais sobre maconha, e tomara que sobre álcool também. Mulheres não precisarão mais abortar no banheiro. Além dos mais, muitas crianças crescerão indo à Marcha da Diversidade como eu cresci indo à Marcha do Silêncio, contra os crimes da ditadura. Eles vão entender coisas que ainda custam muito para a minha geração entender”. c
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UM MUNDO A AVANÇAR