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Soy Cuba Athos Luiz

Título: Soy Cuba

Autor: Athos Luiz

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Soy Cuba é uma dessas obras nas quais as histórias de sua produção são tão épicas quanto o próprio filme em si. Resultado da aproximação entre os governos de Cuba e da antiga União Soviética no início dos anos 60, a produção se propôs a narrar a grande vitória da Revolução Cubana, ocorrida em 1958, através das lentes e da narrativa de cineastas russos. Coube a Mikhail Kalatozov e a Sergei Urusevsky conduzirem a épica produção que consumiu dois anos entre estudos, vivência, filmagem e produção. Tal história está contada no documentário do brasileiro Vicente Ferraz, Soy Cuba – O mamute siberiano, de 2005.

A ilha caribenha, até então privada de praticamente tudo que não servisse aos interesses e aos prazeres norte-americanos, teve sua história alterada pela mobilização de revolucionários barbudos que expulsaram à bala uma ditadura sanguinária. Na [re]construção de uma nova sociedade pós-revolução, houve também empenho no fomento de uma escola cinematográfica que contou com grande suporte técnico soviético e que alterou para sempre a narrativa cubana dentro das telas. O resultado prático dessa cooperação, o filme Soy Cuba, acabou não agradando nem a soviéticos nem a cubanos. A estética eslava parecia não ter sido capaz de captar

o espírito caribenho. Era demasiado formalismo, sequências longas que enfadavam e uma estetização do povo cubano que o tornou irreconhecível para si próprio ao se deparar com as telas. Foram necessárias algumas décadas de maturação para que dois dos mais renomados cineastas do cinema norte-americano resgatassem Soy Cuba do esquecimento para a lista dos grandes clássicos da sétima arte.

Há um quê de ironia no fato de Martin Scorsese e Francis Ford Copolla terem oferecido a redenção de Kalatozov e Urusevsky que pretenderam utilizar toda a expertise cinematográfica para denunciar as relações espúrias norte-americanas com a ilha caribenha através de sua obra. Copolla, inclusive, já havia cruzado com a Cuba revolucionária ao ambientar parte da saga dos Corleone na noite da Revolução Cubana quando, em O poderoso chefão – parte II (1979), uma comitiva de “empresários” norte-americanos desembarcam na ilha para fatiar seus novos negócios. Nas lentes de Copolla, a perspicácia de Michael Corleone previu a vitória dos “lunáticos” revolucionários ao presenciar um atentado nas ruas de Havana contra a polícia militar. Corleone previu que a luta movida pela ideologia é mais intensa, mais sincera e capaz de ser levada às últimas consequências, pois detona maior entrega daqueles que se comprometem com uma causa de forma que o dinheiro jamais pode comprar. A festa de réveillon na qual Michael revela conhecer a traição de seu irmão é também o episódio da fuga de Fulgêncio Batista após a notícia da vitória definitiva de Che Guevara em Santa Clara. Do outro lado da ilha, Fidel tomaria Santiago de Cuba dali a dois dias. A revolução havia triunfado e em três anos os russos desembarcariam na ilha.

Mas o desembarque russo somente foi possível com a saída norte-americana. Fidel sempre negou o caráter comunista da revolução enquanto ressaltava

o nacionalismo contido no movimento. Nunca foi ouvido. Kennedy o ignorou e saiu de Cuba abrindo caminho para os russos e o que veio depois foi o tenso período em que o mundo ferveu em banho-maria naquela que poderia ter sido a última guerra mundial. O temor de um embate nuclear entre as duas potências que emergiram das cinzas da última guerra alimentou paranoias e temores por diversas gerações, mas sem dúvida os dias que abalaram o mundo se deram em 1962, quando a URSS decidiu instalar mísseis em Cuba, a poucos quilômetros de Miami. O vácuo deixado pelo fim das relações entre a pequena ilha e os Estados Unidos foi ocupado e o primeiro resultado dessa ação política quase levou o mundo a pique. Cuba representava uma peça valiosa naquele tabuleiro geopolítico e os soviéticos não hesitaram em mover seus cavalos. A tensão causada pelo episódio dos mísseis deixou como herança o bloqueio econômico imposto à ilha, que ainda persiste, e vinte e sete anos depois veria cair a União Soviética, último grande apoio ao governo revolucionário. A partir daí Cuba entraria em uma época marcada por imensa carestia, dificuldades de toda ordem e uma resistência tenaz do povo cubano. Essa época é conhecida em Cuba como “período especial”, somente parcialmente revertida com a entrada em cena de Hugo Chávez, em 2001, que ofereceu a Cuba um pouco de oxigênio em sua asfixia.

A interferência de Chávez foi um dos primeiros grandes movimentos soberanos que governos da América Latina tomaram durante o século XXI. O resultado mais palpável dessa mudança foi a criação de novos fóruns políticos como a UNASUL (União das Nações da América do Sul) e a CELAC (Comunidade de Estados Latinos e Caribenhos), instituições das quais os Estados Unidos, controladores da OEA (Organização dos Estados Americanos), não fazem parte, além do fortalecimento do Mercosul com a entrada venezuelana, em 2012.

Se a administração Bush teve pouca atenção para a América Latina e permitiu sua organização ao redor de objetivos distantes do norte-americano, o mesmo não pode ser dito de Obama que, além da UNASUL e CELAC, também teve e tem de lidar com a ameaça da influência e crescimento do BRICS, novo bloco que reúne Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul. A cooperação militar russa com a Venezuela, a construção pelos chineses do canal da Nicarágua como alternativa ao canal do Panamá, recém-devolvido à soberania panamenha pelos EUA, e os investimentos do Brasil em Cuba são exemplos do aumento da influência externa em uma área considerada de interesse natural para os americanos.

A retomada da relação mais próxima por parte dos norte-americanos para o restante das américas com a administração Obama representa nova fase da política externa da potência do norte na região e que teve no reatamento dos laços diplomáticos com Cuba a marca de um novo paradigma. Como disse o próprio Obama, mais de meio século já deveria ter provado que a estratégia de isolamento não surtiu o efeito esperado e para desespero daqueles que nunca aceitaram a vitória de Fidel Castro, moveuse para reconstruir as relações com a ilha empreendendo viagem histórica com toda a família e grande comitiva presidencial, algo que não ocorria há quase um século. Foram necessários 10 presidentes desde Kennedy para que os EUA reatassem as relações com Cuba.

A nova estratégia de aproximação e cooperação, em vez do isolamento que empurrou Cuba para relações com nações hostis aos interesses de Washington, parece mais prudente – ainda que tal entendimento ainda não se reflita no congresso, único meio possível para a suspensão do embargo econômico que se mantém. A grande questão é: quais serão os resultados desta nova fase da relação Cuba-EUA?

Não há paralelo com Cuba que nos permita comparação, mas o longo histórico de interferência política praticado pelos EUA na América Latina põe em alerta todos na ilha e também os fora dela que acompanharam os progressos sociais desde a chegada ao poder de Fidel Castro. Mais de meio século de revolução produziu uma sociedade com níveis de saúde pública admiráveis, bem como os níveis educacionais, similares aos mais desenvolvidos países do mundo, além de um tremendo orgulho de sua história e luta. O isolamento, entretanto, já cansa grande parcela da população, principalmente a geração mais jovem tão distante daquela Cuba repartida e explorada da pré-revolução que Soy Cuba denuncia. É chegado um novo momento para o povo cubano no qual será posto em teste todos os avanços sociais provocados pela revolução, mas, também, e talvez principalmente, político.

A nova missão de uma superpotência com interesses na ilha agora tem características distintas e até mesmo opostas. Obama, chefe da maior nação capitalista do mundo, chegou com discurso de conciliação prometendo respeito à soberania cubana e às conquistas da revolução, participou de um programa popular de comédia na TV cubana e falou espanhol, e não poderia ser diferente. Conquistar corações e mentes parece ser o caminho, e não a beligerância. Resta agora observarmos os desdobramentos da nova tática norte-americana e sua ação junto a um dos povos mais soberanos do planeta.

E sobre a epopeia de meio século atrás, se aqueles eslavos sonhadores não compreenderam bem a alma cubana, pouco importa, o resultado daquela aventura foi uma obra antropofágica única, de forte impacto visual, repleta de cenas incríveis e fantásticos planos-sequências além de ter sido testemunha de um momento único da história. Soy Cuba pode ser visto como um poema-imagético-épico,

mas como diz Enrique Pineda Barnet, um dos roteiristas, talvez tenha sido sua pretensão seu maior pecado ao tentar produzir poesia onde já havia demasiada poesia.

“Soy Cuba

Los hombres cuando nacen tienen dos caminos:

Escogerás la estrella.”

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