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Dichavando a proibição Natália Noffke de Almeida

Título: Dichavando a proibição

Autora: Natália Noffke de Almeida

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Voltar no tempo através de filmes, campanhas e notícias para compreender como e por que o uso da cannabis foi e ainda é marginalizado em grande parte do mundo: esta é a experiência que o documentário Grass – The History of Marijuana (1999) traz em seus 80 minutos. Ele ainda nos revela que o preconceito é o grande motivo por trás deste tabu. Fica clara a crítica aos argumentos sem embasamento, exagerados e, até mesmo cômicos, veiculados e incansavelmente repetidos pela TV e cinema dos EUA no final dos anos 20. A essa combinação do poder de uma potência do capitalismo com o da mente humana de se apegar especialmente no que é esdrúxulo, sensacionalista e repetitivo, que faz com que os fatos por eles distorcidos se perpetuem através dos anos habitando o imaginário popular – por mais que atualmente já tenhamos estudos e informações que contestem e comprovem o absurdo desses dados que um dia foram apresentados como fatos. É evidente a lavagem cerebral, as razões e ações repletas de ignorância e covardias tomadas em prol da “segurança e saúde pública”. A campanha proibicionista foi por muitos anos massiva, alarmante e massacrante. Mas o que ela não foi é ser embasada em estudos, pesquisas ou fatos que justificassem a fama de droga mortal que foi imposta à

cannabis. Tanto nos EUA como nos demais países que mais tarde também declararam essa guerra, como o Brasil, a proibição foi instaurada por razões racistas e preconceituosas de um povo acuado com a chegada de imigrantes com suas peles negras e pardas, seus costumes e sua cultura. Amedrontando a população com informações levianas e distorcidas para que pudessem controlar os imigrantes e seus hábitos “profanos”, criminalizando seus hábitos e, consequentemente, sua cor da pele e etnia, tendo assim uma boa desculpa para colocá-los atrás das grades, fazendo crer que assim evitariam a propagação do consumo. Munidos de suas ignorâncias sobre o tema aliadas ao bombardeio de informações incertas e ao terror das notícias vinculadas à planta, a população teve suas mentes facilmente moldadas de forma a repudiar, temer e clamar pela caça e extermínio da tal “erva do diabo”. Numa época em que toda a mídia, tanto televisiva quanto impressa, propagava tais atrocidades sem poupar esforços e afirmações apelativas, era praticamente impossível ficar indiferente e não acreditar no potencial destrutivo da tal planta. Foi nessa época que nasceu o mais repetido dos discursos proibicionistas sem fundamento: o de que maconha é a porta de entrada para drogas mais pesadas. Ledo engano. Tal como a proibição do álcool, em meados dos anos 20, só fez aumentar o seu uso criando um mercado ilegal milionário deixado nas mãos de traficantes que construíram fortuna burlando a lei, a proibição da maconha também surtiu o efeito contrário. Seu consumo foi se popularizando principalmente entre os jovens, até se difundir pelos EUA e, consequentemente, pelo mundo. Vale frisar que a cannabis vem sendo utilizada pela humanidade há pelos menos 6 mil anos, tanto para fins recreativos como para fins medicinais, tendo sido citada já em 1550 a.C. pelos egípcios no Papiro Ebers, um dos tratados médicos mais antigos e importantes que conhecemos. Naquela época, dependendo apenas das informações disponí-

veis, eu e você provavelmente não saberíamos disso. E é exatamente quando passamos a ter acesso a informações e fontes variadas que as coisas começaram a mudar. E seguem mudando. Depois de longos, duros e violentos anos – bilhões de dólares dedicados a proibir uma planta de existir culminarem com o encarceramento massivo da população, alinhado a uma cultura de cannabis que se estabelecia com uma crescente de jovens e adultos usuários das mais diversas esferas sociais – o movimento antiproibicionista ganha força protestando e cobrando seu direito à liberdade e autonomia sobre o próprio corpo. E finalmente começa a ser ouvido. Ano após ano os movimentos culturais e pela legalização da maconha se espalharam e ganharam força e adesão de ativistas, artistas, intelectuais, políticos, médicos e cientistas ao redor do mundo e, mais atualmente, de pacientes que descobriram na cannabis algum alívio – e até a cura – para suas enfermidades. A eleição em 2012 de um presidente negro que assumiu publicamente já ter fumado maconha foi certamente o sinal definitivo de que, apesar de ainda difíceis, os tempos mudaram. Hoje, na era da informação, da conectividade e das liberdades individuais, é cada vez maior o número de pessoas conscientizadas e politizadas exigindo seus direitos, se organizando, mobilizando e indo às ruas pedir o fim desta guerra ineficaz que se alastra por tantos anos baseada na facilidade de outrora em manipular a opinião coletiva com terror, moralismo e repressão. Esse truque já não cola mais. Com a ajuda da música, do cinema, da internet e mais recentemente das mídias sociais, a máscara da proibição cai a cada dia, enquanto os benefícios da legalização ganham destaque, o mercado começa a se beneficiar e a indústria a (re)descobrir os milhares de utilidades dessa planta como obra-prima barata, limpa e sustentável para centenas de setores, e o impacto disso ecoa alto pelo mundo. Só nos estados legalizados dos EUA, são trilhões de dólares arrecadados

todos os anos com a venda de maconha legal – outros bilhões que seriam investidos em repressão economizados e destinados a outros fins, além do enfraquecimento do crime organizado que tem nessa planta, a droga recreativa mais consumida no mundo depois do álcool, sua principal fonte de renda. Sem citar as centenas de novas indústrias possibilitadas e encorajadas pelas leis atuais e os milhares de novos empregos gerados por elas. A sociedade civil começa a perceber o cunho de golpe político e econômico da proibição e a se unir em prol de uma causa que é bem mais ampla que o simples direito de fumar ou não um baseado. No primeiro país a legalizar totalmente a maconha, nosso vizinho Uruguai, os índices de consumo caíram, a arrecadação de impostos subiu e os casos de mortes e violência relacionadas ao comércio da mesma simplesmente zeraram. No Brasil, a terra da bancada evangélica, da bíblia e da bala, ainda estamos engatinhando nesse debate, ao menos nas esferas do poder. Já nas ruas, todos os anos ativistas lotam as Marchas da Maconha que surgem por todo o país num coro uníssono pelo fim de uma guerra racista que mata e encarcera negros e pobres todos os dias. E o movimento só vem crescendo, ano após ano, tornando as Marchas não só em dias de luta e resistência, mas também de comemoração pelos avanços, descobertas e conquistas, ainda que pequenos, que damos dia após dia em rumo a uma sociedade mais justa e que respeite as escolhas de cada indivíduo. A Marcha da Maconha ganha espaço e voz ao mostrar para a sociedade e políticos que maconheiro não é criminoso, vagabundo, viciado ou doente em potencial, e sim cidadãos conscientes, produtivos, ativos e merecedores de respeito e respaldo legal para viverem suas vidas como bem entenderem. Estado nenhum os manterá na marginalidade à base da inércia e da alienação como foi no passado. Eles são muitos, em todas as esferas da sociedade, e não são menos capazes por escolherem fumar uma erva que já é uti-

lizada há milhares de anos sem nenhum relato de morte e centenas de benefícios já comprovados. Hoje sabemos que proibir nunca inibiu e nem inibirá o consumo. Pelo contrário, desde a criação da lei proibicionista ele só tem aumentado, juntamente com a violência e as mortes ligadas não ao uso, mas sim ao comércio ilegal. Enquanto em alguns lugares ela já é vendida em balcões, como os de farmácia, em outros, dentre eles o Brasil, é comercializada por traficantes armados e mal-intencionados, cujos chefes muitas vezes são políticos, policiais e autoridades corruptas alimentando e se beneficiando de uma guerra hipócrita e sangrenta. O caminho ainda pode ser longo, mas o retrocesso não será mais tolerado. Não é mais uma questão de “se” vamos legalizar, e sim de quando isso vai acontecer. Em contraste com os antigos e tragicômicos conteúdos reproduzidos para moldar o pensamento coletivo e dar início a essa proibição – como o Grass nos mostra de forma tão brilhante –, hoje contamos com diversos filmes, documentários, estudos e pesquisas sérias que levam o debate a um outro nível, explorando e explanando as descobertas e experiências recentes, argumentos científicos, históricos, médicos e mercadológicos e até mesmo comparativo entre os países que modernizaram suas leis e os que teimam em se manter na bolha da desinformação e na contramão da evolução.

Esses estudos e dados recentes nos mostram também, por exemplo, que são centenas as doenças possivelmente tratáveis e curáveis por essa planta, com diversos relatos de tratamentos comprovadamente eficazes. Na contramão temos uma gigante indústria farmacêutica que vê na legalização e na luta pelo direito a plantar o próprio remédio uma ameaça a seus monopólios e lucros astronômicos. Hoje sabemos que essa planta é muito mais poderosa do que imaginávamos ser e não há mais como voltar atrás. Se o leitor me permite, gostaria de indicar dois

excelentes documentários orgulhosamente brasileiros acerca do tema: Cortina de fumaça e Quebrando o tabu – que abordam a importância e a urgência desse debate na esfera social, política e econômica – e convidá-lo à reflexão, ao estudo e engajamento nessa que não é apenas uma causa dos usuários, mas sim de todos que esperam viver em uma sociedade mais justa, sustentável, igualitária e pacífica. Legalizar a maconha é garantir um futuro melhor para nós, nossos filhos e para o nosso planeta. O tráfico é contra a legalização! E você?

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