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Revista JM - Crônica ‘Cotidiano’ escrita pelo Dr. Wagner Lourenço

Trata-se de uma crônica que se desenrola em uma cidade do interior, onde a tranquilidade de um ambiente cuidadosamente arranjado contrasta com o caos das ruas externas. Este palco dual serve como um microcosmo para explorar as complexidades da vida cotidiana.

São dois amigos que compartilham risadas, reflexões profundas sobre a condição humana e a observação aguçada das peculiaridades da vida ao seu redor. Eles simbolizam a sabedoria acumulada, a resiliência e o humor que permitem o cotidiano.

A crônica aborda temas como educação, potencial desperdiçado, a busca por dignidade e a complexidade das interações humanas. Ressalta-se que são temas explorados de maneira sutil e impactante, refletindo tanto a singularidade da comunidade retratada quanto questões de relevância universal.

Além disso, a crônica oferece uma crítica social afiada sobre o descaso com a educação, a desigualdade e a superficialidade dos valores materialistas, tudo isso enquanto mantém um tom acessível e convidativo.

A narrativa é permeada por um humor que é tanto uma ferramenta de crítica quanto um veículo para a expressão da humanidade. As interações entre os personagens revelam a

riqueza da experiência humana, desde as suas alegrias mais simples até suas frustações mais profundas.

“Cotidiano” é um convite para os leitores olharem além das superfícies, para encontrar beleza e significado nas rotinas diárias e nas pessoas comuns. A crônica incentiva uma reflexão sobre as ações e escolhas diárias, que moldam a trama da vida coletiva e individual.

Preparar-se para ler “Cotidiano” é preparar-se para uma viagem ao coração de uma vida diária, uma experiência que promete não apenas entreter, mas também iluminar e inspirar. A crônica é um espelho que reflete as verdades universais da condição humana, convidando os leitores a uma introspeção profunda sobre o mundo ao seu redor.

Divirtam-se!

COTIDIANO

Lugar limpo, mesas arrumadas, cheiro de dama da noite, silêncio europeu. Muito encantador. Nem parece segunda-feira, cidade do interior. Mas do lado de fora, buzinas estridentes, berros, asfaltos com marcadas de frenagem. Sai da frente sua velha surda, disse o Sr. Custodiano, homem super polido, educadíssimo. Tratava-se de Dona Surdãntina. Atravessou a pista, como sempre, foi direto à Pa-

daria. Sentou-se. Como de costume pediu um café com Leite branco. Não temos. Só com leite amarelo. Vai querer ou não, disse o atendente? Dona Surdãntina permaneceu de cabeça baixa. Há instantes de diabo versus minutos de Deus, uma dicotomia na mente do ser humano. Era o cotidiano. Em frente à Padaria havia uma parada de ônibus. Desceu o Sr. Ésoj, reclamando, como sempre, da falta de educação dos jovens, pois viajara quase cinquenta minutos, em pé, por falta de educação. Entrou naquela finesse toda, sentou-se e começou a tagarelar com Dona Surdãntina. Eram contemporâneos. Deram muitas risadas. Disse para a sua Amiga: -Eles têm potencial, mas desperdiçado, por falta de educação. Todavia, pessoas com Phd também podem ser infelizes. Era o cotidiano. Em seguida, um carro de luxo, de TV, parou em frente a Padaria. Desceu um homem lindo, alto, olhos azuis, aparentando uma educação de lorde. Que carro! Pensou o Sr. Ésoj e Dona Surdãntina. Pra quê?

A cidade não tem quase asfalto, nem hospital, só um postinho, pequeninho, com uns adesivinhos, umas seringuinhas, umas agulhinhas, mais nada. Afirmou Dona Surdãtina. O que determina o ambiente são as pessoas, disse o Sr. Ésoj para o quase lorde. Este não entendeu nada. É preciso meter brios de amor próprio, finalizou

o Sr. Ésoj olhando fixamente para o homem alto, o quase lorde. Bom, pediu como de costume o seu café, de baixíssima acidez, ovos mexidos, geleia francesa e pão holandês. Pecado da gula ou corrupção da alma?

Ninguém se atrevia a falar nada. Não precisa, quando não se quer enxergar existe desculpa pra tudo. Levantou-se, saiu sem agradecer, limpou a boca no canto da toalha de mesa. Dizem que estudou no exterior. O meu sonho é termos um Prefeito de Prefeitura, mesmo! Disse Dona Surdãntina. Eu enxergo muito bem. Eu também tenho insônias, disse o Sr. Ésoj. Vamos parar, disse o Sr. Ésoj, pois a deselegância, a inconveniência é insuportável e deverá ser combatida, caso dos foqueiros. Caíram na risada, os dois. A fofoca destrói o ambiente, e riam cada vez mais, de tudo, de si mesmos. Dona Surdãntina havia sido miss, simboliza a luta das mulheres daquela cidade, que buscavam voz e criatividade em um ambiente dominado pelos homens. Elegeu a própria filha para a Câmara de Vereadores, mas continuam pobres. Piadas sexistas, menosprezos, era o cotidiano. As pessoas costumam trocar o homem, disse o Sr. Ésoj. Costumam confundir a beleza, disse a Dona Surdãntina. É, as pessoas são complexas para serem definidas. Isso mesmo, concordou Dona Surdãntina. Roubaram a

nossa flor e nos fizeram acreditar que isso era bom. Era o cotidiano. O Senhor Custodiano perdeu as eleições, deu no Jornal. Riram e abraçaram-se. Agora posso virar José, disse o Sr. Ésoj. E eu, Maria, disse Dona Surdãntina. Do pó viemos e para o pó retornaremos. Riam com toda a leveza que uma alma merece. Era o cotidiano.

Autor: Wagner Lourenço, advogado e escritor.

E-mail: advwagner1212@gmail. com

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