1. Apresento-te o mundo
Antes os índios olhavam de noite para o céu escuro – e bem escuro estava esse céu. Um negror. Vou contar a história singela do nascimento das estrelas. Clarice Lispector6
Para falar da transmissão cultural, um tema deveras imenso, vou partir de uma memória pessoal. Há alguns anos, encontrava-me no Brasil para fazer umas conferências. Já tinha ido ao hemisfério Sul, onde descobrira árvores e pássaros desconhecidos, cujos nomes e particularidades os meus anfitriões me haviam ensinado; por vezes, tinham-me contado lendas que lhes estavam associadas. Curiosamente, nunca prestara atenção ao céu depois do cair da noite. Até àquele Verão, no Brasil, em que Patrícia Pereira Leite me levou ao campo, em Minas Gerais. Quatro horas de viagem para chegarmos a uma plantação de café, com as suas casinhas brancas, as suas bananeiras, as suas buganvílias, os seus tucanos. Ao fim da tarde, fomos dar um passeio por um caminho próximo da fazenda. A noite caiu àquela velocidade que surpreende sempre os que vivem em climas temperados,
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e as estrelas compuseram a pouco e pouco um universo completamente desconhecido. Eu não me podia agarrar às constelações habituais aos que vivem no hemisfério Norte. Olhava para o céu, não via senão uma infinidade de astros isolados, e sentia um curioso receio, como se eu própria estivesse separada, isolada dos outros. Compreendi a que ponto o céu é para nós uma referência habitual e como é perturbador vermo-nos privados dela. O céu de Minas Gerais não me dizia nada, não evocava nada. Apressei-me a perguntar onde estava o Cruzeiro do Sul. A jovem aldeã que nos acompanhava ergueu os olhos sem o encontrar. Um vizinho que passava disse que tínhamos de esperar pelas onze da noite para o avistar. Sem sequer pensar nisso, havia-me agarrado àquele nome desconhecido, «Cruzeiro do Sul», para introduzir um marco de referência naquele universo indiferenciado, entre astros que não estavam ligados por qualquer figura, que não se associavam a qualquer memória, e cujos nomes ignorava. Sobre aquele céu, não me tinham dito nada, nada me tinha sido transmitido.
Lançar sobre o céu, o mar, a cidade, uma rede de palavras e de histórias Uma constelação não tem qualquer fundamento científico, as estrelas estão aí agrupadas apenas pela nossa necessidade de arranjar conjuntos, de os nomear e de contar histórias a seu respeito. É uma pura construção
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humana, baseada, na cultura ocidental, na tradição helénica e pré-helénica, transmitida através da Idade Média. Outras culturas imaginaram diferentes constelações, mas todas compuseram este céu humano numa tentativa de o domesticarem, de o domarem, para não sermos tomados de pânico como me tinha sucedido nessa noite. Ou como aconteceu àquela criança citadina, em Netherland de Joseph O’Neill, que passa uma noite num barco e sente um pavor nunca antes vivenciado ao erguer os olhos para as estrelas: «Não passava de um rapazinho num barco no universo.»7 Nessa noite, no Brasil, percebi a que ponto a transmissão cultural era uma apresentação do mundo. O sentido dos nossos gestos, quando contamos histórias às crianças, quando lhes propomos álbuns infantis, quando lhes lemos em voz alta, talvez seja sobretudo isto: apresento-te o mundo que outros me passaram e de que me apropriei; ou apresento-te o mundo que eu descobri, construí, amei. Apresento-te aquilo que nos rodeia e para que tu olhas, admirado, apontando-me um pássaro, um avião, uma estrela. Digo-te um poema: Por cima do mar encontrámos a lua e as estrelas num barco à vela…
Mais tarde, leio-te lendas que falam do nascimento dos astros, ou, quando passeamos, apresento-te a Ursa
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Maior e a Menor, que graças a estes simples nomes um pouco infantis tornam o céu familiar. Todas as sociedades lançaram sobre a noite estrelada uma rede de palavras, de histórias, de cosmogonias, de cujos fragmentos nos apropriamos desde a infância. Ainda que não saiba que astros correspondem a Andrómeda, Dragão, Pégaso ou Cassiopeia, ainda que tenha esquecido – se alguma vez as conheci – as histórias de onde estes nomes provêm, eles povoam o céu de animais ou de heróis míticos e transformam-no num domínio humano. Quando olho para cima, estou ligada a todos aqueles que o contemplaram, que o observaram ao longo dos séculos. E àqueles com quem caminhei, de noite, que apontaram certa estrela, contaram fábulas a seu respeito ou explicaram que em meados de Agosto se tem de formular um desejo quando se vê um cometa, como se os astros velassem por nós, se transformassem em outras tantas «boas estrelas». Lembro-me de outras noites em que pedi desejos e daqueles com quem estava, e a noite fica povoada. Através de mil estratagemas, domesticamos assim, no dia-a-dia, o céu indiferente e gelado. A ponto de por vezes ele se tornar quase amical, como para o marinheiro cuja aventura verídica é relatada por Gabriel García Márquez em Relato de Um Náufrago: andou à deriva sem comer nem beber durante dez dias e outras tantas noites, sentindo-se ameaçado por «animais enormes e desconhecidos» que passavam rente à sua jangada, tendo por única companhia a Ursa Menor: «a partir do momento em que localizei a Ursa Menor não me atrevia a olhar para outro
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lado. Não sei porque é que me sentia menos sozinho a olhar para a Ursa Menor. […] Pensava que àquela hora alguém estaria a olhar para a Ursa Menor em Cartagena, como eu a olhava no mar, e essa ideia fazia com que me sentisse menos sozinho.»8 Apresento-te o mar, canto-te Que linda falua, A barca virou, O mar enrola na areia ou Um barquinho ligeiro andava, ligeirinho andava no mar, leio-te histórias de galeões e de caravelas, de piratas e de Robinson, ou conto-te que Posídon criou os cavalos, e as ondas ficam de certo modo balizadas. Porque também o mar é inquietante, mais ainda nestes tempos em que não há semana em que não se oiça falar de um furacão, de um tsunami, ou daqueles imigrantes que partiram para tentar a sua sorte e acabaram por morrer afogados numa praia das Canárias ou da Líbia. Usei o exemplo do céu porque ele é o nosso pai mítico desde a Grécia Antiga, e do mar porque em muitos sítios os seus movimentos são associados, nas lendas ou no inconsciente, aos humores daquela que cuidou de nós no início da vida, mas poderia ter falado do modo como todas as culturas tentam domesticar a montanha, a floresta, o deserto, os rios ou a paisagem urbana com a ajuda de histórias, de mitos, de ritos e de obras de arte. Apresento-te a cidade e interponho entre ti e ela narrativas, recordações, poesias ou canções, para que lá possas morar. Quando passares por aquela rua, sem sequer pensares nisso, ela estará povoada pelas personagens dessas histórias, que te acompanharão; quando
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avistares a Torre Eiffel, lembrar-te-ás que um dia te contei que um poeta a comparou com uma pastora, e as pontes com carneiros. Palavras que terei dito, lido ou cantado tornarão possível uma experiência poética do espaço. As ruas ou os bairros ganharão relevo, far-te-ão sonhar, derivar, associar, pensar. Para que o espaço seja representável e habitável, para que possamos inscrever-nos nele, tem de contar histórias, ter uma densidade simbólica, imaginária, lendária. Sem narrativas – nem que seja uma mitologia familiar, algumas recordações –, o mundo limitar-se-ia a existir, indiferenciado; em nada nos ajudaria a habitar os lugares onde vivemos nem a construir a nossa morada interior.
Inscrever na sequência das gerações Apresento-te também o mundo de onde vens, inscrevo-te na sequência das gerações para não andares muito à deriva ao longo da vida. Como nesta cena evocada na Argentina por Silvia Seoane: Quando era pequena, a minha mãe, à noite, de luz apagada, contava-me a história de Alice no País das Maravilhas. Não sei se ela alguma vez leu o romance de Lewis Carroll; não sei se a sua mãe, um irmão mais velho ou uma freira do colégio onde esteve interna alguma vez lhe contaram a história. Não sei se leu alguma versão desse romance em El tesoro de la juventud, livro de cabeceira da sua infância (e que, durante muitos anos, imaginei ser a fonte de todas
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as histórias). Ou seja, não sei como esse clássico da literatura chegou às mãos, aos olhos ou aos ouvidos da minha mãe. […] Sei que ela tinha uma pequena venda9 na nossa casa e que, provavelmente por isso, as aventuras que me contava dessa Alice decorriam num mundo de árvores de chocolate Jack e de cascatas de Fanta Laranja e Coca-Cola. Sei que Alice chegava a esse paraíso passando por um espelho (por isso eu gostava tanto do armário da casa de banho) e sei que lá estavam o coelho e a Rainha de Copas. […] Não me lembro de muitos pormenores da história, mas lembro-me da voz da minha mãe na obscuridade. Recordo com enorme nitidez o que eu via enquanto ela contava. Recordo a emoção e a maravilhosa sensação alucinada. Sei que estava convencida de que, de algum modo, eu era a Alice; […] todas as noites, um mundo paralelo nascia para mim na voz da minha mãe. Com o seu relato, eu atravessava o espelho e entrava ritualmente na ficção. Como também entrava quando ela me contava a história do rei David ou a do meu trisavô, o carabineiro do Sul de Itália; a história de Pedro e o Lobo e também a do meu tio Orestes; as histórias dos meus bisavós, professores primários na Patagónia em princípios do século, e a da pedra movediça de Tandil10 junto de cujos restos a minha avó dava aulas (relatos graças aos quais – estou certa – escolhi a profissão de docente).11
Noite após noite, a mãe de Silvia tecia assim histórias que encantavam o quotidiano e alargavam o espaço, abrindo-o até aos campos russos ou à Patagónia, à toca do coelho de Alice ou a Itália. Ligava a menina a todas aquelas pessoas das gerações passadas que viviam na sua voz, o antepassado carabineiro, o tio Orestes, os avós
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professores primários, introduzindo Silvia no tempo histórico do século findo como no tempo bíblico do rei David. Apresento-te aqueles que te precederam e o mundo de onde vens, mas apresento-te também outros universos, para teres liberdade, para não ficares demasiado enfeudada aos teus antepassados. Dou-te canções e histórias que relembrarás para atravessar a noite, para não teres muito medo do escuro e das sombras. Para poderes, a pouco e pouco, ir passando sem mim, para te pensares como um pequeno ser distinto e depois elaborar as múltiplas separações que terás de enfrentar. Entrego-te pedacinhos de saber e ficções para seres capaz de simbolizar a ausência e de enfrentar, na medida do possível, as grandes questões humanas, os mistérios da vida e da morte, da diferença dos sexos, o medo do abandono, do desconhecido, o amor, a rivalidade. Para escreveres, entre as linhas lidas, a tua própria história. O que o adulto quer dizer à criança quando lhe mostra álbuns infantis e os abre perante ela é ainda: apresento-te os livros porque uma imensa parte do que os seres humanos descobriram está aqui escondido. Poderás ir lá procurar respostas que te ajudem a dar sentido à vida, saber o que outros pensaram das perguntas que te fazes – não estás sozinha para as enfrentar. Apresento-te a literatura que, como o jogo do cu-cu ou o teatro de sombras, faz aparecer e desaparecer à nossa vontade. Poderás jogar com ela ao longo de toda a vida, se te apetecer, meter-te no corpo e nos pensamentos de seres
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que diferem radicalmente de ti. Só a literatura te dará tanto acesso ao que eles sentiram, imaginaram, recearam, mesmo que tenham vivido há séculos, mesmo que habitem em latitudes muito diferentes. Dou-te o que para mim é o mais belo, dar-lhe-ás o uso que quiseres, passarás por tua vez aquilo de que gostas aos teus filhos ou àqueles que hás-de encontrar no teu caminho. No entanto, aqui adorno um bocadinho a história já que, muitas vezes, paradoxalmente, pensamos: «Dar-lhe-ás o uso que quiseres… mas queria tanto que gostasses do que eu gostei, do que foi importante para mim.» E quando, por vezes, a criança se desvia do que lhe propomos, quando não parece ouvir ou interessar-se pela história e pelas imagens que lhe apresentamos, ficamos tristes, sentimo-nos abandonados. Mas temos de continuar, com serenidade; de prosseguir também quando se tornam adolescentes e, aos nossos gostos, preferem os seus amigos, os seus cantores ou as suas histórias de vampiros; de continuar a ler o mundo com eles e a falar sobre isso, sem nos impormos muito, porque, naquela idade, um adulto depressa está a mais, sobretudo se gosta de se ouvir e tenta impor as suas ideias fixas ou o seu saber. E o adolescente não se ensaia nada em no-lo dizer: «Já chega, que seca!» Então vociferamos, deprimimo-nos, porque teríamos gostado tanto que ele experimentasse o que deu sentido às nossas vidas. E lá entoamos a ladainha da crise da transmissão.
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A uma criança, cada um dá o que para si tem mais significado. Abrimos-lhe aquelas portas. Mais tarde, a criança aproveitará isso, ou não. Abrirá por sua vez ou tras portas. Frequentemente, só muito tempo depois nos apropriamos da herança recebida: quando era pequena, os meus pais arrastavam-me para ver museus e eu morria lá de tédio. Mas toda a vida os museus me acompanharam, senti-me neles como em casa. Porque é mesmo isso o que está em jogo com a transmissão cultural e, mais particularmente, com a leitura: construir um mundo habitável, humano, poder encontrar aí um lugar e deslocar-se; celebrar a vida no quotidiano, oferecer as coisas de forma poética; inspirar as histórias que cada um fará da sua própria vida; alimentar o pensamento, formar o «coração inteligente», para usar uma expressão de Hannah Arendt, que teria acrescentado que é preciso transmitir o mundo às crianças, ensiná-las a gostar dele, para que um dia tenham vontade de assumir a sua responsabilidade. Porque, para ela, «é o amor do mundo que nos dá uma forma de pensar política»12.
A importância da família e dos que nos são mais próximos… Por mil razões vitais, os pais e os outros mediadores culturais apresentam o mundo às crianças com a ajuda de contos, canções, histórias, imagens de álbuns, lendas familiares, memórias. Lêem com elas as paisagens e os
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rostos que os rodeiam. Muitas vezes, de forma intuitiva, conjugam vários registos sensíveis nesses momentos de transmissão. Assim, quando lêem álbuns em voz alta, o que eles propõem às crianças é quase uma pequena ópera: abrem um cenário, toda a fantasmagoria das imagens dos álbuns, e convidam a uma escuta musical em que a voz é o rei da festa. Ao princípio, os adultos contam com um maravilhoso aliado: o bebé, devido à sua capacidade de se admirar. Florence Guignard pensa que as pulsões «epistemofílicas», como dizem os psicanalistas, que nos estimulam ao conhecimento, existiriam desde que nascemos. E dá o exemplo de um bebé que «passou as duas primeiras horas da sua existência a despertar progressivamente, a ouvir e a olhar em redor com uma atenção impressionante, conseguindo mesmo virar a cabeça para alargar o campo de visão; só depois dessas duas horas de exploração é que adormeceu pela primeira vez na sua vida fora do útero»13. No entanto, o desenvolvimento destas pulsões vai depender muito da qualidade das relações com os pais, da sua disponibilidade psíquica. A descoberta admirada do mundo pelo infans é estimulada pelo rosto e pelo sorriso da mãe (ou de quem provê os cuidados maternos), pelos seus olhares, os seus gestos, a sua voz, as suas palavras. Para além disso, é reavivada pela afabilidade de todos os que o rodeiam, pela curiosidade e pelo modo como olham para as coisas e para as pessoas. Como aquele pai evocado pelo escritor grego Yannis Kiourstakis: «O meu pai, sentado numa cadeira, comigo
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ao colo, a dar-me a papa às colherinhas, cantando a cada colherada: “Ele bebe o bei / ele bebe o agá / ele bebe o filho do bei”, e fazendo-me dançar. Esta cançoneta e este cerimonial tinham-me cativado tanto que muitas vezes me recusava a comer se me visse privado deles.»14 O pai contava-lhe também coisas de Creta, onde passara a sua própria infância: «Todas aquelas histórias pareciam provir de um único grande conto, que eu ouvia sem nunca me fartar desde que me lembrava de ser gente, sempre com a sensação de que nunca teria um fim: o dos anos da sua infância. Falava-me da casa familiar em Chania e do velho bairro de ruelas estreitas…» O pai evocava todo um universo oriental, de cores garridas, que não se parecia em nada com o que o jovem Yannis conhecia, mas que «era tão real como o mundo que eu podia tocar: as casas, os bairros, os lugares onde eu vivia; era um mundo que completava e prolongava o meu e onde me parecia, também eu, ter já vivido»15. Penso também em cenas de transmissão cultural a que assisti no México com crianças um pouco mais velhas. A primeira situa-se no maravilhoso museu de arqueologia e de antropologia da cidade, onde segui, esforçando-me por ser discreta, uma avó. A velha senhora, de cabelos entrançados e um uniforme de empregada doméstica, ia de sala em sala comentando cada vitrine para a sua neta, fazendo-a reparar em pormenores: «Olha, vês, era assim que elas faziam os bolos, era assim que teciam a lã, e viste as roupas e as jóias? E este brinquedo?» Frases muito simples, mas que lhe davam o mundo, aquele mundo que era o seu.
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