do corpo ao espaço /uma perspectiva feminista sobre a cidade

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U M A

do corp o espaço

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P E R S P EC T I VA

F E M I N IS TA

[ trabalho final de graduação ]

keila ro b le p ereira

fct - unesp

/presidente prudente

S O B R E

A

C I DA D E



U M A

do corp o espaço

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P E R S P EC T I VA

F E M I N IS TA

monografia apresentada ao curso de

arquitetura e urbanismo como requisito

da disciplina trabalho final de graduação 2, da universidade estadual paulista "júlio de mesquita filho" - faculdade de ciências e tecnologia - fct unesp, campus de presidente prudente

[ trabalho f inal de graduação ]

■ keila ro b le p ereira orientação fct - unesp

márcio josé catelan

/presidente prudente

S O B R E

A

C I DA D E



não basta sequer descobrir o que somos. há que nos inventarmos. rosário castellano

/ o eterno feminino

a r te

@ l a ra izi s


RESUMO

palavras-chave cidade, gênero, mulheres, espaço, arquitetura

a casa, a rua, a praça, o túnel e a calça-

enquanto possibilidade de emancipação

da, o muro, o canal, a poluição, a degra-

é nosso interlocutor, e através dessa

dação, os becos e vielas, a violência,

ótica pretendemos aguçar a dissidência

a política, a arte e a mídia - a cidade

da arquitetura mirando a concepção de

e seus elementos são desafios diários

novos modos de vida. Essa pesquisa de

para a mulher. Reconhecer e debater

caráter exploratório através de um apor-

essa condição possibilita revelar os

te teórico temático estabelece pressu-

processos de subordinação e as dispu-

postos importantes para a observação

tas pelo poder que através das formas

da realidade. Assim, o trabalho se propõe

urbanas sucessivamente engessam o

a se inscrever nos debates sobre arquite-

processo de emancipação feminina. A

tura e gênero, buscando contribuir para

mulher vem sendo historicamente invi-

a produção de conhecimento e reflexão

sibilizada e relegada à esfera privada,

crítica acerca da construção objetiva e

enquanto o público é irrefutavelmente

simbólica da realidade humana e das

masculino. Em cima desta dicotomia é

cidades, com foco na (não) inserção da

que se estruturam os espaços físicos

mulher na produção ativa da vida social.

e de poder na cidade. Nesse sentido, a

O debate apresentado é um maneira de

arquitetura e o urbanismo são utiliza-

afirmar a importância de se incorporar

dos como instrumento para a manuten-

no âmbito da produção da Arquitetura

ção do modus operandi da sociedade,

e Urbanismo perspectivas que possibi-

legitimando a separação desigual entre

litem soluções para as especificidades

classes/ gêneros /etnias, etc. de modo

das vivências dos grupos mais vulnerá-

a assegurar o controle das massas e

veis da sociedade, apontando a necessi-

evitar inconvenientes ao poder hegemô-

dade de incluir a mulher no pensamento

nico. Buscamos então entender como se

e concepção da cidade enquanto usuá-

articulam gênero e espaço no âmbito da

ria ativa e agente transformadora deste

arquitetura e do urbanismo e quais as

espaço.

implicações para a mulher. O feminismo

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i nt ro d u ç ã o

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PARTE 1 pressupostos corpo, espaço e gênero

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disjunções arquitetura e feminismo

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PARTE 2 contexto mulheres e o direito à cidade

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aproximação um olhar sobre presidente prudente

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c o nsi d e ra ç õ es f i nais

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re fe rê n c ias b ib li o g ráf i c as

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N

introdução

o início de um dos capítulos do livro “A Condição Urbana”, Olivier Mongin (p.62,

2008) escreve que “a experiência mental da cidade, inseparável de uma forma que também é uma formação, está ligada a um ritmo corporal” e que “[...] formadora, a cidade-corpo adora se apresentar, é sabido, como uma cidade-livro, como uma cidade-linguagem, em suma, como uma língua. Entre o corpo da cidade e os corpos que a percorrem, a cidade é uma folha, jamais totalmente branca, sobre a qual corpos contam histórias”.Basta um olhar mais aguçado para constatarmos que a história que se conta através dos discursos e teorias e a história que se vive nem sempre são correspondentes, mas que o intrincamento entre elas é inevitável: por mais uniforme e universal que se mostre a narrativa da “cidade-livro” sempre há corpos e vivências negligenciados ou ocultados ao longo do tempo. Então, como buscar nas entrelinhas cidade-livro a realidade feminina? Antes, é preciso entender o porquê de buscar essa realidade, ou ao menos parte dela. Àquilo que vivi e vivo enquanto mulher, somo minha trajetória como estudante de Arquitetura e Urbanismo, onde tive base para expandir meus questionamentos sobre o que somos e como percebemos e vivemos a cidade, sobre o corpo e o espaço em que habitamos, sobre o outro e o eu. Período também em que a cidade se revelou como território plural e extremamente complexo, que esconde e manifesta tantos símbolos quanto possível. A conexão entre arquitetura e sociedade sempre representou para mim uma maneira intrigante de interpretar a relação de nossos corpos com o espaço em que vivemos, como uma maneira de entender de que forma corpo e cidade se transformam, tanto na materialidade quanto na subjetividade. A grande problemática, que muitos relutam em reconhecer, é que um “corpo” nunca é um corpo somente, ele é sempre social e político, e a cidade sempre contém muito mais do que as fachadas mostram. O corpo é o limiar entre interior e exterior, assim como

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a arquitetura, e é codificado socialmente e valorado a partir de suas características primeiras: feminino ou masculino, enquanto padrões institucionalizados. Mas existe, há muito tempo, um enorme descompasso entre homens e mulheres. Esse descompasso é notável na cidade nas mais variadas dimensões, e é daí que surgem minhas inquietações.

Há algo de específico na constituição do corpo feminino que tem a ver com sua experiência urbana? Que elementos a cidade pode revelar sobre a história das mulheres, o corpo feminino? Por que as mulheres são mais sensíveis aos problemas urbanos? O que isso significa? Como a perspectiva feminina pode acrescentar à construção de cidades melhores? [...] Essas questões, constantes e talvez mais pertinentes que as respostas, me acompanharam nos últimos anos, mas gradativa e inevitavelmente me provaram quão invisível é a mulher. Melhor dizendo, quão invisibilizadas nós fomos. Ao longo do curso, ao passo que me aproximei do feminismo, fui permeando e descobrindo diferentes visões sobre a vida em sociedade e o urbano, o que, sem dúvida, me fez refletir muito sobre a real importância da arquitetura e do urbanismo, sobre a verdade essência da cidade. Essa experiência, por outro lado, dolorosamente sinalizava que as mulheres foram apagadas da história, mitigadas pelo peso da insignificância que há muito tempo colocam sobre ela. Na sala de aula, no mercado de trabalho, nos cargos representativos, nos prêmios de arquitetura, nos livros, nas ruas... nosso apagamento é visível! Não se trata de vitimismo, trata-se de reconhecer a realidade tal como ela é. Mas mulheres estão em todos os lugares, alguns se antecipariam em dizer. Estamos em todos os lugares, de fato. Certamente não é difícil notar que estamos pelas ruas, praças e parques, nas casas e lojas, à frente de cargos importantes, assim como na política e na televisão. Antes a mulher não podia praticamente nada disso, o que significa que tivemos muitas conquistas, é claro. Só que por mais que essa constatação pareça uma obviedade e que dê a impressão de que estamos a um passo da igualdade, a presença da mulher envolve mecanismos implícitos, onde o estar e transitar fisicamente nos espaços da cidade não significa ocupá-los como espaço próprio - fato este que contém muita história a ser apreendida, e principalmente muita assimetria social a ser compensada. As mulheres trabalham muito mais, são mais pobres e também as maiores vítimas da violência generalizada. Em uma sociedade majoritariamente urbana, como não relacionar esses problemas ao contexto da cidade, espaço onde tudo isso se desdobra? Por isso, há uma similitude entre constatar que a mulher está presente e ao mesmo tempo oculta, e essa contradição revela o ponto nodal deste trabalho: uma coisa é percebermos a presença física da mulher nos espaços, e outra completamente distinta é entendermos a produção do espaço tendo como preocupação política e analítica a estrutura e a dinâmica das relações geradoras de exclusão e desigualdades. Debater as desigualdades, todavia, não é simplesmente entender o problema como sendo de acesso aos espaços somente é reconhecer que elas não só atravessam a produção e a reprodução dos espaços, mas que são, acima de tudo, elementos constituintes das mesmas. Essa diferenciação é primordial porque não basta reconhecermos que as desigualdades de acesso existem, é preciso assumir as hierarquias como dinamizadoras e estruturadoras da cidade e que afetam profundamente


I N T R O D U Ç Ã O  a vida das mulheres. Só dessa forma estaremos confrontando as questões do poder e, por consequência, os privilégios de poucos diante da conservação dessa estrutura. Portanto, esta pesquisa parte de inquietações sobre o corpo e o espaço, mais especificamente sobre como as desigualdades existentes entre os gêneros circunscrevem o corpo da mulher na cidade tanto em termos materiais quanto subjetivos, entendendo que o cotidiano urbano não se desenrola sobre um solo apolítico e neutro ao contrário do que se costuma defender. Como veremos, há muito tempo se constrói pretextos naturais e biológicos em torno do corpo para corroborar as diferenças entre os sexos, e construir socialmente toda rede de símbolos para classificar e organizar social e espacialmente as pessoas. Basicamente, a cidade é sustentada pelos trabalhos de produção (esfera pública) e de reprodução (esfera privada), onde cada um possui sua função na sociedade, sendo que existem atividades que são “próprias” do ser masculino, e as que são “próprias” do ser feminino (SILVA, 2007); são as definições socioculturais sobre o que é apropriado ou não para cada sexo, conectando-se diretamente com a construção dos gêneros (MONTANER; MUXÍ, 2014). Num primeiro momento, isso possibilita entendermos o conceito de gênero como sendo a codificação social dos corpos, que pré-estabelece tarefas, prioridades, conteúdos mentais [...] e, portanto, lugares específicos. Dessa forma, gênero se difere de sexo, e faz referência aos papéis desempenhados socialmente pelos corpos; é uma construção cultural onde não cabe atribuir as desigualdades existentes ao desígnio da natureza e da biologia. Nessa classificação desigual dos corpos, o sujeito público é o homem enquanto a mulher é relegada compulsoriamente à esfera privada, aos cuidados do lar e da família. Constrói-se um padrão de comportamento, a partir do qual se espera determinadas atitudes, formas de viver e ser. Espera-se, a partir disso, que sejamos “belas, recatadas e do lar”1 - nada contra - e nada a favor - mas há de se permitir modos de vida alternativos, sem por isso marginalizá-los. Tudo isso surge da concepção dicotômica da vida e dos espaços. Tanto é verdade que muitas estudiosas/os denunciam o que seria um modo de pensar disciplinado por dualidades e categorias de oposição como masculino/feminino, bom/mau, mente/ corpo, razão/emoção, público/privado e tantas outras dualidades que embasam a sociedade. Na arquitetura não é diferente, e os embates se dão em torno de antagonismos que na maioria das vezes são complementares: Ordem e desordem, estrutura e caos, ornamento e pureza, racionalidade e sensualidade e assim por diante. Essas dicotomias são estritamente ligadas a um modo androcêntrico e patriarcal de pensar os espaços e reger as relações, que é basicamente supervalorizar a masculinidade. O sociólogo Pierre Bourdieu, por exemplo, mostra como a dominação masculina está impregnada em nosso modo de pensar, agir, sentir e como essa seria uma forma particular de violência simbólica. Sem que percebamos nossas relações são regidas por princípios androcêntricos.

o princípio masculino hegemônico se institui como o parâmetro mediante o qual se mede tudo o mais: relações sociais, comportamentos afetivos e sexuais, utilização do espaço, 1  Esta frase é o exemplo mais caricato do que se espera das mulheres. Vide manchete de um ar�go da revista veja ao falar sobre como Marcela Temer, primeira-dama do presidente golpista, “aparece pouco, gosta de ves�dos na altura dos joelhos e sonha em ter mais um filho”. Disponível em: h�ps://veja.abril.com.br/brasil/marcela-temer-bela-recatada-e-do-lar/.

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atitudes físicas, formas corporais, etc. [...] A ordem masculina conseguiu impregnar o inconsciente coletivo de alguns esquemas estruturais, tanto éticos como sociais e simbólicos, que vêm dar crédito à ordem masculina não apenas como a única possível, mas como uma ordem neutra, a serviço do conjunto da sociedade e acerca do qual não se pode discutir, porque é inevitável. ■■CORTÉS, 2008, p.140

Em síntese, enquanto constructos sociais, a arquitetura e o urbanismo, a cidade como modo de vida e pensamento, o solo, a luta de classes, o trabalho, a economia, a política, os papéis de gênero e as dicotomias estruturais são parte de uma trama complexa e interpenetrada, que amarra os mecanismos da sociedade à hegemonia masculina. Por isso, a compreensão política e a abordagem crítica da arquitetura e do urbanismo balizam nossas discussões em torno da mulher e o urbano, onde o conhecimento produzido pelo feminismo será nosso interlocutor para evidenciarmos o modo como essa condição é determinante para o corpo feminino. Esta situação se faz possível por meio da construção de espaços objetivos e subjetivos supostamente neutros, descorporificados, quando na verdade o ‘sujeito’ por trás do conhecimento e da concepção do urbano é bastante específico: homem-branco-heterossexual detentor de privilégios estruturais. De tal modo, abordamos a arquitetura e o urbanismo em diferentes dimensões, mas sobretudo como instrumentos de controle social para ilustrarmos como se estabelecem os processos de subordinação que conformam a vida urbana. A arquitetura tem um papel extremamente importante na formação da imagem da ordem social e até mesmo em sua configuração e imposição. Temos de levar em consideração que, assim como a linguagem, ela é uma estrutura que ajuda a construir e organizar nossas experiências, elaborando significados e estabelecendo conteúdos através do discurso (CORTÉS, 2008). A suposta neutralidade e imparcialidade técnica e descritiva da arquitetura e do urbanismo contribuem para a intensificação das desigualdades, se expressando através de “uma geometria autoritária que sustenta o pensamento hegemônico, reproduz a subordinação do feminino, exacerba as diferenças sociais e nega a existência espacial das minorias” (ibid, p.126-127). Isso quer dizer que a espacialização contribui com a representação dos signos, naturalizando os privilégios e a autoridade masculina - não é o espaço que contém as identidades de gênero, mas o gênero é que é um elemento constitutivo dessas identidades. Tais processos estão implantados e enraizados na sociedade há muito tempo e perduram até hoje porque trata-se de um conjunto de mecanismos e instrumentos sutil e complexo que age consciente e inconscientemente em todas as camadas da vida, sendo a inter-relação entre corpo e espaço fundamental para a compreensão das relações de poder que se estabelecem uma vez que é em função de sua situação social que a mulher estabelece relações com o mundo e a partir da qual sua subjetividade é constituída. O espaço arquitetônico tem uma quantidade imensa de características, dimensões e fenomenologias de uso e de percepção (CORTÉS, 2008; PEZZI, 2015), por isso, estamos longe de qualquer aceitação de que as subjetividades são desconectadas da história e do espaço, por mais inabaláveis que pareçam as teorias e discursos. Não podemos negar as margens nem as fronteiras da arquitetura, como se fossem

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I N T R O D U Ç Ã O  territórios vazios de significação. Como então excluir a subjetividade, território fundamental para a confrontação dos padrões estabelecidos? Mas na complexidade que a envolve, a noção de arquitetura em voga é mais ou menos consensual, comumente restringida a ideais técnicos e tecnológicos ou artísticos e criativos, por vezes reduzido a projetos somente. Em uma entrevista, a arquiteta argentina Zaida Muxí enfatiza como é importante estudantes, arquitetas e arquitetos, reconhecerem uma prática mais ampla da profissão, que não é somente o projeto, “mas também a docência, a investigação, a publicação, a construção e um largo etc”. Seja como for, o que se forma é uma versão abstrata e simplista geralmente destituída de consciência social, e assim direta e indiretamente a serviço dos mais ricos e poderosos. Em países empobrecidos (com destaque aos da América Latina) a situação é ainda mais complicada, pois seus modelos de desenvolvimento provêm de outras realidades (geralmente europeias), e que por aqui reforçam e consolidam a concentração de renda e poder, conjuntura da qual resulta a extrema pobreza e exclusão: trata-se do urbanismo como instrumento de salvaguarda da classe dominante, pois se todo o aparato social está nas mãos de poucos com poder, a cidade é pensada e construída para atender esse determinado grupo ou classe dominante, constituída basicamente de homens-brancos-heterossexuais com plena capacidade de locomoção. O resultado é uma dinâmica urbana limitadora para a grande maioria da população, que restringida de certos espaços físicos e de poder tem inserção parcial na sociedade, e as possibilidades de exercer a cidadania são superficiais ou até mesmo nulas, especialmente para a mulher cujo papel social a constrange de inúmeras formas – situação que se agrava ainda mais quando interpolamos questões de classe e de raça à de gênero. Nesses termos, não é exagero dizer que a mulher não tem, nem nunca teve, o direito e o acesso irrestritos à cidade porque não pode experimentá-la de forma plena e segura. As formas urbanas reproduzem objetiva e subjetivamente os estereótipos de gênero: os espaços públicos e de poder são naturalmente atribuídos ao homem. Esses mesmos espaços são para a mulher, lugar da impossibilidade e do medo. A casa, por outro lado, é tida como o lugar feminino por excelência – o privado como reino da domesticidade e da manutenção do lar, que na verdade representa um verdadeiro inferno para a maioria das mulheres. Esse panorama de desequilíbrios na sociedade impõe que a produção do conhecimento e a práxis da arquitetura se voltem intensamente à essas questões - todas elas estruturadas em torno do acesso ao espaço físico e de poder e, portanto, do direito à cidade. Apesar da responsabilidade social de arquitetas/os e urbanistas, essas questões permanecem negligenciadas nas universidades e na atuação profissional e, por extensão, essa lacuna na postura crítica se reflete como desigualdades profundas na estrutura e desenho das cidades. Os autores Montaner e Muxí (2014, p.10) quando afirmam que “legitimou-se como saber acadêmico o ‘não comprometido’, aquele que elimina o pensamento crítico e que rejeita a intervenção transformadora da realidade social”, falam justamente sobre a academia seguir amarrada às pretensões mercadológicas e raramente abordar com seriedade as necessidades mais urgentes de nosso tempo. Não por acaso, o curso de Arquitetura e Urbanismo é um dos mais elitizados das universidades brasileiras e geralmente se fala de arquitetura social de forma hierarquizada e assistencialista, de cima para baixo como faz todo grupo dominante em

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relação ao outro. É certo que o “universo urbano” vem instigando novas interpretações sobre a cidade através de diversas perspectivas, muitas delas por meio do viés humano e sociológico, mas, ainda assim, o papel social da arquitetura segue enfraquecido. Sua inclinação política foi se perdendo ao longo do tempo de tal modo, que hoje é quase impossível diferenciá-la dos mecanismos perversos do capitalismo especulativo. Ocorre então que o que temos hoje é este espaço residual do capitalismo, reprodução minguada do padrão burguês de felicidade onde a maioria de nós sobrevive a uma vida enfadonha. Essa cidade de ambiência ora morna ora insossa, mas predominantemente hostil para grande parte da população, sobretudo feminina, é resquício dos princípios de uma herança escravocrata e segregacionista. Princípios esses que fazem jus a uma parcela mínima (masculina) da sociedade, cuja sede desenfreada por fortuna e poder atropela sucessivamente todos e quaisquer obstáculos, sejam eles a classe trabalhadora, os imigrantes, as pessoas negras e pobres, as mulheres e a própria natureza. Fica evidente que os espaços em que vivemos são pensados e construídos em descompasso com a realidade humana, e ainda mais com os modos de vida que desejamos, porque a cidade é desconectada de nosso corpo. A cidade contemporânea revela processos de subordinação e disputas pelo poder através das formas urbanas que sucessivamente fragilizam a autonomia da mulher e, por isso, a arquitetura e o urbanismo demandam transformações profundas e urgentes. Sempre considerando seus limites, é claro, pois a assimetria estrutural de nossa sociedade não pode ser resolvida com a arquitetura, nem com a arquitetura sensível às mulheres, mas dentre outras coisas, essa abordagem enriquece o conhecimento sobre a cidade e expande as possibilidades de um novo mundo. É preciso que deixemos princípios falsamente universais de lado para dar lugar às especificidades da mulher e de outros grupos historicamente ocultados. Só assim construiremos a possibilidade de uma cidade genuinamente democrática. O objetivo principal do feminismo, ou da perspectiva de gênero, é favorecer de forma equilibrada a todos os grupos sociais que compõem a cidadania e que o planejamento a partir destes critérios não é responsabilidade exclusiva das mulheres. Ainda que incorporar suas as vozes e percepções seja parte fundamento deste processo, a responsabilidade do desenho sensível de um planejamento para a igualdade corresponde a todas e todos os técnicos e políticos, não se restringindo unicamente às mulheres ou outros grupos afetados (VELÁZQUEZ, 2001, p.4). Como o feminismo coloca, as questões pessoais são sempre políticas, e a construção de espaços para as relações das pessoas têm necessariamente relação com a política. Daí a urgência de incorporar o gênero como categoria de análise, pois a arquitetura é essencialmente política, é teoria e ação ideológica com capacidade, para o bem e para o mal, de afetar a vida das pessoas. Sua importância radica da profunda desigualdade estrutural no acesso dos espaços urbanos e de poder não só entre pobres e ricos, mas também entre homens e mulheres. Nesse sentido, há mais de quatro décadas estudiosas feministas de diversos campos têm se empenhado em criar espaços para a narrativa feminina e discutir a cidade através das mais diversas interpretações e vertentes, buscando incluir a mulher em todos os processos da [re]produção dos espaços. Debate-se a domesticidade, a casa, a arquitetura e a cidade contemporâneas, através da metodologia e da linguagem

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I N T R O D U Ç Ã O  feministas e pelos discursos heterogêneos; garante-se assim, a continuidade da inquietação (ANTUNES, 2016, p.6). Nesse sentido, a incorporação da perspectiva de gênero enquanto categoria interpretativa - mas não única - da cidade, implica assumir que homens e mulheres têm concepções e experiências distintas em relação aos espaços que vivemos (CORADIN, 2010). Vale dizer que, ao mesmo tempo, a perspectiva de gênero impõe que se adote uma visão que abranja a todos os coletivos, fazendo referência a grupos sociais diversos que englobam tanto homens como mulheres, crianças, jovens e idosos, assim como pessoas com limitações de qualquer tipo, de modo a englobar as diversidades culturais e não somente a dualidade feminino-masculino, embora possa transmitir essa impressão. Falar de gênero é buscar valorar a experiência feminina da vida e considerar toda a diversidade social e cultural da população nas ações de transformação do entorno e do território (BOFILL, 2005, p.12). Por isso, adoto como objeto de pesquisa as relações existentes corpo e cidade, buscando na inter-relação entre espaço e gênero uma maneira (não isolada) de interpretar a realidade, de revelar as engrenagens e mecanismos que estruturam o cotidiano das mulheres. A relação entre espaço e gênero demanda uma leitura socioespacial. E como salienta Souza (2009, p.111), “tal leitura é capaz desvendar os jogos de dominação e violência simbólica impostos por uma parcela da sociedade que detém o poder econômico, político, social e cultural”. Ao contrário da noção de que o espaço é construído via de regra pelo corpo, exploro neste trabalho a hipótese de que corpo e espaço se modificam reciprocamente e esse processo é que os define ao longo da história. A ideia de que as mudanças da cidade ocorrem em paralelo às transformações humanas é fundamental para analisarmos a correlação entre gênero e arquitetura. Uma vez que o princípio seja incorporar a visão das mulheres no pensamento e na prática da produção do espaço, metodologicamente esse trabalho exigiu, acima de tudo, uma profunda revisão no modo de enxergar o urbano para que, por fim, os resultados apontem respostas alternativas ao contrário das soluções padrão do “sujeito universal”. O entendimento da arquitetura, portanto, exige que a abordemos em seu contexto econômico, cultural e político de produção, considerando suas formas de consumo, representação e interpretação através de diferentes perspectivas acadêmicas, sociais e institucionais. Nesse momento, faço das palavras de Antunes (2015, p.3) as minhas:

Procurar um vínculo entre as disciplinas de arquitetura e género (e política, dada a natureza do tema) tem-se revelado um trabalho complexo, até difícil. Além das interrogações simultâneas sobre os vários níveis em que intervêm e interatuam na construção da cidade, da casa, dos espaços e da própria vida, descobrir as posições da mulher na arquitetura e no mundo revelam-se pertinentes para uns, demasiado radicais e fora de tempo e de contexto para os mais céticos (ou iludidos). Esta procura, esta preocupação, este desassossego, parecem surgir um pouco contracorrente na época da globalização – é provocadora para o discurso e para a teoria da arquitetura, para a história da arquitetura, para o século XXi e, sobretudo, para o contexto [brasileiro].

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Contrariando minhas expectativas, logo encontrei e reuni um rico e vasto material que trabalha as questões de gênero e entendia e incluía a mulher em sua abordagem. Do desenho da casa à produção material, simbólica e representacional das cidades e do urbano em geral, todas as áreas estudadas pelo feminismo são reinterpretadas, pois buscam as raízes dos problemas e apontam uma sociedade que suplica por transformação. A independência econômica e pessoal da mulher e, principalmente, a espacial, são fundamentais para promover a equidade no acesso ao espaço urbano, pois quando teorizamos, projetamos e construímos ambientes a partir de perspectivas privilegiadas ao longo da história, violamos a ideia de cidade para todas as pessoas. E um pensamento e prática de cidade cuja realidade feminina é incorporada, não só as mulheres experimentam os benefícios, mas também os homens, pessoas idosas e crianças; as melhorias nas condições de vida é para todas e todos. O feminismo, ao contrário do que se acredita, não busca privilegiar a mulher, mas construir espaços democráticos e justos, com iguais oportunidades de acesso para toda a população. Assim, para o desenvolvimento deste trabalho, a crítica feminista ao pensamento urbano é fundamental, pois é através dessa perspectiva que podemos revelar camadas da história até então ocultadas. Podemos, principalmente, construir novas possibilidades e formas alternativas de compreensão e concepção de cidades. O que a crítica feminista nos oferece é o processo constante de desconstrução e subsequente ressignificação de tudo o que conhecemos e julgamos “natural”, e isso também vale para a arquitetura e o urbanismo. O pressuposto fundamental é que se reconheça que há diferenças entre nós; homens e mulheres, em virtude justamente disso, têm condições totalmente desiguais para desenvolver a vida. Então, ao contrário do discurso humanista, não somos todos iguais.

tornar visível a diferença é o primeiro passo para a construção de uma ordem simbólica diferente em que as mulheres possam se expressar a partir de sua experiência de vida. A pós-modernidade comporta assumir as diferenças, constitui o fim do olhar único e dominante, e deveria nos possibilitar reivindicar a primeira diferença - ser homem e ser mulher -, sem por isso aceitar que tal diferença signifique desigualdade. ■■MONTANER; MUXÍ, 2014, p.199

Não cabe a nós tentarmos explicar o inexplicável nas relações sociais humanas, mas sim questionar as ações e representações calcadas em mitos, em preconceitos construídos historicamente que perduram há séculos, demarcando a superioridade de grupos dominantes sobre os dominados, e também contribuir para as práticas arquitetônicas e urbanísticas socialmente responsáveis. A primeira impressão ao nos aproximar de um tecido urbano é de pura desordem, um cenário que pode ser visto como “caótico”. No entanto, ao observamos mais atentamente fica evidente uma espécie de reincidência, “como uma desordem que se repete”. Mas, como coloca Silveira (2011), a repetição de desordens pode não significar desordem em si, ou um conjunto de fatos aleatórios, uma vez que, na verdade, há ordem implícitas, ou disfarçadas, ocultas, à espera que sejam desvendadas (SOBREIRA, 2003). No que se refere ao denominado “caos urbano”, podemos entende-lo como um efeito da lógica complexa de correlação de forças dos agentes que

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I N T R O D U Ç Ã O  [re]produzem a cidade, onde identificamos leis socioespaciais, de localização e de segregação, que têm a ver com as propriedades físicas intraurbanas, por sua vez ligadas à morfologia da cidade. Como há na cidade a interação de ações humanas e o jogo de diversos interesses e necessidades dos agentes, os fenômenos causados pelo chamado “caos urbano” não são imprevisíveis, sem possibilidades de controle e domínio ou explicação; eles são parte do conjunto de necessidades humanas bem como lógicas e dinâmicas dos diferentes grupos sociais no espaço, dadas as respectivas localidades urbanas e as desigualdades socioespaciais existentes na cidade (SILVEIRA, 2011). Nesse sentido, há ordem implícitas ou padrões nem tão visíveis que atuam no chamado caos urbano. Os debates atuais sobre a cidade emergem persistentemente fatos como a violência, a favelização, a expansão desenfreada e a fragmentação, a segregação socioespacial, as deficiências de transporte, os impactos no meio ambiente e tantos outros aspectos comumente entendidos como parte do “caos urbano”. Essa condição tem conduzido as cidades a um ambiente ineficiente e nocivo às pessoas. Todavia, partimos do pressuposto de que se há desigualdades socioterritoriais, elas são maiores e mais intensas em relação às mulheres. O tema do trabalho surge, portanto, em meio à urgência de se repensar as cidades e seus modos de [re]produção, considerando sua importância para além do construído. Parto da constatação de que a estrutura e os mecanismos que condicionam a sociedade e, por extensão, os corpos, seus espaços físicos e simbólicos, baseiam-se na hierarquização das relações entre classes e grupos sociais. A prerrogativa é que essa hierarquização visa a constante manutenção dos privilégios masculinos, pois são os homens que detém o poder, a terra e o capital. Assim, numa sociedade capitalista e fundamentalmente patriarcal, são eles e para eles que via de regra se pensa e constrói as cidades. É certo que houve grandes avanços no cenário feminino nas últimas décadas, boa parte graças ao feminismo; no entanto, também é certo que enquanto sociedade ainda estamos muito distantes do ideal que podemos chamar de equidade. Nessa conjuntura é que alinho meu trabalho, porque entendo que a produção da arquitetura precisa criar vínculos com os movimentos de contestação dos modelos tacitamente aceitos e perpetuados, precisa atentar-se às questões que estão subjacentes aos espaços da cidade e implícitas nas relações interpessoais, fugir do consenso, do usual. Por isso, assim como o movimento e teoria crítica feministas, a arquitetura deve ser dissidente, divergir dos discursos totalizantes, e encontrar nos interstícios e brechas deixadas pelo sistema suas formas de luta, resistência e libertação. O gênero enquanto “prisão” é também nossa possiblidade de subversão. Para apreendermos todas essas questões de que falamos, o trabalho se desenvolveu através de uma pesquisa exploratória tendo como base um conjunto de revisões, leituras e análises bibliográficas sobre o corpo, o espaço e o gênero enquanto conceitos, em suas dimensões materiais e simbólicas. Sondamos campos como a [re]produção dos espaços públicos e privados, os problemas urbanos, arquitetura e o urbanismo com perspectiva de gênero, atuação feminista no planejamento e gestão urbanos, entre outros, direcionados ao entendimento da vivência urbana da mulher, sempre buscando integrar as características quantitativas e qualitativas. Paralelamente ao aporte teórico, realizamos trabalho de campo e entrevistas em alguns espaços públicos importantes de Presidente Prudente num esforço de conciliar abordagem teórico-metodológica com o cotidiano. Buscamos identificar na

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cidade as dinâmicas e processos debatidos com o trabalho, evidenciando as relações de gênero enquanto determinantes para a análise ou concepção do espaço urbano. A ideia de que o ambiente construído reflete os estereótipos dos lugares femininos e masculinos e que houve uma ótica masculina na produção do espaço urbano nos é primordial. Bondi (1992) afirma que o planejamento urbano funcionalista e racionalista dominou por muito tempo o modo como se concebia a cidade, aprisionando as mulheres em determinados espaços na medida em que separa áreas comerciais, industriais e residenciais, acentuando a divisão do trabalho entre os sexos. Já Domosh (1996) trabalha a relação entre gênero e a ideologia estética construtiva, evidenciando que “o controle moral, papel determinado às mulheres na sociedade patriarcal, é repassado pela sua arquitetura”. Os processos de segregação espacial, conforme Huxley e Winchester (1991), além de definidos pela lógica capitalista, se relacionam com o modelo social patriarcal, já que múltiplas áreas são compostas pelo trabalho feminino remunerado de forma desigual em relação ao trabalho masculino, gerando uma feminização da pobreza urbana.“Sendo assim, a leitura da distribuição funcional da paisagem urbana reflete a dominância da perspectiva masculina sobre o espaço” (SILVA, 2007). Assim, o olhar de gênero sobre o planejamento trabalha, conecta e expande os limiares entre as esferas pessoal e política, o território público e o doméstico, e assim, e reconhece a diversidade cultural como sendo o elemento chave para repensar a planificação. De fato, não somos todos iguais e a diferença constitui elemento primordial para a vida em sociedade, mas a produção de espaços, seja pelas práxis arquitetônica ou urbanística, se sustenta numa ideia de totalidade, num raciocínio generalista, funcional, quantitativo ou em grande escala, por vezes inóspitos. O olhar de gênero traria então “uma nova sensibilidade urbana que busca incorporar enfoques metodológicos e as vozes dos coletivos antes excluídos”,

I

sso exposto, o trabalho se estrutura em duas partes cada uma subdivida em dois capítulos. Na primeira parte tratamos de fundamentar todo o entendimen-

to acerca das relações espaciais de gênero, trazendo os principais conceitos para a subsequente aproximação com a condição da mulher na cidade contemporânea, na segunda parte. O capítulo [pressupostos / corpo, espaço e gênero], traz uma conjuntura geral sobre a condição do corpo feminino em termos políticos, representativos e cotidianos, mesclando história e contemporaneidade, fundamentando noções essenciais em torno dos conceitos de corpo, espaço e gênero para explicitarmos os problemas urbanos ligados à sobreposição de desigualdades no espaço-tempo. Através do embasamento teórico com foco em gênero buscamos compreender os processos e dinâmicas que regem o espaço e nossa ação, a cidade e o corpo, gerando hierarquias, exclusão socioespacial e alienação, a partir dos quais evidenciamos as particularidades urbanas no que tange ao feminino. Entendemos que a sociedade e a arquitetura se baseiam em categorias de oposição hierarquizadas, embora complementares, tais como feminino/masculino, público/privado, razão/emoção [...] através das quais se assegura os privilégios de grupos dominantes em detrimentos dos grupos vulneráveis. O capítulo demonstra como corpo e espaço são indissociáveis e como a cidade [re]produz estereótipos sexistas. Para isso conceituamos o espaço, o corpo, a cidade e o comportamento humano enquanto teoria da ação. No capítulo [disjunções / arquitetura e feminismo] falamos da relação entre arquitetura e poder, sendo que ao mesmo tempo ela mascara e dissimula suas relações

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I N T R O D U Ç Ã O  por meio de discursos tecnicistas. O caráter repressor e conservador da arquitetura tradicional também é assunto explorado no sentido de que o corpo permaneceu sob o mito da técnica assim como a sexualidade e as diferenças foram reprimidas e o espaço urbano esterilizado. Aqui, a masculinidade hegemônica ou como o gênero é negado a partir da adoção do masculino como sendo natural, neutro e universal - o ser estático a partir da qual tudo é erigido – também deve ser considerada na correlação entre arquitetura e gênero, ambos sendo constructos sociais. Por isso a abordamos enquanto instrumento legitimador do status quo, de controle social e docilização dos corpos e também enquanto paradigma científico, discutindo a disciplina o papel da masculinidade. O feminismo baliza a discussão no sentido de demonstrar como o corpo da mulher foi suprimido ao longo da história, e evidencia contribuições importantes das mulheres ao pensamento urbano num geral, visando a desconstrução dos papeis de gênero e a emancipação feminina, buscando reparar as disjunções entre arquitetura e seu papel social, que devem ser resgatados pela incorporação do feminismo que, nesse sentido, vem para quebrar a noção de sujeito universal, questionar as estruturas e propor novos modos de se pensar a cidade. Na segunda parte do trabalho tratamos de evidenciar como o conteúdo debatido na primeira parte resvala sobre a vivencia urbana da mulher, profundamente afetada pelos estigmas construídos em torno de seu corpo. O capítulo [contexto / mulheres e o direito à cidade] traz um panorama geral sobre as condições de vida das mulheres brasileiras, sobretudo pobres, e as características de nossas cidades face ao planejamento urbano conservador de uma sociedade fundamentalmente capitalista e patriarcal, em que os problemas urbanos fragilizam completamente a inserção social das mulheres. A noção de direito a cidade é abordada em sentido amplo, envolvendo tanto o acesso pleno aos espaços, serviços e equipamentos coletivamente produzidos, quanto a representatividade simbólica e política. Por fim, o capítulo [aproximação / um olhar sobre Presidente Prudente] consiste num esforço de conciliar a abordagem teórico-metodológica e minha vivência enquanto mulher, futura arquitetura e urbanista, onde aproximaremos nosso olhar sobre Presidente Prudente, cidade média do oeste paulista, em que as relações de gênero e os problemas urbanos também são visíveis e passíveis de transformação. Baseado num manual para análise urbana com perspectiva de gênero, este capítulo pretende construir como que uma base analítica para uma posterior intervenção técnica, trazendo pontos essenciais para pensarmos espaços mais justos. Primeiro, nos aproximaremos da realidade urbana de Presidente Prudente-SP e o que a conforma, para então compreendermos como se dá a vivência das mulheres nessa cidade. Assim, o capítulo se desenvolve através do acúmulo teórico anterior e busca contextualizar essas problemáticas em Presidente Prudente através do trabalho de campo, identificando os processos de exclusão e as relações de gênero existentes, e ao mesmo tempo, trazendo situações de vulnerabilidade nos espaços públicos em relação à vivência das mulheres a partir das quais simultaneamente se estabelecem as potencialidades, as alternativas de intervenção.

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

quadro resumo da estrutura de pesquisa

incômodos acesso desigual à cidade

papel socialmente imposto

restrição de mobilidade

[in]visibilidade

debater como a mulher é sucessivamente invisibilizada, os efeitos urbanos disso e as possibilidades de confrontação

como abordar a arquitetura e o urbanismo visando uma cidade mais igualitária

tema gênero / espaço / arquitetura

problema de pesquisa como se a articulam gênero e espaço e quais as implicações para a mulher na cidade?

objetivos GERAL

contribuir para a produção do conhecimento e reflexão crítica sobre a cidade através da perspectiva de gênero. ESPECÍFICOS

compreender como se estabelece a correlação entre gênero e espaço e como esta molda a vivência urbana da mulher analisar a arquitetura e o urbanismo enquanto ato ideológico, agindo como instrumento de legitimação de desigualdades indicar como o feminismo e a perspectiva de gênero agem nas construções material e simbólica da sociedade, buscando cidades mais justas e igualitárias apontar como a arquitetura e o urbanismo podem efetivamente contribuir no debate teórico e na prática profissional

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PRESSUPOSTOS

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corpo espaço g ênero

omo a arquitetura, a pele estabelece o limiar entre a carne e a pedra. Se a experi-

ência urbana é primeiramente corporal, como sustenta Mongin (2009), o corpo é fundamental na construção social do indivíduo. É por meio dele que estabelecemos uma relação mutuamente transformadora com o mundo exterior. "Se a experiência de um lugar passa por uma antropologia do corpo que é a condição de uma abertura para o mundo, da criação de limiares e da instituição de ligações entre um fora e um dentro, ela não é indissociável da existência de uma edificação e de um sítio". A experiencia urbana, portanto, é primeiramente corporal.

O corpo resiste enquanto corpo, ele não pode se furtar a uma relação com o real, com um mundo; ele não pode viver em um real que se parece com “qualquer coisa”. Em um lugar que é “qualquer lugar”, um “lugar qualquer”. Não se habita um lugar qualquer, mas um mundo onde, de imediato, dentre e fora, privado e público, interior e exterior estão em ressonância. É preciso “ter lugar para existir”. ■ ■MONGIN, 2009, p.242

Corpo e ambiente produzem-se mutuamente, como formas de hiper-real ou de simulação que "ultrapassaram e transformaram a realidade de cada um deles na imagem do outro: a cidade é feita e refeita à medida do simulacro do corpo e o corpo, por sua vez, é transformado, 'tornado cidade'." (GROSZ, 2003, p.91). Segundo a filósofa Elisabeth Grosz, a cidade proporciona a ordem e a organização que ligam os corpos, que de outra forma permaneceriam distantes. Uma vez que a cidade é um dos fatores fundamentais na produção social da corporeidade, o ambiente construído proporciona o contexto e as coordenadas para as formas contemporâneas do corpo. A cidade, nesse sentido, é condição material para a realização dos corpos, espaço de sua produção e circulação, sua origem e destino.

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"O corpo, por sua vez, manifesta os contrastes da cidade, é um corpo social, urbanizado" (VIEIRA, 2015, p.25). Para algumas críticas feministas da contemporaneidade, como a Judith Butler, o corpo é crucial no entendimento da existência psíquica e social da mulher. Essa afirmação por parte das teóricas é embasada na concepção de um corpo vivido, entrelaçado a sistemas de significação e representação ao passo que é constitutivo deles. O pensamento feminista, desse modo, passa a desenvolver teorias interessadas nessa corporeidade, e a pleitear espaço na discussão urbana, uma vez que a cidade se configura como um importante enquadramento e contexto para o corpo. Mas, como enfatiza Grosz, é preciso compreender que as relações entre corpos e cidades são demasiado complexas, e seria necessário um estudo muitíssimo profundo para elaborar as especificidades histórico-geográficas dos corpos enquanto tipos distintos de corporalidade. Tendo isso em mente, Grosz (2000/2003) se põe a investigar a simbiose entre corpo e cidade. O corpo deve ser entendido como "uma organização concreta, material e animada de carne, órgãos, nervos, músculos e estrutura óssea à qual é conferida uma unidade, uma coesão e uma organização através da sua inscrição psíquica e social enquanto superfície e matéria-prima de uma totalidade integrada" (p.91). Ou seja, corpo é organicamente/biologicamente/naturalmente “incompleto”, é amorfo e indeterminado, um conjunto de potencialidades descoordenadas que só se prolongaria e existiria de fato através da ativação dentro do campo social. Sua ativação e ordenação social, bem como “administração” a longo prazo, são reguladas em cada época e cultura por aquilo que Foucault definiu como as “microtecnologias do poder”, em Vigiar e Punir.

O corpo humano é uma forma natural de organização que funciona não só para o bem de cada um dos seus órgãos, mas, primeiramente, para o bem do todo. Da mesma forma, o corpo político, independente da sua estrutura, é justificado e naturalizado através de organizações hierárquicas modeladas (deduzidas e projetadas) a partir da estrutura do corpo. ■■GROSZ, 2003, p.90

É o corpo que delimita a unidade psíquica do indivíduo, definindo assim os limites da experiência e da subjetividade, através da intervenção do outro (em primeira instância a mãe) e, fundamentalmente, da ordem simbólica (linguagem e ordem social regulada). Conforme Grosz, sua produção envolve diversos regimes de disciplina e formação, o que inclui a coordenação e integração das funções corporais, para que o corpo possa não só assumir as tarefas sociais que lhe são prescritas, mas também para que se integre e se torne uma posição dentro de uma rede social, ligada a outros corpos e objetos. Os princípios estruturantes do corpo, sua inscrição e codificação, faz dele uma identidade profunda, significativa e “legível”. Nessa conjuntura, a cidade é o espaço em que ocorrem a inscrição bem como a codificação do corpo, se constituindo como "uma rede complexa e interativa que relaciona, frequentemente de forma desintegrada e efetiva, um número de atividades sociais díspares, processos e relações imaginárias e reais, projetadas ou efetivamente arquitetadas em termos geográficos, cívicos e públicos". Assim, a cidade reúne fluxos econômicos e informacionais, redes de poder, formas de deslocamento, de administração e de organização política (Ibid, p.92), incluindo relações sociais


P R E S S U P O S TO S  interpessoais, familiares e extrafamiliares organizam estética e economicamente o espaço, possibilitando um meio ou ambiente semipermanente mas mutável. A cidade, na sua organização espacial, geográfica, arquitetural e municipal específica, portanto, intervém no processo de socialização do corpo, mas ela não é o elemento interventor mais significativo. A estrutura familiar, por exemplo, exerce uma influência mais direta e visível, mesmo que ela também exista em função da geografia social das cidades. A exemplo, Grosz (pp.96-97) cita como a arquitetura doméstica e a divisão do lar é importante no entendimento, alinhamento e posicionamento do indivíduo relativo ao espaço. Mas a cidade com seu conjunto de normas, formas e estruturas incorporam-se e afetam todos os elementos que participam da constituição da corporalidade e/como subjetividade, modificando a maneira como o indivíduo percebe os outros e o espaço. Assim, as diferentes espacialidades experimentadas afetam no modo como habitamos o espaço e, consequentemente, nosso comportamento e orientação corporal. O que buscamos identificar é a mediação entre indivíduo e sociedade e os papeis da arquitetura e do urbanismo nessa conformação. O que fica evidente é que na articulação entre a sociedade e o indivíduo, o corpo sexuado – com seus hábitos, distribuições, filiações, desejos, normas e ideais, é fundamentalmente o objeto da regulação governamental, sinergia da qual a cidade surge como ferramenta chave (GROSZ, 2003).

A cidade também é, obviamente, o local da saturação cultural do corpo, da sua dominação e transformação pelas imagens, pelos sistemas de representação, pelos media e pela arte – o local onde o corpo é reexplorado, transformado, contestado e reinscrito em termos da sua representação. Por sua vez, o corpo (como produto cultural) transforma e reinscreve a paisagem urbana de acordo com as suas voláteis necessidades (demográficas, econômicas e psicológicas), alargando os limites da cidade e do suburbano [...] ■ ■GROSZ, 2003, p.97

Assim, corpo, espaço e tempo são indissociávieis e não podem ser pensados em separado; para compreender algumas das implicações dessa inter-relação e levando em conta os conceitos de corpo e cidade, é preciso entender o espaço (social) como um produto (social) (LEFEBVRE, 1974, p.26). Sendo o espaço da vida, que conforma as relações sociais, o espaço social agrupa as coisas produzidas e envolve suas inter-relações, permitindo ações de produção e consumo. Sua base é a natureza, ou espaço físico, o qual o ser humano transforma com seu trabalho, uma vez que a natureza “provê recursos para uma atividade criativa e produtiva” (p.70) desempenhada pelas pessoas. Diferente de nós, a natureza não produz, ela cria. Em suma, o espaço social inclui objetos naturais e sociais, que também são relações. Os objetos possuem formas, mas “o trabalho social os transforma, reorganizando suas posições dentro das configurações espaço-temporais” (p.76). Derivados do espaço social são a organização espacial, conformada por objetos criados ou não pelo ser humano, não podendo ser reduzida à mera materialidade do espaço, e a produção do espaço, referente à [re]produção tanto da materialidade do espaço como da “produção simbólica e de relações de poder” (p.41).

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

Conforme Lefebvre, o ser humano interage/modifica a natureza através de duas relações para com o espaço: as relações sociais de produção e as de reprodução.

FIGURA 1

relações sociais modificadoras da natureza

A produção social do espaço, por sua vez, se dá pela inter-relação entre três fatores: a 1. prática social, 2. as representações do espaço e 3. o espaço representacional, sendo que somente através do corpo é que o espaço é ativado e erigido.

FIGURA 2

elementos da produção social do espaço

fonte: LEFEBVRE, elaborados pela auora (2017)

Sendo assim, o espaço é forma e conteúdo, é material e também processos e dinâmicas sociais. Para Garcia (2004), em todos os espaços,nos quais essas práticas sociais se desenvolvem em tempos específicos, ocorrem relações de dominação (de poder), principalmente, quando se estuda as relações entre homens e mulheres. Segundo a autora, esse lugar de cotidianidades se transforma em um território quando todo processo de concretização dessas relações é movimentado por relações de poder. Neste caso, é preciso considerar o conceito de espaço não apenas ao aspecto físico/quantitativo do lugar estudado, mas, sobretudo aos aspectos qualitativos que determinam a dinâmica social, política, econômica e cultural das relações de gênero nele presente.

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P R E S S U P O S TO S  Dito isso, e com base no que escreve Cortés (2008) no livro “Políticas do espaço”, o corpo não é simplesmente, ou apenas, um organismo, mas sim veículo metafórico imbuído de significados, o que implica na ligação entre corpo físico e social. E o espaço, mais que uma condição prévia (um lugar), é o resultado de uma atividade, portanto possui uma dimensão temporal. É um produto social que não permanece estático, pois, à sua maneira é criador e criação de um conjunto de relações dialéticas em permanente transformação e nas quais intervém de modo incisivo (CORTÉS, 2008, p.21). Assim, todo o contexto no qual se produz as regras e expectativas sociais - inclusos a arquitetura e o urbanismo - é orientado pela forma e estrutura da cidade, sendo essas essenciais para a organização das relações familiares, sociais e sexuais e, portanto, para a conformidade social. Nesta lógica, todos esses fatores interatuam na organização e na disposição dos corpos nas cidades. Assim, o espaço, enquanto fruto das relações sociais, como coloca Lefebvre, reflete as estruturas de poder que sustentam a sociedade, mas, ao mesmo tempo em que o espaço está sendo transformado de maneira fluida, “há um discurso dominante [...] que tende a impor a apreensão da ordem estabelecida como natural [ortodoxia]”, segundo Bourdieu (1989, p.14). Isso quer dizer que há uma estrutura construída pelo grupo dominante que busca homogeneizar as formas como nos relacionamos, naturalizando relações de desigualdade. O que o sociólogo Pierre Bourdieu sustenta é que dentro desse processo contínuo de constituição do sujeito, a história urbana se inscreve em nossos corpos, e que as realidades sociais são construções históricas cotidianas de atores coletivos e individuais, ao mesmo tempo que fora do controle desses atores - revelando as mais diversas dimensões e estratégias subjacentes à dominação. Weber (1921), no contexto de uma análise sociológica dos modos de organização da sociedade e da estratificação social, afirma que a dominação é uma das formas essenciais do poder, enquanto sua “conquista ou sua conservação estão desde sempre no coração de todas as lutas que tecem a trama das crises de todas as sociedades humanas” (RIOT-SARCEY, 1993, p.9). É preciso levar em conta que toda relação de dominação entre dois grupos ou duas classes de indivíduos, segundo Erika Apfelbaum (1979/1999), impõe limites, sujeição e servidão àquele(a) que se submete, introduzindo uma dissimetria estrutural que é, simultaneamente, o efeito e o alicerce da dominação: um se apresenta como representante da totalidade o único depositário de valores e normas sociais impostas como universais porque os do outro são explicitamente designados como particulares. Em nome da particularidade do outro, o grupo dominante exerce sobre ele um controle constante, reivindica seus direitos fixando os limites dos direitos do outro e o mantém num estatuto que retira todo o seu poder contratual. “A dissimetria constituinte da relação de dominação aparece não somente nas práticas sociais, mas também no campo da consciência e até nas estratégias de identidade” (p.76)1. As relações sociais são, portanto, hierarquicamente estruturadas e regidas por princípios de dominação e controle, sendo indissociáveis da produção e reprodução do espaço, pois estas também se entrelaçam às produções simbólicas e relações de poder. Desse modo, Bourdieu argumenta que o mundo social aparece segmentado 1 Condição que associamos à masculinidade hegemônica, pois sempre relacionado ao polí�co, o exercício do poder foi exclusivamente reservado ao masculino ao longo do tempo, enquanto a mulher sempre foi deferida como minoria no Código Civil, o que cons�tui fator crucial na socialização dos corpos urbanos.

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em campos, que seriam espaços de relações entre grupos com distintos posicionamentos sociais, lugar de disputa e jogos de poder, uma vez que são "organizados" hierarquicamente. Assim, os campos se apresentam como espaços estruturados de posições enfrentadas (dominantes e dominadas), gerando uma concorrência dinâmica que vem das lutas sustentadas pelos agentes sociais para ocupar as posições dominantes2. As classes ou grupos se distinguem por sua relação com a produção, pela propriedade de certos bens e especialmente pelo aspecto simbólico do consumo; assim, todos estão em permanente relação com o espaço e a posição social que ocupam. Os "dominantes" ocupam posições privilegiadas, e se perpetuam no campo econômico, mas se legitimam no campo cultural, fazendo uso de sua capacidade para impor suas produções culturais e simbólicas, reproduzindo as relações de dominação. Então, se como vimos com Grosz (2003), o corpo a princípio é incompleto e indeterminado, ele depende de sua ativação e ordenação social mediante suas relações com o espaço, sempre conformado através das relações de poder e dominação em voga em determinada sociedade. Para Cortés, é como se essa ativação e ordenação de que fala Grosz se concretizasse por meio da distribuição e o controle dos indivíduos por meio de dois aspectos fundamentais: o espaço e o tempo. O primeiro visa organizar um espaço analítico que permita a demarcação dos diferentes indivíduos, onde estes possam ser encontrados a qualquer momento através da criação de mecanismos que vigiem seu comportamento. O segundo para criar uma cadência do tempo de acordo com o esquema analítico, no qual o tempo é decomposto em processos separados e ajustado para assegurar seu controle e garantir seu uso. Como que "amarrando" o espaço analítico e a cadência de tempo de que fala Cortés, o conceito de habitus trabalhado por Bourdieu nos dá uma noção de quais agentes operam sobre a dinâmica urbana e de que como estes inter-atuam na constituição corpo-cidade. Esse conceito pode ser concebido como instrumento conceitual para pensar a relação, a mediação existente entre condicionamentos sociais exteriores e subjetividades. É uma “noção que auxilia pensar as características de uma identidade social, de uma experiência biográfica, um sistema de orientação ora consciente ora inconsciente” (SETTON, 2006 p.61). Através desse esquema é possível associar a ideia de socialização para compreender os processos constitutivos da subjetividade feminina e, por extensão, como essa se desdobra na concepção e na vivência dos espaços. Bourdieu sugere que a base de todas as nossas ações é o “habitus”; como um pilar que conforma o conjunto de condutas e julgamentos aprendidos que depois se traduzem como habilidades aparentemente naturais e capacidade de atuar livre no campo social: nossos gestos, língua, gostos, etc. Isso implica afirmar que os padrões de pensamento, percepção e ação são revelados com base em uma determinada origem social, que designa a incorporação de certos hábitos que permanecem ancorados aos espaços do campo social ou grupos em que o agente/indivíduo opera.

[Habitus é] o produto de um trabalho social de nominação e de inculcação ao término do qual uma identidade social instituída por uma dessas ‘linhas de demarcação 2 Tal como Marx, Bourdieu salienta a importância da luta e do conflito no funcionamento da sociedade, mas para este o conflito não se reduz a conflitos entre classes sociais em que se concentram os estudos marxistas.

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P R E S S U P O S TO S  mística’, conhecidas e reconhecidas por todos, que o mundo social desenha, inscreve-se em uma natureza biológica e se torna um habitus, lei social incorporada ■ ■BOURDIEU, p.64

Desse modo, o conceito de habitus é concebido como um conjunto de princípios geradores de práticas distintas e distintivas, como uma forma de condicionamento através da qual se regula a conduta das pessoas na estrutura social com base em um sistema de disposições duradouras para a ação, organizadoras de práticas, esquemas de percepção e representação, criadora de princípios e valores internalizados. As representações, interesses e posições políticas dos indivíduos variam de acordo com sua posição no espaço social e com seu habitus enquanto sistema de esquemas de percepção e apreciação do mundo. Diante dessa conjuntura de conflitos e relações de poder e dominação, Bourdieu destaca que a própria noção de espaço social é intrínseca a ideia de diferença, segmentação. As diferenças e distâncias entre os agentes, ou indivíduos, entretanto, não são absolutas, são relacionais e por isso só existem umas em relação às outras. Para ele, o fato de existir em um espaço significa por isso mesmo diferir, ser diferente, distintivo: significar, em oposição ao que é insignificante, pois determinado por uma posição no mundo, o ser humano, enquanto ser social, pensa a partir dessa posição, pensa a partir de categorias. Exemplificando em termos práticos trata-se de morar em um condomínio de luxo ou em uma casa popular, possuir carro importado ou depender de transporte público, ser alto ou baixo, gordo ou magro, ter a pele branca ou negra... ser homem ou mulher – isto é, se pensa e se constrói conteúdos mentais a partir dessas posições ou categorias. No entanto, cada aspecto desse só se torna diferença visível, perceptível – uma diferença de fato – se ela é percebida por um indivíduo capaz de assimilar essa diferença. Isso porque esse alguém está inscrito no espaço e, desse modo, não é indiferente, mas sim dotado de categorias de percepção, de esquemas classificatórios, de um gosto: um conjunto de preceitos fundamentais que permite ao indivíduo discernir, distinguir e, portanto, estabelecer diferenças. O espaço social seria então determinado por uma justaposição de estruturas objetivas e subjetivas, uma multiplicidade de campos sociais que independem da consciência e da vontade própria dos indivíduos, mas que orientam suas práticas e representações3. Isso ocorre por meio da organização dos grupos ou classes no espaço social segundo princípios de diferenciação simbólica, onde a posição dos agentes no espaço se dá pelas relações de ordem, proximidade ou distanciamento definidas em função de dois capitais fundamentais: o capital econômico e o capital cultural, fundamentalmente distribuídos de forma desigual4. Os agentes têm tanto mais em comum quanto mais próximos estejam nessas suas dimensões, assim como mais distantes conforme menos presentes nelas. Para localizar os indivíduos facilmente nos campos, Bourdieu propõe colocá-los em um mapa (figura 3). Estas posições trabalham com pares de oposição (pobre/rico, esquerda/direita, etc). 3 Isso não significa afirmar que os agentes sejam totalmente inconscientes e, assim, sem reflexão - acontece que são prá�cas caracterizadas como inconscientes porque são vistas pelos indivíduos como evidentes e naturais. 4 A hierarquia do espaço social, todavia, não é piramidal; trata-se de um espaço mul�dimensional hierarquizado por múl�plos capitais.

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FIGURA 3

mapa esquemático do espaço social para Bourdieu

fonte: retirado da internet

Assim, pode-se analisar as diferenças entre indivíduos mais facilmente dependendo da área onde estão conseguindo estabelecer categorias de correspondência entre a “posse” desses capitais e suas práticas efetivas: os gostos, costumes, consumos, as “escolhas” dos indivíduos. Pois os locais que frequentam, o modo de comer e se expressar, as roupas que vestem, gostos, costumes e atitudes predispõem alguns posicionamentos e caracterizam simbolicamente a posição social que o indivíduo ocupa. Por extensão, o habitus pode ser entendido como esquemas classificatórios, princípios de visão e de divisão e gostos diferentes. Ao se estabelecer as distinções sociais, se estabelecem também as diferenças entre o que é bom e o que é mau, entre o que exímio e o que é vulgar - o que é distinto para uns, é comum para outros, impensável para terceiros e assim por diante. Com base nessas e tantas outras dicotomias é que os comportamentos são julgados e classificados, assim como os espaços são pensados e os serviços distribuídos. A partir dessas práticas diferenciadas, dos bens que se possui, dos modos de se expressar opiniões e das categorias sociais de percepção é que surgem as distinções entre classes (ou grupos) e as diferenças simbólicas. Isso possibilita entender por que pessoas de determinadas classes sociais partilham dos mesmos gostos e afinidades com aquelas que estão no mesmo habitus social. O que, em termos práticos, explica a propensão de empresários e comerciantes serem de direita e professores e trabalhadores tenderem à esquerda, ou porque frequentadores de restaurantes caros ou clubes privados se diferem daqueles que vão a botecos e lojas baratas ou então porque as mulheres são mais envolvidas nas tarefas de cuidado, por exemplo5. 5 Cabe o cuidado com generalizações porque não se trata de um es�lo de vida simples que é mero resultado de pertencer a uma classe, mas envolve todas as estruturas de ação e pensamento. Conforme Bourdieu, o habitus não é des�no, como se vê às vezes. Sendo produto da história, é um sistema de disposição aberto, que é incessantemente confrontado por experiências novas e, assim, sucessivamente afetado por elas.

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P R E S S U P O S TO S  A posição que ocupa os agentes na estrutura social é que vai estabelecer os níveis de poder e prestígio. Assim, as pessoas se definem por sua posição no espaço social, onde é quase certa a probabilidade de um indivíduo que ocupa altas posições na hierarquia social morar num bom bairro, com infraestrutura adequada e meios para deslocar-se livremente. Aqueles providos de maior capital econômico monopolizam o espaço. Eles possuem propriedades imensas, bem como ocupam os espaços melhor localizados e valorizados. Assim como os desprovidos de um domicílio ou lugar fixo para viver são desprovidos também de existência social. O espaço físico reflete essa condição, e não há ninguém que não seja caracterizado pelo espaço em que se situa. Como pudemos constatar, atos humanos não são reproduzidos e dependem de uma série de elementos que influenciam na performance, como tempo, espaço e contexto grupal. Tendo isso em mente, podemos analisar a similitude entre espaço físico e espaço social, uma vez que as diferenças deste podem ser retraduzidas naquele. Se o espaço é estratificado em função da distribuição desigual de recursos, são as condições materiais e subjetivas de existência que definem a posição de cada ser, grupo ou classe no mundo social. Ser da “alta sociedade” significa pertencer a esferas privilegiadas do mundo social, assim como o oposto. Cada sociedade reflete isso de uma maneira, mas em todas existe a construção de sistemas simbólicos de existências. Diante disso, podemos pressupor que há vivências pré-determinadas aos grupos dominados justamente em virtude de seu lugar na sociedade, que busca coordenar e integrar as funções de seus corpos não só para assumir as tarefas sociais prescritas, mas também para que se tenha uma posição dentro de uma rede social, conforme a tensão existente nas relações de poder. Dentro desses termos, a dominação masculina pode ser entendida como sistema de dominação simbólica que se auto reproduz de forma inconsciente como alienação. Assim, entendendo essas "vivências pré-determinadas" como sendo os papeis desempenhados por homens e mulheres - os papeis de gênero - podemos fundamentar o entendimento das vivências da população feminina, já que o modo de vida das mulheres, portanto, se dá por consequência de estar em determinada posição social. Partir dessa ótica nos possibilita interpretar os papeis sociais atribuídos aos homens e às mulheres como sendo um instumento para "organizar" os grupos sociais na cidade, e como ao longo do tempo são construídos, desempenhados e valorados. Dessa maneira, os papeis de gênero desempenhados são a forma de cada cultura estabelecer o modo de sermos e agirmos bem como o lugar que ocupamos, e são construídos e consolidados de acordo com a organização das sociedades ao longo do tempo. A contribuição do pensamento de Bourdieu, nesse sentido, é que nos permite entender que esses papéis estão impregnados na ação cotidiana e que radicam dos mais sutis mecanismos do comportamento humano (NABOZNY, 2007); estão enraizados na sociedade há muito tempo fazendo parte de um sistema de demarcação social composto de uma intrincada rede de símbolos, como é possível perceber ao associar o habitus ao conceito de gênero. O gênero, segundo a historiadora norte-americana Joan W. Scott (1998), designa a relação desigual entre homens e mulheres, onde a diferença sexual é entendida como produto cultural e social, e não como natureza biológica, constituída, portanto, nas relações de poder implícitas e enraizadas nas hierarquias sociais estabelecidas historicamente entre os sexos. O conceito de gênero é uma categoria analítica, e faz referência ao papel atribuído compulsoriamente a cada sexo a fim de designar

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comportamentos e prioridades, onde para cada um é atribuído uma função na sociedade, existindo atividades que são estipuladas como próprias do ser masculino, e as são próprias do ser feminino (SILVA, 2007). Já a existência de diferenças tão marcadas entre os gêneros, se dá pela "distribuição desigual de responsabilidades na produção social da existência que beneficia claramente a masculinidade" (CORTÉS, 2008, p.139). A esse respeito, são três as categorias fundantes de suas representações: sexo, gênero e desejo. O sexo, comumente estabelecido como um dado biológico, está relacionado à dimensão anatômica das diferenças dos corpos. Assim, o corpo, já categorizado como de macho ou de fêmea, é a base sobre a qual se institui os papéis culturais e as expectativas de comportamento que a sociedade tem para o desempenho do papel do macho, que deve ser masculino, e do papel feminino, desempenhado pelo corpo categorizado como de fêmea (SILVA, 2007). A sociedade ocidental tem elaborado uma organização de idéias deterministas e causais, através das quais o gênero é determinado pelo sexo e, segundo esta mesma lógica biológica, constrói-se então o desejo, a sexualidade, conforme Butler (2003). Apoiada no pensamento foucaultiano ela argumenta que há uma 'ficção' reguladora construída pela ordem burguesa, branca, masculina e heterossexual. A autora posiciona-se radicalmente contra a concepção de sexo como algo dado, ou para utilizar suas palavras, 'pré-discursivo', anterior à cultura. Não há coincidência entre estas três categorias - sexo, gênero e desejo - e, além disso, a fronteira entre elas é tênue, e as categorias são cada vez mais autônomas. O desejo não surge como algo dado pela anatomia, mas construído socialmente, experienciado através das representações que se constroem a partir do corpo. A própria significação da diferença anatômica dos corpos, designados como machos e fêmeas, assim como a noção de masculino e feminino, já são em si uma construção social e cultural (BEAUVOIR, 1967; BUTLER, 2003).

ninguém nasce mulher: torna-se mulher. nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. ■■BEAUVOIR, 1967, p.9

De tal maneira, se as cidades são também, como os sujeitos, construções sociais, isso quer dizer que produzimos espaços desiguais em virtude de nossa socialização, processo que nos ensinou a naturalizar as diferenças e hierarquias, naturalizando assim a própria construção desigual das cidades com base no ideário patriarcal. Os espaços urbanos são, portanto, construídos de acordo com as distinções que se faz em torno da corporalidade sexuada, de maneira que “consegue-se dotar cada gênero de um código claro e conciso, que enuncia como cada um deve se comportar e agir, dependendo de seu sexo-gênero, ao mesmo tempo que se cria um sistema de hierarquias no qual o masculino não é apenas diferente do feminino, mas é sobretudo oferecido como superior” (Ibid, p.138). Tudo isso se faz valer a partir da construção de lugares e discursos que, longe de serem neutros e inocentes, são configurados para legitimar ou reproduzir certo ponto de vista, ideologia e/ou poder.

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P R E S S U P O S TO S  Assim, cada gênero possui um papel e também um espaço correspondente às suas atividades e suas respectivas cargas simbólica: a cidade e a casa, o público e o privado, a razão e a emoção, o masculino e o feminino (...). Dualidades essas, complementares e antagônicas que atribuem papeis a serem desempenhados socialmente pelos corpos. Como Cortés (2008, p.139) enfatiza, os valores de gênero são um produto do entorno social (mais da educação que da natureza) e um fator decisivo na comunicação que transmitimos através da linguagem e da aparência [...]. Entre esses elementos de interação com os demais, que servem para definirmos a identidade, têm destacada importância os que se referem às divisões espaciais, pois foram traçadas historicamente em obediência a algumas oposições binarias em função do gênero: público/privado, fora/dentro, trabalho externo/trabalho interno, produção/consumo, etc. Essa pensamento baseado na oposição binária6 contrapõe os dois termos da oposição e simultaneamente constrói a igualdade de cada lado da oposição, ocultando o múltiplo jogo de diferenças entre os lados opostos, exagerando a oposição. É um jogo de exclusão e inclusão, onde cada lado é apresentado e representado como um fenômeno unitário. Scott (Ibid, p.219) afirma que com isso se “assume que tudo em cada categoria (mulher/homem) é a mesma coisa (é igual); portanto, se suprimem as diferenças dentro de cada categoria”. A repressão das diferenças no interior de cada grupo de gênero acontece para construir e assegurar os papeis de gênero e da identidade, alimentando as relações de poder e cristalizando as hierarquias sociais (BUTLER, 2003). Hannah Arendt, em "A condição humana", analisa esse pensamento binário enquanto estruturador das relações e dos espaços. Ela explica como as dicotomias determinam a exclusão histórica das mulheres e como o pensamento dicotômico é alimentado pela religião e pela filosofia, gerando injustiças e desigualdades, e se baseia em diferenças genéricas, como se o par macho/fêmea, ou homem/mulher, fossem o modelo de organização fundamental, como se toda dualidade ou oposição fosse sexuada. Nesse sentido, público/privado constitui um par fundamental para a opressão feminina, a qual visualizamos os efeitos sobre os espaços urbanos. Assim, Arendt destrincha a vida em três dimensões: labor, o que está relacionado à sobrevivência biológica; trabalho, a atividade de produção de bens materiais; e a ação, correspondente à pluralidade humana, à capacidade da linguagem, ao âmbito político. A autora estabelece uma relação de dependência entre público e privado, mas é no espaço público em que se dá a pluralidade humana. Segundo Hannah, “tudo o que aparece em público pode ser visto e ouvido por todos. Essa aparência constitui a realidade. O termo “público” significa o próprio mundo, enquanto comum a todos. Ele transcende nosso tempo vital, tanto quanto ao passado, como quanto ao futuro". Ela diz que, na esfera pública, “comunica-se” o privado. Por outro lado, a esfera privada está relacionada à intimidade e à propriedade, e sua concepção parte da consciência de “estar privado de coisas essenciais de uma verdadeira vida humana. Estar privado da realidade que provem de ser visto e ouvido pelos outros”. Tal como escreve, “carecer de um lugar privado próprio (como era o caso do escravo e também da mulher) significava deixar de ser humano”. 6 Ver mais em "Dualismos em duelo", livro em que a professora de biologia Anne Fausto-Sterling revela como os modos europeus e norte-americanos de entender o funcionamento do mundo dependem do uso de dualismos – pares de conceitos, objetos ou sistemas de crenças opostos: sexo/ gênero, natureza/criação, real/construído, etc.

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O público foi valorizado pela sociedade europeia como uma garantia de igualdade e de oportunidades. Simultaneamente, ao longo da modernidade, se constrói o privado como direito à propriedade, à privacidade e à intimidade. Arendt argumenta que o político surge na pólis grega como governabilidade da diversidade dentro de uma democracia ainda incipiente enquanto o social foi desenvolvido com as sociedades maduras na modernidade através da nova relação entre as esferas privada e pública, que vão se diluindo ao se inserir na esfera do social. E que, independentemente das esferas do público e do privado, "a esfera social teria sido gerada a partir do Iluminismo, crescendo constantemente em detrimento do privado e do íntimo, por um lado, e, por outro, do político". Nesse sentido, o descolamento entre público e privado possibilitou que somente alguns homens fossem considerados cidadãos, e eram somente estes que pertenciam à esfera pública, sendo que esse descompasso entre grupos sociais esteve presente em toda a história. Por isso mulheres e escravos “ficavam afastados, e não só porque eram propriedade de alguém, mas também porque sua vida era laboriosa’, dedicada às funções corporais". Nesse mundo doméstico, que concilia domínio e propriedade, pratica-se a violência contra a mulher, condenada à sujeição, à exploração, aos serviços gratuitos, fora do alcance da proteção legal. O espaço privado torna necessária, e possível, a existência do espaço público, mas ainda assim é desvalorizado, como que inexistente. As consequências da privacidade, portanto, foram e seguem nefastas para as mulheres. Percebemos que a produção e a apropriação do espaço urbano estabelecem – em sua distribuição, utilização, transferência e simbolização – hierarquias e prioridades que buscam favorecer determinados valores ao anular outros. Segundo estudos de autoras como Diana Agrest (2006), Beatriz Colomina (1996), Dolores Hayden (1981), Linda McDowll, Jane Rendell (2002) bem como de brasileiras como Joseli Silva, a cidade e seus espaços são organizados e planejados de acordo com as atividades masculinas, com suas prioridades e necessidade e essa condição está presente desde a estruturação das casas até o planejamento da cidade, onde tudo e todos precisam adaptar-se aos movimentos, tempos e desejos da masculinidade. Tudo isso tem origem na codificação do corpo sexuado e sua subsequente inscrição nos espaços, a partir da qual a cidade [re]vela os preconceitos envolvidos em sua [re] produção. Isso porque nas oposições binárias está sempre presente o pensamento patriarcal, como em sol/lua, céu/inferno, corpo/alma, razão/sentimento, natureza/ cultura. Sendo que foi essa última, aliás, que justificou não só a exclusão, bem como a exploração “natural” das mulheres ao longo dos séculos. Esse modo de conceber o mundo com estrutura todo o pensamento ocidental e repercute nos espaços urbanos, simbólicos ou não, gerando desigualdades visíveis no tempo. De acordo com Santana (2010), a maneira androcêntrica, isto é, a forma masculina de interpretar e organizar as relações sociais, encontra origem na cultura grega, em que "as mulheres eram sistematicamente excluídas da vida pública", socialmente invisíveis tanto quanto os escravos. Dentro desses termos, desde a cultura clássica a desigualdade entre gêneros é uma constante, e o discurso ideológico baseado em premissas biológicas/naturais sempre foi um recurso para legitimar a exclusão feminina. Conforme disse Aristóteles em "A Política", "o macho é mais perfeito e governa; a fêmea o é menos, e obedece. A mesma lei se aplica naturalmente [!] a toda humanidade".

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P R E S S U P O S TO S  o feminino era caracterizado como natureza, emoção, amor e intuição e sentimentos relegados ao mundo privado. [...] Ao masculino [por sua vez] a política, a razão, a ciência, a justiça, o público. Assim, desde a Grécia Antiga7, considerada “o berço da democracia e da civilização”, as mulheres são impedidas de participar ativamente da produção social da vida, e desde então desconsideradas enquanto plenas cidadãs. Como afirma Risério (p.47), a fisiologia grega justificava direitos desiguais e espaços urbanos distintos de acordo com o suposto calor dos corpos. Fator ainda mais extenuante e visível quando na fronteira entre os sexos:

As mulheres eram tidas como versões mais frias dos homens. Elas não se mostravam nuas na cidade. Mais: permaneciam confinadas na penumbra do interior das moradias, como se isso fosse mais adequado a seus corpos do que os espaços à luz do sol. Por outro lado, os homens se encarregavam dos assuntos da pólis e de tudo que entendia-se como domínio do público: a àgora, onde ocorriam debates, eventos e decisões políticas, o espaço da dita democracia e do exercício da cidadania, era tida como um espaço irremediavelmente masculino. O mesmo no interior das residências: meninas e mulheres permaneciam no Gineceu, o espaço feminino - um lugar cujo o nome era isso mesmo, manter todas as vaginas (e úteros supostamente férteis) restritas aos pontos mais isolados das casas e próximos da cozinha - enquanto no Andrón, o espaço dos homens, eles comiam, se divertiam e recebiam amigos.

Os romanos, posteriormente, consolidaram tal exclusão por meio de um arcabouço legal, instituições e aparatos jurídicos, nos quais o homem detinha de todos os poderes sobre as mulheres, os filhos, servos e escravos (SANTANA, 2010, p.10). Sem sequer ter direito a um nome próprio, na Roma Antiga as mulheres eram numeradas conforme a ordem de nascimento com o nome do pai à frente. E era ele quem detinha poder sobre a vida e a morte de todas as pessoas que vivam sob sua autoridade. No Regime Feudal a mulher prosseguia excluída de qualquer partilha e da vida social, entendida meramente como ferramenta de reprodução. Com a Idade Média, a Igreja intensifica seu poder. e, munida do mito hebraico de Adão e Eva, que traz a mulher 7 Tradicionalmente, a Grécia An�ga abrange desde 1 100 a.C. até à dominação romana em 146 a.C.

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como o princípio do mal da humanidade, reforça a condenação do prazer e do corpo feminino. Afinal, a mulher é a responsável pela [imoralidade da] reprodução. Essa situação estabelece conteúdos que tem relação com a mulher de antes e de hoje, e também estabelece as bases da produção arquitetônica e urbanística uma vez que toma o corpo como metáfora de si. Temos então no Renascimento, durante a transição do feudalismo para o sistema capitalista, a intensificação da fragilidade da condição feminina. Neste tempo, mesmo as mais abastadas e privilegiadas tiveram que passar suas propriedades para seus maridos. Por outro lado, o trabalho artesanal se extingue e aumenta a carga do trabalho doméstico. A exploração feminina se acentua, principalmente para a maioria pobre: as jornadas crescem, chegam a 14 ou 15 horas de trabalho, ao passo que o salário diminui. E, mais uma vez, é reforçada a noção de que o espaço privado é o lugar da mulher. Paralelamente a arquitetura se mune do ideário cristão e o corpo, tomado como metáfora, traz implicações incisivas no corpo feminino, já que se forja a ideia de uma impureza e incompletude como que "naturais" e inerentes a ele. Com a modernidade, período calcado no Iluminismo em que o uso da razão se dizia ferramenta libertadora

dos homens ,

das amarras das antigas tradições e privilégios

feudais (PONTES, 2014). O homem passa a se reconhecer como um ser autônomo, autossuficiente e universal, e a se mover pela crença de que, por meio da razão, se pode atuar sobre a natureza e a sociedade. Entretanto, como bem sabemos, esse conjunto de ideiais defendidos como universais na verdade reflete desejos e ambições bastante situados: liberdade, igualdade e fraternidade para homens, brancos, heterossexuais, ocidentais e detentores de poder econômico. Os “homens de bem”8. Em paralelo, Cortés sustenta a transformação do espaço privado, "mito pequeno-burguês do ‘doce lar’, em um inferno de opressão e humilhação, um espaço onde reinam o autoritarismo e arbitrariedade mais cruel”, em que a casa se torna o dispositivo para manutenção da ordem patriarcal, convertendo-se, tal como o panóptico, em um símbolo das disciplinas do corpo – e disso, várias gerações de mulheres sabem bem, pois a casa familiar e o ambiente doméstico não são aquilo que prega a falácia da felicidade que significa o lar. No espaço público, por sua vez, os mecanismos de controle estão sendo criados por meio de uma transformação profunda da vida urbana, na qual o consumo de massa impele a homogeneização e a regulação total do cotidiano. As ruas perdem sua função primordial e se convertem em meras passagens para o fluxo do capital, na forma de novas estruturas arquitetônicas e de construção de grandes centros comerciais surgidas em torno da sociedade do consumo. Diante desses fatos, ao discorrer sobre os resultados do processo de pesquisa sobre a história das condições de vida das mulheres ao longo do tempo, Alambert (1997, p.51) sustenta as ricas e privilegiadas viveram mergulhadas em trunfos mundanos e intelectuais enquanto as pobres sempre foram o "burro de carga", afundadas no trabalho, mas "todas elas foram sempre apenas reprodutoras da espécie, escravas declaradas incapazes pelas leis e códigos". A exemplo, a Risério lembra dessas mulheres que viveram durante os séculos XVII e XVIII: as “senhoras dos sobrados”, mulheres ricas e brancas, eram enclausuradas e não saiam para as ruas, vivendo subordinadas aos maridos. As mais pobres, por sua vez, geralmente negras, trabalhavam em 8 Mesmo com a Revolução Francesa a mulher segue excluída da vida pública ao ser simplesmente ignorada na Declaração dos Direitos do Homem, muito embora a par�cipação feminina tenha sido crucial tanto neste caso como em guerras, revoluções e outros feitos históricos. Como uma resposta das mulheres na época, Olympe de Gouges escreveu a “Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã”, em 1791.

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P R E S S U P O S TO S  quitandas, eram ambulantes, vendeiras, aguadeiras ou “negras de tabuleiro”, fazendo artesanato doméstico ou outras tarefas de cunho manual ou do lar - o que lhes permitia uma aproximação maior com o espaço público e com a vida social, possibilitando que se engajassem em dimensões políticas, religiosas e culturais.

Se a regra, para as mulheres ricas, era a indolência, a inatividade propiciada pelas mucamas ou pelos escravos, a regra, para as mulheres pobres, andava bem longe disso. Elas eram obrigadas a batalhar, quando escravas, para tentar comprar a própria alforria e, já libertas, para se sustentar e à sua família. [...] Ali, as brancas ricas, com raríssimas exceções, viviam praticamente enclausuradas. As mulheres do povo, ao contrário, viviam na rua. Evidente que isso não significa que as pobres ou negras eram vistas como parte da sociedade, muito menos que eram aceitas como padrão, pois elas estavam num patamar ainda mais baixo, como escravas, mucamas e serviçais. A mulher esperada pela sociedade foi, e continua sendo, aquela que exclusivamente cuida do lar e da família e que fica restrita ao mundo doméstico, reforçando a noção de que o lugar da mulher é em casa (o espaço privado) enquanto a rua (o espaço público) é lugar do homem ou da mulher que “não é de família”, renegada pela sociedade (RISÉRIO, 2015). Quanto mais marginalizada, isto é, quanto mais distante a mulher está do padrão estipulado socialmente, mais ela é afastada dos espaços entendidos como “respeitáveis”: as pobres, negras, lésbicas, trabalhadoras, prostitutas, transexuais e travestis [...] estiveram historicamente relegadas às ruas, mas é como se a rua fosse dada como forma de a sociedade dizer que elas não merecem ao menos o papel de dona de casa, de “rainha do lar” - como se este fosse o único papel possível para a mulher, como se não pudessem fazer outras coisas muito menos serem honradas por isso.

As janelas – reais ou metafóricas – são o espaço meio do qual o feminino, como modelo cultural e hierárquico, acessa o exterior: a mulher vive o exterior através das experiências da casa, observa a rua da janela e da televisão; a mulher vive uma realidade mediada e vivida por outros, uma realidade que não lhe cabe. Essa é a construção ideal buscada pelas hierarquias dominantes; mesmo que se desconheça ou se negue, as mulheres estiveram e estão presentes no espaço público. o exterior urbano é o espaço onde as mulheres desenvolvem, indefectivelmente, os trabalhos complementários do papel atribuído. ■ ■MONTANER; MUXÍ, 2014, p.198

Se percebe que a vivência feminina se dá quase que exclusivamente em função do trabalho. E mesmo que sempre houveram contradições entre os gêneros, foi com o início do modelo capitalista de produção e a implantação da divisão sexual do trabalho que tais desigualdades se aprofundaram. Separando o público do privado, este sistema conseguiu caracterizar relações de poder e papéis sociais indissolúveis entre homens e mulheres até os dias atuais (CARVALHAL, 2004). Foi no século XIX, como parte do desenvolvimento do sistema capitalista/patriarcal, que se consolidaram as bases materiais e simbólicas da divisão sexual do trabalho. Inicialmente, essa expressão foi utilizada por etnólogos para designar uma repartição “complementar”

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das tarefas entre homens e mulheres. Lévi-Strauss utiliza essa noção para explicar a estruturação da sociedade em família. As antropólogas feministas, no entanto, demonstraram que esse pensamento traduzia não uma complementaridade de tarefas, mas uma relação de poder dos homens sobre as mulheres, adquirindo valor de conceito analítico (Kergoat, 2009, p.67). Sendo uma relação de poder, a divisão social do trabalho possui dois princípios organizadores: o da separação – estipulando trabalhos de homens e outros de mulheres, e o de hierarquização – estipulando valores diferentes para os trabalhos, o do homem “vale” mais do que um de mulher. Tais princípios são validos para todas as sociedades conhecidas no tempo e no espaço, o que permite que alguns autores (Héritier-Augé, 1984), mas não outros (Peyre e Wiels, 1997) sustentem a convicção de que existam desde os primórdios da humanidade. Esses princípios, para Kergoat, podem ser aplicados em função de um processo especifico de legitimação – fundamentalmente a ideologia naturalista, que “relega o gênero ao sexo biológico e reduz as práticas sociais a “papeis sociais” sexuados, os quais remetem ao destino natural da espécie”. Contrariamente, a teorização em termos de divisão sexual do trabalho defende que as práticas sexuadas são elas mesmas construções sociais. Conforme Kergoat (2009), a divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social como resultado das relações sociais, estas adaptadas historicamente a cada sociedade. A divisão do trabalho se caracteriza pela destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultaneamente, a ocupação pelos homens das funções de forte valor social agregado (militares, religiosas, políticas etc.)9. Dessa maneira, o conceito de trabalho sempre foi referido ao longo do tempo como sendo exclusivamente produtivo e dessa forma tratado pelas ciências sociais e pela economia. Por outro lado, o trabalho reprodutivo ou doméstico, assim definido no contexto dessa sociedade, foi mantido fora do conteúdo que dava significado ao conceito de trabalho até pouco tempo atrás, como que inexistente. O trabalho produtivo se autonomiza com espaço e tempo próprios e, desse modo, se impõe sobre a organização da vida cotidiana, enquanto o trabalho reprodutivo é estabelecido como aquele estritamente doméstico e, sistematicamente, entendido como o lugar da mulher.

[...] a ideologia patriarcal se configura no espaço da casa, do bairro e da cidade, para alimentar o capitalismo. relembra o slogan da Associação de Moradia industrial, em 1919, “Bons lares fazem trabalhadores satisfeitos”, ideia que ajudou na estratégia capitalista para o planejamento de melhores moradias para trabalhadores homens, brancos e suas famílias, com o intuito de eliminar o conflito industrial. [...] a casa privada suburbana era o cenário para a efetiva divisão sexual do trabalho. ■■COSTA; VIEIRA, 2014, p.12

9 A divisão sexual do trabalho não se diferencia de outras formas de divisão do trabalho na medida em que não se trata de um dado rígido e imutável. Ainda que os princípios organizadores sejam os mesmos, suas modalidades (concepção de trabalho reprodu�vo, lugar das mulheres no mercado de trabalho etc.) variam fortemente no espaço e no tempo. Como lembra Kergoat (2009, p.68) com base em Milkman (1987), a História e a Antropologia demonstram que uma mesma tarefa, especificamente feminina em uma sociedade ou ramo industrial, pode ser em outras considerada �picamente masculina, bem como o inverso.

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P R E S S U P O S TO S  Mesmo partindo do pressuposto de que o patriarcado é um sistema anterior ao capitalismo, o qual se mantém e se reestrutura no processo de formação social desse sistema, e de que houve, anteriores ao capitalismo, outras formas de divisão do trabalho entre homens e mulheres, essa divisão estava, necessariamente, marcada por outra concepção ou relação entre produção e reprodução, pois a divisão que se expressa nesse sistema está diretamente relacionada à sociedade salarial, na qual a força de trabalho é vendida como uma mercadoria. Assim, com a consolidação do capitalismo contemporâneo, as mulheres entram no mercado de trabalho e conquistam diversos direitos sem que, no entanto, seu papel como responsável pelo lar fosse alterado ou partilhado, acarretando em duplas e até triplas jornadas de trabalho. Apesar de todas as transformações sociais que estamos vivendo, as diferenças de gênero todavia não têm sido superadas e ainda hoje as mulheres seguem sendo majoritariamente responsáveis pelas tarefas de cuidado e manutenção dos lugares. E mais: como no capitalismo há a separação em duas classes sociais, a classe capitalista - que detém a propriedade privada dos meios de produção - e a classe trabalhadora - que vende sua força de trabalho aos capitalistas para sobreviver, as mulheres sofrem três tipos de exploração dentro da classe trabalhadora: a primeira é a econômica, ao ser explorada pela linha de produção do sistema capitalista; a segunda, a de mãe, que lhe é submetido pelos moldes da ainda vigente família burguesa, isto é, de que ser mulher é ser inteira e unicamente responsável pelos cuidados que este (o filho) exige, isentando o marido; e a terceira, a de caráter doméstico, que é imposto também pela moral familiar burguesa, que se sustenta no patriarcado - sendo as negras e pobres o grupo mais explorado.

A cidade e o público, nesse sentido, são dominados pelos princípios e regras masculinos, e a mulher tem sido relegada à manutenção privada, resumida ao seu papel biológico de mãe, constrangida à casa e ao mundo doméstico. Diversas/os intelectuais, tais como Bondi (1992), Domosh (1996), Huxley e Winchester (1991), denunciam a condição de subordinação das mulheres na divisão sexual do trabalho social e do espaço.

Enquanto existirem duas esferas de trabalho – um remunerado, reconhecido e visível, e outro não remunerado, não reconhecido

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e invisível – não se poderá falar de uma nova ordem simbólica. o sistema hierárquico patriarcal se baseia na divisão injusta de tarefas, independentemente do sexo que assuma cada papel de gênero. As mulheres trabalham mais horas e ganham menos, pois a maior parte dessas horas é dedicada às invisíveis tarefas da família, sem as quais não há produção. Portanto, um desafio para uma cidade mais justa e solidaria é a corresponsabilidade social nessas tarefas imprescindíveis, e, para tanto, um planejamento urbano de proximidade também é imprescindível. ■■MONTANER; MUXÍ, 2014, p.210

Associando os conceitos trabalhados até então podemos entender como se dá a relação entre os gêneros na [re]produção das cidades e como a partir disso papeis e posições sociais são desigualmente valorados, sendo que o masculino é sempre visto como superior em detrimento do feminino, o público igualmente em detrimento do privado, significando alienação e submissão para as mulheres já que, em todo este tempo, suas vidas têm sido condicionadas em função de seu corpo e dos estigmas construídos em torno dele. Fica evidente, portanto, que as transformações urbanas não ocorrem em separado das mudanças corpóreas ao longo do tempo (VIEIRA, 2015). E se, como sustenta Sennett, "as pedras urbanas contam experiências de povos", ao revisitar a história percebe-se que a repressão do corpo feminino, enquanto corpo físico e político, ocorre de maneira sistêmica e estrutural conforme o tempo e a cultura, em que tamanha desigualdade se dá pela construção social das diferenças sexuais. Por outro lado, algumas autoras alegam que esse perfil investigativo de pesquisa, ao invés de promover discussão e transformação, reforçavam a situação de subordinação na qual se encontram as mulheres, cooperando com a dominação masculina, como defendem Rose (1993) e Mc Dowel (1999). Elas rejeitam veementemente a vitimização continua das mulheres e demonstram as potencialidades e os espaços de poder femininos (SILVA, 2007, p.120). Gillian Rose (1993), não obstante, traz mais complexidade a este cenário. Ela também fundamenta seu conceito de espaço paradoxal com base nessa concepção de uma construção social do sujeito, assim como Bourdieu, Cortés, Grosz e outras/os que igualmente vêem a "organização" humana orquestrada por relações de poder e dominação. Mas, com base em Foucault, Rose enfoca a perspectiva desconstrucionista da ciência e dos conceitos hegemônicos e abre as possibilidades de transformação e resistência dos sujeitos dentro da estrutura de dominação masculina. Partindo da existência de um vinculo entre sujeito e território, Rose argumenta que a noção de território, desenvolvida por uma ciência calcada na teoria masculina burguesa, envolve um tipo de propriedade, caracterizada pela conquista brutal e violenta, imaginada e estruturada para aqueles como uma “fortaleza”, “uma espécie de proteção de si e a exclusão de outros”, pois há uma universalidade em termos de conquista espacial que é marcada pela estratégia subjetiva de "tornar invisíveis os outros oprimidos e capturados dentro do território". Todavia, tal invisibilidade não implica inexistência, ao contrário, “só se justifica o uso da força no processo de luta e, portanto, o oprimido age através de seus atos de resistência”.

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P R E S S U P O S TO S  Reconhecendo que o território possui suas diferenciações internas, ela sustenta que no território conquistado pela força masculina, também existe o espaço do outro – o feminino. Nessa perspectiva, o outro não está necessariamente fora, mas, embora capturado e oprimido, ele desenvolve táticas desconstrucionistas e exercem uma pressão para influenciar a ordem estabelecida. Portanto, o feminino é também elemento do território do conquistador masculino. As geógrafas feministas argumentam a impossibilidade de trabalhar as categorias (nós e outros) sem estabelecer a interdependência entre elas e adotam a perspectiva de 'centro', posicionando o sujeito com força hegemônica e 'margem', constituindo os oprimidos. Para Rose (1993), o padrão de gênero instituído é mantido pela força dos sujeitos que tem maior alcance de mobilização de recursos para manter o poder no processo de lutas simbólicas. Negando a ordem de ‘nós’ e os ‘outros’, criam as categorias como centro e margem. Não há uma universalidade da conquista pelo poder. “Há a transgressão do poder instituído que desenvolve táticas desconstrucionistas à ordem estabelecida”. É o jogo tenso entre centro e margem que rearticula e reposiciona os sujeitos sociais no território. As características de multidimensionalidade e plurilocalidade oscilam e podem constituir, assim, inúmeras configurações sociais/territoriais. O movimento pode provocar uma desestabilização da configuração estabelecida e gerar uma nova posição entre 'nós' - considerados centro da configuração - e os 'outros' - considerados margem da configuração -, entretanto, compreendidos como simultaneamente separados/conectados. Essa compreensão envolve a separação que está na construção de identidades diferenciadas; contudo, só possíveis porque são construídas através de um processo de mutualidade e reconhecimento - as práticas distintivas de que falamos anteriormente. O espaço paradoxal é complexo, envolve variadas articulações e dimensões e se constitui em uma interessante construção metodológica. Nessa ótica, qualquer mulher não pode ser vista constituindo apenas um gênero, mas, também, a sexualidade, a raça, a religião e a classe social. Todos esses elementos são experienciados simultaneamente, podendo, portanto, subverter a ordem de forças entre 'nós' e os 'outros' devido à sua plurilocalidade no território. Qualquer posição é imaginada não apenas por ser localizada por múltiplos espaços sociais, mas também por ambos os polos de cada dimensão. É importante conceber que há pluralidades de masculinidades tanto quanto existem de feminilidades e que não se configuram como blocos homogêneos, pelo contrário, são construídos por significações repetidas na ação, e toda ação é passível de variação (SILVA, 2007). Nesse sentido, a performance de gênero permite a criação do novo porque nunca se repete o padrão idealizado. Isso é, a subversão do ideal de gênero é também a sua própria condição de sobrevivência. De tal modo que Silva, com base em Rose, argumenta que a realidade socioespacial assim construída é um campo contratual, por meio do qual é redesenhada, redefinida e, também, transformada. Através da contemplação dos elementos materiais e simbólicos que constituem as relações entre gênero e espaço pode-se ir além do espaço da reprodução, instituindo-se, assim, o espaço da transformação. Por isso, os papeis sociais que a mulher desempenha e os estigmas que os caracterizam podem ser transformados, sendo ela quem deveria conduzir o destino de seu próprio corpo. Portanto, ao analisar a relação entre cidade e corpo feminino é preciso ultrapassar o mero reconhecimento de suas especificidades ou de seus dados biológicos,

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opondo-se a qualquer determinismo em relação aos mesmos. Como Grosz (2000, p.77) ressalta:

[não se evoca] um corpo puro, pré-cultural, pré-social ou prélinguístico, mas um corpo como objeto social e discursivo, um corpo vinculado à ordem do desejo, do significado e do poder. (...) o que está em jogo é a atividade e a atuação, a mobilidade e o espaço social concedidos às mulheres. ■■GroSZ,

2000, p.77

Trata-se de reconhecer o corpo em seu aspecto presente para, a partir dele, desvendar os processos que assim o constituíram (VIEIRA, 2015). Dito isso, ao escrever que “não se nasce mulher, torna-se”, Beauvoir estabelece um preceito fundamental para o feminismo: a biologia não é determinante na corporeidade feminina, no sentido de que as especificidades corporais da mulher não são um destino, mas sim uma condição passível de ser transformada. Isso implica que falemos da cidade e das mulheres, e que politizemos a arquitetura e o urbanismo sobre as questões de gênero, porque, de fato, o espaço em todas as suas dimensões reflete essa condição.

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DISJUNÇÕES

A

arq u ite tura e fe m ini smo

arquitetura tem uma estreita relação com a vida humana e, portanto, "muito

tem a ver com o poder político e econômico, com a vontade coletiva pelo social e o comum, com o público e a permanência no futuro" (MONTANER; MUXÍ, 2014, p.15). Ainda que pareçam óbvias, essas relações não são fáceis de serem tratadas. Parecem óbvias a respeito das edificações, mas também são vitais no que se refere à legislação e à gestão, ao projeto e à construção de moradias e de bairros como espaços para os novos modelos de vida e para a felicidade das pessoas. Dessa maneira, ao falar de arquitetura nunca devemos resumi-la a questões meramente formais, porque ela é indissociável dos signos e metáforas com as quais se relaciona. Muito embora o ato arquitetônico seja entendido como materializar e edificar apenas, “a arquitetura refere-se a tudo o que existe em um edifício e/ou em uma cidade que não pode ser reduzido a seus elementos construtivos, a qualquer coisa que permita sua construção além do meramente utilitário” (CORTÉS, 2008, p.39). Ela representa “uma religião que adquire vida, um poder político que se manifesta, um evento que se comemora”... e antes de mais nada, é idêntica ao espaço de representação na medida em que sempre representa algo mais que ela mesma, se distinguindo da mera construção física. Evidenciar esse viés e a articulação de interesses por detrás da produção intelectual e espacial do urbano se faz necessário, pois comumente os ambientes em que vivemos são considerados mero cenário estático, plano de fundo para as ações, quando, na verdade, como vimos anteriormente, a vida urbana não se desenrola sobre um solo apolítico e neutro (CORTÉS, 2008), sendo a subjetividade humana erigida e ativada através do espaço criado pelo desenho arquitetônico mediante o estabelecimento de códigos e convenções.

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A forma e a estrutura da cidade orientam e ajudam a organizar as relações familiares, sexuais e sociais, além de coproduzir o contexto no qual as regras e as expectativas sociais se interiorizam na forma de costumes para assegurar a conformidade social. ■■CORTÉS, 2008, p.124

A arquitetura, portanto, possui um papel fundamental na legitimação de ideais sociopolíticos, agindo direta e indiretamente na manutenção ou, como preferimos, na transformação das desigualdades. Como afirmam Montaner e Muxí, “a política sempre é uma descoberta [...] e a primeira decisão política – em qualquer atividade prática, de teoria, de história e de crítica da arte e da arquitetura – radica naquilo que se visualiza e que se ignora, que se promove e que se oculta, que se diz e que se cala e em quem se silencia” (MONTANER; MUXÍ, 2014, p.16). E, assim como o feminismo defendeu e segue defendendo, as questões pessoais são sempre políticas, e, consequentemente, "a criação de espaços para as relações entre as pessoas tem, necessariamente, relação com a política". É preciso considerar que a arquitetura, bem como a linguagem, é uma estrutura que ajuda a organizar nossas experiência, construindo significados e estabelecendo conteúdos através do discurso. Assim, "os espaços urbanos contam-nos histórias que lemos como se fossem 'textos espaciais', fatos realizados no espaço" (CORTÉS, 2008). O que de fato demonstra como a arquitetura efetivamente participa na formação da ordem social e até mesmo em sua configuração e imposição. Cortés ressalta o caráter autoritário da arquitetura e exemplifica como o poder, entendido como a capacidade de definir e controlar as circunstâncias e os acontecimentos de acordo com nossos interesses, pode assumir diversas formas, "desde a mais sofisticada, a sedução, até a mais persuasiva e estável, a autoridade, passando pela mais agressiva, a coerção, ou pela mais insidiosa, a manipulação". O que não se pode perder de vista, no entanto, é que o uso do poder só é tolerável na medida em que consegue ocultar parte importante de si mesmo; isto é, sua capacidade de sedução depende de sua habilidade para mascarar seus mecanismos e propósitos. E, nesse sentido, a arquitetura se mostra um instrumento de grande utilidade por conseguir, simultaneamente, representar a autoridade e disfarçar suas ligações com ela "sob um discurso tecnicista pretensamente destituído de ideologia". Em 1929 o filósofo Georges Bataille escrevia em seu “Dictionnaire critique” que a arquitetura sustenta o pensamento e a sociedade expressando a autoridade através da geometria, “como se fosse um guarda de uma prisão que protege com cumplicidade a hierarquia autoritária que a possibilita”. A arquitetura, segundo Bataille, "é a expressão do próprio ser das sociedades [...] na verdade, só o ser ideal das sociedades, o que ordena e proíbe com autoridade, se expressa nas composições arquitetônicas propriamente ditas." Assim, as composições arquitetônicas manifestam as ordens e proibições da autoridade, constituindo em suas formas modos de controle social. Nessa ótica, a arquitetura é fundamental na formação do sujeito, pois não oferece nada além que a aparência do rosto de quem deve fazer respeitar a ordem da sociedade, reafirmar o UNO, a unicidade, a voz monológica e, justamente por isso, segundo Cortés, é impositiva e representa o autoritarismo, imprimindo o mito da técnica sobre os corpos. "À margem de sua própria expansão, a arquitetura não


D I S J U N Ç Õ E S  seja nada em si mesma, existindo somente para controlar e configurar a totalidade do cenário social" (HOLLIER, 1989, p.47).

[...] os grandes monumentos se elevam como diques, opondo a lógica da majestade e da autoridade a todos os elementos perturbadores: é sob a forma de catedrais e dos palácios que a igreja ou o estado se dirigem e impõem silêncio às multidões. de fato, é evidente que os monumentos inspiram a sabedoria social e, com frequência, até um autêntico temor. Compartilhando dessa visão, Michel Foucault também trabalha a noção de que a arquitetura representa a autoridade e a ordem através de métodos disciplinares. Mas, enquanto nos escritos de Bataille a arquitetura é pensada essencialmente em termos de representação autoritária, para Foucault ela é pensada em termos de planejamento espacial e de institucionalização das tecnologias de poder. Essas perspectivas críticas têm como base a primeira grande transformação nas relações entre a arquitetura moderna e o poder, que ocorreu no fim do século XVIII e no início no XIX, resultado dos incipientes Estados-nação que criaram mecanismos para a consolidação política na Europa e na América (MONTANER; MUXÍ, 2014). No contexto da incipiente modernidade, impregnada pelos ideais iluministas, há um empenho na concepção "racional" dos sujeitos buscando contruir a noção de um sujeito pretensamente universal e neutro. Neste momento, conforme Foucault, se percebe que o corpo é manipulável, passível de controle e adestração, tornando-se, portanto, objeto e alvo do poder.

o momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que não tende unicamente ao aumento de suas habilidades, mas à formação de um vínculo que o faz tanto mais obediente quanto mais útil. Forma-se então, uma política das coerções que constituem um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. o corpo humano entra em um mecanismo de poder que o explora, o desarticula e o recompõe. ■ ■FOUCAULT, 2009, pp.141-142

Nesse momento, os comportamentos foram “normalizados” e a população devidamente moralizada, os desejos e impulsos foram controlados e direcionados para o ciclo produção-consumo... Isso foi possível em função do processo de domesticação da vida social que se desenvolveu lentante a partir da modernidade. Conforme Cortés, basicamente um projeto político, econômico e social no qual se impôs medidas de controle, de domínio e de implicação dos indivíduos. Nesse cenário, o corpo é suprimido e controlado através de dois aspectos básicos: espaços para vigiar e controlar e a negação dos corpos para que o “imoral” desapareça do espaço público. Ordens distintas como a moral estabelecida, a ideia padrão de família, os poderes econômicos ou políticos procuram dominar e controlar esse espaço. Assim, foram desenvolvidos aparatos de vigilância para “normalizar” o sujeito moderno. Cortés afirma que se tivéssemos de buscar uma tecnologia de controle comum, ela estaria no desejo de criar cidades hierarquicamente estruturadas (por meio da implantação

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e da distribuição dos corpos no espaço) baseadas na visibilidade permanente de cada um de seus membros. Para tanto, num contexto socioeconômico direcionados pos princípios racionalistas, as cidades criaram o que Foucault chama de quadriculamentos disciplinares, a partir dos quais se fortalece o processo de diferenciação e individualização para marcar exclusões por meio de um pensamento dicotômico, uma visão que é baseada em criar categorias de oposição tais como louco/não louco, normal/anormal, ofensivo/inofensivo, razão/emoção, ativo/passivo, público/privado, e tantas outras, validadas com as instituições disciplinares criadas, cuja tarefa é controlar e/ou corrigir os desviantes, os anormais. Baseado nisso, um dos mecanismos para consolidação política foi a criação de um conjunto de edifícios: de transmissão de cultura e de ensino dos novos Estados (museus, bibliotecas, teatros, colégios, etc.), edifícios de produção (fábricas de tecido e açúcar, salinas, etc.), edifícios para a distribuição dos bens (alfândegas, matadouros, feiras e mercados), edifícios para a administração (a bolsa, o tesouro público, o parlamento, etc.) e recintos para o controle e a cura (manicômios, hospitais, quartéis, presídios, hospícios, palácios de justiça, etc.) (MONTANER; MUXÍ, 2014). Segundo os autores, "já não se tratava de palácios para príncipes ou das catedrais do catolicismo, edifícios de representação de um poder dominante, longínquo e inacessível, mas de edifícios de um novo poder, mais próximo, que administrava, legislava, controlava e distribuía". Encarregados de projetar as instalações desse novo poder, os engenheiros civis e os incipientes arquitetos acadêmicos criaram um sistema rápido e eficaz para essa quantidade de edifícios públicos, a fim de alcançar os objetivos políticos da conveniência e da economia, mantendo um repertório limitado de formas (Ibid, p.28). Este sistema coincide com a filosofia utilitarista, que consiste na ideia de que tudo deve servir várias vezes. Considerando isso, Jeremy Bentham, filósofo e um dos precursores do “Utilitarismo”, pensou o Panóptico: um dispositivo distópico de vigilância friamente projetado para ser o mais eficaz do mundo. Basicamente um prédio circular com uma torre central de onde se observaria todas as celas construídas em volta onde tudo foi calculado para permitir a máxima visibilidade e controle da totalidade de sujeitos, introjetando a sensação de vigilância. Quem observa nunca é observado, assim como quem é vigiado nunca vê está hipoteticamente sob constante observação.

o panóptico foi uma peça-chave inicial na evolução das relações entre formas arquitetônicas e poder elaborado como conceito diagramático no fim do século XViii: do controle opressivo, labiríntico e o obscuro tardo-medieval se passou a um controle onipresente e ligeiro baseado na visão e na luz, no vazio e na posição elevada. ■■MONTANER; MUXÍ, 2014, p.31

O projeto de Bentham, todavia, nunca foi construído, mas influenciou todo o século XIX e se estendeu por todo o mundo tanto geometricamente quanto uma forma metafórica de pensar relações e espaços, afetando uma infinidade de projetos e até mesmo cidades inteiras que passaram a implementar diversas formas de higienização dos espaços e de controle da população para, assim, diminuir os “inconvenientes do poder” e da burguesia que, no fim das contas, são a mesma coisa.

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disjunções

É possível notar a influência do panoptismo em diversas escalas e tempos. Como exemplificam Montaner e Muxí (2014, p.31), o conjunto de ideais do panoptismo passará para o urbanismo com a abertura de eixos radiais e esquemas em diagonais, a fim de potencializar a hierarquia urbana, tal como tinham sido ensaiados na Roma do papa Sisto V, na Paris do barão Haussmann e na Barcelona do plano de Léon Jaussely. Noutra escala, Cortés destaca três praças (Place des Terreaux, a Place Vendôme e a Plaça Dels Països Catalans) que reafirmam o papel da arquitetura no controle das massas, na separação de classes e na vigilância constante: O projeto da Place des Terreaux (1994), no centro de Lyon, incorporou pequenas fontes no solo para, quando abertas, evitarem as concentrações usuais de árabes que ocorriam nela. Já o projeto de reabilitação da Place Vendôme (1992), em Paris, definiu um espaço limpo para destacar tanto a suntuosidade dos edifícios aristocráticos do século XVIII (atualmente ocupados por hotéis e comercio altamente luxuosos) quanto o poder do Estado, com uma coluna de bronze com singelos 44 metros de altura – concebida para celebrar a vitória napoleônica; a vigilância se estabelece pela transparência, que torna fácil a localização do indesejado. E em Barcelona, a Plaça Dels Països Catalans, de 1980, é uma das “praças duras” da cidade; um projeto de 10.400 m² sem árvores, cinzento e triste, situado em frente a uma estação de trens. Embora permita a circulação de passantes, é uma praça aberta e nada a acolhedora... nos faz lembrar de nossa Brasília, sem esquinas, com suas escalas descomunais em concreto, áridas e transparentes.

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Há, de fato, inúmeros casos em que podemos identificar as táticas de controle e a busca pela disciplina que são, sem dúvida, parte de uma herança ainda latente das instituições criadas com a ascensão da burguesia do século XVIII, quando então o corpo social se impregna da vigilância constante para a adequação e estabeleci1

mento das relações de poder, sendo a arquitetura, nestas relações, responsável por organizar espaços complexos, simultaneamente funcionais e hierárquicos ao passo que atribui valores para garantir a normalização e obediência dos indivíduos. Portanto, através de códigos, convenções e formas arquitetônicas, a arquitetura é responsável pela observação constante (CORTÉS, 2008);

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uma arquitetura que vigia e tem objetivos disciplinares, que institucionaliza em si as tecnologias de poder que sucessivamente reprime os indivíduos para a conformação de uma massa cuidadosamente fabricada. Hoje, pode-se dizer que as estruturas sociais assumiram novas formas de organização que

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possibilitaram passarmos de “sociedades disciplinares”, abordadas por Foucault, para “sociedades de controle”, apresentadas por Gilles Deleuze. Desde a obsessão pela transparência dos edifícios modernos até a inclusão de tecnologias sofisticadas de controle nos espaços contemporâneos, Cortés afirma que uma nova codificação do exibicionismo e do voyeurismo foi

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criada, internalizando os imperativos disciplinares. "Agora, a vigilância e o controle permanentes se impuseram socialmente, mas perderam grande parte de suas características terríveis ao serem vistos não tanto como imposição de um estado que vigia, mas como produto de uma sociedade midiatizada que, isso sim, observa permanentemente" (Ibid, pp.30-31).

5 1. panoptico de bentham \ 2. paris \ 3. place des terreaux \ 4. place vendöme \ 5. plaça dels paisos

De qualquer forma, o panoptismo direcionou grande parte da produção de conhecimento e de espaço modernos, e que, aliado aos interesses masculinos perante a cidade, influenciou profundamente o pensar e a práxis urbana. Assim, Cortés (Ibid, p.33) insiste que se o Panóptico foi concebido como uma máquina de visão que tudo capta e, assim, tudo controla, a visão masculina tem um papel bastante semelhante uma vez que “funciona como instrumento de coação ideológica com claros objetivos de controle”.

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D I S J U N Ç Õ E S  Podemos, então, retomar a ideia do Panóptico também como metáfora para analisar o papel do heterossexismo e o poder da visão exclusivamente masculina na organização dos espaços sociais (CORTÉS, 2008), pois foram os métodos panópticos nessa sociedade disciplinar que tornaram possível uma ciência racional do homem moderno. Nesse contexto surge a construção de um sujeito moderno e racional. Procurariam então por um sujeito neutro, "alguém capaz de subordinar paixões e interesses individuais à regra da razão". Logo, a necessidade de imaginar uma figura universal apontava idealmente para um homem (SENNET, 2008, p.291), pois eles entendiam que somente os corpos masculinos preenchiam as exigências desse padrão cheio de subjetividade. No livro “Carne e Pedra”, Richard Sennett (2008) constrói uma narrativa histórica da civilização ocidental demonstrando como essas questões relacionadas ao corpo se expressam na arquitetura, no urbanismo e na vida cotidiana: “uma história da cidade contada através da experiência corporal do povo”. Sua preocupação era justamente entender como a imagem do corpo humano foi usada nas cidades do passado e nas atuais, e argumenta que e "a imagem idealizada do corpo transfere seus valores para as cidades".

imagens ideais do corpo humano levam à repressão mútua e à insensibilidade, especialmente entre os que possuem corpos diferentes e fora do padrão. Em uma sociedade ou ordem política que enaltece genericamente “o corpo”, corre-se o risco de negar as necessidades dos corpos que não se adequam ao paradigma. ■ ■SENNETT, 2008, p.22

Assim, fica fácil perceber que o corpo, o padrão ou o paradigma, como coloca Sennett, é exclusivamente o masculino e seus valores, dos quais se exclui tudo aquilo que difere, que não se "adeque"; como há muito tempo se forja a ideia de que a mulher é um ser débil, um macho incompleto, como definiu Aristóteles, em hipótese alguma ela poderia ser referência de humanidade. É importante enfatizar que esse modo de pensar e de conceber os espaços se fundamenta a partir de especulações sobre o que constitui a subjetividade humana, mente e corpo, interior e exterior, experiência e contexto social, sujeito e objeto, o eu e o outro... sendo que a relação, ou melhor, a cisão entre mente/corpo é como que a gênese do pensamento dicotômico que embasa todo o pensamento ocidental. A filósofa Elisabeth Grosz se debruça sobre essas questões para desafiar as noções tradicionais que vulgarmente compreendem o indivíduo e põe em discussão o que de fato constitui a subjetividade humana.

A relação mente/corpo é frequentemente correlacionada às distinções entre razão e paixão, sensatez e sensibilidade, fora e dentro, ser e outro, profundidade e superfície, realidade e aparência, mecanicismo e vitalismo, transcendência e imanência, temporalidade e espacialidade, psicologia e fisiologia, forma e matéria, e assim por diante. ■ ■GROSZ, 2000, p.48-9

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E assim por diante, poderia vir, a distinção entre masculino e feminino, macho e fêmea, pois é na interpolação dessas oposições e dicotomias que foi construído o pensamento ocidental (VIEIRA, 2015, p.25); “como se fosse possível separá-las e considerá-las como categorias estanques, e que se relacionam sempre em dualidade, em oposição, nunca em complementação. O corpo, a paixão, a sensibilidade, a aparência e o feminino são, assim, admitidos como categorias brutas, naturais, em subordinação à mente, à razão, à sensatez, à realidade, ao masculino”. O resultado, segundo Grosz (2000, p.67) é que a feminilidade é frequentemente representada (explícita ou implicitamente) de uma de duas maneiras nesse cruzamento de pares de oposição: "ou a mente é tomada equivalente ao masculino e o corpo equivalente ao feminino (e, assim, de antemão, excluindo as mulheres como sujeitos do conhecimento) ou a cada sexo é atribuída sua própria forma de corporeidade." Entretanto, não se concede uma forma de especificidade corporal autônoma e ativa às mulheres, sendo que, no melhor dos casos, seus corpos são julgados em função de uma "desigualdade natural", como se houvesse verdadeiramente um padrão ou medida para determinar o valor dos corpos, independente do sexo. Esse modo de pensar muito tem a ver com o pensamento de René Descartes, pois seus escritos não apenas influenciaram, mas constituem o preceito fundamental de toda a racionalidade moderna. Descartes, em “Discurso do Método” (1637), considera que a alma (mente) seria a representação do ‘eu’, e sua natureza ou essência consistiria somente em pensar, independendo de qualquer coisa material para ser. Vieira lembra que o método cartesiano pressupõe uma existência fiel à razão, “a única coisa que nos torna homens e nos distingue dos animais” (DESCARTES, 1973, p.37 apud VIEIRA, 2015, p.25), na qual não se crê em nada do que possa ser demonstrado só pelo exemplo e pelo costume, nada que possa desviar a nossa luz natural e nos tornar menos capazes de ouvir a razão. Em vias de justificar a existência da alma, Descartes reconhece a imperfeição de seu próprio ser, e se questiona de onde aprendera a pensar em algo mais perfeito do que ele mesmo, concluindo que só poderia ser de alguma natureza que fosse de fato mais perfeita: Deus. É a partir dessa ideia que ele confirma e reafirma a separação entre corpo e mente (Ibid, pp.25-26), relação dual que, todavia, já havia sido antecipada desde o pensamento filosófico de Platão. Descartes acaba por reforçar essa separação, acentuando a oposição entre alma e natureza numa relação de superioridade da primeira em relação à segunda. E essa natureza inclui a natureza do corpo. Tempos depois, Espinosa demonstra seu afastamento das teses cartesianas; para ele, Deus é a substância, constituída por atributos infinitos, dos quais conhecemos o pensamento (mente) e a extensão (corpo). Para ele Deus é também matéria, natureza, e não apenas um espírito perfeito, como em Descartes. “Em Deus a essência não se distingue da existência, pois sem a existência a essência não poderia ser concebida” (ESPINOSA, 1983, p.24). Desse modo, para Espinosa, o corpo não é causa das ideias assim como as ideias não são causa dos movimentos do corpo. “Alma e corpo exprimem no seu modo próprio o mesmo evento” (CHAUÍ, 1983, p.14). Décadas mais tarde, David Hume também se opõe a Descartes, afirmando que seu pensamento se encontra “encerrado em limites muito estreitos e todo o poder criador da mente se reduz à simples faculdade de combinar, transpor, aumentar ou diminuir materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência” (HUME, 1984, p.138). Nesse sentido, nossas ideias são produzidas através das “questões de fato”, das percepções de causa e efeito que temos das coisas ao nosso redor, nos levando

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D I S J U N Ç Õ E S  a estabelecer relações de “semelhança” por princípios de conexão, contiguidade, “sempre provocados pela presença de um objeto aos nossos sentidos ou a nossa memória". Dessa forma, o pensamento não existe em separado da nossa relação corpórea com o mundo (HUME, 1984). Esses atributos conferidos à relação corpo e mente, citados brevemente, são alguns exemplos de como ao longo de três séculos o pensamento ocidental tem buscado discutir a dualidade cartesiana. Vieira (ibid, p.27) argumenta que a influência de Descartes no pensamento racional moderno é determinante, e em termos de corpo feminino, essa dualidade é ainda mais reforçada pela mística cristã. “O discurso cristão sobre o corpo transita em uma ambiguidade: de um lado, a dignidade do corpo santo, o corpo de Cristo; e de outro, o corpo pecador, relacionado à fraqueza da carne”. Citando Gélis, em Vigarello (2012, pp.19-20):

A fé e a devoção ao corpo de Cristo contribuíram para elevar o corpo a uma alta dignidade, fazendo dele um sujeito da História. [...] Corpo magnificado do Filho encarnado, do encontro do Verbo com a Carne. Corpo glorioso do Cristo da ressurreição. Corpo torturado do Cristo da Paixão, cujo símbolo é em toda parte a cruz, lembra o sacrifício pela redenção da humanidade. [...] Mas existe uma outra imagem do corpo, igualmente cheia de sentido, que é a imagem do ser humano pecador. A igreja da Contrarreforma reforçou a desconfiança que o magistério já havia manifestado nos séculos medievais a respeito do corpo, “essa abominável veste da alma”. Corpo depreciado do ser humano pecador, pois se ouve incessantemente dizer que é pelo corpo que ele corre o risco de perder-se. o pecado e o medo, o medo do corpo, principalmente o medo do corpo da mulher, retornam como uma ladainha sob forma de precauções e condenações. Em cima dessa ambiguidade é que se baseia toda a moral cristã em relação ao corpo. Impuro ou não, a mulher esteve relacionada ao corpo mais que o homem em todo o processo de construção do discurso cristão: desde o mito hebraico sobre a criação do mundo, até a concepção de Jesus, “livre do pecado original no qual Maria participa da gestação apenas enquanto corpo, receptáculo do Verbo Divino1 (VIEIRA, 2015). Assim, podemos afirmar que a história feminina sempre esteve estritamente associada às transformações na constituição do corpo, que esteve condicionado às consequências da reprodução, cujo imaginário social, para Vieira, foi profunda e fortemente alimentado pela mística cristã do corpo santo em oposição ao corpo pecador. À luz desses fatos, Diane Agrest argumenta que, ao longo da história da arquitetura, a mulher tem sido deslocada ou substituída “não só no plano social geral, mas de um modo mais específico através da intersecção do corpo com a arquitetura”. Em muitos dos textos renascentistas mais influentes, ou seja, nos textos fundamentais da ideologia arquitetônica ocidental2, “o corpo na arquitetura não é apenas um assunto 1 Veremos no capítulo "Pressupostos / Arquitetura e feminismo" como o pensamento e a moral cristã vai influenciar profundamente os textos e a práxis da arquitetura e do urbanismo. 2  Alguns dos textos mais importantes do processo de apropriação do corpo da mulher: "De Re Aedificatoria”, de Leon Ba�sta Alber�, o “Tra�ato d’Archite�ura”, de Antonio Averlino Filarete, o “Tra�ato di Archite�ura e e Militare” e o “Tra�ato di Archite�ura, Ingegneria e Arte Militare, de Francesco di Giorgio e Vitrúvio, com os “Dez livros da arquitetura”.

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essencial, mas está indissoluvelmente ligado a questão de gênero e sexo, um tema que originou as mais extraordinárias metáforas na construção de uma ideologia de arquitetura” (p.586). A autora ressalta que a leitura desses textos possibilita compreender o complexo aparato ideológico que exclui as mulheres sistematicamente, se apropriando de seu corpo por meio de mecanismos sutis, à nível do inconsciente. Como a arquitetura ocidental se apoia especialmente nas regras e textos renascentistas, por consequência, o “logocentrismo” e o “antropomorfismo” permaneceram subjacentes ao sistema arquitetônico, sendo definido desde Vitrúvio por tudo que inclui, mas principalmente pelo que exclui e reprime (AGREST, 2006, p.585). Isso porque as referências de proporções ideais (literais e metafóricas) fazem referência ao corpo masculino, como que neutras, mas sobre as quais alguns autores ligam mais a ideia do falo que do corpo, ênfase dada em função do caráter objetal da arquitetura. De acordo com a autora, "o constructo ideológico do sistema arquitetônico determinado por uma lógica idealista e um sistema concomitante de repressões é visível no papel que o sexo nele desempenha. A lógica do sistema de arquitetura reprime o sexo de duas maneiras diferentes: entendendo-o e em termos positivos e negativos e atribuindo à mulher o termo negativo (falocentrismo). Além disso, o sexo é neutralizado ou eliminado com o meio usado pelo artista, o qual, assexuado, gera de modo autônomo e dá à luz uma obra, o produto da criação". Partindo dessa constatação, Diana Agrest sugere uma revisão historiográfica a partir do renascimento visando a reabilitação do corpo feminino a arquitetura, pois, para ela, seria quando se delimitou o sistema arquitetônico ocidental, que desde sua origem internalizou uma exclusão sistemática da mulher e a repressão de seu corpo ao passo que elaborou um sistema de regras sintáticas, elementos e significados arquitetônicos a partir do corpo masculino. Um exemplo mais recente da apropriação do corpo, é o papel simbólico que desempenha o arranha-céu, a imagem arquitetônica mais emblemática dos séculos XX e XX. O arranha-céu foi o apogeu da simbologia patriarcal (CORTÉS, 2008), enquadrando-se também como instrumento de controle social na medida em que a imagem do edifício gera uma “aura mitológica e estética” que repercute sob a máscara do poder econômico e do prestígio sobre todas as pessoas e empresas circundantes. Cortés citando Sullivan (1979, p.204), ilustra claramente as intenções masculinas:

Vocês têm aqui [descrevendo um edifício recém construído] um homem para observar, uma força viril, todo um símbolo da masculinidade [!]. Ergue-se como um fato físico, como um monumento ao comércio, ao espírito dos negócios, ao poder e ao progresso da época, à resistência e capacidade individual e à força de caráter. Por isso, em um mundo de mesquinhez estéril, fiz referência a ele como um homem porque evoca o poder criador, ao passo que outros cantaram a mestiçagem. Isso se dá em função de o edifício ser tomado como metáfora do corpo. De acordo com Agrest (Ibid, p.589), para os arquitetos do renascimento o projeto tem como meta uma objetividade delimitada em que as dimensões de um todo deverão estar em função de partes e membros. Assim, o edifício é entendido pelo arquiteto como uma completude, uma totalidade acabada, concepção autônoma com limites definidos. O repertório renascentista, também regido pelo ideário cristão, culminou na elevação do projeto arquitetônico à dimensão imaculada da concepção, como uma forma de

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D I S J U N Ç Õ E S  ato de vontade puro e assexuado, ou seja, com o destino traçado por uma autoria, ou autoridade. "Mais do que uma simples alusão ao contexto religioso, as metáforas renascentistas interiorizam os dogmas morais da igreja católica e oculta-os sob a ideologia racional oportuna para a diferenciação de um Renascimento lógico em oposição a uma Idade Média mística” (COSTA, 2015, p.89). Assim, a metáfora renascentista vai longe, e pressupõe que o edifício nasce e morre. Aqui, o arquiteto toma o lugar da mãe, figura fundamentalmente feminina, e a gestação é igualada ao projeto. Costa assim define: “de maneira demiúrgica, cria o novo a partir de um gesto autônomo assistido por uma figura paterna ambígua, o patrono ou o próprio arquiteto. O corpo da mulher surge apenas para ser representado pelo homem. Ao contrário da gestação, que é inevitavelmente processo de criação com o outro, o arquiteto reivindica para si o monopólio da autoria ainda que submetido à figura do patrono”, enquanto o corpo da mulher é colocado numa condição de exclusão ambígua e paradoxal.

Permitiu-se à mulher emergir do espaço de sua repressão como feiticeira ou histérica e como tal ser queimada ou aprisionada, representando em uma instancia o anormal. As mulheres, que são portadores da maior das normas, a da reprodução, paradoxalmente corporificam também a anomalia. na arquitetura, a mulher foi reprimida por meio de seu corpo e da ordem simbólica. E no que diz respeito ao corpo e à arquitetura, a pergunta óbvia, “de que corpo se trata?” é a questão chave para o desvendamento de misteriosas fabricações ideológicas. ■ ■AGREST, 2006, p.560

Os efeitos dessa série de estatutos atribuídos ao corpo no decorrer da história agem diretamente no modo como as cidades são pensadas e construídas, e de fato vividas quando postas em contato com as distintas corporalidades. Como Diane Agrest conclui, perguntar de qual corpo se trata é o mesmo que perguntar qual o seu gênero, pois um corpo sem gênero é um corpo impossível. Tendo isso em vista, o corpo passou a ser objeto de estudo das ciências sociais a partir dos anos 60. Nesse período surge um novo imaginário do corpo na sociedade, “um corpo que precisa ser liberto de sistemas opressores – tanto o capitalismo liberal no Ocidente, como o ‘estalinismo’ do Oriente”. Nesse contexto é que surge o feminismo como movimento social e teoria critica. Diante dessa conjuntura, e consciente dessa inter-relação entre corpo sexuado, em contraste ao corpo "genérico", e cidade, Grosz analisa dois modelos amplamente difundidos que influenciam profundamente os pensamentos arquitetônico e urbanístico, e demonstra como a hegemonia masculina3 está impregnada nos processos de pensar, construir e viver os espaços. No primeiro caso, um modelo naturalista, que em vez de entender como constitutiva a relação entre corpo e cidade, se vê nessa relação a mera causalidade, pois neste modelo os corpos são concebidos em termos naturais, precedendo a cidade. Aqui, a cidade seria causa e motivação do design e da construção desses mesmos corpos, assumindo frequentemente um caráter histórico e etnológico: a ideia de que a cidade 3

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se desenvolve de acordo com as necessidades e desígnios humanos, das sociedades nômades até a moderna cidade tecnológica (p.93). Essa concepção de cidade como produto ou projeção do corpo contém uma forma de humanismo, pois entende que os humanos fazem as cidades, concebendo o indivíduo como soberano e autônomo que, individual ou coletivamente, é responsável por toda a produção social e histórica. Além disso, neste pensamento o corpo é normalmente entendido como subordinado, “ferramenta” da subjetividade, da consciência autônoma. Isso ocorre porque essa visão se reflete na separação binária tanto entre projeto e construção quanto entre mente e mão, arte e técnica artesanal. Conforme estabelece a autora, o Iluminismo humanista e o Marxismo partilham dessa visão, mas se diferem no que diz respeito à concepção de uma relação unívoca (da subjetividade ao ambiente) ou então dialética (entre subjetividade e ambiente). Apesar disso, ambas as formulações abordam o sujeito como agente ativo na produção social, seja no âmbito das mercadorias ou da produção de cidades, “uma consciência racional que habita um corpo, o ‘capitão do navio’, ‘a alma da máquina’”. No entanto, a cidade não é somente um produto da energia e dos músculos dos corpos, ela surge das possibilidades conceituais e reflexivas da própria consciência, como a capacidade de projetar, de planejar o futuro, de funcionar como uma intencionalidade, processo este que resulta na transformação da própria cidade (idem). Essa visão, segundo Grosz, tem ao menos dois problemas graves. Subordina-se o corpo à mente, mantendo um sistema de oposições binárias; o corpo é entendido como mera ferramenta, um termo mediador que liga a consciência não-espacial à materialidade do espaço construído, uma espécie de ponte entre mente e matéria inorgânica, um meio termo sem capacidade interventiva e produtividade própria: o corpo como máquina comandada pela consciência. O segundo problema é que essa visão propõe que o corpo/sujeito/subjetividade são a causa e a cidade é seu efeito. O outro modelo é reconhecido por estabelecer uma relação de paralelismo ou isomorfismo entre corpo e cidade, como se fossem um o reflexo do outro. Tal paralelismo entre corpo e ordem social (ou estado) foi proposto em meados do século XVIII, quando teóricos liberais da filosofia justificaram suas diversas afiliações por meio da metáfora do corpo político: Hobbes com o direito divino dos reis, Locke com a representação parlamentar, Rosseau com a representação direta, etc. Entende-se o Estado como análogo do corpo, “o artifício espelha a natureza”. Nesse caso, Grosz aponta que, ainda que encontre variações de texto para texto e regimes políticos, a correspondência entre corpo e corpo político é mais ou menos exata e codificada: o Rei enquanto líder do corpo político e a população como corpo. “A Lei é equiparada ao sistema nervoso do corpo, o exército aos seus braços, o comércio às suas pernas ou estômago” (p.93), e assim sucessivamente.

no entanto, se existe nesta metáfora amplamente difundida do corpo político uma correspondência morfológica entre o contrato social artificial (o “leviatã”) e o corpo humano, raramente se atribuiu ao corpo um determinado sexo. Se levarmos esta metáfora um pouco mais longe temos que colocar a seguinte questão: se o estado ou a estrutura da polis/ cidade refletem o corpo [...] o corpo político tem um sexo? ■■GROSZ, 2003, p.93

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D I S J U N Ç Õ E S  Nesse sentido, a primeira ressalva consiste na codificação do corpo político enquanto entidade falocêntrica, a qual embora afirmando basear-se no corpo humano, usa o masculino para representá-lo. Em sua perspectiva, o falocentrismo se define não pelo domínio do falo, mas pelo uso difundido e dissimulado do masculino para representar o humano. A questão, portanto, não é extinguir o masculino, mas antes, revelar como a masculinidade é indissociável da noção do humano genérico e universal ou do sujeito não especificado. Ela também destaca que a função política dessa analogia serve para justificar inúmeras formas de governação ideal ou de organização social a partir de um processo de “naturalização”. Outro problema apontado é a oposição fundamental entre cultura e natureza, a partir da qual se entende que a natureza determina as configurações ideais da cultura. “A cultura supera a natureza através do seu aperfeiçoamento, sendo o corpo político um constructo artificial que substitui a primazia do corpo natural” (p.95). De tal modo, a cultura é moldada segundo os ditames da natureza, ainda que transformando seus limites. Nesse sentido, da mesma forma que a natureza é passivamente modelada pela cultura, a produtividade (CULTURAL) masculina supera a reprodução (NATURAL) feminina. Surge então um questionamento: “Se a relação entre corpos e cidades não é causal (no primeiro modelo) nem representacional (no segundo), então que tipo de relação existe entre eles?”. Se conclui que estes dois pontos de vista são inadequados. Segundo a visão causal, o corpo (sendo muito mais que mera consciência desapoderada de corporalidade) é considerado parte ativa na produção e transformação da cidade - ainda que entre corpo e cidade não haja uma relação de causa e efeito. Se é logico que cada causa deve diferenciar-se do seu efeito, O corpo não se distingue nem existe separadamente da cidade, já que estes se definem reciprocamente. Do mesmo modo, no ponto de vista do modelo representacional é possível haver um isomorfismo/paralelismo entre corpo e cidade, ainda que esta relação não implique que a cidade seja artifício da natureza. Na compreensão do par corpo/cidade, eles precedem um termo em relação ao outro. Isolados esses modelos são unilaterais; um modelo mais adequado, como defende, é aquele que combina elementos de cada uma dessas visões. Assim, existe "uma relação dual que poderia ser definida como interface", ou como uma construção conjunta, como propõe a autora.

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que buscamos demonstrar com essa discussão é que o sujeito por trás do conhecimento não é apolítico e imparcial, mas sim um ser sexuado cuja

produção do conhecimento, exclusiva e nitidamente masculina, não reconhece a as mulheres enquanto sujeito, enquanto corpo político e social. Portanto, nos concerne entender que sempre há o vínculo entre corpo (sexuado) e cidade, e é nesse ponto que a arquitetura e o urbanismo, enquanto instrumentos para pensar e construir relações e espaços, são parte de um grande e complexo mecanismo capazes de operar sobre a realidade e, dessa forma, atuar direta e indiretamente na perpetuação de valores e ideais políticos, táticas de controle, ideologias, utopias... em que a arquitetura, seja em prática ou teoria, afeta a realidade ao mesmo tempo em que é afetada por ela, e sua relação com o poder a torna irremediavelmente uma das chaves para a consolidação da política. Fato que se torna ainda mais nítido quando percebemos que a subjugação do feminino é transversal a todos os níveis do discurso arquitetônico. Sintetizando, o arquiteto Mark Wigley (1997, p.227) afirma que "a produção ativa de distinções de gênero pode ser encontrada em todo nível de discurso arquitetônico: em seus rituais de legitimação, práticas de contratação,

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sistemas de classificação, verificações técnicas, imagens publicitárias, informação oficial, divisão do trabalho, bibliografias, desenho de convenções, s legais, estruturas salariais, práticas de publicação, linguagens, ética profissional, protocolos de edição, créditos de projetos [...]". Segundo Sandra Harding (1996), isso demonstra o caráter sexista do conhecimento, onde a ciência assume o masculino como o ideal humano, quando, na verdade, o humano deve também incluir o feminino; pois não há sentido tomar o homem, com seus valores, tempos e vontades, como sendo universal quando temos diferenças e diversidades em oposição ao pretensamente neutro. Almeida (1998) salienta argumentando que o campo epistemológico das ciências humanas tem sido omisso em relação à categoria gênero, “dado que o androcentrismo que permeia as construções teóricas das ciências sempre relegou os feitos femininos a um plano praticamente inexistente”. Esse modelo de conhecimento nos conduziu a uma apropriação enormemente desigual dos recursos materiais e simbólicos do que é produzido socialmente. Assim, a análise da masculinidade da ciência pode ser estendida para praticamente qualquer campo ou instituição social. Ora, até poucas décadas atrás, por exemplo, não era permitido que as mulheres ingressassem no mundo acadêmico. Sem mulheres para produzir conhecimento, a história foi "oficialmente" contada quase que unicamente por homens e para homens. Tanto é verdade que Ana Colling (2001) aponta como “a história das mulheres é uma história recente, porque desde que a história existe como disciplina científica [...] o seu lugar dependeu das representações dos homens”. E a escritora Virginia Woolf lembra que até pouco tempo, toda a historiografia (incluindo aí a história das mulheres e sobre as mulheres) havia sido feita por homens, mas sobretudo com condições materiais para serem lidas e discutidas por homens igualmente com condições materiais - com pouquíssimas exceções (WOOLF, 1985 apud MORAIS, 2011). Na obra “Um teto todo seu” publicado em 1929, Virginia Woolf mescla ficção e realidade para falar da impossibilidade que mulher tem de ocupar certos espaços e como isso resulta no seu pouco peso na sociedade. A restrição de acesso não era apenas no espaço urbano público, mas também dentro de casa. Ter um quarto próprio, por exemplo, era uma conquista praticamente impensável. Mesmo ciente de que as mulheres fazem parte da história desde os primórdios, quase sempre as obras as retratam de forma idealizada (romantizada e essencializada) ou demonizada (inferiorizada e marginalizada). Nesse caminho, Virginia Woolf vai buscando um fio condutor explicativo, onde já percebemos um tom de denúncia que não perde a qualidade estética. Assim, estabelece relações entre produção intelectual e condições materiais, observando que as mulheres são muito pobres e que isso tem influência sobre a falta de produção intelectual feminina. Woolf também demonstra como as mulheres são desencorajadas pelos homens a produzirem suas próprias obras, seja taxando-as como de má-qualidade ou naturalizando essa suposta inferioridade. Ela destaca como a sociedade é profundamente desigual, e que a produção artística e científica também não escapava dos preceitos patriarcais. Embora Woolf enfoque mais especificamente a produção intelectual feminina e trate de um outro contexto histórico, ela apresenta ao leitor uma estrutura completamente desigual de oportunidades e direitos entre homens e mulheres que pode ser notada facilmente ainda hoje tanto a respeito das questões econômica quanto no acesso aos diversos bens culturais, como a educação e a arte, e revela a importância

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D I S J U N Ç Õ E S  de integrar a mulher à produção social da vida, pois seu distanciamento das tarefas culturais e políticas implica em profunda alienação. Isso se dá por conta do androcentrismo em que se apoia o pensamento cientifico, produzindo ao longo do tempo ideias arcaicas, inquestionáveis e com status de verdades absolutas, como defende Santana (2010). Para ela, “o conjunto das representações sociais sobre as mulheres é resultado de um determinado olhar científico que ratificou e ratifica as desigualdades entre homens e mulheres". Coisa que acontece em virtude da apropriação do saber científico pelo senso comum - o que é inevitável - "mas a qualificação das relações que tal interpretação estabelece está atrelada ao modelo de ciência que é produzido nas sociedades”, de modo que devemos combater e denuciar todo pensamento científico que se apresente regulador de práticas discriminativas em relação à mulher (SILVA, 2001 apud SANTANA, 2010, p.2). Por isso, “repensar o sujeito do conhecimento sobre o espaço urbano se faz necessário e, sobretudo, fazer a crítica deste conhecimento que, por muito tempo, tem se apresentado como neutro e universal” (COSTA; VIEIRA, 2014, p.13). Assim, este modelo de ciência tem sido criticado e exigido constantemente a rever seus fundamentos. E mesmo assumindo que suas elaborações são marcadas por uma condição provisória, parcial e falível, “é preciso atentar para o fato de que, se a ciência não produz as retificações de determinadas 'verdades' é por que estas se transformaram em crenças dogmáticas e são frutos das contradições da própria ciência” (SANTANA, p.3). Daí a necessidade de abordar a arquitetura em suas diversas dimensões, tanto como prática profissional quanto campo de conhecimento multidimensional que através de conteúdos impõe sua própria narrativa.

recontar ou reconstruir a história das mulheres acaba por ser uma necessidade fundamental para todas aquelas que pensam na emancipação feminina. E isso inclui recontar também a história das cidades, da arquitetura e do urbanismo, reconstruir a história da construção dos espaços e das relações. Nesse contexto, o movimento feminista tem depositado um esforço relevante no sentido de criar espaços para a narrativa feminina. Acredita-se que o feminismo moderno tenha surgido ao contexto social e político da Revolução Francesa (1789) - e, portanto, do Iluminismo, o que demonstra os limites e potencialidades no que se refere ao poder, pois uma vez que há uma centralidade, há também uma margem que tende a resistir a estas forças centrífugas, gerando uma tensão entre as forças que impõe limites, e, paradoxalmente, possibilidades de transgredi-los, superá-los. É o que busca o movimento feminista ao negar um olhar ortodoxo, ao resgatar a voz daquelas que por muito tempo tiveram de permanecer caladas.

o feminismo é um dos grandes avanços na teoria social ocorridos durante a modernidade tardia, e que foram inteiramente novas da vida social: a família, a sexualidade, o trabalho doméstico, etc. A partir do momento em que se questiona a noção de que homens e mulheres são parte de uma mesma identidade – a Humanidade – opõe-se a diferença sexual a um corpo genérico, concebendo em seu lugar um corpo cujas identidades sexuais e de gênero são constituídas socialmente. ■ ■HALL, 2005 apud VIEIRA, 2015, p.30

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Foi a partir das lutas e teorias críticas que o feminismo se expandiu pelo mundo, por meio de uma conscientização do problema no âmbito na sociedade (CASTELLS, 2001). Essa mesma sociedade, ainda que fundamentalmente patriarcalista e capitalista, adquire novas feições com a inserção da mulher nos campos do mercado de trabalho, na política e nos debates acadêmico-científicos. Uma questão sempre presente na discussão feminista sobre a histórica urbana do Brasil, assim como em quase todo o mundo, é o fato de as mulheres sempre terem sido relegadas ao privado, majoritariamente enclausuradas em suas casas, servindo e cuidando. Tudo isso em virtude da estigmatização de seu corpo, da expectativa por determinado padrão que exclui tudo aquilo que se difere, que não se homogeniza, se adequando ao padrão esperado. Esse padrão, convém enfatizar, entende a corporalidade feminina como frágil, débil, passiva, incompleta e fraca, sem capacidades cognitivas razoáveis e, portanto, imprópria para a política, a razão, o poder e público - o que paralelamente fez com que as mulheres fossem historicamente associadas ao sentimento e a emoção, ao cuidado e ao mundo privado e doméstico. Isso vai influenciar, obviamente, a presença e o impacto das mulheres em todos os campos da vida urbana, certamente dentro da arquitetura não é diferente. A respeito dos estudos de planejamento urbano e habitação, Anna Bofill Levi (2013, p.3) afirma que desde os primeiros estudos sobre o espaço pela teoria feminista, há cerca de três décadas, surgiram diversas óticas que têm servido para analisarmos a situação das mulheres no urbanismo e na arquitetura. As primeiras reflexões feministas sobre lugares e espaços apareceram no transito do século XIX ao XX, com o movimento de planejamento urbano impulsionado por algumas mulheres norte-americanas, coincidindo com a primeira “onda” dos movimentos feministas (HAYDEN em BOFILL, 2005, p.12). O fato de que as atividades relacionadas com a manutenção do espaço privado foram atribuídas às mulheres fez com que fossemos as primeiras a refletir e reivindicar qualidades espaciais que tornam possível a relação entre os espaços públicos e privados, entre a casa e a cidade. Uma das primeiras teóricas em planejamento e espaços habitados a partir da perspectiva feminista é Dolores Hayden. Ela conta com inúmeras obras extremamente importantes, dentre se destacam “Grande revolução doméstica” (1980), “Redesenhando o sonho americano” (1984) e “Poder do lugar” (1992-2000). De modo geral, e conforme pontua Bofill Levi, Dolores fala da história das utopias do final do final do século XIX, das novas famílias e suas necessidades, do lugar como representação da memória histórica das mulheres, da arquitetura do socialismo comunitário, das feministas que defendiam que as cozinhas, lavanderias e tarefas de cuidado fossem espaços comunitários, para liberar as mulheres das tarefas domésticas... uma variedade de assuntos que criticam a situação de desvantagem das mulheres nas cidades do homem (BOFILL, 2013). Desta maneira, desde meados do século XIX já é possível identificar a participação das mulheres na arquitetura, predominantemente em temas relacionados à habitação, com reflexões e formulações de propostas para os espaços domésticos4. Conforme Muxí (2005, p.28), “a habitação, como espaço de responsabilidade e controle designado na divisão do trabalho segundo o gênero à mulher, será o primeiro sobre o qual incidirão as mulheres que, desde diferentes âmbitos, refletem sobre a vida cotidiana”. 4 Interessante destacar que as primeiras par�cipações, segundo Coradin (2010), não par�ram concretamente de profissionais graduadas ou especialistas, mas de assistentes, clientes, teóricas, decoradoras ou simplesmente “amas de casa” que se dedicaram a refle�r sobre a relação entre os espaços interiores e a realização das tarefas domés�cas.

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D I S J U N Ç Õ E S  Desde então, as mulheres têm estado envolvidas com o desenho e forma do espaço de várias maneiras, enquanto praticantes, teóricas, consumistas, historiadoras e objetos de representação (ANTUNES, 2015). Uma das primeiras a abordar a temática da vida doméstica foi Catharine Beecher. Ela publicou seu primeiro livro em 1841, chamado “A Treatise on Domestic Economy”, onde a partir da experiência pessoal escreveu sobre o domínio da casa e o melhor aproveitamento das tecnologias oferecidas, ressaltando a importância da iluminação, de generosas dimensões e de usos múltiplos como maneiras de maximizar o espaço – conceitos todavia bastante utilizados hoje em dia. Tempos depois, Catharine e sua irmã publicam “The American Woman’s Home”, onde apresentam projetos que partiam da premissa de dispor habitações e mobiliários que proporcionassem variedade de usos, de modo a maximizar também a eficiência dos espaços. Mas somente no início do século XX podemos identificar as primeiras gerações de profissionais. Entre elas, Coradin (2010) destaca Lilly Reich, que em 1920 foi a primeira mulher nomeada diretora da “Deutsche Werkbund” (Associação Alemã de Artesãos, que foi fundada em 1907, por um grupo de arquitetos, designers e empresários alemães). Mais tarde ela foi colaboradora do arquiteto Ludwig Mies van der Rohe e para a exposição de arquitetura alemã em Berlim (1931) realizou a proposta de um bloco com apartamentos mínimos de estrutura linear e aberta, um único ambiente dividido com móveis permitia realizar todas as atividades da casa em um só tempo e era compatível como seu uso como local de trabalho (MUXÍ, 2005, p.36). Outra figura importante que deve ser citada foi Margarete Schütte-Lihotzky, a primeira arquiteta austríaca, que desenvolveu projetos baseados na acessibilidade e qualidade da habitação. Dentre eles vale citar a “cozinha de Frankfurt” (1927), para o qual se realizou uma análise minuciosa do trabalho doméstico visando racionaliza-lo – uma cozinha pensada a partir da eficiência do trabalho cotidiano, a qual considera o mínimo de atividades realizadas dentro desse espaço. Este projeto é parte essencial da política progressista no âmbito habitacional. Ela também trabalhou em um projeto de apartamentos para mulheres solteiras trabalhadoras na cidade de Frankfurt, mas que não chegou a ser construído em virtude da grande depressão europeia de 1929 (Ibid, p. 4).

uma das maiores mudanças na habitação deve refletir o fato de que as mulheres em geral começaram a trabalhar. isso requer abordagens completamente novas. Como arquitetos, é nosso dever pensar cuidadosamente sobre o que devemos levar em conta na construção de moradias para tornar a vida mais fácil para homens e mulheres e reduzir o estresse diário, como o fornecimento de espaços auxiliares para o bairro, serviços comunitários, etc. 5 Podemos destacar também os trabalhos das desenhistas Eileen Gray, irlandesa, e Charlotte Perriand, francesa, que exerceram arquitetura. Perriand trabalhou no estudo de Le Corbusier e Pierre Jeanneret como colaborada durante quase dez anos, se dedicando principalmente ao projeto de interiores. O conceito de relações espaciais foi estudado e trabalhado pela desenhista que, num dos projetos, propõe a integração da cozinha com o “salão” com o objetivo de simplificar as atividades funcionais 5  Margarete Schü�e-Lihotzky sobre as razões pelas quais foi a primeira mulher a estudar arquitetura, em 1916. Em: Kail; Bauer; Zwingl, 1996, p.04.

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e, ao mesmo tempo, permitir a comunicação da “ama da casa” com o resto da família e da casa, que permanece geralmente isolada dada a configuração dos espaços residenciais. No Brasil, podemos citar Carmen Portinho, que foi a terceira mulher a se graduar em engenharia, no ano de 1926. Ela se destacou por sua participação nos movimentos feministas e na modernização da arquitetura brasileira. Lina Bo Bardi, arquiteta italiana naturalizada brasileira, também possuiu um papel ativo em diversas questões sociais e culturais do país (CORADIN, 2010, p.15). Atualmente a participação das mulheres nesse campo tem aumentado consideravelmente, em que presença feminina nas escolas de arquitetura supera 50% dos estudantes, mas o reconhecimento profissional não chega a mesma medida, fato intimamente relacionado com a dificuldade de compatibilizar a vida doméstica e familiar com a laboral. Num geral, portanto, a preocupação feminista pelo urbano surge da necessidade de se pensar a [re]produção desigual dos espaços, pois a cidade, do modo como é construída material e teoricamente, dispõe de múltiplos instrumentos que sustentam a ideologia patriarcal que tanto limita a incorporação das mulheres na dinâmica urbana. Para tal, a a teoria feminista é imprescindível, pois "tem contribuído e ainda tem muito a contribuir no planejamento, particularmente nas seguintes áreas: organização do espaço, economia e reprodução, diferença e relações sociais, linguagem e comunicação, epistemologia e metodologia, ética e natureza do domínio público" (VIEIRA; COSTA, 2014, p.11). O que as autoras citadas buscam e compreendem é que incorporar as novas formas de organização da sociedade civil é imperativo, e isso fundamentalmente inclui englobar a realidade da mulher e a discussão sobre o gênero. Este é um dos primeiros passos para se promover a apropriação popular sobre o futuro das nossas cidades e é também essencial para que os pensamentos arquitetônico e urbanístico se alinhem à sua função social.

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CONTEXTO

S

m u lh eres e o d ireito à c i dade

endo a cidade a projeção da sociedade em um determinado espaço

(LEFEBVRE, 2001, p.56), para compreendermos as relações estabelecidas entre o espaço e os elementos que operam sobre o cotidiano urbano, especialmente o da população feminina, pressupõe-se que a cidade seja entendida como produto histórico, político e social da vida coletiva (HARVEY, 2005; ROLNIK, 1995; MARICATO, 1995) e construída, vivida e regida sob um sistema capitalista, patriarcal e racista (WEBER, 1964). Sendo que seu espaço está à venda e é caracterizado pela segregação tanto física (por muros, grades, pontes, placas) ou abstrata, quanto pela divisão de diferentes territórios por classes sociais, cor, gênero, idade; e também por funções (trabalho, comércio, lazer, moradia), como pontua Rolnik. De tal forma, a cidade tem se constituído ao longo do tempo em espaço profícuo para a explicitação das diferenças. Para Pelegrino (2003, p.250), as diferenças são resultado, em primeiro lugar, da localização relativa no espaço urbano, isto é, "aqueles que estão e agem no palco e, aqueles que porque excluídos, agem nos bastidores". Esta localização, como vimos, é determinada pela possibilidade de acesso aos bens e serviços produzidos na cidade, e por isso só é acessível em sua totalidade para aqueles que podem comprá-la. As iniciativas das classes dominantes de ordenar o território e “arrumar” as cidades, respaldadas pelo Estado, se caracterizam pelo acionamento de mecanismos de controle e de dominação inscritos no espaço da cidade, delimitando áreas diferentes de circulação para pobres e ricos, situação ainda mais crítica para as mulheres. Tal "delimitação de áreas de circulação" territorial é visível ao longo da história da humanidade, ainda mais com o surgimento da chamada modernidade ocidental e, especialmente, com a divisão da sociedade em classes - possível somente com a instauração da propriedade privada e com

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a criação de instituições políticas e religiosas que as legitimavam, como o Estado burguês e a Igreja Católica. A instauração da propriedade privada, diretamente associada ao patriarcado, causa efeitos e sentimentos de dominação não só pelas coisas em si, mas também pelas pessoas (PELEGRINO, 2003). Nesse ponto, a mobilidade de pessoas, bens e serviços torna-se uma condição premente da expansão da acumulação de capital. Por isso, a [re]produção e a apropriação do tecido urbano são marcadas pelo aprofundamento das históricas e sistemáticas estratégias de negação da cidade aos pobres, que tem contribuído para o aumento dos chamados problemas urbanos – como a favelização, a infraestrutura de saneamento e água potável, a precarização dos transportes, a violência urbana, entre outros.

Sendo invariavelmente associada à formação histórica de pobres e ricos, é fácil constatar a trajetória sistemática de negação da cidade às classes populares. Observa-se ainda que as fraturas sociais existentes no Brasil – referidas ao acesso a bens e serviços urbanos coletivamente construídos – afetam mais agudamente às mulheres [principalmente] pobres e negras. ■■PELEGRINO, 2003, p.246

Nesse contexto, o déficit habitacional é claramente uma das fraturas mais pronunciadas no país. As condições de trabalho incidem diretamente na questão habitacional. O trabalho, fundamentalmente como fonte de renda, determina as possibilidades de acesso a bens materiais, envolvendo as dimensões culturais, simbólicas e sociais. O direito à cidade , enquanto possibilidade de acesso à moradia e aos bens e serviços urbanos, ainda é uma abstração para amplos segmentos da população brasileira. A autora lembra que os grupos mais vulneráveis, sobretudo as mulheres, não usufruíam plenamente das iniciativas de reformas políticas, sociais e urbanas que tiveram início no Rio de Janeiro (então capital da República) na virada do século XIX para o século XX. A instauração da República, como argumenta Pelegrino, "veio a aprofundar o quadro de negação dos direitos sociais, civis e políticos para os pobres urbanos, ou os segmentos mais vulneráveis, principalmente as mulheres". Sem políticas públicas de habitação e trabalho para os segmentos de baixa renda, “a aquisição de moradia teria que ser buscada por meio de soluções individuais, assumindo a forma de estratégias de sobrevivência, tendo como resultado habitações precárias e insalubres” (PELEGRINO, 2003). As lutas travadas pelos trabalhadores urbanos nas décadas de 1920 e 1930 já incluíam a questão da moradia, mas Burgos (1999) afirma que a única política habitacional existente nesse momento para a população de baixa renda beneficiava apenas trabalhadores vinculados aos Institutos de Aposentadorias e Pensões, o que para analfabetos e trabalhadores sem vínculo formal de emprego significava exclusão dos direitos sociais e políticos. Isto explicaria, por exemplo, “a invisibilidade política das favelas até entãos, afetando mais profundamente a população feminina, já que foi historicamente constrangida ao "universo doméstico" e aos empregos informais. No caso das mulheres pobres, sua presença no mercado de trabalho precário é notável desde o século XIX. A mulher do povo já estava incorporada precariamente ao mercado de trabalho do Rio desde o século anterior. Desdobrava-se em variadas estratégias de sobrevivência (lavadeiras, costureiras, doceiras e empregadas domésticas” (LESSA, 2001, p.281).


C O N T E X TO  Assim, a busca por trabalho e habitação entre as mulheres pobres sempre foi uma constante na história da urbanização, incitando o engajamento da população feminina, que aliás é crucial nos movimentos sociais e ao mesmo tempo perversamente oculta. O cotidiano urbano, por sua vez, não se restringe à moradia; os equipamentos de uso coletivo como transporte, lazer, bem como os serviços de infraestrutura básica – água, esgoto, coleta de lixo – são indicadores de saúde e bem-estar, expressando a qualidade de vida da população. Como ressalta Pelegrino, (2003, p.245), a urbanização deve ser pensada no sentido ampliado, isto é, "relevando a questão habitacional, os serviços de infraestrutura urbana, transporte, trabalho e geração de renda, ou seja: acesso democrático a bens e serviços coletivamente produzidos". Em outros termos, sendo também a cidade o espaço da convivência humana, que guarda a promessa – na verdade o direito – “do desenvolvimento socioeconômico, o acesso ao lazer, à habitação, serviços, trabalho e circulação livre, seria natural que todos os segmentos sociais fizessem parte da sua concepção, garantindo assim maior atendimento às demandas individuais e coletivas que se apresentam” (CASIMIRO, 2017, p. 8). Isso só seria possível, no entanto, se as cidades estivessem calcadas em bases solidárias, que promovessem a justiça social com iguais possibilidades e oportunidades para todos e todas - o que, visivelmente, não é o caso. Na história urbana do Brasil foi entre as décadas de 1930 e 1940 que se inicia um processo de urbanização como jamais havia sido até então, quer pela aceleração do processo quer por suas dimensões. Esse momento significa uma importante baliza no que diz respeito às transformações e a modernização da sociedade que, sob a lógica econômica e territorial da industrialização, que seguiu em direção ao conjunto de fatos que hoje constituem o nosso “caos”. A conjuntura econômica do final dos anos 1970 estava fortemente marcada pelos altos índices inflacionários, pelo achatamento de salários e pela valorização da terra urbana, fruto do crescimento do mercado imobiliário e da ausência de uma política urbana e, inclusive política habitacional consequente, sobretudo para os segmentos de baixa renda (PELEGRINO, 2003). Impregnado pela ideologia neoliberal, o contexto econômico das décadas seguintes se baseava na rentabilidade máxima e imediata através do monopólio da propriedade do solo e da prevalência de preços absurdos. A moradia, em detrimento da qualidade de direito, tornou-se objeto do mercado e cada habitante foi transformado em especulador, o que provocou a distorção do conceito de cidade e da responsabilidade dos órgãos públicos (MONTANER; MUXÍ, 2014) – cenário que alterou profundamente as condições urbanas de vida, gravemente marcadas por estigmas que muito têm a ver com a fragmentação do tecido espacial e social, a perda da memória, a pobreza, a exploração desmedida dos recursos naturais, a questão habitacional e os crescentes processos de exclusão. Assim, quando nas décadas de 70 e 80 a população urbana cresce exponencialmente, o século XX fica marcado por duas angustias: o medo da hiperconcentraçao de pessoas e o pavor do desaparecimento da cidade, dissolvida por territórios cada vez mais amplos, extensos e fragmentados (SECCHI, 2009). Depois, entre 1980 e 1990 o Brasil passa por uma “redemocratização” fazendo uso dessas novas práticas de planejamento sustentadas na produção de espaços baseados na segregação cada vez mais intensos e explícitos. Muito disso se deve à vigência do planejamento urbano conservador que determinou a segregação de grande parte da população com o objetivo de resolver os

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"problemas" dos moradores de classe média e da elite, assim como, principalmente, do capital imobiliário. Denominado mercantilização da cidade, esse processo ocorreu mundialmente para absorver os excedentes de mercado. As consequências foram enormes crises econômicas que, não obstante, foram balizadas por urbanizações insensatas que aperfeiçoaram os mecanismos de [re]produção de desigualdades. A respeito do planejamento urbano, seu desenvolvimento se dá por meio da realização de um prognóstico, como que simulando futuros possíveis para compreender os cenários e possibilitar a efetivação de um planejamento mais eficaz. Porém, outras linhas de pensamento sugerem que não se deve planejar possíveis situações futuras para uma cidade, tais como a marxista e a conservadora. A primeira reitera que o Estado é capitalista e está a serviço da classe dominante, atendendo apenas a estes interesses. Mas esta pode ser uma posição um tanto simplista, porque mesmo que o Estado seja regido pelo sistema capitalista, há também a possibilidade de se atender aos interesses das classes populares e, no mais, reduz o planejamento ao Estado e exclui a participação e os ativismos sociais, o que é equivocado. No que diz respeito ao urbano, os movimentos sociais, especialmente articulados em torno do Movimento Nacional de Reforma Urbana (MNRU) e na esteira das mobilizações que resultaram na promulgação da Constituição de 88, foram fundamentais na reivindicação por melhores condições de vida. Alguns ganhos em termos de política urbana foram os artigos 183 e 184 da Constituição Federal e o Estatuto da Cidade1 – "e as perspectivas futuras de desenvolvimento urbano, uma vez que do ponto de vista jurídico o suporte já está garantido" (PELEGRINO, 2009). Visto que as mulheres estão muito presentes em mobilizações sociais, pressupõe-se que alguns planos diretores desenvolvidos à luz do Estatuto da Cidade (Lei Federal n. 10.257/01) já devem ter incorporado certo olhar de gênero no processo de construção e no conteúdo final, embora ainda não haja algum estudo que mostre os resultados dessa visão (SANTORO, 2008, p.11). Por sua vez, os conservacionistas acreditam que o Estado deve intervir o mínimo possível nas dinâmicas sociais, sobretudo econômicas, ficando a mercê do mercado e do direito à livre concorrência. Diminuir o poder do Estado nessas questões resultará na redução de sua capacidade de planejamento. Por isso, o planejamento não pode ser considerado nem conservacionista nem democrático porque deve estar articulado tanto pelos poderes estatais quanto pelos grupos sociais. Agora, sua tendência às práticas conservacionistas tem relação com o sistema que rege o Estado - o capitalismo – o qual é manipulado pelos grupos dominantes em prol de seus próprios interesses (SOUZA, 2008). Assim, há alguns exemplos típicos de planejamento conservador: as práticas de zoneamento urbano nos Estados Unidos calcadas na segregação racial promovida na África do Sul durante o apartheid; Nos Estados Unidos essa exclusão restringia a população não-branca a resistir em determinadas áreas e frequentar certos espaços. Na África do Sul criaram-se cidades periféricas (townships) para acomodar a população negra, que era maioria aliás, uma vez que as cidades centrais eram consideradas território de branco. Pôs-se fim ao planejamento urbano racista imposto nesses locais, mas as desigualdades sociais cristalizadas ao longo do tempo ainda não deixaram de imperar (SOUZA; RODRIGUES, 2004). No caso do Brasil, o planejamento urbano conservador pode ser visto, por exemplo, na Reforma Passos, realizada no Rio de Janeiro no início do séc. XX. A reforma consistia em alargar as ruas, abrir vias, embelezar a área central... modificar a

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C O N T E X TO  estrutura das áreas mais importantes da cidade. Paralelamente surgem as favelas e a suburbanização de parcela da população, empurrada para fora de seu local de origem. No período do regime ditatorial esse tipo de planejamento se intensifica, o qual primava pela “segurança nacional” e pela modernização e aprofundamento do desenvolvimento do capitalismo no país. Sabemos como a censura foi promovida a fim de manter a homogeneidade de interesses e opiniões. As repressões eram feitas através da proibição de greves, da dissolução de sindicatos, prisões de líderes, espancamentos, torturas e assassinatos. O que fosse “necessário”. No final da década de 60 e meados de 70, foi posto em prática no Rio de Janeiro bem como em outras cidades, um imenso programa de remoção de favelas e afastamento dos pobres, vistos pela ótica conservadora como um "câncer" que destrói as áreas nobres da cidade. Denominado planejamento “mercadófilo”, sua preocupação era promover o embelezamento das cidades para atrair investimentos e turistas, procurando dinamizar a economia local. A situação se agrava no contexto da superacumulação capitalista, ampliando as desigualdades e gerando dificuldades à inclusão social, pois, fundamenta-se em modelos urbanos “globalizados” que contribuíram para essa estrutura urbana pouco sistêmica e extremamente fragmentada e espraiada, que limitam sobremaneira o desenrolar da vida cotidiana, especialmente da população menos abastada - que, inclusive, é maioria no Brasil. O planejamento urbano, guiado pela noção da organização do entorno para alcançar mais produtividade e, assim, maior "bem-estar" da sociedade, associa bem-estar com produtividade como forma de racionalizar o território, de deixá-lo nas mãos de especialistas - não obstante, majoritariamente homens, pretendia-se dividir o território de forma a organizar racionalmente nossas vidas. No final das contas, fomos conduzidos a um mundo irracional, injusto e desequilibrado, centrado na rotina masculina (BOFILL, 2005, p.27).

As cidades têm uma significativa relação com o uso e a ocupação que o mundo masculino faz delas. Foram idealizadas e erguidas dentro dessa perspectiva, em que a presença da mulher era ignorada e, portanto, desconsiderada no tocante às escolhas sobre que forma e função os espaços públicos teriam e como seriam acessados. ■ ■CASIMIRO, 2017, p.9

Considerando que a história da mulher sempre esteve vinculada às questões de sua corporalidade e dos estigmas construídos em torno dele, especialmente a domesticidade, a relação das mulheres com os espaços urbanos se dá por meio de seu papel construído que, determina suas funções e responsabilidades cotidianas, e que independentemente das diferenças de vivência conforme a posição social de cada mulher, moldam a maneira pela qual ela é vista e recebida nos lugares e, também, definem como o espaço se apresenta a ela (PECCINI, 2016). A acessibilidade, entendida aqui como possibilidade de exercer a cidadania, sempre foi débil para a população pobre, e dizemos que ainda mais para a feminina porque a condição que se impõe à mulher em virtude de seu corpo define, a priori, a sua acessibilidade. É a partir do que a sociedade espera da mulher, de seu corpo, que ela vive e experimenta a cidade. Evidente que as táticas de sobrevivência, subversão e/ou transgressão sempre existiram, pois assim o é diante de contextos de certa

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forma homogêneos; elas acontecem a todo momento e estão diluídas no cotidiano através de cada mulher que a seu modo resiste. Mas frente ao apagamento histórico, a invisibilidade feminina está lado a lado com as restrições espaciais imputadas ao longo do tempo, cujo impedimento maior é o engessamento de sua autonomia. Vimos que binômios como casa-trabalho/privado-público/masculino-feminino estruturam as hierarquias sociais e também o planejamento urbano como conhecemos, são essenciais na hierarquização das relações e ao mesmo tempo fundamental e muito antiga no pensamento político; está presente na forma como se concebe as coisas e, portanto, tudo que a cidade precisa para existir material e socialmente. É certo que contornos do privado e do público variaram de acordo com a época e cultura, mas ainda assim podem-se verificar algumas constantes: "o governo é sempre da competência do público, enquanto o doméstico faz inevitavelmente parte do privado" (LAMOUREUX, 2009, p.208). Coradin (2010, p. 16) argumenta que essa relação casa-trabalho é complementar e apresenta um duplo significado, “como se reunisse dois mundos, um interior, privado, relacionado com o trabalho reprodutivo e atribuído ao gênero feminino, e outro exterior, público, vinculado ao trabalho produtivo e atribuído ao gênero masculino”. Como o público e o ‘trabalho’ do masculino são considerados mais importantes, o urbano não leva em conta as especificidades cotidianas da mulher, delimitando seu campo de ação, constrangendo seu acesso. Nessa cenário, o pensamento binário/dicotômico é sustentado pela filosofia e pela religião e define responsabilidades e seus respectivos lugares com base em categorias estereotipadas, como vimos, procurando ocultar determinados grupos para garantir os privilégios de outros, ou mais especificamente os privilégios do “sujeito modelo”. Se vivemos regidos por um sistema capitalista, patriarcal e racista, privilegiados são aqueles que se beneficiam desse sistema. Assim, ainda que, por um lado, a principal preocupação da arquitetura e do urbanismo pareça ser a de produzir ambientes "sensiveis" às diferentes vontades das pessoas que habitam o espaço em questão, por outro, a arquitetura e a cidade ocidentais foram essencialmente produzidas e dirigidas ao homem branco de classe média - white middleclass men (WHITE, 2001, p.17 apud ANTUNES, 2015, pp.3-4). A cidade moderna foi projetada para permitir que as condições de vida e de trabalho da “classe economicamente produtiva”1 se desenvolvesse. Esse modelo de cidade pressupõe que o homem seja o chefe de família, cujo deslocamento é basicamente casa-trabalho por meio de automóvel particular. Assim, o território é condicionado a partir de uma zonificação extrema, pensado somente para atender os adultos trabalhadores, sendo denominada "cidade dormitório". Quanto às mulheres, conforme Ávila e Morais (2016, n.p.), "planejar a cidade por muito tempo era garantir que o seu papel de dona-de-casa fosse mais confortável". Muitos equipamentos públicos e privados, inclusive, sequer contavam com banheiro feminino, tamanho era o predomínio de homens no cotidiano da cidade. Lúcio Costa - então responsável pelo projeto de Brasília nos anos 50 - definiu, por exemplo, que o ideal para as edificações residenciais fosse seis andares, pois “desta maneira, as mães poderiam chamar os filhos que brincavam para que subissem para o almoço”. 1 População Economicamente A�va (PEA) é como denominam a parcela inserida no mercado de trabalho. Via de regra é uma esfera dominada pelo homem, e as a�vidades domés�cas - pelas quais a mulher é sistema�camente encarregada - sofrem pela falta de reconhecimento, aprofundando os es�gmas da segregação socioespacial.

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C O N T E X TO  No Congresso Nacional, somente em 2016 as senadoras passaram a ter um banheiro privativo para mulheres, que desde a inauguração do prédio, em 1960, não existia. Antes principalmente associadas ao espaço doméstico e ao trabalho reprodutivo, as mulheres passaram a vivenciar a cidade de uma forma diferente, mudando sua rotina e aumentando o raio e frequência de seus deslocamentos. Na cidade, isso significa que seus trajetos são mais complexos, que elas se deslocam mais. Face à complexidade dos trajetos e da ordenação excludente do território, a entrada massiva da mulher brasileira no mercado de trabalho a partir dos anos 70 coincide com o momento em que o planejamento urbano sob a perspectiva masculina se faz perceber com maior força (HARKOT, 2015).

Homens e mulheres têm diferentes formas de utilizar o espaço urbano e de se deslocar por ele. Em geral, os homens se caracterizam por seus movimentos lineares, desde casa têm o trabalho como único destino e muitas vezes o fazem a curta distância. Enquanto isso, as mulheres, em sua maioria responsáveis pelo trabalho reprodutivo, realizam deslocamentos poligonais, ou seja, saem de casa com um itinerário com vários pontos antes de chegar ao destino final, cuja realização se dá normalmente pelo transporte público. ■ ■CORADIN, 2010, p.20, tradução nossa.

As mulheres além de se locomoverem para o trabalho produtivo, “assalariado”, seguem as principais responsáveis pelas atividades domésticas, deslocando-se de forma fragmentada e multidirecional (figura 4) – daí a importância de reconhecer essa realidade nos âmbitos do desenho, planejamento e gestão urbanos, na construção de políticas públicas realmente inclusivas que considerem para além do fluxo casa-trabalho, para reivindicar melhores condições habitacionais, de cultura, educação e saúde... Há, de todo modo, uma maior inserção no mercado de trabalho e na vida pública, mas mesmo assim essa inserção, imparcial e retraída, é atravessada pelo machismo, restando às mulheres a informalidade e os cargos considerados inferiores; a cidade não acompanha as transformações no campo político e social pleiteadas pelo feminismo. Os binômios público-privado / casa-trabalho / masculino-feminino estruturam as hierarquias sociais e também o planejamento urbano como conhecemos, mas como o público e o ‘trabalho’ do masculino são considerados mais importantes, o urbano não leva em conta as especificidades cotidianas da mulher- delimitando seu campo de ação, constrangendo seu acesso. Esta divisão simbólica que relaciona os espaços da cidade com o homem ao mesmo tempo que exclui a mulher da vida pública, mostra a importância de incorporar a perspectiva de gênero ao planejamento urbanístico, ao desenho do espaço urbano e à organização da vida cotidiana, agregando a experiência feminina para a construção de melhores condições de vida para todos e todas. Nesse sentido, Ezquiaga (1997) afirma que a perspectiva de gênero (ou o feminismo) crítica é justamente o fato de que esse modelo de cidade não significa que são cidades para as crianças, os idosos, os adultos que não trabalham, e principalmente para as mulheres2. 2 EZQUIAGA, José María Ezquiaga. “Cambio de es�lo o cambio de paradigma? Reflexiones sobre la crisis del planeamiento urbano”. In: Urban, 1997, p. 1-33.

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FIGURA 4

esquema comparativo entre deslocamentos de homens e mulheres fonte: Coradin (2010), modificado pela autora.

Então se passou a indagar diversas questões: como incorporar a experiência feminina na organização das cidades? O que faz falta para que as cidades sejam um espaço para todos e todas? Como seria esta cidade mais agradável e igualitária? Que características teria? Quais seriam as mudanças necessárias? Conforme questionam Montaner e Muxí, se há mais de trinta anos a crítica feminista denuncia o viés das políticas urbanas que priorizam os homens e a cidade funcional, e que evidencia uma estrutura que não favorece a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, como é possível que ainda persista o pensamento da cidade por partes? Já na década de 70, Dolores Hayden, importante arquiteta, urbanista e professora americana, já criticava como as mulheres acabam reclusas dentro de suas casas em virtude da monofuncionalidade dos espaços das cidades. Cidades fragmentadas, onde as casas estão a quilômetros dos centros de trabalho e estes, a tantos outros quilômetros dos lugares de ócio e lazer, desfavorecem a integração dos cidadãos e o desenvolvimento da vida cotidiana. Residências, bairros e cidades projetados para manter as mulheres no lar, as limitam física, social e economicamente.

durante o último século, um dos princípios mais importantes do projeto arquitetônico e do urbanismo foi ‘o lugar da mulher é o lar’. [...]. Ao deixar de ouvir essa norma, as mulheres ingressaram em massa na força laboral paga. Edifícios, bairros e cidades eram projetados para manter as mulheres no lar, constrangendoas física, social e economicamente [...], o remédio para essa situação é desenvolver um novo paradigma de lar, do bairro e da cidade [...] que deverá dar suporte, mais do que restringir, as atividades das mulheres trabalhadoras e de suas famílias. ■■HAYDEN, 1980, p.6

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C O N T E X TO  Há muito tempo nossas cidades não favorecem as condições de vida e trabalho de grande parte da população; aliado ao fato de sermos desprovidos de políticas públicas e espaços efetivamente includentes, a fala do sujeito popular deve ser buscada no encaminhamento de reivindicações por direitos de cidadania: habitação, trabalho, educação, transporte, saúde, segurança pública e, enfim, no caso dos pobres urbanos, o direito ao uso da cidade" (PELEGRINO, 2003, p.244). Nesses termos autora defende que o conjunto de problemas supracitados decorrentes da urbanização acelerada, impulsionada a partir da década de 1940, poderia ter sido minimizado se houvesse políticas articuladas de desenvolvimento regional e, principalmente, reformas urbana e rural, pois a questão fundiária é um dos fatores cruciais no processo de exclusão social3, e as experiências de reforma agrária e também urbana ainda não foram realizadas plenamente no Brasil. Para ela, é necessário reconhecer as singularidades e, então, defender que as políticas públicas contemplem as diversidades regionais, culturais, étnicas, raciais, etárias, de gênero, etc., reforçando a dimensão continental do país e suas particularidades regionais. O crescimento populacional vem diminuindo, tendo saltado o número de domicílios permanentes nas últimas décadas4, e, não obstante a melhoria da qualidade de vida da população em geral, as desigualdades inter-regionais persistem, incitando a necessidade de se repensar o planejamento a as políticas regionais.

As prioridades são infraestrutura, investimento, política social e, naturalmente, política de incorporação social para que, num prazo razoável, o Brasil deixe de ser um país em desenvolvimento, em que se assiste à reprodução da pobreza junto com a riqueza – um problema histórico que Celso Furtado chamava de maldição da gente. ■ ■TAVARES, 2010, p.16

Atualmente, com quase duzentos milhões de habitantes concentrados, em sua maioria, nas cidades (84,64%), sendo 51,3% mulheres (98,4 milhões de pessoas) e 48,7% de homens (93,4 milhões de pessoas), o Brasil ainda é um país extremamente desigual; conforme Pelegrino, no que tange aos avanços sociais já obtidos, os serviços de infraestrutura ainda não contemplam a população em sua totalidade. O percentual de apenas 55,5% dos domicílios com acesso ao saneamento básico em 2010 (IBGE) ainda é extremamente baixo quando se sabe de sua relevância para o desenvolvimento humano com dignidade. Como a cidade é caracterizada pela distribuição e apropriação desigual dos recursos necessários à vida em sociedade, o acesso que se tem, ou não, aos elementos mais básicos (como saneamento aedquado, por exemplo) e aos espaços físicos e de poder da cidade influencia diretamente na capacidade de a população se desenvolver social, cultural e economicamente. Nesse sentido, a situação das mulheres no Brasil urbano está inscrita na totalidade das condições urbanas de vida. E se assistimos a 3 Conceito cunhado no dito mundo industrializado para se referir aos novos mecanismos de disseminação da pobreza e de emergência de novos pobres. Qualidade de Vida e Riscos Ambientais, Selene Herculano et al. (org.). Niterói: Eduff, 2000. 4 Conforme dados do IBGE e Pnad de 2009, múl�plos fatores têm contribuído para esta mudança, como a baixa na taxa de fecundidade, o aumento do nível de escolaridade entre as mulheres, a par�cipação decisiva no mercado de trabalho e, consequentemente a prevalência nas chefias de família, sobretudo entre as mulheres de baixa renda. Análises mais detalhadas certamente, expressariam as singularidades regionais, bem como as diferenças culturais, de gênero, raça, etnia, etc.

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reprodução da pobreza junto com a riqueza, é porque a cidade é pensada para atender dada classe ou grupo dominante, tornando a dinâmica urbana um desafio diário para a maioria da população, que restringida de certos espaços físicos e simbólicos tem a inserção na sociedade e a possibilidade de exercer a cidadania superficiais ou até mesmo nulas. Isso porque a riqueza está há muito tempo concentrada nas mãos de homens brancos. Um estudo indica que no Brasil os 5% mais ricos detêm mesma fatia de renda que outros 95%. Isso significa que as 6 pessoas mais ricas do país concentram juntas a mesma riqueza que os 100 milhões mais pobres do país, ou seja, a metade da população brasileira (207,7 milhões). Essas 6 pessoas são homens, num país cuja maioria da população é feminina. Os dados também apontam que, se mantida a tendência dos últimos 20 anos, as mulheres ganharão o mesmo salário que homens somente em 2047, enquanto pessoas negras terão equiparação de renda com brancos apenas em 20895. Ainda que nossa sejamos consideradas iguais perante a lei, a profunda desigualdade socioeconômica é transversal a todos os âmbitos da vida e fundamental no processo de exploração da minoria rica sobre a maioria pobre (SOUZA, 2004) que, com um plus a mais de crueldade, exclui de tais espaços a mulher pobre e dentre elas, com maior gravidade, as negras. Diante disso, uma das principais pautas reivindicadas pela população feminina é a garantia de participação e assento nos espaços e processos decisórios. E Isso inclui superar a segregação socioeconômica que acomete as cidades. Mas o Estado, que é composto pela elite, tende a manter as "regras do jogo" e a tomar decisões que beneficiam sua classe, isto é, os grupos sociais que já possuem privilégios (SOUZA, 2004). Eles têm em mãos não somente o dinheiro e a riqueza em si que ele representa, mas são eles que detém o poder e os recursos, são eles que têm as rédeas do mercado imobiliário, do capital e da terra, dos meios midiáticos, educacionais, culturais, legislativos e jurídicos, familiares e sexuais... portanto, sob o domínio dos privilegiados, se imprime ao planejamento urbano o caráter conservador deste grupo/classe, situação que colabora para a exclusão da mulher, visto que o corpo feminino é “delimitado por uma moralidade a que os homens não são submetidos. Uma moral que nos localiza na cidade” (TAVARES, 2015, p.115), o que alimenta a ideia de que a mulher não pertence à cidade, ao espaço público, pois o poder que o homem exerce sobre o corpo da mulher também se caracteriza no poder que ele exerce sobre o espaço. Tanto é que até o início do século XX o sufrágio era direito exclusivamente masculino, sendo que as mulheres brasileiras conquistaram parcialmente o direito ao voto em 1932. Os direitos humanos universais6 começaram a surgir desde a Segunda Guerra Mundial, quando os organismos internacionais estabeleceram as leis que, para além de cada país, são válidas a todos os habitantes do planeta. Temas como a vida, moradia, salubridade, justiça e trabalho compõem a estrutura a partir da qual esses direitos de cumprimento obrigatório foram implementados. Foi nesse momento que grupos sociais vulneráveis e até então invisibilizados historicamente como mulheres, crianças e idosos foram englobados – muito embora a inserção não seja plena, já os direitos políticos foram convertidos em universais de tal modo que 5 Pesquisa realizada pela Oxfam. Disponível em: h�ps://brasil.elpais.com/brasil/2017/09/22/poli�ca/1506096531_079176.html. Acesso em 26 de outubro de 2017. 6  Saúde, educação, habitação, cultura, lazer, esporte, desenvolvimento econômico e direito de organização e expressão, e também os direitos das mulheres são considerados direitos humanos aprovados em 1993 na úl�ma Conferência Mundial dos Direitos Humanos.

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C O N T E X TO  a classe dominante não fosse prejudicada (WOOD, 2006). E como Montaner e Muxí (2014) sinalizam, é fundamental a indissociabilidade entre os direitos, uma vez que não se garante um deles ser se garantir os demais. Seja como for, de acordo com uma ampla pesquisa realizada pelo Núcleo de Opinião Pública da Fundação Perseu Abramo (FPA), as mulheres consideram que houveram avanços e conquistas, e que ser mulher hoje é melhor que há duas ou três décadas atrás, associando a definição do que é ser mulher atualmente à “sua inserção no espaço público, no mercado de trabalho, à conquista de independência econômica, à independência social, ou ainda a direitos políticos conquistados” (COLOMBAROLI, 2014, p.3). Isso possibilitou, segundo Carvalhal (2004), que a mulher contemporânea deixasse de ser somente a responsável pelo desenvolvimento reprodutivo da sociedade. Atualmente, além de mãe, ela é também assalariada e política. Para Colombaroli (2014), no século XXI a imagem da mulher deixa de ser a de maternidade, e consequentemente de domesticidade. A conquista por espaço no mercado de trabalho trouxe muitas transformações; a mulher passou a vivenciar o espaço público não só como extensão dos serviços da casa. Com maior autonomia econômica, ela também passa a obter autonomia política, saindo da vida “doméstica” para a vida “pública” (VIERA; COSTA, 2014).

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A

tualmente a mulher é maioria em números no Brasil. É a cidadã que mais ocupa os espaços, produzindo ou não, circulando, habitando, interferindo,

voluntaria e involuntariamente, a partir de sua presença na construção e manutenção da sociedade brasileira (CASIMIRO, 2017). Também é maioria entre os eleitores, com o Tribunal Superior Eleitoral registrando praticamente dez milhões de eleitoras a mais que eleitores. Somando mais da metade dos eleitores (52%) da população são responsáveis pelo sustento de 40,5% das famílias, além de possuir escolaridade muitas vezes superior à dos homens, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Quando se analisa essas informações, especialmente com relação às mulheres responsáveis pelo sustento da família, eclode a questão da presença feminina no espaço urbano, deslocando-se, além dos usos tradicionais, para o trabalho. Mas ainda que haja uma elevada porcentagem de mulheres no mercado de trabalho, possibilitando sua participação no espaço público, além deste trabalho, entendido como produtivo e portanto reconhecido e remunerado, as mulheres seguem sendo as responsáveis das demandas do lugar e as representantes do espaço doméstico e vivenciam o espaço público sempre em função disso. Outra questão é que o número dos domicílios chefiados por mulheres tem aumentado, mas a sua relação com a pobreza também (SILVA, 2007, p.118). Relatório apresentado no Congresso Nacional pela Comissão Especial do Ano da Mulher, afirma que, em 1992, 19,3% dos domicílios brasileiros eram chefiados por mulheres e em 2002 esse percentual passou para 32,1% nas áreas urbanas. Quase 90% dessas mulheres chefes de família não possuem cônjuge ou companheiro. Embora o fenômeno da chefia feminina dos domicílios não seja inédito na história da sociedade brasileira, acredita-se que a contemporaneidade do empobrecimento de famílias monoparentais femininas compõe-se de elementos bastante específicos. Elas acabam exercendo a função de chefes de família sem, no entanto, ter construído ao longo de sua vida uma formação identitária com esse papel. Ornat (2005) demonstra que as mulheres de baixa renda, em geral, possuem uma vivência reduzida do espaço total da cidade, desenvolvem deslocamentos menos extensos e frequentes do que os estabelecidos pelos homens dos mesmos locais. Além disso, os motivos dos deslocamentos estão relacionados com seu papel da maternagem e, fora deste, não há registros de deslocamentos para realizar interesses particulares. Nas áreas tomadas como referencial de reflexão, é acentuada a precariedade de infra-estrutura e serviços, o que não constitui propriamente novidade em uma sociedade marcada por profundas disparidades de rendimento e investimentos públicos. No que se refere aos espaços da cidade, seus distintos usos distribuem lugares e definem protagonismos. Desta maneira, a Coradin (2010, p.17) conclui que o âmbito público não pertence às mulheres que não realizam trabalho produtivo e o privado está tão próximo do universo doméstico que, para elas, se converte em inexistente. Aos homens, no entanto, lhes pertence tanto o espaço público como o privado. A domesticidade constitui parte do trabalho reprodutivo, se caracteriza pelo comportamento, pela disposição a prestar atenção e dar respostas às necessidades de terceiros, pelo cuidado das pessoas e do lugar. Como afirma Atxu Amann (2005, p. 81), “o trabalho doméstico é como um ritual de atos sequenciais baseado em uma sensação de manutenção que só se percebe quando não existe”. Apesar dos progressos históricos, e de hoje não mais nos dividirmos apenas entre mulheres do lar e trabalhadoras, esses padrões continuam sendo esperados e

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C O N T E X TO  reforçados. A mulher se introduz no espaço público, sobretudo como mão de obra, mas a responsabilidade pela reprodução da vida e pela manutenção do lar se mantém: ela trabalha e também cuida de outros e da casa - como indica uma pesquisa recente7, 98% das mulheres que trabalham fora sentem-se como as principais responsáveis pelas tarefas domésticas. Na ausência de políticas públicas necessárias ao

FIGURA 5

par ticipação masculina no trabalho doméstico

desenrolar cotidiano – como creche, pré-escola, transporte eficiente e adequado às necessidades de mães, como estações de trens e metrô, equipadas com fraldários, por exemplo, lazer, saúde, etc. – as mulheres pobres tendem a criar múltiplas estratégias de sobrevivência, somando a já clássica dupla jornada de trabalho feminina, muitas outras jornadas (PELEGRINO, 2003).

os estilos de vida mudam ao ritmo que as sociedades avançam, entretanto a domesticidade parece permanecer alheia às transformações sociais. ■ ■MURILLO, 2006, p.9

FIGURA 6

remuneração média por grau de instrução, em reais

fonte: pesquisa SOS corpo e Data popular "traalho remunerado e trabalho doméstico no cotidiano das mulheres.

Assim, a assimetria entre os gêneros ainda é gritante e a desigualdade não foi superada. Na maioria das sociedades, as tarefas cotidianas de cozinhar, limpar, atender às crianças, velhos e doentes são de responsabilidade das mulheres. Pensar nas 7 Pesquisa do SOS Corpo - Ins�tuto Feminista para a Democracia junto com os Ins�tutos Patrícia Galvão e DataPopular. Disponível em: h�p://www.dmtemdebate.com.br/voce-sabe-como-anda-a-divisao-das-tarefas-domes�cas-na-sua-casa/.

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trabalhadoras domésticas significa refletir sobre o papel do trabalho doméstico na reprodução humana. Conforme levantamento realizado por Melo e Di Sabbato (2009, 2007), estima-se que as mulheres brasileiras trabalham, em média, 20 horas por semana nessas atividades. O interessante é que se esse serviço fosse contabilizado sua contribuição chegaria perto dos 10,3% do Produto Interno Bruto (PIB) do Brasil em 2008, conforme levantamento realizado por Melo e Di Sabbato (2009, 2007). Ainda assim a percepção da sociedade sobre o trabalho doméstico não se alterou e o trabalho doméstico remunerado ou não segue sendo exclusivamente feminino. Maria Betânia Ávila afirma que "os dados nacionais reforçam que a divisão sexual do trabalho continua profundamente desigual. As mulheres estão no mercado de trabalho, mas os homens não estão no trabalho doméstico" (figura 5); uma outra questão é que quando os homens estão em casa eles aumentam as tarefas de trabalho das mulheres. Por extensão, o espaço arduamente conquistado no mercado de trabalho acaba resultando em duplas e até triplas jornadas de trabalho. Neste contexto, o espaço público enquanto possibilidade de lazer e cultura deixa de ser um espaço vivenciado pelas mulheres, já que grande parte do seu tempo é dedicado para o trabalho dentro e fora de casa, inclusive nos fins de semana. Além disso, apesar do aumento da inserção da mulher no mercado de trabalho, tanto no espaço de trabalho formal quanto informal, "ele traduz-se majoritariamente nas áreas onde predominam os empregos precários e vulneráveis" (SILINGOWSCHI, 2007, p.63). Ao final, o montante do trabalho feminino é muito superior em carga horária e intensidade ao passo que a remuneração é extremamente inferior (figura 6), sendo que as diferenças são ainda maiores entre pessoas brancas e negras. Assim, apesar de muitas conquistas, como lembra Tosi (2016, n.p.), “a discriminação ainda perdura, o que faz com que elas sigam lutando pelos seus direitos e, sem dúvida, a grande batalha ainda está relacionada à ocupação de espaços de poder”. A exemplo da ocupação de espaços de poder, há apenas 8,6% de mulheres na Câmara de Deputados (44 entre 513 parlamentares), que em termos de representação feminina, significa que o Brasil ocupa a 118º lugar entre 184 países (MATOS, 2013).

Se por um lado a mulher está mais presente no mercado de trabalho (mesmo que ainda tenha muito a galgar na competitividade com homens em termos de cargos e salários), em termos de representatividade política, não tem aumentado a participação de mulheres como representantes: são poucas conselheiras, vereadoras, deputadas, senadoras, lideres do movimentos sociais, entre outros. Há diversos fatores estruturais e culturais que explicam o reduzido acesso da mulher ao poder, reforçando a tendência das funções políticas permanecerem no domínio masculino. ■■SANTORO, 2008, p.5

Sob a perspectiva de uma sociedade democrática, pelo método quantitativo de participação, a explicação para a ausência das mulheres nos espaços políticos, partilhando do debate sobre a cidade e o que ela deve ofertar, segundo a Matos (2013), não se sustenta. Situação essa que fragiliza a possibilidade de um futuro estável, de bem-estar social e vida digna coletiva. Para Matos, trata-se de uma "expressão

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C O N T E X TO  ainda de uma cisão entre o público/masculino e o privado/doméstico, a indicar uma “incompletude da cidadania feminina”, cuja persistência impossibilitaria às mulheres a conquista definitiva de direitos". Tal exclusão reflete uma sucessão de obstáculos tanto subjetivos, entre eles a estigmatização do feminismo, quanto objetivos, como a dupla jornada e a assimetria no acesso aos recursos, impedindo a superação da desigualdade na representação política. É necessário, no entanto, uma compreensão ampliada do conceito de participação política, lembrando que “não há falta de mulheres ativistas e mesmo lideranças na sociedade civil e no ativismo comunitário” (SOARES, 2002) - uma observação pertinente para desconstruir o “mito do apoliticismo feminino”, ou de uma essência feminina não vocacionada para o domínio público. Eva Blay destaca que as bases que trabalham para a obtenção de votos são constituídas por mulheres; que existem movimentos sociais quase inteiramente constituídos por mulheres e que “quase todos os movimentos de bairro, de vizinhança e comunitário têm base feminina”. Soares indica então alguns fatores que explicam o afastamento das mulheres da representação institucional: “a introjeção do ‘papel socialmente atribuído a elas’, como a atuação em áreas que se pode agrupar no campo do cuidado (ajudar os necessitados, saúde, educação) e de valores machistas hegemônicos, como a ideia de que política é coisa de homem, ou a de que mulher não vota em mulher – características socialmente construídas mas naturalizadas, a exigir sua desconstrução no imaginário da opinião pública”. Além do mais, o papel de esposa, mãe e dona de casa seguem sendo compulsórios para as mulheres desde a infância8, prevalecendo a administração da vida privada e a baixa remuneração para a imensa maioria, mesmo possuindo maior escolaridade. Portanto, é de fundamental importância analisar como a urbe dialoga com a presença feminina tendo em vista que seu papel social requer o desempenho de múltiplas funções, mãe, companheira, profissional, em diferentes áreas, pois essa condição solicita da cidade a mobilidade e a acessibilidade, e deveria possibilitar o livre transitar das mulheres. Isso significa ter plena capacidade de acessar o trabalho bem como os espaços e serviços públicos e privados, trata-se de lazer e cultura sem qualquer tipo de cerceamento, geralmente consequência do medo de sair às ruas, sobretudo em determinados horários. Desse modo, a cidade necessita ser funcional também às mulheres, e para isso é preciso que percebamos a presença feminina, o que envolve permitir sua participação nos espaços de decisão sobre o desenho, o uso, a ocupação e gestão das cidades. A conformação das cidades, entretanto, nunca favorece a realização destas tarefas. Mas as barreiras estão longe de serem somente físicas. Para Isabel Velázquez (2001, p.1), o espaço urbano está repleto de barreiras invisíveis, pois o controle real nelas é tão intenso que não necessita de elementos materiais, de modo que os espaços efetivamente usados pelas mulheres estão bem delimitados no mapa mental de quase todas as cidadãs, com especificidades de lugar e de tempo.

8 A construção histórica do papel feminino e a imposição para que sejam senão as únicas, as principais responsáveis pelos cuidados e afazeres da casa ocorrem desde o nascimento. A responsabilidade pelas tarefas domés�ca e pelo cuidado acompanha as mulheres desde crianças; como indica a pesquisa “Por Ser Menina no Brasil – Crescendo entre Direitos e Violências”, de 2013, mesmo a infância é marcada pela divisão desigual das responsabilidades domés�cas entre meninos e meninas.

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[...] os espaços de constrangimento, como a rua em determinados locais e horários, ou espaços de confinamento, como as residências em periferias distantes, são claramente elementos que tanto se referem às diferenças de acesso físico entre mulheres e homens a determinados espaços, como a construção de barreiras invisíveis criadas pelo olhar e força daqueles que impõem sua ordem e alcançam legitimidade. ■■SILVA, 2007, p.120

É preciso um programa para atingir a justiça socioeconômica e ambiental da mulher, o que requer, fundamentalmente, uma solução que supere as tradicionais divisões entre o lar e a economia de mercado, a moradia privada e o ambiente de trabalho. Conforme Vieira e Costa (2014, p.12), "as mulheres não podem melhorar seu status no lar, a menos que sua posição econômica geral na sociedade seja alterada, e não podem melhorar seu status como força de trabalho remunerada, a menos que suas responsabilidades sejam alteradas". Ora, se o desafio para alcançar um patamar equilibrado de condições de vida parece grande demais para o Brasil, tanto no espaço urbano quanto no campo – o que requer permitir a participação democrática na discussão sobre políticas e intervenções públicas – que dirá garantir que, em especial, as mulheres tenham voz ativa e decisiva nos processos de [re]produção do espaço urbano (CASIMIRO, 2017). Paralelamente, Casimiro defende que ao falar da presença da mulher no âmbito das decisões sobre o uso e a ocupação [e a gestão] que se deve dar à cidade, a importância não radica somente das questões de segurança e integridade física e psicológica feminina, embora sejam elementos indissociáveis, “mas da importância de tal questão para o fortalecimento do Estado democrático garantidor da igualdade sem discriminação” (p.10). Ela aponta como os estigmas urbanos, embora sentidos com maior peso pelas mulheres, devem ser enfrentadas por todos os segmentos da sociedade, pois somente dessa maneira se assegura a efetividade e o alcance pleno dos debates. Tal reivindicação, no entanto, não pode ser defendida como ampla e geral quando se sabe que a população feminina é a grande vítima da violência urbana. Pesquisa realizada pela Action Aid em 2014 revelou que 86% das brasileiras ouvidas sofreram assédio em público em suas cidades9. Não obstante a melhoria da vida e da condição da mulher no Brasil, fruto de décadas de luta, a equidade de gênero, direito inalienável garantido na Constituição Federal, ainda enfrenta obstáculos. A violência contra a mulher em suas mais variadas formas, inclusive na modalidade física, segue sendo uma imensa, vergonhosa e inaceitável chaga social. Os números - simplesmente assustadores - não permitem mensurar ou de alguma forma calcular ou dimensionar o dano causado às mulheres ao longo da história. A insegurança está enraizada no imaginário feminino, mesmo para aquelas que pensam nunca ter sofrido algum tipo de violência, e isso, vale enfatizar, está intimamente associado à presença e ao assédio dos homens que demarcam, ferem e limitam nossa liberdade de locomoção na cidade. E o modo de pensar e construir os espaços pode sim afetar essa situação - para o bem ou para o mal. 9 Disponível em h�p://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/no�cia/2016-05/pesquisa-mostra-que-86-das-mulheres-brasileiras-sofreram-assedio-em. Acesso em 24 de outubro de 2017.

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C O N T E X TO  Assim, a violência é um fator determinante na vivência urbana feminina, pois é elemento constante seja em termos psicológicos e simbólicos quanto físicos, no espaço doméstico ou público, impactando diretamente no modo como experimentam ou não a cidade. O número exorbitante de casos de violência contra mulher em suas mais variadas dimensões configuram o exemplo último, mais evidente e cruel, de como se dá a apropriação do corpo feminino. Harkot (2015) chama atenção para outro aspecto correlato e quase sempre negligenciado que é o fato de as taxas relacionadas ao uso de bicicleta ou transportes motorizados individuais por parte da mulher serem muito mais baixas que as dos homens. Elas são maioria na utilização do transporte público, o que demonstra para quem os investimentos urbanos são pensados, já que se prioriza o automóvel particular. Vejamos, o homem monopoliza o carro da família e, por isso, é maioria no trânsito. A bicicleta, uma das alternativas para potencializar a liberdade feminina10, tem o uso coibido em função da insegurança na cidade; o mesmo ocorre com o uso do transporte público coletivo, onde os casos de abuso são alarmantes. Isso se explica pelo domínio machista em todas as esferas da dinâmica urbana. A subjugação de sua imagem e a fetichização do seu corpo também ganham espacialidade nas cidades e diametralmente ampliam o distanciamento da mulher com as esferas públicas, políticas e culturais. Antes os papeis e desigualdades de gênero eram representados e fortalecidos por meio da pintura; hoje esse papel cabe à mídia. O papel da da publicidade são essenciais na representação estereotipada dos sexos e na marcação das desigualdades. Segundo pesquisa realizada por “Think Eva”, para mais de 62% das mulheres, a publicidade desperta o sentimento de mesmice, indiferença. Isso porque a maioria do conteúdo publicitário é voltado ao público masculino e reduz a mulher aos atributos de seu corpo e à sensualidade, enquanto a representação desejada pela população feminina é de inteligência e independência11. A mídia é deferminante desde a infância. Ainda crianças somos induzidas à tarefas domésticas, ganhando presentes e objetos que representam a domesticidade, a "vocação feminina": fogões e panelas, bonecas [...] tudo rosa e em miniatura, um pequeno simulacro menos cruel de nossas mães - mas não menos perverso. Com base em pesquisas nacionais e estrangeiras sobre a relação da mulher com a mídia, Rachel Moreno esclarece a mídia televisa no Brasil é muito forte, mas a mulher sempre retratada de maneira similar, como consumidora ou objeto sexual. Elas estão ausentes dos espaços ditos “sérios” e representam menos de 20% em notícias nos telejornais brasileiros; quando aparecem, são predominantemente vítimas ou testemunhas anônimas; enquanto apresentadoras/formadoras de opinião ou especialistas é ínfimo o número.

10 Vale citar movimentos que têm surgido para pleitear espaço para a mulher através da bicicleta, considerada forma de autonomia feminina, como a associação dos ciclistas urbanos de São Paulo, Ciclocidade, que visa melhores condições de vida e mobilidade e tem entre as pautas prioritárias a inserção da mulher nesse nicho (elas somam apenas 6% dos ciclistas na capital paulista), e o Ciclofemini, que é uma escola de pilotagem de bicicleta que também suscita a importância de se incorporar a perspec�va de gênero aos debates de mobilidade. 11 Na contramão, mulheres italianas recentemente se mobilizaram contra o que lá seria uma novidade: mulheres, com pouquíssima roupa, dançando ao fundo do palco, enquanto se sucedem as atrações principais, que nada têm a ver com a coreografia. Parece familiar? A televisão brasileira está recheada desses programas.

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Esta mercantilização dos corpos femininos e a reprodução de estereótipos colocam as mulheres em situação de submissão e desvantagem nas produções veiculadas diariamente pelos meios de comunicação de massa, enfeitando suas falsas promessas, seu humor rasteiro, sua programação – com coxas, bundas e peitos femininos ou mulheres aparentemente inteiras, mas submissas aos padrões e, por isso, “felizes”. ■■MORENO, 2013, p.100

Conforme evidencia Foucault (1987), o controle do Estado e da ideologia dominante se estende por todos os meios até terminar se manifestando, de forma mais sutil, por meio do bombardeio de imagens positivadas – de beleza, felicidade, comportamentos socialmente valorizados. Um dos efeitos colaterais deste procedimento para Moreno (2013), diz respeito ao impacto da imagem feminina na formação da subjetividade e na consequente autoestima da brasileira. Como argumenta Moreno, essas imagens, veiculadas através da propaganda, da seleção de apresentadores/as, de heroínas e vilãs de telenovelas, de brinquedos femininos, da moda comercializada vão, sutil e insidiosamente, sendo introjetadas em nós, enquanto modelo aspiracional que influencia na formação da subjetividade. Não à toa, uma pesquisa ampla feita em dez países pela empresa Unilever (Etcoff, 2004), revelou que entre os países investigados, o Brasil aparece como aquele em que as mulheres mais estão desconfortáveis consigo mesmas. Essa condição interfere drasticamente no cotidiano: mais de 90% das garotas declaram que querem mudar pelo menos um aspecto da sua aparência e dois terços das mulheres do mundo evitam atividades básicas da vida porque se sentem mal consigo mesmas. Outra “contribuição” da mídia, segundo Ferreira (2012, p.88), é a espetacularização da violência, que gera duas situações distintas: “a banalização dos atos violentos, os tornando corriqueiros e sem importância no cotidiano das pessoas; ou então, a criação de um estado de alerta coletivo, em que são adotadas posturas de suspensão das vivencias urbanas em favor das experiencias seguras”. A mídia, com a exposição diária de violência, ajuda a marcar cada vez mais as desigualdades sociais calcada na construção destas representações associando pobreza e violência, potencializando a sensação de medo e insegurança. Aqui, o capitalismo se apropria da situação de envolvimento da população com seus temores para estabelecer mais um foco de produção e de consumo: o mercado da [in]segurança e da proteção. O resultado é um ambiente propício para que se consuma produtos relacionados ao se proteger.

É esse sentimento de vitimização que fortalece o imaginário das cidades como locais violentos e legitima a adoção de medidas privadas de segurança e a construção de espaços seguros (shopping centers, edifícios comerciais e condomínios vigiados, entre outros) que acabam por segregar o espaço público. ■■AMARAL, 2007, p.128 apud FERREIRA, 2012, p.88

Sendo assim, ao se observar a cidade em sua dinâmica, sua representação na mídia e a forma como ela é “lapidada” pelo imaginário popular, percebe-se que a violência configura uma nova dimensão da realidade onde a crescente percepção de insegurança é determinante na construção e experimentação dos espaços não só nas

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C O N T E X TO  cidades metropolitanas, mas também nas médias e pequenas. Essa condição, para Góes e Sposito (2013, p.5) com base em Pedrazzini (2017), resultou recentemente numa “estética do medo” e num “urbanismo do medo”, “combinadas a práticas longamente reproduzidas na história do Brasil, de discriminação dos pobres” - os espaços desvalorizados e abandonados, como praças, parques e ruas, ou distantes da malha urbana consolidada, com bairros periféricos, sempre foram destinados às pessoas pobres e trabalhadores, reestruturando o espaço e aprofundando os processos de segregação em direção à fragmentação socioespacial. O que nos interessa entender, contudo, é que é que as mulheres são as mais afetadas por esses problemas e desigualdades, e que a sua presença nos espaços é frequentemente associada às esferas privada e doméstica. Essa desigualdade se dá no campo da vida pública, se expressando igualmente na esfera territorial, "expressão física da vida pública" (SANTORO, 2008, p.5). Assim, as desigualdades socioterritoriais também afetam mais fortemente as mulheres. Como enfatiza Casimiro (2017), o debate pelo direito à cidade para as mulheres inclui diversas dimensões, as que igualmente sustentam o direito à cidade: a dimensão política, a simbólica e a material. Mas é fundamental que essas conflituosas questões de gênero sejam enfrentadas por toda a sociedade para que a mudança na mentalidade e cultura sejam substanciais e possam garantir a produção democrática de espaços urbanos.

o direito à cidade para todos e todas é uma condição subjetiva inserida em um contexto social, econômico e territorial de relações e interesses difusos, coletivos, conflitantes ou não, direito que reclama o reconhecimento da diversidade como protagonista na conquista do bem comum. Para tal a reforma urbana é necessária e urgente, mas não é um processo fácil. Requer a participação da sociedade civil e seus múltiplos grupos e organização, na condução de um planejamento efetivo. Os principais obstáculos na implementação da reforma urbana são questões políticas, econômicas, sociopolíticas, entre outras. Mas um fator determinante na efetividade do planejamento e na gestão da reforma urbana é a maneira como se decide onde e como serão investidos os recursos públicos (SOUZA; RODRIGUES, 2004). Em grande parte dos municípios no Brasil, o destino desses recursos é decidido pelos governos, porém há algumas cidades estão implantando o orçamento participativo, uma ferramenta para possibilitar a participação civil na deliberação do orçamento público. Recife-PE, Porto Alegre-RS e Santos-SP, são exemplos de como, apesar das problemáticas e dificuldades inevitáveis, essa iniciativa representa um modelo consistente na efetivação da participação popular. O que deve ser enfatizado nessas questões é a importância da atuação dos ativismos ou movimentos sociais na luta por direitos e no debate sobre o território. No Brasil os ativismos tiveram seu apogeu entre meados dos anos 1970 e dos anos 1980, cumprindo uma função histórica; passada essa época o declínio foi inevitável. Entretanto, as diferentes formas de ativismo contribuíram enormemente para o exercício da cidadania dentro das sociedades, incitando a população a buscar seus direitos e a tratarem a realidade de maneira mais crítica, entendendo suas questões políticas e também as maneiras pelas quais se organizam os planejamentos e gestões urbanos.

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E mesmo perante o estado de decadência por que passaram os movimentos sociais, novas organização populares foram surgindo para propor novos modos de “administrar” os espaços urbanos. Emerge Movimento de Trabalhadores Sem-Teto (MTST), criado a partir do Movimento Sem-Terra (MST), na luta por moradia e contra os diversos processos políticos de exclusão. O hip hop é outro movimento que nasce nos guetos, primeiro nas grandes cidades norte-americanas na década de 1970, em prol dos direitos civis e políticos por parte dos negros. No Brasil o hip hop nasce nas periferias, favelas e conjuntos habitacionais, e o ativismo se expressa por meio do rap, do break e do grafite. Neste contexto de luta por direitos, pode-se considerar que o êxito do movimento feminista se evidencia na Constituição de 1988, que passa a garantir, ao menos em teoria, a igualdade entre homens e mulheres; também proíbe a discriminação no mercado de trabalho por motivo de sexo; resguarda o direito das presidiárias de amamentarem seus filhos; protege a maternidade como direito social garantindo a licença gestante; reconhece o planejamento familiar como uma livre decisão do casal e, principalmente, institui ser dever do Estado coibir a violência no âmbito das relações familiares (ROCHA, 2010)12. Assim, medidas legislativas estão sendo adotadas, tanto interna quanto internacionalmente, em favor das mulheres. Sem dúvida, uma importante conquista13 da mobilização feminina. Mas ao mesmo tempo tais avanços também evidenciam o forte vínculo da mulher com a vida doméstica, que se traduz intensamente na vida pública, balizando suas reivindicações. Para Santoro (2008), isso é notável na luta por equipamentos e serviços tanto em termos quantitativas como qualitativos. "Para que possam trabalhar, participar, querem ter sua vida doméstica resolvida, através de serviços públicos ou através das relações de comunidade". Tanto é, que quando necessita sair para trabalhar, "a responsabilidade, a preocupação e a mobilização social se dá a partir da mulher, para que possa ser 'coberta', nos horários que sai para trabalhar, pelos serviços públicos (GONZAGA, 2004, apud SANTORO, 2008, p.6). Nesse contexto, Terezinha Gonzaga cita a trajetória da luta das mulheres por creche, que criou uma demanda para que fossem pensados projetos específicos de arquitetura e de localização onde houvesse carência desses equipamentos.

A reivindicação por creches [mobilizada por mulheres] foi extremamente significativa, constituiu um sinal de mudança nas relações sociais de gênero, aprofundando a transformação das 12 Tais determinações foram complementadas por leis, em que destaca-se o Código Civil, pois operou mudanças significa�vas na situação jurídica da mulher como a igualdade absoluta dos cônjuges; a Lei nº 8.930/94 que incluiu o estupro no rol dos crimes hediondos; a Lei nº 9.318/96 que agravou a pena dos crimes come�dos contra a mulher grávida e a Lei nº 10.445/02 – a Lei Maria da Penha - que penaliza com muito maior rigor os casos de violência contra a mulher, especialmente a domés�ca. Paralelamente foram firmados tratados internacionais sobre os direitos humanos das mulheres, a exemplo da Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, da ONU, também conhecida como CEDAW e a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher. 13 Deixo aqui explicitado um certo incômodo em denominar conquistas aquilo que, numa sociedade justa e genuina-mente democrá�ca, nem deveria exis�r. Leis e delegacias especiais para a violência contra a mulher só existem pois se ins�tucionaliza essa violência; vagões exclusivamente femininos, da mesma forma, apenas demonstram como o corpo da mulher é susce�vel e vulnerável na cidade. Se por um lado essas conquistas são avanços de fato, por outro denuncia uma sociedade doente, que flagelada, cria medidas meramente palia�vas, simulacros de igualdade

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C O N T E X TO  relações familiares que já se verificava havia décadas, mas que se intensificou na medida em que as mulheres maciçamente foram obrigadas a participar do mercado de trabalho, devido ao arrocho salarial que impedia seus maridos ou companheiros de prover sozinhos o sustento da família. (...) E o resultado foi que a rede municipal de creches construída na cidade de São Paulo acabou por cumprir importante papel como um elo estruturador no processo de urbanização da periferia. ■ ■GONZAGA, 2004, p.38

Tendo isso em vista, Santoro (2008), levanta algumas hipóteses para pensar o planejamento. [1] a mulher leva consigo o espaço doméstico para o espaço público. É necessário, portanto, exigir que o público lhe dê condições de participar plenamente desse espaço. No caso do planejamento isso se traduz em metodologias que garantam essa participação, assim como infraestrutura, serviços e equipamentos que permitam a coexistência das vidas privada e pública. [2] o discurso das mulheres mudou; de um discurso em prol de serviços e equipamentos passou a reconhecer a desigualdade estruturante entre os gêneros, incitando a luta por direitos - embora uma coisa não exclua a outra. Luta essa, aliás, que não é apenas das mulheres, mas de todos os grupos excluídos e marginalizados, sejam por questões raciais, culturais, etc. Essa desigualdade de direitos se reflete em desigualdades socioterritoriais e a luta por direitos transpôs-se à luta pelo direito à cidade e pelo direito à moradia (idem). Diante desse debate, destacamos o Plano Diretor municipal como espaço para o reconhecimento da desigualdade entre os gêneros. Para ilustrar como essa perspectiva pode ser incorporada e traduzida em planos diretores14, pontuamos duas experiências brasileiras anteriores ao Estatuto da Cidade, já trabalhadas por Terezinha Gonzaga: Os planos diretores de Santo André-SP e São Paulo-SP. Esses municípios vêm trabalhando, segundo Gonzaga (2004, p.38), metodologias que reflitam essa transversalidade do olhar de gênero em ações concretas sobre o território.

A primeira experiência no Brasil a partir da qual o movimento de mulheres passou a discutir a gestão e reordenação democrática do espaço urbano foi um trabalho árduo, realizado em Santo André, que culminou com a inclusão de um plano setorial no Projeto de Lei do Plano diretor – aliás, o único Plano diretor do país a contemplar a questão específica da mulher –, intitulado Plano Municipal dos direitos da Mulher, enviado à Câmara Municipal daquela cidade em 1991. Este processo representou um grande amadurecimento na discussão de mulher e cidadania Para tal, Santo André mobilizou mulheres a partir de uma comissão formada pela Assessoria dos Direitos da Mulher (órgão da prefeitura)15, para que elas propusessem 14 Ainda que se reconheça as dificuldades e problemá�cas em relação ao plano diretor, há de se sobressair a sua capacidade de construir cidades mais justas, isso, é claro, se os planos forem calcados em ideais plenamente democrá�cos. 15 Importante mencionar que isso ocorreu na gestão do Prefeito Celso Danie, do Par�do dos Trabalhadores (PT). A gestão seguinte também foi do PT e o tema desigualdade de gênero aparece encaminhado e monitorado pela atual Secretaria de Inclusão Social.

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diretrizes e ações específicas para o plano diretor. As discussões sobre o tema envolviam basicamente dois questionamentos: como cada mulher sente a cidade Como a cidade expressa seus sonhos e desejos? Ao final, o documento sistematiza aspectos territorializáveis - tais como delegacias, creches e centros de atendimento jurídico-social - até questões mais amplas, referentes ao direito de cidadania - saúde integral, livre sexualidade etc. Esse plano diretor levou em consideração duas diretrizes do Plano Municipal dos Direitos da Mulher (PMPD): estabelecimento, em todos os setores da administração, de políticas específicas voltadas para as mulheres; garantia de representação das mulheres, por intermédio de suas diversas associações, nos programas sociais da municipalidade (SANTORO, 2004, p.12). Outra iniciativa importante é o Plano Estratégico de São Paulo. Nessa caso, todavia, não houve a particiipação organizada do movimento de mulheres e do movimento feminista; ela se deu junto à Câmara de Vereadores, através de duas vereadoras da Comissão de Defesa da Mulher (Flavia Pereira e Lucila Pizani do PT). Um capítulo especial para as mulheres foi proposto juntamente com a União de Mulheres de São Paulo, apresentado pelas vereadoras como emenda ao Plano Diretor Estratégico de São Paulo (GONZAGA, 2004, p.59). Art. 22 – As ações do Poder Público devem garantir a transversalidade das políticas de gênero e raça, e as destinadas às crianças e adolescentes, aos jovens, idosos e pessoas portadoras de necessidades especiais, permeando o conjunto das políticas sociais e buscando alterar a lógica da desigualdade e discriminação nas diversas áreas. ■■PLANO DIRETOR ESTRATÉGICO DO MUNICÍPIO DE SÃO PAULO, 2002. 16

Entretanto, de acordo com Santoro, "é difícil diferenciar que conquistas foram obtidas por essa mobilização de mulheres, quais conquistas foram obtidas a partir da participação da sociedade como um todo. Isso porque a metodologia de participação não garantiu a informação sobre que documentos ou colocações foram contempladas, que permitisse diferenciar as colocações que tangenciam mais a questão da desigualdade de gênero". A exemplo, como coloca Gonzaga (2004, p.198), temos a vitória do processo de debates junto à mobilização feminina, mudanças de zoneamento a fim de transformar zonas industriais em zonas mistas, criar Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS). A princípio, estas são bandeiras do movimento social como um todo, sem distinção de gênero. Sendo assim, qual a especificidade desse olhar? Em ambas as experiências citadas houve a incorporação de diretrizes que reconheciam a desigualdade e que buscam garantir a participação das mulheres. No documento de São Paulo encontramos algumas "pistas" dessa especificidade: estabelecer prioridades em prol da redução da desigualdade de gênero (SANTORO, 2008, p.13). Convém destacar alguns trechos referentes à habitação, uso do solo, iluminação e gestão: “Habitação: - Elaborar programas de subsídios para as mulheres, tendo em vista que, segundo o IBGE, elas recebem em média 70% dos salários dos homenos (grande parte delas menos que isso), principalmente nas funções que não exigem qualificação para o seu desempenho. 16 Disponível em: h�p://sempla.prefeitura.sp.gov.br/pde/LEI_13430-13.09.02.doc. Acesso em: janeiro de 2018.

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C O N T E X TO  - Elaborar programas de subsídios para as mulheres que chefiam família, a fim de que possam adquirir uma unidade habitacional. - Garantir que o título da propriedade ou de concessão real de uso seja feito em nome da mulher. - Ampliar a parceria da Secretaria de Habitação com a Secretaria Municipal de Assistência Social, para que se aumente o número de moradias provisórias ou se transformem albergues em moradias provisórias. - Programa de cortiços que atendam especificamente as mulheres, principalmente na região do Centro. Uso do solo - Garantia da aplicação da legislação que obriga murar terrenos vazios. - Sinalização dos espaços da cidade, como parques e lugares públicos, onde possa ocorrer violência, como estupros. Iluminação - Garantia da iluminação pública. (...) Gestão - Que seja garantia a participação das mulheres nos organismos de representação, como o orçamentoparticipativo, conselhos e conferências. - Participação das entidades de mulheres, nas agências de desenvolvimento econômico e social. - Apoio e fortalecimento das entidades de mulheres” Como ressalta Gonzaga (2004, p. 200-201), muito deste documento está mais direcionado à políticas que ao planejamento territorial. Sendo que grande parte do conteúdo não se refere às mulheres diretamente, como no caso da garantia de iluminação e nos programas habitacionais. O que se reivindica, nesses termos, e isso deve ser frisado, é prioridade de atenção. E se, como vimos, a participação da mulher em mobilizações sociais é tão forte, mas há certo impedimento em se expressar, é fundamental que se pense novas metodologias para trazer à tona o olhar da mulher sobre o território. E toda e qualquer metodologia deve incorporar a noção de que a mulher traz nas suas responsabilidades a vida privada e a pública simultaneamente. Também pressupõe-se, de certo, superar a tosca ideia de que as mulheres não são aptas à vida pública, ou política. De acordo com Gouveia17, emerge nesses debates "a questão da dicotomia geral/específico e da fragmentação das políticas pública"; essas duas faces de uma mesma lógica acabam criando uma separação entre sujeitos políticos, aqueles considerados aptos para disputarem os sentidos e as orientações gerais das lutas e políticas, e aqueles considerados sujeitos apenas reivindicatórios, atuando dentro desta concepção, "que ainda é fortemente dominante na nossa ação política – apenas a partir de seus próprios interesses para resolução de carências específicas".

no caso em questão se as mulheres estão abrigadas sob a rubrica de grupos sociais pode-se inferir que elas não são consideradas como sujeitos políticos capazes de falar em seu próprio nome, bem como que sejam capazes de pronunciar um pensar e uma ação sobre a dinâmica das cidades. A mínima

17 GOUVEIA, Taciana. Mulheres: sujeitos ocultos das / nas cidades?. s/ data. Disponível no site do Fórum Nacional de Reforma Urbana h�p://www.forumreformaurbana.org.br/_reforma/pagina. php?id=1057. Acesso em maio de 2017.

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referência feita às mulheres nesses processos políticos reafirma a desigualdade e o seu ocultamento como sujeitos. Em termos de direito à cidade e à moradia, as dimensões de gênero do processo de desenvolvimento urbano devem ser consideradas na formulação de programas de regularização da posse para corrigir desigualdades históricas e sociais, de modo a promover o empoderamento das mulheres e dar maior estabilidade às crianças e jovens18. Aqui, a questão da titulação está implícita, devendo também ser repensada. Para muitos programas de regularização o título de propriedade e tantos outros documentos devem estar no nome da pessoa chefe de família, onde há claramente a ideia do homem como chefe. Saule Jr. chama isso de "a volta do amor perdido": muitos maridos abandonam suas famílias e voltam ao lar depois de muito tempo, para receber o título de propriedade. Essa tradição para Santoro (2008, p.9) se justifica "na associação do direito de propriedade ao direito de família, que considerava o homem como chefe de família (referente ao Código Civil, não aos critérios do IBGE). A titulação é fundamental para garantir autonomia e empoderamento das mulheres, mas não se sabe muito sobre as dimensões de gênero a respeito da propriedade. Mesmo assim, há diferenças gritantes na forma de adquirir terra na América Latina em função desses cinco fatores:

[...] a preferência dada aos homens na herança; privilégio masculino no casamento; viés masculino tanto nos programas comunitários como em programas estatais de distribuição de terras; e viés de gênero no mercado fundiário. todavia, homens e mulheres tendem a adquirir terras de maneiras diferentes: a principal forma das mulheres se tornarem proprietárias é por herança, enquanto que o mercado fundiário é um meio de aquisição de terras relativamente mais importante para os homens. ■■DEERE, 2003, p.102 APUD SANTORO, 2008, p.9

Além disso, "não apenas é mais provável que os homens sejam proprietários, mas que também tendem a ter propriedades maiores do que as proprietárias do sexo feminino"19. Acessar recursos inclui também ter terra, e uma cultura urbana que mantém mulheres sem terra está mantendo as antigas formas de dominação dos homens sobre as mulheres. O que se agrava ainda mais numa sociedade marcada pelo mercado de terras concentrado em poucas mãos. Nesse sentido, as políticas do poder público devem ir justamente na direção contrária. Santoro argumenta que as mulheres vendem menos suas casas que os homens, o que indica a hipótese de que quando participa do mercado de terras a mulher está mais preocupada com estabilidade do que com lucratividade20; ela vê valor de uso na moradia, mais do que de troca, lutam por estabilidade e segurança Assim, 18  19 DEERE, Carmem Diana & LÉON, Magdalena. “Diferenças de gênero em relação a bens: a propriedade fundiária na América La�na. In: Sociologias. Porto Alegre: ano 5, n. 10, jul/dez 2003, p. 102. 20 Santoro cita pesquisas com loteadores do mercado formal elaboradas pelo Ins�tuto Pólis, que demostram como dão atenção especial às mulheres pois consideram que elas são as que dão a palavra final sobre a compra de um lote. E também o fato de as mulheres compram mais casas que os homens.

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C O N T E X TO  "estabelecer a mulher como figura prioritária para receber uma titulação pode significar uma opção na direção de garantir a permanência na área, preocupação constante dos programas públicos de regularização fundiária".21 As mulheres são importantes consumidoras de moradia uma vez que a insegurança de viver informalmente as afeta de maneira pungente. A informalidade, de maneira geral afeta mais a população feminina - 95% das mulheres do mundo não possuem conta bancária, por exemplo). Em áreas ocupadas informalmente a repressão social é ainda mais forte para as mulheres, com frequentes ameaças de violência. Podemos concluir que a mulher vê na propriedade o cumprimento da função social em vez de enxergá-la como mercadoria. A intenção não é contrapor função social e mercadoria, mas sim "entre propriedade que deve estar subordinada a definição de cumprimento de uma função que interesse à coletividade e não apenas ao proprietário; e propriedade absoluta, onde o proprietário entende que pode fazer o que bem quiser com ela, independentemente dos desejos da coletividade, e portanto, é possível a existência de pessoas sem ter onde morar e propriedades utilizadas apenas como mercadoria, com proprietários interessados em lucrar com a sua valorização" (SANTORO, 2008, p.10) Isso exposto, numa associação lógica, podemos ver na população feminina um agente importante para fazer com que se cumpra a função social da propriedade, ou no mínimo, combater a noção antiga e ultrapassada de direito de propriedade absoluto (idem). Criar regras específicas para mulheres, como políticas de cotas e medidas compensatórias - como se faz em relação a tantos outros temos que lidam com tantos outros tipos de desigualdade. Esta é também uma forma de lidar encarando a desigualdade, buscando diminuí-la. Nessa ótica, é também uma forma de diferenciar a desigualdade de gênero de outras questões mais abrangentes ou "dominantes", como a questão da renda.

Pensar a redistribuição apenas olhando para o recorte de classe, empobrece o olhar sobre a questão dos direitos. Considerar gênero como questão estruturante não é focalizar na mulher, é para pensar o direito para todos22 Nesse sentido, essas experiências de que falamos, Santo André e São Paulo, ainda que mais distantes desse planejamento generalista, não estão criando exceções, nem estão estabelecendo regras especiais somente para as mulheres, mas, ao contrário, estão dentro do escopo das regras para todas e todas, "trabalhando no campo de estabelecer diretrizes, desenhar prioridades" (SANTORO, 2008). É fundamental reconhecer o papel que os movimentos sociais têm na luta por direitos e melhores condições de vida nesse processo. Mas igualmente importante é que os/as ativistas sociais tenham em mente o papel exercido pelo poder local, pelas prefeituras municipais – isto é, seu alcance político e econômico. Além disso, os problemas gerados na cidade não devem ser encarados apenas como problemas 21 Com base no estudo coordenado por Pedro Abramo sobre o mercado de solo informal em favelas e a mobilidade residencial dos pobres, cujo objeto foi o Programa Favela Bairro no Rio de Janeiro. 22 FARAH, Marta Ferreira Santos. “Gender and public policies”. In: Rev. Estud. Fem., Florianópolis, v. 12, n. 1, 2004. Disponível em: <h�p://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_ar�ext&pid=S0104026X2004000100004&lng=en&nrm=iso>.

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urbanos locais, pois eles não são explicados apenas pelo que acontece na própria cidade, visto que, possuem dimensões mais amplas, podendo ter relação com a escala regional e até mesmo com a escala global. Evidente que é importante solucionar os problemas numa escala local, mas também é preciso pensar e agir também de maneira mais abrangente. Se nota certa uma mudança de escala, como nas experiências de orçamento participativo e planos mencionados, mas não há uma preocupação metodológica para trabalhar as questões de desigualdade e buscar a legitimidade social da prática urbanística, centrada no tema da desregulação e da liberação do solo por meio de projetos "modernizadores"23. No caso do Plano Diretor de São Paulo, por exemplo, houve a mudança de escala de intervenção mas não se aproximou do tema de gênero, ou da desigualdade. Muitas vezes, na verdade, acabam por corroborar os processos de exclusão. Em termos propositivos, Santoro afirma que estabelecer prioridades é a resposta para reconhecer e trabalhar a desigualdade de gênero na cidade, mas de fato é possível avançar muito: criar instrumentos especiais que garantam a aplicação dessas diretrizes e cotas, "dizendo 'como' fazer cumprir os objetivos já desenhados no planejamento", além de monitorar esse cumprimento. O desafio é entender o que significa propor diretrizes para reduzir a desigualdade de gênero em termos socioterritoriais e como traduzir essas diretrizes em instrumentos para fazer o seu cumprimento. Lembrando que nesse debate de significado, está também a definição da função social da cidade e da propriedade.

de que adianta termos o discurso que incorpora metodologias para as mulheres participarem se nosso raciocínio de planejamento está centrado em projetos que não refletem em espaços que atendem prioritariamentae a esse grupo (e até mesmo trabalham no sentido contrário)? ■■SANTORO, 2008, p.8

O que se coloca, basicamente, é que se a mulher é um agente relevante para enxergar a propriedade como uma função social e não como mercadoria, não há sentido, enquanto planejadores/as, investirmos nossa energia para planejar para o mercado. Não estaríamos assim indo na contramão do debate de direitos e do combate à desigualdade, sobretudo de gênero?

[...] ao menos uma conclusão é possível: se precisamos fazer cidades mais justas e igualitárias, para pensar numa cidade mais igual, é preciso formular políticas que visem a colaborar nessa correlação desequilibrada de gênero. isso justifica políticas exclusivas ou a preocupação com o olhar transversal sob o tema

23 Caberia aqui uma inves�gação mais aprofundada sobre se isso aconteceu, embora seja corrente percebermos, no caso do Plano Diretor de São Paulo, que a mudança de escala de intervenção que rechaça os planos e retoma os projetos urbanos não se aproximou do tema de gênero, ou da desigualdade. As Operações Urbanas Consorciadas em São Paulo procuram ser espaços que evocam ser símbolos de modernidade ou eficiência, sem qualquer vínculo ou preocupação com o envolvimento de outros atores que não os que tradicionalmente estão interessados no desenvolvimento urbano imobiliário. Aliás, ao contrário, são projetos que ao revalorizarem imóveis, segregam classes sociais e acabam por colaborar para a exclusão social.

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C O N T E X TO  “gênero” sobre as políticas. trabalhar a “equidade” significa tratar diferentemente os desiguais, trabalhar no campo da diferença. ■ ■SANTORO, 2008, p.1

Vê-se a urgência no desenvolvimento de um planejamento adequado às reais necessidades da população que, aliando desenho, planejamento e gestão24 à políticas públicas de qualidade e efetivas, que realmente englobassem a multiplicidade de grupos sociais em constante conflito na urbes. De modo de geral, Montaner e Muxí (p.212) defendem as raízes da mudança radicam na necessária desconstrução dos processos dominantes. Esse urbanismo baseado na auto-organizaçao, no funcionamento de baixo para cima (bot-tom up) e na justiça deveria se sustentar, pelo menos, em quatro eixos de transformação estreitamente relacionados: igualdade, diversidade, participação e sustentabilidade, relacionados com a vontade de promoção e consolidação de uma democracia realmente participativa e ambientalista25. O que tem tudo a ver com o resgate do caráter político do planejamento urbano realizado o através do poder do Estado, assim com a participação plural e plena dos setores da sociedade por meio do poder descentralizado para, por fim, construir uma cidade mais justa através da superação das desigualdades (SOUZA; RODRIGUES, 2004). É fundamental que o planejamento seja desenvolvido de forma conjunta entre o Estado (governo federal, estadual e municipal) e a população civil, buscando sobretudo incluir as demandas dos grupos historicamente ocultados. Nesses termos há uma grande parte da cultura arquitetônica e do urbanismo contemporâneos digna e resgatável, que deu grandes colaborações: a tradição orgânica e participativa do urbanismo, as políticas de moradia popular, como a desenvolvida por Viena durante quase um século; as novas politicas urbanas baseadas nos espaços e nos transportes públicos, os edifícios públicos pensados para o aprendizado, a sociabilização, a comunicação e a expressão das pessoas; os espaços verdes, os eixos de pedestres e as ciclovias que fomentam a diversidade e as reações intersubjetivas.

N

o entanto, estas são visões ainda muito insípidas no contexto brasileiro, e enquanto as questões de gênero permanecem em segundo plano vale elencar-

mos alguns exemplos bem sucedidos da incorporação da perspectiva de gênero para termos como parâmetro. Ao falarmos da introdução da perspectiva de gênero na construção de cidades mais justas, temos que citar a experiência da cidade de Viena, capital da Áustria, pois desde a década de 90 trabalha o planejamento urbano a partir de uma abordagem que busca atender os desejos e as necessidades cotidianas, na contramão do "esboço" de planejamento em voga. Isso se deve a uma forte tradição vienense em habitação social. Na década de 1920, o país já se destacava criando iniciativas para melhorar a qualidade de vida da classe trabalhadora. O conjunto habitacional “Heimhof” (1921-1922), por exemplo, buscava diminuir a carga do trabalho doméstico implantando serviços comuns, como cozinha, 24 O planejamento urbano remete ao futuro, uma vez que busca prever a evolução dos proces-sos, problemas e dificuldades gerados no momento atual. O planejamento visa ainda apro-veitar as vantagens e bene�cios que possivelmente surgirão. A gestão urbana, por sua vez, refere-se ao presente e está relacionada à administração de situações imediatas, ro�neiras e que demandam curto prazo de tempo. Basicamente, a diferença entre estes dois termos é o recorte temporal. 25 Comércio justo, slow food, consumo local e responsável, banco é�co, coopera�vas de credito, coopera�vas de moradias, parceria urbana etc.

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

sala de jantar e lavanderia, além de creche diurna e jardim de infância (CORADIN, 2010), o que afeta enormemente a rotina das mulheres. O interessante neste caso é que somente famílias ou casais onde ambos tivessem um trabalho remunerado podiam solicitar um apartamento neste conjunto.

[...] o plano consistia em construir grandes edifícios para habitação que ofereciam aos seus ocupantes boas condições de vida e eram acessíveis. As unidades de habitação social eram cidades independentes dentro da cidade e se levaram a cabo em sua maioria seguindo após estruturas em blocos: uma grande porta de entrada conduzia, geralmente, a um pátio paisagístico, do qual se acessava as escadas e casas particulares eram. Em geral, esses complexos também tinham um supermercado, lavanderia ou creche.26 (tradução nossa) Sob esta ótica, destaca-se os projetos da primeira arquiteta austríaca, Margarete Schütte-Lihotzky, que os desenvolveu baseados na acessibilidade e qualidade da habitação. Dentre eles vale citar a “cozinha de Frankfurt” (1927), para o qual se realizou uma análise minuciosa do trabalho doméstico visando racionaliza-lo, evitando o desperdício de tempo e espaço. No mais, ela trabalhou em um projeto de apartamentos para mulheres solteiras trabalhadoras na cidade de Frankfurt, mas que não chegou a ser construído em virtude da grande depressão europeia de 1929 (Ibid, p. 4). Como ela defendeu, "uma das maiores mudanças na habitação deve refletir o fato de que as mulheres em geral começaram a trabalhar. Isso requer abordagens completamente novas. Como arquitetos, é nosso dever pensar cuidadosamente sobre o que devemos levar em conta na construção de moradias para tornar a vida mais fácil para homens e mulheres e reduzir o estresse diário, como o fornecimento de espaços auxiliares para o bairro, serviços comunitários, etc.27 Outros projetos são o Metzleinstaler Hof (Figura 1) e o Karl-Marx-Hof (1926-1930), que também ofereciam cozinhas comuns e equipamentos para simplificar as tarefas cotidianas. Infelizmente o sonho de uma vida livre do trabalho doméstico chegou ao fim com a ascensão do nazismo ao poder no final dos anos 30. A Segunda Guerra interrompeu esse tipo de construção social: todas os serviços comuns foram suprimidos. (CORADIN, 2010 apud BAUER, 1995, p. 3). Viena retoma esses conceitos a partir de 1947, sempre se adaptando às exigências arquitetônicas da época, chegando até os dias atuais. Mas foi na década de 1990 que este tema ganhou força. Nesse contexto, também são bem conhecidos os conjuntos de habitação social austríacos Frauen-Werk-Stadt. A concepção desses conjuntos consiste no planejamento de uma planta com especial atenção aos requisitos do trabalho doméstico e familiar, um design destemido dos espaços interior e exterior, a participação dos inquilinos na fase de planejamento, a criação de diversas possibilidades de comunicação devido à infraestrutura e a possibilidade da própria iniciativa do inquilino, bem como a autogestão do inquilino. Além dos conjuntos habitacionais, o desenho dos parques e praças da cidade também foram questionados. Antes do planejamento a partir da perspectiva de gênero, grande parte deles abrigavam apenas esportes com os quais os meninos mais se identificavam, 26 La vivienda social y las urbanizaciones (en línea). Disponível em: h�p://www.wien.info/es/sightseeing/architecture-design/social-housing. Acesso em: outubro 2017. 27 Margarete Schü�e-Lihotzky sobre as razões pelas quais foi a primeira mulher a estudar arquitetura, em 1916.

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C O N T E X TO  diminuindo a quantidade de meninas acima de 12 anos nestes. Os espaços também eram muito grandes e generalizados, o que os tornavam pouco convidativos. Após a difusão dessa prática, passou-se a diversificar tanto as atividades destes parques, como também os espaços, criando setores mais bem definidos e menores, o que aumentou o uso e, portanto, a segurança de todos e todas que utilizam o espaço. Eva Kail, chefe do departamento de gênero de Viena, afirma que este tema começou a ganhar espaço com a exposição “Who owns public space? Women’s everyday life in the city” (A quem pertence o espaço público? A vida cotidiana das mulheres na cidade), que tratava de assuntos relacionados com os interesses das mulheres no contexto urbano da cidade. Depois, em 1992, foi fundada a Oficina das mulheres (Women’s Office); em 1998 se abriu o Departamento de gênero de Viena e sua Oficina de coordenação sob a liderança da urbanista Eva Kail. A existência desse departamento é de suma importância, e sua relevância radica do fato de ocupar uma posição relativamente alta hierarquicamente, sendo a cabeça dos departamentos técnicos. Evidente que se trata de outro contexto socioeconômico e político, mas não podemos deixar de tomar Viena como exemplo, pois representa as possibilidades de atuação e a força da participação feminina. Segundo Eva, não se conhece outra cidade onde acontece o mesmo28. Entre as atividades desenvolvidas pelo departamento de gênero podemos mencionar: Concepção e execução de projetos piloto; desenvolvimento de guias com recomendações de planejamento; representações importantes nos júris; trabalho de consultoria e assessoramento; investigações de fundamentos básico; promoção de uma rede de transmissão de conhecimento. Além disso, suas principais áreas de ação são: projetos habitacionais desenhados por mulheres; design de espaços de lazer levando em consideração critérios de gênero; espaços públicos seguros; planejamento do tráfego tendo em conta os critérios de gênero; prioridades de gênero no planejamento (Gender Mainstreaming). Vale mencionarmos também o coletivo de trabalho Col-lectiu punt 6, também de Viena, formado por quatro arquitetas e duas sociólogas, que tem como antecedentes diversos projetos, investigações, pesquisas, seminários e cursos relacionados à arquitetura e ao urbanismo sob uma visão com perspetiva de gênero. Trabalham visualizando as diferentes posições de poder e sua influencia no uso e na configuração dos espaços, tendo a sustentabilidade como critério básico de desenvolvimento, priorizando a participação dos que habitam os territórios e pondo em valor uma economia solidaria que prioriza a vida das pessoas. O grupo se constituiu na época em que se aprovava a lei 2/2004 de melhoria de bairros, áreas urbanas e vilas de Viena que requem uma atenção especial, conhecida como Lei de Bairros, onde pela primeira vez a nível legislativo, tratava-se explicitamente da igualdade género. A lei em um de seus pontos estabelece como um dos campos específicos de atuação “La equidad de género en el uso del espacio urbano y de los equipamientos” O que essas iniciativas demonstram é que pensar e construir espaços mais justos cabem completamente dentro da realidade. Um mundo onde as pessoas sejam felizes 28 A par�r dessa experiência de Viena, a ONU Habitat inicia o programa “Cidades mais Seguras”, que tem como principal obje�vo fortalecer autoridades locais e partes interessadas para auxiliar e oferecer segurança urbana para grupos vulneráveis em países em desenvolvimento. Em 1996, foram cinco planos pilotos em Quito, Nova Delhi, Cairo, Port Moresby e Kigali, nos quais procurou-se, entre outras ações, melhorar zonas de terminais, escolas e mercados, empoderar mulheres sobre direitos sociais e humanos e integrar a perspec�va de gênero na polí�ca e plano de desenvolvimento urbano.

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envolve o acesso a uma renda, uma casa para morar, um bairro que forneça todos os componentes necessários, uma cidade que possibilite ir e vir sem qualquer tipo de cerceamento. Ainda que pareçam aspectos "simples", falar nesses termos é falar em cidadania, é pensar o direito à cidade como sendo um direito maior e, sobretudo, um direito inalienável. Então estes exemplos de como as mulheres vêm construindo sua própria narrativa, sendo donas de sua própria luta, resistindo, subvertendo, revolucionando e, sobretudo, pensando além do óbvio, demonstram que construir espaços democráticos que mirem a justiça social está dentro do campo do possível. Não se trata de utopia, trata-se de reconcilar cidade e sociedade. Mas, por aqui, continua-se a pensar e projetar a cidade em pacotes monofuncionais, embora se tenham mudado as fachadas e as razões por meio das quais ela nos é apresentada. Por um lado, temos cenografias de casas unifamiliares com jardim, atividades de lazer e diversão para todos – como vemos nas propagandas de condomínios, por exemplo -, e, por outro, evita-se o discurso de classe – logo, de reforma social – que havia por trás das propostas da primeira metade do século XX. Rodovias e casas geminadas; falsas ampliações e habitações distantes, sem instalações educacionais, sanitárias, culturais nem comércio; áreas de pavilhões industriais com terrenos ermos intermediários – esta é a paisagem da cidade, as vezes chamada de cidade difusa29 para diminuir o impacto negativo que se causaria se fosse chamada não cidade ou subúrbio sem atributos, além do modelo não sustentável de crescimento que depende do veiculo privado e das energias não renováveis e poluidoras (idem). Essa cidade tardo-racionalista não deixa de ser uma repetição pervertida da cidade moderna, que ainda podia ser entendida sob um ideal de igualdade universal para todas as classes, embora sua realização tenha estado longe disso. A cidade por partes, das funções segregadas, degenerou em uma cidade triplamente segregada: por funções, classe e gênero. Daí a relevância de trazer essas discussões para a arquitetura e o urbanismo, que consolidam a reflexão e podem colaborar para transformar não só a condição feminina, mas sobretudo a condição humana na sociedade. Nessa conjuntura, conhecer as condições de vida da mulher nas cidades brasileiras tanto na esfera privada quanto na pública, em casa e em sociedade, reconhecendo as práticas que a discriminam em função do gênero, origem étnico-racial, geracional e de classe, é fundamental para fomentar o debate de gênero e subsidiar a elaboração e o aperfeiçoamento de projetos e políticas públicas.

o desafio consiste em construir um espaço sem gênero nem ordem patriarcal; portanto, um espaço sem hierarquias, horizontal, um espaço que evidencie as diferenças, e não as desigualdades, um espaço de todos e de todas em igualdade de valoração de olhares, saberes e experiências. ■■MONTANER E MUXÍ, 2014, p.198

29 O paradigma da cidade dispersa retrata uma realidade que não se restringe ao contexto brasileiro ou la�no-americano; é global. Segundo estudo do New Climate Economy de 2015 cidades dispersas custam à economia americana 1 trilhão por ano. A análise indica que a dispersão garante muitos bene�cios (aumenta a renda per capita de terreno urbanizado e o desenvolvimento de infraestrutura por exemplo), direcionados às pessoas que lá vivem, mas gera muitos custos ao restante da sociedade (maiores distancias a serem percorridas, necessidade de mais quilômetros de infraestruturas para saneamento, iluminação, etc.).

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AProXiMAção

V

imos que a urbanização no Brasil tecido urbano, gerando descontinuidades trouxe diversos problemas e territoriais, vazios urbanos entre o teci-

acentuou tantos outros. O êxodo rural a do urbano constituído e as novas áreas partir da década de 1930 reforçado pelo parceladas para uso residencial de difeprocesso de industrialização acelerada rentes segmentos socioeconômicos, a partir de 1960, cujo pico foi na década reforçando as práticas especulativas na de 80, transformou a realidade brasilei- produção do espaço urbano. ra de características rurais para um país

Em Presidente Prudente-SP, cidade

essencialmente urbano. A concentração média do oeste paulista criada no início de pessoas em áreas urbanas saltou de do séc XX, a população cresceu expo25% em 1940 para mais de 75% no final nencialmente, 196,6% entre 1960 e 1988, de 2000, o que requeria da urbanização ampliando-se para quase 290% a área grandes infraestruturas e investimentos urbana loteada entre 1960 e 1985 (Sposito, estatais, mas como o planejamento, envol- 1990). A expansão descontínua do terrivendo as práticas arquitetônicas e urba- tório já se verifi cava na década de 70 nísticas, se voltaram aos interesses do (conforme figura ao lado) com a “grande mercado, pouco foi feito em relação às extensão da área urbana; implantação de necessidades populares.

áreas urbanas em descontinuo ao teci-

A infraestrutura não acompanhou as do já constituído; aumento do número novas dinâmicas urbanas, e ainda hoje de transações comerciais com terrenos os centros urbanos seguem em processo sem edificações, refletindo ampliação de de crescimento, e o papel das cidades de comercialização de terras com finalidade propiciar pleno acesso e qualidade de vida de investimento; crescimento demográfico continuam igualmente ou mais desvdo. proporcionalmente inferior ao territorial; Uma nova realidade urbana se configu- surgimento de conjuntos habitacionais rou, afetada profundamente pelo incha- nas áreas periféricas da cidade” (SPOSITO, ço populacional e os problemas urbanos 1983, p.79). cada vez mais extenuantes: a questão

Esses fenômenos vêm tomando

habitacional, carência de saneamento proporções importantes nas cidades básico, deficiência do transporte públi- brasileiras, especialmente nas de médio co, desemprego e muitos outros (BASSUL, porte, ainda que com diferenças de inten2002; SILVA, 2003).

sidade e conformação. Mas conforme as

Além disso, as cidades ganham outras autoras, não se vê os aspectos da cidade nuances na contemporaneidade, a partir difusa nas cidades brasileiras, sobretudo de novos modos de vida calcados na inse- nas médias como Presidente Prudente. gurança e na fragmentação socioespa- Elas falam em termos de “urbanização cial, tais como o “pipocar” de residenciais difusa” pois trata-se de um processo em fechados nas periferias, a eclosão dos curso que envolve múltiplas dimensões, shopping centers, a disparidade no acesso vinculado aos modos de produção, formaa infraestrutura, serviços e equipamentos ções sociais e condições econômicas de [...]. Por sua vez, a exclusão social (enten- dada sociedade. Ao se referirem à urbanidida como sendo rupturas de indivíduos zação como difusa, portanto, vão além do com a sociedade) segue se manifestando espraiamento do tecido urbano e engloatravés de processos de marginalização bam outras dinâmicas importantes para dinâmicos e multidimensionais (COSTA, entender o que constitui este processo. 1998).

Não cabe aqui uma análise minuciosa

Nesse contexto, Góes e Sposito (2013, sobre as diferenças entre cidade e urbap.56) falam em termos de insegurança nização difusa, assim como outras partiurbana e fragmentação socioespacial, cularidades nesse sentido, mas o que nos e argumentam que há três décadas vêm convém considerar é que essas dinâmiocorrendo a tendência de expansão do cas são notáveis em Presidente Prudente.

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figura expansão territorial urbano de presidente prudente fonte extraído de Góes e Sposito, 2013 / modificado pela autora

19 5 4

19 7 9

POPULAÇÃO população estimada [2017] 225.271 pessoas população do último censo [2010] 207.610 pessoas densidade demográfica [2010] 368,89 hab/km² TRABALHO E RENDIMENTO salário médio mensal dos trabalhadores formais [2015] 2,6 salários mínimos população ocupada [2015] 35,9% percentual da população com rendimento mensal per capita de até 1/2 salário mínimo [2010] 29,8% TERRITÓRIO E AMBIENTE esgotamento sanitário adequado [2010] 98,1% arborização de vias públicas [2010] 95,9% urbanização de vias públicas [2010] 34,6% * * domicílios urbanos em vias públicas com urbanização adequada (presença de bueiro, calçada, pavimentação e meio-fio).

19 96

2 010

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A P R OX I M A Ç Ã O  A fragmentação inclui tensão entre forças resultando na expulsão de pessoas do de expansão e aproximação, gerando tecido consolidado e referencial da urbe, células urbanas agrupadas em “ilhas”, a “cidade formal”1. variando em tamanho e localização, defi-

O espraiamento da cidade é conside-

nindo cheios e vazios que dilaceram a rado eficaz somente quando o território cidade e produzem excessos em seu teci- está abastecido por uma boa infraestrudo, desequilibrando uma possível harmo- tura, aliado a serviços públicos eficientes, nia do todo.

além do adensamento nas adjacências do

A dispersão de uma cidade parece tecido consolidado entre outros fatores. não ter barreiras e, como coloca Silveira, Como não é o nosso caso, a dispersão as forças predominantes são de disten- torna-se uma dinâmica ineficaz já que “a são, existindo conflitos entre condições rede pouco densa de núcleos de assentade acesso e a ocupação e o uso do solo mento, a pouca eficácia dos transportes urbano, processo agravado pela demanda coletivos e o acesso não completamente crescente de mobilidade e o uso desco- generalizado ao automóvel [...] ainda que medido do automóvel privado. Parece os interesses fundiários e imobiliários a que a mancha urbana se movimenta num reforcem” (GÓES; SPOSITO, 2013, p.83). deslocamento centrífugo, “para fora”, 1 É certo que hoje esse padrão de crescimento periférico ganha outras nuances; antes ligadas às classes sociais menos abastadas, essas áreas vêm recebendo em massa os novos loteamentos populares e os condomínios fechados de luxo, traços de um novo desenho urbano que acentua e alarga a segregação tanto dos ricos quanto mais dos pobres.

perímetro urbano-rural referente à des-urbanização

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

Nesse modelo de cidade com crescimen- A expansão do tecido urbano foi mais to avantajado e espraiado determina sua contínua durante as duas primeiras décaexpansão dentro de um princípio de “orga- das do município, mas desde o início já nização desequilibrado”, havendo o predo- estava marcada pela divisão socioespacial mínio do interesse do capital sobre os em função da linha férrea. A praticidade demais, e recebe críticas por ser consi- de deslocamento possibilitada pelo autoderado indesejável e nocivo à qualidade móvel privado colaborou para a ampliade vida na cidade. Conforme as autoras ção das aglomerações urbanas e para (p.49), citando Ruela (1997, p.3):

É a cidade difusa que tem tudo e muito, porém disperso, separado funcionalmente (a universidade, a indústria, a residência, as áreas comerciais, os escritórios etc. se separam fisicamente) e segregado socialmente, unindo as partes através de uma densa rede de estradas e vias segregadas de transporte privado.

o aumento das distâncias, mas sistema viário da cidade não se alterou com a evolução da malha urbana e as distâncias que a priori deveriam ser encurtadas acabaram ainda maiores com a expansão desordenada do território. Como grande parte dos conjuntos habitacionais e bairros de baixa renda foram implantados na franja urbana, assim como muitos condomínios fechados de média e alta rendas, os problemas de mobilidade foram reforçados - fatos que demonstram para quem a cidade é pensada, pois, mesmo com “escassez” de espaço, os investimentos ainda se concentram no aumento da

perímetro urbano referente à densificação

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A P R OX I M A Ç Ã O  infraestrutura viária para incentivar o uso

O quadrante Sul-Sudoeste da cida-

de transportes privados: quanto mais vias de concentra a maior parte dos residensão construídas, mais veículos entram em ciais fechados. Góes e Sposito dizem circulação, aprofundando os problemas que o Parque do Povo, ao longo de um em vez de solucioná-los (BRASIL, 2007; fundo de vale, explica essa concentraVASCONCELLOS, 2012).

ção. Isso porque essa área passou pelo

O resultado foi a dispersão da malha que chamam de “urbanização”2; essa era urbana, o uso massivo do automóvel uma área desvalorizada tanto pelo baixo privado e a inadequação do sistema de grau de acessibilidade, já que o córrego transporte coletivo, além do esvaziamen- representava uma barreira para a inteto dos espaços públicos, gradativamente gração dessa área, quanto pela degradescaracterizados .

dação ambiental proveniente do despejo

Guimarães (2005, et al) vai mais de esgotos. Uma outra informação intealém nesta discussão quando destaca ressante destacada pelas autoras nesse o problema da pobreza urbana no Brasil sentido, é o fato de 20 dos 13 condomínios e a necessidade de se compreender os estarem situados no setor Sul-Sudoeste, novos significados da vida urbana e dos dos quais seis pertencem à mesma incorprocessos geradores da pobreza e exclu- poradora. são social. Nesse contexto, é típico das

Fica evidente, portanto, que a expan-

cidades brasileiras a existência de locais são do tecido urbano de Presidente privilegiados por infraestrutura comple- Prudente muito tem a ver com interesta, geralmente o “centro” consolidado, ses econômicos de natureza especulatie uma “periferia” permeada por condi- va de produção do espaço urbano. Essa ções precárias de moradia e infraestru- constatação, embora não traga nenhuma tura (ALVES, 2007).

novidade, é imprescindível para nos apro-

Em Prudente-SP, há apenas quatro ximarmos da realidade das mulheres, e vias principais, estreitas e inadequadas, para entendermos o porquê de os probleque alimentam toda a cidade e conectam mas urbanos serem ainda mais determios bairros periféricos à área central, confi- nantes para elas. gurando o quadrilátero e adjacências onde

Lembrando as discussões dos capí-

a maior parte dos serviços de lazer, cultu- tulos anteriores, percebemos como a ra saúde e comércios está concentrada.

urbanização ao longo da história assu-

Consequentemente, há descontinuida- miu a função de ampliar a segmentação des territoriais notáveis no arco periférico do espaço, físico e social, e da seletividade que se estende de Norte à Leste e Sul da social em seu uso e apropriação. Vemos cidade. Na direção Leste se nota menos também que a produção do espaço urbadescontinuidades porque o relevo dificul- no, ainda que mais ampla que a produta o crescimento, a circulação automotiva ção de bens e serviços e base para esta, não é favorecida pelo plano urbano, e há “tem se realizado a partir da concorrêntambém a ferrovia, que separa essa área cia que se estabelece no mercado, gerando restante da cidade, além da ocupação do conflitos entre indivíduos, grupos e residencial por parte da população mais classes, tanto quanto a divisão social do pobre, tornando a área pouco atrativa no trabalho” (LEFEBVRE, 1964 apud GÓES; que concerne os empreendimentos urba- SPOSITO, 2013, p.99). nos (GÓES; SPOSITO, 2013, p.79).

O atendimento pleno das necessidades sociais e econômicas da população requer

2 Segundo as autoras, um grande inves�mento público realizado com recursos ob�dos, através de projeto aprovado junto ao Governo Federal, no âmbito do Programa Comunidade Acelerada de Recuperação Urbana (CURA), com recursos provenientes do Sistema Financeiro Habitacional (SFH).

92


D O C O R P O A O ES PA Ç O

mobilidade, e a necessidade de locomoção das pessoas depende de como a cidade está estruturada e organizada, de como os espaços se conectam às atividades desenvolvidas. Mas nesse tecido fragmentado e marcado por problemas urbanos pungentes, as contradições entre as duas esferas, organizacional e física, e também a cisão entre trabalho reprodutivo e produ-

Quantos carros há por moradia? Como se conjuga ter filhos e trabalhar, fazer as tarefas domésticas e trabalhar na esfera produtiva? Em suma, que vida é possível nesse mosaico infinito de fragmentos desconexos?

tivo, atingem primeiramente as parcelas Assim como escreveu César Naselli mais pobres e vulneráveis da população, (1992)3, essa fragmentação, desunião e em que a circulação e a acessibilidade incoordenação do meio ambiente é totalaos espaços são intensamente reduzi- mente negativa. Viver entre fragmentos e das (DUARTE; LIBARDI; SÁNCHEZ, 2008). em um lugar que dissolve suas articulaSe essa situação é negativa para toda ções estruturais é, precisamente, viver no a população, dizemos que é ainda mais espaço da alienação, quando aquilo que para as mulheres porque elas transitam seria necessário é “retecer a trama das entre produtivo e reprodutivo, público e relações humanas e sociais”. privado, e além da cidade não conjugar esses espaços, elas carregam consigo toda a problemática construída em torno de seu corpo e de sua presença na cidade, sofrendo diariamente com a dificuldade de acesso seja pelas grandes distâncias seja pela ineficácia do transporte público e também pela constante sensação de insegurança. Conforme pontuamos no decorrer do trabalho, a desigualdade entre os gêneros fere profundamente a autonomia feminina. As mulheres vivenciam a cidade a

linha férrea

partir dos papeis e responsabilidades que foram construídos em torno de seu corpo, através do comportamento esperado pelo padrão de gênero, estritamente vincula-

quadrilátero central

do com o espaço privado e as atividades reprodutivas da sociedade. E mesmo que hoje estejamos no espaço público, não há apropriação da cidade como sendo um espaço próprio; as mulheres sentem que

parque do povo

não são parte da cidade, que não perten-

vias principais

cem ao espaço público e que este espaço não lhe serve. E, de fato, a cidade impele este sentimento. Diante de tudo isso, emergem várias questões:

Como os planejadores urbanos imaginam ser a vida desses trabalhadores? 3  Naselli, César. De cuidades, formas y paisajes. Assunção, Arquna Ediciones, 1992.

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A P R OX I M A Ç Ã O

C

onsiderando todo este debate, sim, potencializar as agressões físicas e optamos por nos aproximar de simbólicas bem como a sensação de inse-

alguns espaços públicos importantes em gurança, especialmente durante a noite – Presidente Prudente, próximos ao centro como se fosse este um horário restrito aos consolidado, a fim de exemplificar situa- homens na cidade, pois grande parte das ções de vulnerabilidade e potencialidade mulheres simplesmente evitam a rua por em relação à vivência da mulher, indican- medo, e mesmo quando precisam estar do ao mesmo tempo formas de interven- na rua para ir ao trabalho ou ao estudo, o ção que visem a construção de espaços fazem inseguras. Assim, partindo de um mais justos.

acúmulo teórico, o Manual propõe uma

Além de todo o conteúdo, levamos em ferramenta de análise prática do espaconta a metodologia construída e apre- ço urbano visando sempre a construção sentada pelo livro “Manual de Análisis coletiva - tanto entre profissionais, quanto Urbano. Gênero y Vida”. Este livro é de entre cidadãs e cidadãos e o poder públiiniciativa do coletivo Hiria Kolektiboa, co - de cidades sem hierarquias nocivas formado por arquitetas e urbanistas da e práticas excludentes. O fundamento é, Espanha, e é resultado do projeto “Mapa sem dúvida, ressaltar a importância de de La Ciudad Prohibida para las Mujeres” garantir a participação das mulheres na . O “Mapa de La Ciudad Prohibida” basi- construção das análises e dos projetos,

1

camente espacializava e visibilizava as suprindo, de certa forma, a necessidade da opiniões femininas sobre os lugares de representatividade no processo de pensar conflito ou inacessíveis na cidade. Esse o urbano. São determinados quatro eixos mapa vem sendo utilizado como ferra- principais para a análise urbana com foco menta para trabalhar temas como a de gênero: segurança, a acessibilidade e o mode- 1. Equipamentos para a vida cotidiana lo urbano em grupos de debate e traba- 2. transporte lho com mulheres de diversos municípios 3. in/segurança espanhóis. O manual enfatiza o fato de a 4. Presença simbólica da mulher na cidade

[in]segurança na cidade ser um fator que As percepções e subsequentes conclutoca a todas e todos que vivem nela, mas sões sobre estes espaços, são balizadas as mulheres são de fato as mais afeta- por elementos tais como reconhecer facildas, pois não somente suas experiên- mente o entorno; ver e ser vista; ouvir e ser

cias pessoais as atingem, mas também ouvida; ter sempre visível uma saída ou as experiências das pessoas relacionadas lugar para pedir ajuda; limpeza e cuida-

a elas que ficam sob sua responsabilida- do do entorno; atuação coletiva no espade (filhos, pessoas de idade, doentes e os ço público; iluminação efi ciente, além

próprios companheiros). Por isso subli- dos tipos e horários de uso, as possibinhamos que uma cidade pensada a partir lidades de transporte e a movimentação da realidade da mulher tende a atenuar os nos espaços, de modo a pontuar probleespaços de vulnerabilidade para todos os mas e potencialidades no que se refeoutros grupos da sociedade.

re à vivência da mulher. Sendo que para

O pressuposto da metodologia é de a espacialização dos conflitos devemos que o espaço não é neutro e, ainda, que observar fatores como os usos, os horá-

fatores do ordenamento urbano podem, rios de uso e tipos de atividades realizadas, fluxos, transporte público, lugares de 1 O livro foi publicado em 1996 por um grupo de mulheres, no qual a par�r de oficinas par�cipa�vas se construiu o debate sobre as condições necessárias para uma cidade adequada à perspec�va de gênero. No contexto espanhol, os mapas foram confeccionados a par�r de oficinas par�cipa�vas para que as mulheres se expressassem, e também para dá-las embasamento sobre questões urbanas básicas, essencial para que pudessem comunicar toda a informação apreendida por elas aos responsáveis técnicos do governo municipal que par�cipam do projeto.

94 94


permanência , vegetação e controle visual, espaço público. Paralelamente, abordarua cheia, rua segura, entre outros. Estes mos mulheres usuárias espaços buscanelementos foram analisados por fichas do captar os processos que condicionam construídas para essa metodologia, mas a vivência delas nestes lugares, e como não pontuaremos todos esses elementos elas gostariam que fossem, sempre consiindividualmente, pois já debatemos estas derando também o contexto de vida de questões direta ou indiretamente.

cada uma (bairro, trabalho, renda, famí-

Para as análises foram realizadas lia, educação etc), que é fundamental para visitas a campo em diferentes horários, qualquer aproximação. As entrevistas vêm a partir das quais compomos uma ficha para endossar as discussões e percepcom dados gerais de usos e qualida- ções. Um roteiro semiestruturado guiou des que nos interessam, que nos darão as conversas, que foram gravadas para como resultado uma melhor compreen- possibilitar a análise e a subsequente são dos entornos urbanos. Esta análise compreensão da totalidade destes ‘fragqualitativa é uma alternativa ao proces- mentos’, mesmo que efêmera. Priorizamos so participativo para obter dados confiá- as mulheres que estavam nos pontos de vel sobre o cotidiano do espaço público. ônibus a espera do transporte coletivo, Junto conteúdos anteriores os resultados pois entendemos que são as mais afetasão um documento valiosos para comple- das pelos problemas urbanos, e qualquer mentar a informação com que suposto intervenção que leve em conta as dificulpessoal técnico contaria na hora de inter- dades e necessidades dessas mulheres vir ou projetar um entorno urbano, já que estará incluindo a todos os grupos margiconta com dados qualitativos e de uso do nalizados.

locais de interesse praça 9 de julho calçadão quadrilátero central

praça da bandeira terminal urbano praça dos pioneiros


A P R OX I M A Ç Ã O  Além disso, como a metodologia com 39,2%, sendo que dessa proporção 89% perspectiva de gênero pode ser aplica- é responsável pelo lar sem a presença de das em diferentes análises, seja lá quais cônjuges, o que significa que elas arcam forem os objetivos, os apontamentos que sozinhas com as despesas do lar e da fazemos aqui também são válidos para família. Elas estão se tornando crescenos espaços dos bairros dessas mulheres, temente chefes de família, mas são princiassim como para a análise e interven- palmente chefes das famílias mais pobres. ção do bairro como um todo. Um bairro

O alarmante é que 80% dessas mulhe-

quando é bem estruturado fornece plenas res chefes de família estão na faixa entre condições de desenvolver social e econo- ½ e 2 salários mínimos de rendimento per micamente, de morar bem, ter um empre- capita, sendo que o rendimento médio de go, lazer, cultura e serviços necessários trabalho para elas é quase 40% menor que para uma vida digna, e por consequência o dos homens2 - e mesmo no trabalho a cidade inteira se torna acessível para formal, elas estão vinculadas aos empretodas as pessoas.

N

gos desvalorizados. Além disso, a propor-

ção de mulheres sem rendimento é quase os últimos anos, a mulher tem saído o dobro, 27,5% face aos 13,5% dos homens de casa para trabalhar, com maior - não à toa, estudiosas/os têm denomina-

frequência para ajudar na renda familiar do este processo como feminização da que fica cada vez menor (ALVES, 2007). pobreza. Essa situação denuncia a condi-

Por outro lado, elas continuam sendo as ção de vulnerabilidade dessas mulheresponsáveis pelas atividades de manu- res, evidenciando o grau de segregação

tenção do lar e de cuidado aos terceiros , social3 em que vivem, conformadas por um implicando em duplas e até triplas jorna- contexto em que estão à mercê da margidas de trabalho. Alves (2007) se debruça nalidade, em virtude da pouca ou nenhusobre a condição das mulheres trabalha- ma renda - fator que afeta diretamente o

doras em áreas de exclusão em Presidente acesso a moradia, educação, alimentação, Prudente, e reitera que há a correspondên- saúde, cultura e tantas outros aspectos cia entre a situação de mulheres chefes de necessários para uma vida digna. família de baixa renda com tais procesA grande distância entre os bairros sos geradores de pobreza. Para chegar periféricos e o centro consolidado da cidaa essa conclusão ela analisou dois seto- de prejudicam totalmente a locomoção,

res localizados nas zonas nortes e leste visto que geralmente é feita de ônibus, da cidade, baseada no mapa de exclusão implicando em mais gastos e mais tempo social, realizado pelo Cento de Estudos e de viagem. O transporte coletivo, fundade Mapeamento da Exclusão Social para mental para moradores das áreas perifé-

Políticas Públicas (CEMESPP), de modo ricas e trabalhadores, ainda mais para as a captar a visão dessas mulheres chefes mulheres que são as maiores usuárias, é de famílias carentes.

de concessão privada e se dá por meio Em Presidente Prudente as famílias de duas empresas somente 4. As linhas chefiadas por mulheres representam atendem praticamente toda a cidade, mas 2 Para eles o rendimento médio é de R$ 1880,40 e para elas R$ 1219,98. Vale enfa�zar que essa desigualdade é ainda maior na interpolação entre gênero e raça. As mulheres negras são as que mais trabalham e menos recebem. 3 Levando em conta o pensamento de Miño, em que se entende a segregação como a diferenciação social expressa no espaço urbano em áreas que concentram majoritariamente um segmento específico da população em detrimento dos outros (p.47). 4 As empresas Transportes Cole�vo Presidente Prudente (TCPP) e a PrudenExpress, ao preço de R$3,60. Um valor de di�cil acesso para a população pobre, sem mencionar a falta de qualidade dos transportes. E ainda há a possibilidade de uma linha ser re�rada, sobrecarregando ainda mais o sistema.

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

de forma muito desorganizada, ineficien- isso resvala também sobre a questão da te e cara.

função social da propriedade.

Há apenas um terminal urbano conso- O perfil das mulheres que entrevistamos, lidado, que está na área central da cidade; ainda que poucas, e as percepções do não há eixos de linha rápida para distri- trabalho de campo corroboram todos buir melhor os fluxos; as linhas envolvem estes aspectos que discorremos ao longo grandes voltas pelos bairros, aumentan- do capitulo. Nossa aproximação confirdo o tempo de viagem, sendo que alguns mou que as mulheres pouco vivenciam bairros não são contemplados; algumas a cidade, e quando o fazem é em função linhas passam pelos mesmos pontos e do trabalho e, principalmente, das atividatodas passam por uma ou mais das quatro des de manutenção do lar, o que delimita avenidas principais, tornando a mobilida- profundamente suas noções de espaço de e o acesso ainda mais difíceis.

público, lazer e cultura. Quando se pede

Aqui o agravante da violência, que é para que pensem em alguma infraestrupolissêmica, demarca fortemente a vivên- tura elas pensam não somente nelas, mas cia dessas mulheres, e vale lembrar, que primeiramente nos filhos, nas crianças e ela está presente tanto nos espaços públi- nos jovens, que aliás vem em primeiro cos quanto dentro da casa. O medo é, sem plano pois uma ida para o parque ou para dúvida, determinante no modo como expe- a 'praça transforma-se em um desdobrarimentamos ou não a cidade; e isso ocorre mento de sua vida doméstica, como por em todos os modos de locomoção, seja a exemplo, cuidar dos filhos. pé, de ônibus, bicicleta ou carro. É extre- O zoneamento da cidade, revisado pela mamente "comum", e visto como natural, última vez em 2008, corrobora com o mudarmos nossos trajetos e horários por processo de segregação socioespacial, conta da sensação de vulnerabilidade o uma vez que pensa a divisão dos espatempo todo, pois cada esquina, cada beco, ços de forma segmentada, distribuindo as praça vazia e ruas escuras parecem repre- áreas residenciais, comerciais, industriais sentar um risco para nós.

etc. de modo desconectado, sem levar em

Terezinha Gonzaga (2004, p.39) ressal- consideração a necessidade de proximita que na luta contra a violência, é notável dade e integração necessárias ao desena preocupação das mulheres com áreas rolar do cotidiano. abandonas ou subutilizadas, vazias, pois

Juntamente estes fatores tais como a

representam risco à sua segurança. Ela domesticidade, a violência, e a desigualdefende por exemplo que os dados sobre dade generalizada, permanece o sentios locais onde acontecem estupros pode- mento de exclusão tanto social como riam servir como base ao poder público espacial. Sobretudo porque a “imagem” para identificar esses espaços e prover que paira sobre estas áreas mais distantes infraestrutura, tais como iluminação, é de pobreza, carência e violência, criando, transporte público e mesmo o muramen- não obstante, certa “fobia” social mesmo to de terrenos. Como vimos com Santoro entre as moradoras e moradores, ainda (2008), "se extrapolarmos para o conceito mais para quem é de “fora”. de função social da propriedade, poderia

É dentro dessa realidade que o concei-

dizer que representam um grupo dos mais to de lugar possibilita perceber que a idensensíveis à sua aplicação". As mulheres tificação dessas mulheres se dá dentro de são mais sensíveis aos lugares abando- suas próprias casas, tanto que quando nados, à necessidade de lazer para seus pensam em melhorias para a vida, granfilhos, ao transporte com qualidade e em de parte delas gostaria de melhorar suas quantidade suficiente para garantir seu condições de moradia. Esse mesmo recoespaço dentro do espaço coletivo. E tudo nhecimento e apropriação do espaço, no entanto, não são visíveis em relação aos

97


A P R OX I M A Ç Ã O  espaços públicos, sendo que a maioria meras mães e donas de casa), mas são das mulheres afirma ir ao centro da cidade poucas as possibilidades de superar essa (apenas “cidade” para elas”) poucas vezes hierarquia. ao mês (ALVES, 2007) - aqui, fica nítido o

Sem a pretensão de esgotarmos

caráter excludente da produção do espaço toda sua representação, essas quesurbano em Presidente Prudente.

tões, mesmo que fragmentárias, vêm para

Vale enfatizar que seria reducionis- nos situar, nos contextualizar dentro da ta enxergar a mulher como agente que realidade de vida mulheres para então pressiona somente pela implementação compreendermos os processos urbanos de infraestrutura, equipamentos e servi- que condicionam o cotidiano dessa popuços. Essas questões fazem parte de algo lação. Estes aspectos principais no que maior, "da exigibilidade do cumprimento tange às questões de gênero é relevando direito à cidade e do direito à moradia, te porque partimos do pressuposto de entendido em um sentido mais amplo" que essas identidades são construídas (SANTORO, 2008, p.10).

no espaço-tempo, através de um contex-

O espaço publico como possibilidade to histórico, social, econômico e político de exercer a cidadania é e parte funda- específico, e essa condição desdobramental do direito a cidade. Mas mulheres -se nas formas como essas mulheres ao serem questionadas sobre a sua forma acessam, percebem e são recebidas nos de lazer, não conseguem ir muito além espaços. da preocupação com o lazer de terceiros, antes mesmo do seu. Os bairros onde moram são restringidos à dimensão de lugar vivenciado nas idas para o mercado, a igreja ou para os postos públicos de saúde. Também as entrevistadas por Alves (2007, p.157) demonstram o mesmo “padrão”: “...A igreja é meu divertimento! Na igreja eu vou quando tem novena na católica a Nª Senhora Aparecida lá em baixo, na rua Trabanco, eu vou na missa normalmente no domingo e na quinta...” “...Eu fico em casa o dia inteiro fazendo os serviços de casa... vou na casa de um filho que tem uma casinha lá em cima, que ele é deficiente (...) vou na igreja católica do bairro perto do Postinho. (...) A saúde, eu vou no postinho daqui, nesse ponto é muito bom, porque quem faz a vila também é o povo, né... Importante lembrar também que todo este contexto está inserido em uma sociedade marcada pela ideologia patriarcalista, que mesmo tendo perdido força pelos avanços das conquistas femininas, ainda hoje determina o comportamento de muitas mulheres, principalmente as mais velhas. Muitas percebem a realidade, e reconhecem as relações hierárquicas entre os gêneros (que inferioriza geralmente a condição das mulheres a

98

isso significa buscar compreender o que envolve o mundo de uma mulher chefe de família, moradora de bairro excluído, pobre e, especialmente, pertencente a uma sociedade capitalista e essencialmente patriarcalista. Soma-se a sensação de insegurança constante, visível em praticamente todas as mulheres, a precariedade dos espaços e o fato de a cidade não facilitar a conjugação de diferentes atividades, e o resultado é uma mobilidade e acessibilidade totalmente fragilizadas. Falta a implementação de serviços básicos nos bairros, mercados acessíveis, farmácias, escolas e creches bem como serviços sociais e judiciais, dentre outros, para que as mulheres não precisem se deslocar por grandes distâncias, dispendendo muito do pouco tempo e dinheiro que têm. Mesmo em bairros com mais componentes e espaços públicos, a apropriação do espaço por essas mulheres se dá especialmente no ambiente domiciliar, que para elas é onde mais se sentem seguras e gostam de estar, ainda que muitas vezes


D O C O R P O A O ES PA Ç O

para limpar e cuidar, limitando a apropria- Elas andam a pé e utilizam o transporte ção do bairro e da cidade.

O perfil das mulheres que entrevis- da cidade é dificultosa mesmo para as que tamos, ainda que poucas, e as percep- moram mais próximas; até porque todas çoes do trabalho de campo corroboram as nossas entrevistadas encontram-se em todos estes aspectos que discorremos áreas de média exclusão social. ao longo do capitulo. 3 de 4 entrevista-

bairros/ entrevistadas

péblico, sendo que a relação com o centro

Nossa aproximação confi rmou que

das sao chefes de familia com rendimen- elas pouco vivenciam a cidade, e quando to medio de R$1600,00 e todas trabalham o fazem é em função do trabalho e, princina área reprodutiva (limpeza, cuidado, palmente, das atividades de manutenção

1

parque castelo branco jéssica

2

vila itatiaia gislaine

3

vila líder rosangela

4

residencial morte carlo ta t i a n e local de trabalho

etc.). Metade delas arca com os gastos do lar, o que delimita profundamente suas da familia sozinhas, sem a presença de noções de espaço público, lazer e cultucônjuges. Ainda quando dividem a casa, ra. Quando se pede para que pensem em são as maiores responsáveis pelas ativi- alguma melhoria ou infraestrutura elas dades domésticas. Apenas uma afirmou pensam não somente nelas, mas primeireceber ajuda na manutenção da casa. ramente nos filhos, nas crianças e nos

1

2 3

4

99

grau de exclusão social inclusão baixa exclusão média exclusão alta exclusão


A P R OX I M A Ç Ã O  jovens, que aliás vem em primeiro plano pois uma ida para o parque ou para a praça

L

evando tudo isso em conta, e tendo em mente a importância do espaço públi-

transforma-se em um desdobramento co para o exercício da cidadania, a seguir de sua vida doméstica, como por exem- trazemos as análises sobre os espaços plo, cuidar dos filhos. Seus bairros são públicos com perspectiva de gênero. Esta precários, e mesmo os que possuem mais parte trata-se de um breve estudo urbano equipamentos não possibilitam todos os técnico-qualitativo a partir da perspectiva componentes necessários que, conforme de gênero e uso cotidiano do espaço públiCoradin (2010), devem estar num raio de co. Qualitativo pela capacidade de extrair no máximo 20 minutos a pé. Além disso, dados dos modos de uso e qualidade do todas as mulheres relataram que se sentem espaço público, dados que complemeninseguras, e evitam determinados lugares tam os dados técnicos de características e horários.

formais. A valoração do desenvolvimento

De modo geral, para que a cidade da vida em cada espaço segundo seu uso e corresponda com seu ideal de possibili- suas usuárias e usuários, nos da um matetar o pleno desenvolvimento da popula- rial que o pessoal técnico normalmente não ção, o planejamento urbano, assim como maneja e que só se pode conseguir “obseras demais disciplinas da arquitetura e do vando a rua”. E técnico, porque só um olhar urbanismo, precisam considerar a reali- próximo da matéria urbanística, como a de dade e o cotidiano das pessoas, priori- um profissional da arquitetura e do urbazando a participação cidadã diante dos nismo, saberia interpretar a conjunção de excessos de um urbanismo autoritário e toda esta informação para ser revertida em desumanizado imposto de cima para baixo propostas para trabalhar a cidade e seus pelos tecnicistas. A cidade necessitava espaços coletivos, para transformá-los de densidade e uma diversidade de usos em lugares para a cidadania. intrincada, que se sustentem e se apoiem uns nos outros, tanto econômica quanto socialmente - Jane Jacobs fala disso desde os anos 60! Precisamos resgatar as ricas preexistências da cidade multifuncional, compacta e densa, em que a rua, o bairro e a comunidade são vitais na cultura urbana. Quadras não tão extensas, movimento constante, “olhos” para as ruas, usos mistos, densidade equilibrada, proteção do patrimônio arquitetônico e urbano, prioridade dos pedestres, cuidado ao projeto do espaço público… fatores que Jacobs defendia em prol da vida em comunidade, sustentando que são a cura da insegurança e da violência. Ao contrário do que planejou Le Corbusier e o urbanismo moderno, a rua não é mero vazio para a mobilidade, e se acaba por privilegiar o automóvel em detrimento do pedestre, ela morre e inicia-se o fim da cidade.

100

Cabe enfatizar que a perspectiva de gênero é mais do que um olhar que vai trabalhar a desigualdade em termos quantitativos somente. Pensar efetivamente a desigualdade de gênero no espaço vai muito além de escrever diretrizes ou princípios, ou então determinar onde estarão os equipamentos e serviços, mas envolve acima de tudo entender que o olhar das mulheres sobre o espaço é diferente e é mais sensível diante das fraturas sociais.


D O C O R P O A O ES PA Ç O

locais de interesse

praça 9 de julho

calçadão

praça da bandeira

terminal urbano

praça dos pioneiros


um olhar sobre os lugares

PRAÇA DOS PIONEIROS

O

s equipamentos do entorno adjacente Terminal Rodoviário perdeu a caracteríssão determinantes para a caracteriza- tica da permeabilidade (bem como outras

ção da praça uma vez que exercem forte qualidades arquitetônicas), a expansão do centralidade nessa área. A relação com estacionamento tomou parte da Praça dos a rodoviária é fundamental Na época da Pioneiros reduzindo desde a área verde criação, em 1974, a arquitetura da rodo- até a função vital enquanto equipamento viária conectava edificação e entorno urbano, além de terem sido implantadas imediato através de um grande elemento as grades para fechamento da rodoviária, retangular vazado com aberturas em “U” do estacionamento e também da praça. sob pilotis, e sem grades, que propicia-

Esta praça talvez seja nosso exemplo

va permeabilidade através da edificação. mais “palpável” dos processos de excluCaracterísticas essas que começaram a são. Aqui, a marginalização do espaço se perder com reformas feitas na déca- se corrobora não só por conta dos usos da de 1990. Em 2012 foram realizadas “indigentes”, mas também pelo distanoutras reformas no Terminal Rodoviário ciamento das ações públicas dessa área, que previam melhorias físicas, incluin- nos últimos anos restringidas em segredo a ampliação do estacionamento que gar e acentuar a degradação do espaço. acabou ocupando uma parcela da praça,

A sensação visual é demarcada pela

que foi impermeabilizada e cercada para estética precária, a experiência é ríspida receber o estacionamento. Paralelamente, com o constante tráfego de automóveis numa tentativa de mitigar o uso margi- que sufoca os pedestres; o potencial de nal, implantaram-se os gradis, fechados centralidade, que é latente durante o dia, a cadeado assim que começa a anoite- se perde completamente a noite quancer. As “reformas”, no entanto, que sequer do a praça se esvazia. Mas a sensação consideraram qualquer pré-existência e geral é de medo, insegurança e desconrelação com as pessoas, apenas fortale- forto em qualquer horário. As possibiliceram a decadência deste espaço.

dades de fluxos e encontros nessa praça

Hoje, edificação e entorno são marca- são extremamente dificultosas; tudo está dos por problemas de estacionamento, desconectado do entorno e muito distantráfego de automóveis e pedestres tão te do que deveria ser um espaço público. intenso quanto dificultoso e pelo abando- Há somente fragmentos de uma possíno do espaço público. Se pode observar o vel praça. forte impacto sofrido pelo prédio e arredores por conta das modificações que trouxeram consigo ainda mais dificuldades: o

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

qu ad ri ce ntr láter o al

caráter do entorno

caracterís�cas gerais

majoritariamente comercial

especialmente a noite

visibilidade iluminação vitalidade do espaço

limites/delimitação

equipamentos próximos barreiras arquitetônicas

norte: rodoviária sul: comércio e casas leste: serviços oeste:estacionamento rodoviáraia, poupatempo, shopping center gradis, vegetação

mobiliário urbano

bancos, pontos de ônibus, telefone público

vegetação

árvores internas ao gradil e no perímetro; grama não caminhável.

usos predominantes

dia: pessoas maiores e trabalhadoras noite: indigentes

sensação

103

desconforto, insegurança




um olhar sobre os lugares

PRAÇA DA BANDEIRA

E

sta praça é marcada pela presença do camelódromo, que representa ao mesmo tempo vitalida-

de e barreira para este espaço. À medida em que se distancia do camelódromo, não se vê pessoas utilizando os espaços da praça, além dos passantes e das pessoas em situação de rua e pedintes. A praça é bastante segmentada pela distribuição dos elementos, o mobiliário e o calçamento estão degradados, a vegetação e as grades impõe limites e quebras desnecessárias, além da iluminação que é deficiente. Devido também à característica de monofuncionalidade, durante a noite a praça torna-se insegura, a visibilidade e possibilidades de fluxo são bastante limitadas. Ainda há o viaduto que representa uma barreira imensa tanto para esta praça quanto para os bairros que são dilascerados por ele, prejudicando totalmente a mobilidade dos pedestres, ainda mais das mulheres. Os usos predominantes são de transito, principalmente por conta do camelódromo ou então como desvio para os bairros que ficam atrás do viaduto. Como nos outros espaços, o fluxo é majoritariamente entre mulheres, sempre em função do trabalho formal ou da manutenção do lar.

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

caráter do entorno

caracterís�cas gerais

majoritariamente comercial

especialmente a noite

visibilidade iluminação vitalidade do espaço

limites/delimitação

norte: comércio sul: camelódromo leste: pontilhão oeste: comércio

equipamentos próximos

calçadão, procon, camelódromo

barreiras arquitetônicas mobiliário urbano vegetação

usos predominantes

camelô, pontilhão, linha férrea, grades, vegetação

camelô, pontilhã férrea, grades, v tação

bancos, pontos de ônibus, telefone público, banheiro, parque infantil árvores dispersas; em torno dos gradis e no perímetro; concentração no parque dia: pessoas maiores e trabalhadoras noite: indigentes e trabalhoras/es

sensação

107

desconforto, insegurança

desconforto, inse




PRAÇA 9 DE JULHO

A

praça 9 de julho, numa das extremidades do calçadão, fica na avenida Avenida

Coronel José Soares Marcondes em frente Catedral de Presidente Prudente. Foi criada em 1918, conhecida inicialmente por passeio público, depois Praça Cinco de Julho e finalmente Praça Nove de Julho. Em 1925 era um amplo espaço descampado, sem qualquer tipo de equipamento. Desde então tem passado por diversas remodelações, sendo que a última foi em 2013. O caráter do entorno é majoritariamente comercial, com alguns edifícios residenciais. Trata-se de uma praça bastante nostálgica para a população mais velha, mas atualmente passa pelos mesmo problemas dos demais espaços públicos. Embora esta seja um espaço em geral melhor cuidado e com mais componentes, durante a noite também há o esvaziamento; um lugar sem pessoas é basicamente um espaço inseguro, sem urbanidade e vitalidade o suficiente, a praça torna-se uma barreira no imaginário popular da mulher. Durante o dia é predominante a circulação sobretudo de mulheres, sozinhas ou acompanhadas de crianças, com sacolas de compras e utensílios para a casa; os homens geralmente se concentram nas mesas para jogar baralho, tanto de manhã quanto a tarde. Particularmente, não se vê nenhuma mulher se apropriando deste espaço para o lazer – no máximo, “contemplam” a praça quando estão esperando por alguém ou pelo ônibus, que chegam a demorar horas para os bairros mais distantes.

110


D O C O R P O A O ES PA Ç O

caráter do entorno

caracterís�cas gerais

majoritariamente comercial

especialmente a noite

visibilidade iluminação vitalidade do espaço

limites/delimitação

equipamentos próximos barreiras arquitetônicas mobiliário urbano vegetação

usos predominantes

norte: comércio sul: comércio e residencias leste: comércio oeste: igreja correios, bancos, igreja, pontos de ônibus partes da vegetação bancos, pontos de ônibus e de taxi, telefone público, cabine de polícia, arena de teatro, wifi, banheiros gramado, decorativa, árvores agrupadas e dispersas idosos nas mesas; circulação intensa, + mulheres; espera; cuidado; indigentes noite: indigentes e trabalhoras/es [pontos de onibus]

sensação

certa segurança, apesar da pouca movimentação


um olhar sobre os lugares

CALÇADÃO

O

“Calçadão” de Presidente Prudente de pessoas diariamente, sobretudo mulhelocaliza-se na Rua Tenente Nicolau res, que se deslocam tanto para o trabalho

Maffei, na área central da cidade, compre- produtivo quanto reprodutivo. A princiendendo desde a Avenida Brasil, do came- pal tipologia é de sobrados colados lado lódromo, até a praça 9 de julho, na Avenida a lado, alguns ainda guardam os traços Coronel José Soares Marcondes. Foi cria- arquitetônicos de décadas atrás por detrás do como uma “Rua de Pedestres” em 1979 dos letreiros; as lojas em sua maioria para “modernizar” a cidade, incluindo possuem grandes portas metálicas que, também a Rua Barão do Rio Branco na durante o dia, possibilitam uma relação época, mas que devido à resistência dos interior x exterior, ainda que delimitando comerciantes locais restringiu-se a uma o público do privado através das vitrines. rua apenas. Uma ampla reforma de revita-

Nessa rua e também nas adjacentes,

lização foi realizada em 2011, modificando sendo que estas outras não são exclusivas alguns dos principais elementos como o para pedestres, o térreo se caracteriza pela piso, a iluminação e o mobiliário. O calça- presença de estabelecimentos comermento se estende igual e plano por toda a ciais enquanto o segundo pavimento se extensão, inclusive onde os carros pene- destina ora a depósitos ora a habitação, tram perpendicularmente, dando certa ainda que poucas, o que faz dessa área sensação de continuidade e facilitando o um espaço monofuncional. Isso signideslocamento. Há uma quantidade razo- fica que o funcionamento do comércio ável de mobiliário urbano, como bancos e durante o dia, de segunda à sábado, atrai pergo-lados que criam situações de possí- grande quantidade de pessoas havendo vel permanência e convivência, ainda que sempre uma movimentação e a possibidispostos de uma maneira que parece não lidade de percursos bem como de estater uma intenção. A iluminação é suficien- belecer comunicação com alguém. Por te, mas não qualifica o espaço. Também outro lado, durante a noite e aos dominnão há áreas cobertas e a vegetação exis- gos, quando as lojas não abrem, a caractente é ínfima, o que dificulta a permanên- terística da monofuncionali-dade causa o cia no local, ainda mais quando se pensa esvaziamento das ruas, que ficam desernas pessoas que permanecem ali por mais tas, escuras e com pouquíssimas oportutempo, como as que estão com crianças ni-dades de comunicação e movimento, e idosos, as que trabalham como ambu- corroborando a sensação de insegurança lantes, artistas ou artesãs.

– elementos presentes em todos os espa-

Pela concentração de comércios e ços de que nos aproximamos. serviços, a área atrai um fluxo de intenso

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

caráter do entorno

caracterís�cas gerais

majoritariamente comercial

especialmente a noite

visibilidade iluminação vitalidade do espaço

limites/delimitação

equipamentos próximos barreiras arquitetônicas mobiliário urbano vegetação

usos predominantes

norte: comércio sul: comércio e casas leste: serviços oeste:estacionamento rodoviáraia, poupatempo, shopping center gradis, vegetação bancos (9), pontos de ônibus (2), telefone público (1) árvores internas ao gradil e no perímetro; grama não caminhável. dia: pessoas maiores e trabalhadoras noite: indigentes e trabalhoras/es

sensação

insegurança; há pouca movimentação


LO C A I S D E V U L N E R A B I L I D A D E S

um olhar sobre os lugares

T

odoss espaços analisados, acima de suas particularida-

des, revelam entre si as mesmas problemáticas, todas elas em torno dos inúmeros problemas urbanos supracitados ao longo do trabalho. Assim, visando um espaço público realmente includente, justo e seguro, definimos algumas pautas gerais para a melhoria prática destes e a construção de novos espaços, tais como:

Evitar a zonificação e os espaços monofuncionais que só funcionam em determina-

2

dos horários e que são necessários durante a noite.

Fomentar a mescla de usos e os deslocamentos a pé é a melhor maneira de garantir a igualdade do uso do espaço público e a sensação de segurança na rua.

Paradas de transporte público como nodos atrativos de fluxos e atividades associadas, espera, encontro, ócio, etc.

Criar lugares de permanência para permitir o uso de diferentes coletivos.

A vegetação deve favorecer e não dificultar o controle visual.

3

Rua cheia é rua segura. O espaço deve favorecer o desenvolvimento da vida cotidiana em diferentes horas do dia.

Garantir iluminação adequada e transparência.

Estes elementos isolados, no entanto, não possuem efetividade. O direito à cidade, como debatemos, é amplo e ainda que envolva pensar em termos de serviços e equipamentos, vai muito além disso. No mais, é preciso sempre considerar que essas medidas envolvem, acima de tudo, mudanças profundas nas relações sociais e na

4

concepção e gestão dos espaços.

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D O C O R P O A O ES PA Ç O

2

4 1 3 2

visibilidade iluminação vitalidade do espaço

1 equipamentos próximos barreiras arquitetônicas vegetação

sensação

supermercado, linha férrea, terminais urbano e rodoviário, centro cultural matarazzo linha férrea, pontilhão, túneis insuficiente durante o dia; a noite obstrui visão e fluxo vulnerabilidade


CONSIDERAÇÕES FINAIS

116


C

hegamos ao fim deste trabalho e ao menos uma conclusão é possível: A participação genuinamen-

te democrática das mulheres na sociedade depende de uma revolução radical na cultura, e isso envolve repensarmos nossas cidades, do espaço privado ao público, do desenho à gestão. Porque, sem mais delongas, a cidade, enquanto espaço que acolhe a sociedade, tem na sua finalidade primeira ofertar às pessoas condições de viver com dignidade. A mulher enquanto componente do grupo social, deve ser vista e reconhecida como agente ativa e destinatária de políticas urbanas que englobem e acolham as diferenças relativas ao gênero, permitindo sua presença em condições de intervir e usufruir igualitariamente do espaço urbano e dos bens coletivamente produzidos, sem quaisquer tipo de cerceamento. Hoje somos quase metade da força de trabalho e mais da metade da população total, mas a maioria de nós é pobre e muito provavelmente continuará a ser. A cidade mal dá conta de satisfazer as necessidades básicas de parte da população, que dirá permitir que ela tenha plenas condições para se desenvolver social, cultural e economicamente. Mas é preciso olharmos para nossas cidades através de uma outra ótica, encontrando as potencialidades ali mesmo onde os problemas persistem. A cidade deve sim possibilitar o desenrolar das atividades domésticas e privadas, e deve na mesma medida, ou muito mais, oferecer condições para as transgredirmos. Não é possível pensar na empacipação feminina sem construir novas formas de conceber as relações e os espaços. A vida e a cidade que, de fato, queremos são calcadas na diversidade, não na desigualdade. Por isso nos opomos a quaisquer táticas de padronização e homogeneidade, recusamos a noção de totalidade, queremos alternativas - nosso tempo reclama por transformações, cada vez mais urgentes. Há de se conceder espaço às novas formas de pensar as relações sociais e as cidades; a vida para as mulheres, principalmente pobres, precisa ser mais que estar à mercê das diversas formas de subjugação e violência, tem de ser mais que trabalhar e cuidar somente, ainda que a cidade deva contemplar igualmente essas atividades; mas deve, acima de tudo, transcender essas limitações que se impõem do corpo ao espaço - isso é libertação, e é justamente o que buscamos. A construção de cidades e sociedades melhores não é utopia, é feminista.


118 118


119 119


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A N E XO S � R OT E I R O D E E N T R E V I S TA

PERFIL 1.

Nome: _________________________________

2.

Cor autodeclarada: [ ] branca [ ] preta [ ] parda [ ] amarela [ ] não declarou

Idade: ________

Bairro: __________________

3.

Religião: [ ] nenhuma [ ] católica [ ] evangélica [ ] outra ____________________________

4.

Estado civil: [ ] solteira [ ] casada [ ] divorciada [ ] viúva [ ] outro ____________________

5.

Filhos/as: [ ] não [ ] sim: / 1 / 2 / 3 / 3+ /

6.

Emprego: [ ] não [ ] sim: / 1 / 2 / Onde: _____________________________________________

7.

Escolaridade: _______________________________________________________________________

8.

Renda: [ ] até R$ 500,00

[ ] de R$ 500,00 à 900,00

[ ] de R$ 1.300,00 à 1.700,00

[ ] de R$ 900,00 à 1300,00

[ ] Acima de R$ 1.700,00

outro _____________

CASA 1.

Divide a casa c/ outras pessoas? [ ] não [ ] sim: ____________________________________

2.

Cuida das finanças sozinha? [ ] sim [ ] não: _________________________________________

3.

Realiza tarefas domésticas? [ ] sim [ ] não Divide? [ ] sim [ ] não __________________

CIDADE 1.

Descreva um dia normal, quais atividades realiza e para onde vai?

2.

Como se locomove? [ ] a pé [ ] ônibus [ ] carro [ ] moto [ ] outro ___________________

3.

Leva quanto tempo até o trabalho? [ ] até 15 min [ ] até 30 min [ ] até 1h [ ] + de 1h

4.

O que você faz em momentos de folga/lazer? Sozinha ou acompanhada? De quem? Onde?

COTIDIANO 1.

Pense no seu dia a dia. Como se sente ao se locomover pela cidade?

2.

Você tem alguma dificuldade em seus trajetos? Evita lugares e caminhos? Por que?

3.

Em quais lugares ou momentos você se sente bem no seu dia a dia?

4.

O que gostaria de poder fazer se tivesse mais tempo livre?

5.

Fale um pouco de você; o que acha que teria que acontecer/ser diferente para sua condição de vida melhorar?

6.

124

Como sua casa poderia ser melhor para você? E seu bairro?





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