INVENTARIO: ilustrações de Dino Buzzati, Julio Cortázar e Franz Kafka

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INVENTÁRIO ilustrações de Dino Buzzati, Julio Cortázar e Franz Kafka

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO

Trabalho Final de Graduação Keyla Nakayama Orientador: Artur Rozestraten FAUUSP 2012

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Ă minha famĂ­lia e aos meus amigos

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ÍNDICE 6

introdução

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memória e imagem

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a câmara clara

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a imagem especular

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transferência do sujeito

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influências da fotografia moderna

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Carta a uma Senhorita em Paris

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os contos

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O Bicho Papão

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O Manual de Instruções

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A Construção

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bibliografia

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agradecimentos

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Pois nós temos sempre uma invencível necessidade de sonhar; nossa antiga raça, acostumada a não compreender, a não indagar, a não saber, feita dos mistérios envolventes, recusa-se a verdade pura e simples. A explicação matemática de suas lendas seculares, de suas poéticas religiões, causa-lhe indignação, como sacrilégio! Ela se agarra a seus fetiches, insulta os lenhadores, apelando desesperadamente aos poetas. Trecho de Adeus, mistérios de Guy de Maupassant, publicada em 1881.

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INTRODUÇÃO

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A hipótese de que a imagem possui sempre uma relação direta, mesmo que inconsciente, com uma história, sempre me cativou: a associação entre memória e imagem me parecia ser a razão pela qual a fotografia instiga tantas pessoas. Ela fascina ao despertar a sensibilidade do espectador. Apreciar uma fotografia me parecia ser um tipo de exercício mental e intuitivo de reconstituição, uma conexão com alguma lembrança pessoal. Fotos em álbuns de família que remetem às memórias da infância, fotos em jornais, que acompanham um relato, fotos que ilustram livros: são exemplos dessa hipótese. Segundo Carl Gustav Jung, “o inconsciente nos dá uma oportunidade, pelas comunicações e alusões metafóricas que oferece. É também capaz de comunicar-nos aquilo que, pela lógica, não podemos saber.” (JUNG, 1961, p.34) Portanto, a interpretação pessoal de fotografias seria um tipo de reflexo individual, como um espelho, baseado em condicionantes subjetivos e misteriosos, próprios da identidade de cada espectador. A apreciação da fotografia seria uma forma de ver, de pensar e de reconhecer. A primeira fase desse Trabalho Final de Graduação consistiu em pesquisa sobre os elementos que influenciam na formação de imagens na mente humana e associá-los com a prática fotográfica. Então, reuni as obras mais pertinentes sobre este tema, de autores essenciais para o estudo da teoria da fotografia, e elegi alguns pontos que nortearam o andamento da primeira metade deste TFG: a fotografia como parte de uma antologia de imagens pessoal, de Susan Sontag; a ideologia das lentes, de Arlindo Machado; a interferência na significação da fotografia, de Roland Barthes; a imagem-relicário, de Boris Kossoy; e a autoria e a técnica na fotografia moderna, de Helouise Costa e Renato S. da Silva. Apesar de este TFG ter sido iniciado por uma inclinação à pesquisa exclusivamente teórica, me pareceu benéfico que eu fizesse algum tipo de atividade fotográfica, em busca de maior compreensão. Escolhi ilustrar o conto Carta a uma Senhorita em Paris, de Júlio Cortázar, através puramente da fotografia digital. Neste ensaio fotográfico, tentei explorar as capacidades da máquina digital em sintonia com os conhecimentos adquiridos com o estudo da fotografia modernista. Portanto, a construção de

*In JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos, Reflexões. São Paulo: Editora Nova Fronteira, 1986.

[DA ESQUERDA PARA A DIREITA]

Pablo Neruda Isidro Ferrer (ils.) Livro das Perguntas São Paulo: Cosac Naify, 2008.

Retrato de Franz Kafka [1888-89] autor desconhecido

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cenários me parecia de importância relevante, mas como algo inoportuno para o tema inicial. Minha intenção era explorar os limites da câmera digital, assim como os pioneiros da fotografia moderna brasileira conseguiram ultrapassar as fronteiras da fotografia de sua época, através de fotogramas e técnicas inovadoras de manejo da máquina. Supus que era necessária a execução de outros ensaios, sobre obras diferentes, para contemplar outras perspectivas da fotografia. Portanto, decidi dividir o TFG em duas partes, alterando o interesse inicial de mantê-lo teórico. A segunda metade do TFG seria preponderantemente prática: escolhi outros três contos de teor fantástico, assim como o primeiro: A Construção, de Franz Kafka; O Bicho Papão, de Dino Buzzati e Manual de Instruções, de Júlio Cortázar. A leitura dos contos escolhidos acendeu motivações artísticas que ultrapassavam a máquina fotográfica e fez aflorar uma ânsia pelo cuidado com a construção de cenários e programação visual das impressões gráficas finalizadas. Houve uma inversão na ênfase dada aos elementos dos ensaios de acordo com o enredo de cada texto, por esse motivo criou-se um impasse: era nítido o desvio do percurso de pesquisa, e não conseguia encai-

Koen Wessing O exército em patrulha nas ruas [1979] Nicarágua

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xar o meu trabalho em nenhuma área de estudo que me propus a explorar. Acredito que o rumo deste TFG foi desviado do estudo da fotografia para o estudo da imagem. Por apego ao pensamento modernista na fotografia, que a contempla em termos de autoria, exploração da máquina e transcendência formal do estilo clássico, tive dificuldade em aceitar os meus ensaios como uma forma de experimento fotográfico. Os ensaios que produzi foram elaborados através de técnicas distintas: em A Construção, escolhi obter as imagens através do uso do scanner; em O Bicho Papão, a ênfase constava na construção dos cenários; em Manual de Instruções, procurei explorar a materialidade do ensaio impresso. São textos singulares, cujas sensibilidades distintas requerem empenhos ímpares de interpretação de cada leitor. Considero a produção destas três peças em referência a signos externos, codificados por características pessoais, portanto não se adequam ao campo da ilustração convencional. São imagens que não dependem dos textos que as originam, elas possuem significados que nasceram a partir de uma interpretação pessoal. Em A Câmara Clara, Roland Barthes cria uma analogia entre espectador e a câmara clara, equipamento para pintura no qual o artista pode desenhar uma paisagem através do auxílio de raios luminosos projetados pelo aparelho, ou seja, o pintor age sobre a imagem, codificando-a. O espectador também age na significação da fotografia e altera seu sentido de acordo com a própria sensibilidade, ele se transforma da câmara clara ao criar uma narrativa a partir de uma fotografia. Entendo a minha produção para este TFG como uma inversão da analogia de Barthes. Li os três contos, os codifiquei e produzi imagens. Adotei o papel da câmara clara ao dar um significado para cada um dos textos, seguindo meu próprio intelecto, memória e emoção. A partir de uma narrativa, de uma história externa, produto da sensibilidade dealguém, produzi uma imagem. Ainda não consegui estabelecer uma categoria artística na qual estes ensaios possam ser adaptados, também não cheguei às conclusões que me propus chegar no início deste trabalho, minha hipótese ainda carece de desenvolvimento de pesquisa. Porém, concluo este TFG sem nenhuma frustração. Conceber imagens baseadas em Dino Buzzati, Julio Cortázar e Franz Kafka se mostrou um processo complexo e exigente, um esforço que obrigatoriamente havia de ser proporcional á grandeza destes três autores. Alternei minha dedicação a eles, a estas três obras específicas. Compreendo esses ensaios como artefatos de um pensamento individual, enredado a incentivos imaginativos particulares, que são frutos de experiências pessoais, inerentes a um conhecimento cultural de imagens. Uma antologia minha e somente minha, que me identifica, o meu inventário de imagens.

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CONCEITOS

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MEMÓRIA E IMAGEM Uma das formas de representação da fotografia é relembrar o passado. A memória fotográfica se dá através de imagens-relicário: um substituto portátil do passado, que pode ser transportado pelo espaço e pelo tempo (KOSSOY, 1996, p.42)*¹. A associação entre a realidade e imagem fotográfica é tão forte na conceituação popular, que a fotografia passa a servir como um substituto imaginário do real passado, uma forma de preservação da memória. Portanto, criou-se um simbolismo indiscutível na fotografia familiar e de viagens, já firmado na cultura contemporânea. É como se a foto fosse um atestado concreto de um evento, que permanece enquanto nós perecemos. No filme Les carabiniers, de Jean-Luc Godard, é criticado esse feitiço imagético que a fotografia representa: o enredo é baseado na trajetória de dois camponeses, que ao ingressarem no exército da monarquia, seduzidos pela promessa de oportunidade de saques e estupros contra os inimigos do rei, voltam para seus lares com vários cartões postais de monumentos, obras de arte, museus, etc. “As fotos são, de fato, experiência capturada, e a câmera é o braço ideal da consciência, em sua disposição aquisitiva.” (SONTAG, 1977, p.14)*² A memória resiste através de fotografias. Para os demais receptores (aqueles que veem fotos, mas não fizeram parte da memória que representam), determinadas imagens podem atingi-los de forma que ultrapassa o resgate do passado, na qual a imagem é incorporada à própria imagem. Segundo o fotógrafo e escritor Boris Kossoy, a imagem fotográfica possui duas realidades: a segunda, que é a realidade exterior, tudo que pode ser identificado, visto e interpretado através de sua aparência física; e a primeira é a realidade oculta, a história do que é retratado, e portanto, imutável. A fotografia é documental, mas é também imaginativa. Reconstituir uma história implica em um processo de criação de realidades, que acredito que é o que torna a fotografia tão sedutora: tanto na concepção da imagem, que é um processo moldável e criativo de materialização pelo fotógrafo diante de seu tema, quanto na recepção da imagem, processo fluido que possui uma trajetória sujeita diretamente à interpretação pessoal de cada receptor, resultam na construção de realidades.

*¹In SAMAIN, Etienne. O fotográfico. São Paulo: Editora Hucitec, 2005. *²In SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

[CENAS DE FILME]

Jean-Luc Godard Les carabiniers [1963] França e Itália

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A CÂMARA CLARA Iniciei minha pesquisa através da leitura de A Câmara Clara*, de Roland Barthes (19151980), filósofo francês conhecedor da semiologia. A Câmara Clara relaciona a intervenção pessoal do observador com a fotografia: a câmara clara, processo que utiliza objetos translúcidos para a reprodução de um objeto sobre um plano, para então ser desenhado, é contraposto à fotografia, processo que reproduz a imagem de um objeto através de mecanismos mecânicos e químicos, sem a interferência humana. O autor, ao comentar fotografias, utiliza sua própria sensibilidade emocional para interpretá-las. É como se assumisse o papel da câmara clara: Barthes tenta definir os traços de cada foto através de detalhes pessoais, ou seja, o autor interfere na significação da fotografia. Mesmo em fotografias jornalísticas, a interpretação do autor é pessoal. Barthes assume a fotografia como algo mágico e individual, e não uma arte. É uma manifestação de um traço interior e pessoal. Ele afirma também que a despeito de sua inegável importância para os avanços tecnológicos, a fotografia não parecia algo que realmente existisse: ela não possui gênio próprio, é inclassificável. Ela repete mecanicamente o que jamais poderá existir novamente, ela reproduz o real: isso é isso e tal! (BARTHES, 1980, p.14). A foto não se distingue de seu referente. “Uma foto é invisível, não é ela que vemos.”(BARTHES, 1980, p.14)

*In BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984.

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A IMAGEM ESPECULAR Arlindo Machado afirma em Imagem Especular* que as câmeras constroem significados, elas não os reproduzem. Diferente da tentativa de reproduzir literalmente o real, ou seja, duplicá-lo, a fotografia constrói representações através de elaborações cultural, estética e técnica. A fotografia está sujeita à ideologia das lentes, que constitui no seu próprio código perspéctico (deformações visuais). A familiaridade com fotografias faz com que essas deformações não sejam percebidas, mas incorporadas à noção de realidade. Através também da iluminação, enquadramento e zoom, a imagem fotográfica é modificada, ela deixa de retratar o objeto de forma natural. São artifícios utilizados na fotografia em busca do efeito desejado, que comprovam a teoria de que a foto não assegura veracidade nenhuma. Seguem alguns exemplos desses fenômenos da fotografia: Anamorfose: é uma consequência da transferência da subjetividade (“supressão provisória do nosso olhar para colocá-lo a mercê de um outro que dirige o nosso”), na qual a imagem é distorcida de forma que somente em um único ponto o elemento recupera uma forma proporcionada e clara. (MACHADO, 1984, p.95) Escolha de enquadramentos inusitados: à exemplo de Alexander Ródtchenko, o ângulo insólito é utilizado para quebrar os automatismos da visão. Um esforço é

*In MACHADO, Arlindo. A Ilusão Especular: Introdução à Fotografia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984.

[DA ESQUERDA PARA A DIREITA]

Murray Riss Garota e muro de tijolos 1967

Alexander Ródtchenko Escada de incêndio e homem 1925

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exigido do espectador para decodificar a imagem. Sergei Eisenstein em Encouraçado Potemkin, também utiliza enquadramentos inusitados em busca de efeito. A câmera é utilizada como arma ideológica ao adotar o ponto de vista da classe operária. O ângulo de tomada torna-se gerador de sentido. Profundidade de campo: o desfocamento pode ser uma anomalia, que equivale à seleção de enquadramento, aonde se estabelece uma hierarquia. O foco impõe uma leitura da cena, organizando o espaço. A foto se aproxima do olhar natural quando o foco da cena coincide com o da lente. O efeito visual realista (na fotografia) impõe a necessidade de um controle sobre a cena, cheio de intencionalidade. Código de iluminação: exerce influência na profundidade da cena. Dependendo da proximidade da fonte de luz, a noção de perspectiva é alterada. O fotógrafo Weegee (pseudônimo para Arthur Fellig) utilizava o flash de forma “inadequada”, criando contrastes violentos em suas fotografias urbanas e noturnas, enfatizando o caráter documentário de sua obra. Outro artifício da iluminação na fotografia é a silhuetagem, que coloca o objeto contraluz, reduzindo o número de planos.

Sergei Eisenstein Encouraçado Potemkin 1967

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Weegee Tirada em Nova Iorque, década de 60.


TRANSFERÊNCIA DO SUJEITO Diante de uma imagem fotográfica, o ângulo de tomada é imune. Não importa a posição do espectador, o ângulo (ou seja, a posição do fotógrafo) é sempre o mesmo. É nisso que consiste o termo transferência do sujeito, é “a supressão provisória do nosso próprio olhar para colocá-lo a mercê de um outro que dirige o nosso.” (MACHADO, 1984, p.95) Proponho-me a explorar os limites desse código utilizando as deformidades como elemento formal e integrado ao conto escolhido. Diferentemente do raciocínio generalizado que coloca a fotografia como uma verdade indiscutível, na qual a imagem fotográfica é uma evidência incontestável, procurarei utilizá-la de forma que seus atributos sejam utilizados como componente visual.

Celine van Balen Muazez Turquia

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INFLUÊNCIAS DA FOTOGRAFIA MODERNA O interesse que a leitura de Fotografia Moderna e Contemporânea no Brasil* de Helouise Costa e Renato Rodrigues da Silva, despertou em mim foi especialmente em relação às técnicas utilizadas. Na fotografia moderna houve a tentativa de ultrapassar o aparelho, em busca da anulação dos princípios acadêmicos de representação. As novas técnicas prescindiam da máquina na confecção da imagem: quebra das regras clássicas de composição; claro-escuro radical; linhas estruturantes fortes, forte geometrização, etc. “Trata-se de uma fotografia de feições radicalmente contemporâneas, urbana e cosmopolita, direta ou indiretamente vinculada ao construtivismo e no concretismo no seu gosto pela abstração geometrizante, pelo incessante experimentalismo, pela invenção estética, pela concepção bidimensional da representação e pelo despudor em interferir na imagem.”(COSTA; RODRIGUES, 2004, p.07) Pode-se dizer que o modernismo na fotografia traduziu-se pela pesquisa de autonomia formal e, consequentemente, pela negação da importância significativa do referente. Mas *In COSTA, H.; SILVA, R.R.S. foi justamente devido às suas peculiaridades que a fotografia permitiu uma ponte com o A fotografia moderna no Brasil. São real como jamais a pintura poderia vivenciar. Paulo: Editora Cosac Naify, 2004. Foi construída uma nova sensibilidade através da reaproximação da natureza e a negação da hegemonia da técnica. A natureza do referente perde importância para as formas, as linhas. Caem as barreiras da representação realista, abrindo portas para novas possibilidades formais. Entretanto, as características do processo fotográfico não conseguem suportar a completa abstração perspéctica, criando uma nova sensibilidade advinda do antagonismo entre figuração e abstração. No experimentalismo moderno, a foto é matéria-prima, o referente não é o centro, mas sim a estrutura da imagem. (COSTA; RODRIGUES, 2004, p.84) Na fotografia moderna, enfatizo como referência para este trabalho as obras de Man Ray e de fotógrafos da chamada Escola Paulista, principalmente aqueles que perteceram ao Fotocineclube Bandeirantes, como Thomas Farkas, German Lorca, José Yalenti e Geraldo de Barros. As obras de Man Ray despertaram especial interesse: suas técnicas inovadoras (fotocolagens e fotogramas) ainda são atuais e produzem efeitos interessantes, frequentemente abstratos. O tema surreal é recorrente e obtido através dessas técnicas. Thomaz Farkas frequentemente contrariava o enquadramento frontal tradicionalmente utilizados preferindo ângulos tortuosos, utilizando a fotografia como exercício do olhar. Geraldo de Barros possuía experiência anterior no campo das artes plásticas, em

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suas fotos gostava de enfatizar o ritmo dos elementos construtivos. Em suas fotos, German Lorca nos remete ao universo surrealista através de seu olhar voraz do corriqueiro, mostrado com extrema liberdade, lirismo e investigação estética. José Yalenti soube se desvincular dos preceitos básicos de iluminação ao começar a fotografar contraluz, quebrando a unidade da cena, deixando evidente a interferência do fotógrafo na sua execução. A inteligibilidade do espaço é dificultada, dando um novo significado à composição, enfatizando a geometrização, jogos e planos, etc. [DA ESQUERDA PARA A DIREITA]

Man Ray Marquesa Cassati 1922

Thomaz Farkas Ministério da Educação 1951

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José Oiticica Filho Túnel 1951

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Geral do de Barros Abstrato 1949 19


German Lorca Menino Correndo

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JosĂŠ Yalenti Asfalto 1949

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CARTA A UMA SENHORITA EM PARIS

Mudei-me na quinta-feira passada, às cinco da tarde, entre névoa e tédio. Fechei tantas malas em minha vida, passei tantas horas preparando bagagens que não levavam a parte nenhuma, que a quinta-feira foi um dia cheio de sombras e correias, porque quando vejo as correias das maletas é como se visse sombras, partes de um látego que me açoita indiretamente, da maneira mais sutil e mais horrível. Mas fiz as malas, avisei sua criada que viria instalar-me, e subi de elevador. Precisamente entre o primeiro e o segundo andar, senti que ia vomitar um coelhinho.

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Carta a uma Senhorita em Paris*, como sugere o título, é um conto em primeira pessoa baseado em cartas enviadas pela personagem principal a uma amiga que está em Paris, cuja casa em Buenos Aires está sendo ocupada pela personagem principal. A entonação utilizada nas cartas é, a princípio, natural. O hóspede descreve seu cotidiano para sua amiga e relata suas impressões sobre a casa (“Ah, querida Andrée, que difícil opor-se, embora a aceitando com inteira submissão do próprio ser, à minuciosa ordem que uma mulher instaura em sua agradável residência. Como é condenável pegar uma tacinha de metal e pô-la no outro extremo da mesa...”). Contudo, Cortázar mescla essa entonação com o fantástico. O conto transita entre o surreal e o fantástico à medida que elementos extraordinários surgem ao decorrer da narrativa: nomes de jogos inventados (o jogo de violino e viola no quarteto de Rará, uma modulação de Ozenfant, etc.), e o seu dia-a-dia com os coelhos que vomita periodicamente. Interessei-me muito pelo ponto de vista do coelho, sua antologia de imagens: seu nascimento ao sair da garganta do hóspede, seu conhecimento de mundo (limitado ao interior de um armário), o conforto de estar dentro do bolso de um terno e ser alimentado pelo único humano que conhece.

*In CORTÁZAR, Júlio. Carta a uma senhorita em Paris. Os Melhores Contos Fantásticos. Flávio Moreira Costa [organizador]. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006.

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Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, ponho dois dedos na boca como uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é rápido e higiênico, transcorre em um brevíssimo instante. Tiro os dedos da boca, e neles trago preso pelas orelhas um coelhinho branco. O coelhinho parece contente, é um coelhinho normal e perfeito, só que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco e inteiramente um coelhinho.

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Entre o primeiro e o segundo andar. Andrée, como um aviso do que seria minha vida em sua casa, soube que ia vomitar um coelhinho. Em seguida tive medo (ou era surpresa? Não, medo da mesma surpresa, talvez), porque antes de deixar minha casa, só dois dias antes, tinha vomitado um coelhinho e estava livre por um mês, por cinco semanas, talvez seis com um pouco de sorte. Veja você, eu tinha resolvido inteiramente o problema dos coelhinhos. Plantava trevo na varanda de minha outra casa, vomitava um coelhinho, punha-o no trevo e, ao fim de um mês, quando suspeitava que de um momento para outro... então dava o coelho já crescido à sra. de Molina, que pensava ser um hobby meu e se calava. Já em outro vaso vinha crescendo um trevo novo e apropriado, eu esperava sem preocupação a manhã em que a cosquinha de uma penugem subindo fechava-me a garganta, e o novo coelhinho repetia desde aquela hora a vida e os costumes do anterior.

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Você deve gostar do belo armário do seu quarto, com a grande porta que se abre generosa, as prateleiras vazias à espera da minha roupa. Agora guardo- os ali. Ali dentro. Verdade que parece impossível; nem Sara acreditaria.

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São dez. Quase todos brancos. Levantam a morna cabeça para as lâmpadas da sala, os três sóis imóveis do seu dia, eles que amam a luz porque sua noite não tem lua nem estrelas nem lampiões. Olham seu triplo sol e estão contentes.

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OS CONTOS

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São três obras que em conjunto tecem um discurso sobre o mundo, em três níveis diferentes. O narrador em O Bicho Papão*¹ é onisciente. Seu ponto de vista é o de um observador quase impassível, que encara um mundo onde o poder público é tão abusivo a ponto de destruir até o enigmático. O Manual de Instruções*² é uma reflexão sobre o que já existe e é conhecido, mas que por hábito não vemos, só olhamos. Através do desmembramento de atividades cotidianas, o autor consegue experimentá-las sensivelmente, com sutilezas estranhas ao costume. A Construção*³ é um relato pessoal e íntimo sobre uma vida em total solidão. A personagem nega o exterior, a vida em comunidade, emergindo completamente em manias e tormentos particulares. São textos que demonstram reflexões sobre a humanidade em níveis gradativos: Dino Buzzati observa à distância, Julio Cortázar indaga e é fascinado, Franz Kafka se isola. Mas se assemelham no caráter fantástico utilizado. Em diferentes formas e proporções, o estranho é retratado como algo comum.

*¹In BUZZATI, Dino. O Bicho Papão. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006. *²In CORTÁZAR, Julio. O Manual de Instruções. Histórias de Cronópias e de Famas. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2009. *³In KAFKA, Franz. A Construção. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2006.

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ENSAIOS

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O BICHO PAPÃO Dino Buzzati O Bicho Papão de Dino Buzzati é um conto sobre a morte da fantasia e da ternura, frente ao despotismo. É clara a oposição entre o bicho papão e o homem cético. O monstro atormenta o político Paudi que então decide mover forças buscando o extermínio do bicho, clamando que haveria perigo à educação das crianças da cidade, além de outros argumentos mal fundamentados. Imagino que o bicho papão, que se metamorfoseia em função de cada vítima, seja como uma compilação de todos os medos, que se manifestam um de cada vez. O Bicho Papão incita a uma reflexão sobre a relação entre o homem e mundo a partir da visão distanciada do narrador. Este conto é de leitura clara. Sua narrativa é linear, o narrador é onipresente e a linguagem é relativamente simples, enfatizando o caráter infantil do enredo. Entretanto, é uma história para adultos, que sugere a reflexão sobre a imaginação, a inocência e o abuso de poder. Escolhi explorar a bilateralidade entre o bem e o mal em forma de cores e texturas contrastantes, além de utilizar materiais laminares como elemento de coesão para todas as imagens. Os políticos e o exército são representados em textura de impressão de máquinas copiadoras de má qualidade, sem cor, e dispostos de forma repetitiva. Inspirei-me na ausência de imaginação. A fantasia, a doçura e a natureza, da qual o monstro também faz parte, é representada pela cor. Utilizei papel marmorizado com tinta óleo para representar animais e crianças.

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Primeira imagem: Compilação de todos os medos: pedi a quinze amigos que desenhassem em placas de acrílico seus respectivos bichos papões. Quis forjar uma deformação perspéctica através das dimensões das placas e de suas posições.

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1. Escolhi explorar a bilateralidade entre o bem e o mal em forma de cores e texturas contrastantes, além de utilizar materiais laminares como elemento de coesão para todas as imagens. 2. O político e o exército são representados em textura de impressão de máquinas copiadoras de má qualidade, sem cor, e dispostos de forma repetitiva. 3. A fantasia, a doçura e a natureza, das quais o monstro também faz parte, é representada pela cor. Utilizei monotipia em tinta óleo para representar animais e crianças.

Autoria dos desenhos da primeira imagem: 1. Bruno Uehara 2. Leo Yu Lon Pai 3. Erick Fugii 4. Natália Scromov 5. Carla Takushi 6. Nilton Suenaga 7. Thiago Freitas 8. Douglas Farias 9. Otávio Nagano 10. Artur Kim Shum 11. Ari Miaciro 12. Alexandre Sato 13. Caio Yuzo Higashino 14. João Busko 15. Bruno Kim

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O MANUAL DE INSTRUÇÕES

Julio Cortázar

Neste conto, Cortázar torna complexa a experiência simples ao descrevê-la detalhadamente, como se estivesse saboreando-a. É um texto que consiste na reflexão sobre a natureza das coisas, sobre o hábito de vê-las sem atenção, ignorando o que podem representar. Expus imagens de objetos que consistem numa sequência em escala: quis exibir o comum, que colocado em determinada ordem, possibilita determinado entendimento. Organizei as imagens de acordo com seu significado e grandeza, começando pelo mais abrangente e terminando com o indivíduo. Escolhi explorar a materialidade do livreto, enfatizar a proximidade do produto final e da produção através de processos quase artesanais: o uso da máquina de escrever, a costura da encadernação, o papel de textura suave e a serigrafia. 1. Serigrafia em tinta vinílica preta, executada no Laboratório de Progamação Gráfica da FAUUSP. 2. Olivetti Studio 46: digitação frente e verso em papel Lana Esquisse 90. 3. Costura em linha preta para bordado.

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A CONSTRUÇÃO Franz Kafka A Construção é um conto sobre a obsessão: a inquietude mental em meio à solidão e à escuridão de uma toca subterrânea. Suponho que a personagem principal seja um tipo de inseto, de hábitos noturnos e alimentação baseada na caça, cujos esforços se resumem a construção de sua casa e na reunião de provisões, para se prevenir de um ataque externo que nunca viu acontecer e contra uma imprevista estiagem. O conto é em primeira pessoa, como um relato mental para si mesmo. Suas relações com o mundo exterior se reduzem a ruídos desconhecidos, causados por possíveis saqueadores ou invasores. 1. Escolha do uso do scanner: achei que a estética da imagem escaneada combina com o ambiente escuro, sombrio e desconhecido do conto. O scanner propicia imagens sem perspectiva, ao mesmo tempo em que os objetos fotografados parecem que se dissolvem na escuridão. Imagino que o cenário de A Construção seja como uma caverna, aonde o campo de visão é limitado pela luz, que é incipiente. 2. O uso dos parafusos/metais: um dos elementos frequentemente relatados é a provisão. A personagem é obcecada em acumular suprimentos, que são organizados em montes nas praças da construção. Obviamente, a personagem reúne tanto mantimento que é incapaz de consumi-los todos antes que apodreçam. Fiz uma analogia entre a reserva de comida e parafusos, até mesmo pela relação que estes possuem com a ideia de construção. 3. Imaginei a personagem como um misto de inseto e polvo. Ele teria os costumes de um inseto rastejante e de hábitos noturnos, e tentáculos que buscam comida ao longe.

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BIBLIOGRAFIA BARTHES, Roland. A câmara clara: nota sobre a fotografia. Tradução de Julio Castañon Guimarães. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1984. BUZZATI, Dino. O bicho-papão. Tradução de Fulvia M.L. Moreno. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006. (Os Melhores Contos Fantásticos) CALVINO, Ítalo. Contos fantásticos do século XIX. São Paul: Editora Companhia das Letras, 2009. CORTÁZAR, Júlio. Carta a uma senhorita em Paris. Tradução de Remy Gorga Filho. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006. (Os Melhores Contos Fantásticos) CORTÁZAR, Julio. O Manual de Instruções. Histórias de Cronópias e de Famas. São Paulo: Editora Civilização Brasileira, 2009. COSTA, H.; SILVA, R.R.S. A fotografia moderna no Brasil. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2004. COTTON, Charlotte. A fotografia como arte contemporânea. Tradução de Maria Silva Mourão Netto. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010. GODARD, Jean Luc. Les carabiniers. Produção de Cocinor, Les Films Marceau, Rome Paris Films, direção de Jean Luc Godard. França e Itália, 1963. HOFFMANN, E.T.A. O homem da areia. Tradução de Claudia Cavalcanti. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2006. (Os Melhores Contos Fantásticos) JUNG, Carl. 1961. Memórias, sonhos, reflexões. Tradução de Dora Ferreira da Silva. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1986. KAFKA, Franz. A construção. Tradução de Modesto Carone. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2006. LINDEN, Sophie Van der. Para Ler o Livro Ilustrado. Tradução de Dorothée de Bruchard. São Paulo: Cosac Naify, 2010. MACHADO, Arlindo. A Ilusão Especular: Introdução à Fotografia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1984. MAUPASSANT, Guy de. 125 contos de Guy de Maupassant. Seleção e apresentação de Noemi Moritz Kon. Tradução de Almicar Bettega. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2009. SAMAIN, Etienne (organizador). O fotográfico. São Paulo: Editora Hucitec, 2005. SONTAG, Susan. Ensaios sobre a fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004. http://www.ims.uol.com.br http://www.toutlecine.com http://museucinemaeducacio.files.wordpress.com

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AGRADECIMENTOS Alexandre Sato, Ari Miaciro, Artur Kim Shum, Artur Rozestraten, Bruno Kim, Bruno Uehara, Carla Takushi, Caio Yuzo Higashino, Christiane Nakayama, Cristina Gu, Douglas Farias, Erick Fugii, Felipe Chodin, Joรฃo Busko, Leonardo Pai, Natรกlia Scromov, Nilton Suenaga, Otรกvio Nagano, Raphael Grazziano, Ricardo Stanzani, Sandra Javera, Sidney Lanzarotto e Thiago Rocha Ribeiro.

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