A arqueologia de Soliaris Dmitri Salinski Camila Cavalcante | Tradução
11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111
Você está lendo um trecho selecionado do livro PANORAMA TARKÓVSKI, 2a edição, publicado pela Kinoruss Edições e Cultura, em maio de 2019. (corresponde às páginas 127 a 134).
11111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111111
G
eralmente, em todo arquivo cinematográfico encontramos várias das versões preliminares de trabalhos fílmicos, assim como rascunhos de romances clássicos, em edições acadêmicas, e esboços de pinturas renomadas em museus, que demonstram o processo criativo do autor e a evolução de sua poética no contexto histórico-cultural. Ao estudarmos a história de um conceito, nós descemos às suas profundezas, como em uma escavação arqueológica, passando pelas camadas culturais: do filme a versões roughcut¹, ao projeto do diretor, a transcrições de debates no estúdio. É fascinante observar os diversos detalhes – importantes ou não – do projeto aparecerem e desaparecerem, vê-los ser moldados como argila nas mãos de um escultor. Todos os vestígios textuais de Soliaris (Солярис, 1972) – rascunhos de roteiros, documentos em acervo, e memórias sobre o processo de
filmagem – foram compilados em meu livro Фильм Андрея Тарковского “Солярис”. Материалы и документы. [Soliaris, de Andrei Tarkóvski – Materiais e Documentos]2. Nesse livro, fiz uma transcrição detalhada, plano a plano, da versão de trabalho de Soliaris, que é comparada, quadro a quadro, à versão de distribuição.A versão de trabalho de Soliaris foi lançada, legalmente, pela primeira vez em DVD junto ao livro. Antes disso, outras distribuidoras publicaram apenas fragmentos de tal versão, os quais não davam quaisquer indícios sobre a edição geral. A versão de trabalho do filme encontra-se guardada no Gosfilmofond3 há mais de 40 anos. Poucos ouviram falar dela, e menos pessoas a viram. A cena mais interessante do filme é a das alucinações de Kris Kelvin no “quarto espelhado”, que não foi incluída na versão final. Essa cena ecoa, de acordo com algumas avaliações, o trabalho criativo de Tarkóvski4, que os críticos, às vezes, comparam a um quarto espelhado. Especialistas em cinema tiveram a oportunidade de ver um fragmento do filme com essa cena no Gosfilmofond. Entretanto é difícil entender, tendo por base a cena isolada, como ela se encaixaria no filme. Há muitos anos, uma cópia pirata da versão de trabalho foi disponibilizada na internet e, desde então, uma nuvem mitológica tem envolvido a discussão do tópico. Surgiu a ideia de que esta era a lendária versão do diretor5 de Soliaris, que o Estado Soviético – eis aqui mais uma oportunidade para crítica – proibiu que chegasse às telas, privando espectadores de vê-la, e que a cena do quarto espelhado foi cortada pela censura. Mas isso é um conto de fadas. Na verdade, as coisas foram bem diferentes. O que vemos à nossa frente não é a versão do diretor completa, mas, sim, um rascunho. Não se pode dizer que nela está expressa a visão do autor, já que não é tão diferente da versão distribuída. No entanto contém prolixidades, sequências
mal dubladas ou redundantes em termos de drama, algumas definições inexatas de gênero e ritmo de edição incorreto. Tarkóvski, posteriormente, após a aprovação do filme, o purificou de muitos desses defeitos, durante o processo de “polimento” da versão final. De fato, o Goskinó 6 tentou censurar o filme, mas, devido a algumas circunstâncias um tanto peculiares, as quais detalharei adiante, ele foi aprovado com mínimas correções.
Soliaris foi considerado o trabalho menos escandaloso de Tarkóvski. Os outros eram mais incômodos para o público: O Espelho, com sua forma cinematográfica fantasiosa; Stalker, com suas refilmagens dramáticas; Nostalgia, com sua previsão quanto à emigração; o proibido Andrei Rublióv7, e A Infância de Ivan, com suas sequências de sonhos.Vale também mencionar O Sacrifício, que se considerou conter predições sobre Tchernóbil, o assassinato do Primeiro Ministro sueco, Olof Palme, e a morte do próprio diretor. Soliaris foi apenas discutido dentro do contexto de ficção científica após a formação de um novo ponto de vista sobre todo o legado de Tarkóvski. Atualmente, devido a certos acontecimentos, outro olhar acerca de Soliaris faz-se necessário. Dentre eles, o lançamento da adaptação americana do livro (Steven Soderbergh, 2002), a negativa resenha de Stanislaw Lem sobre o projeto de Tarkóvski tornar-se pública, a divulgação de fragmentos da versão de trabalho em DVD por várias distribuidoras e a divulgação dessa versão na internet assim como da primeira adaptação do romance feita pela TV Soviética. Naqueles dias, a produção do filme foi aprovada como uma forma de acalmar os ânimos que se encontravam exaltados em razão da
recente proibição de Andrei Rublióv, após sua estreia no outono de 1966. Depois dos julgamentos dos dissidentes e do “verão quente” de 1968 (revoltas estudantis em Paris, tropas dos países do Pacto de Varsóvia em Praga) era mais fácil para as autoridades dar trabalho a um homem perigosamente intratável do que sofrer os danos resultantes de ataques da oposição. Do ponto de vista ideológico, o projeto parecia inócuo. Ninguém poderia sequer imaginar que seu componente religioso se manifestaria sem qualquer diálogo – por meio do plano final, reminiscente da pintura de Rembrandt e da parábola do Filho Pródigo do Evangelho de São Lucas. O interesse em massa, com relação ao tema, causado por uma peça de mesmo enredo que havia ido ao ar pela TV central, ajudou o futuro do filme. A peça em forma de filme, de Boris Nirenburg e Lidia Ishimbaieva, foi ao ar em 8 e 9 de Outubro, sendo reprisado em 10 e 11 de outubro de 1968. A solicitação de Tarkóvski para a produção do filme data de 18 de outubro de 1968 - uma semana após a peça ir ao ar. Mesmo que Tarkóvski não a tenha visto, não havia como não ter escutado sobre, o que poderia tê-lo impulsionado a expedir o projeto que há muito já havia concebido. O diretor descobriu o romance de Lem em 1963. Natália Bondartchuk8 relembra que sua vizinha, professora do VGIK, Irina Jigalko9, lhe emprestou o livro. Quando Natália - com 13 anos na época - foi devolver o livro, ela o entregou para o ex-aluno de Jigalko, Andrei Tarkóvski, que estava, então, hospedado em sua casa. Em 1965, durante a filmagem de Andrei Rublióv, Tarkóvski disse à gerente de produção do filme, Tamara Ogorodnikova, para que se preparasse para seu próximo projeto, Soliaris, cujo roteiro já estava sendo trabalhado por Friedrich Gorenstein10.
A versão de trabalho de Soliaris (catálogo do Gosfilmofond nº С-8176) não é dividida em episódios e soma 5190 metros em 19 partes. Compare: a versão de distribuição consiste em dois episódios e soma 4627 metros em 17 partes. (Episódio 1 – catálogo do Gosfilmofond nº C-8964, 8 partes, 2198m; Episódio 2 – catálogo do Gosfilmofond C-8965: 9 partes, 2429m). Durante a reedição da versão de trabalho para distribuição, 563 metros (18,8 minutos) foram cortados. A versão de trabalho foi feita entre 24 de janeiro e 25 de fevereiro de 1972. Nos estúdios soviéticos, as versões de trabalho de filmes eram apresentadas em salas de exibição avaliativa a partir de duas fontes: uma contendo o conjunto de imagens visuais editadas e a outra, uma fita magnética, separada, com a trilha sonora. Depois disso, uma cópia, combinando os aspectos visuais e o som ótico, era produzida para ser entregue ao Goskinó.Tais cópias, algumas vezes, sobreviviam por acidente e hoje nos permitem rastrear os estágios da produção do filme.A versão de trabalho de Soliaris do Gosfilmofond é a única sobrevivente entre as várias (possivelmente três) versões de distribuição do filme. A primeira diferença da versão de trabalho em relação à versão de distribuição é imediatamente óbvia: ela começa com um prólogo, um texto datilografado em um fundo preto. Ele não aparece na versão de distribuição. Aqui está como o prólogo veio a existir: O filme foi devidamente concluído, dentro do prazo e, no fim de dezembro de 1971, foi aprovado pelo Conselho de Artes da União Criativa e pelo Estúdio Cinematográfico e enviado para os superiores do Goskinó. Em janeiro de 1972, uma lista de comentários foi devolvida ao estúdio. A cena do quarto espelhado não causou nenhuma objeção. O que preocupou o Goskinó foi outra coisa: a formação social vigente na época das filmagens (oficiais soviéticos supunham que deveria ser o Comunismo). Durante a exibição, em 30 de dezembro de 1971, o presidente dos Estúdios Mosfilm, Nikolái Sízov,
sugeriu uma “curta introdução para o filme, explanando o conceito do autor”. Tarkóvski concordou e, em 24 de dezembro, assinou o plano de correções. Em 16 de fevereiro, o Mosfilm aprovou a versão com o prólogo. O editor do filme, Lazar Lazariév, sugeriu que um trecho da entrevista de Kris Kelvin para jornalistas fosse incluído no prólogo: “Desde que a humanidade obliterou a desigualdade social e pôs um fim à guerra, a ciência progrediu grandemente11”. O editor tirou essas palavras do roteiro, em que elas apareceram em uma conversa entre Kris e seu pai, o que pareceu um tanto artificial: era difícil compreender o porquê de pai e filho conversarem sobre inválidos das últimas guerras antes de se separarem. É provável que, nos estágios iniciais do projeto, essas palavras favoreceram a aprovação do roteiro e, ao serem transferidas, posteriormente, para o prólogo, voltaram a ter seu papel salvador apenas para desaparecerem da versão de distribuição juntamente com o prólogo. Geralmente, considera-se que, na época soviética, os superiores dos diretores os faziam introduzir os necessários motivos ideológicos em seus filmes; desse modo, especialistas que conhecem as verdadeiras interpretações dos diretores tentam encontrar as versões originais que, supostamente, não possuem tais introduções. Paradoxalmente, neste caso em particular, a versão de distribuição de Soliaris apresenta menos ideologia do que a versão de trabalho, que contém o prólogo. Seria um erro pensar que tais coisas ocorreram apenas no cinema soviético. Isso era uma prática universal. O Soliaris, de Tarkóvski, é, geralmente, comparado a 2001: Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick. Eles não só possuem o tema “espaço” em comum, como também certos altos e baixos em sua produção. James Naremore escreve em seu livro sobre Kubrick: “Após a desastrosa exibição para os chefes em Hollywood e as resenhas negativas de críticos de Nova
York, Kubrick, intencionalmente, cortou 19 minutos do obscuro filme e adicionou legendas explanatórias”12. (A propósito, há uma introdução textual em uma sequência de Peter Hyam – 2010: O ano em que faremos contato). Uma Odisséia no Espaço e Soliaris também se igualam no fato de que Kubrick cortou 19 minutos da versão inicial de sua Odisséia no Espaço, e a diferença entre a versão de trabalho e a versão de distribuição de Soliaris também é de aproximadamente 19 minutos. Um mistério: uma quantidade praticamente idêntica de cortes e uma situação similar de prólogos adicionados e retirados! Mas não é só isso. Enquanto trabalhava em sua Odisséia no Espaço, Kubrick consultou A Vida Inteligente no Universo13, um livro de Carl Sagan e do astrofísico Iósif Shklóvski, publicado nos Estados Unidos. Logo depois, Shklóvski tornou-se consultor em Soliaris (ele era amigo do editor de Soliaris, Lazariév, que o convidou para trabalhar no filme de Tarkóvski). Que mundo pequeno… É tentador presumir que Shklóvski sabia do prólogo no filme de Kubrick e sugeriu uma solução parecida para Tarkóvski, caso Lazariév tenha dividido com ele sua apreensão em relação ao destino de Soliaris – mas não há nada que confirme tal suposição. Após ver o filme com o prólogo em 25 de fevereiro de 1972, o Goskinó produziu uma nova lista de notas. Julgando pelo tempo de duração listado na carta que a acompanhava, esta dizia respeito ao rascunho do filme - que chamamos agora de versão de trabalho. No final de fevereiro/início de março, Tarkóvski reeditou e re-dublou o filme. Inicialmente, Tarkóvski recusou a redução de 300 metros do filme, porque seu “comprimento é agora uma categoria estética”, mas acabou cortando ainda mais – 563 metros.
A opinião de que Tarkóvski sempre se recusava a seguir as diretrizes impostas por seus superiores espalhou-se entre os críticos. Na verdade, ele aceitava sim alguns dos requerimentos. Às vezes, ele devolvia ao Goskinó uma lista de mudanças que ele mesmo já havia realizado. Ao receber tal lista, os superiores, provavelmente, imaginavam que ele estava tomando medidas para cumprir seus requisitos. Mas eu vejo algo diferente. Tendo estudado a edição de seus filmes, eu descobri certas proporções, um tipo de “cânone de Tarkóvski”, similar ao da estrutura da igreja cristã. Eu o analisei detalhadamente em meu livro, Киногерменевтика Тарковского [A Hermenêutica Cinematográfica de Tarkóvski]14. O “cânone de Tarkóvski” exigia que determinados planos fossem inseridos em momentos específicos do filme e, para conseguir isso, os planos que se passavam antes ou depois deles tinham que ser estendidos ou reduzidos adequadamente. Portanto a técnica de edição era muito complicada. O fato de apenas ele buscar esses secretos momentos significativos somente complicou a situação – se pedisse conselhos para qualquer outra pessoa, seria considerado louco. Tarkóvski continuou buscando essas proporções, em Soliaris, mesmo depois da versão de trabalho ser aprovada. Eu presumo que é aí que está o verdadeiro significado de suas palavras quando disse que o comprimento do filme era uma categoria estética. Segundo “o cânone de Tarkóvski”, o filme tem de girar em torno da “perspectiva de Deus”, ou então, a manifestação de Deus tem de ser expressa por meio de alguns símbolos, o mais importante deles, para Tarkóvski, era o fogo. Na parte periférica do filme, deveria haver ou água, ou seus equivalentes simbólicos. Soliaris começa com cenas em um riacho na Terra e termina com o oceano de Soliaris e, na parte central, o fogo